CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC 2007-2008 INTEGRAÇÃO MUNDIAL, DESINTEGRAÇÃO NACIONAL A CRISE NOS MERCADOS DE TRABALHO Metropolis: Uma Antevisão do Mundo Actual? Júlio Mota Margarida Antunes Luís Peres Lopes Faculdade de Economia Universidade de Coimbra Julho de 2008 I. A ACTUALIDADE DE METROPOLIS: ALGUMAS NOTAS DE LEITURA Trata-se de um dos mais emblemáticos filmes de toda a história do cinema, para alguns mesmo, o mais inovador de todos os filmes, desde a invenção do cinema, feito por Fritz Lang, um homem que, segundo o jornal Le Monde, foi um cineasta unido, como por simbiose com a história do século XX. Com este filme, ainda segundo o mesmo jornal, tudo se inventou, assumindo Metropolis mesmo foros de “uma crítica social radical”. Metropolis acaba bem, o que lhe vale, entre outros adjectivos, ser considerado como uma apologia do socialismo. Foi, também, visto como um grito de alarme, face ao crescer do nazismo no seu país, e actualmente é considerado como uma chamada de atenção contra todos os totalitarismos e contra a degradação da dignidade do trabalho. Este é, pois, um filme que está bem ancorado na sua época mas que, oitenta anos depois, é mesmo muito mais actual do que aquilo que Lang, ele próprio, poderia alguma vez pensar! “A ficção duma época torna-se por vezes a realidade duma outra”. Será aqui o caso? Esta é a pergunta colocada aos nossos comentadores pedindo-lhes uma resposta pública no TAGV. Como assinala o jornal Le Monde: Com este filme genialmente visionário, Fritz Lang tudo inventou, e o cinema de ficção científica não deixou, desde então, de nele se inspirar. Na gigantesca cidade do futuro que imaginou, as massas de trabalhadores trabalham debaixo da terra para vantagem exclusiva do senhor de Metropolis. Este inferno de máquinas assimiladas a Moloch, o animal que esmaga os homens, dá lugar a cenários colossais postos admiravelmente em destaque e de uma força visual que continua a estar totalmente intacta. E, para além do seu expressionismo, a modernidade da realização confere a este grande clássico uma dimensão verdadeiramente apaixonante. A história de amor impossível entre Freder, o filho do potentado, e Maria, uma jovem trabalhadora, dá o toque romântico ao que é, primeiro que tudo, uma crítica social radical exposta pela revolta dos desqualificados contra a ordem estabelecida. 1 Ironia trágica desta história: em Metropolis, em 2026, ou seja, 100 anos depois da realização do filme, o dia é reduzido a 20 horas e à dicotomia entre o tempo de trabalho (10 horas) e o tempo de descanso (10 horas), tempo então de os operários se refazerem para o dia seguinte. Nesta cidade do século XXI, o relógio comanda a vida, o trabalho é reduzido à situação de trabalho escravo, o trabalhador é reduzido à esfera do nãodireito. Aqui, e mais uma vez, Lang vai mesmo muito longe. A capacidade de trabalho assume a função exclusiva de ordenador do tempo e este é um tempo fraccionado e regido por uma lógica que é externa ao indivíduo, na cidade Metropolis, porque este também aqui desaparece, fica apenas o escravo, a trabalhar e a viver nos subterrâneos da cidade. Invisíveis e escravos eis, portanto, a realidade dos trabalhadores em Metropolis, pensada na Europa. Duas grandes questões tratadas no nosso Ciclo atravessam hoje o “modelo” social europeu que foi resultando de sucessivas decisões das instâncias comunitárias: as migrações e as condições laborais. Neste quadro, duas directivas em jogo podem vir a moldar uma outra Europa, a Directiva do Retorno e a Directiva sobre o tempo de trabalho. Neste contexto vejamos algumas analogias incómodas entre o filme e a realidade de hoje. Face à Directiva do Retorno vejamos algumas tomadas de posição: 1. Intelectuais no jornal Le Monde: O projecto de directiva europeia entregue aos eurodeputados reflecte, em parte, a brutalidade da sorte reservada aos sem-documentos: