A educação escolar indígena no Paraná.
FAUSTINO, Rosângela Célia 1
SILVA, Ivone Rocha da2
Introdução.
No Brasil a discussão e o desenvolvimento de pesquisas acerca da educação escolar
indígena é recente, principalmente na área de educação. As poucas pesquisas existentes
concentram-se no campo da Antropologia e são, na grande maioria, estudos de caso.
Desta forma, este tema é um objeto emergente de reflexão, estudo e investigação por
parte dos educadores.
CÔRTES (1996) demonstra que a ausência de estudos, provenientes de profissionais
da educação, talvez tenha como uma das variáveis o fato de que a questão indígena
especificamente e a da diversidade étnico-cultural de forma mais ampla, historicamente
abordada pela antropologia, ainda não vem sendo tema nos currículos dos cursos de
Pedagogia. Tal situação também faz com que os professores do Ensino Fundamental e
Médio, desconheçam a questão indígena e a pluralidade étnico-cultural do Brasil,
resultando na incapacidade desses professores de desenvolverem uma análise crítica
sobre a visão do índio e do negro no livro didático, por exemplo.
CÔRTES (1996) afirma que os estudos existentes sobre as escolas em terras
indígenas, mostram que esses vem se dando prioritariamente nas regiões do Norte e
Centro Oeste, e, em menor número, no Sul e que poucos estudos e pesquisas foram
publicados pelas editoras brasileiras e nas livrarias são pouquíssimos os livros sobre
educação, originária das tradições indígenas ou escolar entre estes povos.
Para outra pesquisadora do tema, Marta CAPACLA (1995), as publicações vão se
tornando mais freqüentes e os debates mais complexos somente à medida em que a
educação escolar indígena firma-se como objeto de reflexão.
No Paraná, é mais acentuada a ausência de discussões e estudos sobre as escolas
indígenas. O quadro elaborado por GONÇALVES e SILVA (1998), com base nos
trabalhos apresentados na ANPED, mostra a existência de apenas duas dissertações de
mestrado sobre a educação escolar indígena, realizadas na região Sul. Esta ausência
contribui com a permanência de uma educação tradicional assimilacionista nas 25
escolas das 17 áreas indígenas existentes no Paraná, onde estudam cerca de 2000
crianças da Educação Infantil às séries iniciais do Ensino Fundamental.
Em termos legais houve um grande avanço quando do reconhecimento, por parte do
poder público, das diferenças étnicas e da necessidade de se organizar uma educação
diferenciada. Porém, essa legislação não foi capaz de mudar significativamente a
realidade das escolas. As Políticas Educacionais atuais declaram como princípios
básicos para a educação escolar indígena a Interculturalidade e o Bilingüismo mas
não estão sendo criados espaços para que a interculturalidade possa se desenvolver e o
bilingüismo, que durante muito tempo foi um elemento de apropriação da língua para a
dominação, com conteúdo religioso, deve ser repensado.
Palavras-Chave: Educação escolar indíngena, interculturalidade, bilinguísmo, indíos
Kaingang
1
Professora Assistente no Departamento de Teoria e Prática da Educação na UEM. Pesquisadora do
Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações – Laboratório de Arqueologia, Etnologia e EtnoHistória LAE/CCH/UEM-Maringá-PR. E-mail [email protected]
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educaçãoda UEM. Pesquisadora do Programa
Interdisciplinar de Estudos de Populações – Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-História
LAE/CCH/UEM-Maringá-PR
2
Breve histórico das políticas indigenistas no Brasil
Com a proclamação da República em 1889 e a necessidade de modernizar o país, a
questão indígena começa a ser pensada de forma diferente. Estudiosos3 são unânimes
em afirmar que começa a se desenvolver uma política menos desumana e mais
abrangente no sentido de proteger os povos indígenas das barbáries cometidas nos
séculos anteriores.
Em 1808, com a chegada da família real portuguesa, o primeiro ato administrativo
do rei D. João VI foi declarar guerra aos índios, por entender que estes estavam
atrapalhando o projeto da Coroa: expansão e domínio de novos territórios e exploração
de riquezas.
A política da guerra, extermínio e submissão se mantém por todo o século XIX e,
apenas nos últimos anos, com a influência dos positivistas na política brasileira é que se
inicia uma nova discussão acerca do que fazer com estas populações que insistiam em
continuar sobrevivendo à civilização.
GAGLIARDI (1989), assim se refere ao falar das políticas indigenistas – criação do
Serviço de Proteção ao índio - no final do século XIX e início do século XX,
A intervenção do Estado ocorreu num momento
dramático. Na passagem do século XIX para o século XX,
a expansão rápida do capitalismo no campo gerou
diversos focos de conflito entre o indígena e o
empreendedor capitalista (GAGLIARDI, 1989, p. 19)
Neste período, o trabalho de integração estava ainda sob a responsabilidade da
Igreja Católica, porém, após alguns anos da proclamação da República, em 1908, houve
um eloqüente debate no Brasil em torno da questão indígena influenciado pelo laicismo
positivista que imprimiu transformações na política indigenista.
