UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO
REITOR:
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COORDENADOR DO CAMPUS DE TANGARÁ DA SERRA
Sérgio Baldinotti
PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ESTUDOS LITERÁRIOS
Coordenadora: Walnice Aparecida Matos Vilalva
Vice-Coordenador: Agnaldo Rodrigues da Silva
Avenida Tancredo Neves, 195 – Carvalhada - Cáceres - MT - 78200-000
ISSN 2176-1841 (digital)
ISSN 1984-0055 (impressa)
P ROGRAMA
DE
P ÓS -G RADUAÇÃO EM E STUDOS L ITERÁRIOS -PPGEL
N ÚCLEO DE P ESQUISA W LADEMIR D IAS -P INO
U NIVERSIDADE DO E STADO DE M ATO G ROSSO
A NO 06, VOL . 07, N. O 07,
JUL.
2013 – T ANGARÁ DA S ERRA /MT – P ERIODICIDADE SEMESTRAL
© copyright 2013 by autores
EDITORES:
Walnice Aparecida Matos Vilalva
Hélvio Moraes
Tieko Yamaguchi Miyazaki
Aroldo José Abreu Pinto
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É proibida a reprodução de partes ou do todo desta obra sem autorização dos autores.
Revista Alere / Programa de Pós-Graduação em Estudos LiteráriosPPGEL - Núcleo Estudos da Literatura de Mato Grosso Wlademir DiasPino, Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Universitário
de Tangará da Serra - v. 07. n.07, jul. 2013 - Tangará da Serra:
Editora da Unemat, 2013.
Periodicidade semestral
ISSN 2176-1841 (digital)
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1.Linguística. 2. Letras. 3. Literatura. I. Universidade do Estado de
Mato Grosso
CDU 81
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DE
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ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841
Avenida Tancredo Neves, 195
– Carvalhada - Cáceres - MT
CEP: 78200-000
9
APRESENTAÇÃO
ARTIGOS
13
ONDE CANTA O SABIÁ: O REGIONALISMO
BRASILEIRO EM DOIS PROJETOS ESTÉTICOS
WHERE SINGING THE THRUSH: THE BRAZILIAN
REGIONALISM IN TWO AESTHETIC PROJECTS
Walnice Vilalva
31
O ROMANCE EM MATO GROSSO: UM ESTUDO
SOBRE MIRKO, DE FRANCISCO BIANCO FILHO
ROMANCE IN MATO GROSSO: A STUDY
ABOUT MIRKO, BY FRANCISCO BIANCO FILHO
Franceli Aparecida da Silva Mello e Cibele Antonia de
Souza Rodrigues
51
DA RECUSA À CUMPLICIDADE: ANÁLISE DO
ESTRANGEIRO NO CONTO “O CAVALO QUE
BEBIA CERVEJA”, DE GUIMARÃES ROSA
FROM REJECTION TO PARTNERSHIP: AN
ANALYSIS OF THE FOREIGNER IN THE SHORT
STORY “O CAVALO QUE BEBIA CERVEJA”, BY
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5
Sumário
GUIMARÃES ROSA
Aline Maria Magalhães de Oliveira
73
EXERCÍCIOS DE IMAGINAR – UMA LEITURA DE
EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA DE MANOEL DE
BARROS
EXERCISES TO IMAGINE – A READING ABOUT
EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA BY MANOEL DE
BARROS
Carolina Tito Camarço e Elisabeth Battista
97
MÍNIMOS INSTANTES EM JOÃO CABRAL E
STELLA LEONARDOS
MINIMUM INSTANTS IN JOÃO CABRAL AND
STELLA LEONARDOS
Irene Severina Rezende
115
GABRIEL ZAID: INGENIERÍA LUMINOSA
GABRIEL ZAID: LUMINOUS ENGINEERING
Minerva Margarita Villarreal
135
A MULHER E O ESPELHO EM PADRE ANTÔNIO
VIEIRA – RELAÇÕES DE CONTINGUIDADE
DIALÉTICA NO SERMÃO DO DEMÔNIO MUDO
THE WOMAN AND MIRROR IN PRIEST ANTONIO
VIEIRA – AFFILIATIONS OF DIALECTIC
ADJACENCY IN SERMÃO DO DEMÔNIO MUDO
Paulo Geovane e Silva
149
REFLEXÕES SOBRE NOVAS TECNOLOGIAS E
EDUCAÇÃO
THOUGHTS ABOUT NEW TECHNOLOGIES AND
EDUCATION
Alexandre Vilas Boas da Silva
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Sumário
PALESTRAS
167
A IDADE LÍRICA - (TRÊS MOVIMENTOS)
THE LYRIC AGE - (THREE MOVIMENTS)
José Javier Villarreal, Tradução: Tieko Yamaguchi Miyazaki
183
OS JOGOS COMO UMA DISCIPLINA
HUMANÍSTICA
GAMES AS HUMANISTIC DISCIPLINE
Tamer Thabet, Tradução: Helvio Moraes
ENTREVISTA
191
ENTRE A CRÍTICA E A POETISA: ENTREVISTA
DE MARIA LÚCIA DAL FARRA
BETWEEN THE POET AND CRITIC: INTERVIEW
WITH MARIA LÚCIA DAL FARRA
Concedida a Fabio Mario da Silva
RESENHAS
197
CAVALCANTI, Hérlon. Xilogravuras do Mestre Dila. Uma
Visão Poética do Nordeste. 2.ª ed. Caruaru: Edições Fafica,
2011.
Por Fabio Mario da Silva
203
ESPANCA, Florbela. Obras Completas de Florbela Espanca.
Livro de “Soror Saudade” (organização, fixação crítica dos
textos e notas de Cláudia Pazos Alonso e Fabio Mario da
Silva). Lisboa: Estampa: Lisboa, 2012.
Por Anamarija Marinoviæ
207
ANTUNES, António Lobo. Quarto Livro de Crónicas.
Alfragide: Dom Quixote, 2011.
Por André Corrêa de Sá
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7
Sumário
RESUMOS DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS
213
FRANCO, Andréia. Terno de Reis, de Ricardo Ramos, e o herói
problemático: a representação do sujeito num mundo em
decadência. 2012. Orientador: Aroldo José de Abreu Pinto.
215
SFOGIA, Leocir Antonio . Leite derramado - aspectos da
configuração estética da memória e do narrador. 2012.
217
LUZ, Loraine Ferrari. No rastro da poaia: caminhos do
romance-folhetim em Mato Grosso. 2012. Orientador: Olga
Maria Castrillon-Mendes.
219
MENEGUCI , Sebastiana Rodrigues da Cruz . Representações
da guerra e o intelectual em Nós, os do Makulusu, de Luandino
Vieira. 2012. Orientador: Vera Lúcia da Rocha Maquêa
221
RIBEIRO, Aparecida Cristina da Silva. Viagens, identidades e
travessias: uma leitura comparada das obras Relato de um certo
oriente, de Milton Hatoum e O outro pé da sereia, de Mia
Couto. 2012. Orientação: Vera Lúcia da Rocha Maquêa
223
RODRIGUES, Clarice Gomes Clarindo. Personagem feminina
em cena: um estudo de O Primo Basílio, de Eça de Queirós.
2012. Orientador: Elisabeth Battista
225
NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE
TRABALHOS / RULES FOR SUBMISSION OF
ARTICLES TO ALERE MAGAZINE
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ESTUDOS L ITERÁRIOS-PPGEL - Ano 06, Vol. 07. N. o 07, jul. 2013 - ISSN 2176-1841
Reúnem-se neste número da Revista ALERE colaborações
da Universidad Autónoma de Nuevo León, México; da Universidade
Estadual de São Paulo, da Universidade Federal de Mato Grosso;
da Brock University, Canadá; da Universidade de Coimbra, da
Universidade de Lisboa, Portugal, Universidade Estadual de
Londrina e da Universidade do Estado de Mato Grosso .
Colaborações que se diversificam também quanto à modalidade:
artigos, palestras, entrevista e resenhas.
Abre o número do artigo de Walnice Vilalva, O regionalismo
brasileiro em dois projetos estéticos, que, rejeitando a visão de que o
regionalismo seja hoje uma questão já superada ou resolvida, volta
a apreciar a perspectiva ideológica, dominante na crítica tradicional
para, em seguida, discutir, do ponto de vista estético, o projeto que,
elegendo como tema o sertanejo, o eleva à condição de herói
emblemático.
Na esteira da mesma preocupação, Franceli Mello e Cibele
Rodrigues, em O romance em Mato Grosso: um estudo sobre Mirko, de
Francisco Bianco Filho, fecha a perspectiva sobre a literatura
produzida no estado de Mato Grosso, no início do século XX, em
vista do contexto cultural dessa região brasileira, distanciada do
centro cultural brasileiro.
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Apresentação
Pela lente de uma literatura do centro, o sertão brasileiro volta
no artigo de Aline de Oliveira que vai buscá-lo em Primeiras Estórias,
e analisá-lo em Da recusa à cumplicidade: análise do estrangeiro no
conto “o cavalo que bebia cerveja”, de Guimarães Rosa, onde a
figura do outro, ainda representado pelo europeu, ocupa um dos
termos da dinâmica dramática do enredo.
Nessa trajetória, Manoel de Barros pode ser considerado
como um amálgama literariamente bem logrado, não só em sua
obra adulta como em seus livros destinados à infância, nos quais
confere outra dimensão ao encontro da temática de uma
determinada região interiorana brasileira com a sua elaboração
literária, original mesmo dentro de uma perspectiva do centro.
Isso é que demonstra o trabalho – Exercícios de imaginar – uma
leitura de exercícios de ser criança de Manoel de Barros – de Elisabeth
Battista e Carolina Tito Camarço.
Essa mesma questão retorna não mais na narrativa mas na lírica,
em que um tema rural ganha expressão estética em que a marca,
moderna, contemporânea, do trabalho artesanal se faz evidente, para
veicular significações não restritas a um determinado espaço
geográfico, social, de tal maneira que possibilita a sua abordagem
em outro poema, agora, de além mar. Numa perspectiva intertextual,
em Mínimos instantes em João Cabral e Stella Leonardos, Irene Rezende
aproxima os poemas “Tecendo a manhã” e “Amanhecência”.
É sobre lírica o texto de Minerva M.Villarreal, ao abordar a
obra do mexicano de Monterrey, Gabriel Zaid, cujas características
assim sinteza a autora: un poeta que ubica su registro esencialmente en el
terreno del poema breve, del soneto (con su innovación del soneto en prosa) y del
epigrama de filiación latina —agudo en ironía y eléctrico en sarcasmo.
Atravessando a mesma ponte sobre o Atlântico, e voltando
a 1651, Paulo Geovane e Silva oferece A mulher e o espelho em Padre
Antônio Vieira – relações de contiguidade dialética no Sermão do
demônio mudo, situando-se na área dos estudos do gênero.
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Apresentação
Fechando a seção de artigos, Alexandre Vilas Boas da Silva
indica com clareza em seu título - Reflexões sobre novas tecnologias e
educação – as áreas em que se move e o tema abordado.
Além dos artigos, o presente número da ALERE oferece
também uma seção em que foram reunidas duas palestras e uma
entrevista. As palestras, pronunciadas durante o ano de 2013, dentro
das atividades do Mestrado em Estudos Literários, foram mantidas
em sua forma original para que ficassem preservadas as marcas dessa
modalidade de discurso. A palestra A idade lírica, de José Javier
Villarreal, faz eco não só com o artigo sobre o poeta mexicano
Gabriel Zaid, principalmente, como com a entrevista com a poetisa
e crítica brasileira Maria Lúcia Dal Farra. Da mesma forma, a
conferência Os jogos como uma disciplina humanística, de Tamer Thabet,
pode ser vista como uma outra face das questões levantadas em
Reflexões sobre novas tecnologias e educação, de Alexandre Vilas Boas da
Silva.
Seguem-se três resenhas. Uma sobre. Xilogravuras do Mestre
Dila. Uma visão poética do Nordeste, de Hérlon Cavalcanti; outra
sobre Obras Completas de Florbela Espanca. Livro de “Soror Saudade”;
e uma terceira sobre Quarto livro de crônicas, de António Lobo Antunes.
Fecham o número resumos de dissertações defendidas no ano
no Mestrado em Estudos Literários da UNEMAT.
OS EDITORES
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ONDE CANTA O SABIÁ: O
REGIONALISMO BRASILEIRO
EM DOIS PROJETOS
ESTÉTICOS
WHERE SINGING THE
THRUSH: THE BRAZILIAN
REGIONALISM IN TWO
AESTHETIC PROJECTS
Walnice Vilalva
(UNEMAT)1
Quanta melancolia baixa à terra com o cair da tarde.
(Visconde de Taunay)
RESUMO: Para uma parte da crítica se faz inócua, nos dias de
hoje, a reflexão sobre regionalismo, considerando o tema uma
questão superada para as nossas letras. Talvez haja alguma razão
nisso: a superação de algumas fórmulas, a consciência de que o
processo de formação da literatura brasileira silenciou, melhor
1
Docente do Mestrado em Estudos Literários (PPGEL), da Universidade do Estado de Mato
Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra. Mato Grosso. [email protected].
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seria dizer, acomodou realidades antagônicas e contrastantes.
Todavia, persiste a questão: o regionalismo como “síntese” e
oposição a uma literatura e a um Brasil litorâneo carrega consigo
apenas a imperfeição dos traços, o risco torto, ainda que impere
uma maneira de trazer identidades e regiões marcadas pelo
esquecimento e pelo abandono? Esta reflexão traz, inicialmente,
ponderações sobre o projeto ideológico do regionalismo,
segundo a crítica tradicional. Na sequência, discutimos algumas
questões que norteiam o projeto estético da geração que elege o
sertanejo como herói emblemático da cultura.
PALAVRAS-CHAVE: Regionalismo. Antagonismo. Contrastes.
Esquecimento.
ABSTRACT: For a portion of criticism it is innocuous, these
days, the debate about regionalism, considering the issue a
matter overcomed to our lyrics. Perhaps there is some
reason it: overcoming some formulas, the awareness that the
forming process of Brazilian literaturewas silenced, better to
say, settled antagonistic and contrasting realities. However, the
question persists: regionalism as “synthesis”and as opposed
to literature and a coastal Brazil carries with it only imperfection
traces, crooked risk still prevails that a way to bring identities
and regions marked by neglect and abandonment? This
reflection brings initially considerations about the ideological
project of regionalism, according to the traditional
criticism. Further, we discuss some issues that guide the aesthetic
design of the generation that elects the backcountry as emblematic hero of culture.
KEYWORDS: Regionalism. Antagonism. Contrasts. Forgetfulness
Um projeto ideológico
O anseio pela identidade emerge em pleno Romantismo como
sinônimo de consciência da elite intelectual da colônia, nossos
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homens de letras, frente às radicais transformações sociais, políticas
e culturais pelas quais passava o Brasil desde o final do século XVIII,
e mais fortemente a partir do século XIX. As questões nacionais são
discutidas, procurando firmar o caminho da nova pátria. A
identidade, alavancada por desejo consciente e opressor, ou, mais
que isso, ingênuo e eloquente, procurava tecer, à luz do patriotismo,
a nacionalidade literária. Uma nacionalidade que transpira unidade
política, traduzida pela unidade literária, que negligencia a
diversidade que presidiu à formação e desenvolvimento de nossa
cultura.
O nacionalismo, então, irrompe no Romantismo, encontrando
nele sua expressão maior, com ele se confundindo. Antes, parece
ser “o romantismo brasileiro tributário do nacionalismo”
(CANDIDO, 1981, p.15), no qual “ o patriotismo se aponta como
estímulo e dever”(CANDIDO, 1981, p.10) ao homem das letras. A
labuta dos nossos homens das Letras centra-se em “dotar o Brasil
de uma literatura equivalente às européias, que exprimisse de maneira
adequada a sua realidade própria, ou, como então se dizia, uma
Literatura nacional.” (CANDIDO, 1981, p.10).
A Literatura nasce com a missão de instituir uma nacionalidade.
Esse perfil eufórico inunda os crédulos escritores de esperançosa
liberdade cultural, mesmo tomando a Europa como modelo para
suas realizações. Cabe aqui a feliz expressão de Flora Sussekind. Tal
Brasil, Qual romance?(1984), denunciando a forma singular de nossos
escritores pensarem em Literatura uma nacionalidade, sobretudo
no Naturalismo. Para a autora, importa menos “o romanesco, o
literário e prevalece a possibilidade de tais narrativas retratarem
com verdade e honestidade aspectos da ‘realidade brasileira’. (1996,
p. 38) O desejo de integração faz da literatura registro e documento
do país (tanto geográfico quanto cultural), forjando a identidade
nacional pela idéia de homogeneidade.
O Regionalismo surge no seio desse nacionalismo, ancorado
também no desejo de integração, mas, contraditoriamente, sua
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realização vai expor as fraturas ocultadas pelo discurso nacional,
comprometendo a essência singular da Nação imaginada 2
independente. A nação imaginada brasileira encontra na Literatura o
caminho para recapitular traços característicos da História e dos
costumes, formando os enredos da cultura, fazendo do índio e do
sertanejo personagens que emblemam o povo. Esse movimento
ideológico pseudo-integrador manifesta a crença de que, tão logo a
literatura consiga expressar a riqueza da natureza, retrato geográfico
(e limite de fronteiras), e cultural (que filtram a desigualdade), a
Nação haveria de comemorar sua independência literária. Nas
palavras de Machado (1873) “essa outra independência não tem Sete
de Setembro nem campo do Ipiranga; não se fará em um dia, mas
pausadamente para sair mais duradoura; não se será obra de uma
geração nem duas [...]”. Machado de Assis já verifica os equívocos
desse projeto nacional de uma literatura nascente em seu Instinto de
nacionalidade (1873). Nessa reflexão o crítico avalia uma das mais
graves contradições presentes no início de nossa formação literária
e que vai marcar definitivamente os rumos de nossas letras. Se por
um lado nos “fechamos” num esforço de representação da realidade
local brasileira, por outro, nos revestimos da segurança das
transformações ocorridas na Europa. Lucia Miguel Pereira (1988,
p. 191) assevera que esse procedimento legou-nos atraso de
amadurecimento.
[...] muito atrelada, às transformações ocorridas na Europa, a nossa
Literatura não surgiu espontaneamente, não se originou da necessidade
íntima de expressão: fruto da imitação, antecedeu essa necessidade,
mormente no que ela pudesse conter de genuinamente brasileiro. [...] A
cultura intelectual, vinda da Europa, atuando em sentido diverso da
cultura na acepção dada ao termo da sociologia, retarda nos escritores
o amadurecimento da mentalidade nacional.
Cabe aqui ressaltar que essa mentalidade nacional, consoante com
o Romantismo, aparece como reflexo de um contexto político que
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assumiu efeitos que ratificam a divisão (econômica e política) pela
qual passava a Europa e a América: aquela, construída sob imagem
do colonizador; esta, a colônia, vivia o quimérico desejo de
emancipação, sob o reflexo do colonizador. A nossa situação de
infância (brasileira) nos colocava numa incômoda condição de sem
controle da marcha, tendo que contar, portanto, com o “apoio da mãecolonizadora”. Os rumos da “criança” Brasil parecem norteados
pelo andador-europeu, e, nessa relação, ainda que a criança cresça e
supere o suporte de apoio, por algum período a imagem produzida
no espelho tem muito daquilo que o andador conseguiu definir. Esse
jogo de conhecer no e com o outro implicava (re) conhecermos as
nossas limitações sob o aspecto da comparação (colônia/Europa).
Os olhos voltados à Europa não permitiam, a muitos de nossos
escritores, um conhecimento tanto geográfico quanto cultural de
nossa então sociedade brasileira. Muitos conhecedores apenas da
capital brasileira, ou das capitais europeias, não estavam atentos às
transformações ocorridas num Brasil que ficasse fora dos limites
litorâneos: procurávamos a farda de alferes.
É como movimento de resistência, que nasce do centro para
as margens, enxergando um equívoco de percepção e a saturação
da imagem do índio no projeto nacional, que o sertão e o sertanejo
revigoram o desejo de identidade. Sobre o escritor regionalista,
Lúcia Miguel Pereira (1957, p.180) observa: “há na sua atitude
alguma coisa da do turista ansioso por descobrir os encantos
peculiares de cada lugar que visita sempre pronto a extasiar-se ante
as novidades e a exagerar-lhes o alcance.” Essa posição de turista
assumida inconscientemente pelo escritor se transforma, segundo
Lúcia Miguel Pereira, no grande empecilho do regionalismo. E acaba
por constituir um processo longo de amadurecimento de nossas
letras, diante do dilema local, universal. Para a crítica tradicional,
embora sobressaia o caráter de “humanidade sincera mas artificial”,
(CANDIDO, 1981, p.211) não parece ser suficiente para assegurar
a qualidade estética de algumas obras regionalistas. A mão estrangeira
do escritor brasileiro tenta pintar o regionalismo, não raro
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esboçando um saudosismo de civilizado diante da vida primitiva,
ou como o colonizador diante da mítica imagem tropical brasileira.
Será que só é isso mesmo?
O sertão sertanejo
e as sonoridades da solidão...
A primeira geração regionalista que desponta com O gaúcho
(1870), Tronco do ipê (1871), Til (1872) e O sertanejo (1875), todos de
Alencar, passando por O garimpeiro, de Bernardo Guimarães e
Inocência, Visconde de Taunay encontra no sertanejo, homem do
interior, das terras longínquas, que pouco ou quase nada sofreram
pelo contato externo, os filhos de Peri e Ceci, os filhos de Martim e
Iracema, a nova face do nacionalismo. E Alencar permanece o grande
líder frente à fase de revitalização do projeto nacional. Alceu
Amoroso Lima (1922, p. 596) acentua que o sertanismo representa
uma transição do índio para o sertanejo, e nasce nas mesmas bases
do indianismo com a mesma força e proposta de integração.
O regionalismo põe em perspectiva, portanto, o sertanejo,
raça cruzada, homem forte, que em sua imensidão de terra vira Rei.
Nessa perspectivação, a natureza mostra-se através do sertanejo
como ocorre, por exemplo, em Inocência (2009, p.16-17):
O legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em geral, família.
Enquanto moço, seu fim único é devastar terras, pisar campos onde
ninguém antes pusera pé, vadear rios desconhecidos, despontar cabeceiras
e furar matas, que descobridor algum até então haja varado.
[...] Quando o sertanejo vai ficando velho, quando sente os membros
cansados e entorpecidos, os olhos já enevoados pela idade, os braços
frouxos para manejar a machadinha que lhe dá o substancial palmito ou
o saboroso mel de abelhas, procura então quem o queira para esposo,
alguma viúva ou parenta chegada, forma casa e escola, e prepara os
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filhos e enteados para a vida aventureira e livre que tantos gozos lhe
dera outrora.
Como sujeito num processo de auto-enunciação, o sertanejo
aparece pleno na manifestação de consciência frente ao espaço. No
ato enunciativo, o sertanejo sempre afirmativo conclama: Eu sou.
Em Inocência podemos perceber a magnitude dessa voz - “Ninguém
pode comigo, exclama ele enfaticamente. Nos campos da Vacaria,
no sertão do Mimoso e nos pântanos do Pequiri, sou rei”.
Poderíamos inferir que essa presença, indicada pelo processo de
enunciação, registro da fala do sertanejo em discurso direto livre,
quer o literal, capaz de revelar a verdade. A afirmativa Eu sou Rei
diz sobre o homem do sertão, diz, na mesma medida, como o
sertanejo percebe a si mesmo. Nesse sertanejo a linguagem persegue
a fala ainda a passos vacilantes “- Mas o senhor fala que nem
cachoeira. E não cansa?”(TAUNAY, 2009, p. 61); nessa fala, tanto
em Inocência como, por exemplo, em Era um poaieiro (2008), a cultura
popular impregna em versos a história romanesca:
Quem inventou a partida
Não sabia o que é amor
Quem fica, morre de dor.
A imagem do sertanejo é construída na narrativa por meio de
uma apresentação panorâmica com tratamento que oscila entre
pictórico e dramático. O que permite o efeito de distanciamento tanto
do narrador quanto do leitor. A função, nesse momento da imagem
panorâmica, é informativa pela síntese do quadro. Eis o processo que
parece predominante na matéria romanesca, cujo narrador, em terceira
pessoa, manifesta uma consciência focal do sertanejo.
Na extensa e quase despovoada zona da parte sul-oriental da vastíssima
província de Mato Grosso, a estrada que da Vila de Sant’Ana do
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Paranaíba vai ter ao sítio abandonado de Camapuã. Desde aquela
poviação, assente próximo ao vértice do ângulo em que confinam os
territórios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato grosso até o Rio
Sucuriú, afluente do majestoso Paraná [...] (2009, p. 11)
Nesses campos tão diversos pelo matiz das cores, o capim crescido e
ressecado pelo ardor do Sol transforma-se em vicejante tapete de relva.
(TAUNAY, 2009, p. 12)
A perspectiva de afastamento temporal é acentuada pelo
pretérito épico, percebido como presente perpétuo. “Na mão
empunhava uma comprida vara que havia pouco cortara, e com que
ia distraidamente fustigando o ar ou batendo nos ramos de árvores
que se dobravam ao alcance do braço (TAUNAY, 2009, p. 18).
Esse acabamento estético se repete em O gaúcho e O
sertanejo em que prevalece a apresentação panorâmica da terra,
assim como em O guarani e Iracema, na sua relação profunda e
integrada ao homem. O que se procura nessa for mula é
re presentar com o máximo de verdade e imaginação, a
identidade. Em Alencar percebemos a natureza como a grande
Mãe terra, para fixar a atitude reverente do homem do sertão,
mostrando-o herói. A floresta cede lugar à campina; essa
natureza em profunda integração com o homem é a natureza
como “o espaço que habito”: o homem pertence à terra assim
como a terra pertence ao homem. Em O sertanejo, o narrador
assim apresenta: “Esta imensa campina, que se dilata por
horizontes infindos, é o sertão de minha terra natal” Não menos
épico é o tom expresso quando o narrador de O gaúcho
(ALENCAR, 2006, p.20) diz do pampa: “[...] as vastas campinas
que cingem as margens do Uraguai e seus afluentes. A savana se
desfralda a perder de vista, ondulando pelas sangas e coxilhas
que figuram das flutuações das vagas nesse verde oceano.” Para
depois definir o gaúcho, herói emblemático, expressão do
brasileiro, assim e na mesma medida que se quis o índio, com
Peri e Iracema, representar o Brasil genuíno.
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Nenhum ente, porém, inspira mais energeticamente a alma pampa do
que o homem, o gaúcho. De cada ser que povoa o deserto, o torna o
melhor; tem a velocidade da ema e da onça; os brios do corcel e a
veemência do touro.
O coração, fê-lo a natureza franco e descortinado como a vasta coxilha;
a paixão que o agita lembra os ímpetos do furacão; o mesmo bramido,
a mesma pujança. A esse turbilhão do sentimento era indispensável uma
amplitude de coração, imensa como a savana. Tal é o pampa.
(ALENCAR, 2006, p.22)
A passagem citada é exemplar quanto ao sentido de integração
épica entre espaço, personagem, ação. A natureza e o gaúcho
aparecem articulados para compor um quadro único da
grandiosidade brasileira. Essa majestade do sertão imprime a
metamorfose do espaço rústico para o espaço mítico, mantendo o
sertão como espaço que habito. José Maurício Gomes de Almeida
(1981, p. 67) afirma que para essa primeira fase do romance
regionalista, “é possível denominar de regionalismo mítico, em
oposição ao regionalismo de caráter realista, documental [...]”.
Frente a essa nova fase do nacionalismo brasileiro, persiste a
almejada unidade de Nação atrelada a uma imagem em que a
substituição do índio pelo sertanejo denuncia o esgotamento da
imagem do índio, e a busca por um fundamento histórico bem mais
concreto. José Maurício Gomes de Almeida (1981, p. 65) observa
que nesse processo “Alencar assimila parte das exigências de maior
fidelidade ao real que a nova geração vinha propugnando, adaptandoas porém livremente ao seu modo pessoal de conceber uma narrativa
épica”. É, inserido nesse complexo que Alencar assim define a região
em O gaúcho (2006, p. 21): “Cada região da terra tem uma alma sua,
raio criador que lhe imprime o cunho de originalidade. A natureza
infiltra em todos os seres que ela gera e nutre aquela seiva própria; e
forma assim uma família na grande sociedade universal.”
Notadamente para Alencar, o local percebido na região não
se fecha, ou inda, não se isola, antes integra o plano universal, e
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manifesta a singularidade, a particularidade desse universal. Eis a
fórmula de reflexão que propõem seu romance e seu projeto
romanesco. O dilema exaustivamente abordado pela crítica entre
regional ou universal, como excludentes, parece ter sido percebido
de maneira diferente do que propõe o autor de O gaúcho. E nessa
medida, ou, desmedida, vale e muito o julgamento estético feito
das obras em questão. Para Antonio Candido (1981, p.210), por
exemplo:
É notório que livros, como O sertanejo, O garimpeiro, Inocência, Lourenço,
são construídos em torno de um problema humano, individual ou social,
e que, a despeito de todo o pitoresco, os personagens existem
independentemente das peculiaridades regionais. Mesmo a inabilidade
técnica ou a visão elementar de um batedor de estradas, como Bernardo
Guimarães, não abafam esta humanidade da narrativa.
Sobre essa impressão, Lúcia Miguel Pereira (1988, p.181)
comenta sobre os escritores regionalistas: “O movimento dá-se de
fora para dentro, mais do que um movimento de dentro para fora,
nascendo do encontro, com forma de vida rudimentares, de espíritos
que lhes sentem a sedução precisamente por conhecerem outras mais
complexas”.
Ao definir o romancista regionalista, José Aderaldo Castelo
(1996, p.47) observa: “O verdadeiro romancista regionalista é aquele
que observa diretamente a paisagem e conhece ou colhe por meio
de informações seguras os fatos essenciais, tipos e tradições que
constituirão o material de seu romance”. Essa afirmativa parece ter
saído das páginas escritas no Prefácio de O cabeleira, de Franklin
Távora. Contrapondo exaustivamente ao projeto apresentado pelo
romance de Alencar, Távora dá ênfase à observação da realidade
na criação romanesca para afirmação de uma literatura brasileira.
Notadamente Franklin Távora (2005, p. 23) explicita “As letras têm,
como a política, um certo caráter geográfico; mais no norte, porém,
do que no Sul abundam os elementos para a formação de uma
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literatura brasileira, filha da terra. A razão é óbvia:o Norte não foi
invadido como está sendo Sul de dia em dia pelo estrangeiro”
O argumento de Távora em defesa de uma Literatura Brasileira
indica dois caminhos: 1) a defesa pelo norte se deve ao fato de não
ter sofrido influência do estrangeiro; vejam que esse mesmo
argumento sustenta a imagem do Sertanejo para Alencar; e 2) o
argumento de que a literatura assim como o Norte e o Sul não pode
ser expressa em uma única face. Eis uma verdade irrecusável: “Norte e
Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua,
porque o gênio de um não se confunde com o de outro. Cada um
tem suas aspirações, seus interesses [...]” (TÁVORA, 2005, p.24).
Nessa posição diferenciadora, declarada pelo romancista, acentuamse as fronteiras geográfica, política e econômica, para estendê-las
ao nível literário. Eis que a região, definida em O gaúcho, é
ressignificada, por Távora, como regional (sinônimo de nacional)
na medida em que a literatura deve constar da dimensão plural e
heterogênea da cultura. A posição de Távora é de destaque nessa
fase de inquietude e conflito frente aos rumos das letras, ao discutir
em seu romance O cabeleira o engodo do discurso de integração do
nacional e as fronteiras que descobrem o Brasil. Essa linha de tensão
que separa o projeto nacionalista de Alencar da geração de Távora
se redesenha nas conhecidas cartas a Cincinato.3
A definição de regionalismo proposta por José Aderaldo
Castelo, mencionada anteriormente, se contraposta à reflexão de
Távora, veremos que não é exatamente a mesma coisa. Ainda que
José Aderaldo Castello ressalte a carência estética, a geografia e a
paisagem minuciosas não são a essencialidade do regional. Mas a
integração entre homem e natureza, ou, o inverso dela: a desintegração
homem-natureza, na sua dimensão socio-cultural e econômica. Eis o
caminho que Távora parece indicar. A matéria, o sertanejo, continua
sendo a mesma; enquanto em Alencar o traço épico acentua a Nação,
em Távora buscam-se a diferença e a dessemelhança, não apenas da
terra Norte-Sul (ainda que irmãs) mas do homem, o brasileiro. Para
a crítica, essa crise não se resolve bem esteticamente. E vai legar ao
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regionalismo, muitas vezes, o que Lucia Miguel Pereira (1988, p.18)
chama de um artificialismo quase teatral, ao definir o escritor regionalista
como turista ansioso. Isso já no Realismo.
[...] toda arte condensa e deforma, mas o regionalismo, pondo nas
exterioridades e nas peculiaridades o seu acento tônico, erigindo estas
em aspectos habituais, e aquelas em manifestações únicas da
personalidade, leva tão longe essa condensação que, devendo por sua
índole, ser simples e espontâneo, cai num artificialismo quase teatral.
Se o regionalismo romântico transpira humanidade sincera, com
o advento do Naturalismo, o Regionalismo assume uma forma
diferenciada, preconizada por Távora. Embora persigam o mesmo
resultado, os meios empregados pelos autores, assim como os
resultados por eles obtidos, são diversos. Enquanto movimento
estético o Realismo-Naturalismo impõe a objetividade e o
compromisso com o retrato do real, ou, mais que isso, na Literatura
o texto deve se aproximar “do diagnóstico médico a captar sintomas
e mazelas nacionais (...) ao buscar uma identidade chamada Brasil”.
(SUSSEKIND, 1984, p.37). Engajado com o compromisso do
diagnóstico, a segunda fase do regionalismo, que nasce com O cabeleira
(1876), de Távora, passando por Os retirantes (1879),de José do
Patrocínio, A fome (1890) de Rodolfo Teófilo, Dona Guidinha do Poço
(1891), de Manuel de Oliveira Paiva, chegando a Luzia-Homem (1903),
acaba por priorizar, na apresentação do real, o já conhecido máximo
de honestidade, na tentativa de assegurar ao texto, uma “rígida
exatidão”. Flora Sussekind (1984, p.37) critica severamente essa
exatidão empunhada pelo Naturalismo e, nesse sentido, avaliamos
que o nascer do regionalismo sucumbiu às imposições da época.
Quando um romance tenta ocultar sua própria ficcionalidade em prol
de uma referencialidade, talvez os seus grandes modelos estejam
efetivamente na ciência e na informação jornalística, via de regra
considerados paradigmas da objetividade e da veracidade [...] apontam
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para um mundo e uma linguagem extratextuais. O leitor de uma obra
cientifica ou de uma noticia de jornal pouco observa a linguagem em
que foram escritos, contando que lhe transmitam uma impressão de
veracidade. Contanto que pareçam apontar para além de si mesmos,
para um mundo e uma linguagem extratextuais. Do mesmo modo, o
leitor de um texto ‘naturalista’ é conduzido para fora da linguagem.