até 18 meses de prisão devido apenas ao facto de terem passado as fronteiras e de terem querido viver na Europa; retenção e expulsão de menores e de pessoas vulneráveis (mulheres grávidas, pessoas idosas, vítimas da tortura); possibilidade de expulsar pessoas para um país de trânsito, mesmo na ausência de qualquer ligação a este país; interdição de retorno ao território europeu por um período de cinco anos tendo sido expulsos; ausência de obrigação de fornecer uma autorização de estada aos estrangeiros que sofram de doenças graves; aplicação aos menores isolados do conjunto destas medidas. A serem adoptadas, as disposições da directiva do “retorno” colocaria os estrangeiros em situação irregular, mesmo os menores, sob um regime de excepção: internamento à discrição do poder, enfraquecimento de direitos de defesa, eliminação. Texto encabeçado por: Gérard Aschieri, Secretário-geral da FSU (Fédération Syndicale Unitaire) Francine Blanche, Secretária da CGT Laurent Cantet, cineasta Marc Peschanski, Director de Investigação no INSERM (Institut national de la santé et de la recherche médicale) Aminata Traoré, antiga Ministra da Cultura no Mali Texto co-assinado por largas dezenas de intelectuais 2 2. Posição das Igrejas Ecuménicas (Cimade): Cimade (Conselho ecuménico de entreajuda), que acolhe e acompanha anualmente várias dezenas de milhares de migrantes e requerentes de asilo, afirma que ao “adoptarem, sem estar a acrescentar a mínima alteração ao texto da directiva do retorno negociada pelos ministros do Interior e da Imigração dos 27 Estados-Membros, o Parlamento Europeu perdeu uma grande parte da sua credibilidade quanto à sua capacidade em ter o papel de instância democrática responsável nomeadamente perante a protecção dos cidadãos na Europa”. “Prevendo a prisão de migrantes não comunitários por um período máximo de 18 meses, autorizando a expulsão de crianças, mesmo para fora do seu território de origem, instituindo uma proibição do território europeu por 5 anos, esta directiva atinge as liberdades públicas e faz do acto de prisão um modo de gestão corrente das populações migrantes”, lamenta Cimade. “Surdos aos apelos das ONG, surdos aos apelos das Igrejas, surdos aos apelos de numerosos representantes dos Estados do Sul, surdos às mobilizações dos cidadãos, os deputados europeus, na sua maioria, escolheram renunciar à qualquer veleidade de se oporem à lógica policial que está subjacente à política de imigração conduzida pelos ministros do Interior na Europa desde há 20 anos”. O Cimade indica ainda que “estuda com os seus parceiros todas as vias possíveis para contestar esta directiva no Tribunal de Justiça Europeu ou no Tribunal europeu dos direitos do Homem”. 3. Eurodeputado espanhol Willy Meyer Pleitte (Espanha) no Parlamento Europeu: É uma vergonha, uma verdadeira vergonha deportar mais de 8 milhões de pessoas, na base da figura de detenção administrativa. Se se toma esta decisão será o fim da Europa das garantias. Muitos de nós, cidadãos europeus, sofremos detenções administrativas, em condições de ditadura. Esta é a figura que vai prevalecer para a deportação de 8 milhões de pessoas. Entretanto, vai-se construindo a Europa sem solidariedade. Os mesmos Estados que querem aplicar esta figura são os Estados que — pela primeira vez — reduziram a ajuda à cooperação internacional. 4. Eurodeputado Giusto Catania (Itália): “Com a adopção da Directiva do Retorno, a Europa acaba de escrever uma das páginas mais sombrias da sua história e não pode continuar a ser considerada como o berço dos direitos humanos… Este texto anula séculos desta civilização baseada na legitimidade e coloca a Europa nas mãos de uma cultura racista e xenófoba…” Lamenta que “o princípio da criminalização dos migrantes com a possibilidade de uma detenção administrativa de 18 meses com base na nacionalidade tenha sido validado com este voto… Estas prisões étnicas, em que os migrantes podem legalmente ser presos a partir de agora, tornar-se-ão o novo símbolo desta Europa fortaleza”. 