A fundação do SPI-Serviço de Proteção ao Índio - e seu
conteúdo laico, contudo, são produtos do processo
histórico que aboliu a escravidão, introduziu o trabalho
assalariado, proclamou a República e secularizou o
Estado, a educação, os cemitérios, o casamento e outras
instituições (GAGLIARDI, 1989, p. 22)
Ao fazer a referência a polêmica travada na imprensa paulista e carioca, no final do
ano de 1908 a respeito do extermínio dos índios no Brasil, GAGLIARDI (1989) afirma
ter sido nesta ocasião que os positivistas demonstraram a sua combatividade e
capacidade de organização influenciando diretamente na criação do SPI em 1910.
Em momentos anteriores, na primeira proposta constitucional do apostolado
positivista em 1890, mesmo não tendo sido aprovada, haviam sido lançadas as bases da
política indigenista republicana de um relacionamento norteado por princípios de
amizade a brandura proposto pelos positivistas (GAGLIARDI, 1989).
Os positivistas, seguindo os ensinamentos de Comte, acreditavam que os índios
estavam ainda no período da infância da evolução do espírito humano, merecendo um
tratamento adequado para que pudessem evoluir do estágio em que se encontravam para
3
Um debate pormenorizado sobre esta questão foi feito por ocasião dos vários Encontros de Educação
Indígena ocorridos no final da década de 1970 com o apoio da OPAN – Operação Anchieta, publicados
na obra: A Conquista da escrita. São Paulo: Iluminuras, 1989.
3
o estágio atual da evolução humana. Mesmo com esta visão, GAGLIARDI acredita que
prestaram um grande serviço na defesa de populações indígenas em um contexto de
muita violência e discriminação.
Tendo sido aprovada a criação do SPÍ, este sobrevive até 1967 quando, afundado
por denúncias de corrupção, é substituído pela Fundação Nacional do Índio, órgão que
também sofre denúncias por agir de acordo com os interesses das frentes de expansão
do capital representadas pelas grandes companhias agropecuárias, madeireiras,
mineradoras, hidrelétricas e outras, o que levou à redução das terras indígenas, à
militarização das aldeias e à integração forçada dos índios à sociedade nacional.
Em relação à Igreja Católica, que durante séculos não se contrapôs aos interesses do
Estado nos assuntos indígenas, há uma mudança de postura a partir das reuniões de
Medelin em 1968 e Puebla em 1978. O CIMI – Conselho Indigenista Missionário,
ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, criado em 1972, teve sua existência
marcada pela crítica à atuação tradicional da Igreja e propôs novas linhas de ação
pastoral que tem como objetivos principais, a autodeterminação dos povos indígenas e a
defesa de suas terras.
Mesmo com estas mudanças, é inegável que no decorrer de todo o século XX
ocorreram inúmeros conflitos, assassinatos e violência no choque entre índios e nãoíndios no Brasil.
No Paraná – em uma região próxima à Umuarama - o povo Xetá foi “descoberto”
em 1953 e dizimado em 1960 no processo de colonização empreendido pela Companhia
de Terras Norte do Paraná. Deles restam hoje um documentário fílmico produzido por
uma equipe de Antropólogos da Universidade Federal e 8 índios idosos que - tendo os
pais e familiares todos mortos - foram levados quando crianças e criados por famílias
brancas.
Semelhantes aos Xetá, existem inúmeros outros relatos de povos indígenas que
foram extintos ao entrarem em contato com as frentes de expansão capitalista na
segunda metade do século XX.
Em termos de legislação este quadro só foi alterado com a Constituição de 1988
quando as terras indígenas começam, lentamente, a ser demarcadas e o direito à língua e
a diferença cultural foi reconhecido pela constituição e legislações complementares.
Esta Constituição também transformou o índio, antes considerado silvícola - em cidadão
com direito a votar e ser eleito, fazer carteira de identidade, abrir conta em bancos e
circular livremente pelo país.
Esta cidadania, alcançada em termos legais, não corresponde à cidadania real pois os
índios continuam fazendo parte dos excluídos no Brasil.
Com as transformações ocorridas na política brasileira – processo de esgotamento
do regime militar e movimentos indigenistas - a produção bibliográfica acerca das
questões indígenas receberam, em meados da década de 1970 uma expressiva
revitalização e puderam derrubar alguns mitos.
Existia e ainda existe, em menor grau, um mito proveniente do poder público e de
setores conservadores da sociedade, de que as populações indígenas encontram-se em
processo de extinção, com base em observações empíricas afirmam que não existem
mais no Brasil “índios puros” uma vez que estes perderam a cultura, não vivem mais da
caça e da pesca, se alimentam de produtos industrializados, não praticam mais rituais de
cura, tratam-se com remédios da farmácia, usam roupas dos brancos, ouvem rádio,
assistem televisão, estudam nas escolas dos brancos, praticam o comércio, etc.
A revitalização teórica ocorrida na década de 1970, no campo da Antropologia e de
outras áreas das Ciências Humanas, se contrapõe a estes argumentos, através da
pesquisa acadêmica. Estudos realizados com o apoio de diferentes fontes - orais e
4
escritas - vai mostrar que os povos indígenas sobreviveram aos cinco séculos de
extermínio e violência na história da colonização do Brasil, Conservaram sua língua,
muitas de suas tradições, seus mitos, reinventaram sua cultura4 e continuam lutando pela
demarcação das terras pois sabem ser esta condição indispensável para a sobrevivência
dos povos.