Como se as emoções e a sedução que a literatura porventura lhe possa
provocar não adviessem de um texto, de um modo próprio de narrar,
de uma ficção, internamente trabalhada. Oculta-se todo o trabalho da
linguagem, dissolve-se a ficcionalidade ao romanesco e obriga-se o leitor
a olhar o fato ficcional sempre em analogia a uma referente extratextual
ao qual deve corresponder o mais possível.
.
Essa exatidão, que beira a um diagnostico, assinalada por Flora
Sussekind, fruto de indagações propostas pela década de 90 do
século XIX, acaba por legar a essa geração uma inapropriada
adequação entre forma e conteúdo, e o acabamento estético que o
romance realiza. Se em Alencar a natureza tinha uma dimensão
idílica, apresentada em tons épicos, moldura ao homem do sertão,
nesta geração essa natureza se expressa pelo cotidiano do herói na
condição socio-econômica. A natureza como espaço inóspito e de
exclusão que determina um homem oprimido. Dessa geração,
iniciada por Távora, a representação do povo, vista sob o prisma
da hierarquia entre as classes sociais, dando vez e voz a heróis como
José Gomes, Luzia, Alexandre e Guidinha, expõe-se a condição de
esquecimento, miséria e violência no sertão. A terra que “já não mais
habito” potencializa, nesta fase, a tragédia da marginalidade. E
questões como evasão do campo, procissão do êxodo, banditismo,
fanatismo religioso, projetam-se a partir da trajetória do herói (como
homem do povo), mostrando o drama do brasileiro dentro de um
sistema cultural e econômico complexo. Assim como nos mostra
Luzia-Homem (1983, p.17):
A população da cidade triplicava com a extraordinária afluência de
retirantes. Casas de taipa, palhoças, latadas, ranchos e abarracamento de
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subúrbio, estavam repletos a transbordarem. Mesmo sob os tamarineiros
das praças se aboletavam famílias no extremo passo da miséria [...]
É o caso de José Gomes que, herói e bandido no sertão,
pertence à fronteira entre a História e a memória. Nas palavras de
Távora (2005, p. 90):
Mas desgraçadamente estas cenas não são geradas pela minha fantasia.
São fatos acontecidos há pouco mais de um século. Se só alguns deles
foram recolhidos pela história, quase todos pertencem à tradição, que
no-los legou, antes como límpido espelho, que como tenebrosa notícia
do passado. Não estou imaginando, estou sim, recordando; e recordar
é instruir.
Essa fronteira entre memória e História é problematizada pelo
romance O cabeleira, e externada por Távora desde o prefácio da
obra, constitui o grande desafio estético para sua geração. Em
consonância com essa perspectiva, Távora afirma em O cabeleira
que este romance não se vale da imaginação (contrapondo-se a
Alencar), mas da recordação. Notadamente, essa afirmativa lança o
regionalismo, enquanto percepção do sertão e do passado, como
memória: um projeto romanesco que se vale da memória e da
História para criar uma perspectiva de ficcionalização da realidade
representada, sempre identitária. O dilema se localiza nessa
ficcionalização da história privada do herói e sua inserção na História
da cultura brasileira. Esses dois eixos, essas duas dimensões narrativas
apresentadas pelo romance, é que parece terem constituído um
desafio consciente, anunciado, experienciado, mas não resolvido
esteticamente em duas gerações.
Nesse momento produzir uma imagem de país que não se
vale exclusivamente da imaginação e da idealização, mas que projete,
a partir do percurso histórico as identidades, torna-se praticamente
uma obrigação; uma espécie de cartografia brasileira para se chegar
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a existência da identidade nacional. Ou ainda, e mais uma vez, nas
palavras de Távora, o texto como espelho da cultura. Menos um
espelho e mais uma proporção matemática, é assim que Flora
Sussekind (1984, p.96) avalia esse período:
[...] uma literatura que funcione como uma espécie de sinal de igualdade
ou proporção matemática, que produza ficcionalmente a nacionalidade...
ou como um plágio, uma Literatura que faça surgir na cena brasileira,
de dentro de um falso naturalista, uma tão ansiosamente desejada
identidade nacional.
Esse dilema se traduz em um projeto estético quer seja em
algum momento frágil, quer seja em constante encontro entre a
História e a memória. Todavia, é inegável que constitui processo de
formação do romance brasileiro, mostrando seus vários caminhos,
suas experimentações e possibilidades, na fronteira entre a História,
a memória e a identidade nacional. Flávio Wolf Aguiar (Revista do
Brasil, p.118)fala dos enredos da cultura brasileira, nas várias
experiências desse processo, desde Brasil colônia, e localiza como
segundo enredo dominante da nossa cultura a tragédia da
marginalidade que traz não somente o sertão, mas a figura trágica
do migrante e os conflitos de ocupação da terra. Para o crítico, os
primeiros romances expõem a fratura, as diferenças entre campo e
cidade, entre progresso e atraso. As zonas relegadas ao esquecimento
e ostracismo projetam-se como imagem do Brasil. E que Brasil é
esse? Disforme, atrasado, analfabeto e violento.
Desde o final do século XIX, a vida literária brasileira
apresenta o extraordinário esforço de penetração crítica na realidade
presente. De Os sertões passando por Macunaíma renova-se ao longo
do tempo o esforço solidário na busca pela cultura brasileira. Nessa
direção quer a Escola de Recife articular o enfoque das obras para as
regiões não litorâneas, em franco desvio do caminho da produção
literária dos grandes centros. O Brasil distante da capital ganha
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espaço e expressividade não apenas com Euclides e Graça Aranha,
mas também em autores como Simões Lopes, Valdomiro Silveira e
Monteiro Lobato. E com isso a nação é reencontrada pelas distinções
e fraturas históricas, negligenciadas na visão total do Nacional.
Nacional por subtração, como analisa Roberto Schwarz (1987). Nesses
autores, as diferenças se multiplicam em imagens anunciadoras de
contrastes profundos que se mostram pela variação linguística, pelas
crenças e costumes, pelas diferentes cidades, pelas várias fases do
progresso e do atraso, pela miséria. Na fase terceira do regionalismo
na aurora dos ventos fortes do século XX, que antecedem a geração
de trinta, o luar já se faz sertão.
Finalizando, o romance é o gênero que melhor acomoda as
questões regionalistas, embora haja muitos momentos belíssimos
em contos de Simões Lopes, Waldomiro Silveira e José de Mesquita.
O regionalismo, portanto, implica não apenas processo de expressão
da literatura brasileira - vingou gerações, pelo menos quatro, em
dois séculos; mais que isso, implica processo de conformação
estética do romance brasileiro: desde O gaúcho, de José de Alencar,
de O cabeleira, de Franklin Távora, passando por Euclides da Cunha,
Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Alfredo
Marien, Dunga Rodrigues, alcançando seu ponto ápice em
Guimarães Rosa: “O sertão está em toda parte.”
Referências
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ALENCAR, José de. O sertanejo. São Paulo, Ática 2006
__________. Til. São Paulo: Ática, 2003.
__________. O gaúcho. São Paulo: Ática, 2005
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ALMEIDA , José Maurício Gomes de. A tradição regionalista do romance
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PEREIRA, Marcio Roberto. Regionalismo revisitado. In: Dispersa memória.
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PEREIRA, Lúcia Miguel. A prosa de ficção brasileira: 1890 a 1920. Belo
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SCHWARZ , Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras,
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SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, Qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé,
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SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
TÁVORA, F. O cabeleira. São Paulo: Ática, 2005.
Notas
2
O termo imaginado é introduzido aqui no sentido que é usado por Benedict Anderson no livro
Imagined Comunities: reflections on the origin ande spread of nationalism. Segundo Anderson os
membros da menor nação jamais conhecerão, encontrarão ou escutarão qualquer coisa sobre
seus compatriotas. Mesmo assim na metade de cada um, sobrevive a imagem de comunhão. Para
Anderson todas as comunidades humanas tendem a ser entidades imaginadas. As comunidades, argumenta,
‘não diferem pela sua falsidade’/genuinidade, mas pelo estilo em que foram imaginadas. Anderson
desenvolve três aspectos caracterizadores da nação moderna: 1) A nação é imaginada como
algo limitado porque até mesmo as maiores [...] têm fim; ainda que se estabeleçam fronteiras
elásticas, do outro lado sempre haverá outras nações [...]. .2) É imaginada como soberana
porque o conceito nasceu em uma época em que o iluminismo e a Revolução destruíram a
legitimidade dos reinos hierárquicos dinásticos, governados pelo direito divino [...]. 3)
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Finalmente, é imaginada como uma comunidade. Apesar da desigualdade e da exploração que
prevalecem, a nação é sempre concebida como um grande companheiro horizontal.
Enfim, é a partir dessa fraternidade que nos dois últimos ‘séculos tornou-se possível para
milhares de pessoas matar e morrer por tais limitadas imaginações. ( negrito nosso) (1999, p.
129)
3
José Maurício Gomes de Almeida analisa em como o ponto de vista Franklin Távora, nas
cartas a Cincinato, documenta de modo privilegiado a crise do momento cultural daquela
época.. Em A tradição regionalista do romance brasileiro. Rio de Janeiro:Achiamé, 1981.
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O ROMANCE EM MATO
GROSSO: UM ESTUDO SOBRE
MIRKO, DE FRANCISCO
BIANCO FILHO
ROMANCE IN MATO
GROSSO: A STUDY
ABOUT MIRKO, BY FRANCISCO
BIANCO FILHO
Franceli Aparecida da Silva Mello
(UFMT)1
Cibele Antonia de Souza Rodrigues
(EEEB Adalgisa de Barros)2
RESUMO: O romance em sua emergência na Europa, como
em seu estabelecimento no Brasil, esteve relacionado a mudanças
1
Doutora em Literatura Brasileira (USP); pesquisadora do RG Dicke; professora do
Departamento de Letras e do Mestrado em Estudos de Linguagem/IL/UFMT; Cuiabá/MT/
CEP: 78040-505. [email protected]
2
Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT); professora da EEEB Adalgisa de Barros; Várzea
Grande/MT/CEP:78110-300.
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sociais que se refletiram nas concepções de mundo e de literatura.
No contexto mato-grossense, a construção do campo literário
apresentou características próprias, na medida em que respondeu
a estímulos e condições específicas, gerando uma temporalidade
particular. No início do século XX, a literatura mato-grossense
sofria a influência de Dom Aquino, maior nome da literatura local
e defensor da tradição clássica. A proposta deste trabalho é
proceder a uma análise do romance Mirko, de Francisco Bianco
Filho, obra que, acreditamos, corresponde às concepções literárias
existentes na época em Mato Grosso. Nosso principal objetivo é
subsidiar a pesquisa sobre a consolidação do romance entre nós.
PALAVRAS-CHAVE: Romance. Literatura mato-grossense.
Mirko
ABSTRACT: The novel in its emergence in Europe, as in its
establishment in Brazil, was related to social changes that promoted changes in the conceptions of world and literature. In the
context of Mato Grosso, the construction of the literary field
presented its own characteristics, as it responded to specific stimuli
and conditions, generating a peculiar temporality. In the early
twentieth century, the literature of Mato Grosso was influenced
by Dom Aquino, major name in local literature and defender of
the classical tradition. The proposal of this work is to proceed
to an analysis of the novel Mirko, by Francisco Bianco Filho,
work which, we believe, corresponds to the literary conceptions
prevalent at the time in Mato Grosso. Our main objective is to
subsidize research on the constitution of novel in Mato Grosso.
KEYWORDS: Novel. Literature. Mato Grosso. Mirko
Introdução
O romance moderno surgiu num momento marcado por
profundas transformações na história da humanidade. No campo
literário, houve uma ruptura com os preceitos clássicos
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protagonizada pelo romance, cuja estrutura incorporou as novas
concepções de mundo (modernização, secularização, individualismo,
luta de classes, originalidade, nacionalismo etc). Entretanto, na
medida em que respondeu a estímulos específicos, em cada lugar
diferente, o novo gênero apresentou desenvolvimento desigual.
Em Mato Grosso, embora os historiadores registrem um surto
de desenvolvimento econômico após a Guerra do Paraguai, na segunda
metade do século XIX, ainda não era possível editar livros na província,
cabendo à imprensa a abertura de espaço para a produção literária local.
Desde as primeiras manifestações literárias, a poesia foi o
gênero preferido pelos autores mato-grossenses e somente em
meados do século XIX surgiram escritores que se notabilizaram
como prosadores, destacando-se produções de diversas áreas como
ciências, geografia, história, letras jurídicas, crônica política,
jornalismo. Já a prosa de ficção aparece apenas no início do século
XX, alicerçada no discurso de reestruturação da sociedade local,
tanto em nível cultural quanto em progresso material.
Dom Aquino, bispo e presidente do Estado, tendo capital
cultural e político, comandava os rumos de uma literatura calcada
em ideais moralistas e de representação nacional, o que aqui
significava a valorização do regional. Considerado um poeta de “fina
inspiração”, Dom Aquino foi grande apologista das belezas naturais
da região, sendo o primeiro a usar a expressão pela qual Cuiabá
ficaria conhecida, qual seja, “cidade verde”. Escreveu também, em
prosa, diversos tipos de textos entre os quais se destacam os artigos
publicados no jornal católico A Cruz. Dom Aquino foi o responsável
por imprimir um tom conservador à literatura em Mato Grosso, o
que pode ser observado claramente em uma de suas principais obras,
Terra natal (1919), em que afirma:
Bem inspirado nestes princípios, o Centro Mato-grossense de Letras
se propõe a fazer uma literatura que não só respeite a moral, mas a
edifique exalte e sublime.
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Nosso fim é cultivar as belas letras, que tão sugestivamente são também
chamadas boas-letras (AQUINO apud MAGALHÃES, 2002, p. 24).
O regionalismo em Mato Grosso não se limitou a cantar as
belezas da terra. No início do século XX, a cena literária se abriu
para um escritor mineiro que, tendo morado algum tempo em
Cuiabá, foi eleito para ocupar a cadeira nº. 24 da Academia Matogrossense de Letras. Ainda que não mencionasse a realidade matogrossense em sua obra, Francisco Bianco Filho retratou costumes
sertanejos que podem ser estendidos a qualquer região do interior
do Brasil, o que levou Rubens de Mendonça (2005) a classificar Mirko
como um “romance de costumes regionais”.
Ao escolher Mirko para ilustrar os momentos de emergência
do romance em Mato Grosso, pensamos abordá-la a partir do que
diz Edward M. Forster quando afirma que obras tidas como menores
devem ser vistas como “pequenas residências” da ficção e não como
“grandes edifícios”, mas que devem ser “avaliadas e respeitadas pelo
que são” (FORSTER, 2005, p. 37).
Deste modo, não se trata aqui de “reabilitar” a obra, mas de
avaliar a relevância de sua contribuição para a história literária de Mato
Grosso e para a compreensão do papel do romance nesse processo.
Neste sentido, compartilhamos com Pierre Bourdieu a
convicção de que
O analista que conhece do passado apenas os autores que a história
literária reconheceu como dignos de ser conservados condena-se a uma
forma intrinsecamente viciosa de compreensão e de explicação: pode
apenas registrar, à sua revelia, os efeitos que esses autores ignorados por
ele exerceram, segundo a lógica da ação e da reação, sobre os autores
que pretende interpretar e que, por sua recusa ativa, contribuíram para
o seu desaparecimento; ele se impede por isso de compreender realmente
tudo que, na própria obra dos sobreviventes, é, como suas recusas, o
produto indireto da existência e da ação dos autores desaparecidos
(BOURDIEU, 2005, p.88-89).
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O romance Mirko foi publicado pela primeira vez em 1927 e
reeditado em 2008, pela UNEMAT (Universidade do Estado de
Mato Grosso) em parceria com a Academia Mato-grossense de
Letras, integrando a Coleção Obras Raras. Rubens de Mendonça
(2005) afirma que a obra data de 1920, e Lenine Póvoas (1994) de
1927. Isso poderia causar alguma confusão. Mas, na apresentação à
primeira edição, Francisco Bianco Filho afirma que escreveu a obra
aos dezenove anos, portanto, em 1920. Assim, essa divergência de
informação se explica na medida em que um autor considerou o
ano da escritura e outro o da publicação do livro.
Esta colocação pode, num primeiro momento, parecer
deslocada, mas se explica na medida em que serve para elucidar
uma questão posta por Walnice Nogueira Galvão (2008, p. 7) que,
no prefácio à segunda edição, questiona: “[...] como escapou a
influências atualizadoras, quando a Semana de 22 já ocorrera e as
idéias estéticas do Modernismo tinham sido postas em
circulação?”. Mas, em seguida a crítica argumenta que, em se
tratando de fenômenos de vida literária, pode-se recorrer às
ciências sociais, que desenvolveram o conceito de “demora
cultural” (cultural mog) para explicar o fato de que “[...] numa dada
sociedade, nem todos os componentes evoluem no mesmo ritmo
e na mesma velocidade, uns avançando e outros ficando para trás”.
Assim, afirma a autora, “[...] a ausência de sinais modernistas”,
em Mirko, “[...] não seria excepcional”. O conceito de “demora
cultural” até pode ser aplicado ao estudo da literatura matogrossense em geral, mas não com relação a esta obra, haja vista
que sua escritura é anterior à Semana de 22.
A história de Mirko
Por tratar-se de “obra rara”, isto é, desconhecida da maioria,
segue-se um resumo detalhado do enredo.
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O romance inicia-se com o encontro do protagonista, Mirko,
aos 17 anos, com a carioca Leda, por quem demonstra interesse,
mas é rejeitado. Tempos depois, ele encontra a moça, acompanhada
de Luciano, em um sarau no Rio de Janeiro, cidade onde estuda
Direito. Começam a dançar e acabam tendo uma relação sexual na
biblioteca. Logo depois, Leda vai embora com Luciano.
Durante as férias, Mirko vai para o arraial onde vive seu pai.
Um dia, cavalgando, é surpreendido por uma tempestade e se depara
com uma moça descordada, é Yara. Leva-a para um abrigo e, na
manhã seguinte, para a casa dos pais dela, onde está Luciano, que a
acompanhava no passeio, mas a deixara sozinha quando a chuva
começou.
Nos dois meses seguintes, Mirko e Yara namoram, até que ele
volta aos estudos. Já no Rio de Janeiro, ele reencontra Leda que,
percebendo seu distanciamento, tenta seduzi-lo. Não conseguindo,
decide relatar sua história.
Ela conta que quando seu pai ficou viúvo, passou-lhe
propriedades que lhe proporcionariam renda para uma vida tranquila.
Nessa mesma época, como estava de casamento marcado, acabou se
entregando ao noivo. Porém, ele sofre um acidente e morre dias antes
de se casarem. Preocupada com uma possível gravidez, Leda decide
ir ao médico. Este lhe revela que ela não pode engravidar, mas que o
problema é sanável. E, assim, totalmente emancipada, decide não
seguir as convenções sociais e viver seus desejos.
Mirko, depois de ouvir o relato de Leda, acaba se aproximando
dela, deixando-se seduzir novamente. Mas, arrependido, resolve que
isto não mais se repetirá. Durante os meses seguintes, Leda tenta
reconquistá-lo. Não obtendo sucesso, a moça parte para o arraial,
onde Mirko havia retornado em férias, e lá reencontra Luciano. Os
dois, então, resolvem tramar a separação de Mirko e Yara.
Mirko voltou para o arraial levando a amiga Laura. Luciano,
aproveitando-se disso, incita ciúmes e desconfiança em Yara. Nesse
ínterim, seduz Rosalina, filha do jardineiro da fazenda.
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Numa festa de São Sebastião, Luciano apresenta Yara a Leda
que, mentindo ter sido seduzida e abandonada por Mirko, consegue
separar o casal.
Meses depois, já formado, o protagonista retorna ao arraial
devido ao estado de saúde do pai. Leda casara-se com um fazendeiro
rico e, mesmo arrependida, não conta para Mirko que Yara se
separou dele por causa de uma intriga sua e de Luciano. Yara volta
a viver na fazenda de sua família, saindo do arraial.
Certa noite, Mirko vai até a casa de Yara. Enquanto isso,
Luciano, que já estava na casa dela, tenta forçar uma aproximação
com a jovem, quando, subitamente, a luz se apaga. Ao buscar o
interruptor, ela depara-se com Luciano morto. Sai correndo e, ao
ver Mirko no lado de fora, foge apressada. O corpo de Luciano é
encontrado perto de um chicote com o nome de Mirko gravado no
cabo, fato que o leva à prisão. O rapaz, pensando ter sido Yara a
autora do crime, resolve não denunciá-la, apenas jura inocência. Já
Yara supõe que foi Mirko o assassino, porém não conta que ele teria
feito isso para salvar sua honra. Pois, ele sairia como mentiroso, já
que se disse inocente.
Ele é condenado, mas acaba fugindo e desaparecendo. Pouco
tempo depois, o jardineiro da fazenda confessa ter matado Luciano
por vingança pela desonra da filha Rosalina, que acabou matando a
criança e se suicidando. Assim, começa a procura por Mirko, sem
sucesso, o que fragiliza a saúde de Yara. Desiludida, ela resolve
dedicar-se à caridade, acabando por acolher um louco que aparece
na região. Uma noite ela pede a um criado que raspe a barba dele.
Ao reconhecer Mirko no desconhecido, tem uma crise nervosa e
seus pais, sem perceber de quem se tratava, expulsam o “louco” da
casa. Durante a madrugada, Yara morre.
O “louco”, ao ver o caixão no cemitério, volta à razão, abraça
o corpo de Yara e também morre. Os dois são enterrados lado a
lado.
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O campo e a cidade
Em seu estudo sobre a obra, Walnice Nogueira Galvão (2008,
p.7) sugere que é “[...] sobretudo da imbricação de Naturalismo
com Regionalismo, com laivos de Romantismo, que surge Mirko”.
E que, sendo um romance “[...] situado em Minas Gerais, desarma a
expectativa de costumes e linguajar mato-grossenses ao dissolvêlos numa espécie de generalidade sertaneja”. Assim, talvez se visasse
“[...] a uma amplitude maior, que não se confinasse nos limites de
um único estado da federação”.
A autora lança mão, em sua análise, da simbologia espacial ao
ressaltar a oposição entre o campo e a cidade. Um é representado
pelo sertão, a fazenda, o arraial, a aldeia, lugares de virtude, amor
verdadeiro, valores familiares etc. O outro é representado pelo Rio
de Janeiro, símbolo de modernidade, lugar de novidade, de
tentações, de mulheres emancipadas e de desvio dos valores sociais.
Os espaços do romance em tela são, portanto, tratados de
forma antitética. Cabendo lembrar que
Dentro da história do mundo, a literatura dá corpo a uma variedade
infinita de experiências e interpretações. E, o campo e a cidade são
realidades em transformação em si, como em suas inter-relações, sendo
o contraste entre os dois uma das principais formas de se tomar
consciência das experiências e crises sociais. Porém, isso pode levar à
redução da variedade histórica em símbolos e arquétipos, o que ocorre
quando certas formas, idéias e imagens importantes persistem durante
períodos de grandes transformações sociais [...] Na verdade é necessário
investigar a que tipo de experiências elas parecem interpretar e por que
acontecem nesse ou naquele momento (WILLIAMS, 2011, p.475)
Assim, se o contraste entre campo e cidade “[...] levantam
questões de perspectiva e fatos históricos, porém também levantam
questões de perspectiva e fatos literários” (WILLIAMS, 2011, p. 27).
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Em Mirko, o campo é representado como “singela aldeia”,
“solo de rincão bendito” que proporciona “vida simples e bela”,
numa visão completamente idealizada. Isto também pode ser
observado na fala de Alexandre, pai de Mirko, um estrangeiro
sempre alegre, de “uma alegria franca que somente a mansidão dos
campos faz germinar num coração”. Ao contrário da cidade, lugar
de tentações, corrupção, “luxúria”.
Esse recurso estético, tomando-se em conta que o romance
lança mão de elementos parnasianos (linguagem rebuscada e
imagens da mitologia grega), também pode ser sintetizado pelos
conceitos de locus amoenus e fugere urbem, como se observa no
seguinte trecho:
Ao fundo – a grande serra que se esgarça pelo horizonte e em cuja
altura se eleva uma singela aldeia. Jóia graciosa cravada em recanto tão
bendito da natureza, possui como todas as aldeias a igrejinha branca ao
topo da colina.
Ali, porém, não penetrara ainda o mal dos preconceitos da civilização e
o vírus das frivolidades mundanas (BIANCO FILHO, 2008, p. 35-36).
A noção de que no campo está o homem não corrompido
também é típica do romantismo nacionalista. No final do século
XVIII e início do XIX, “[...] quando a cultura popular tradicional
estava justamente começando a desaparecer”, os intelectuais alemães,
como Herder e os irmãos Grimm, foram ao campo coletar contos,
cantos e tradições orais, pois consideravam que lá estava intocado o
espírito da nação em oposição à cidade, onde teria desaparecido
(BURKE, 1995, p. 31).
Nesse sentido, segundo Burke (1995, p. 32), “[...] Herder
chegou a sugerir que a verdadeira poesia faz parte de um modo de
vida particular”, o qual seria, posteriormente, descrito como “[...]
comunidade orgânica”, onde os povos chamados “selvagens” muitas
vezes “[...] são mais morais do que nós.”
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Partindo-se desses princípios, podemos refletir sobre as razões
de a cidade do Rio de Janeiro, representação do espaço urbano, ser
valorizada apenas com relação às suas belezas naturais. Pois, ela é
vista como um “painel maravilhoso vivificado pelo labor humano,
que tem como fundo a majestade sublime dos Dedos de Deus”, e
assim apresentada:
[...] cidade da Guanabara, ante cuja magnificência se curvam reverentes os
mais famosos recantos da terra, universalizados pelo primor da sua
natureza. À entrada da formosa baía, ergue-se majestoso o Pão de Açúcar,
como atalaia que não cochila na guarda de seus tesouros. Um pouco
além, o imperial Corcovado, de píncaro adunco, dominando dos seus
visos a cidade inteira, entrecortada de ruas e alamedas, praias e jardins.
Pelo oceano, espraia-se o Leblon imenso e Copacabana aristocrática
com a maravilhosa Atlântica, engalhardada pelo fulgor do seu colar de
luzes, onde as ondas, que ao longe rompem em borbotões de alvas
espumas, afagam a areia luzidia num marulhar suave de beijos e carícias
(BIANCO FILHO, 2008, p. 50-51).
Entretanto, quando se trata do espaço mundano, a imagem de
ambiente corrompido, e corruptor, se sobrepõe. Vejamos:
Cada grupo pelos passeios, cada carro pelo corso, cada par pelos salões
apresenta um feitio característico, quando não encobre um romance
misterioso.
É um diplomata ou político que passa. Um cavalheiro abastado com
esposa e filhas. Um novo rico a tresandar da casaca pouco elegante ou da
rosa enorme da lapela, quando em seu automóvel vistoso, o mau cheiro
de bacalhau deteriorado, de cujas grandes partidas lhe advieram o ouro e
o fausto. É finamente um par voluptuoso, ela, melindrosa e linda, a lhe
comprar o amor com as libras pelas quais se unira matrimonialmente a
algum velhote decrépito... (BIANCO FILHO, 2008, p. 60).
Assim, a imagem da cidade apresentada, num primeiro
momento, como um “paraíso, [que] tudo encanta e seduz”,
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contrapõe-se à outra que “tudo fanatiza e prende para não dizer que
perde e corrompe”. Por isso, o retorno do protagonista ao campo,
pois “entre o néctar desse ambiente viciado, que atrai, encanta,
amortoa e corrompe, extingue-se para Mirko o penúltimo ano de
seu curso. E Mirko volta jubiloso ao arraial querido...”.
Além das descrições da paisagem, a cor local é introduzida
no romance, basicamente, por elementos da cultura regional. Não
especificamente a de Mato Grosso, mas de uma cultura interiorana
brasileira, sertaneja, como, por exemplo, as festas religiosas
populares de São João e São Sebastião.
A representação regional se dá ainda mais claramente quando
surgem na narrativa figuras folclóricas, como o Sucupira,
personagem de uma lenda indígena, mas que no caso é o apelido do
velho Zeferino, “chefe do batuque”, do “samba sertanejo”,
“cantadô” famoso pelas redondezas e na festa de São João. As
quadras do velho Zeferino são uma verdadeira demonstração da
linguagem sertaneja, como podemos observar:
[...]
Minha gente venham vê
O tatu sofrê paixão
Já mataro as mulas toda
Da maior estimação
[...]
Lá do céu caiu um lenço
De tão arto foi caíno
E se havera de me dá
Foi dá ele ao Zeferino (BIANCO FILHO, 2008, p. 42).
A perspectiva adotada para contrastar campo e cidade, baseada
nas concepções de inocência e estabilidade rurais e corrupção
urbana, demonstra uma postura conservadora do narrador de
Mirko, pois, como afirma Williams,
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Se o que se via na cidade não podia ser aprovado, por tornar evidente
a sordidez das relações decisivas que regiam a vida das pessoas, o remédio
não era jamais a moralidade da vida simples [...] Era uma mudança das
relações sociais e da moralidade essencial. E era precisamente nesse ponto
que a ficção de “cidade e campo” era útil: para promover comparações
superficiais e impedir comparações reais (WILLIAMS, 2011, p. 94).
Por outro lado, ao tempo da publicação desta obra, o Brasil,
de modo geral, encontrava-se num período de transição e de
confluência entre tendências conservadoras e progressistas. Para
Williams (2011), a perspectiva idealizadora do passado ocorre no
momento em que um novo sistema social começa a ser bem
sucedido, sendo provável que surja alguma nostalgia, que toma o
lugar do protesto. Isto é, o recuo a uma sociedade “orgânica” e
“natural” como forma de combater a “decadência” da sociedade
urbana e seus problemas sociais.
A tensão entre cidade e campo é um tema recorrente da cultura
ocidental, ainda que revestida de abordagens distintas. Essa dualidade
acabou por constituir dois pólos de concepções da realidade: um
rural, tradicional e em harmonia com a natureza; e outro, urbano,
capitalista, moderno, mas ofuscado pela fragmentação do indivíduo.
No romance em tela, a persistência desta dicotomia é tão
significativa em si quanto a busca por suas várias possibilidades de
representação. Se ela é frágil, enquanto tentativa de explicação do
mundo, é importante na medida em que perpetua o constante retorno
a uma sociedade “natural”, ao mito de um passado paradisíaco.
Contudo, na medida em que o capitalismo se consolida, surge outra
perspectiva, mais conservadora, a de que a transição da vida rural
para a urbana é uma decadência, a responsável pela degradação social.
Um enredo folhetinesco
Para Antonio Candido (1975), o romance no Brasil nasceu
“sob o signo do folhetim”, referindo-se a Teixeira e Souza. Neste
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sentido, o gênero seguiu um caminho contrário ao da França, onde
o folhetim surgiu após a consolidação do romance. Segundo Marlise
Meyer (1996), é notória a “[...] influência concreta do folhetim à
francesa na elaboração do romance ‘oficial’ brasileiro desde as
influências temáticas” até as formais.
Em Mato Grosso, o folhetim também teve grande importância
no processo de formação da literatura local. Para Nadaf, o tipo de
folhetim que mais influenciou o produzido na região foi o de
estrutura mais suave, entenda-se, menos “rocambolesco”, com
enredos focados em lares e em valores morais referentes “[...] ao
amor, de preferência o lírico e o sublime, a unidade familiar, a honra,
a modéstia, a resignação, o vigor às adversidades, a bondade, a
supremacia da verdade sobre a mentira” (NADAF, 2002, p. 69),
entre outras virtudes.
Mirko incorpora esta estrutura, cujas principais características
correspondem ao “romance de vítimas”. Esse tipo de folhetim é
“[...] a banalização do grande folhetim romântico”, pois acabou com
o “herói”, aquele “[...] indivíduo erguido contra a coerção social”,
que foi diluído na “vítima”, “[...] uma vítima que respeita as
convenções sociais até no mais extremo sofrimento”. O vilão, por
sua vez, “transforma-se num reles sedutor, amante ou criminoso
barato”. Ao final, “a sedução, o adultério ou as falsas acusações
recebem o justo castigo, as autoridades reconhecem a inocência
redimida, reabilitada e... submissa após duras provas”. Tal folhetim
é ainda mais deslegitimado que seus predecessores, sendo
considerado sinônimo do que é “folhetinesco”, confundido com
suas denominações pejorativas como “[...] romance dos crimes de
amor” ou “[...] romance de dramas da vida”. Enfim, o romance
“[...] da desgraça pouca é bobagem” (MEYER, 1996, p. 218).
Ao elencar os temas recorrentes a esse tipo de folhetim, Meyer
(1996) observa que são sempre os que podem provocar um grande
sofrimento: amor, ódio, paixão, ciúme, a traição, desejo, ganância,
ambição, sedução, crime, luxúria, loucura.
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A sedução, segundo a autora, normalmente é o estopim da
ação, na medida em que é a corrupção da inocência ludibriada, tendo
sempre como consequências a maternidade, a loucura, a criança
ilegítima, o casamento. A loucura nasce do desencontro dos desejos,
do desequilíbrio interior. O adultério pode ser verdadeiro ou
atribuído em falso. O dinheiro é considerado o que move o mundo,
alvo do desejo de todas as camadas sociais. A ambição engendra o
crime, mas numa sociedade em que cada um deve conhecer o seu
lugar. Mata-se por ciúme, inveja, vingança etc.
Voltando a Mirko, em que pesem as complicações provocadas
por situações circunstanciais (tramóias e enganos), o romance não
apresenta um enredo muito complexo quando se trata de
questionamentos de caráter mais abrangente. Na verdade, as
[...] singularidades da zona romanesca nas suas diferentes variantes se
manifestam de vários modos. Um romance pode ser isento de qualquer
problemática. Tomemos, por exemplo, o romance de folhetim. Nele,
não há nada de problemática filosófica ou sócio-política e nem de
psicologia [...] (BAKHTIN, 1998, p. 421).
Assim, temos em Mirko uma obra que agrega vários estilos,
apresentando, principalmente, nuances folhetinescas, presentes, por
exemplo, na temática, na falta de conotação social ou política e no
caráter melodramático do enredo. O folhetinesco também
transparece na tentativa de se criar “ganchos” entre os capítulos,
sendo as reticências o principal artifício empregado para ligar os
fatos, deixando o final em suspenso, criando, assim, uma
expectativa quanto à continuidade da história, como nos seguintes
exemplos:
Talvez o ópio das papoulas orientais lhe não despertasse tão suave enleio,
entrecortado de estranhas emoções...
E as horas passam insensivelmente... (BIANCO FILHO, 2008, p. 43).
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Somente como o decorrer dos anos, quando as responsabilidades lhe
curvam a fronte e a cruenta realidade lhe consome as alegrias, é que seu
coração plange de dor e nos seus olhos transbordam lágrimas pungentes
de saudades e recordações... (BIANCO FILHO, 2008, p. 52).
E Mirko volta jubiloso ao arraial querido... (BIANCO FILHO, 2008,
p. 61).
Mirko volta o animal em galope desmedido e se agasalha no enorme
impermeável de seu pai. Saltando poças e troncos derrubados, por
entre empecilhos sem par, cavalga violentamente a procura de qualquer
abrigo provisório... (BIANCO FILHO, 2008, p. 63).