5. Sylvia-Yvonne Kaufmann (Alemanha): Em vez de transferirem esta prática que atinge os direitos fundamentais dos nacionais de Estados terceiros permanecendo ilegalmente no território da União Europeia, os Estadosmembros teriam feito melhor se procurassem encontrar uma solução durável para a problemática da imigração. 3 As posições acima transcritas e as de mais alguns analistas sugerem-nos uma nova configuração da realidade na Europa, que se vai transformar numa fábrica de invisíveis ou presos, como o são também os trabalhadores de Metropolis. A esta nova realidade do quadro europeu acresce-se agora a Directiva sobre os tempos de trabalho. Quanto a esta diz-nos a Confederação Europeia dos Sindicatos (CES) “que as propostas de revisão da directiva sobre o tempo de trabalho “não protegem os trabalhadores contra os perigos que representam longas horas de trabalho para a saúde e segurança, estas diminuem gradualmente a protecção sem oferecer salvaguardas adequadas, sem assegurarem um justo equilíbrio entre a flexibilidade e a segurança… Se adoptada na sua forma actual, a directiva revista será a primeira directiva social a introduzir uma regressão ao nível da protecção oferecida, o que é incompatível com os tratados europeus”. Ironia da história também aqui, ironia da cidade Metropolis de Lang. De facto, o trabalhador-escravo em 2026 trabalha 10 horas por dia e agora em 2008, na Europa que se quer fortaleza, a nova Directiva vem determinar que o máximo de trabalho legal semanal é afinal de 65 horas, vizinho portanto do tempo de trabalho escravo visto por Fritz Lang. Por outro lado, julgamos que o “modelo” social europeu, o das actuais instâncias comunitárias não parece capaz de suportar uma Europa de largos milhões de desempregados, de muitos mais milhões em situação de precariato, onde o número de trabalhadores pobres tem sido de tal forma elevado que se corre o risco de esta categoria se transformar na nova paisagem social da Europa, onde o valor prioritário é a taxa de inflação e onde o desempregado é considerado um devedor da sociedade. De novo, triste ironia, os largos milhares de figurantes de Metropolis eram, fora das câmaras, também eles, desempregados, mas da República de Weimar, num período que precedeu, de perto, a ascensão do nacional-socialismo. Muitos incomodam-se com a frase repetida três vezes ao longo do filme e que se expressa na luta de Maria como a luta dos cristãos no tempo de Cristo (será aqui Cristo uma mulher?), com a qual os dois personagens, Maria e Freder, chegam a convencer Fredersen que o coração deve servir de mediador entre a mão (a acção) e o cérebro (a planificação). Pensar nas alianças de classes, será um escândalo? Pensar, hoje, nos mecanismos de regulação entre o capital e o trabalho será um escândalo, ou não será antes o desejo de muita gente quando já se fala em implosão social, quando se esfumou o Welfare State? Transformar o Estado em agente coordenador dos diferentes ritmos sociais, transformar o Estado em espaço onde se condensam as contradições e se encontram as linhas de compromisso possível, será então um escândalo, ou um objectivo a alcançar? Com isto, por exemplo, pode estar-se a falar do Congresso SocialDemocrata de Bad Godesberg, onde o SPD abandona o marxismo e adoptou como base a economia social de mercado, a qual pressupõe a procura equilíbrios sociais. Mais perto de nós, face à actual crise económico e social “uma nova idade da globalização está a chegar. E nada será pior do que a fuga para a frente no egocentrismo e no salve-se quem puder. Daí a urgência e a necessidade de reagir e de agir colectivamente. Porque o petróleo, as matérias-primas, os bens alimentares, os metais preciosos e não preciosos, a água, o ar que cada um de nós respira, mas