A Educação Escolar Indígena na atualidade: O multiculturalismo e a
interculturalidade
No contexto das transformações locais e mundiais, a educação escolar índígena a
partir de 1991, deixa de ser responsabilidade da FUNAI e passa à responsabilidade do
MEC que cria, em 1993 a Assessoria de Educação Escolar Indígena e os Núcleos de
Educação Indígena NEIs em cada Estado onde existem Terras Indígenas.
A este respeito, o estudo de CAPACLA (1995, p. 33) afirma que
A descentralização dos projetos de educação indígena não
têm sido feita de modo sistemático e, se submetida
inteiramente às políticas regionais – muitas vezes
contrárias à causa indígena – os direitos indígenas
adquiridos podem tornar-se letra morta.
No Paraná o NEI/PR foi criado em 1992 porém, sobre ele pesam severas críticas por
parte de Alguns antropólogos. TOMMASINO (2000) discutindo esta questão, avalia
que a educação escolar indígena encontra-se com sérios problemas devido ao fato de o
NEI/PR ter sido criado e vir funcionando nestes 10 anos de existência, de forma
centralizada, atuando com uma concepção de educação tradicional que desconsidera
aspectos sócio-culturais como influenciadores do processo de aprendizagem das
crianças indígenas .
Em termos de concepção teórica, no Brasil, um dos primeiros e significativos
trabalhos acerca da educação indígena é o de Florestan Fernandes, “Notas sobre a
educação na sociedade Tupinambá”, elaborado em 1951 como “notas de aula” e
publicado no início da década de 70.
Este trabalho é importante porque foi a primeira abordagem que polemizou estudos
anteriores cujas discussões remetiam para a afirmação de que a educação indígena, com
suas barreiras e limitações, aniquilava o indivíduo frente ao grupo não permitindo o
desenvolvimento da criatividade e da liberdade intelectual, ou ainda, a idéia de que a
educação indígena era rudimentar e muito simples uma vez que ocorria através da
imitação/reprodução e tinha como objetivo apenas garantir a perpetuação das antigas
tradições às novas gerações. A este respeito o autor afirmou que
... é preciso tanto talento e capacidade criadora para
“manter” certas formas de vida, ao longo do tempo e
através de inúmeras alterações concomitantes ou
4
O conceito de cultura é bastante amplo e complexo e tem sido objeto de estudo em várias áreas de
conhecimento no campo das Ciências Humanas. Existe atualmente um combate às idéias do século
passado que viam a cultura como um conjunto de códigos e significados imutáveis. Uma importante
contribuição acerca desta discussão é a de Fredrik BARTH (2000) quando este afirma que “A realidade
de todas as pessoas é composta de construções culturais, sustentadas de modo eficaz tanto pelo mútuo
consentimento quanto por causas materiais inevitáveis: a linguagem, as categorias, os símbolos, os rituais
e as instituições.” Este argumento demonstra que a cultura é histórica, ou seja que ela se transforma mas
que esta transformação não significa seu fim.
5
sucessivas das condições materiais e morais da existência
humana, quanto para “transformar” certas formas de
vida, reajustando-as constantemente às alterações
concomitantes ou sucessivas das condições de existência
humana. (Fernandes, 1975, p.37)
Para este autor não se trata, simplesmente, de polarizar se as qualidades e energias
intelectuais das crianças e jovens índios estão sendo desenvolvidas na direção da
estabilidade ou da mudança social, o importante é buscar compreender quais são as
exigências da situação e em que medidas são elas atendidas pelos comportamentos
postos em prática.
Este estudo evidenciou que a educação indígena não objetiva preparar o homem
para a experiência nova, mas a prepará-lo para conformar-se aos outros, sem perder a
capacidade de realizar-se como pessoa e de ser útil à coletividade como um todo, isto
significa dizer que o indivíduo é orientado tanto para “fazer” certas coisas como para
“ser” homem ou mulher segundo certos ideais da pessoa humana.
Desta forma, afirma FERNANDES, seria equivocado separar esse tipo de educação
daquela que ministramos em nossas escolas, como se estivéssemos diante de mundos
inconciliáveis e antagônicos, pois, além do propósito fundamental comum, de converter
o indivíduo em ser social – ideal da escola pública ocidental – deve-se ter claro o
premente incentivo à formação de aptidões orientadas no mesmo sentido.
... é patente que as sociedades humanas procuram
modelar a personalidade dos seus membros ... utilizando a
educação como um técnica social de manipulação da
consciência, da vontade e da ação dos indivíduos. (p.35)
Este autor caracterizou a educação Tupinambá como sendo uma educação cujas
particularidades demonstram: 1) o sentido comunitário da educação uma vez que os
conhecimentos produzidos eram acessíveis a todos (de acordo com as prescrições
resultantes dos princípios de sexo e idade, sendo portanto a herança social
compartilhada de forma ampla). 2) a ausência de tendências apreciáveis à
especialização. 3) a modalidade igualitária de participação da cultura. Estes elementos
associados ao próprio nível civilizatório da tecnologia Tupinambá, permitiam que a
transmissão da cultura se fizesse através de intercâmbio cotidiano, por contatos pessoais
e diretos, sem o recurso a técnicas de educação sistemática e a criação de situações
sociais caracteristicamente pedagógicas.