Ainda sobre o encadeamento dos acontecimentos, vale enfatizar
que, no desenvolvimento do romance moderno, o tempo de aventuras
de tipo grego ainda se manifesta, na forma do destino ou da
providência divina, que podem ser representados por românticos
“benfeitores misteriosos”, cuja personificação na obra é o próprio
Mirko, salvador de Yara; ou “vilões ardilosos”, representados por
Leda e Luciano, que tramam contra o casal de namorados.
Os elementos de encontro, despedida (separação), perda,
buscas, descoberta, reconhecimento, são constitutivos de romances
de várias épocas e de vários tipos, como também de outros gêneros
(épicos, dramáticos, até mesmo líricos). Eles se manifestam quando
o equilíbrio inicial é rompido pelo acaso e restabelecido no final.
No caso de Mirko, o equilíbrio não se dá pelo casamento, mas com
a morte do casal, solução para eles terminarem juntos, caracterizando
um típico final romântico. Sobre isto, Forster afirma: “[...] não fosse
a existência da morte e do casamento, não sei como o romancista
mediano concluiria seus livros” (FORSTER, 2005, p. 115).
Quanto às personagens, é interessante lembrar que o romance
moderno desenvolveu uma complicação crescente na psicologia das
personagens. A revolução que lhe deu origem proporcionou a
mudança de um enredo complicado com personagem simples para
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um enredo simples com personagem complexas. As personagens
em Mirko são, no geral, o que Forster chama de planas, sem
complexidade psicológica, definidas por um único aspecto
enfatizado e reiterado durante todo o decorrer da história, numa
perspectiva marcadamente maniqueísta e folhetinesca. Assim, Mirko
é virtuoso; Yara, pura/bondosa; Rosalina, simples/ingênua; Luciano,
mau caráter. Apenas Leda demonstra certa ambiguidade (sincera/
cínica) e relativa variação de perfil, de mulher emancipada e liberal
para esposa de fazendeiro.
Ao contrário do herói do romance moderno que enfrenta uma
multiplicidade de situações, movido sempre pelo desejo de
mudança, o herói de uma narrativa folhetinesca apresenta uma
postura conservadora, passiva, “de vítima”.
Mirko às vezes se mostra um herói romântico, um cavaleiro
que salva a heroína, que busca defender sua honra e que, sendo
honrado e virtuoso, não pode apresentar-se como um mentiroso;
em outros, lembra um herói clássico, à mercê do destino. De todo
modo, diferente do herói “problemático” de Lukács (2000), que
não se conforma com sua situação e movimenta a trama, tem
iniciativa e toma para si a responsabilidade por seu destino. Esse
poderia ser o arrivista Luciano, se não fosse sua pobre construção
psicológica e seu final folhetinesco.
Os acontecimentos que interferem, determinantemente, na
vida das personagens retardando o desfecho da história são a intriga,
que separa os protagonistas, e a fuga de Mirko da prisão, exatamente
quando o verdadeiro culpado confessa o crime.
Para Candido (1975, p. 127), no romance, a “[...] peripécia
não é um acontecimento qualquer, mas aquele cuja ocorrência pesa,
impondo-se aos personagens, influindo, decisivamente, no seu
destino e no curso da narrativa”. Em um nível mais elaborado de
narrativa “o personagem se revela em parte através do
acontecimento”. Pois, a partir dele
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[...] o autor vai comentando, apontando o significado humano da situação,
desvendando o propósito do personagem, mostrando o seu
amadurecimento ou simplesmente o seu imprevisto. Não se trata disso,
porém na esfera romanesca, onde, por uma inversão de perspectiva, o
personagem é que serve ao acontecimento. Este adquire consistência
própria, impõe-se e incorpora o personagem (CANDIDO, 1975, p.
127).
Mirko, Yara, Rosalina, e até Alexandre (pai de Mirko), são
“levados” pelos acontecimentos, não questionam, nem se
posicionam. Mirko, eventualmente, duvida e questiona, mas não toma
iniciativa, não interfere de forma decisiva na história. Yara e Rosalina,
por serem crédulas, sucumbem às mentiras, tacitamente, sem buscar
a verdade ou retratação. Como não poderia deixar de ser, apenas
os antagonistas, Luciano e Leda, em determinados momentos,
conseguem influenciar o rumo dos acontecimentos.
Deve-se ter em mente que o acontecimento pelo
acontecimento, aliado ideal para a fatalidade, é um expediente muito
utilizado no romance de folhetim como recurso para concatenar
fatos, buscando a coesão da história a partir de um “acaso”. A
maneira como o reconhecimento é construído em Mirko, quase de
forma gratuita, é um exemplo disto.
Considerações finais
No início deste artigo, referimos a influência de Dom Aquino
sobre a constituição do campo literário no início do século XX em
Mato Grosso. Esta influência manifestou-se sob vários aspectos,
desde os formais aos ideológicos, estes, relacionados às suas
convicções quanto ao caráter moralizante da literatura.
O tom moralizante, característico do folhetim, que se verifica
tanto nas ações das personagens, como nas digressões do narrador
de Mirko, é reforçado pela inclusão da temática da religiosidade,
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elemento que percorreu todo o enredo, não só para ilustrar as crenças
populares, como para ressaltar a virtude dos protagonistas e a vileza
dos antagonistas.
Outros traços moralizantes estão presentes na narrativa, como
a discussão de questões relativas à condição da mulher na sociedade
da época, diluída nas passagens referentes a Leda, com seu
comportamento liberal, e a Rosalina, punida por ter “ameaçado” a
instituição da família ao se tornar mãe solteira; a luta do “bem contra
o mal”, metaforizada, inclusive, na dualidade campo x cidade; a
retratação de Leda através do arrependimento sincero e do
casamento com um fazendeiro no final da obra.
Assim, acreditamos ser lícito postular que a tendência
conservadora, observada nos elementos acima, contribuiu para a
consagração de Mirko ao tempo de sua primeira publicação. Quanto
ao “resgate” da obra na atualidade, registramos sua relevância, na
medida em que se trata de um documento fundamental para quem
quiser estudar os primórdios do romance em Mato Grosso.
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DA RECUSA À CUMPLICIDADE:
ANÁLISE DO ESTRANGEIRO
NO CONTO “O CAVALO QUE
BEBIA CERVEJA”, DE
GUIMARÃES ROSA
FROM REJECTION TO
PARTNERSHIP: AN ANALYSIS
OF THE FOREIGNER IN THE
SHORT STORY “O CAVALO QUE
BEBIA CERVEJA”, BY
GUIMARÃES ROSA
Aline Maria Magalhães de Oliveira
(UNESP) 1
RESUMO: Este artigo analisa o conto “O cavalo que bebia
cerveja”, de Guimarães Rosa, com enfoque no estrangeiro,
1
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da UNESP/ Araraquara.
Mestre em Literatura Brasileira e Teoria da Literatura pela UFF/ Niterói. <[email protected]
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mostrando como ele se torna substancial para a narrativa,
influenciando nas escolhas linguísticas, no discurso, no
desenvolvimento dos outros personagens, enfim, em toda
construção narrativa. Além disso, o trabalho procura mostrar
como essa escolha temática revela Rosa como um escritor
transculturador, que se situa entre dois polos contraditórios e
inconciliáveis, entre o centro e periferia, o arcaico e o moderno,
entre o oral e o escrito e procura estabelecer pontes entre culturas
distantes. Acreditamos que o estudo da presença do estrangeiro
na obra rosiana pode ser um importante instrumento de
investigação para uma compreensão renovada de suas narrativas.
PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa. Primeiras estórias.
Estrangeiros. Transculturação narrativa. Cultura.
ABSTRACT: This paper analyzes the short story “O cavalo que
bebia cerveja”, by Guimarães Rosa, focusing on the foreigner,
showing how he becomes substantial in the narrative and how
he influences on the linguistic choices, on the discourse, on the
development of other characters, ultimately on all the narrative
construction. Moreover, this work intends to show how this
thematic choice reveals Rosa as a transcultural agent who is situated between two contradictory and incompatible poles, the
center and the periphery, the archaic and the modern, the spoken
and the written languages and it also aims at establishing bridges
between distant cultures. We believe that the study of the
foreigner’s presence in Guimarães Rosa’s books can be an important investigation tool for a renewed comprehension of his
narratives.
KEYWORDS: Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Foreigners.
Transcultural aspects narrative. Culture.
O conto “O cavalo que bebia cerveja” é o 13º conto a compor
o livro Primeiras estórias, publicado em 1962. Após ser consagrado
romancista com Grande sertão: veredas (1956), Guimarães Rosa
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publica essa coletânea de contos curtos, sintetizados tanto quanto
poemas, que levou o escritor a se autodefinir como contista: “Não
sou romancista; sou narrador de contos críticos” (LORENZ, 1991,
p.70). A condensação dos textos, os títulos enigmáticos - tanto da
coletânea, quanto de cada conto em particular - bem como as
ilustrações que acompanham os contos, convidam o leitor à
decifração de tais enigmas.
As vinte e uma estórias que compõem a coletânea podem
parecer, em uma primeira impressão, narrativas diversas coletadas
e organizadas para compor um livro, mas sem qualquer ligação entre
elas. No entanto, diversos críticos já apontaram a unidade na
diversidade de Primeiras estórias. Katrin Rosenfield afirma que, embora
as narrativas sejam temática e estilisticamente diversas, os contos:
[...] não são uma sequência aleatória, mas um ciclo de ‘exercícios’ no
duplo sentido da palavra: exercícios espirituais ou meditações e exercícios
de virtuosismo que lembram certas composições musicais, cuja finalidade
é treinar a habilidade das mãos. No entanto, em geral, encontramos
embutido nesses exercícios técnicos todo um universo emocional
característico de uma obra acabada ou de uma época espiritual
(ROSENFIELD, 2006, p.152).
Não obstante a diversidade de temas, de ritmos e tons, que
vão do popular ao lírico, as diferentes situações ou problemas
apresentados e até mesmo a diversidade de subgêneros ou variantes
às quais cada narrativa pertence, é possível estabelecer uma
“homogeneidade perfeita” entre as estórias, conforme afirma Paulo
Rónai. Para o crítico, todas as narrativas apresentam um “[...]
inconfundível ar de família, nimbadas do mesmo halo, trescalando
o mesmo perfume. O seu parentesco não se reduz a traços estilísticos:
provém de uma concepção pessoal tanto da vida como da arte”
(RÓNAI, 2005, p.23). Um dos pontos de unidade apontados por
Rónai são os protagonistas das histórias que representam seres
guiados pelo instinto e ainda intocados pela civilização
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racionalizadora e, por isso, estão mais próximos de atingir o surreal,
o mágico, ou o metafísico.
Assim como ocorre em outras obras de Guimarães Rosa, os
personagens de Primeiras estórias são seres de exceção, os excluídos e
marginalizados, “seres empurrados para a grota do mundo, os
humilhados à espera de redenção” (OLIVEIRA, 1985, p. 408). São
crianças cujas palavras não têm valor no mundo dos adultos devido
à sua falta de conhecimento, senis que perderam crédito no que dizem
porque já não raciocinam tão bem devido à avançada idade, e loucos
que vivem no seu mundo à parte, na loucura que os separa do mundo
racional, mas que no universo rosiano ganham voz e valor, pois
para o autor no conto “A terceira margem do rio”: “Ninguém é
doido. Ou então, todos” (ROSA, 1967, p.36).
Walnice Galvão também considera que os personagens
“iluminados, fora-das-convenções”, os “desajustados ou
excepcionais” só inadequadamente poderiam ser considerados
normais. Para a autora: “O grosso da comparsaria é constituída por
excêntricos, no sentido etimológico, ou seja, pessoas que estão fora
da centralidade” (GALVÃO, 2008, p.234). Como seres ex-cêntricos
que estão fora do centro, fora da realidade comum, esses personagens
se constituem sempre como exceções, como seres estranhos e o
estrangeiro talvez seja um dos melhores representantes dessa
excentricidade, já que o sentido etimológico da palavra designa
aquele que vem de fora, aquele que não faz parte da comunidade.
Em geral, os forasteiros também não têm voz, suas palavras
não levam crédito, afinal “a palavra do estrangeiro é uma palavra
nula. Por não ter um passado não tem poder sobre o futuro do
grupo. Ninguém o ouve” (KRISTEVA, 1994, p.27). Contudo, nas
narrativas de Primeiras estórias eles ganham voz e protagonizam
diversas narrativas. A respeito da escolha pelo autor de seres de
exceção para protagonizar suas estórias, Lenira Marques Covizzi
(1978) acredita que os estrangeiros talvez sejam os mais
representativos dessa característica excêntrica:
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A presença de estrangeiros é a própria encarnação dessa característica,
que ocorre de maneira explícita em “O cavalo que bebia cerveja” –
onde o personagem principal é um italiano envolvido em acontecimentos
muito estranhos – e, em todas as outras narrativas de maneira alusiva.
(COVIZZI, 1978, p.65).
O conto “Um moço muito branco” também pode ser
considerado uma história de estrangeiro, pois do moço muito
branco, que aparece e desaparece misteriosamente, só se sabe que
ele veio de alguma terra distante, aparentemente de outro planeta, e
é identificado pela sua característica física muito distinta dos
habitantes locais: a cor da pele muito alva.
Se aceitarmos a palavra estrangeiro também com o sentido de
estranho, aproximação que pode ser feita analisando-se a base
etimológica das duas palavras2, que compreende o forasteiro como
o Outro diferente do Eu, o incompreendido, o sujeito de difícil
aceitação e acolhimento pela comunidade, podemos considerar toda
a gama de personagens estranhos que compõem as Primeiras estórias
um pouco como de estrangeiros. No entanto, nosso foco está no
estrangeiro imigrante, aquele que vem de outro país para habitar as
terras brasileiras e encontra a dificuldade de adaptação e aceitação
da comunidade local.
Do estranhamento à compreensão do estrangeiro
No conto “O cavalo que bebia cer veja” o narradorprotagonista Reivalino conta a sua experiência de estranhamento
diante de um imigrante italiano, Seu Giovânio, que veio para o Brasil
para fugir da gripe espanhola e da Primeira Guerra, e o desenrolar
dessa relação que passará da recusa do Outro à cumplicidade entre
os dois.
Devido ao curioso título do conto e ao clima de suspense
instaurado na narrativa, a atenção do leitor é voltada para o
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esclarecimento do caso do cavalo que o italiano dizia beber cerveja.
No entanto, esse fato passa para um segundo plano, inserido como
mais um dos mistérios sobre a vida do estrangeiro. O que se destaca
na narrativa é o desenrolar da transfor mação gradual dos
sentimentos do narrador em relação ao forasteiro, a mudança do
estranhamento inicial e do preconceito contra o imigrante para uma
cumplicidade e compreensão de tudo o que aquele homem já havia
vivido e de como a guerra o havia transformado: “Tem-se aí outra
história à margem da primeira, de mistério não menos profundo
que o do cavalo bebedor de cerveja” (RÓNAI, 2005, p. 29).
Como a história é narrada em primeira pessoa por um narrador
homodiegético, situado num tempo ulterior ao da história que está
sendo contada, este narrador está em uma posição privilegiada, já
que ele conta uma história encerrada e, portanto, conhece os eventos
em sua totalidade. Isso poderia fazer com que o narrador
manipulasse os eventos para amainar a representação do repúdio e
nojo que inicialmente ele tinha do estrangeiro. No entanto, este
narrador parece estar sempre querendo comprovar sua fidelidade
aos fatos narrados e confirmar a veracidade de sua história e, para
isso, ele procura transcrever as falas de outros personagens, como o
delegado Seo Priscilio, ou ainda tenta retratar o linguajar do italiano
reproduzindo até mesmo a entonação da língua e a maneira como o
estrangeiro pronunciava seu nome errado: “— ‘Irivalíni, pecado que
nós dois não gostemos de cerveja, hem?’” (ROSA, 1967, p. 95);
“— Irivalíni...que esta vida... bisonha. Caspité?’” (ROSA, 1967, p.
96).
A segunda frase do narrador já sintetiza a problemática do
que ele está prestes a contar: “Era um homem estrangeiro” (ROSA,
1967, p.91). O atributo “ser estrangeiro” precede qualquer outra
descrição física ou psicológica, pois esta é a característica mais
importante do personagem para o narrador: o ser estranho, o
exótico, aquele que não pertence ao local, que não possui uma história
conhecida e que traz uma cultura diferente da local. É a
estrangeiridade de Seo Giovânio que conduz o olhar do narrador
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ao contar sua história e é esta característica que será o centro da
narrativa.
A história da chegada do italiano ao vilarejo é contada segundo
a versão da mãe de Reivalino, que disse ao filho que o estrangeiro
teria vindo da Itália no ano da gripe espanhola, ocorrida no período
da Primeira Guerra Mundial, por volta de 1918. Mas o desenrolar
da narrativa vai provar que não foi a gripe espanhola que fez esse
personagem deixar sua terra natal e vir para o Brasil, mas foram os
horrores da Primeira Guerra ( que o fez emigrar). A primeira
evidência está no temor que o forasteiro deixa transparecer, como
alguém que se esconde ou guarda algum segredo: ele vivia numa
chácara isolada, escurecida pelas árvores e vigiada por muitos cães,
além de ter a espingarda sempre pronta: “Essa chácara do homem
ficava meio ocultada, escurecida pelas árvores, que nunca se viu
plantar tamanhas tantas em roda de uma casa” (ROSA, 1967, p.91).
A descrição desse ambiente reflete a identidade de seu dono: isolada,
intrigante e que remete o leitor a um espaço de exílio e de refugiados,
uma sensação de cativeiro ou de privação de liberdade que o italiano
confirma em sua reflexão sobre a vida: “— ‘Irivalini, eco, a vida é
bruta, os homens são cativos... ’” (ROSA, 1967 p.95, grifo nosso).
Outra evidência de que o italiano veio residir no Brasil para
escapar da guerra está no tratamento dado ao seu cachorro: Mussolino.
Seu nome remete ao grande ditador italiano Benito Mussolini, um
dos responsáveis pelo fascismo italiano e que lutou na Primeira
Guerra:
Ele se rodeava de diversos cachorros, graúdos, para vigiarem a chácara.
De um, mesmo não gostasse, a gente via, o bicho em sustos, antipático
— o menos bem tratado; e que fazia, ainda assim, por não se arredar de
ao pé dele, estava, a toda a hora, de desprezo, chamando o endiabrado
do cão: por nome “Mussulino” (ROSA, 1967, p.91).
Pelo excerto, observamos como o dono trata mal o cão
Mussolino em relação aos outros cães: “o menos bem tratado”, “o
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endiabrado do cão” e o narrador claramente diz que era por
desprezo que o patrão lhe o chamava (por) Mussolini, ou como
Reivalino entendia: “Mussolino”. Certamente o cão representa para
o italiano uma rejeição a tudo que o nome de Mussolini representa,
principalmente, a lembrança da guerra e os horrores praticados por
regimes autoritários como o fascismo a que Mussolini esteve ligado.
A diferença de hábitos do estrangeiro é recebida com asco
pelo narrador e pelo povo da região, que espalhavam diversos
rumores sobre seus estranhos hábitos: “Falavam que comia a quanta
imundície, caramujo, até rã, com as braçadas de alfaces, embebidas
num balde de água” (ROSA, 1967, p.91). A singularidade do
estrangeiro é um fator que ao mesmo tempo em que atrai, repele;
ela atrai pela curiosidade da diferença, mas afasta os autóctones que
não aceitam tais hábitos tão estranhos aos seus.
Conforme observa Kristeva, a diferença física e de hábitos
do estrangeiro faz com que ele se destaque entre os demais habitantes.
E essa diferença se revela ao sujeito local como um problema
identitário, uma vez que significa a ruptura com uma banalidade
que é necessária, pois: “é o banal, precisamente, que constitui uma
identidade para os nossos hábitos diários” (KRISTEVA, 1994, p.11),
ou seja, os costumes estrangeiros quebram uma rotina que é
necessária para nossa formação identitária. Quase inevitavelmente,
surge na comunidade um desejo de eliminar aquela diferença para
voltar a conviver apenas com sua própria singularidade.
A segunda barreira que desencadeia a aversão do narrador ao
estrangeiro é a linguística: “Tudo nele me dava raiva. Não aprendia
a referir meu nome direito” (ROSA, 1967, p.91). Ora, sabemos que
o nome é a marca mais evidente da identidade de uma pessoa e sua
história. Não ter seu nome pronunciado corretamente parece destituir
Reivalino de parte de sua identidade, ou colocá-la a prova. Para o
narrador, era uma desfeita o estrangeiro não pronunciar direito o
português: “[...] ‘Cerveja, Irivalíni. É para o cavalo... ’ o que dizia, a
sério, naquela língua de bater ovos” (ROSA, 1967, p.92, grifo nosso).
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Ele se irritava porque o estrangeiro estava em terras brasileiras e
vinha “pronunciar a feia fala” (id.,ibid.).
Porém, quando a situação se inverte, e é Reivalino que
pronuncia e interpreta o falar italiano a seu modo, não há qualquer
julgamento e o estrangeiro aceita sua maneira de interpretar sua
língua: “‘Irivalíni... que esta vida... bisonha. Caspité? ’ – perguntava, em
todo tom de canto. Ele avermelhadamente me olhava. – ‘Cá eu pisco...
’ – respondi” (ROSA, 1967, p.96). Assim, o que nos parece é que no
entender do nativo lhe é permitido interpretar a outra língua como
quiser, pois ele está em seu território.
A barreira linguística é um ponto crítico na relação entre o
nativo e o estrangeiro. Muitas vezes é ela que impossibilita uma
relação de proximidade entre os dois, dificultando um entendimento
das partes e até mesmo levando o estrangeiro e o nativo a optarem
pelo silêncio, pois, segundo Kristeva, no encontro entre duas línguas
a resultante pode ser o silêncio: “O silêncio não lhe é somente
imposto, ele está em você” (KRISTEVA, 1994, p.22). De fato, o
silêncio é uma marca do personagem italiano que é representado
como homem de poucas palavras, pois em toda a narrativa há a
transcrição de apenas dez frases do italiano dirigidas a Reivalino, e
parece que o estrangeiro vivia recluso sem falar com mais ninguém.
E o silêncio do estrangeiro é o responsável por aumentar a
curiosidade local, que fica intrigada ao ver esse forasteiro que não
fala de suas origens, nem de suas raízes, nem o que faz por ali.
Ao longo da narrativa, a distância entre o narrador e o
estrangeiro só aumenta, beirando o ódio, e Reivalino insultava Seo
Giovânio em pensamento: “– Tu espera, porco, para se, mais dia
menos dia, eu não estou bem aí, no haja o que há” (ROSA, 1967,
p.92). O italiano, por sua vez, estimava tanto a mãe de Reivalino
que, quando ela adoeceu, lhe fez a gentileza de oferecer dinheiro
para pagar suas despesas médicas que o protagonista aceitou sem
agradecer, pois atribuiu o gesto a um possível remorso: “Aceitei;
quem é que vive de não? Mas não agradeci. Decerto ele tinha remorso
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de ser estrangeiro e rico” (ROSA, 1967, p.92). O empregado não
via a atitude do patrão como uma caridade, mas como uma obrigação
de alguém que tem remorso, uma atitude defensiva que mostra o
orgulho do sertanejo que precisa aceitar a ajuda de um estrangeiro.
Quando a senhora falece, o italiano paga todas as despesas do enterro
e convida Reivalino a trabalhar para ele.
Reivalino não demonstrava gratidão pelas atitudes do
estrangeiro porque seu poder aquisitivo era mais um motivo de rancor.
A sua mágoa era ver o estrangeiro rico fazer do nativo seu empregado
e ainda ter de vê-lo esbanjar dinheiro comprando o que é da sua terra:
Eu remoía o rancor: de que, um homem desses, cogotudo, panturro,
rouco de catarros, estrangeiro às náuseas – se era justo que possuísse o
dinheiro e estado, vindo comprar terra cristã, sem honrar a pobreza
dos outros, e encomendando dúzias de cerveja, para pronunciar a feia
fala (ROSA, 1967, p. 91-92, grifo nosso).
É uma situação corrente o autóctone enxergar no imigrante o
culpado por sua situação desfavorável, o que em geral não
corresponde à verdade, como afirma Kristeva (1994, p.09):
“Símbolo do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima
romântica de nossa preguiça habitual, nem o intruso responsável
por todos os males da cidade [...]”.
Se no início da narrativa o narrador dizia: “Era um homem
estrangeiro” (ROSA, 1967, p.91), no terceiro parágrafo as diferenças já
se tornaram tão latentes que o homem era “estrangeiro às náuseas”
(ROSA, 1967, p.92) ou seja, causava-lhe repúdio aquele sujeito estranho.
As cervejas que Seo Giovânio regularmente pedia para
Reivalino comprar para o cavalo só faziam aumentar a sua
curiosidade e a do povo quanto a esse homem enigmático, que não
se mostrava a ninguém. O empregado não acreditava que fossem
para o cavalo, mas para o patrão mesmo, que talvez só bebesse
escondido e, mesmo a contragosto, ele trazia as cervejas.
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As autoridades começam a desconfiar da clausura e da vida
velada do italiano e resolvem investigar, interrogando o empregado,
se acaso o patrão não tinha marcas de ter fugido de uma prisão. O
narrador não se envergonha de contar que aceitou dinheiro dos
funcionários do Consulado, vindos da capital, para dizer tudo o
que sabia do patrão. Delatou-o apenas por vingança: “Mas contei
tudo ou tanto, por vingança, com muito caso” (ROSA, 1967, p.94).
Para acabar com as desconfianças das autoridades e provar
que o cavalo bebia mesmo as cervejas, Seo Giovânio despeja o
conteúdo das garrafas numa gamela e o cavalo bebe muito afoito.
Mas, não possuir uma história, uma família, uma origem, destitui
o estrangeiro de qualquer crédito diante de uma comunidade e
sua palavra não tem valor. A partir da sugestão de Reivalino,
que precisava matar sua curiosidade e descobrir o que estava
trancado nos quartos, o investigador resolve revistar toda a casa
e descobre um grande cavalo empalhado dentro de um dos
quartos do casarão: “[...] – um cavalão branco empalhado. Tão
perfeito, a cara quadrada, que nem um de brinquedo, de menino;
reclaro, branquinho, limpo, crinado e ancudo, alto feito um de
igreja – cavalo de São Jorge” (ROSA, 1967, p.95). O narrador
compara o cavalo empalhado com o cavalo de São Jorge, que é
um dos santos de maior devoção popular, e que figura muitas
histórias orais. Esta comparação, por um lado, traz ao texto a
marca da tradição das narrativas orais e, por outro, aponta para
o início de uma sincronia entre a cultura estrangeira e a local,
visto que a personagem autóctone adapta a sua realidade e
tradição cultural a algo que vem de fora, remetendo ao princípio
de plasticidade cultural3 que o escritor transculturado utiliza nessa
narrativa, visto que a literatura de transculturação utiliza a
plasticidade cultural para transitar por culturas diferentes,
estabelecendo um diálogo entre culturas em conflito, livre de
hierarquias entre ambas, discriminações ou xenofobias. Essa
sincronia entre as culturas começa a apontar para um possível
diálogo entre as diferenças.
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Nesse ponto da história, o narrador começa a compreender
melhor a situação de exilado do patrão e uma ponta de
compadecimento aparece em Reivalino: “Tive a vontade contar a
ele o que por detrás se estava passando. [...] Coisa terrível assistir
aquele homem, no não dizer de suas lágrimas” (ROSA, 1967, p.95).
Depois, o patrão o convida a comer com ele, mas apesar de estar
ocorrendo uma proximidade entre os dois, ele ainda tinha nojo
daquele sujeito: “Queria que eu comesse com ele, mas o nariz dele
pingava, o ranho daquele monco, fungando, em mal assôo, e ele
fedia a charuto, por todo lado” (ROSA, 1967, p.95). Não houve
uma diminuição da diferença e do nojo que Reivalino sentia por
esse estranho; mesmo assim, ele consegue, aos poucos, aceitar sua
diferença e encontrar nela alguma semelhança. Talvez na solidão
daquele homem ele tenha visto um espelho de sua própria
personalidade.
O narrador não apenas vê o estrangeiro como seu semelhante,
mas se coloca em seu lugar, e não só “no sentido humanista, de
nossa aptidão em aceitar o outro, mas de estar em seu lugar – o que
equivale a pensar sobre si e a se fazer outro para si mesmo”
(KRISTEVA, 1994, p.20), mas é fazendo-se semelhante ao
estrangeiro que o empregado consegue compreender e aceitar o
patrão. Então, ele procura as autoridades para impedi-las de voltar
à casa do patrão e afirma: “Se tornassem a vir, eu corria com eles,
despauterava, escaramuçava – alto aí! Isto aqui é Brasil, eles também
eram estrangeiros” (ROSA, 1967, p.95, grifo nosso). Reivalino
reconhece que tanto ele quanto os outros membros da comunidade
poderiam ser considerados tão estrangeiros quanto o italiano, afinal
“Isto aqui é Brasil” um país miscigenado, formado pelo encontro
de diversas etnias e culturas.
A reflexão de Reivalino nos leva a compreender melhor a
afirmação de Julia Kristeva (1994, p.09) que diz “[...] o estrangeiro
começa quando surge a consciência de minha diferença e termina
quando nos reconhecemos todos estrangeiros”. O conflito cultural
só é interrompido quando as diferenças são aceitas – e não abolidas
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– e quando todos se reconhecem na estranheza, afinal todos são um
poucos estranhos e o que nos faz lembrar disto é a estranheza do
Outro.
Pouco depois é revelado o segredo do senhor Giovânio. O
que ele escondia em um dos quartos do casarão era o irmão
moribundo que teve a face desfigurada por um tiro na guerra e, por
isso, se reservava de qualquer contato com as pessoas. O irmão só é
revelado quando Reivalino é chamado para tratar de seu enterro.
Após o enterro, o empregado decide ir embora daquele lugar
e da tristeza que pairou por ali após a morte do italiano. A pedido
do patrão, antes de partir, Reivalino bebe com ele as cervejas que
haviam restado e leva consigo o cavalo bebedor de cerveja. Tempos
depois de sua partida, fica sabendo do falecimento de Seo Giovânio
que deixou todos seus bens ao empregado fiel. Contudo, Reivalino
não consegue mais viver naquele lugar, vende a propriedade herdada
e não volta nunca mais.
O narrador demonstra toda sua cumplicidade ao patrão
bebendo pela rua todas as garrafas de cerveja que restaram, para
que as pessoas pensassem que era ele mesmo quem consumia a
bebida, e com isso reservando a imagem do italiano falecido.
Ao final da narrativa o narrador confessa: “Eu, Reivalino
Belarmino, capisquei” (ROSA, 1967, p.97, grifo nosso). O verbo
criado a partir da expressão italiana: Capisco mostra que o contato
com a cultura do estrangeiro deixou marcas profundas em Reivalino,
mudou sua visão de mundo e sua concepção do que é ser estrangeiro
e ainda deixou as marcas do contato com a língua italiana. Capisco
em italiano quer dizer “compreendo”, “entendo”. Assim, a frase
supracitada significa que o narrador finalmente compreendeu o
estrangeiro e aprendeu a lidar com a diferença.
Entretanto, para demonstrar o resultado do contato entre as
culturas, o autor poderia ter optado por construir a frase utilizando
o verbo em português: “compreendi” e esse sentido provavelmente
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permaneceria claro. Contudo, a escolha do neologismo criado a
partir da palavra italiana consegue demonstrar que o narrador
aprendeu muito mais do que simplesmente o significado daquela
palavra. Lembramos aqui que o aprendizado se deu aos poucos,
pois anteriormente ele dizia “Cá eu pisco...”, e o narrador transcreve
exatamente o que ele entendia ao ouvir a expressão. O neologismo
revela que ele assimilou a cultura estrangeira e, como um
antropófago, deglutiu-a e inseriu-a em sua gramática, transformandoa em um verbo no português.
O que Reivalino faz é o que Guimarães Rosa chamaria de
“traduzadaptar” (ROSA, 2003, p.39), isto é, traduzir o falar do
italiano adaptando à sua língua. Esse recurso se parece muito com
aquele utilizado pelo escritor para criar neologismos e produzir
novos significados, contudo, sem perder suas origens: “Ainda que
seu referencial básico seja a língua portuguesa e suas variantes
brasileiras empregadas nos usos linguísticos do sertão mineiro,
ocorre, na ‘língua rosiana’, uma visível hibridização entre o português
e outros idiomas” (FANTINI, 2003, p.61). Essa “hibridização
idiomática” significa para Marli Fantini “microprocessos de
‘conversação’ entre línguas” que reproduz recursivamente o processo
de transculturação tanto no plano lexical quanto no sintático.
A transculturação narrativa de Guimarães Rosa
Podemos nos arriscar a dizer que esse conto é uma síntese do
processo de transculturação narrativa realizado por Guimarães Rosa,
que, através do processo de plasticidade cultural, consegue transitar
pela cultura italiana e a cultura sertaneja e estabelecer um diálogo
entre as alteridades em conflito, sem, contudo, apagar suas diferenças.
Foi o crítico uruguaio Angel Rama que denominou
transculturadores aqueles escritores que desafiam a cultura estática,
presa à tradição local, e produzem novos significados, mas sem perder
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suas origens. Os escritores que produzem essa literatura de
transculturação são criadores literários que “constroem pontes
indispensáveis para resgatar as culturas regionais” (RAMA, 2001,
p.213), capazes de rever os conteúdos culturais regionais e revitalizar
as tradições, adequando as contribuições artísticas vindas com a
modernidade à cultura local. O trabalho de Guimarães Rosa representa
essa proposta revitalizadora, pois o escritor possui como cerne de
sua criação artística um minucioso processo de renovação da
linguagem, de recriação do vocabulário remontando às suas origens,
de restauração da oralidade na narrativa escrita e soube construir, de
maneira original, as pontes necessárias entre o regional e o universal.
Deste modo, estabelecendo pontes entre as culturas do
estrangeiro e do sertanejo, unindo o regional com o universal e
mediando culturas em conflito sem negar o jogo das diferenças, mas
respeitando e valorizando cada uma delas, é que Guimarães Rosa
consegue falar do estrangeiro sem estereotipá-lo, como muitas vezes
acontece ao tratar dessa temática. Caso o escritor negasse o jogo
das diferenças, ele poderia ter caído no perigo da estereotipação da
personagem. Segundo Tonico Amâncio: “O pensamento
estereotipado se define aqui por ser uma imagem ou opinião aceita
sem reflexão por uma pessoa ou um grupo e exprime um julgamento
simplificado, não verificável e às vezes falso sobre tal grupo ou sobre
algum acontecimento” (AMÂNCIO, 2000, p.137). O pensamento
estereotipado não procura explorar a singularidade do indivíduo,
pois apresenta um discurso preestabelecido generalizante que é
reproduzido sem reflexão. De acordo com Homi Bhabha, o
estereótipo é uma forma limitada de alteridade e é importante
questionar as formas de representação dessa alteridade, que, em geral,
é um discurso preconcebido que é repetido até se fixar como
verdade. Para ele o estereótipo é uma simplificação “porque é uma
forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença
(que a negação através do Outro permite), constitui um problema
para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas
e sociais” (BHABHA, 1998, p. 117).