também a liquidez mundial e a justiça social 4 constituem cada vez mais bens públicos mundiais 1 . No mundo que aí vem, deixa de haver solução nacional, nem mesmo regional. O facto de que o trabalhador chinês de Shenzen ou Taiwan não beneficiar de nenhuma protecção social tem impacto sobre o emprego dos trabalhadores de Gandrange ou sobre o nível de vida de Miko ou da General Motors. A globalização obriga os actores da economia mundial a cooperarem e a entenderem-se sobre as regras comuns, se querem evitar o pior, isto é, a fuga para a frente dos egoísmos em torno do acesso à energia, do controlo das tecnologias ou das matérias-primas, se querem evitar o afrontamento dos capitalismos, com o desenvolvimento de formas de capitalismo desconectadas da democracia, sob o pano de fundo de instituições internacionais em falência” (Patrick Arthus, Maio de 2008). É de novo a mediação, a regulação que aqui é posta em evidência. Aliás, não será a ausência de mediador, o grande problema da Europa, hoje, quando os Estados Nacionais, governados à direita ou à esquerda, assumem como referência o mesmo modelo económico que serve as instâncias comunitárias, a soberania do mercado, totalmente liberalizado, a estabilidade dos preços como valor supremo e único, o equilíbrio orçamental como destino, a ausência de políticas orçamentais activas, a imposição à escala europeia das formações curtas quando afirma a necessidade de formações longas, a destruição do conceito de serviço públicos, a recusa em assumir políticas industriais coerentes, tal como Bush nos Estados Unidos se tem recusado a fazer, enfim, o desaparecimento do Estado participante, activo e regulador na vida económica. Sendo assim, coincidindo portanto a prática dos centros de concepção e de decisão comunitária e dos Estados nacionais, a mediação desaparece e não será por aqui que desaparecem também os mecanismos de regulação e que se agravam os conflitos sociais, os conflitos de classes? São bem elucidativas quanto a isto as consequências das decisões do Tribunal de Justiça Europeu quanto aos casos Laval, Viking e Ruffert, em que, em síntese, os direitos dos sindicatos a desencadearem uma acção colectiva ou a fazerem respeitar as condições mínimas de trabalho prestadas pelos estrangeiros estão limitados pelos princípios europeus de liberdade de estabelecimento e de circulação. Tal facto leva a que se esteja a aumentar a pressão para que a directiva sobre o trabalho destacado seja alterada, para que enfim as condições mínimas que ela estipula não se tornem elas próprias as condições máximas. Segundo noticiava o jornal Le Monde na sua edição de 28 de Junho passado, este é já o medo dos sindicatos nórdicos. Ao nível simbólico, será este medo muito diferente do medo dos empregados de Metropolis face a Moloch, será o medo das grandes sindicais nórdicas, face aos diversos Moloch que se escondem sob a capa da Modernidade? Será ele muito diferente daquele medo avassalador que nos transmite Metropolis? Se a tendência à minimização das garantias sociais tem sido a que se tem verificado nestes últimos anos, se não estamos errados, se os cidadãos de Estados terceiros ou os trabalhadores europeus são mesmo socialmente excluídos, jovens ou na casa dos 55-65 anos, então, mais uma vez Lang volta a ter razão, aqui e agora, e é pois a mediação que nos faz falta. Ainda recentemente a televisão nos mostrou a eficiência do controle sobre as linhas de demarcação nacional contra a profunda pobreza existente no exterior (as fronteiras). Radares e olhos electrónicos, localizados algures em Espanha, em lugar secreto, observam ao milímetro o mar mediterrâneo, controlando todos os movimentos pelas 1 Estes são os temas do ciclo do ano lectivo 2008-2009 que se irá realizar com o tema geral: Mundialização, Mercadorização e Interesses Colectivos. 