Esse processo faz com que todos os adultos sejam educadores e todas as crianças e
jovens sejam aprendizes.
... ninguém se eximia do dever que convertia a própria
ação em modelo a ser imitado... os adultos, em geral e os
velhos em particular recebiam essa sobrecarga de uma
maneira que não os poupava, já que tinham de dar o
exemplo e por isso estavam naturalmente compelidos a
agir como autênticos mestres. (Fernandes, 1975, p.44)
Este estudo mostra que na sociedade Tupinambá, todos tinham de acumular uma
ampla bagagem de conhecimentos, educando a memória para armazenar lembranças e
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ensinamentos perpetuados por via oral educando a capacidade de agir, para
corresponder às normas, prescritas ou exemplares, de fazer as coisas.
Isso envolvia, por sua vez, aptidões complexas, que
exigiam uma profunda educação das emoções , dos
sentimentos e da vontade, a ponto de fomentar o sacrifício
permanente de disposições egoístas individuais e a mais
completa identificação dos indivíduos com suas
parentelas, as alianças que elas mantivessem e os
interesses que elas pusessem em primeiro lugar.
(Fernandes, 1975, p.52)
Neste sentido, FERNANDES conclui que a educação na sociedade indígena é uma
educação permanente. Somente os velhos podem considerar-se sábios, portadores de
conhecimentos amplos, profundos e completos sobre todas as questões que os envolvem
possuindo certos requisitos para participar de todas as atividades capazes de revitalizar
estes conhecimentos.
Outro importante trabalho foi o de Egon SCHADEN (1976) ao estudar a educação
na etnia Guarani, uma das maiores em termos de número no Brasil. SCHADEN alerta
os pesquisadores sobre a lacuna existente nas pesquisas no Brasil acerca das questões
indígenas em geral e da educação especificamente.
Devemos precaver-nos contra a tendência muito comum
de encarar os povos primitivos como essencialmente
similares uns aos outros.
SCHADEN afirma que para compreender o processo educativo numa tribo
qualquer, seria necessário, a rigor, conhecer a fundo o sistema sócio-cultural a que ele
corresponde pois, a educação na sociedade Guarani significa formar o tipo de homem
ou de mulher que, segundo o ideal válido para a comunidade corresponda à verdadeira
expressão da natureza humana. A cultura e a educação agem no sentido de tornar
semelhantes os indivíduos.
Educar é fazer o indivíduo viver segundo as normas da
tradição (...) Desde cedo, por isso, vemos a criança índia
participar do mundo dos adultos no grau em que lho
permite o desenvolvimento físico e psiquico. (Schaden,
1976, p.24)
SCHADEN diz que as crianças Guarani aprendem a vida brincando, a educação
moral se baseia no exemplo e na persuasão. Os adultos nunca falam com as crianças de
forma áspera e só em casos muito raros se recorre a castigos físicos. O respeito aos pais
e aos demais adultos não constituem problema assim como o bom entendimento entre as
crianças.
O pesquisador atribui estas questões à concepção de infância existente entre os
Guarani cujo conceito é preciso e bem definido. Existe um respeito à personalidade da
criança e a sua posição social. Para o Guarani, o “gênio” da pessoa é inato, e pouco
adiantaria querer corrigi-lo. Dessa crença resulta o respeito pela personalidade alheia,
inclusive pela das crianças de tenra idade. Mas isto não quer dizer desinteresse pelas
práticas de educação. Todas as crianças são orientadas no decorrer da vida, porém, esta
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orientação se dá nas ações diárias “sem muito esforço” pois os conhecimentos são
apreendidos através da participação na vida cotidiana.
Na sociedade Guarani todos os sujeitos têm o seu papel social definido conforme as
aptidões e personalidade que apresentarem desde a infância. Uns se tornam chefes,
caciques, dirigentes políticos outros são guerreiros, outros líderes religiosos, curadores,
conselheiros. Mesmo afirmando que a educação entre os guarani é informal e
espontânea, SCHADEN demonstra que os pajés, para serem formados, necessitam de
longo período – entre dez e vinte anos - de aprendizagem e de diferentes mestres para
terem os estudos completados.
A liberdade é um componente importantíssimo na educação indígena, a criança vai
adquirindo, aos poucos, os necessários padrões de comportamento para a vida em
sociedade.
Em termos de educação escolar indígena, o primeiro trabalho publicado com uma
abordagem crítica – mostrando as limitações dos projetos oficiais e fazendo críticas ao
indigenismo nacional mesmo no contexto do regime militar - foi o do antropólogo
Silvio Coelho dos SANTOS, Educação e sociedades tribais (1975), com o apoio da
“The Ford Foundation” e da Universidade Federal de Santa Catarina.