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Ao colocar em cena um italiano no sertão mineiro, o escritor
poderia ter feito um estereótipo do estrangeiro baseado no discurso
popular generalizante que representa uma forma fixa e simplificada
de um povo. No entanto, ele compõe uma personagem singular,
densa emocionalmente, mas que se revela com sutileza, por meio de
poucas frases que demonstram sentimentos intensos, reflexões
filosóficas sobre a vida, e cuja complexidade psicológica Guimarães
Rosa transmite com astúcia, num texto condensado.
Mesmo sua nacionalidade, que ficaria evidente num discurso
estereotipado, em nenhum momento é explicitada na narração. Só
descobrimos que o personagem é um italiano por traços sutilmente
plantados no discurso, como seu nome “Seo Giovânio”
(provavelmente Giovanni), pelo nome de seu irmão: “Josepe”
(possivelmente Giuseppe) e pelo nome do cachorro: “Mussolino”,
que faz referência ao ditador fascista italiano Mussolini, além, é claro,
das dez frases transcritas pelo narrador, com a reprodução de seu
modo de falar e com algumas palavras italianas.
Se compararmos este personagem a outros personagens
italianos da literatura brasileira, notaremos a diferença que estamos
tentando demonstrar na maneira delicada como Guimarães Rosa
compõe a personagem.
Alcântara Machado apresenta em Brás, Bexiga e Barra Funda
(1927) uma galeria de tipos italianos ou ítalo-paulistanos,
predominantemente caricaturais, sem preocupar-se com um
aprofundamento psicológico de seus personagens, pois seu interesse
está em traçar um perfil do imigrante e retratar as transformações
sociais que ocorreram após chegada dos italianos em São Paulo. Em
Laranja da China (1928), o autor dedica 10 capítulos à Itália, no entanto,
com personagens extremamente caricaturais e estereotipados.
Mário de Andrade divide sua opinião sobre os imigrantes
italianos, que vai desde a crítica aos imigrantes aburguesados,
caracterizada no gigante comedor de gente Venceslau Pietro Pietra
de Macunaíma (1928), que é o estrangeiro que veio usurpar a pedra
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da sorte e representa a figura do novo-rico imigrante, ao olhar sensível
às dificuldades por que passaram muitos imigrantes, como é o caso
dos jovens italianos pobres que tentam buscar um futuro melhor na
cidade de São Paulo do início do século XX, conforme Carlos
Capela (2001, p.151) observa em vários contos do escritor.
Oswald de Andrade também cai no uso do esterótipo
arraigado em Marco Zero, romance “mural” publicado em dois
volumes, I – A revolução melancólica (1943) e II – Chão (1945), no qual
o autor busca traçar um panorama da sociedade paulista da década
de 1930. Dentre os personagens representativos de grupos sociais
distintos, figuram muitos imigrantes, de origens diversas. Das relações
sociais descritas, sobressaem, muitas vezes, conflitos e tensões entre
os personagens imigrantes e os brasileiros, que se refletem no
processo histórico que está sendo retratado. Apesar de aceitos como
integrantes do complexo social brasileiro, esses imigrantes não
deixam de ser retratados com estereótipos bastante caricaturais. A
esse respeito, Antonio Candido (1997, p.82) afirma que o romance
“derrapa num pitoresco bastante constrangedor” que resulta um
enfoque da sociedade de modo bastante caricatural.
Esses autores marcam as diferenças culturais principalmente
através da linguagem, utilizando uma perspectiva dualista que
procura transcrever o falar caipira, símbolo nacionalista, em
contraste ao falar “macarrônico” dos ítalo-paulistanos,
representativo da ameaça estrangeira à nação.
A linguagem de Guimarães Rosa não procura marcar as
diferenças, mas a correlação das culturas que se tocam, se misturam
e se transformam. Isso acontece porque o escritor transculturado
está integrado à sua comunidade linguística e fala a partir dela, de
modo que ele não procura mais “imitar de fora uma fala regional,
mas sim elaborá-la de dentro dela” (RAMA, 2001, p. 220),
aproveitando todas as possibilidades linguísticas para construir uma
língua especificamente literária. Além disso, ao invés de contrapor a
língua estrangeira com o português, a antropofagia de Rosa consiste
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no uso da plasticidade cultural para aproveitar as virtudes de outra
língua a fim de enriquecer a própria, recriando a linguagem e
produzindo algo completamente novo.
O conto aqui estudado é emblemático para mostrar como
Guimarães Rosa atua como um transculturador e um mediador de
conflitos, uma vez que pontes entre as culturas são estabelecidas ao
longo da narrativa, assim como ele faz em toda sua obra uma
intercessão entre o universal e o regional. Essa mediação revela um
escritor apaixonado pela diferença e preocupado em aproximar os
povos, não pela homogeneização de traços, mas pela valorização
das particularidades de cada língua e cultura.
A narrativa mostra que, em meio à diferença, sempre é possível
encontrar traços universais comuns. A aproximação entre os opostos
pode ser feita tanto por meio de semelhanças entre as culturas quanto
por meio da linguagem, através de processos como o de aglutinação,
que une dois idiomas distintos e forma uma nova palavra, ou de
aproximação sonora, que imita no português a sonoridade da língua
estrangeira, ou mesmo dos inúmeros vocábulos que tomamos de
empréstimo de outras línguas.
No conto “O cavalo que bebia cerveja” a aceitação e
compreensão do Outro só ocorrem quando todos se reconhecem
estrangeiros, o que nos remete à maneira como a psicanálise entende
a relação entre o estrangeiro e o autóctone, ou entre o Eu e o Outro.
Para Freud (1996), o que incomoda o Eu no encontro com o estranho
não é sua estranheidade, mas, ao contrário, é o familiar presente no
insólito que causa a angústia. Já a psicanalista Julia Kristeva acredita
que se a estranheza está em nós mesmos, então podemos dizer que
o estrangeiro também está em nós, somos todos um pouco
estrangeiros: “Se sou estrangeiro, não existem estrangeiros”
(KRISTEVA, 1994, p.201). Na narrativa aqui analisada, Reivalino
se dá conta disso a partir da reflexão sobre a heterogeneidade cultural
e étnica que formou o Brasil, na miscigenação que ocorreu entre os
índios e os portugueses, e, posteriormente, entre os demais
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imigrantes, de onde ele conclui que todo brasileiro pode se considerar
um pouco estrangeiro.
Assim, acreditamos ter mostrado que apesar de o estrangeiro
aparecer pouco na narrativa, com poucas falas do personagem
italiano, e apesar de ser o conto narrado por outro personagem,
Reivalino, é em torno do estrangeiro que a história é construída, é
ele o tema central da narrativa, em torno do qual todas as categorias
da narrativa foram cuidadosamente construídas. Esse conto revela,
também, um modo de ver o mundo sobre a ótica da universalidade
rosiana.
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Notas
2
A proximidade entre estranho e estrangeiro começa na base etimológica das palavras. Ambas
possuem a mesma raiz latina extraneus, que quer dizer “o que vem de fora” ou o que é “exterior”.
Mas, de acordo com Bueno (1986, p.1277), no caso do vocábulo “estrangeiro” a formação
imediata foi operada no domínio provençal do latim extranicus: o sufixo icus palatiza-se em
provençal antigo em tch que passa ao francês como Ge e também ao português Ge, como o que
ocorre na evolução da palavra “viagem”: viaticus/ viathe /viage/ viagem. Do mesmo modo, de
extranicus/ extrantche/ extrange ao qual se acrescentou em português o sufixo – eiro: estrange +
eiro – estrangeiro.
3
Plasticidade cultural é o nome dado pelo crítico uruguaio Angel Rama para designar o processo
de integrar novas estruturas formais sem se afastar de suas origens ou recusar suas próprias
tradições.
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EXERCÍCIOS DE IMAGINAR –
UMA LEITURA DE
EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA
DE MANOEL DE BARROS
EXERCISES TO IMAGINE –
A READING ABOUT
EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA
BY MANOEL DE BARROS
Carolina Tito Camarço
(UNEMAT)1
Elisabeth Battista
(UNEMAT)2
RESUMO: A partir do momento em que a infância passa a ser
vista como uma construção social, a criança passa a receber bens
1
Mestre em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT.
Email: [email protected]
2
Pós-doutora pela Universidade de Lisboa – UL. Doutorado e Mestrado em Letras/Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela Universidade de São Paulo-USP. Docente
no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários-PPGEL, da Universidade do Estado de
Mato Grosso-UNEMAT. e-mail: [email protected]
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culturais específicos, entre eles uma literatura própria. Neste
sentido, o objetivo deste trabalho é apresentar uma leitura de
Exercício de ser criança (1999), de Manoel de Barros, seu primeiro
livro infantil/juvenil. Barros retoma algumas características
recorrentes na sua obra poética: as peraltagens, o ser-poeta,
conceitos poéticos sobre a matéria da poesia, a atitude de recordar
a infância, a consciência do faz-de-conta das brincadeiras, a busca
do anti-pragmatismo da poesia.
PALAVRAS-CHAVE: Manoel de Barros. Literatura infantil/
juvenil. Poesia.
ABSTRACT: From the time when the child is seen as a social
construction, the children receive specific cultural goods, including
a literature of its own. In this direction, the goal of this work is
to present a reading about Exercícios de Ser
Criança (1999), Manoel de Barros,his first book for children /
youth. Barros takes certain recurrent features in his
poetry: the mischief, the be-poet, poetic conceptsabout the poetry subject, the attitude of remembering childhood, awareness
of make-believe of play, the pursuit of anti-pragmatismpoetry.
KEYWORDS: Manoel de Barros. Literature for children /
Youth. Poetry.
As produções poéticas infantis, até meados da década de 60,
eram caracterizadas pelo conservadorismo e, compromissadas com
a pedagogia da época, tratavam de temas como exaltação à pátria e
ensinamento de valores morais. Já entre as décadas de 60 e 70 buscouse a autenticidade infantil na poesia. Passou a respeitar também no
texto destinado à criança a natureza do texto, isto é, um produto
artístico, literário, e uma adequação às faixas etárias, ainda que
segundo concepção do próprio autor.
Desta forma, a poesia infantil brasileira teria encontrado seu
caminho, quando as produções passaram a valorizar o mundo da
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criança, seu cotidiano, suas brincadeiras. Poetas como Vinícius de
Moraes, José Paulo Paes, Henriqueta Lisboa e o próprio Manoel de
Barros possuem como característica comum o manejo com a língua,
utilizam a própria linguagem como matéria para suas produções.
Se, segundo Bosi (2000, p.163) “a poesia tem o poder de
reconhecer sentidos da natureza íntima das coisas e dos seres”, na
literatura destinada ao público infantil, esse seria, também, o
horizonte perseguido: o poeta seria esse que proporcionaria à criança
esses sentidos.
Trabalhando prioritariamente com a linguagem, o apelo
melodioso do som das palavras, conforme aduz Bosi, contribui
para a sedução do leitor nascente e para construção do imaginário
e da imaginação, pois uma das características da aproximação
da criança com o discurso poético são o discurso e pensamento
“livres”, é o olhar da criança para o mundo, pois tanto o discurso
como a criança compartilham o uso da imagem. Bosi (2000, p.
184) afirma que “a arte resiste porque a percepção animista ainda
é, ao menos para a infância e, em outro nível, para o poeta, uma
fonte de conhecimento.”
Em relação à poesia infantil Turchi (2004, p. 43) afirma que
a mesma:
[...] desprende-se de um imaginário condicionador e alcança um
imaginário libertador, levando em consideração a alteridade, a voz da
criança e a diversidade cultural, seja no poema que se realiza de maneira
mais lírica ou mais lúdica; no poema narrativo que é a história contada
em versos com rima e ritmo; ou na prosa poética que, sem estar presa
ao verso, se constrói a partir de imagens poéticas.
É nesse contexto que se situa Manuel de Barros. Regina
Zilberman, em A literatura infantil brasileira, ao traçar uma trajetória
da produção poética infantil, desde a figura que ela considera de
certa forma o iniciador dela no Brasil, e passando pelos que se
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sobressaíram no século passado, finaliza citando Manoel de Barros,
apontando-o como “um dos mais importantes poetas nacionais,
nesse começo de milênio” (ZILBERMAN, 2005, 128).
Este trabalho tem por objetivo fazer uma leitura de Exercício
de ser criança (1999) seu primeiro livro infantil/juvenil, que recebeu
vários prêmios: “O melhor da literatura infantil” da ABL- Academia
Brasileira de Letras; “O melhor livro de poesia para criança” da
FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e o Prêmio
Jabuti na categoria “Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil”, todos
em 2000.
Com relação à dimensão expressiva do texto, os de Barros
são permeados de metáforas, de imagens que exigem do leitor um
desprendimento das regras, de normas consagradas pelo uso,
convidando-o a abandonar a lógica do cotidiano, do usual, do
pragmático e se transportar para um mundo fantástico, sui generis.
Por isso, Isaac Newton Ramos (2008, p.187) assim define o seu estilo:
“rebeldias e processos irreverentes de construção poética constituem
a tônica dos livros publicados por Manoel de Barros”. Em seus
versos há pouca pontuação, quase não utiliza vírgulas, preferindo o
ponto final e as reticências; sempre presentes também os travessões,
parênteses, interrogações e exclamações, não há rimas em seus versos.
Conforme afirma Castrillon-Mendes (2009, p.49), sua poesia “é
marcada por elementos gráfico-visuais do tipo hífen, numeração
desconexa, parênteses, sinais de pontuação e a livre ocupação do
espaço na folha em branco com períodos curtos [...]”
Já nos títulos dos livros se verifica a orientação poética dos
textos. Mirian Garcia (2006, p.83.) afirma que “é um processo
importante quando são estudados os poemas de Manoel de Barros.
Os títulos de suas obras normalmente são expressões
semanticamente tão significativas quanto os poemas que contêm”.
Tendo em vista que os títulos normalmente são expressões –
denominadores-síntese do conteúdo condensado dos poemas, estes
podem, assim, ser considerados como expressões expandidas dos
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mesmos conteúdos. Isto é, uma relação metalinguística de
denominação e definição.
Em Exercícios de ser criança, Barros retoma algumas
características recorrentes na sua obra poética, tanto para adultos
como também para o público infantil: as peraltagens, o ser-poeta,
conceitos poéticos sobre a matéria da poesia, a atitude de recordar
a infância, a consciência do faz-de-conta, das brincadeiras, a busca
do anti-pragmatismo da poesia.
O título da obra indicia que Barros trata do que ele afirma
serem “exercícios” característicos da criança. Segundo Ferreira
(1986, p.209) a palavra exercício significa: “1. Ato de exercer, prática,
ou uso a fim de desenvolver ou melhorar uma capacidade ou
habilidade”. Neste sentido, Barros não utiliza “Exercícios de
criança”, em que se entenderia tratar-se de atividades próprias,
características de uma determinada faixa etária. Compõe a expressão:
“Exercícios de ser criança”, enfatizando, desta forma, a essência
fundamental dessa faixa etária. Embora o leitor (ideal, pressuposto),
a criança, deva saber exatamente as atividades e postura a que se
refere o título, o recurso linguístico provoca uma aproximação com
o leitor e cria um perfil identitário, abrindo a possibilidade de que
outras pessoas que não se enquadrem nessa qualificação possam da
mesma maneira assumir essa essência e praticá-la.
O livro é composto por três histórias. Na primeira, sem título,
Barros explora as perguntas que seriam típicas da criança, a que
muitas vezes os adultos não têm respostas: “-E se o avião tropicar
num passarinho?” (BARROS, 1999, s/p). Na segunda, “O menino
que carregava água na peneira”, Barros trata do fazer poético: “Com
o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água
na peneira” (BARROS, 1999, s/p). E a terceira, “A menina avoada”,
gira em torno do tema da imaginação infantil.
Percebe-se que, nessa sequência, Barros, após narrar “sua”
experiência de fantasia – “O menino que carregava água na peneira”
- deixa espaço para a apresentação das experiências de outras
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crianças, relembrando as brincadeiras de infância. As histórias se
ampliam e complementam uma às outras, principalmente as
significações poéticas das ações do menino. Pode-se entender que
as três histórias apresentam como tema comum: poder criativo e
imaginativo da criança.
Wanêssa Cruz (2009) destaca que a infância é um tema sempre
presente nas obras de Manoel de Barros e está quase sempre ligada
ao fazer poético, tendo a infância como momento em que a
criatividade e a liberdade manifestam-se de maneira muito explícita.
E esta condição infantil possibilita um clima de total liberdade de
pensamento durante a construção de sua poesia.
As duas últimas histórias de aproximam, ambas têm como
espaço o meio rural, local de descobertas a respeito da dimensão
do fazer poético a partir de brincadeiras e experiências com
elementos do cotidiano.
“O menino que carregava água na peneira” e “A menina
avoada” estão intrinsecamente relacionados: o primeiro coloca a
poética do fazer, do ser poético, e o segundo é a pratica desse fazer.
Tanto que os dois textos estão precedidos por uma página que
funciona como uma apresentação; não leva título - o que é muito
comum na produção de Barros - e pode ser considerado como um
prólogo, um prólogo metapoético, o qual reflete a respeito da
matéria da poesia, a aproximação do pensamento infantil com a
dimensão poética de expressão/significação.
Este texto é uma pequena narrativa, centrada no diálogo entre
os pais e um garoto, assim denominados: menino, pai e mãe. Ou
seja, são apresentados em suas funções sociais, temáticas, de forma
genérica. Um diálogo entre criança e adultos no qual se pode conferir
uma relação de poder, em que os papéis fundamentais estão
naturalmente dados: os pais, destinadores-doadores de saber, e filho,
destinatário desse saber: “No aeroporto o menino perguntou:/ - E
se o avião tropicar num passarinho?”
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O cenário é um aeroporto, ou seja, um cenário civilizado,
tecnicamente avançado, em que está implícito o universo próprio:
aviões que decolam e aterrissam. Mas a pergunta que inicia a narrativa
surpreende: o menino não se interessa pelo avião, na sua potência
tecnológica, mas remete a um ser que está no mesmo paradigma:
ambos voam: passarinho, ou seja, é o elemento natural que ocupa o
pensamento do menino. A pergunta remete ao universo infantil, tal
que o poeta escolha um termo do que seria uma “norma infantil”:
“tropicar”, em lugar de “tropeçar”. Aqui se delineia a linha de força
do texto: os dois mundos, as duas visões que se defrontam: a do
adulto, prático e utilitário, representado pelo avião, e o da criança,
representado pelo passarinho, ambos do mesmo paradigma: do voar.
“O pai ficou torto e não respondeu” (BARROS, 1999, s/p).
O pai, diante da pergunta do filho, talvez absurda para o olhar do
adulto, pautado apenas pelo real e concreto, sem ter uma resposta
se cala: ou seja, o doador de saber não sabe. Ricardo Rodrigues
(2006, p.91) afirma que “só o silêncio tem força de se mostrar para
evidenciar a fraqueza da razão. [...] A figura paterna, como em outros
de seus poemas, pode ser lida como metáfora da razão, da certeza e
da segurança dos conceitos”.
Mas o menino não se sente constrangido em sua curiosidade,
insiste no seu questionamento, pois para ele um avião tropeçar em um
passarinho não é absurdo, é algo possível de acontecer, é real, por isso,
preocupante, pois sua atenção está focada nas ações e comportamentos
visíveis a ele e não na lógica da sociedade, o que interessa é sua lógica
própria, peculiar: “O menino perguntou de novo:/- E se o avião tropicar
num/ passarinho triste?” (BARROS, 1999, s/p).
Se o pai que normalmente encarna o saber da autoridade, do
saber instituído, do saber prático, o princípio da realidade, enfim, a
mãe, mais sensível à curiosidade do filho, encarna o princípio do
prazer, por isso se (ao menino e a si mesma) responde com duas
perguntas: “A mãe teve ternuras e pensou:/Será que os absurdos
não são as maiores/virtudes da poesia?/Será que os despropósitos
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não são mais/carregados de poesia do que o bom senso?” (BARROS,
1999, s/p).
E se é a mãe – princípio do prazer – que chega a essa
formulação, o pai acaba se tornando beneficiário dessa descoberta
feita pela mulher: “Ao sair do sufoco o pai refletiu:/Com certeza, a
liberdade e a poesia a gente/aprende com as crianças./E ficou sendo”
(BARROS, 1999, s/p). A expressão “sufoco” representa o
incômodo que o questionamento do filho causa ao pai, no modo, já
estabelecido, de pensar do adulto. Na conclusão do pai, procede-se
a uma aproximação, em que a infância se assemelha à maneira do
fazer poético, ambos imunes às limitações propostas pela realidade.
Desta forma, cria-se um universo imprescindível à obra de Barros:
poesia, criança e liberdade, pontos principais de todo o trabalho
desenvolvido no interior da linguagem. E o pai conclui: o
destinador-doador de conhecimento não é o adulto, mas a criança.
A questão da liberdade é reforçada durante toda a narrativa
pelos elementos relacionados ao ato de voar: aeroporto, avião,
passarinho. Mirian Garcia (2006, p.66) afirma que “O campo
semântico ao qual estes elementos pertencem é frequentemente
associados ao tema da liberdade”.
Este prólogo reflete a questão do estranhamento que a
imaginação/questionamento da criança causa ao adulto, destaca a
ideia-chave que será desenvolvida nos dois textos seguintes: a
aproximação da infância com a poesia e a liberdade, o que caracteriza
estas duas dimensões e que é potencializada neste contato.
Mirian Garcia (2006) observa que a infância em Barros não é
apenas figurativa, mas representa uma dimensão de significação e
ressignificação do mundo e do ser humano, pois transcende a própria
condição cronológica e permanece atuante na sensibilidade de
Manoel de Barros. Desta forma, reporta-se ele à infância não como
vivência passada e finita, mas como uma dimensão subjetiva que
acompanha o adulto em toda a sua existência.
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Em “O menino que carregava água na peneira”, Barros trata
do fazer poético, do ser poético, tem função, portanto,
metalinguístico, o qual mostra a matéria-prima para o texto que são
o que denomina: despropósitos.
O título, “O menino que carregava água na peneira”, apresentase como uma construção típica de Barros, através do senso do
inusitado, do impossível, do caráter lúdico, do maravilhoso,
representa as possibilidades do contato com a poesia. O título
explora uma expressão popular, em regiões rurais, em que significa:
“fazer algo muito difícil”.
A linguagem utilizada pelo narrador aproxima-se do falar simples,
desta forma, percebe-se uma aproximação com seu leitor-ideal.
O texto se inicia com o narrador dizendo que a história que
pretende contar é a história de um livro sobre águas e meninos.
Cabe lembrar aqui que muitos dos poemas de Barros tratam das
mesmas figuras ou temas.
O narrador conclui: “Tenho um livro sobre águas e meninos./
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira”.
(BARROS, 1999, s/p). A opção do narrador pela história do
“menino que carregava água na peneira” insinua as possibilidades
das relações entre ambos, pois esta água, especificamente, não é a
da utilidade de ordem nenhuma, ela não se bebe, não rega plantas,
não se banha, somente é carregada na peneira pelo menino.
Este narrador aparece como um sujeito em junção com um
objeto, isto é, de posse de um objeto: um livro; e é marcado também
pelas seguintes modalizações: é um sujeito dotado de querer (possui
o livro) e saber (ler livros). Por isso, se reconhece como qualificado
para apreciar o livro, reconhece o valor do livro e, neste sentido,
afirma: “Gostei mais…”. Além dessas marcas, o narrador não possui
outras, como gênero e/ou idade, então, qualquer pessoa pode se
colocar ao lado dele, sem nenhum tipo de restrição que determine a
perspectiva a partir da qual a leitura deva ser feita.
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A narrativa possui dois personagens: o menino e sua mãe. Esta
é apresentada como uma personagem cheia de ternura e carinho
para com o filho. A mãe é uma personagem importante na narrativa,
pois ela compreende as atitudes poéticas do filho, o mundo de sonho
e imaginação no qual o menino está mergulhado e até tenta
interpretar as atitudes do filho, comunica um saber, com imagens
metafóricas, reafirmando e apoiando, desta forma, as aventuras
imaginativas do menino:
A mãe disse que carregar água na peneira/ Era o mesmo que roubar
um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos./ A mãe
disse que era o mesmo que/catar espinhos na água/O mesmo que criar
peixes no bolso (BARROS, 1999, s/p).
Esta rica composição de metáforas explode em várias imagens
que muitas vezes não são tão claras ao leitor e, desta forma, exige
do leitor um desprendimentos das regras.
A personagem mãe, a partir da primeira variante: carregar
água na peneira, vai apresentar outras variantes da mesma relação
estabelecida entre menino+água+ peneira:
1- Roubar um vento e sair correndo;
2- Catar espinhos na água;
3- Criar peixes no bolso.
Pode-se concluir, a partir da estrutura semântico-sintática das
três variantes, que o mesmo sujeito humano, infantil, é o sujeito do
fazer: ele rouba e leva, ele cata, ele cria. E o objeto desses fazeres
(ações) são: vento, água, peixe, neste caso, elementos de um mesmo
paradigma, ou seja, a natureza.
O menino através das ações de “[...]roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos. [...] criar peixes no
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bolso”, mostra uma relação de afeto, de conjunção afetiva: dele com
os irmãos, dele com os peixes.
Mas, também pode-se perceber as incompatibilidades das
relações criadas, pois são elementos incompatíveis que não podem
compor esse tipo de combinação:
1- Água - conteúdo líquido + peneira - continente vazado;
2- Vento - objeto não apreensível + mãos que apreendem mostrar (visível) + vento (não vísivel)
3- Espinhos – concreto, apreensível + água - não apreensível;
4- Peixes – animal aquático + bolso - continente humano.
Durante a narrativa, a mãe, que é um sujeito do enunciado, do
enredo, é substituída, no discurso pelo próprio narrador, agora é
ele que define: “O menino era ligado em despropósitos/ Quis montar
os alicerces de uma casa sobre orvalhos” (BARROS, 1999, s/p). O
próprio narrador interpreta as comparações da mãe, de forma
abstrata e sintética, e afirma serem despropósitos. Esta característica
do fazer do menino: despropósitos, está sempre presente na obra
poética de Barros, a prática do nonsense do poético. Assim, o narrador
delega à mãe a função de interpretar o fazer do filho, atividade que
ela traduz em termos genéricos, manifestando as linhas isotópicas
delimitadores da performance infantil: “A mãe reparou que o
menino/gostava mais do vazio/do que cheio. Falava que os vazios
são maiores/ e até infinitos” (BARROS, 1999, s/p).
A respeito do vazio Ricardo Rodrigues (2006, p.75) afirma
que “O vazio tão apreciado pelo poeta pantaneiro surgirá como
possibilidade de manifestar a liberdade poética em todo seu mistério
e desmesura”. O menino veria, então, inúmeras possibilidades no
vazio, pois o vazio é um espaço infinito, sugere possibilidade, espera
de preenchimento. “Com o tempo aquele menino/que era cismado
e esquisito/ Porque gostava de carregar água na peneira/Com o
tempo descobriu que escrever seria/o mesmo que carregar água na
peneira” (BARROS, 1999, s/p). O tempo demonstra o
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amadurecimento do menino, que com o passar do tempo percebe
que as brincadeiras podem ser feitas com as palavras. Desta forma,
sozinho, sem a interferência da mãe, descobre o poder da palavra,
que pode expressar-se através delas, o que antes era só produto da
sua imaginação.
Torna-se o doador do saber, neste sentido, o doador externo
(mãe) dá lugar ao doador interno (o menino) que faz a maior
descoberta, dentro do mesmo paradigma: carregar água na peneira
é igual a escrever. Outra invariante de Barros: as brincadeiras do
menino se assemelham ao fazer poético do adulto.
O menino, ao perceber o poder que sua capacidade inventiva
lhe dá, toma consciência da liberdade que suas brincadeiras pode
lhe proporcionar. Desta forma, este menino representa um
modificador da realidade que o cerca, usa sua liberdade para ser o
que deseja, descobre através da literatura, da ficção possibilidades
para viver vidas alheias ou travestir-se em outras pessoas:
No escrever o menino viu/que era capaz de ser/noviça, monge ou
mendigo/ao mesmo tempo/O menino aprendeu a usar as palavras./
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras./E começou a fazer
peraltagens./Foi capaz de interromper o voo de um pássaro/botando
ponto no final da frase./Foi capaz de modificar a tarde botando uma
chuva nela. (BARROS, 1999, s/p).
O termo peraltagens é geralmente utilizado por adultos para
nomear as coisas que a criança faz. Segundo Ferreira (1986), o termo
peralta é utilizado para adjetivar um menino travesso. No texto as
peraltagens do menino estão relacionadas à mistura do verbal com
o não verbal: o menino consegue interromper o voo do pássaro
que é um elemento não-verbal com o ponto final.
Percebe-se a intensa relação no campo semântico dos verbos:
escrever e inventar, pois ambos remetem à ideia de representar,
encenar, contar, imaginar.
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A mãe reaparece, retoma a sua função inicial: é ela que é capaz
de parar para reparar e, mergulhada no universo inventivo do
menino, ela classifica: ser poeta é fazer isso, dando-lhe conselhos
cheios de lirismo:
O menino fazia prodígios./Até fez uma pedra dar flor!/A mãe reparava
o menino com ternura./A mãe falou:/Meu filho você vai ser poeta./
Você vai carregar água na peneira a vida toda./ Você vai encher os/
vazios com as suas peraltagens/E algumas pessoas/vão te amar por
seus despropósitos. “(BARROS, 1999, s/p).
Barros gradativamente vai relacionando as peraltagens do
menino com a poesia. Esta relação se mostra presente, principalmente,
nas frases metalinguísticas, à medida que o menino vai tomando
consciência de seu destino e da persistência de suas peraltagens. As
peraltagens do menino, em modificar o que está instituído, o
conhecido, o usual, são nomeadas, classificadas como “prodígios”.
“O menino que carregava água na peneira” representa a poesia
como uma criação que não tem nenhuma finalidade objetiva, ou
seja, como algo que não possui valor mensurável. Através dos
“despropósitos” e das “peraltagens” do menino mostra que a lógica
se encontra fora do que é rotineiro e previsível.
Mara Maia (2008, p.84) afirma que as construções das frases
que forma a estrutura do texto se repetem, criando um reforço,
reiterando o ato de ler e de escrever, ratificando o fazer poético,
como se ilustra abaixo:
1-“A MÃE DISSE QUE carregar água na peneira [...]”
2-“A MÃE DISSE QUE era o mesmo que catar [...]”
3-“A MÃE REPAROU QUE o menino gostava [...]”
4-“A MÃE REPARAVA o menino com ternura.”
5-“A MÃE FALOU: Meu filho [...]”;
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6-“O MENINO ERA ligado em despropósitos.”
7-“O MENINO VIU QUE ERA capaz de ser [...].”;
8-“O MENINO APRENDEU a usar as palavras.”;
9-“O MENINO FAZIA prodígios.”;
10-“[...] UM MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA
PENEIRA.”
11-“PORQUE GOSTAVA DE CARREGAR ÁGUA NA
PENEIRA “[...] ESCREVER SERIA O MESMO QUE
CARREGAR ÁGUA NA PENEIRA “VOCÊ VAI CARREGAR
ÁGUA NA PENEIRA [...]”
(BARROS, 1999)
A habilidade poética do menino é aceita de forma gradual
durante a narrativa, por ser “cismado e esquisito” e por ser “ligado
em despropósitos”, primeiramente o menino descobre a
importância de “escrever”, na sequência aprende “a usar as palavras”
e finalmente a mãe conclui, vaticinando: “Meu filho você vai ser
poeta”. Ou seja, ser poeta é inato, um ser extra-ordinário que o leva
a manipular as palavras de forma não-comum.
Analisemos, agora, “A menina avoada” que é um texto
homônimo a uma poesia que Barros escreveu para sua filha Martha,
e que faz parte da obra Compêndio para uso dos pássaros3 (1961).
Em “A menina avoada”, Barros utiliza recursos líricos como
também elementos da narrativa, tais como enredo, personagens,
espaço e tempo, enfeixados pela disposição gráfica da prosa. A
história focaliza dois irmãos, um menino e uma menina, e também
cita mais dois personagens, o pai e a namorada imaginária do menino,
mas não participam diretamente da ação.
A narração fica a cargo de menina, já adulta.
A menina-narradora, logo nos primeiros versos já se apresenta
e direciona o lá e então, o tempo e o espaço: “Foi na fazenda de
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meu pai antigamente./ E os atores:” Eu teria dois anos; meu irmão,
nove.” (BARROS, 1999, s/p). O tempo do enredo é o tempo da
infância da menina, num espaço físico delimitado, a fazenda do pai.
Segundo Ferreira (1986, p.147), avoada significa: que anda com
a cabeça no ar, distraído, atrapalhão. É um termo popular para
indicar pessoa distraída. A etimologia da palavra distrair: dis- traer:
puxar para o outro lado, ou seja, o termo coloca já de início a
oposição semântica: distraída versus atento, o que no texto irá
significar: o que anda no caminho de todo mundo verso o que anda
por desvios.
Em relação ao título, Mirian Garcia (2006) afirma que o
adjetivo “avoada” possui dupla semântica: remete tanto ao sentido
conotativo da palavra, a ideia de distraída, como à conotação de
aéreo, de exercício pleno da sua imaginação.
Assim, a menina relembra suas viagens e aventuras imaginárias
na fazenda do seu pai. Tem-se aí o tema do retorno, fundamental na
vida humana, como esclarece Bachelard (1993, p. 262):
Este signo do retorno marca infinitos devaneios, pois os retornos
humanos se fazem sobre o grande ritmo da vida humana, ritmo que
atravessa os anos, que luta contra todas as ausências através do sonho.
Sobre as imagens aproximadas do ninho e da casa repercute um
componente de intima fidelidade.
Neste sentido, percebe-se que são dois motivos implicados
mutuamente ao representar a infância “que de certa maneira
representa um mergulho do ser em si mesmo”, segundo Marinei
Almeida (2009, p.53): o da viagem e o do retorno com que “se
lança (r) por ‘ermos e errâncias’ numa busca constante de si e do
outro” (ALMEIDA, 2009, p.53).
A mesma estudiosa aponta, ainda, outro tema que comparece
com “pertinência e insistência” no conjunto de obras de Barros: a
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memória, “essa memória é constante revisitada e reinventanda. [...]
E a memória funciona como um instrumento indispensável para
empreender as mais diversas viagens” (ALMEIDA, 2009, p.54).
No texto em pauta, estão presentes os três temas: viagem,
memória e retorno. O retorno à fazendo do pai, quando tinha apenas
dois anos, a memória das brincadeiras que aconteciam na fazenda e
as viagens, tanto a viagem física, de um lado ao outro do quintal,
como a viagem imaginária, viagem até a cidade.
Para Bachelard (1988) a infância está ligada ao princípio de
vida, à possibilidade de recomeço. Como também para Barros, que
está relacionada ao retorno a origem, ao reencontro com o universo
infantil, retorno ao passado através da memória da viagem
imaginária na infância e o retorno a sua terra natal.