5 informações recolhidas. O paralelo é imediato com Metropolis, onde Fredersen controla Metropolis a partir do seu escritório, cercado de consolas e de telefones de vigilância. Como o líder moderno, reina graças à comunicação e à informação. Ainda aqui vale a pena reproduzir um diálogo entre Giusto Catania, Eurodeputado italiano do Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde (GUE/NGL), e Jacques Barrot, Vice-Presidente da Comissão Europeia, para a Justiça, Liberdade e Segurança, que por ser tão forte o deixamos na sua língua original: Giusto Catania rappelle les résultats européens du jour en matière d'immigration: 140 personnes mortes en Méditerranée le 16 juin 2008, une directive retour qui prévoit 18 mois de détention et FRONTEX qui ne secoure pas les réfugiés en mer. Réponse de M. Barrot: "FRONTEX a pour mission la coordination des équipes nationales (de surveillance), on ne peut pas lui imputer ce genre de drames. La directive retour pourrait pour sa part faire l'objet d'aménagements, mais globalement elle présente un nombre d'avancées". A frieza da resposta de Barrot é tudo, e possivelmente não se distingue assim de Fredersen, na sua sala de comando. II. UM FILME, METROPOLIS, UM CICLO, MERCADOS DE TRABALHO Podemos agora relacionar Metropolis com os filmes do Ciclo Integração Mundial, Desintegração Nacional: A Crise nos Mercados de Trabalho. Os filmes Mundo Moderno e Navios da Vergonha tratam do problema de modernas formas de escravatura, o primeiro em terra e o segundo no mar. Porém, fazem um todo e mostram bem como é que a desregulação dos mercados de trabalho é um dos factores da redução dos custos, que, por seu lado, é um factor determinante na globalização e na redução dos preços. Como se disse quando se falou de Maquilapolis: Cidade de Fábricas, um dos factores determinantes daquilo que os trabalhadores, quase que escravos, produziriam ou não nas Maquiladoras do México, dependeria do volume da caixa de cartão, isto é, da embalagem, o mesmo é dizer dos custos de transporte. O drama curioso é que o primeiro filme, expressão da modernidade, tratava da construção do maior paquete de luxo, Queen Mary II — dez restaurantes, uma sala de espectáculos, um salão de beleza, uma biblioteca com mais de oito mil livros, várias salas de baile e um casino são alguns do serviços disponíveis neste gigante dos mares. Ao todo são dezassete decks, repletos de conforto e divertimento. Este paquete de luxo foi feito, afinal, com condições de trabalho altamente degradantes e indignas, facilitadas pela existência de empresas de maning, tal como se defendia na proposta de directiva Bolkestein mas à escala mundial, pois o filme descreve-nos uma nova figura na divisão internacional do trabalho, ou seja, a deslocalização num ponto, num barco. Não vai a produção ser deslocalizada, produzida fora, vêm os trabalhadores, de fora, produzir dentro, no local, com as características salariais do seu mercado de origem. O filme mostrava-nos então um dos expoentes máximos da aplicação da teoria neoclássica, base teórica do neoliberalismo, em que os factores são móveis à escala nacional e imóveis à escala internacional, garantindo-se que a determinante salarial é o espaço nacional. Com efeito, no mesmo barco, a fazer a mesma coisa, com o mesmo nível de classificação, tínhamos salários diferentes de acordo com as nacionalidades, de acordo com as especificidades de cada um dos mercados de trabalho nacionais. Os Navios da Vergonha mostravam-nos a demissão dos Estados na defesa dos direitos de quem trabalha e de quem trabalha numa situação que ronda a escravatura e, repare-se, a 6 salvaguarda das normas de trabalho tinha que ser assegurada pelos sindicatos. No fundo, todos estes trabalhadores, em terra ou no mar, não terão um estatuto muito diferente dos trabalhadores de Metropolis. Seguiu-se o filme Como é Que Se Pode Resistir: Histórias de Trabalhadores Numa Fábrica Americana, sobre a indústria têxtil americana, sobre