O estudo faz uma análise dos postos indígenas da região sul do país que, no período,
atendiam índios das etnias Xocleng, Kaingang, Guarani e alguns índios Xetá, com o
objetivo de avaliar a possibilidade de educação formal e bilíngüe entre populações
indígenas nesta região.
SANTOS afirma que a relação entre índios e não-índios estava estruturada a partir
de uma relação de dominação do “índio” pelo “civilizado”, desta forma, a educação
escolar existente nas áreas reproduzia e reforçava esta relação levando à dominação e
submissão através de práticas pedagógicas autoritárias, discriminatórias, alheias à
realidade e aos conhecimentos das crianças e jovens índios levando a sentimentos de
incapacidade e silenciamento.
Discutindo a educação através de uma análise ampla das relações sociais, este autor
afirma que a escolarização sistemática nestes postos indígenas teve início nos anos de
1940 e que até meados dos anos de 1970 não haviam sido elaborados objetivos ou
realizado-se discussões e análises acerca da educação formal entre os índios. A
argumentação da coordenação do projeto era a de que aos índios estava sendo dada a
oportunidade da escola, se não aproveitassem era porque não queriam.
A experiência do ensino bilingue que estava sendo desenvolvida era a proposta do
SIL - Summer Institut of Linguistics5 coordenada pela missionária Ursula Wilsemam
5
O estudo de Maria Candida Drumond Mendes BARROS, (1993) demonstra que “O SIL é uma missão
evangélica especializada na tradução do Novo Testamento para línguas ágrafas (...) faz parte de um grupo
missionário nos Estados Unidos que inclui a Jungle Aviation and Radio Service (JAARS) e a Wycliffe
Bible Translators (WBT). As três instituições não estão ligadas a nenhuma Igreja evangélica em
particular. No conjunto, possuem cerca de 5.925 membros (...) representando a terceira missão evangélica
americana em relação ao número de membros (...) e a segunda no Brasil depois da New Tribes Mission.
Cada uma dessas missões têm funções diferentes. (...) o trabalho de conversão junto aos grupos étnicos é
tarefa do SIL (...) O SIL, nos países onde atua, não é conhecido pelo seu trabalho proselitista, mas por
seus trabalhos científicos no estudo de línguas ágrafas e pela sua contribuição nos projetos de educação
bilíngüe (...). Na América Latina, eles são os responsáveis pela educação indígena oficial em uma série de
países. A lingüística é sua marca de identidade. Seus membros podem ser encontrados em congressos
científicos, em publicações acadêmicas, nas associações de lingüistas, ou ainda nas universidades como
professores ou alunos. A lingüística surgiu na missão como uma estratégia política para facilitar a sua
entrada na América Latina. O perfil do cientista serviu para manter oculto o de missionário, permitindo à
missão manter alianças com governos anti-clericais, católicos ou ainda com indigenistas positivistas ou de
esquerda. Em nenhum outro continente a política da dupla identidade foi tão bem sucedida como na
América Latina, onde a missão, apesar de várias crises (Brasil, México, Peru, Colômbia, Equador,
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que propunha a introdução da educação escolar em quatro semestres, onde no primeiro
se alfabetizava a criança em língua indígena, ensinando-se, paralelamente, o português
oral e, só depois no quarto semestre ela seria alfabetizada em português.
Com o apoio do Governo, a FUNAI realizou convênios com o SIL em diversas
regiões do país. O estudo de SANTOS apontou limitações deste projeto como a
dificuldade de compreensão de seus objetivos por parte dos chefes dos Postos e das
lideranças indígenas, dos servidores e professores e a dificuldade de aceitação dos
monitores índios provenientes de outras aldeias por parte dos índios.
Segundo SANTOS, este projeto fundamentava-se na concepção de que a educação,
por si só, introduziria mudanças significativas na vida indígena, sendo assim, os
proponentes do projeto não pensaram propostas mais amplas que objetivassem valorizar
o índio e sua cultura como um todo.
O padre Bartolomeu MELIÁ estudioso da cultura Guarani também tem contribuido
significativamente com as discussões acerca da educação escolar indígena. Seu primeiro
trabalho divulgado foi publicado no livro Educação indígena e alfabetização, em 1979.
Nesta obra, MELIÁ lança importantes questionamentos acerca da educação para o
índio. Combate o pressuposto de que as sociedades indígenas estão se extinguindo e os
discursos preconceituosos que julgam que os índios não têm um processo sistematizado
de criação e divulgação de conhecimentos, ou seja, que não têm educação formal.
Para MELIÁ a concepção de educação indígena é ampla e democrática, isto se torna
perceptível através da seguinte afirmação:
A educação índigena é certamente outra. Ela está mais
perto da noção de educação, enquanto processo total. A
convivência e a pesquisa mostram que para o índio a
educação é um processo global. A cultura indígena é
ensinada e aprendida em termos de socialização
integrante. O fato dessa educação não ser feita por
profissionais da educação, não quer dizer que ela se faz
por uma coletividade abstrata. (...) a educação de cada
índio é interesse da comunidade toda. A educação é o
processo pelo qual a cultura atua sobre os membros da
sociedade para criar indivíduos ou pessoas que possam
conservar essa cultura. (...) Educar é, enfim, formar o tipo
de homem ou de mulher que, segundo o ideal válido para
a comunidade, corresponda à verdadeira expressão da
natureza humana.