De acordo com Bachelard (1988) a infância está ligada ao
princípio de vida, à possibilidade de recomeço. Da mesma forma,
a infância, para Barros, está relacionada à origem, e, neste sentido,
se eleva à dimensão mítica. E na mesma dimensão, ao lado da
imagem da criança como retorno à origem, em sua poesia outros
símbolos comparecem associados ao retorno, como a terra, a água
e os animais.
Em “A menina avoada” a narradora relembra o passado,
quando era uma menina, de apenas dois anos. Bachelard (1988)
afirma que nas lembranças de crianças é difícil distinguir imaginação
e memória, pois as imagens amadas podem surgir como lembranças,
tornando-se um devaneio.
A menina relembra experiências com elementos do seu
próprio cotidiano, aparece como uma contadora de estórias, e no
primeiro verso já determina o espaço e o tempo: “Foi na fazenda
de meu pai antigamente.” (BARROS, 1999, s/nº). Tudo girava em
torno da imaginação e das reminiscências infantis. É isso que
confirma Bachelard (1993, p.29): “Tudo o que devo dizer da casa
da minha infância é justamente o que me é necessário para me colocar
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numa situação de onirismo, para me colocar no bojo de um devaneio
em que vou repousar no meu passado”.
Para Bachelard é nas lembranças que devemos encontrar o
núcleo da infância que permanece no centro da psique humana, que
unem mais intimamente a imaginação e a memória, onde o ser da
infância liga o real ao imaginário:
A memória é um campo de ruínas psicológicas, um amontoado de
recordações. Toda a nossa infância está por ser reimaginada. Ao
reimaginá-la, temos a possibilidade de reencontrá-la na própria vida
dos nossos devaneios de criança solitária (BACHELARD, 1988, p. 94).
Em seguida, após a localização lá-então, a menina se apresenta
e apresenta o outro personagem, seu irmão: “Eu teria dois anos;
meu irmão, nove.” (BARROS, 1999, s/p). A menina e seu irmão
não são nomeados, isso permite que o leitor use sua imaginação
para personalizá-la ou até mesmo se colocar no lugar dos
personagens, “entrando” na história.
Ela descreve como aconteciam suas brincadeiras, o irmão mais
velho fabricava os brinquedos, era o artesão, o inventor: “Meu irmão
pregava no caixote duas rodas de lata de goiabada./A gente ia viajar.”
(BARROS, 1999, s/p), produtos, cujas imperfeições a narradora traduz
personificando os brinquedos: “As rodas ficavam cambaias debaixo
do caixote: Uma olhava para outra.” (BARROS, 1999, s/p). Um
caixote e duas latas de goiabadas, objetos pobres, descartáveis, que
fazem parte do cotidiano de crianças simples, mas que a menina, como
muitas outras crianças, em suas brincadeiras simples, se transformam
por um mergulho no universo da imaginação e da inventividade. As
crianças não reproduzem ou transformam simplesmente as obras dos
adultos, como afirma Walter Benjamin:
[...] crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de
trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível.
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Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da
construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do
alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem
o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente
para elas. Neles, estão menos empenhados em reproduzir as obras dos
adultos do que em estabelecer uma relação nova e incoerente entre
esses restos e materiais residuais. Com isso as crianças formam o seu
próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande
(BENJAMIN, 2002, p.58).
Esta personificação do brinquedo estabelecida, através do
lúdico e da imaginação, proporciona instrumentos para elaborar o
real, estabelecendo o reino da invenção, do “como se”.
Danielle Almeida (2006) afirma que a capacidade da criança
de escolher e adaptar diferentes objetos, restos desprezados pelos
adultos como “inúteis” e “inadaptados”, com a finalidade de utilizálos em suas brincadeiras, segue como representação de sua fantasia
e de sua auto-expressão.
Segundo Benjamin,
[...] nada é mais adequado à criança do que irmanar em suas construções
os materiais mais heterogêneos – pedras, plastilina, madeira, papel. Por
outro lado, ninguém é mais casto em relação aos materiais do que
crianças: um simples pedacinho de madeira, uma pinha ou uma pedrinha
reúnem na solidez, no monolitismo de sua matéria, uma exuberância
das mais diferentes figuras (BENJAMIN, 2002, p.92).
“Imitava estar viajando./Meu irmão puxava o caixote/Por
uma corda de embira/Mas o carro era diz-que puxado por dois
bois.” (BARROS, 1999, s/p). A narradora tem consciência da
natureza de inventadas, uso do verbo “imitava”, demonstra um juízo
de valor da pessoa que vivenciou a brincadeira e tempos depois
reflete sobre aquele ato, associando-o a uma imitação, a expressão
“diz-que” confirma o mundo imaginário.
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A linguagem utilizada pelos personagens aproxima-se do
mundo cotidiano, da vida rural, tornando o texto mais próximo da
fala cotidiana, as crianças nomeiam os bois, a menina os comandava:
“Eu comandava os bois: - Puxa Maravilha!/ - Puxa Redomão!/
Meu irmão falava que eu tomasse cuidado porque Redomão era
coiceiro.” (BARROS, 1999, s/p). Na mesma linha, a expressão da
narração se faz pela metáfora: “As cigarras derretiam a tarde com
seus cantos” (BARROS, 1999, s/p), em que a tarde se torna tão
concreta que possa sofrer a ação das cigarras: dissolve-se/
desmancha-se, numa percepção mesclada de sentidos, sensorial.
Mesmo a brincadeira terminando com a morte dos bois, afogados
no rio, a menina se salva do afogamento, pois o rio era inventado: “No
caminho, antes a gente precisava/De atravessar um rio inventado/Na
travessia o carro afundou/E os bois morreram afogados./ Eu não morri
porque o rio era inventado” (BARROS, 1999, s/p).
O quintal pode ser visto enquanto espaço físico, mas também
como representação do paraíso e da memória. Na obra estudada, é
por excelência o espaço da representação do universo e suas
dimensões, imaginárias e lúdicas; “Sempre a gente só chegava ao
fim do quintal.” (BARROS, 1999, s/p). A viagem acaba no fundo
do quintal, o que tem sentido, pois de acordo com Thalita Melloto
(2002) todo sonho infantil acaba ao defrontar-se com a divisa do
quintal, com a limitação humana.
O menino, diferente da irmã, esta em outra fase da infância,
aqui é encarnado um tema recorrente em Barros: a puberdade,
indiciada por marcas de erotização: “E meu irmão nunca via a
namorada dele - / Que diz-que dava febre em seu corpo.” (BARROS,
1999, s/p). Fora do espaço imaginário não há a concretização da
presença feminina. Esta imaginação erotizada é marca do início de
uma nova fase da infância, da “travessia” para a adolescência.
Em “A menina avoada”, Manoel de Barros afirma a concepção
da infância como um momento único, valorizando as peculiaridades
e virtudes deste momento.
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Para Manoel, a infância é lugar privilegiado de reencontro do homem pósmoderno consigo mesmo, o homem que se encontra diante de valores
enfraquecidos como conseqüência da opressão de uma economia flexível,
da instantaneidade da informação e da linguagem unívoca dos meios de
comunicação de massa. Por isso, teima em ser poeta, aquele que não produz
mercadoria de valor, não é remunerado, considerado até “demente” e diz:
“Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios
dos meninos que fomos” (Barros, 2003, s/p.). Trabalho de poeta que tem
um compromisso social: não é só o menino que ele foi que pretende
reencontrar, mas a infância coletiva. Um reencontro que nos torne
apanhadores de desperdícios para que, junto com a voz do poeta, nossas
vozes assumam um formato de canto, tal como a da criança que imagina,
inventa e transgride (SCOTTON, 2004, p.10).
Para Bachelard (1993, p. 17) “a arte é então uma reduplicação
da vida, uma espécie de emulação nas surpresas que excitam a nossa
consciência e a impedem de cair no sono.” Essa é uma das
características principais da obra de Barros, impedindo que se caia
no automatismo da vida, na superficialidade dos sentidos. Assim,
“A menina avoada” funciona como um passaporte para a imaginação
e, neste sentido, o leitor pode reviver e revitalizar suas imagens e
sensações, provocando todos os sentidos:
[...] as lembranças pessoais, claras e freqüentemente expressas, nunca
hão de explicar completamente por que os devaneios que nos reportam
à infância têm tal atrativo, tal valor de alma. A razão desse valor que
resiste às experiências da vida é que a infância permanece em nós como
um princípio de vida profunda, de vida sempre relacionada à
possibilidade de recomeçar (BACHELARD, 1988, p. 119).
O universo infantil representado pelo irmão, o retorno à
fazenda do pai, lugar acolhedor, as representações do espaço e as
relações com a escrita memorialista merece destaque no poema. A
mistura das cores, cheiros e sabores da infância, fundidos na memória,
na tentativa de uma recuperação de um tempo sem racionalização.
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Em “A menina avoada” curiosamente não aparece a
personagem mãe, que faz a leitura abstrata em “O menino que
carregava água na peneira”, mas pode-se dizer que ela está substituída
pela menina crescida, que agora sabe, não precisa da mãe para
transmitir esse saber. O pai aparece ainda que muito indiretamente:
ele é o dono da fazenda, e com esse papel pode-se dizer que ele
representa o princípio de realidade, como nos outros textos do livro.
“Exercícios de ser criança” apresenta vários exemplos do que
é ser poeta no cotidiano, ou seja, ser poeta exige movimento: inventar,
imaginar, ações que permeiam todas os textos. Em “O menino que
carregava água na peneira” o ato de peneirar, o movimento, é
fundamental para a transposição do real para o imaginário. Em “A
menina avoada” suas ideias “avoadas”, soltas, sem fronteiras,
sugerem a ação de voar com a imaginação, neste sentido, Barros
propõe uma viagem ao mundo imaginário, através de objetos de
descarte: pássaros, peneiras, peixes, caixotes e latas de goiabadas.
Esta obra chama atenção pela ilustração que acaba quase
ganhando vida própria. Aliás, as ilustrações nas obras do escritor
são sempre primorosas. Mas neste se destacam, as ilustrações são
bordados feitos por uma família mineira, a mãe Antônia Zulma Diniz
e as irmãs Ângela, Marilu, Martha e Sávia Dumont sobre os desenhos
do irmão Demóstenes. Percebe-se uma intensa relação entre os
bordados e o texto, pois o bordar e o escrever são trabalhos manuais,
que exigem sensibilidade, imaginação e criatividade.
A ilustração no livro infantil tem, portanto, a função de
produzir sentido, provocando um diálogo com o leitor, conduzindoo a interagir com a palavra. Assim, ela é vista em confluência com a
linguagem verbal, ampliando as possibilidades semânticas.
Em uma obra com ilustrações em bordados esta relação é
muito mais significativa, pois existe a leitura de dois artistas: o
ilustrador e a bordadeira. Ou seja, aqui há três camadas de ilustração:
a do desenho, que é uma primeira leitura, interpretação do texto
verbal, em uma linguagem própria; a do bordado que é uma leitura
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dessa primeira leitura; e a impressão do bordado no livro, em que
há a distribuição pelas páginas, escolha do material gráfico (tipo de
papel, etc) e combinação com o texto verbal.
A partir do conjunto do livro: enredo, linguagem, imagens,
personagens e o leitor, este leitor consegue entrar no espaço
imaginário do texto literário, para se tornar parte dele. Barros
consegue, com sua linguagem poética, fazer com que o leitor infantil
experimente estas imagens, recriando a realidade e redirecionando
a vida e os sonhos, imaginação e fantasia.
O livro em questão, mesmo tendo como público alvo o leitor
infantil, é um objeto simbólico que possui possibilidades de
subjetivação tanto para a criança como para o adulto, ou seja, as
palavras de Barros atravessam as fronteiras de idades.
Portanto, Barros atinge o objetivo da literatura para criança,
assim como para adulto, que é buscar um novo espaço de liberdade,
imaginação e reinvenção da vida, fugindo do aprisionamento de
uma forma. Liberdade e imaginação são as palavras inspiradoras
da literatura infantil/juvenil.
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Paulo: Martins Fontes, 1993.
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Nota
3
“Vi um pato andando na árvore.../ Eu estava muito de ouro de manhã/ perto daquele portão/
Veio um gatinho debaixo de minha/ janela ficou olhando para/ meu pé rindo.../ Então eu vi
iluminado em cima de/ nossa casa um sol!/ E o passarinho com uma porcariínha/ no bico se
cantou.../ Fiquei toda minada de sol na minha/ boca!” (Barros, 2010, p. 19).
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MÍNIMOS INSTANTES EM
JOÃO CABRAL E STELLA
LEONARDOS
MINIMUM INSTANTS IN JOÃO
CABRAL AND STELLA
LEONARDOS
Irene Severina Rezende
(UNEMAT)1
RESUMO: Este estudo estabelece reflexões sobre o poema
“Tecendo a Manhã”, de João Cabral de Melo Neto, e
“Amanhecência”, de Stella Leonardos, na medida em que os
poemas se aproximam pela exploração temática. Serviram como
embasamento teórico os estudiosos Terry Eagleton, Gaston
Bachelard, Roland Barthes, Benjamin Abdala Junior, entre outros.
PALAVRAS-CHAVE: Tecendo a manhã; Amanhecência;
Cooperação; Metalinguagem.
1
Mestra e doutora em Estudos Literários de Literatura Comparada, pela Universidade de São
Paulo (USP). Professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Estadual de
Mato Grosso (UNEMAT), junto ao Instituto de Linguagem, Campus de Tangará da Serra, MT,
CEP -78.300.000, Brasil. e-mail: [email protected]
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ABSTRACT: This study provides reflections on the poem
“Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto, and
“Amanhecência” de Stella Leonardos, insofar as the poems by
holding thematic approach. Served as the theoretical foundation
scholars Terry Eagleton, Gaston Bachelard, Roland Barthes, Benjamin Junior Abdala, Junior and others.
KEYWORDS: Weaving the morning; Amanhecência; Cooperation; Metalanguage.
I
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela
expresse nossos mais fundos desejos.
Manoel de Barros
João Cabral de Melo Neto, chamado pela crítica de “poetaarquiteto”, “poeta-engenheiro” ou “o arquiteto das palavras”,
construiu, ao longo de sua vida literária, uma poesia que os críticos
chamaram de dura, séria, comprometida e árdua. Por possuir uma
sensibilidade aguçada, conseguiu elaborar seus versos com precisão,
sem se esquecer do lirismo necessário aos bons poemas. Do mesmo
modo que procurou extrair do cotidiano as formas mais duras,
procurou também levar ao extremo a construção de seus textos, de
onde excluía tudo o que sobrava e, sobretudo, procurou evitar as
marcas sentimentais dos poetas românticos que o antecederam.
Dessa forma o poeta escreveu uma poesia que se valia das vivências
mais penosas do ser humano e, nesse sentido, procurou atingir a
pureza da abstração e da criação, o que revelou toda a riqueza de
sua linguagem poética. Esta dureza da linguagem e o enxugamento
dos versos estão acentuados em João Cabral de Melo Neto, segundo
Alfredo Bosi (2012, p. 471), porque o convívio com a meseta
castelhana “dos homens de pão escasso” e com a poesia ibérica
medieval, a um tempo severa e picaresca, acentuou em Cabral a
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tendência de apertar em versos breves e numa sintaxe incisiva o
horizonte da vivência nordestina. Ou porque, como afirmou o crítico
João Alexandre Barbosa (1975, p. 95), o engenheiro proposto por
João Cabral tem mais de arquiteto do que de pedreiro, pois ele não
é aquele que realiza por acumulação – pedra sobre pedra – mas
aquele que, no branco do papel, traça a figura de um espaço que,
por si mesmo, ganha faculdade de nomeação. O que equivale a dizer
que o escrever é uma tarefa mais árdua que o serviço de um pedreiro
que tem a tarefa de colocar pedra sobre pedra, ou ainda que, na
escala hierárquica, o arquiteto está acima do pedreiro, já que este
último realiza o trabalho por acumulação e aquele não, como o
escritor que precisa enxergar o branco do papel e traçar a escrita.
Ainda que a perseguir o rigor criativo, João Cabral de Melo
Neto registra em seus textos uma vivência que não é apenas a do
homem do norte, mas que pode representar o cotidiano de todos
os brasileiros, que compõem com ele o cenário da dor, da miséria e
da fome, mostrado pela literatura, como já fizeram Graciliano
Ramos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, e muitos outros.
Segundo Massaud Moisés (2001, p. 316-317), ao estrear, em
1942, João Cabral de Melo Neto não só cortava as amarras com o
Modernismo de 22/30, embora continuasse preso à lição de Carlos
Drummond de Andrade, Murilo Mendes e outros, também se
integrava no vasto agrupamento de poetas surgidos com a II Guerra
Mundial. Por outro lado, Pedra do sono, (sua obra de estreia),
encerrava, a partir do título, as matrizes de sua visão do mundo e da
obra que construiria até os últimos livros, e segundo o crítico, como
não raro, a coletânea de estreia continha, em germe, todas as outras,
tornando-as o desdobramento das suas latências e evidências.
Feitas estas observações, voltemos ao poema “Tecendo a
manhã”, publicado na obra A educação pela pedra (1962-1965), e pode
ser encontrado em Obras Completas à página 345. Este texto, já muito
estudado e louvado no Brasil, segundo Abdala Júnior e Campedelli,
(1982, p.85), é um poema fundamental para a definição da poética
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de João Cabral, porque a “tecedura” do poema obedece a um rigor
estrutural que associa simultaneamente o sentido coletivo de sua
construção e a solidariedade das ações humanas.
A primeira estrofe do poema está composta por dez versos
e a segunda por seis, nas quais o poeta apresenta o nascer do dia
como um projeto comum, surgido da colaboração de muitos
galos que, cantando sucessivamente, formam uma teia que ao
fim se tornará tenda.
O poeta escolhe, no primeiro conjunto de versos, por lançar
mão do enjambement, e da elipse, cuja função estilística é a de
proporcionar rapidez e concisão aos acontecimentos. E ao mesmo
tempo em que reduz o plano da expressão amplia o plano do
conteúdo, pois deixa o poema aberto à complementação por parte
do leitor. Dessa forma, esse recurso estilístico funciona como o
elemento capaz de mostrar a rapidez com que a luz deve ser passada
de “galo em galo”, de “canto em canto”, numa cooperação mútua,
até que a claridade concretize a manhã e até que esta se faça dia, para
que ela, desde “uma teia tênue se vá tecendo entre todos”, até que se
torne tenda, como podemos observar a seguir:
Tecendo a manhã
1- Um galo sozinho não tece uma manhã:
2- Ele precisará sempre de outros galos.
3- De um que apanhe esse grito que ele
4- E o lance a outro; de um outro galo
5- Que apanhe o grito que um galo antes
6- E o lance a outro; e de outros galos
7- Que com muitos outros galos se cruzem
8- Os fios de sol de seus gritos de galo,
9- Para que a manhã, desde uma teia tênue,
10- Se vá tecendo, entre todos os galos.
11- E se encorpando em tela, entre todos,
12- Se erguendo tenda, onde entrem todos,
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13- Se entretendendo para todos, no toldo
14- (a manhã) que plana livre de armação.
15- A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
16- Que, tecido, se eleva por si; luz balão.
(MELO, 1986, p.19)
Percebemos que, ao final da primeira estrofe, a leitura ganha
velocidade à medida que sofre menos cortes quando está a se
aproximar do seu final. O jogo dinâmico de ações entre todos sugere
que se ilumine não apenas a manhã, ou o amanhã, mas também a
todos nós, seres humanos, para que possamos despertar para “nossos
amanheceres”, enquanto seres que vivem em grupos, organizados
dentro de uma sociedade; e que, em conjunto, possamos alcançar o
grande objetivo de nos humanizarmos cada vez mais, e entendermos
a importância da linguagem poética nesse processo de humanização
que está sendo deixado de lado, nesse mundo moderno da era da
tecnologia.
A repetição dos verbos “apanhar” e “lançar”, ainda na
primeira estrofe, (apanhe e lance), no presente do indicativo, dá a
ideia de continuidade e de conjunto, o que significa que tudo o que
é produzido resulta da participação comum; uma única pessoa, uma
só ideia, um só pensamento são incapazes de acompanhar o mundo
na vertiginosa aceleração do tempo da máquina.
A partir do terceiro verso os verbos aparecem separados por
ponto e vírgula, indicando que a ausência do ponto final sugere a
continuidade do ato da criação, que tanto pode ser do ato de escrever
um texto, quanto do trabalho do ser humano, representado pela
“mais valia”, que deixa, no produto final, as marcas, mas não os
benefícios de quem o produziu. Tal como a manhã, que surge do
cruzamento de todos os “fios de sol de seus gritos de galo” e do
esforço em cooperação de todos os responsáveis pelo surgimento
da manhã, que se “erguendo tenda, onde entrem todos”, deve
representar a sociedade que deveria abrigar todas as classes sociais
e ter todos os direitos dos cidadãos resguardados.
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Já na segunda estrofe, a partir do décimo segundo verso, o
ritmo acontece de maneira diferente, pois na medida em que a
leitura caminha, o leitor se depara com os verbos no gerúndio
(encorpando, erguendo, entretendendo), o que diminui o ritmo
do poema, para simular o ato contínuo da criação, presente no
próprio título: “Tecendo a manhã”; até que se chegue à
proximidade em que se concluirá a tarefa diária. O fazer literário,
aparecendo como um trabalho de projeção lúdica, numa lucidez
de sentido rigoroso seguindo a construção das estruturas do
poema, indica que a teia já se transformou em tecido, para
explodir em produto acabado, que seria a própria manhã libertária
com sua: “luz balão!” (luz / verdade / liberdade / balão), ou a
poesia já pronta, escrita, e impressa, transformada, por fim, em
texto; um texto que se faz através de um “entrelaçamento
perpétuo”, um “tecer”, que depende das mãos de quem executa
esse cuidadoso trabalho, como podemos observar, nas palavras
de Roland Barthes (1987, p.82):
Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre
tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual
se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos
agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através
de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura –
o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma
nas secreções construtivas de sua teia. Se gostássemos dos neologismos,
poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o
tecido e a teia de aranha). (os grifos são do autor).
Se o poema fosse escrito sem as elipses, seu plano de expressão
estaria ampliado, porém não exigiria um leitor que participasse da
decodificação do mesmo, que seria esse sujeito a se desfazer no texto,
no dizer de Barthes: “De um que apanhe esse grito que ele / E o
lance a outro”. A elipse da palavra galo, que é quem confere ação ao
texto, leva o leitor a questionar sobre quem seria esse “um”. Pois
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bem, se “um galo, sozinho não tece uma manhã”, afirmação que
lembra o provérbio: “uma andorinha só não faz verão”, (VILLAÇA,
2010, p. 150), e que vem confirmada logo após com os versos “ele
precisará sempre de outros galos, que apanhe, que lance esse grito”,
não haverá problema algum em identificar o sujeito da ação, como
sendo aquele outro que é consciente da necessidade do fazer
comunitário, construído a partir da ideia gerativa que o texto nos
apresenta, como apontou Barthes.
Nos últimos versos, que estão em consonância com todo o
poema, a ação indicada em seu aspecto pelo infinitivo do verbo
– tecer - já se completou uma vez que já se transformou em
“tecido”, ou seja, já foram tecidos, tanto a manhã quanto o texto.
Nessa dupla possibilidade de leitura: texto e manhã, se encontra
uma das riquezas do poema de João Cabral: o tecer o amanhecer,
cuja leitura é ambígua, podendo remeter a dois sentidos:
primeiramente temos como apontamento o nascer do sol que
nos traz o dia; e depois temos a criação de um texto, que ao final
está “tecido e se eleva por si mesmo”, já que a palavra “tecido”
aparece duas vezes: a primeira como substantivo e a outra como
o particípio do verbo tecer, que se desdobra em “teia, tela, tenda,
toldo, entender, tender”.
Alcides Villaça (2010, p. 150) tece um comentário sobre esse
poema e diz que ele pode ser lido como história da construção e
adensamento de uma metáfora luz-balão, cujo desgarramento aéreo
só é permitido depois de se tramarem todos os “fios” que lhe dão a
consistência poética e didática. E o crítico recomenda que o poeta
não deixou de fazer equivaler à artesania da matéria verbal, onde
costurou obsessivas aliterações, a concepção mágica e propiciatória
dos cantos dos galos, por sua vez uma tradução do provérbio
popular: “uma andorinha só não faz verão”.
Para Benjamin Abdala Junior (1982, p. 100), a feitura de um
poema depende dos valores do poeta. Mas é o próprio crítico quem
questiona: “como então construir um poema objetivo, se a escolha
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é individual?” Com relação a João Cabral, o estudioso afirma que a
solução alcançada pelo poeta foi a de enfatizar os dados da
realidade, através da contenção da subjetividade poética. Ao invés
de uma visão sentimental, onde a emoção do poeta obscurece os
fatos que procura apresentar, Cabral preferiu, segundo Benjamin
Abdala Junior, a representação desses fatos, imitando a configuração
que eles têm na realidade. Assim a subjetividade permanece, pois o
poema depende da atividade individual, mas ela é circunscrita, e
também delimitada, por esses dados objetivos.
Ainda de acordo com Abdala Júnior e Campedelli, (1982, p.
100), apaga-se o “eu” pessoal do poeta em favor do conhecimento
objetivo da realidade; ou ainda: “[...] deforma a realidade aparente
para destacar suas linhas estruturais básicas, como numa perspectiva
cubista de um Picasso.” Realmente a realidade cotidiana é colocada
nesse poema sem que a visão sentimental ou a emoção obscureçam
os fatos apresentados, pois o galo, anunciador da manhã, está ali
representando o cotidiano do sertão, sem que a clareza da construção
poética seja prejudicada pelo sentimentalismo, como bem
lembraram os estudiosos ao se referirem à maneira como João Cabral
construía seus poemas.
Alcides Villaça (2010, p.149) lembra que a precisão da
linguagem de Cabral é conforme a valores éticos básicos, que lhe
dão a propriedade expansiva ao mesmo tempo em que determinam
seus limites. É uma ética de afirmação do elementar sobre o
compósito, do limpo sobre o sujo, do analítico sobre o sintético,
do ordenado dobre o caótico, do deduzido sobre o especulado.
Para Villaça, são projetadas e disseminadas como autênticos valores,
estas e outras categorias que regem um modo próprio de percepção,
combinação e fixação dos elementos. Criam uma espécie de
traduzibilidade (sic) geral entre eles, fazendo aproximar-se, por
exemplo, uma paisagem pernambucana de uma paisagem andaluza,
dado o termo comum da rudeza ou da esterilidade – termo que
funciona também como padrão estético.
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II
Stella Leonardos da Silva Lima Cabassa, autora que
selecionamos para estudar juntamente com Cabral, nasceu no Rio
de Janeiro em 1923, e publicou, em 1941, seu primeiro livro de
poemas, Passos na areia. Sua obra não é tão estudada entre nós quanto
a de Cabral, embora esta autora tenha publicado 70 obras, entre
elas, peças teatrais, ensaios e textos infantis, além de ter recebido
diversos prêmios literários, sendo um deles o prêmio Olavo Bilac
de poesia pelo livro Poesia em 3 tempos.
Massaud Moisés, em sua obra História da Literatura Brasileira,
(2001, p.312), limita-se a enumerar as obras de Stella Leonardos e
dizer que a poeta, além do romance, o teatro e a literatura infantil,
tem cultivado o lirismo de temas perenes, como o amor e a morte,
e temas históricos, e que ela num lirismo depurado, reflexivo, com
notas de melancolia (“inquirições de ser e morte”; “lições de minha
própria angústia”), veicula sentimentos de sóbria religiosidade ou
de amor, por vezes em sonetos de timbre lusitanizante ou de
tonalidade cotidiana e social.
Gilfrancisco Santos (2012, p. 01) diz que Stella Leonardos ainda
hoje continua a merecer a distinção da crítica pelo apuro formal,
pela temática variada e, sobretudo pela variedade de gêneros, pois
ela é poeta, teatróloga, romancista, ensaísta, tradutora e professora.
Segundo o estudioso, sua poesia percorre um campo de cultura e
evocação no melhor sentido ceciliano de restaurar o arcaico,
renovando o instante de cada poema e que a busca pela poesia das
coisas mínimas está presente em seus versos, e mesmo sem ser
intencional, ela acresceu o descortino do cotidiano, manejando a
dicção de tom alto, nobre e celebratório herdado pelos mestres
modernistas.
Quem também comenta a obra de Stella Leonardos, mais
precisamente a obra Amanhecência, publicado em 1974, é Fábio Lucas
(1974, p.93). Este estudioso pondera que essa obra pode ser lida
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como poesia e como história da poesia, porque o que “a autora faz
é momentaneizar a herança, desde os primórdios até a
contemporaneidade”. Em seguida o próprio estudioso explica a
afirmação, mostrando que o livro da escritora se subdivide em duas
partes, sendo uma delas um “Códice Ancestral” e a outra um
“Reamanhecer”. E continua a dizer que cada texto, cada exemplar
da atividade lúdico-poética, de Stella Leonardos, é constituído por
uma epígrafe e um poema-derivado, em que o grau de subordinação
varia: ora a epígrafe é fonte do fluxo verbal, subjacente, ora é
consequência.
O poema de Stella Leonardos que selecionamos para estudar
junto com o de Cabral, é o que dá nome à obra, ou seja: Amanhecência,
publicado à página 23 dessa obra. A escolha se deve ao fato de que
nele podemos visualizar essa subordinação, de que trata Fabio Lucas,
ao poema de João Cabral de Melo Neto, “Tecendo a manhã”, numa
intertextualidade temática, do primeiro com o segundo texto.
Fábio Lucas lembra que:
Amanhecência ilustra à perfeição o fenômeno da intertextualidade, como
o tem explorado Julia Kristeva. As epígrafes, precedentes doutros textos
anteriores, ganham nova significação ao transcreverem no discurso novo,
produzindo uma nova instância lírica que se aproveita duma tensão
especial, presente/passado, além de trazer ao discurso recente uma
expansão semântica conexa com a trans-missão do saber. Por isso
Amanhecência é também uma pedagogia, ensina o que foi e o que é poesia
no painel inter-textual. (os grifos são do autor).
E em se tratando de ver um texto no outro, lembramos
também de Barthes (1987, p. 49):
Lendo um texto referido por Stendhal (mas que não é dele), encontro
nele Proust por um minúsculo pormenor. O Bispo de Lescars designa
a sobrinha de seu vigário-geral por uma série de apóstrofes preciosas
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[...] que suscitam em mim as fórmulas de duas mensageiras do
Grande Hotel de Balbec, Marie Geneste e Céleste Albaret, ao
narrador [...] Alhures, mas da mesma maneira, em Flaubert, são as
macieiras normandas em flor que leio a partir de Proust. Saboreio o
reino das fórmulas, a inversão das origens, a desenvoltura que faz com que o
texto anterior provenha do texto ulterior. [...] E é bem isto o intertexto: a
impossibilidade de viver fora do texto infinito – quer este texto seja
Proust, ou o jornal diário, ou a tela de televisão: o livro faz o sentido,
o sentido faz a vida. (grifamos).
Embora o texto de Stella Leonardos esteja escrito em dois
quartetos e dois tercetos, fazendo lembrar a forma fixa dos
sonetos, o que o distingue é a disposição visual no espaço do
papel. O poema não é construído dentro da rigidez do soneto
clássico, mas ele é apresentado sob uma forma que também lhe
confere sentido. Nesse caso, a forma em questão, a de uma asa,
graficamente toma a direção de um processo, que
metaforicamente se dirige a algum lugar no “vôo acima de tudo”
para algum destino incerto, “nas asas das cantigas”, dos pássaros
e/ou da própria poesia, “alando acordes”, como também
acontece no poema de Cabral, pois aquele, no dizer de Barthes,
seria “o texto anterior que gerou o texto ulterior”, como
podemos conferir olhando para todo o texto de Stella
Leonardos:
Amanhecência
ALGO PEÇO? Ou me pertence?
Contudo a tudo pertenço
-às águas, árvores, astros
e acima de tudo às asas
das cantigas que amanheçam.
Vai, meu coração de pássaro,
Sofrendo por lá num “tremolo”.
Talvez tuas penas caiam
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Nas cordas manhãs de essência
E acordem pássaros trêmulos
No coração de outras penas.
Quem sabe se alando acordes
E cantos amanhecência
Embora este texto se organize em torno da imagem material
da asa, projeção intencional da autora, e passe, dessa forma, a ser o
núcleo gerador de outras imagens, ele não deixa de remeter ao texto
de Cabral, porque o conteúdo temático, dos dois poemas, possui
características comuns que estão intimamente ligadas pela
intertextualidade implícita.
Para Ingedore Vilhaça Koch (2008, p. 30):
Nos casos da intertextualidade implícita, o produtor do texto, espera
que o leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer a presença do intertexto, pela ativação
do texto-fonte em sua memória discursiva, visto que, se tal não ocorrer,
estará prejudicada a construção de sentido. [...] Tem-se a intertextualidade
implícita quando se introduz, no próprio texto, intertexto alheio, sem
qualquer menção explícita da fonte [...].(grifamos).
De acordo com Tania Franco Carvalhal (1986, p. 53, 54) “Toda
repetição está carregada de uma intencionalidade certa: quer dar
continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar
com relação ao texto antecessor”. O poema “Amanhecência” é uma
forma visual criada pela linguagem e ordenada na página, como se a
partir de um desenho feito também por uma “arquiteta”, lançasse
metaforicamente, como já dissemos, o pensamento para o voo, para
o longe, para o coração de outras pessoas, que escreverão certamente,
textos posteriores, já que estão lançados os acordes chamativos para
o lirismo inerente a todo texto poético, como vimos também no
texto de Cabral.
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O título desse poema, por si só, simboliza luz e essência:
amanhecência, pois sugere combinatórias que promovem abertura a
vários sentidos, e resulta, a nosso ver, em ideias de prolongamentos,
num pensamento que reflete o desejo de um modo de continuação
de um trabalho, de uma missão: a missão da poeta que deve lançar
acordes (sons-versos) que “acordem-despertem”, no outro, o
amanhecer de sua essência em poesia. E “Quem sabe se alando
acordes e cantos” a poeta consiga afetar o estado anímico do outro
e acordar nele um canto novo, já que é essa a missão de todos os
poetas, os responsáveis por despertar condições para o surgimento
de novas poesias, novas ideias, novas atitudes, numa ação solidária,
como a dos galos em “Tecendo a manhã”, que criam, recriam,
constroem e transformam o instante, na ordenação das ações.
O poema, em primeira pessoa, normalmente se volta para o
próprio sujeito, para si mesmo, para as confissões / confusões do
eu. Mas já no primeiro verso, numa pergunta que estaria dirigida ao
leitor, essa voz questiona: “ALGO PEÇO? Ou me pertence?”
Indagação que assume uma dúvida: o de questionar o valor da
existência. E, em resposta, é o próprio sujeito lírico quem afirma
pertencer a todas as coisas, às águas, árvores, astros e, sobretudo,
“às asas das cantigas que amanheçam”.
BACHELARD (2000, p. 53) afirma que:
Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio.
Sem dúvida, o devaneio alimenta-se de espetáculos variados; mas por
uma espécie de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E a
contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado
de alma tão particular, que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo
próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito.