os direitos dos trabalhadores e sobre a globalização. Estranho que os trabalhadores americanos estejam privados dos direitos fundamentais não de forma explícita, não de forma directa, mas sim indirecta, procurando-se por todos os meios, inclusive mobilizando a Igreja, que não haja estruturas sindicais na empresa. Ao fim de muitos anos, os trabalhadores conseguem uma vitória fundamental: conseguiram criar um sindicato na Pillowtex, empresa com mais de 4 mil trabalhadores. Vitória de Pirro, pois ganha a batalha, perdem a guerra: por efeitos de um mercado completamente desregulado e pela impunidade com que as entidades patronais tratavam das regalias dos trabalhadores, os trabalhadores, ficaram, de um dia para o outro, no desemprego e, de um dia para o outro, deixaram de ter dinheiro, mesmo para pagar a escola dos seus filhos. Estamos a falar de trabalhadores que trabalhavam 12 horas por dia, contra as 10 horas de trabalho em Metropolis, e que desempregados ficaram com as mãos cheias de nada. Que distingue os trabalhadores da indústria têxtil da Carolina do Norte, os trabalhadores de Como é Que Se Pode Resistir, dos trabalhadores de Metropolis? Possivelmente, muito pouco ou nada a não ser a não cobertura pelo Welfare State, que os americanos não têm e que é suposto que os trabalhadores de Metropolis também não. Em Dezembro, passámos Maquilapolis: Cidade de Fábricas, sobre Tijuana, uma cidade de maquiladoras, uma cidade de fábricas e a ligação é imediata, a começar pelo nome, com a diferença que em Metropolis as fábricas eram subterrâneas e aqui, no México, as fábricas são à superfície, mas igualmente irrespiráveis, com os salários ao nível de um dólar e meio por hora, ou seja, com as pessoas a garantirem com muitas horas de trabalho, como em Metropolis, apenas o mínimo de sobrevivência e agora ameaçadas pelos efeitos da deslocalização com o desemprego de massa. Operários de Metropolis, empregados de Maquilapolis, qual a diferença? Um outro traço comum: a esperança das mulheres de Maquilapolis, a sua capacidade de luta sindical, tem como paralelo a simbologia de Maria de Metropolis, e a esperança de serem capazes de dar um outro futuro aos seus filhos. Mas, o México, uma potência mundial pela produção, pode também ser visto pelo lado da pobreza. Com efeito, no México, cidade e país, existem autênticas catedrais dedicadas ao consumo de luxo, tal como Saks Fifth Avenue, no centro comercial de Santa Sé, bairro de alto luxo e só a Saks precisou aí de investimentos na ordem de 90 milhões de dólares, assumidos em grande parte por Carlos Slim, a terceira fortuna mundial, segundo a Forbes. Quantos destes 106,5 milhões de habitantes, aspiram a comprar estes bens de luxo, a exibi-los como troféus, mesmo nas suas versões mais acessíveis? Cerca de 5% da população, afirma a sociedade KPMG International: um pouco mais de 5 milhões de pessoas, se se incluir o que as agências de marketing chamam os níveis socioeconómicos A e A+, assim como certos segmentos da classe média. 7 Segundo o INEGI, o Instituto Nacional de Estatística, somente 12% dos activos ganham mais de 7 586 pesos por mês (cerca de 485 euros), enquanto 61% dos mexicanos ganham entre duas a cinco vezes o salário mínimo, de 3 034 a 7 586 pesos (cerca de 190 a 950 euros). Ainda a este nível e segundo o Banco Mundial, em 2007, o México apresentava 19% da sua população a viver abaixo do nível mínimo de pobreza. Por outras palavras, ao nível da repartição de rendimento, o México como um todo parece uma verdadeira Metropolis, por um lado (em baixo), os aglomerados de fábrica, as cidades de maquiladoras, com os seus aglomerados de catedrais da pobreza e, no outro extremo (em cima), as catedrais de consumo de luxo. O gráfico abaixo ilustra bem o que se acaba de dizer dispensando comentários adicionais: Fonte: OCDE (2007), Panorama de la santé 2007: Les indicateurs de l'OCDE, OCDE, p. 