MELIÁ afirma também que a educação indígena é gradativa, permanente e
acompanha o amadurecimento da pessoa nas diversas fases da vida que vão desde a
gestação até a velhice.
Para MELIÁ, toda criança nasce num chão cultural muito fértil e o objetivo da
educação indígena é tornar esta criança uma autêntica representante de sua própria
cultura, integrá-la às normas, à ordem religiosa e simbólica e às tradições da
comunidade à qual ela pertence.
Este livro de MELIÁ oferece um panorama das discussões sobre a educação escolar
indígena no final da década de 1970, representado por um período no qual, a partir da
crítica às escolas organizadas por missões religiosas e pelo poder público, iniciou-se
Panamá) não sofreu nenhum processo formal de expulsão, ao contrário do que aconteceu na África e Ásia
(Nigéria, Nepal, Vietnam e Camboja)”.
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um momento de busca de alternativas para a construção de projetos educativos que, ao
mesmo possibilitassem o conhecimento da cultura da sociedade envolvente – na busca
de uma relação mais equilibrada de contato - permitisse o reconhecimento e a
valorização do conhecimento proveniente da comunidade indígena na qual se inserisse.
No final da década de 1970 ocorreu um Encontro Nacional sobre Educação Indígena
cujos trabalhos foram publicados no livro coordenado pela Antropóloga Aracy Lopes da
SILVA, intitulado A questão da educação indígena, publicado em 1981. Este trabalho é
um marco referencial importante na medida em que faz a defesa veemente da educação
bilíngüe nas escolas indígenas, projeto que só irá se consolidar no final da década de
1980 em termos de legislação – Constituição Federal - e no final da década de 1990 em
termos de Proposta Pedagógica – Referencial Curricular Nacional para a Educação
Escolar Indígena.
O livro que reúne diversos artigos de antropólogos, professores, indigenistas e
membros de comunidades indígenas discute, além do bilinguismo a questão de uma
filosofia e uma pedagogia da educação indígena visando “fazer” da escola na área
indígena um elemento de fortalecimento e de resistência à situação de contato com dois
objetivos principais: a revitalização da cultura tradicional do povo indígena e a
apropriação do conteúdo da escola “dos brancos” para um melhor relacionamento com a
sociedade envolvente.
Em relação ao bilinguismo foram identificadas duas posições básicas sobre a língua
da alfabetização: os que defendiam que esta fosse feita em português e os que
defendiam que fosse feita na língua materna. Entre os defensores da alfabetização em
português estavam muitos índios devido à urgente necessidade do domínio desta língua
nas situações de contato, porém têm consciência de que a alfabetização em português é
coerente com o projeto indigenista de assimilação/subserviência. Por outro lado, a
alfabetização em língua materna requeria a participação de lingüistas, professores
bilíngües e os estudos acerca das línguas indígenas estavam ainda se iniciando.
Neste sentido foram tomadas algumas decisões visando a formação de grupos de
educadores, de contato com entidades de apoio à causa indígena, a organização de
cursos para a formação de professores em áreas indígenas e o registro de todas as
experiências a serem desenvolvidas.
Também foi criado na Universidade de São Paulo o grupo de pesquisa – MARI –
que vem desenvolvendo pesquisas, publicações e prestando assessorias a algumas
projetos em escolas indígenas.
Na década de 1990, apesar das políticas de cortes no orçamento público que
atingiram fortemente a educação e do predomínio das orientações dos Organismos
Internacionais - Banco Mundial e FMI- nas políticas públicas, as universidades
começaram a desenvolver grupos de pesquisas e incrementaram seus cursos de pósgraduação o que propiciou a pesquisa em diversas áreas do conhecimento.
Em alguns estados cuja presença indígena é bastante acentuada, os Núcleos e
Secretarias de educação criaram programas específicos – cursos de formação de
professores, magistério específico, apoio à elaboração de material didático diferenciado,
ampliação de escolas e contratação de professores e assessores - uma vez que os
movimentos étnicos e as pesquisas realizadas fizeram com que a educação escolar
indígena deixasse de ser responsabilidade da FUNAI passando ao MEC que criou em
1993 uma Secretaria específica para a Educação Escolar Indígena.
Os movimentos sociais, indígenas e indigenistas da década anterior, o processo de
abertura política (esgotamento da ditadura militar), os projetos, experiências (em
algumas regiões do Brasil) e estudos desenvolvidos possibilitaram um maior
amadurecimento desta questão resultando na elaboração de três artigos - art. 210, 215 e
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231 - específicos na Constituição Federal de 1988. Na seqüência, em forma de
regulamentação, o poder público aprovou o Decreto n. 26 de 1991, a Portaria 559
também de 1991, o Comitê de Educação Escolar Indígena, em 1993, as Diretrizes do
MEC em 1994, A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9394/96) através dos artigos
26, 78 e 79, o Referencial Curricular Nacional para a Educação Escolar Indígena
RCNEEI, em 1998, a resolução CNE n. 2 em 1998, a Resolução do CEB n. 3 em 1998,
o Parecer CEB, n. 14 em 1999, O PNE em 2001 e diversas outras legislações estaduais
que garantem uma educação intercultural, bilingue, de qualidade e diferenciada para os
povos indígenas.