Se pensarmos que os dois poetas devanearam no momento
da criação, sonhando alturas, como diria Hilda Hilst (o cotidiano
do poeta é sonhar alturas), podemos pensar que isso se deveu ao
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fato de que aos poetas não basta existir simplesmente, pois eles vão
além, na esperança de que possam “acordar” novos sentidos para a
vida.
Os dois textos se inserem num mesmo momento histórico e
são marcados pelas condições desse momento; ainda, as condições
de produção textual imprimem neles características muito próximas,
como a do despertar para algo mais além do sentido social. Embora
não desprezemos a ideia de que cada texto, do ponto de vista de
seus mecanismos internos, é uma realidade única, não podemos
igualmente desprezar a proximidade dos sentidos contidos nos
textos, pois como afirmou Terry Eagleton (2003, p. 141): “O
significado do texto não é apenas uma questão interna. Ele também
é inerente à relação do texto com sistemas de significação mais
amplos com outros textos, códigos e normas na literatura e na
sociedade como um todo”.
Enquanto alguns poetas privilegiam os elementos fônicos,
outros organizam as figuras pelo princípio da similaridade; há ainda
os que exploram as possibilidades temporais, ou optam por temas
já trabalhados, como vimos acontecer com os dois poemas
selecionados.
Roland Barthes (2000, p. 48) observa que:
[...] quando a poética questiona radicalmente a Natureza, (da linguagem)
só pelo efeito de sua estrutura, sem recorrer ao conteúdo do discurso e
sem deter no patamar de uma ideologia, já não há mais escrita, há apenas
estilos, através dos quais o homem se volta completamente e enfrenta o
mundo objetivo sem passar por nenhuma das figuras da História ou da
sociabilidade.
Os dois poetas, além de se preocuparem com a linguagem,
também se importam com o conteúdo. São relativamente rigorosos
quanto à forma e, mesmo assim, não deixam de apresentar uma
temática centrada na ideologia por meio da qual apresentam
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proposições que negam a individualidade e afirmam a coletividade,
pois como afirma novamente Terry Eagleton (2003, p. 30): “A
literatura, no sentido que herdamos da palavra, é uma ideologia. Ela
guarda as relações mais estreitas com questões de poder social”.
Os dois escritores trabalham com o aspecto metapoético, para
a criação literária; esta depende da cooperação de autores e textos,
que incentivam o aparecimento de outros autores e outros textos, já
que os poetas, como os galos, reunidos em orquestra, executam em
conjunto os seus cantos que abrem o dia e as mentes. Embora a
ideia central desse desejo seja a poesia, os poemas levam o leitor a
refletir sobre o próprio fazer poético, sem que caia no vazio de uma
linguagem que se preocupe apenas com o estilo.
Na imagem da manhã, encontra-se condensada a ideia de que
os dois poetas assumiram o direito e o dever de interpretar o mundo,
em laborioso tema sobre cidadania. Imprimiram nesses poemas uma
profunda preocupação social, lembrando ao leitor da roda-viva
inacabada que é seu existir, desvelando, no fazer e refazer de cada dia,
a sensação do eterno devir. E como diria o próprio Cabral (1998, p.
66.): “durante seu trabalho, o poeta vira seu objeto nos dedos,
iluminando-o por todos os lados”, e as palavras do seu poema ficam
assim a contribuir para um fim superior: a criação entre todos de uma
nova manhã para todos, onde se iluminem todos e onde entrem todos;
o desejo da criação de uma ordem social mais justa, como desejava
também Stella Leonardos, segundo as palavras da poeta, em sua página
do Orkut: “Alguém pode ser feliz vendo tanta gente injustiçada e
desvalida no mundo? Literatura talvez ajude, se solidária”.
Para encerrar, lembramos Eagleton (2003, p. 190) que afirma:
“cada palavra, frase ou segmento é um trabalho feito sobre outros
escritos que antecederam ou cercaram a obra individual”, ou ainda,
“Não existe nada como originalidade literária, nada como a primeira
obra literária: toda literatura é intertextual” (EAGLETON, 2003,
p. 190); ao que o próprio João Cabral de Melo Neto (1994, p. 724)
poderia acrescentar:
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Cada poeta tem sua poética. Ele não está obrigado a obedecer a nenhuma
regra, nem mesmo àquelas que em determinado momento ele mesmo
criou, nem a sintonizar seu poema a nenhuma sensibilidade diversa da
sua. O que se espera dele, hoje, é que não se pareça a ninguém, que
contribua com uma expressão original. Por isso, ele procura realizar sua
obra não com o que nele é comum a todos os homens, com a vida que
ele, na rua, compartilha com todos os homens, mas com o que nele é
mais íntimo e pessoal, privado diverso de todos.
Expressões originais, escritas originais, que poderão surgir dos
temas abordados por velhos autores, mas que mantenham a
singularidade criativa de cada poeta.
Referências
ABDALA, Benjamin Junior; CAMPEDELLI, Samira. Literatura
Comentada: João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Abril Educação, 1982.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.
BARBOSA, João Alexandre. A imitação da forma. Uma leitura de João
Cabral de Melo Neto. São Paulo: Duas Cidades, 1975.
CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1986.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura, uma introdução. São Paulo:
Martins Fontes, 1983.
HILST, Hilda. Cadernos de Literatura brasileira. Rio de Janeiro: Instituto
Moreira Salles, 1999.
KOCH, I. G. BENTES et al. Intertextualidade: diálogos possíveis. 2 ed.,
São Paulo: Cortez, 2008
LEONARDOS, Stella. Amanhecência. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1974.
LUCAS, Fábio. Stella Leonardos- Amanhecência. Rio de Janeiro: Aguilar,
1974.
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MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. São Paulo: Nova
Fronteira, 1996.
_________. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
SANTOS, Gilfrancisco. “A poesia eterna de Olga Savary e Stella Leonardos”.
Disponível em:http://www.arquivors.com/gilfrancisco(Acesso em: 20/04/
2013)
VILLAÇA, Alcides. Expansão e limite da poesia de João Cabral.
(org.) Leitura de poesia.. São Paulo: Ática, 2010.
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BOSI, A.
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GABRIEL ZAID: INGENIERÍA
LUMINOSA
GABRIEL ZAID:
LUMINOUS ENGINEERING
Minerva Margarita Villarreal
(UANL)1
RESUMEN: La poesía de Gabriel Zaid favorece el acceso
a un estado de gracia en el lector a través de la posibilidad de
transfiguración que ofrece. Se produce una imantación de los
sentidos al penetrar en el universo palpable que logra configurar
desde la fisura, en la enfática manera de exponer las
contradicciones, caídas y resquebrajamientos de la realidad.
Su voz es dialógica. Gabriel Zaid es tan certero como los
mejores poetas de los siglos de oro: tradición que lo acompaña
y que Zaid enriquece. La clave de su poesía es el extrañamiento
ante la vida cotidiana que sacude por medio de la ironía o de
la perplejidad; una de sus osadías es que, desprovisto de
pudor, señala nuestra humanidad por los detalles que nos
1
Docente da Facultad de Filosofía y Letras (FFyL), Universidad Autónoma de Nuevo León,
Monterrey, México. [email protected]
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constituyen y nos avergüenzan. En su búsqueda de la verdad
poética reelabora lúdicamente la estructura de sus poemas, la
variación es una de sus constantes, en la que, como lectores,
nos ha hecho cómplices. Con su último libro Zaid construye
una memoria de la ingeniería personal de su obra: la nitidez
se logra más por vía de la inteligencia y del trabajo acucioso
que de la iluminación. El lenguaje se autorregula desde su
propia crítica.
PALABRAS CLAVE: Epigrama. Intención dialógica.
Realidad asible. Transfiguración. Ironía. Reelaboración de los
poemas.
ABSTRACT: Gabriel Zaid’s poetry provides the reader access
to a state of grace through the transfiguration which it offers. A
magnification of the senses is induced upon penetrating the palpable universe, which achieves configuration from the deepest
level in its emphatic manner of expressing the contradictions,
failures and flirtings of real life. His voice is dialogue. Gabriel
Zaid is as well-informed as the best poets of the Golden Age;
it’s a tradition which goes along with Zaid’s poetry and one which
he enriches. The key to his poetry is the longings of daily life,
which he treats with irony or perplexity; one of his audacities is
that, void of modesty, he points to our humanity for the complexities of which we are comprised, and which embarrass us.
In his search for poetically-perceived truth, he playfully structures his poems, change of stance always present, which makes
the readers, themselves, accomplices. In his latest book, Zaid
constructs a recollection of the personal engineering of his work:
clarity is best achieved through intelligence and meticulous work,
which illuminates him or her. The language rules itself as its own
self-critic.
KEYWORDS: Epigram. Dialogue. Reality within grasp. Transfiguration. Irony. Rewriting of poems.
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Quiero la libertad, y la más alta
libertad del silencio en el olvido
¡y es el aire del mundo el que me falta!
Gabriel Zaid
Gabriel Zaid es un poeta que ubica su registro esencialmente
en el terreno del poema breve, del soneto (con su innovación del
soneto en prosa) y del epigrama de filiación latina —agudo en ironía
y eléctrico en sarcasmo. Y, reconocido por el desvelamiento de la
realidad, participa del ingenio en varias celebraciones:
1.Logra asir la materia vana y apetente: cuerpos, animales,
objetos y circunstancias: el automóvil con sus velocidades y accidentes;
la pasta de dientes y la sonrisa fabricada; el diccionario y la piscina;
ninfas que son muchachas que se quedan pensando; o cifras de la noche
o de la madrugada que desnudan el amor y lo dejan expuesto.
2.Abre la puerta a la dimensión divina en el plano de la
trivialidad. Hay dioses rectores en la poética de Zaid: el sol, por
ejemplo, como herencia de Alfonso Reyes y de Monterrey, su propia
ciudad de origen, donde abrasa varios meses del año; el fuego, como
hálito del Dios bíblico que representa éxtasis e infinitud o es huella
viva de la primera invención; las nubes, que en su registro son estrellas
que se desvanecen, antes ninfas de la lluvia, nacidas de Poseidón y
Tetis; o la misma Circe, por cuyo amor festeja su naufragio. Zaid
reivindica a estas deidades para contrarrestar los efectos de otro
Dios: el tiempo, que se presenta, a contrapunto del poema, como
artífice de la interrupción de la eternidad. Así cobran fuerza los
espejos que la capturan, porque la eternidad en esta poética es
sinónimo de la belleza, de los manantiales y ríos, de los árboles, y es
la manifestación del amor.
3.A través de la síntesis, del carácter luminoso de la brevedad
de sus poemas, su obra resplandece y hechiza. Nos congracia. La
música de su versificación envuelve como ondas de agua después
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de haber lanzado al fondo la piedra. Logra comunicar el resplandor
del sol en el océano, en el desierto y en el tráfico como si la
contemplación nos viera pertenecerle. Hacia donde no vamos, va
Zaid, y en este camino se produce el hallazgo.
4.Con esta contemplación activa del paisaje enmarca en él
situaciones específicas: los elementos que orientan la vida: “y los
vientos te empujan, las olas te conducen” (ZAID, 1964, p. 14);
carreteras donde un auto se ensarta como nave equivocada; ríos
para que Narciso prosiga su causa; embotellamientos de autos en
las avenidas; y la inexistencia misma de los taxis. Este último anhelo
de conseguir un taxi en la ausencia de taxis reemplaza la urgencia del
Dios que se ausenta hasta manifestarse extrañamente bajo el conjuro
interno de la música de la palabra.
5.Versos precisos y preciosos, campanillas de luz que
inesperadamente se pronuncian y traen el viento, traen una gacela,
un poeta que pregunta al lector:
¿En qué momento pasa de la página al limbo,
creyendo aún leer, el que dormita?
La corza en tierra salta para ser perseguida
hasta el fondo del mar por el delfín,
que nada y se anonada, que se sumerge
y vuelve para decirte no sé qué. (ZAID, 1995, p.109).
A través de la utilización de la segunda persona del singular,
Gabriel Zaid invoca al otro; busca al par, a la pareja, al lector, con una
intención especular y dialógica, arraigada en un principio religioso
que tanto abreva del cristianismo, como de los antiguos griegos.
Desde sus primeros poemas se desplaza una sabiduría que
fusiona estética, razón y espiritualidad. “Acata la hermosura”, que
inicia su Seguimiento, de 1964, es casi una tesis mística:
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Acata la hermosura
y ríndete,
corazón duro.
Acata la verdad
y endurécete
contra la marea.
O suéltate, quizá,
como el Espíritu
fiel sobre las aguas. (ZAID, 1964, p. 13).
Su poesía es incitadora, exalta la creación con imágenes que se
desprenden nítidamente de la misma naturaleza, como en
“Nacimiento de Venus”:
Así surges del agua,
blanquísima,
y tus largos cabellos son del mar todavía,
y los vientos te empujan, las olas te conducen
[…]
(ZAID, 1964, p. 14).
Pero va más allá. Contemplamos a Botticelli al tiempo que
después, en “La ofrenda”, penetramos en los parajes del Cantar de
los cantares:
Mi amada es una tierra agradecida.
[…]
Cargada está de dádivas, pródiga y en sazón.
(ZAID, 1964, p. 18).
Este trato dialógico, que comienza aludiendo a la amada,
propicia el cuestionamiento a través de una sustanciosa discusión
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con Dios generada por medio de correlaciones inquietantes. La
poesía se convierte aquí en el medio que acerca la eternidad —
vínculo y certeza de Dios — con nosotros, los lectores:
¿Y qué se hará la senda
que te iba dejando,
migas de mí, poemas,
pistas para encontrarnos?
(ZAID, 1964, p. 24).
Este poema paradójicamente se titula “Templo”. ¿No es la
hostia una migaja de Dios? ¿No nos está acercando Zaid al acto de
la comunión, con la participación del cuerpo divino en la palabra?
Así concluye su “Nocturno abandonado”:
Y sin embargo existes,
comunión, y nos mueves
en íntimas palabras
que entretejen el mundo.
(ZAID, 1964, p. 26).
No se trata, como señala Octavio Paz (1977, p. 46), de un
poeta religioso y metafísico y — por eso mismo — de un poeta del
amor, en cuyos poemas “opera de nuevo como una potencia
transfiguradora de la realidad. Esa transfiguración no es cambio ni
transformación sino desvelamiento, desnudamiento: la realidad se
presenta tal cual”. El comentario de Paz, si se observa con atención,
es lúcido, pero contradictorio.
No es que la realidad se presente tal cual, es que la poesía de
Zaid nos permite asirla porque abre una puerta o más, y el aire de la
realidad sale de su vacío para llenarnos. Sale de estar cautivo en esa
gruta donde no leemos, donde no podemos ver, para que lo
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podamos respirar. En el soneto en prosa que acabo de citar:
“Despedida”, el diálogo se multiplica y, así, desde las voces que lo
acompañan — la Fábula de Polifemo y Galatea de don Luis de Góngora
y el Cántico espiritual de San Juan de la Cruz con su “no sé qué que
quedan balbuciendo” (CRUZ, san Juan de la, 1979, p. 365) — Zaid,
más que un poeta religioso y metafísico, crece como un poeta que
exige el mundo; como Sor Juana “y solamente lo que toco veo”
(CRUZ, 1976, p. 463) —: precisa ver para ser:
Claustro
Entre vivir y pensar,
la puerta a medio cerrar.
Ver es ser de par en par. (ZAID, 1964, p. 39).
Reclama la presencia y la figura no sólo del amado en la
recia simbolización de los taxis, sino de las voces de los propios
poetas que han otorgado gloria a nuestro lenguaje y han
configurado una tradición que Zaid enriquece y, en la aparente
delgadez de su poesía, ensancha.
No es que aquí una transfiguración genere un desvelamiento y
una desnudez, sino que de la posibilidad de asir en el poema las
piedras de la realidad, sus caídas y resquebrajamientos, Zaid
configura un universo palpable. Así ocurre la revelación y de ahí
sigue — pensemos en su Seguimiento — la transfiguración en el lector,
entendida ésta como un tránsito hacia un estado de gracia que el
poema favorece, una transformación en nuestra naturaleza.
Ya sabemos por Einstein que la fuerza de gravedad es una
ilusión; Gabriel Zaid en sus poemas vuelve asible la realidad, la hace
gravitar e, incluso, y esto hay que subrayarlo, como Quevedo, no
conoce el pudor para exhibir sus ángulos más íntimos. Las
necesidades fisiológicas: orinar, defecar; desnudar a la amada desde
sus flatulencias, o autorreferirse como un niño que requiere ser
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rescatado por su madre al padecer un desfiguro, en plena adultez,
en una relación sexual.
He hablado de Gabriel Zaid como un poeta de ingenio, porque
en su obra hay una exactitud matemática para atreverse con la
realidad, ponerse al tú por tú con ella, tomarla, fustigarla y, así,
participárnosla. Pero nos la hace ver y entramos en ella no porque la
esté retratando sino porque la configura desde sus obsesiones, con
sus preocupaciones y homenajes, en sus reiteraciones y,
particularmente, como cito en la estrofa del epígrafe, por sus
contradicciones.
Por eso me atrevo a decir que Gabriel Zaid es un poeta de la
realidad, tan certero y puntilloso como los mejores poetas de los
siglos de oro, a quienes sigue para este propósito. De esta manera
podemos penetrarla, estar en ella como generalmente sucede que
no estamos. La realidad no se presenta tal cual, es el poema el que
nos abre a su acceso y, si nos sometemos a su gracia, nos transfigura.
Casi siempre, en la poesía de Gabriel Zaid la clave es el
extrañamiento, se produzca éste por medio de la ironía o de la
perplejidad ante la vida cotidiana.
Esa chispa despiadada de desproveer de pudor y señalar a la
humanidad por los detalles que nos constituyen y nos avergüenzan es
una de sus osadías; un incisivo método de arriesgar en la denuncia de la
falla. Y la humanidad crece cuando sus faltas se evidencian, porque
desnudos, en la proximidad más íntima, caen las etiquetas y las máscaras.
Crecemos al descubrirnos y nos descubrimos al encontrarnos.
El amor, en los poemas de Zaid, se produce por el
encontronazo con esa desnudez que nos deja expuestos. Es un
hallazgo que posibilita la emergencia del ser como realización única,
no por la metafísica sino por el contacto físico con el otro, porque
se es en la relación y en el encuentro.
La desnudez es el despojo de toda cubierta, de todo accesorio.
Y el lector de estos poemas se involucra despojándose, dejando que
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el mar y sus criaturas lo conduzcan al paraíso o que la desesperación
lo pierda en la ausencia de taxis. Es en tal sentido que esta obra
pronuncia su causa, adentrándonos en un diálogo a voces con la
poesía en general; pienso en los poemas finales de Cuestionario, de
1976, como “Transformaciones”, donde el autor parte de Ernesto
Cardenal, sigue con José Emilio Pacheco, para terminar con un
epigrama personal que cierra el discurso con el que principia.
Si hablo de celebraciones del ingenio en su obra es porque
redimensiona el poema original; de hecho, en “Desperté,” al término
de Reloj de sol, de 1995, hay una ceñida bibliografía final por medio
de la que Zaid descubre sus fuentes y ofrece su método de creación,
que imita y sustituye, como las clásicas lecciones de la Poética de
Aristóteles. Así otorga a sus lectores un estado de gracia: un vuelo,
un rapto. Porque hubo un propósito: el poema diálogo, el poema
que desde Cuestionario exige al lector una crítica, una reedificación,
una propuesta desde la estadística, un cambio. Poemas como
vehículos de arrobamiento y transportación. Algunos nos lanzan a
un espacio ajeno a este mundo, pues nos introducen en sus terrenos
secretos, lugares en movimiento que parecen haber estado
escondidos, porque no son espacios, sino la infinitud en el tiempo
que pasa, como esta primera estrofa de “Reloj de sol”:
Hora extraña.
No es
el fin del mundo
sino el atardecer.
(ZAID, 1995, p. 92).
Zaid tiene poemas que nos devuelven a esa realidad desnuda
de la cual habla Octavio Paz. Pensemos en su clásico “Teofanías”:
el elemento taxis metaforiza desde la presencia de Dios, hasta
cualquier objeto en el que usualmente desviamos nuestra búsqueda
hacia el afuera. En el exterior no hay taxis, no hay dioses; el camino
es único, personal, se realiza solo, y hay que hacerlo hacia adentro.
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La poesía nos regresa a una realidad más rica, a una realidad cargada,
potenciada por la luz entrañable. Y aunque “la ciencia ha demostrado
que los taxis no existen”, seguiremos implorando su aparición. Tan
urgente es encontrar un taxi como que Dios se manifieste en la esfera
doméstica, en la sed de los días.
Desde este arrojo, Zaid se convierte en un poeta visionario.
Su concisión implica técnica y matemática: la luz brota de la razón.
La sensación de despojo allí es más bien producto de la acción
inteligente, medible, de asociación y juego.
El humor es la fuerza más pronunciada de su obra. Más incluso
que el amor. Aunque, si volvemos los ojos al poeta brasileño Oswald
de Andrade, el amor reverbera entre el humor y el deseo. Pero la
poética de Zaid es razonada y pide pruebas, se sostiene por una
inteligencia que, en términos del poema, indaga nombres para
bautizar lo dado; y el lirismo, esa fuerza alada cuya razón viene del
corazón, de la concreción aritmética del verso como unidad de ritmo
comprobable desde la sístole y la diástole, irradia bajo una nueva
perspectiva, nominando lo increíble, pues quién hubiera anticipado
al pequeño Larousse como hálito de inspiración. Una muestra de
ello es la “Fábula de Narciso y Ariadna” —publicada por primera
vez en 1958 en el número 18 de la revista Katharsis—, uno de sus
primeros poemas, que, parodiando las dedicatorias a los nobles
mecenas usadas por los poetas renacentistas y barrocos,
particularmente las Soledades, de don Luis de Góngora, aquí se
obsequia al Pequeño Larousse Ilustrado. Desde entonces, desde la
dedicatoria y la primera estrofa, el humor filtra su irreverencia ante,
quizá, el poema más transgresor y el más audaz de toda la lírica
española. Dice el poema de Góngora:
Era del año la estación florida
en que el mentido robador de Europa
—media luna las armas de su frente,
y el Sol todos los rayos de su pelo—,
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luciente honor del cielo,
en campos de zafiro pace estrellas;
cuando el que ministrar podía la copa
a Júpiter mejor que el garzón de Ida,
—náufrago y desdeñado, sobre ausente—
lagrimosas de amor dulces querellas
da al mar; que condolido,
fue a las ondas, fue al viento
al mísero gemido,
segundo de Arión dulce instrumento.
(GÓNGORA, 1944, p. 41).
Dice el poema de Zaid:
Eran ya de la fiebre las finales
páginas que presienten su derrota,
cuando da el diccionario horizontales
decepciones filosas y alborota
una impaciencia comunicativa
de kilogramo en peso de misiva.
(ZAID, 1995, p. 14).
Si en su primera versión la “Fábula de Narciso y Ariadna”
sorprende por su dominio de lenguaje e ironía, ya depurada, en la
edición de Reloj de sol —que elimina una estrofa de acotaciones—,
no deja de ser, más que una emulación al clásico poema, un indicio
de la tradición en la que se inscribe y busca recrear nuestro autor,
bajo la perspectiva de contraste que generan el juego y la irreverencia.
Así pasa necesariamente de los clásicos latinos al filtro de los siglos
de oro, especialmente Góngora y Quevedo, enfatizando sus raíces.
Aquí la tradición fructifica revirtiendo la propuesta estética
en torno al objeto cantado. Las imágenes presentan elementos
radicalmente opuestos a los ponderados por los poetas renacentistas,
a partir de una vuelta fársica a sus constantes. Veamos estos versos
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de Zaid en “Elogio de lo mismo”, de nuevo honrando la poética de
don Luis, quien se detuvo y encomió semejante inquietud:
¡Oh, mismo inabarcable!
Danos siempre lo mismo.
(ZAID, 1976, p. 244).
El temor a la vaguedad y a la imprecisión se cifra en líneas
cautelosas, versos donde se mide lo que tiene que decirse, lo que
debe decirse.
Sacarle filo a un verso puede llegar a romperlo, y de haber
iniciado en la acuidad de un concepto, el resultado, a falta de imágenes,
suele producir una poesía de fácil sustancia, donde finalmente habla
el poeta y no es la poesía la que se expresa. Pero pulir un verso
puede también ayudar a afinar el poema. Gabriel Zaid balancea estas
dos posibilidades de la construcción poética preocupado por la
búsqueda de la perfección formal.
Depurar de un libro a otro, de un poema a ese mismo poema,
eliminar, limpiar, modificar el título. En su recuento último: Reloj de
sol, publicado el mismo año, 1995, tanto en México como en España,
llega a no ponerse de acuerdo en su versión definitiva de un poema,
expuesto antes en distintas variaciones:
Nacimiento de Venus
Así surges del agua,
clarísima,
y tus largos cabellos son del mar todavía,
y los vientos te empujan, las olas te conducen
como el amanecer, por olas, serenísima.
Así llegas de pronto, como el amanecer,
y renace, en la playa, el misterio del día.
(ZAID, 1995, p. 32).
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La edición española muestra el segundo verso como cuando
apareció este poema por vez primera, citado antes en este ensayo.
En vez de clarísima dice blanquísima. El resto del poema queda igual
en ambas publicaciones, con las enmiendas realizadas por el autor a
lo largo de su tiempo creativo. Si nos remontamos a esa primera
aparición en Seguimiento, el poema ha sufrido la modificación de los
últimos dos versos, cosa que venía calibrándose en Cuestionario, y no
para bien del poema. Repito la primera versión:
Así surges del agua,
blanquísima,
y tus largos cabellos son del mar todavía,
y los vientos te empujan, las olas te conducen,
como el amanecer, por olas, serenísima.
Así llegas helada como el amanecer.
Así la dicha abriga como un manto.
(ZAID, 1964, P. 14).
Al margen de hacer un espacio antes de estos dos últimos
versos en las posteriores ediciones, Zaid hizo un cambio definitivo
en este dístico:
[…]
Así llegas de pronto, como el amanecer,
y renace, en la playa, el misterio del día. (ZAID, 1995, p. 32).
Es poco afortunado despersonalizar el objeto, la muchacha
que llega y trae la dicha con el frío sacudimiento del amor, por una
vaguedad que difumina poetizando: “el misterio del día”.
En general, en la mayoría de las modificaciones de Zaid — cabe
destacar que en Reloj de sol regresa a varios títulos originales — el
poema termina siendo más poema. Hay, de hecho, un ejemplo crucial,
donde la depuración produjo un dístico, una de sus formas predilectas,
bellísimo. Veamos cómo aparece en el poema “Instantáneas”:
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El agua se hace pájaros
contra la piedra azul.
Olas de tiempo terco.
Rocas de cielo empedernido.
Muerte en alas triunfales.
(ZAID, 1976, p. 243).
Ahora leamos la versión revisada en Reloj de sol, en la que se
produjo el hallazgo:
Arrecifes
El agua se hace pájaros
contra la piedra azul.
(ZAID, 1995, p. 41).
Esta vía a la perfección está marcada por el mecanismo lúdico
de reelaborar poemas, con novedades en cuanto a su estructura,
de un libro a otro. Las variaciones son una constante del camino
de su búsqueda, a donde nos ha invitado y convocado Gabriel
Zaid, donde nos ha hecho cómplices, como lectores, en la caza de
la verdad poética. Pero, ¿se llega a una verdad poética, o es el
camino de esta construcción el que se impone como la verdad
poética de Gabriel Zaid, que busca ante todo la edificación y el
diálogo?
Cuando la idea se impone a lo lírico y al despliegue de las
emociones, la poesía puede errar porque la fuente del misterio
queda subordinada al predominio de una obsesión formal. Zaid
construye con su último libro una memoria de la ingeniería personal
de su obra. La nitidez se logra más por vía de la inteligencia y del
trabajo acucioso que de la iluminación; del perfil definido de la
palabra y de su carga semántica que de la profusión de sensaciones
desde la palabra misma. Si partimos de la modernidad en la poesía,
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el lenguaje no sólo opera como sujeto en sí, sino que se autorregula
desde su propia crítica.
Cuestionario fue un título certero para testimoniar por un
lado la duda permanente en el autor y por otro la búsqueda
conversacional. Al reunir así sus libros y repetir poemas, con
todo y los cambios que éstos van sufriendo, así como añadir una
tablilla donde hace partícipe al lector del juego poético, Gabriel
Zaid engalana su imaginación, su afición por la ingeniería, su
pasión por investigar. Obliga al lector a revisar los cambios, a
detenerse en algo que creyó haber leído antes, pero ¿igual? o ¿bajo
qué alteraciones?
Finalmente le concede la gracia del extrañamiento para que
ejercite la duda como el propio poeta. Además, logra, lo cual
podemos observar como resultado en Reloj de sol, que dicho
cuestionario sea contestado y reformulados los poemas por los
lectores amigos. En su búsqueda formal delimita el canto como si
aprisionara las palabras. Su poema “Otoño” parece resolver en dos
versos su lamento:
[…]
Lloro por este jardín
que murió de geometría.
(ZAID, 1976, p. 37).
La ironía, como recurso, es depurada: espina. Su preocupación
mayor va cargándose hacia el testimonio social. La impotencia hacia
el poder oficial, la automarginación y la puntillosa crítica contra el
estado de cosas superan en sátira al poema íntimo amoroso, que en
su obra tiende a buscar el equilibrio. Y, aunque utilice símbolos que
tienen que ver con la castración y el narcisismo: las tijeras y el espejo,
su compromiso con el amor no permite un nosotros degradado por
la rutina o la agresividad, como sucede con este poema que se repite
en Cuestionario sin ninguna variante:
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Sombra
Las alas para qué,
si son errantes.
Los ojos para qué,
si son esquivos.
Para qué me acompañas,
si para envenenarte
me envenenas.
(ZAID, 1976, p. 78).
Si tomáramos este poema como lección vital, muchos de
nuestros problemas se resolverían. Ése es otro sello de la poesía de
Zaid: su sentido práctico frente a la complejidad.
En sus poemas sociales la lucha es religiosamente abierta. La
ciudad es vista desde la ciencia y la tecnología, mas trascendiendo
esta especie de envoltura impuesta. El poeta se ciñe, en tanto
ciudadano del mundo, o sea, de la metrópoli, a las limitaciones de la
época, que vuelve a los taxis una alegoría de la imposible
manifestación de la divinidad, o, si se quiere, del amor:
Teofanías
No busques más, no hay taxis.
Piensas que va a llegar, avanzas,
retrocedes, te angustias,
desesperas.
Acéptalo
por fin: no hay taxis.
Y ¿quién ha visto un taxi?
Los arqueólogos han desenterrado
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gente que murió buscando taxis,
mas no taxis.
Dicen
que Elías, una vez, tomó un taxi,
mas no volvió para contarlo.
Prometeo quiso asaltar un taxi.
Sigue en un sanatorio.
Los analistas curan
la obsesión por el taxi,
no la ausencia de taxis.
Los revolucionarios
hacen colectivos de lujo,
pero la gente quiere taxis.
Me pondría de rodillas si apareciera un taxi.
Pero la ciencia ha demostrado
que los taxis no existen.
(ZAID, 1995, p. 90).
Gabriel Zaid celebra la realidad con poemas cuya música
penetra aguda o bajo repiques de suaves percusiones. Con este ritmo
y una ética crítica se arriesga en conceptos —tiempo, libertad, silencio,
olvido, eternidad, etcétera—, en ocasiones, con pocas posibilidades
de vida material a través de una imagen, lo cual empobrece la
circunstancia del poema. En este sentido es una poesía que obliga a
pensar porque busca el desciframiento. Pero como producto
acabado, redondo y que agujere, como una piedra límpida y cierta,
algunos brillan en contundencia y golpean.
Entre la brevedad del epigrama y el haiku, nuestro autor logra
poemas redondos.
Zaid abreva en Catulo y Marcial. En Quevedo, Góngora y
Lope de Vega. También en la poesía oriental, tanto china y japonesa
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como hindú. El poema “Teofanías” guarda una estrecha simetría
con “A Roma sepultada en sus ruinas”, de Quevedo, sobre todo al
comienzo. He aquí el poema de Francisco de Quevedo:
Buscas en Roma a Roma, ¡oh, peregrino!,
y en Roma misma a Roma no la hallas:
cadáver son las que ostentó murallas,
y tumba de sí propio el Aventino.
(QUEVEDO, 1985, p. 67).
Gabriel Zaid establece en buena cantidad de sus poemas un
lazo con la cotidianidad a través de la enunciación de objetos y
personajes como volkswagens (hoy animales casi extintos), bicicletas,
pastas de dientes, estrellas de cine; es decir, elementos y símbolos
de la ciudad y la cultura que lo rodean. Abunda la zoología, símil
para radiografiar la vasta y compleja naturaleza humana, o para
adentrarse en ella:
Selva
Me gusta acariciarte el hipopótamo.
Husmear lo que apenas perdices.
Acechar tu bostezo furibundo.
Disparar al vuelo de tu aullido.
Me gusta darte el dedo a morder,
la percha de tus periquillos.
Verte, mona, desnuda, meditar,
de la cola, del árbol de la vida.
La pantera feliz ronronea
después del suculento pleistoceno.
Me gusta la gratitud
en los ojos de la victoria.
(ZAID, 1995, p. 73).
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Gusta de la reelaboración de los versos y de una permanente
lectura crítica del entorno. Pero no sólo de pensamiento crítico vive
el hombre. Y mucho menos el poeta, que puede encontrar, en el ojo
mismo del huracán de la razón, la sinrazón que llama, la sinrazón
que obliga, la sinrazón que anuncia.
La poesía de Gabriel Zaid se pone a sí misma en duda. ¿No es
éste un paso definitivo hacia la grandeza?
Referencias
CRUZ, san Juan de la. Cántico espiritual: Poesías. Asesoría literaria: Nicasio
Salvador Miguel; Santos Sanz Villanueva. Ediciones, estudio y notas: Cristóbal
Cuevas García. Madrid: Alhambra, 1979. 371 p.
CRUZ, sor Juana Inés de la. Poesías completas. Recopilación y prólogo de
Ermilo Abreu Gómez. 2. ed. México: Botas, 1948. 583 p.
GÓNGORA, Luis de. Soledades. Prólogo de E. González Lanuza. Buenos
Aires: Estrada, 1944. 181 p. (Colección Clásicos Castellanos, 3).
KATHARSIS. Monterrey, n. 18, marzo 1958.
PAZ, Octavio. Respuestas a Cuestionario —y algo más. Vuelta, México,
Amigos del Arte A. C., v.1, n.4, p.43-46, marzo 1977.
QUEVEDO, Francisco de. Antología poética. Prólogo y selección de Jorge
Luis Borges. 2. ed. Madrid: Alianza, 1985. 143 p. (El Libro de Bolsillo. Sección
Clásicos, 873).
ZAID, Gabriel. Cuestionario: Poemas 1951-1976. México: Fondo de Cultura
Económica, 1976. 277 p. (Letras Mexicanas).
ZAID, Gabriel. Práctica mortal. México: Fondo de Cultura Económica,
1973. 84 p. (Letras Mexicanas, 109).