17. Disponível em http://www.oecd.org/ Ainda ao nível da ligação com os filmes passados no Ciclo deste ano, relembremos o filme Desemprego e Precariedade: A Europa Vista Pelos Desfavorecidos, relembremos a máquina M, a Moloch, a máquina que engolia temporariamente os homens, símbolo do progresso técnico, hoje considerado como uma das causas maiores do desemprego na Europa, a par da globalização, das deslocalizações. Que o diga o assistente social inglês, testemunho no filme Desemprego e Precariedade, que descobre que em vez do paraíso prometido com o progresso técnico onde o problema seria saber ocupar o tempo disponível, descobre que afinal está-se numa situação de precariedade, com muito mais horas de trabalho e muito menos rendimento. Na Europa de hoje, para muitos a opção é ou ser-se empregado precário ou desempregado. Mas o que é o homem, hoje, nestas condições? Nada. Que o digam os operários da Metaleurope que choravam como crianças quando destruíram o símbolo da sua fábrica, a enorme chaminé, que o digam os operários de Mossley, do filme O Elefante, a Formiga e o Estado que, envergonhados por estarem desempregados, se fechavam em casa. 8 Ouçamos um economista de renome, europeísta, a falar do modelo social europeu: “todos estes anos, o crescimento da zona euro assentou em fracos progressos de produtividade do trabalho, da ordem de três quartos do ponto por ano, ligados a fortes criações de empregos. Este modo de crescimento, dito rico em empregos, supunha, para ser sustentado, que os consumidores beneficiassem de ganhos de termos de troca, por outras palavras, que pagassem os produtos importados mais baratos. A subida dos preços dos produtos de base vem, de modo durável, bloquear esta equação. A partir de agora, só com um aumento dos ganhos de produtividade é que pode ser pensável um aumento do poder de compra. Isto significa uma mudança no modelo de crescimento e de políticas que, principalmente pela inovação e pela concorrência, se destinem a estimular os ganhos de produtividade” (Pisani-Ferry, Le Monde, 18 de Junho de 2008). Por outras palavras, serão outras inovações, outras máquinas, outras pequenas Moloch que estão apontadas ao centro de cada um de nós em simultaneidade com as taxas de juro a subir e com o controle orçamental a impor-se, pois, como assinala o citado economista, “o BCE já mostrou os seus músculos para que se compreenda que não hesitará, se assim for necessário, em subir as taxas para eliminar uma espiral inflacionista”. Portanto, não é aqui relevante a questão do pleno emprego, não é aqui importante o devorar dos homens pelas máquinas Moloch modernas, devorar que é assumido como a destruição social dos trabalhadores, não é aqui relevante a situação de desempregado ou de empregado em situação de precariedade. Nada disto importa, aqui, neste modelo, na actual Europa. O que é o homem sem trabalho, hoje, aqui e agora, na Europa dos nossos dias, na Metropolis de Lang? Nada, dirá Josaphat de Metropolis, para quem o desemprego significa ir para baixo, para o fundo, para a exclusão ou então o suicídio que tenta, aliás. Perder o emprego, como o sublinha Linhart, representa muito mais do que perder o seu trabalho. É perder todo o equilíbrio entre a vida profissional e a vida privada, que se construiu pacientemente, elaborado ao longo do seu tempo de trabalho e que se esfuma de repente, de uma forma extremamente brutal. Para o fundo também o Josaphat de Lang não pode ir, porque sente que, nesta situação, a sua vida não tem dignidade, não tem sentido. Que representa o homem sem trabalho? Que o diga Vincent, personagem de Cantet em O Emprego do Tempo, que faz um processo de autodestruição, por incapacidade de assumir a situação de desempregado. Mas Vincent faz parte da classe média, exactamente como Josaphat, exactamente como grande parte dos europeus, que pertencem à classe média, hoje de rendimentos altamente