A professora e pesquisadora Vera CANDAU (2002) em artigo intitulado
“Interculturalidade e educação escolar” afirma que neste processo crescente de
exclusão – com o projeto neoliberal hegemônico e o avanço de reformas estruturais que
acentuam a marginalização e a exclusão, em nome da abertura dos mercados e do sonho
de entrar no “primeiro mundo”... – os mais afetados são os “outros”, os diferentes, os
que não dominam os códigos da modernidade, não têm acesso ao processo de
globalização em suas diferentes dimensões, estão configurados por culturas que
resistem a colocar no centro a competitividade e o consumo como valores fundamentais
da vida, pertencem a etnias historicamente subjugadas e silenciadas, questionam os
estereótipos de gênero presentes nas nossas sociedades, lutam diariamente pela
sobrevivência e pelos direitos humanos básicos que lhe são negados.
Para Candau (2002, p. 01)
Faz muito tempo que sabemos que a miscigenação é um
dos traços de nossa formação histórico-cultural, que os
povos originários e os afro-americanos são testemunhas
do massacre realizado ao longo dos últimos quinhentos
anos, assim como de resistência e fortaleza, que os
processos de “hibridização cultural” (Garcia Canclini) se
multiplicam e acentuam no continente. Mas, em geral,
associávamos esta realidade a uma valência negativa, a
algo que nos impedia de gerar processos de
desenvolvimento e de afirmação de identidades próprias
em pé de igualdade com diferentes povos e nações.
No Brasil existe ainda uma grande luta pela posse e manutenção da terra. A
constituição garantiu aos índios o direito por suas terras tradicionais porém, o processo
de demarcação é muito lento e esbarra em interesses particulares e questões políticas o
que, na maioria dos acasos, dificulta em muito o acesso.
... esta perspectiva surge não somente por razões
pedagógicas, mas principalmente por motivos sociais,
políticos, ideológicos e culturais. A origem desta corrente
pedagógica pode ser situada aproximadamente há trinta
anos, nos Estados Unidos, a partir dos movimentos de
pressão e reivindicação de algumas minorias etnicoculturais, pricipalmente negras (Candau, 2002, p.02)
11
Não se pode porém confundir Interculturalidade com Multiculturalismo6, e a
corrente norte-americana é multicultural uma vez que objetiva o reconhecimento da
existência de etnias diferentes que lutam pela inclusão social. Os defensores do
multiculturalismo na escola afirmam também que as crianças da sociedade dominante
necessitam saber da existência de outras manifestações culturais, religiosas intelectuais,
morais das culturas subalternas7.
Diferentemente do multiculturalismo, a interculturalidade não apenas reconhece
esta necessidade como afirma que é imprescindível o desenvolvimento de espaços de
participação comum para que se possa, de fato, desenvolver relações equilibradas.
O interculturalismo supõe a deliberada interrelação entre
diferentes culturas. O prefixo inter indica uma relação
entre vários elementos diferentes: marca uma
reciprocidade (interação, intercâmbio, ruptura do
isolamento) e, ao mesmo tempo uma separação ou
disjuntiva (interdição, interposição, diferença) este
prefixo (...) se refere a um processo dinâmico marcado
pela reciprocidade de perspectivas. (Candau, 2000, p.03)
Para compreender a interculturalidade na discussão internacional, existe a
abordagem de Paola Fateri8 (1998, p.33) que em sua contribuição aos estudos
interculturais afirma que esta é muito mais do que o reconhecimento da diversidade,
para ela, a interculturalidade não deve apenas reconhecer que existem diferentes
culturas em convivência mas, criar espaços onde possam se realizar trocas.
...o “interculturalismo” (...) propõe uma dimensão
dinâmica de contato, interação, troca, na qual a
diversidade conta como interlocutor ativo. O termo
“intercultura”, usado pelo Conselho Europeu desde o
início dos anos 80 e por isso adotado na linguagem dos
documentos ministeriais quando se decidiu enfrentar a
questão da inserção dos estrangeiros nas escolas (...)
(Falteri, 1998, p. 37)
Segundo Falteri, a intercultura aponta para um projeto que, no plano
educacional, pretende intervir nas mudanças induzidas pelo contato com as
diversidades, de modo a promover atitudes abertas ao confronto e conduzir os processos
aculturadores a uma integração entre culturas que não “colonizem” as chamadas
minorias étnicas.
A perspectiva intercultural, de fato, começa somente
quando se criam as condições para a troca, quando se
estabelece uma relação de reciprocidade, quando, no
6
Sobre o multiculturlismo pode-se ver o livro de Peter Maclarem “O multicultualismo crítico” –
principalmente o capítulo intitulado Educação multicultural e pedagogia crítica - publicado no Brasil
pelo Instituto Paulo Freire.
7
Para uma melhor compreensão da utilização deste termo [subalternos] sugere-se a leitura do texto de
Aijaz Ahmad. A teoria pós-moderna e a condição pós. Texto elaborado por ocasião de uma conferência
ministrada na York University, em Toronto no dia 27 de novembro de 1996.