ZAID, Gabriel. Reloj de sol. Madrid: Ave del Paraíso, 1955. 128 p.
ZAID, Gabriel. Reloj de sol: Poesía 1952-1992. México: El Colegio Nacional,
1995. 125 p. (Obras completas, v. 1).
ZAID, Gabriel. Seguimiento. Carta-Prólogo de Octavio Paz. México: Fondo
de Cultura Económica, 1964. 87 p. (Letras Mexicanas).
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A MULHER E O ESPELHO EM
PADRE ANTÔNIO VIEIRA –
RELAÇÕES DE
CONTINGUIDADE DIALÉTICA
NO SERMÃO DO DEMÔNIO
MUDO
THE WOMAN AND MIRROR IN
PRIEST ANTONIO VIEIRA –
AFFILIATIONS OF DIALECTIC
ADJACENCY IN SERMÃO DO
DEMÔNIO MUDO
Paulo Geovane e Silva
(Universidade de Coimbra)1
RESUMO: Padre Antônio Vieira (1608-1697), grande orador
e pregador português, produziu sermões que, devido às fortes
1
Mestre em Literatura Brasileira e Comparada pela Universidade de Coimbra e doutorando em
Literaturas de Língua Portuguesa - Investigação e Ensino pela mesma universidade.
Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra. Áreas: Literatura brasileira, literaturas africanas de língua portuguesa, literatura
comparada, estudos de gênero e estudos culturais. email: [email protected]
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dimensões literárias e ideológicas que lhes são peculiares,
despertam a atenção de muitos leitores e estudiosos da literatura
de expressão portuguesa ainda nos dias de hoje. Dentre as muitas
perspectivas que permitem ver a obra vieirina, uma das que tem
tomado grande projeção nos atuais estudos literários é aquela
que parte dos estudos de gênero, a fim de que seja possível
perceber qual é o local que o sexo feminino ocupa na
mundividência de Vieira. Nesse sentido, este artigo se propôs a
analisar, também pelo viés dos estudos de gênero, a maneira
como o jesuíta aborda o feminino, tendo como corpus de análise
o Sermão do demônio mudo, produzido em 1651 e pregado para
freiras num convento de Odivelas, Portugal. Para além de
compreender melhor a presença da mulher na abordagem de
Padre Antônio Vieira, tenciona-se também analisar em que medida
essa figura é útil ao discurso e à estratégia argumentativa do jesuíta
português.
PALAVRAS-CHAVE: Padre Antônio Vieira. Mulher. Sermão.
Identidade.
ABSTRACT: Padre Antônio Vieira (1608-1697), a great Portuguese orator and preacher, has produced lectures which had
called out the attention of many readers and Portuguese literature scholars until the present day because of the strong literary
and ideological dimensions that are peculiar to him. Amongst
the many perspectives under which it is possible to see the Vieirian
work, one that has great projection in the current literary studies
is the one that starts from the gender studies, so as to make it
possible to understand the space dedicated to the female gender
in Vieira’s worldview. In this sense, this paper intends to analyze
– also under the gender studies, the way a Jesuit approaches the
feminine, using as the analytical corpus the “Sermão do demônio mudo”,
written in 1651 and preached to the nuns in a convent in Odivelas,
Portugal. Besides better understanding the presence of the woman
in Padre Antônio Vieira’s approach, it is also intended to analyze
to what extent this figure is useful to the Portuguese Jesuit’s discourse and the argumentative strategy.
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KEYWORDS: Padre Antônio Vieira. Woman. Lecture.
Identity
Introdução
[...] vê as atrizes, que não menos cuidadosas, ali mesmo se ajustam, e
preparam; e que algumas apesar do tempo, e a milagres do artifício, cuidam
que reparam em brevíssimos instantes, a ruína que fizeram muitos anos,
semelhantes às serpentes quando se renovam, mas não tão felices; tôdas em
um espelho portátil estudam amor, desdém, severidade, contentamentos,
lágrimas; tudo aprendem no cristal, mestre mudo, e fiel, e que mudamente
ensina a propriedade, o ar, a graça; mas que importa, o ar é vão, a graça
é enganosa, e a propriedade é falsa; o representar é mentir.
(Matias Aires, 1966)
Da literatura às artes visuais, o espelho é um objeto recorrente,
cujo valor simbólico abarca um sem número de desdobramentos
semânticos, muitos dos quais antípodas entre si, a depender da
manifestação artística na qual se encontra figurado o espelho. Nesse
sentido, a singular presença que esse objeto tão quotidiano marca
nas manifestações estéticas merece muita atenção, pois, sobretudo
na literatura, o espelho carrega em si uma vida própria, uma função
pessoal e uma importante dimensão axiológica com relação à arte
literária e os seus efeitos de sentido: dos casos mais flagrantes, é de
se lembrar a história d’A Branca de neve e os sete anões, conto de fadas
no qual o espelho, que tinha uma voz própria, estava personificado
como um ente maligno e misterioso, conivente com a antagonista
da história; em Alice no país das maravilhas, era o espelho o meio pelo
qual a pequena Alice fora levada para um de seus mundos mágicos;
por último, o mais clássico exemplar da figuração do espelho –
Narciso. Envolvido pela própria beleza contemplada num espelho
d’água, Narciso é consumido pela admiração da própria face, e cai
num lago, onde morre afogado, transformando-se numa flor aquática
homônima ao personagem.
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Contudo, e a partir de uma analogia mais estreita e específica,
uma das representações mais comuns é aquela que associa o espelho
à vaidade e, consequentemente, à mulher, conforme retrata a epígrafe
acima, retirada da obra Reflexões sobre a vaidade dos homens, assinada
por Matias Aires. Na figura da atriz que se prepara para encenar,
Aires critica o uso do espelho como uma promoção da vaidade e
da mentira, já que, para além dos palcos, a mulher também representa
diante do espelho.
Como é possível notar tanto pela força simbólica do
espelho quanto pela epígrafe, vê-se aqui que, em algumas
produções literárias específicas, o espelho é o meio pelo qual
um determinado discurso reforça a ideia de que a vaidade é um
atributo feminino que, diga-se de passagem, associa à mulher uma
imagem altamente pejorativa e banalizante. Tal representação será
o foco de análise deste trabalho, no qual tenciona-se analisar O
sermão do demônio mudo, de Padre Antônio Vieira, em cujo discurso
o jesuíta aborda a temática do espelho com relação à vaidade.
Pregado para freiras num convento de Odivelas em 1651, este
sermão é um dos grandes exemplares que fazem ver a relação de
Antônio Vieira com as mulheres ou, mais propriamente, com o
universo feminino.
O espelho, a mulher e o barroco – relações de
contiguidade
A arte barroca, muito marcada pela presença da mulher (nua
ou vestida), tem sobretudo na pintura exemplos muito convincentes
de que há, no discurso autoral, a denúncia de uma relação muito
intrínseca, quase que essencial, entre a mulher e o espelho. Exemplo
muito contundente do que aqui se diz é o Vênus olhando-se ao espelho,
um óleo sobre tela assinado por Diego Velásquez, pintor espanhol
que viveu entre o século XVI e XVII:
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Completamente nua diante do espelho erguido por seu filho
Cupido, Vênus já não aparece em uma áurea divina, mas é retratada
num ambiente intimista que supõe e, simultaneamente, denuncia o
quotidiano da mulher: olhar-se ao espelho, contemplar-se, admirarse, tal como fizera Narciso. O mesmo fizeram Paolo Veronese (15281588) e Ticiano Vecellio (1473/90-1576), pintores italianos que,
respectivamente, assinam os seguintes quadros:
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Muitos outros exemplos poderiam ser aqui elencados para
demonstrar que há uma forte (e pejorativa) associação entre o sexo
feminino e o espelho, de modo que o segundo objeto seja visto
como algo intrínseco à realidade e quotidiano do primeiro. Na sua
relação com a pintura barroca, a literatura desse estilo epocal também
faz ver traços dessa relação, e quem, à sua peculiar maneira, chama a
atenção para este fato é Padre Antônio Vieira, jesuíta português
que, por caloroso amor à igreja e à vocação, entregou-se piamente à
vida religiosa, tendo falecido no Brasil em 1697. Contudo, e antes
ainda de adentrar no referido sermão, é preciso compreender melhor
a mundividência de Vieira, sobretudo no que diz respeito à figura
da mulher e à medida pela qual a estética barroca influencia a
percepção de mundo e a cosmovisão vieirinas.
Não há como compreender os sermões de Vieira sem uma
noção atentada da literatura bíblica, não somente por se tratar de
um orador católico que vinca todo seu discurso numa ideologia
bíblico-cristã, mas sim – e muito mais – porque o Barroco foi um
período estético completamente atravessado por essa literatura e,
em sua maioria, pode ser compreendido apenas através dela. A
pintura, a literatura e as artes plásticas do Barroco são todas elas
repletas de referências bíblicas, e, apesar de óbvio, vale ressaltar que
a Bíblia funciona como uma espécie de livro revelador do estilo
Barroco na medida em que foi uma grande fonte de inspiração para
os artistas daquela época.
Nesse sentido, a questão que aqui poderia ser levantada é:
como e com qual finalidade a mulher é evocada no discurso de
Padre Antônio Vieira? Por tudo o que já se sabe a respeito da
potencialidade retórica desse jesuíta, bem como pela sua
desenvoltura estético-literária circunscrita no barroco, o como fazse importante porque permite perceber, em termos de forma, as
estratégias literárias de figuração da mulher; consequentemente, a
finalidade da evocação do sujeito feminino encontra sua importância
não apenas enquanto resultante do como, mas também enquanto
um modo de perceber o que é meio e o que é fim no discurso de
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Vieira, e em qual desses dois momentos a mulher e a sua
mundividência se encaixam – ou não.
Dada essa instrínseca relação entre os sermões de Vieira e a
Bíblia, nada mais natural do que encontrar, em seus escritos e ditos,
um considerável número de mulheres cujas histórias estão
primeiramente narradas em textos bíblicos. De Eva a Maria, grande
parte das personagens femininas da Bíblia já figuraram na obra
parenética de Vieira, como afirmam José Eduardo Franco e Maria
Isabel Morán Cabanas a respeito da “importância paradigmática de
outras personagens como Sara, Agar, Tamar, Jael, Ester, Lia, Rebeca,
Micol, Dalila, Rute, Noemi, Abigail, Betsabé, Judite, Jetzabel, a
Rainha de Sabá, Dina, Raquel…” (1998, p. 43). Em A mulher no
discurso inventivo de Vieira2, Franco e Cabanas dão um horizonte
amplíssimo a respeito da maneira pela qual a mulher é abordada
nos sermões do jesuíta, demonstrando que “as menções ao universo
feminino servem, via de regra, como estratégia para ilustrar reflexões
moralizantes” (1998, 40). Além disso, esses investigadores
consideram ainda que os sermões de Padre Antônio Vieira permitem
perceber o contexto sócio-ideológico no qual estavam situadas as
mulheres contemporâneas ao jesuíta:
Vieira opera uma verdadeira ‘domesticação’ da mulher, confinando-a
aos limites estreitos da casa, enquanto ao homem dá como princípio
natural o espaço exterior da mobilidade. Todavia, não retira à mulher
capacidade pedagógica, pois dentro do seu lar pode exercitar e
desenvolver o seu papel de mestra espiritual da humanidade, transmitindo
a fé e orientando a vida do homem para a salvação (CABANAS;
FRANCO, 1998, p. 66).
De fato, o homem tinha, naquela época, uma liberdade maior
do que a da mulher – enquanto ele dominava o espaço público, ela
ficava relegada ao espaço privado, mas não deixava de exercer nesse
locus restrito a sua missão de promotora dos valores cristãos e da
vida. Mesmo dando essa espécie de autonomia à mulher, os papeis
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sociais definidos pelo gênero têm força no discurso de Vieira, e é
através da evocação desses papéis que a mulher perde sua
plasticidade e sua movência na voz do jesuíta. Mesmo dando à
mulher uma função legítima, o orador não tenciona elevar a imagem
da mulher muito para além do que a sua cultura permitia, motivo
pelo qual a mulher parece não ser objeto de discussão em Vieira.
Se, como afirma Eugênio D’Ors, o estilo “Barroco está secretamente
animado pela nostalgia do Paraíso Perdido” (1990, p. 27), a mulher
parece ser, a partir do que afirmam Franco e Cabanas (1998), um
dos argumentos que buscam convencer a assembleia a acreditar e a
buscar esse Paraíso, cujo processo de busca e alcance obviamente se
dará através das condutas morais existentes na Bíblia e atualizadas
na boca de Padre Antônio Vieira.
Partido, portanto, do pressuposto de que, em Padre Antônio
Vieira, a mulher é argumento, a presença do feminino nesse discurso
pode agora ser vista não como fim, mas como meio, ainda que a temática
do sermão vieirino contemple as figuras benévolas de mulher, como é
o caso de Maria e os textos que gravitam em torno de algum título
mariano específico, como, por exemplo, o Sermão de Nossa Senhora do Ó.
A partir do que até aqui foi dito, é tempo de partir para uma
leitura atenta do Sermão do demônio mudo, enunciação na qual Antônio
Vieira estabelece uma forte ligação entre as figuras demônio e da
mulher através da dialética do espelho, demonstrando como o
primeiro influencia no segundo através do terceiro. Essa relação da
mulher com uma força demoníaca é, obviamente, fruto da já gasta
relação de conivência entre Eva e a serpente, também tão recorrente
nos sermões de Vieira.
A dialética do espelho no Sermão do demônio mudo
Pregado no convento de Odivelas no ano de 1651, o Sermão
do demônio mudo, como o próprio nome parece sugerir, retrata dois
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tipos de manifestação demoníaca: a do demônio que “vem
bramindo, vem como inimigo declarado” e a do demônio mudo,
que “vem como inimigo oculto” (VIEIRA, 1651). Após discorrer
sobre essas duas formas de presença demoníaca – a que é perceptível
e a que não é –, Vieira conta uma breve história ocorrida em Itália,
onde um diretor espiritual, visitando as freiras em um determinado
convento, propunha às religiosas que se desvinculassem e abrissem
mão de tudo o quanto podia desviá-las de uma vivência espiritual
reta e totalizante, a fim de que as portas da alma se abrissem para
uma entrega mais perfeita a Deus. Cada freira retirou de sua cela o
que podia, deixando apenas o estritamente básico para a vida
religiosa. Entretanto, houve uma religiosa que se dispôs a abrir mão
de tudo, menos do espelho, objeto que muito prezava em sua cela.
A partir de então, Antônio Vieira começa a desenvolver uma
argumentação em torno da relação da mulher com o espelho,
demonstrando que esse objeto cristalino nada mais é do que uma
inconsteste manifestação do demônio mudo, aquele que fica à espreita
e que ataca quando menos se espera, e cujo poder de silêncio pode
incitar a mulher ao pecado da idolatria e à perdição. Como é comum
no discurso de Vieira, a origem da palavra/objeto: primeiramente,
o jesuíta faz um apanhado histórico da origem do espelho,
demonstrando que, no princípio, esse objeto se originara da própria
natureza:
na sua primeira origem já tinha sido o espelho obra da natureza, e do
soberano autor dela. As estrelas são espelhos do sol; os rios são espelhos
das árvores; uma fonte, que não devera, foi o espelho fatal de Narciso
(VIEIRA, 1651).
Entretanto, e mesmo sendo o espelho um objeto da criação
divina, Vieira acha justo compará-lo ao demônio, porque, segundo
o padre, ambos são criações de Deus: “O demônio primeiro foi
anjo, e depois demônio; o espelho primeiro foi instrumento do
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conhecimento próprio, e depois do amor próprio, que é a raíz de
todos os vícios” (VIEIRA, 1651), de modo que, sob o ponto de
vista do orador, “não há duas coisas que Deus criasse mais parecidas
e semelhantes que o demônio e o espelho.” (VIEIRA, 1651).
Depois de uma breve discussão sobre o caráter paradoxal do
espelho, Vieira chega ao fulcro de sua discussão – a vaidade. Neste
ponto do sermão, ele afirma que o espelho concorre com “uma
testemunha também falsa e muda, que é a formosura” (VIEIRA,
1651), momento a partir do qual o jesuíta defende a veneração da
face divina e a consequente negação da face e formosura humanas, a
fim de que a vaidade não corrompa o homem. A partir daqui, a
figura da mulher é crucial, porque, tendo em vista sobretudo a
assembleia ouvinte – composta por freiras –, Vieira começa por
evocar a ideia de mulher enquanto sujeito suscetível de
envaidecimento e, por consequência, de pecado, o que consiste num
risco para todas as mulheres, mas sobretudo para aquelas que, por
vocação e opção, decidiram seguir a vida religiosa. Vieira chega
mesmo a questionar tal atitude por parte de uma religiosa, colocando
em causa a sua identidade feminina diante dos seus compromissos
com Deus: “É possível que uma mulher virgem consagrada a Deus,
e desposada com o Filho de Deus, há de estar tão casada com o
espelho? É ela mulher? É ela filha de Eva?” (VIEIRA, 1651). Eva é,
como de costume, retomada como o símbolo da mulher-culpada,
cuja imagem será, como também é de costume, anulada pela atitude
soberana de Maria.
Para além da imagem da mulher associada ao matrimônio,
que vem de encontro à concepção de mulher que era contemporânea
a Vieira, o sermão faz ver ainda uma outra manifestação do universo
feminino: a posteridade de Eva como uma linhagem feminina: ao
falar do apetite da vaidade que não tocou a companheira de Adão,
cuja mulher não soube o que era um espelho, Vieira fala do “apetite
que herdaram da mesma Eva as suas filhas” (VIEIRA, 1651).
Justificando tanto o apetite quanto a filiação, o jesuíta afirma: “E
por isso há tantas no mundo – e fora do mundo – que gastam as
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horas e perdem os dias inteiros em se estar vendo, revendo e
contemplando no espelho, como se não tiveram nem esperaram
outra glória.” (VIEIRA, 1651).
De acordo com o jesuíta, toda essa vaidade – inscrita num
espaço que ele próprio define como mundus muliebris – corrompe a
alma feminina, e, a contraexemplo, ele refere, dentre tantas, Blesila,
uma viúva romana que, após uma vida inteira dedicada a se
contemplar ao espelho, foi tocada por Deus e, convertendo-se,
resolveu seguir a vida religiosa. Após um passeio pela dialética do
espelho, Vieira transporta o seu discurso para outra noção de
contemplação que, basicamente, consiste no espelhamento: da
vaidade – consequência do ver-se e contemplar-se ao espelho –, as
mulheres que escutavam o jesuíta foram, através do seu discurso,
convidadas à contemplação de Deus no “espelho da oração elevada”
(VIEIRA, 1651), de modo que, eliminando-se a si mesmas, não mais
se veriam naquele espelho mudo e demoníaco, mas sim noutro mais
sublime, cuja imagem ali contemplada não seria a sua própria figura
de mulher, senão a de Deus, ou, como o jesuíta apontará mais adiante,
a de Maria, referencial de mulher para todo e qualquer discurso
católico.
Do espelho ao espelhamento, o padre jesuíta segue com a sua
profusão de argumentos que tencionam retirar das ouvientes toda e
qualquer possibilidade de envaidecimento. A idolatria da mulher
para com a própria face deveria, portanto, dar lugar à adoração e
benevolência para aqueles que realmente eram dignos de receber
tais obséquios – Deus e Maria, a “Virgem das virgens” (VIEIRA,
1651). Na visão de Padre Antônio Vieira, somente conseguiriam
renunciar tal tentação as “religiosas de ânimo varonil”, cujo adjetivo
faz ver, obviamente, uma tendência não misógina, mas pelo menos
sexista no discurso do jesuíta: a mulher só consegue ser
suficientemente corajosa quando tomada por uma atitude masculina
– varonil – e, aqui, pode-se perceber o modo como a mulher é vista
no discurso de Vieira. Em virtude do homem, ela é obviamente um
sexo mais frágil e dependente.
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Reiterando a ideia de espelhamento, e já ao fim de tão longa e
minuciosa exposição, Vieira ordena:
Tende sempre, ó virgens, diante dos olhos a imagem da Virgem Maria,
a qual, como em espelho, resplandece o verdadeiro retrato da castidade,
e de toda a virtude. Este é o exemplo a que deveis compor todas as
vossas ações, porque nele, como mestra da perfeição,vos mostrará e
ensinará a mesma Virgem das virgens o que deveis emendar, o que
deveis fugir, e o que deveis imitar. (VIEIRA, 1651).
Ainda nesse sentido, o jesuíta pede que as freiras preservem a
formosura da alma, e não a da aparência, para que assim possam ser
mais dignas do matrimônio com Cristo, ao qual se dispuseram e
pelo qual devem zelar (cf. VIEIRA, 1651).
Ao explicitar os sofismas que advêm do espelho, e em meio
a um sem fim de exemplos, Vieira retoma as figuras de muitas
mulheres – umas que, como Blesila, abandonaram a idolatria da
face em nome da vida religiosa e de um outro espelhamento; e outras
que, não conseguindo renunciar ao mundus muliebris, são uma espécie
de contraexemplo do que é ser mulher e religiosa na época e na
visão cristã e ideológica de Vieira. Vale a pena ressaltar aqui que,
apesar de o discurso de Vieira valorizar o belo em tudo o que há, a
mulher não encontra propriamente um lugar nesse tudo: nela, o belo
é valorizado não na aparência e na face, mas nas atitudes, o que
também é determinado por uma sociedade patriarcal que espera da
mulher atitudes belas, condizentes com regras e expectativas sociais
vincadas na cultura cristã católica.
Se a mulher não é valorizada pelo que é, mas pelo que faz
(ou não), o sermão de Vieira também parece seguir essa linha de
abordagem: em O sermão do demônio mudo, a mulher não é foco da
discussão em nem um momento sequer, mas é evocada tão somente
como parâmetro de argumentação sobre o que é ideal ou não em
uma religiosa e, por isso, como estratégia de persuasão, de modo
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que todas as figuras femininas que aparecem nesse discurso servem
apenas como meio, como já referido anteriormente, e não como fim.
– a mulher é um argumento para que Antônio Vieira faça com que
as religiosas, enquanto mulheres acusadas por, a partir de Eva,
fazerem existir e persistir a vaidade, repensem a sua identidade a
partir de um condicionalismo ideológico ainda maior. Como
também referido, não se trata de misoginia, mas sim de uma espécie
de sexismo envolvido e disfarçado por uma digna justificação: a
magnificência da vida religiosa.
Consideração final
Considerar a dimensão societal do sermonário de Vieira é
importante porque, ao falar sobre a presença da mulher num discurso
cristão e católico do século XVII, é preciso considerar também que,
naquele tempo, um conjunto de vetores sociais influenciavam a
mentalidade do tempo, bem como construíam na mundividência
feminina uma outra ideia de identidade e discursividade pertinentes
à mulher, tal como ocorre sempre e atualmente.
É de ressaltar o fato de que tanto o espelho quanto a mulher
são elementos dialéticos no discurso de Vieira, o que permite
perceber, no ponto de vista do jesuíta, uma ideia de intrínseca relação
entre a vaidade – alegorizada no espelho – e a mulher, praticamente
alegorizada em figuras femininas ideais ou não. Se Padre Antônio
Vieira compara o espelho com o demônio, ele também parece
estabelecer uma relação de proximidade entre o espelho e a mulher,
quase que substituindo-a pela figura do demônio e, por isso,
demonizando-a também por ser tão vinculada ao objeto de
apreciação da formosura e idolatria da própria face.
A par de toda a ideologia de Padre Antônio Vieira, não é
possível deixar de apontar que, no discurso desse jesuíta, tão pensado
e relido na atualidade, a mulher é conduzida não apenas à negação
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da própria beleza e peculiaridades, mas também a não se enxergar
enquanto mulher, isto é, a ignorar sua identidade feminina perante a
sociedade, já que, em vez de espelhar-se em si mesma, a mulher é
impelida a espelhar-se em um outrem ideal aos olhos da Igreja. Notese que, para além de Deus, este outrem também é uma mulher.
Contudo, trata-se de uma mulher que é eleita pela fé católica como
modelo ideal, e não como símbolo da diversidade que se
circunscreve no gênero feminino. Obviamente, o discurso vieirino,
ainda que articulado com admirável perícia e sabedoria, está vincado
num tempo em que a mulher, se não lutava tanto por uma
emancipação identitária, ao menos conformava-se com o que lhe
era socialemente imposto, de modo até a conseguir viver bem com
alguns condicionamentos sociais, e o discurso de Padre Antônio
Vieira compõe de maneira significativa esse mosaico ideológico pelo
qual andou o pensamento barroco.
Referências
CABANAS, M. I. M. e FRANCO, J. E. Padre Antônio Vieira e as
mulheres: o mito barroco do universo feminino. Porto: Campo das Letras,
2008.
ORS, Eugênio d’. O barroco. Trad. Luís Alves da Costa. Lisboa: Veja, 1990.
VIEIRA, Antônio de. Sermão do demónio mudo. 1651. (disponível em:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0043-01920.html.
Consultado em: 17 de dezembro de 2012).
Nota
2
In Padre Antônio Vieira e as Mulheres: o mito barroco do universo feminino. Porto, 2008: p.
39-53.
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REFLEXÕES SOBRE NOVAS
TECNOLOGIAS E EDUCAÇÃO
THOUGHTS ABOUT NEW
TECHNOLOGIES AND
EDUCATION
Alexandre Vilas Boas da Silva
(UEL/UNOPAR)1
RESUMO: A história do homem é marcada pela invenção de
aparatos tecnológicos que o auxiliam em suas tarefas,
potencializando habilidades e, normalmente, facilitando a vida.
A criação e aperfeiçoamento dos recentes recursos das tecnologias
da informação e comunicação (TIC), nas últimas décadas,
trouxeram mudanças significativas no modus vivendi, a partir da
popularização de ferramentas de informática. Tais ferramentas,
que não se restringem somente aos computadores pessoais,
invadiram diversos segmentos da vida do homem, fazendo parte
de áreas distintas como a comunicação, o entretenimento, a
1
Doutorando em Letras – Estudos Literários, pela Universidade Estadual de Londrina.Caixa
Postal 10.011. CEP 86057-970. Londrina – Paraná – Brasil. Docente na Universidade Norte
do Paraná (UNOPAR/EaD), Avenida Paris, 675– Jardim Piza, CEP86041-120–Londrina–
Paraná – Brasil.
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medicina, a produção de alimentos, os transportes, a educação,
dentre outras. O objetivo deste artigo é realizar reflexões acerca
da recente utilização pedagógica dos recursos de novas
tecnologias, a partir de reflexões de Umberto Eco e Pierre Lévy
– dois pensadores que problematizam, de forma seminal,
questões pertinentes ao tema e ainda atuais.
PALAVRAS-CHAVE: educação; informática; novas tecnologias
da informação e comunicação.
ABSTRACT: The human’s history is well-marked by the invention of technological devices, that help mankind in his tasks, enhancing skills and usual lymaking life easier. The creation and
improvement of the latest features of information and communication technology (ICT) in recent decades, have brought
significant changes in the modus vivendi from the popularization
of computer devices. These tools, which are not restricted only
to personal computers, invaded various sectors of human life,
being part of different are as such as communication, entertainment, medicine, food production, transport, education, etcetera.
The aim of this work is to think about the latest pedagogical use
of resources for new technologies, starting from reflections by
Umberto Eco and Pierre Lévy - two thinkers who face the subjec
tat its beginning, but still current.
KEYWORDS: Education; computers; new information and
communication technology.
Introdução
A história do homem é marcada pela invenção de aparatos
tecnológicos que o auxiliam em suas tarefas, potencializando
habilidades e, normalmente, facilitando a vida. A criação e
aperfeiçoamento dos recentes recursos das tecnologias da
informação e comunicação (TIC), nas últimas décadas, trouxeram
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mudanças significativas no modus vivendi, a partir da popularização
de ferramentas de informática. Tais ferramentas, que não se
restringem somente aos computadores pessoais, invadiram diversos
segmentos da vida do homem, fazendo parte de áreas distintas como
a comunicação, o entretenimento, a medicina, a produção de
alimentos, os transportes, a educação, dentre outras. Considerando
tal contexto, o objetivo deste artigo é realizar reflexões acerca da
recente utilização pedagógica dos recursos de novas tecnologias, a
partir de considerações de Umberto Eco e Pierre Lévy – dois
pensadores que problematizam, de forma seminal, questões
pertinentes ao tema. Vale lembrar que as discussões de ambos, apesar
de datadas de mais de uma década, continuam pertinentes em muitos
aspectos, como veremos a seguir.
Partimos também do pressuposto de que as instituições
educacionais – independente de pertencerem à iniciativa pública ou
privada – estão, ano após ano, incorporando mais equipamentos de
informática, aplicativos e recursos da rede mundial de computadores,
a World Wide Web (www), com finalidades pedagógicas. Por este
motivo, julga-se pertinente realizar discussão acerca do tema.
Parece algo natural que a incorporação de recursos
tecnológicos exija de seus envolvidos o desenvolvimento de
habilidades e o domínio mínimo de algumas técnicas, que vão desde
a operação básica de aparelhos – até então estranhos a atividades
educacionais – à adequação de propostas pedagógicas, para uma
incorporação significativa destes recursos na educação.
Naturalmente, tal incorporação no processo educacional não
implica, necessariamente, em melhora qualitativa dos processos
de ensino e aprendizagem. Contudo, parece indiscutível a melhoria
em alguns aspectos como a ampliação das possibilidades de
pesquisa e de trocas de informações entre pessoas fisicamente
distantes; bem como a otimização da organização e processamento
de dados complexos, agora realizados por autômatos, de forma
muito mais rápida.
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Estas potencialidades aparentam ser evidentemente vantajosas,
havendo certo consenso acerca da necessidade de uso de tais aparelhos
com propósitos educacionais, embora alguns críticos possam, com
propriedade, apontar aspectos negativos, como o embotamento de
habilidades cognitivas das pessoas como a memória, a capacidade de
concentração ou a faculdade de realizar cálculos mentais. Contudo,
não há confluência no que diz respeito àefetiva utilização destes
recursos, talvez por ainda não termos o distanciamento histórico
necessário para mensurar os impactos que suas diferentes utilizações
produzirão na formação escolar das novas gerações.
Recursos tecnológicos na educação: uma metáfora e algumas
expectativas
Para ilustrar o contexto de dissensão sobre o uso de novos
recursos tecnológicos na educação, retomo passagem do conto “A
Biblioteca de Babel”, do escritor argentino Jorge Luis Borges, que parece
servir de metáfora para esta situação. No início do conto, encontramos
a descrição de uma biblioteca aparentemente infinita, que deslumbra e
também assombra seus habitantes – os bibliotecários:
Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a
primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens
sentiram-se senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia
problema pessoal ou mundial cuja eloqüente solução não existisse: em
algum hexágono. O universo estava justificado, o universo bruscamente
usurpou as dimensões ilimitadas da esperança. (BORGES, 1972, p. 89)
A euforia inicial dos homens diante da biblioteca – supostamente
um repositório total, que abrigaria todo o conhecimento possível – é
posteriormente suplantada por um sentimento de impossibilidade
de compreensão, ainda que parcial, dessa totalidade2.
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De forma semelhante, a possibilidade de uso dos recursos de
informática e de interconectividade de computadores através da
internet, para propósitos educacionais, parece tomar semelhante
rumo: a “extravagante felicidade”toma conta de alguns entusiastas,
que veem nas TIC uma forma moderna e redentora da educação.
Obviamente a simples adoção de novas ferramentas tecnológicas
está longe de resolver os profundos problemas dos sistemas de
ensino do nosso país. Mesmo assim é interessante observar como
se difundeo marketing em torno da aquisição de equipamentos de
informática por instituições educacionais, sejam as privadas que
oferecem tablets e conteúdosdigitaiscomo diferencial na apresentação
dos materiais dos cursos, ou nas instituições públicas, nas quais os
microcomputadores e demais recursos de informática são
mencionados como investimento em educação, veículos
responsáveis pela modernização e melhoria do ensino.
Podemos observar que os termos que se referem a estes
aparatos habitualmente são revestidos de um caráter positivo, de
atualização, dinamismo e eficiência3. No entanto, parece óbvio que
apenas a aquisição destes equipamentos não garante progressão
qualitativa nos processos educacionais, uma vez que a utilização
pedagogicamente proveitosa depende de uma série de fatores, que
incluem a formação dos docentes, para a conquista de familiaridade
e segurança no uso destes recursos. No entanto, tal discussão, que já
ocorre a pelo menos uma década, parece ainda não fazer parte dos
cursos de formação de professores ou dos programas de capacitação
docente em várias das instituições de ensino do país ou adotadas de
forma sistematizadas como políticas educacionais, para atendimento
de todos os profissionais da educação básica à superior4.
Umberto Eco: o lugar da inovação diante da tradição
A conferência de Umberto Eco, intitulada “Da Internet a
Gutenberg”, proferida em 1996, mantém-se atual e válida em
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diversos aspectos, como, por exemplo, na menção da dificuldade
natural de aceitação das novas invenções por parte dos seres
humanos. Podemos ainda ressaltar no texto diversos pontos que
podem ser relacionados às práticas pedagógicas, a começar pela
nota, do Prof. Dr. João Bosco Alves, à tradução de Conferência.
O Professor observa, na época da publicação do texto em
português: “a resistência, ainda remanescente no Brasil, do uso
ostensivo de modernos aparatos tecnológicos em áreas nitidamente
carentes (como é o caso da educação)” 5 . E continua suas
ponderações demonstrando esperança na educação a distância
(EaD), acentuada pelo uso da internet, para reverter de tal
precarização educacional:
Ora, o Brasil (um país do terceiro mundo ou, se preferirem, em
desenvolvimento), de dimensões continentais, está beirando os 200
milhões de habitantes com, pelo menos, a metade dessa população
constituida[sic] de analfabetos funcionais, ou seja, pessoas que não
conseguem interpretar textos condignamente. Essa perversa e excludente
realidade foi construída pelo modelo educacional ainda vigente no país.
E, pela primeira vez em 500 anos, temos a real possibilidade de atacar
o problema de frente. O uso da educação a distância, hoje turbinada
com o auxílio da Internet, é um recurso relativamente barato que pode
auxiliar de fato nessa tarefa, e que o país não pode se dar ao luxo de
subestimar. Muito menos de não utilizá-lo. (ECO, 1996. s.p.)
Ainda que tenham sido incrementados os índices
educacionais brasileiros na última década, bem como o
orçamento destinado à educação 6 , os resultados gerais de
avaliações de desempenho de estudantes ainda podem ser
melhorados, como discutiremos adiante.
Em sua conferência, Umberto Eco relata o receio, natural,
mantido em gerações que presenciaram grandes avanços
tecnológicos: o medo de que novos inventos tecnológicos possam
destruir algo caro e útil à humanidade. Cita, como exemplos, o
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episódio da invenção da escrita, extraído do diálogoFedro, de Platão,
e também a criação do livro impresso, mencionando um episódio
de O Corcunda de Notre-Dame, de Vítor Hugo.