instáveis e com garantias de emprego ainda mais voláteis, a viver um processo de corrosão patrimonial. Não nos podemos esquecer que, em Metropolis, estamos na Alemanha, onde com Bismarck no século XIX se começou a construir o Estado Providência e agora, em O Emprego do Tempo estamos na Europa no final do século XX. Em ambos os filmes tudo se passa como se já não existam traços do Estado Providência. De um filme a outro, de alegoria em alegoria, de metáfora em metáfora, em Metropolis são pois múltiplas as referências comuns que podem ser encontradas. A concluir, vejamos agora a cena final, e esta pode pensar-se como representando a trilogia cristã, pode pensar-se como representando a concertação de países que saídos da guerra estão completamente destruídos, ou ainda a concertação social depois de grandes perturbações sociais, como greves prolongadas, com o patronato, o mediador (o Estado) e o sindicato em aparente situação de igualdade, o que não é verdade, pois a Grot, o representante dos trabalhadores em Metropolis, falta-lhe quer a situação de classe quer, 9 consequentemente, a consciência de classe, o em si e o para si de Marx, ganho com um longo tempo de luta que não houve. O patrão, mesmo que enfraquecido, não deixa de continuar a ser o patrão e mesmo sem o poder porque este materialmente, mas não simbolicamente, foi destruído, não deixa de o representar, porque esse tem e é o produto de uma outra cultura, a cultura de classe do poder, a cultura da burguesia. É uma situação dialéctica à Hegel, da Fenomenologia do Espírito, do célebre texto do senhor e do escravo, é uma situação pré-marxista, portanto, e é também uma componente de uma certa utopia, a concretização da mensagem de Cristo. Nessa cena há ainda quem queira ver algo mais, uma mensagem de solidariedade e de união entre os homens, representada por Maria, Maria mãe, Maria santa, Maria mulher que ama um homem, mas também a outra Maria, a Maria prostituta. A mensagem, a mensagem que ela, Maria, transporta e que anima todos os escravos de todas as gerações, mesmo os de hoje, tem como suporte papéis, papéis escritos há mais de 2000 anos, papéis não passíveis de ser entendidos, mesmo com a ajuda das modernas tecnologias, por homens onde não há sentimentos de solidariedade. É uma mensagem de respeito por todos que Maria sublinha no final, impondo ao mediador que seja mediador, que cumpra a sua função “histórica” e, com isso, entendermos que não há saída possível para os problemas sociais e para a humanidade se não introduzirmos o respeito pela condição humana e assente no exercício conjunto da liberdade, da igualdade, da fraternidade. Repare-se que no final os trabalhadores avançam em triângulo, repare-se que patrão e empregados querem chegar a acordo, são agora livres e iguais, falta-lhes o coração, a fraternidade, que o mediador comporta e que se exercita depois do apelo de Maria. E a concertação realiza-se na catedral, onde também está uma trilogia, Pai, Filho e Espírito Santo. Mas triângulo é também a divisa que anima a mensagem da revolução francesa, Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Fusão da cultura laica com a cultura religiosa, com a mensagem de Cristo, é assim que muitos parecem ver o filme, e esta fusão parece aqui assumir uma outra dimensão, a de dever ser real. Como escreveu o marxista Henri Lefebvre, nos anos sessenta, de Cristo, mesmo que se esqueça o resto, que se salve a sua mensagem, porque esta é imortal, e esta parece ser também a mensagem de Metropolis. Imortal será sempre considerado o filme Metropolis. Podíamos continuar a encontrar analogias, filme a filme, mas destes exemplos ressalta bem claro que a actualidade de Lang não se resume, do nosso ponto de vista, a estas analogias, pois, de metáfora em metáfora, vai mesmo muito mais longe, a sua dimensão ultrapassa-nos, ultrapassa a dimensão de todos os ciclos possíveis. E é tudo. 10