8
Paola Falteri é professora e pesquisadora no Instituto di Etnologia e Antropologia Culturale da
Università degli Studidi Perúgia e dedica-se à pesquisas em Antropologia da Educação desde 1975.
12
reconhecer o “outro”, nos tornamos conscientes da nossa
própria cultura. ( Falteri, 1998, p. 39)
Se o conceito de interculturalidade é complexo e congrega particularidades
dependendo da realidade à qual se refere, o bilíngüismo parece ser menos complexo
porém é muito mais amplo. Pode-se defini-lo como sendo uma proposta de ensino usada
por escolas que se propõem a tornar acessível à criança duas línguas no contexto
escolar.
A literatura, por exemplo, tem chamado de bilingüismo a linguagem dos surdos
e dos portadores de alguma necessidade especial e todas as outras manifestações de
linguagem diferenciada no interior da escola. Porém, em se tratando de educação
escolar indígena, este termo se refere ao fato de que, de forma geral as crianças índias
chegam à escola sem dominar o português na oralidade, falam e compreendem apenas a
língua materna - a alfabetização deve, necessariamente, ser feita primeiramente na
língua materna e depois na língua portuguesa. E é neste ponto que reside uma das
principais questões e ou dificuldades desta discussão.
No Paraná as crianças índias chegam a escola sem dominar a língua portuguesa
na oralidade e estão sendo alfabetizadas, na maioria das escolas, em português. De
modo geral, entre os Kaingang e Guarani apenas os jovens e adultos falam o português.
Os idosos e as crianças falam a língua materna e entendem muito pouco a língua
portuguesa. Mesmo assim, a escola alfabetiza em português o que representa grande
dificuldade para as crianças.
É quase unânime entre as lideranças – o cacicado – que a escola deve ensinar
apenas a cultura dos brancos pois, para eles, a cultura e a língua dos índios as crianças
aprendem em casa e na aldeia.
Este fato enseja diversas questões a serem refletidas. Primeiro, acreditamos que
a resistência pela educação diferenciada, intercultural e bilingüe se dá devido às
políticas assimilacionistas que, século após século promoveram a inculcação de que
cultura indígena era sinônimo de atraso e ignorância. Segundo: ao ser alfabetizada em
português a criança vai abandonando a língua materna e considerando-a inferior uma
vez que “não serve para escrever”. Terceiro: a criança apresenta grande dificuldade no
processo de alfabetização e fica desestimulada porque está com 8 ou 9 anos e ainda não
aprendeu a ler e escrever. Quarto, as lideranças não compreenderam o significado da
educação intercultural na escola indigena.
Há que se considerar que entre os Kaingang a emancipação dos jovens ocorre
por volta dos 13 anos quando eles passam a ser considerados adultos podendo se casar e
assumir novas responsabilidades. Quem é casado tem grandes dificuldades em continuar
os estudos. A mulher tem que cuidar da casa, fazer artesanato, vender nas cidades
vizinhas e cuidar do marido e das crianças. Os homens têm que trabalhar na roça e
arrumar empregos temporários (bóia-fria) visando conseguir algum dinheiro para o
sustento da família.
Estas e outras questões referente aos aspectos sócio-culturais indígenas não podem
ser desconsiderados no momento da elaboração de propostas pedagógicas.
No contexto da discussão nacional pela elaboração dos Projetos Pedagógicos das
escolas públicas, as escolas indígenas também foram chamadas a promoverem as
mudanças em seus projetos. O poder público enviou o mesmo Roteiro de elaboração
que havia enviado às escolas da sociedade envolvente, no início do ano de 2000. Ao
reunirem-se – coordenação, professores, alguns membros da comunidade, consultores,
pesquisadores, lideranças indígenas – constatou-se que, pela especificidade da escola
indígena, seria muito difícil “enquadrar” o Projeto pedagógico no Roteiro do Governo.
13
Este processo faz-se muito importante porque, de forma geral, nas 25 escolas
existentes no Paraná ainda predomina uma educação tradicional. Não existem
bibliotecas, os professores têm poucos instrumentos para realizar a ação pedagógica, os
alunos não dominam a língua portuguesa na oralidade, os professores índios têm uma
formação insuficiente, os professores não-índios que têm uma formação mais ampla não
falam nem compreendem a língua e a cultura indígena.
A formação dos professores índios e não-índios no Paraná foi feita nos moldes da
racionalidade técnica – Seminários Avançados - que tem predominado, de forma geral,
na política de formação de professores no Paraná através da organização conhecida
pelos professores como Faxinal do Céu.
Como a metodologia que predomina nesta formação é a expositiva, realizada
através de palestras feitas por convidados, os educadores participam apenas como
espectadores pois não tem sido promovidos espaços de estudo, reflexão e discussão, o
que dificulta a elaboração do projeto pedagógico e, consequentemente a ação
pedagógica nas escolas.
São necessárias, então, mudanças urgentes em termos de formação docente e
elaboração de instrumentos pedagógicos diversificados, bilíngues e a criação de espaços
para que a interculturalidade possa, de fato, se desenvolver.
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A educação escolar indígena no Paraná. FAUSTINO