O autor demonstra como tal receio é inócuo e que nem sempre
os avanços tecnológicos culminam em melhora – seria antes uma
mudança de “linguagem”, como ocorreu com a substituição das
imagens nas catedrais pela instrução escrita. O autor ainda relativiza a
progressão qualitativa das produções e demonstra como isso não traz
relação direta com o suporte que as abrigam. Podemos notar isso no
argumento (bem humorado) do autor ao tecer um elogio às imagens
das catedrais medievais em detrimento das imagens das TV:
Na Idade Média, a comunicação visual era, para as massas, mais
importante que a escrita. [...] As catedrais eram as TVs daqueles tempos,
e a diferença para as nossas TVs era que os diretores da TV medieval
liam bons livros, tinham um pouco de imaginação, e trabalhavam para
o benefício do público. (ECO, 1996. s.p.)
Na conferência, Eco pondera sobre as mudanças tecnológicas,
realizando uma defesa do suporte impresso e elenca algumas
vantagens deste em relação suporte digital, mais especificamente
aos hipertextos do final do século XX. O autor, no entanto, não
despreza as potencialidades de tal suporte,em quea tela do
computador seria uma espécie de livro ideal, com capacidade de
buscar informações de forma muito mais ágil e eficaz, o que é
plausível. No entanto, Eco defende a superioridade do documento
impresso para a leitura cuidadosa, minuciosa7. Menciona, como
exemplo disso, o hábito de se imprimir manuais para operar um
programa de computador. Certamente, para as novas gerações,
intituladas nativas digitais8, isso já não seja problema, uma vez que
os suportes de leitura se aprimoraram, per mitindo maior
mobilidade, conforto e ergonomia de leitura do que a realizada nos
monitores de tubos de raios catódicos. Atualmente, é
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possívelinclusive adicionar, com facilidade, anotações em um leitor
digital portátil, de tela sensível ao toque.
Outra questão importante para a discussão de uso de novas
tecnologias na educação é também mencionada por Umberto Eco
em sua conferência: a natureza do processo de leitura se modifica
com o hipertexto? Para o autor parece não haver nenhuma mudança
importante, somente uma mudança de suporte que abriga as
informações9. Neste ponto da discussão, Eco enumera várias
iniciativas da modernidade em que teríamos obras tradicionais que
possuem características atribuídas ao hipertexto como inovações.
Refuta, por exemplo, a “abertura” do hipertexto em oposição à
suposta linearidade dos textos impressos, mencionando casos de
livros que poderiam ter seus capítulos (ou páginas) lidos
aleatoriamente, ou mesmo a junção de versos ou palavras
desordenadas para compor poemas. Defende ainda que mesmo um
texto linear e “fechado” poderia gerar diversas interpretações – mas
naturalmente não”qualquer”interpretação. Deste modo, o
hipertexto, assim como o texto “tradicional”, seria também um
sistema fechado, finito, limitado. Em suma, aparentemente para Eco
o hipertexto era algo já existente antes mesmo da popularização
dos computadores, no entanto sem descartar uma potencialidade
dos novos aparatos tecnológicos e do hipertexto:
Estamos caminhando para uma sociedade mais liberada na qual a livre
criatividade co-existirá com a interpretação textual. Gosto disso. Mas
não deveremos dizer que substituímos uma coisa velha por outra nova.
Temos as duas, graças a Deus. Assistir TV nada tem a ver com assistir
um filme. Um dispositivo hipertextual que nos permita inventar novos
textos nada tem a ver com nossa habilidade de interpretar textos préexistentes. (ECO, 1996. s.p.)
A conclusão do autor na conferência aplica-se perfeitamente
às atuais discussões da utilização dos recursos tecnológicos digitais
na educação, uma vez que a chegada de novos recursos não torna,
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necessariamente, obsoletos os velhos, como foi o caso da fotografia
e da pintura: o antigo influencia o novo e vice-versa.
De forma ponderada, Ecotambém nos chama a atenção para
alguns problemas decorrentes da”modernização”, como a solidão
e o excesso de informação, aliado uma inabilidade para escolher e
discriminar. Para lidar com estes problemas, seria necessário
desenvolvernovas formas de ensinar e aprender “uma nova forma
de competência crítica, uma arte por enquanto desconhecida de
seleção e dizimação de informação, em suma, um novo bom senso.
Precisamos de um novo tipo de treinamento educacional” (ECO,
1996. s.p.). Deste modo, seríamos capazes de diferenciar de forma
competente uma informação confiável de outranão confiável, um
dado pertinente de outro irrelevante. Logo, cabe a nós, que
vivenciamos este processo de mudanças, pensarmos em alternativas
válidas para lidar apropriadamente com tais questões, o que decerto
é um grande desafio para as atuais e novas gerações de educadores.
Certamente, as novas ferramentas tecnológicas podem propiciar
maior interatividade com conteúdos de diversas mídias, facilitar a
comunicação entre pessoas distantes, facilitar a busca, o processamento
e a organização de dados, além de incluir, a cada ano com mais
intensidade, acesso a atrativas mídias audiovisuais, familiares aos
aprendizes das novas gerações, como mencionado anteriormente.
No Brasil, percebemos os esforços governamentais para
implementar programas de informatização em estabelecimentos de
ensino. Algumas vezes, isso é feito sem que existam projetos
consistentes de infraestrutura, para os laboratórios, e de
conectividade com a internet, o que pode limitar a efetiva utilização
destes equipamentos. Os investimentos vêm aumentado ano após
ano, como comprovam dados disponíveis no Sistema Integrado de
Monitoramento Execução e Controle (SIMEC)10, do Ministério da
Educação (MEC), o que, no entanto, ainda não representa uma
modificação significativa nos índices qualitativos da educação no
país, como demonstram os fracos resultados recentes do Brasil em
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avaliações de organizações, como é o caso do exame do Programme
for International Student Assessment (PISA)11.
Mesmo questionando a parcialidade e o real alcance destes
métodos avaliativos, o panorama atual é preocupante: os resultados
demonstramníveis insuficientes de proficiência de leitura. Nesse
contexto, espera-se que os recursos de informática e conectividade
possam promover melhora sensível nos índices educacionais do país,
quem sabe a médio prazo. Talvez o próprio processo de incorporação
efetiva de tais recursos exija ainda mais tempo para que progressos
sejam notados, até mesmo para que haja tempo hábil para formação
e capacitação dos educadores, para uma consequente incorporação
dos recursos às práticas educacionais, de forma consistente.
Pierre Lévy: cibercultura e a nova relação com o saber
Outro estudioso que trata das mudanças propiciadas pelas
novas tecnologias ainda no final do século XX é Pierre Lévy. Em
seu livro intitulado Cibercultura, o autor dedica o décimo capítulo,
“A Nova Relação com o Saber”, a uma reflexão acerca do espaço
propiciado pelas recentes tecnologias de informação e comunicação,
relacionadas à construção de saberes. Neste texto, Lévy deixa
transparecer uma perspectiva predominantemente positiva diante
das possibilidades de uso dos recursos multimidiáticos, o que o torna
uma espécie de guia, para os entusiastas das novas tecnologias.
Em sua obra, Lévy mencionaalgumas modificações sensíveis
na relação dos homens com o saber, ainda no final do século XX,
com o advento da chamada cibercultura. Uma das constatações feitas
seria a modificação na velocidade de surgimento e de renovação de
saberes: “pela primeira vez na história da humanidade, a maioria
das competências adquiridas por uma pessoa no início de seu
percurso profissional estarão obsoletas no fim de sua carreira”
(LÉVY, 1999, p. 157). Tal constatação soa verossímil diante da
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crescente popularização de equipamentos de informática, que a cada
anoampliam sua portabilidade, bem como a capacidade de
processamento, transmissão e armazenamento de dados. Um
segundo aspecto que atesta a nova relação com o saber, observado
pelo autor, relaciona-se à nova natureza do que se entende por
trabalho: atividade, cada vez mais, ligada às habilidades de
“aprender, transmitir saberes e produzir conhecimentos” (LÉVY,
1999, p. 157). A terceira e última modificação sensível mencionada
pelo autor é a cognitiva, uma vez que as tecnologias no ciberespaço
hipoteticamente transformam nossa concepção tradicional de
memória, imaginação, percepção e raciocínio.
Esse novo contexto traria algumas vantagens, como, por
exemplo, as novas formas de acesso à informação. Esse parece ser
um dado inconteste, uma vez que a disseminação de conteúdos é
claramente facilitada pelas conexões entre máquinas na rede mundial
de computadores. Se pensarmos na limitação de acesso (físico) a
acervos documentais, realmente a disponibilização de arquivos
digitais consegue vencer barreiras geográficas, permitindo
socialização no acesso a informações diversas.
Outra vantagem mencionada pelo autor seria a possibilidade
de exploração de novos estilos de raciocínio e de conhecimento, a
exemplo das simulações. Notamos, recentemente, em diversas áreas
do conhecimento, a incorporação de simulações virtuais como
método de desenvolvimento de habilidades cognitivas. Enquadramse nesta categoria, por exemplo, os chamados serious games, que
objetivam desenvolver habilidades para além do entretenimento,
ou mesmo os simuladores virtuais, que podem servir como uma
etapa de treinamentopara operação de máquinas em atividades
profissionaisespecializadas.
Para Lévy, a utilização de tecnologias intelectuais possibilita a
objetivação dos conhecimentos, no sentido de transformá-los em
documentos digitais, sendo facilmente compartilhadas entre pessoas,
tornando possível o incremento da inteligência coletiva humana. Tal
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posicionamento do autor corrobora seu aspecto afirmativo e
otimista, ressaltado anteriormente. Tal suposição parte da hipótese
de que os seres humanos buscam sempre uma utilização positiva e
ponderada das tecnologias (em sentido lato) e, portanto, ideal.
Com esta mudança de paradigma, sugerida por Lévy,
menciona-se, como desdobramento, a necessidade de se “construir
novos modelos do espaço dos conhecimentos” (LÉVY, 1999, p.
158), em que seria preciso encontrar um novo estilo de pedagogia,
que trabalhasse com uma reformulação dos modos de ensinar e
aprender, misturando aprendizagem personalizada e coletiva em rede
– da qual faz parte a educação a distância.
Tais modificações certamente trariam mudanças no próprio
papel do professor, que, segundo o autor, passa de “fornecedor
direto de conhecimentos” (LÉVY, 1999, p. 158) a figurar como uma
espécie de mediador no processo educacional, mostrando caminhos
e modos de selecionar informações e produzir conhecimentos, uma
vez que o acesso às ferramentas de pesquisa é facilitado no ambiente
do ciberespaço. Neste caso, os conhecimentos hierarquizados, em
forma de pirâmide, com diferentes níveis de gradação, dariam lugar
a uma forma de organização mais fluida, aberta e não linear –
consolidando aquilo que seria uma das características básicas do
hipertexto: a multiplicidade de nós que, potencialmente, liga-se a
diversos outros pontos. Aqui Lévy faz uma comparação da página
impressa com uma página da web, buscando demonstrar como esta
parece ser mais vantajosa que aquela, por ser mais “aberta” –
possibilitando, com isso, uma espécie de unidade de fluxo – com a
capacidade de se conectar a outros documentos hospedados em
outras partes do planeta. Notamos aqui uma discordância com as
ideias abordadas anteriormente na conferência de Umberto Eco.
A World Wide Web, citada pelo autor como um dos principais
eixos de desenvolvimento do ciberespaço, continua sendo local
de uma cultura ainda por se consolidar. Certamente, nesse “oceano
de informação” (LÉVY, 1999, p. 160), um dos grandes desafios
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de seus usuários é conseguir “filtrar” informações pertinentes, papel
esse que os educadores necessitam assumir diante da cibercultura,
na tentativa de fazer com que seus usuários consigam discernir
fontes plausíveis de outras não confiáveis. Tal habilidade seletiva
estaria relacionada a uma espécie de “letramento digital”, ou o
que Umberto Eco, menciona em sua conferência como alteração
do próprio conceito de alfabetização: “Hoje o conceito de
alfabetização compreende várias mídias. Uma boa política de
alfabetização considera as possibilidades dessas mídias todas. A
preocupação educacional deve ser estendida ao conjunto das
mídias.” (ECO, 1996. s.p.).
Obviamente, tal tarefa não é simples de ser realizada, pois os
usuários podem criar, modificar e replicar informações com muita
facilidade, sem a necessidade da chancela de instituições
especializadas: a solidez e a materialidade dos textos se desfazem
diante da volatilidade do “oceano” informacional virtual. Isso que
pode parecer uma democratização de acesso e criação de conteúdos
pode também gerar perda de referência, pela grande quantidade de
informação, que não implica em obtenção de conhecimento.
Pierre Lévy, diante da suposta nova forma de organização
informacional, faz recomendações diante desse “dilúvio de
informações”, dentre as quais encontramos a sugestão de que:
Devemos portanto nos acostumar com essa profusão e desordem. A
não ser em caso de catástrofe natural, nenhuma grande reordenação,
nenhuma autoridade central nos levará de volta à terra firme nem às
paisagens estáveis e bem demarcadas anteriores à inundação. (LÉVY,
1999, p. 160-161)
É interessante notar como as imagens ligadas à liquidez das
informações no ciberespaço são empregadas reiteradamente ao
longo de todo o texto de Lévy: aqui a metáfora da água é usada
para demonstrar a fluidez das informações em ambientes virtuais.
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Diante da “inundação de informação contemporânea” (LÉVY,
1999, p. 160), o autor novamente toma um posicionamento otimista
em relação ao ciberespaço, buscando sugerir formas de adaptação
às mudanças inexoravelmente instauradas. Assim sendo, considera,
mais uma vez, os novos aspectos comunicacionais positivos, ao
realizar a negação da pretensa “frieza” e isolamento dos sujeitos ao
realizarem a leitura no ciberespaço. O autor considera a leitura do
texto em tela algo muito semelhante à leitura em papel, ainda que
isso tenda a se modificar. No entanto, como observa Lévy,
dificilmente ouvimos críticas à atividade de leitura realizada em
papel, diferentemente da leitura hipertextual, que poderia
supostamente gerar dispersão(por conta da multiplicidade de nós,
próprios da estrutura hipertextual) ou por limitações técnicas na
própria relação do leitor com o suporte dos textos (por exemplo, a
portabilidade e a possibilidade de realizar anotações seriam, há alguns
anos, exclusividades dos livros impressos).
Notamos que atualmente várias editoras ampliam
investimentos no crescente nicho de comércio de livros digitais (os
e-books), uma vez que os aparelhos portáteis que permitem leitura
de livros digitais estão se tornando economicamente mais acessíveis
e funcionais. Estaríamos, portanto, diante de uma nova revolução
nas formas de organização do conhecimento humano, que passou
pelas etapas da difusão por meio da oralidade, da escrita manual e,
posteriormente, da escrita impressa.
Outro ponto de destaque mencionado pelo autor diz respeito
à impossibilidade de abarcar todos os conhecimentos no ambiente
do ciberespaço, discussão que é aprofundada no capítulo “O
Universal sem totalidade: essência da cibercultura”, do mesmo livro
em questão. Os conhecimentos organizados e totalizáveis, dos
saberes bem delimitados e organizados –a exemplo do
revolucionário trabalho de Diderot e d’Alembert em
formatoenciclopédico
“fechado”
–
dariam
lugar
contemporaneamente a uma forma de organização do conhecimento
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que passa “definitivamente para o lado do intotalizável, do
indominável” (LÉVY, 1999, p.161). Deste modo, não haveria mais
pretensão de verdades absolutas: os conhecimentos tornar-se-iam
mais maleáveis, e provisórios, organizados de forma muito mais
aberta: “uma miríade de pequenas totalidades, diferentes, abertas e
provisórias, secretadas por filtragem ativa, perpetuamente
reconstruídas, pelos coletivos inteligentes que se cruzam” (LÉVY,
1999, p. 161). Aqui temos novamente uma visão bastante otimista
do ciberespaço, em que os usuários são capazes de colaborar ativa e
criticamente na construção de saberes.
Paralelamente a essa possível renovação nos métodos de
organização de informações e saberes, o autor do texto menciona
“a frivolidade do esquema da substituição” de uma tecnologia
por outra. E exemplifica falando da função cumprida pelo
telefone, que não impediu as pessoas de se encontrarem
fisicamente, uma vez que o mesmo é utilizado, inclusive, para
marcar encontros. E distende o raciocínio para os novos meios
de comunicação, como o correio eletrônico, que se trataria apenas
de mais uma ferramenta, um meio de comunicação. Tal discussão
também se aproxima daquele antigo e recorrente receio da raça
humana, mencionado por Umberto Eco, de que o novo
substituiria (e “mataria”) o velho:
Mais de um milênio depois Victor Hugo, em O Corcunda de NotreDame, mostrou-nos um padre, Claude Frollo, apontando seu dedo
primeiro para um livro e, então, para as torres e as imagens dessa amada
catedral, dizendo “ceci tuera cela”, isso matará aquilo. (O livro matará a
catedral, alfabeto matará imagens). (ECO, 1996. s.p.)
O argumento de Lévy, que parece plausível, trata o texto lido
em tela de um computador ainda como texto, uma vez que ocorre
(pelo menos por enquanto) somente uma mudança no suporte de
difusão.
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Nesse contexto, o autor menciona uma possível modificação
na “ecologia cognitiva” (LÉVY, 1999, p. 162) das pessoas,
justamente por conta dessa mudança na maneira de se produzir
conhecimentos. E cita o exemplo da memória artificial (externa)
que historicamente substitui técnicas tradicionais de memorização
(internas), próprias de sociedades ágrafas. Estaríamos, portanto,
diante de uma possível tecnologia que mudaria as estruturas
cognitivas das pessoas, por propor novas formas de encarar os
dados culturais. Deste modo, a própria educação colocaria o
atributo da memorização em um plano secundário, uma vez que
os repositórios de conteúdos em rede funcionariam como uma
espécie de memória externa ancilar.
Partindo dessas discussões, Pierre Lévy trata, por fim,da
simulação como nova forma de conhecimento propiciada pela
cibercultura e que ocupa lugar central na mesma, por sua pretensa
capacidade de ampliar a imaginação individual das pessoas,
propiciando um “aumento da inteligência coletiva” (LÉVY, 1999,
p. 165). No entanto, o autor também menciona, neste processo de
maturação do ciberespaço, o possível sentimento de desorientação,
que precisa ser contornado a partir do desenvolvimento desta
mesma inteligência coletiva, que trata da “utilização otimizada e a
criação de sinergia entre as competências, as imaginações e as
energias intelectuais” (LÉVY, 1999, p. 167), igualmente de
responsabilidade dos atuais sistemas educacionais. Deste modo, o
autor encerra a discussão com recomendações para que as políticas
educacionais considerem as modificações propiciadas pela
interconexão de computadores do planeta, o que ainda permanece
como um desafio em nossos tempos, mesmo depois de mais de
uma década de sua publicação.
A questão que permanece é como pensar no uso das novas
tecnologias como ferramentas que possibilitem não apenas
facilitar o acesso a repositórios de conteúdos, mas que permitam
realizar abordagens diferenciadas das mesmas, concretizando o
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aumento da inteligência coletiva, almejado por Lévy. Não nos
cabe, portanto, a simples defesa ou condenação das novas mídias
na atualidade, mas sim a tarefa de trazer à discussão o papel de
sua utilização educacional consciente, crítica e eficiente: o que
ainda precisamos construir.
Referências
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Nejar. São Paulo: Abril, 1972.
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MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do
homem understanding media. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 2011.
VIRGIL, Johnny. A Biblioteca de Babel: uma metáfora para a sociedade da
informação. DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação. Rio
de Janeiro v.8. n.4. ago. 07. Disponível em: http://www.dgz.org.br/ago07/
F_I_art.htm. Acesso em 22 jul. 2013.
MORAN, Jose Manuel. Os novos espaços de atuação do educador com as
tecnologias. 2004. Disponível em: http://www.eca.usp.br/moran/
espacos.htm. Acesso em 26 ago. 2013.
Notas
2
O artigo de Johnny Virgil, “A Biblioteca de Babel: uma metáfora para a sociedade da informação”
faz um paralelo da sociedade da informação e o realismo fantástico presente no conto de
Borges.Disponível em: http://www.dgz.org.br/ago07/F_I_art.htm. Acesso em 22 jul. 2013.
3
O Projeto de aquisição e distribuição de tablets, pelo Ministério da Educação / FNDE é
exemplar neste caso: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=
article&id=17479. Acesso em 15 jan. 2013.
4
O artigo do Professor José Manuel Moran, “Os novos espaços de atuação do professor com as
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tecnologias”, atesta contexto muito semelhante ao descrito no início deste artigo, em que se
coloca o desafio de integrar o uso da internet e das novas tecnologias para finalidades pedagógicas.
5
Disponível em: http://www.inf.ufsc.br/~jbosco/ InternetPort.html. Acesso em 17 ago.
2013.
6
Conforme informações do Ministério da Educação disponíveis em: portal.mec.gov.br/
index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=13844&Itemid=. Acesso em 26
ago. 2013.
7
Porém, o autor declarou, em entrevista no ano de 2011, ter adquirido um iPad e apreciado
algumas vantagens do aparelho em relação aos livros impressos. Disponível em: http://
revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2011/12/umberto-eco-o-excesso-de-informacaoprovoca-amnesia.html. Acesso em 22 jul. 2013.
8
Marc Prensky, que consagrou o conceito de nativo digital, aponta para uma renovação não
apenas nas ferramentas tecnológicas, mas também nos métodos de aquisição de conhecimento.
9
Já para Marshall McLuhan “‘o meio é a mensagem’, porque é o meio que configura e controla
a proporção e a forma das ações e associações humanas” (McLuhan, 2011, p. 23).
10
Informações disponíveis na página do Painel de Controle do MEC. Disponível em:http://
painel.mec.gov.br/painel/detalhamentoIndicador/detalhes/pais/acaid/20. Acesso em 20jul.
2013.
11
Disponível em: http://www.oecd.org/pisa. Em outra avaliação, realizada pela consultoria
britânica Economist Intelligence Unit (EIU), o Brasil ficou em penúltimo lugar, entre 40 países
avaliados. Cf. notícia disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/11/
121127_educacao_ranking_eiu_jp.shtml. Acesso em: 20 jul. 2013.
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A IDADE LÍRICA1
(TRÊS MOVIMENTOS)
THE LYRIC AGE
(THREE MOVIMENTS)
José Javier Villarreal
(UANL-MX)2
Tradução: Tieko Yamaguchi Miyazaki
Por uma nova anunciação
O roçar apenas, simplesmente a pena sobre a realidade do
mundo. A pena última do arcanjo que, em seu voo detido, revela
uma anunciação, descobre um arquipélago: a física do milagre. Talvez
a leitura do “segredo manifesto”, de que falava Goethe.
1
Videoconferência proferida para o Mestrado em Estudos Literários (PPGEL), da UNEMAT,
Câmpus de Tangará da Serra, Mato Grosso, em 14-junho-2013. Ela faz parte de um texto maior
que leva o mesmo título: The lyric age (three moviments).
2
Poeta, professor da Faculdade de Filosofia y Letras (FFyL), da Universidade Autónoma de
Nuevo León (UANL), Monterrey, México. [email protected].
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THE LYRIC AGE (THREE
MOVIMENTS)
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A rápida e transmutada presença do paraíso na ordem
cotidiana. Imagens que demandam a continuidade do ato poético
na dinâmica construtora que exige. O acontecer do poema é um
ponto de fuga, uma realidade que procura – imediatismo memorioso
– a expressão que a delate e nomeie, o ângulo epifânico do instante
que mal ocorre e já se foi. Para Junichiro Tanizaki “ o belo não é
uma substância em si mas somente um desenho de sombras, um
jogo de claro-escuro produzido pela justaposição de diferentes
substâncias.”
Dante, no final do Canto XXIV do Purgatório, confessa: “E
senti´dir”. E este “senti dizer” não chega a ser ouvido na física do
aparente. Seu eco prolonga uma sonoridade pelos recintos do
intelecto, da razão imaginativa que vê, cheira, degusta, toca e ouve
as coisas que são verdadeiras dentro da alma. Nunca, fora desta.
O texto está a serviço da própria transfiguração do relato.
Acede-se a uma ordem, a um universo de cuidada harmonia. O
poema inclina sua balança. Mais que apresentar pode optar por um
encômio em que a sugestão e a evocação fundem seus territórios,
reinos revestidos por uma auréola em que o mistério se nos apresenta
por meio de uma lógica que emana de sua própria natureza. Esta
revelação delimita e propõe seu próprio espaço, sua natural
geografia. Borges, em sua sapiência, chegou a dizer que não passava
um dia em que não estivéssemos, pelo menos, um instante no paraíso.
E é verdade.
Mas o paraíso, sendo deste mundo, enfrenta e resiste ao curso
implume, não imaginativo, desapaixonado, a que temos reduzido a
nossa realidade. Todo milagre, por fugaz que seja, nos evoca um
cenário. Este paraíso, produto do milagre cotidiano, dá temperatura
e cor à realidade, detém-na, torna-a visível, outorga-lhe uma
expressão: a poetiza. Esta aproximação a que obriga a experiência
poética tem como princípio básico – nas palavras de san Juan –
romper “as teias deste doce encontro”, efetivar a comunhão como
natureza dada.
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A necessidade de habitar o paraíso torna-se imperiosa. Não basta
a invocação, não basta vê-lo. É necessário ocupá-lo, percorrê-lo, viver
nele. As potências da vontade criadora não só provocam na criança
imaginar que brinca que é um cavaleiro enfrentando um descomunal
gigante, mas também no seu canto lúdico, em seu ver com os olhos
fechados, o eucalipto do quintal sofre uma metamorfose que resulta
num desproporcionado inimigo. Que a espada rústica, cujo fim é
puramente ornamental, não possua a limitação de instigar borregos,
mas ostente o fio justiceiro de Colada ou Tizona. Ou seja, a criança não
imagina brincar, habita seu próprio jogo. O quintal se tornou um bosque
onde espreita o perigo e a glória. Tanto assim é que, quando a mãe o
chama para o banho, ele não só não consegue ouvi-la como já é um
habitante do crepúsculo. “Os antigos” – explica José Lezama Lima –
“resgatavam a luz do crepúsculo da luz do sol. Eis aí a atração do
crepúsculo para o rio criador, e também para o passeio.” E que passeio
mais revelador que o empreendido por Francisco de Aldana em sua
Fábula de Featonte, no século XVI. Aldana, como Dante, Garcilaso e,
depois, Góngora, também quer habitar seu próprio jogo, seu próprio
paraíso recobrado, seu quintal. Como já antes o haviam feito Teócrito,
Longo e Virgílio. O poeta nos confessa ao princípio de seu canto:
Triste pienso cantar de ti, Featonte,
y hago un duro ejemplo de mí mismo,
pues el tuyo y el mío fue un mismo ejemplo,
una misma caída, un mismo daño.
¿Quieres, Featonte, ver si es como digo?
Tú, por querer subir tanto el deseo,
del cuarto cielo a la primera madre
veniste a dar, y entre mil turbias ondas
paraste al fin lleno de fuego ardiente;
yo, por querer subir el deseo tanto,
de la más alta cumbre de mi suerte
vine a parar, lleno de ardiente fuego,
en las corrientes ondas de mis ojos,
tal que ya me desea la madre antigua.
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Esta capacidade de ver, sofrer, fruir a realidade, a partir do
assombro sempre apaixonado, é parte fundamental da criança.
Estágio este – a inocência - que a criança comparte com o bemaventurado. O jogo transfigura não somente a realidade e seu tempo,
como lhes confere plurais significados. Cada jogo, como cada visão,
não se repete. Cada tarde – espaço temporal do prodígio – única.
A nostalgia do perdido, o aguilhão do desejo se completam, se
preenchem diante do milagre realizado. Essa tarde já é nossa, esse
lugar deixou de ser um lugar para converter-se n’o lugar’. De alguma
ou de outra maneira todo poeta é um exilado. Um sozinho que luta
diante do adverso para fundar seu reino perdido. Um perdido de
seu lugar que ao sublimá-lo o amplia e o enobrece.
José Saramago, em seu Ensaio sobre a cegueira, esclarece que os
olhos são somente um instrumento de que se serve o cérebro para
ver. Também nos fala de uma cegueira sumamente particular que
consiste no não reconhecimento da realidade pelo cérebro. Isto é,
o instrumento – os olhos – está em condições perfeitas para
cumprir sua função; entretanto, o cérebro perdeu sua memória
óptica e não pode reconhecer - ver - a realidade que o circunda.
Por outro lado, T.S. Eliot, falando de Dante, nos diz que o homem
foi perdendo sua capacidade visionária para conformar-se, tão
somente, com o mais evidente, e não sempre mais próximo. É
como se o homem tivesse perdido um sentido e o cérebro não
reconhecesse o ritmo último das coisas e dos seres. Assim se
poderia entender “o segredo manifesto”, assim se poderia
compreender a capacidade visionária do poeta, do profeta, do
herói – como sonhou Carlyle. Aquele que, sim, pode revelar e
revelar-nos sua realidade mais certa. A visão vai de mãos dadas
com a apreensão do milagre, e o milagre sempre nos dará sua
porção de paraíso. Borges, como em tudo, tinha razão. Há que
recobrar essa memória visionária e fazer valerem as habilidades
imaginativas que jazem dormidas em nosso cérebro. Há que
atrever-se a contemplar dentro da alma, arriscar na empresa de
recobrar o paraíso aqui na terra.
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O exercício lúdico é uma atividade em que as chamas da paixão
não só iluminam o entorno percebido, como o transformam. A
paixão aguça esse outro sentido com o qual abarcamos a realidade
desejada ou padecida. Assim, do ver uma realidade passamos a
contemplá-la. Thomas Carlyle, antes já citado, apontava que a
linguagem – a fala – transpassada pela paixão se tornava canto. A
realidade cantada pelo poeta, como a realidade transmutada pelo
sentido lúdico da criança, como a visão sofrida pelo místico
assinalam a transfiguração, desvelam “o segredo manifesto”, de
Goethe, as capacidades fundantes da criança e os arcanos revelados
da fé. Essa outra realidade que se tornou alheia, precisamente, pela
cegueira, pela falta de memória, pelo desconhecimento em que nos
movemos tateantes e inseguros e que, desgraçadamente, se tornou
costume, uma condição empobrecida de nosso estar no mundo. Daí
a necessidade urgente do arcanjo, de seu voo detido, da
transubstanciação a que obriga o visionar a realidade a partir dos
próprios fogos da paixão. Ou seja, de uma nova e permanente
anunciação.
O poema e seu leitor
Thomas Stearns Eliot, em seu ensaio “A mente moderna”,
escreveu: “O que o poeta experimenta não é a poesia, mas o material
poético. Escrever um poema é uma ‘experiência’ original, a leitura
desse poema pelo autor ou outra pessoa é coisa distinta.”
Para o poeta é fundamental desenvolver sua “perícia” para
detectar e entesourar os materiais que lhe permitam, dado momento,
abrigar a possibilidade de elaborar um poema. Esses materiais em
si mesmos não são poemas nem a poesia. São apenas a matéria prima
de algo que, no final das contas, pode chegar a constituir um poema,
uma expressão. O poema, como fenômeno estético logrado, contém
e, ao mesmo tempo, ultrapassa tais elementos.
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Tais materiais são processados por meio da composição
durante o trabalho criativo, e esta os transforma em tal grau que os
torna, fora da constelação expressiva que o poema estabelece, não
somente irreconhecíveis mas ainda carentes de todo possível
significado. Esses materiais poéticos obedecem a uma sensibilidade
receptora, a um conhecimento moral, ético e estético rigoroso que
o poeta vai desenvolvendo. Às vezes, com sua época; às vezes, de
costas para ela.
A época não só se manifesta através de um estilo, de um gosto
reconhecível e abordável por uma comunidade, como impõe,
também, a lente através da qual deverão ser percebidos e, portanto,
apreciados os materiais poéticos que a realidade oferece. Temos,
por conseguinte, um gosto poético determinado e temas que lhe
são afins. Estamos aqui no plano da fantasia, do “bonito”, do
inofensivo; daquilo que nos libera de todo compromisso. O
sentimento parece ser genuíno; entretanto, carece de expressão, já
que esta foi imposta, aprendida.
O sufocamento da expressão de uma sensibilidade não pode
ser maior nem mais sutil por parte de uma ideologia censória emanada
das diferentes balizas de poder. Assim, pois, toda atividade artística
que escape desse gosto ou estilo é, em si mesma, um ato de resistência
diante da rotina que tem por objeto negar a paixão e reprimir a
imaginação pela sua imperiosa carga tanto geradora como
transgressora. Alcançamos, obviamente, nesse ato de resistência, o
plano da paixão, da imaginação, do compromisso. “O amor por
algo consiste na compreensão de suas perfeições”, diz Pound que
diz Spinoza.
O fenômeno estético não se conforma com pouco, exige a
beleza, aposta mais na compreensão do que no mero entendimento.
Dylan Thomas, numa conversa, advertiu: “Seja o que for, a poesia
nunca estriba na forma comum de falar. Baseia-se na maneira insólita
de dizer as coisas.” Esta “maneira insólita de dizer as coisas” revela
uma relação amorosa, um enamorar-se dos objetos nomeados. Nesse
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sentido todo poema é um ato de amor. Um ato de amor da linguagem
pelas coisas, já que ao nomeá-las – de maneira insólita – as distingue
do acontecimento anônimo, lhes outorga um valor insuspeitado para
o uso cotidiano. Poderíamos conceber, portanto, o poema –
afirmou Paz – como uma erotização da realidade através da língua
que a canta.
Por meio da obra artística não só conseguimos expressar uma
emoção, como ao formulá-la revisitamos a realidade nomeando e
apropriando-nos daquilo que até esse momento não só carecia de
nome, como diria Eliot, como também de existência, como postulava
Lezama. Por meio do padecimento – estado cognitivo a que a paixão
obriga – a realidade se revela e, ante tal epifania, o compromisso do
homem – consigo mesmo e com a realidade – é irreversível e
impostergável. Portanto, essa “maneira insólita de dizer as coisas”, a
que alude Dylan Thomas, se converte na maneira insólita de viver as
coisas, de vivermos entre as coisas.
A experiência de escrever um poema – lembra-nos Harold
Bloom – pressupõe uma má interpretação, primeiro, de outro
poema, e, segundo - diria eu - da realidade. É um fingimento porque
implica outorgar expressão a algo que não a tem. É então um tornar
insólito, um estranhamento, uma mise-en-scène, uma representação.
Logo, uma presentificação.
O assunto ou os assuntos que puderam motivar a sensação
poética, que, sem serem poemas, deram início ao tempo ou processo
do poema, ficaram neste transmutados, irreconhecíveis, falseados
para toda mente, inclusive a do próprio autor que – agora – se
converteu em leitor.
Ao não nos confundirmos com o poeta, que é o sujeito que
constrói o texto e que deixa de sê-lo quando o conclui, o leitor se
dilui na voz, ou vozes que suportam o cantado. O deslocamento do
leitor é o movimento do próprio poema. Sua respiração será regulada
y ritmada pela própria musicalidade que o verso imponha. Thomas
Carlyle sustenta que o canto é a linguagem traspassada pela paixão.
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A paixão desata os diques da imaginação, e a imaginação transfigura
a realidade a partir do apaixonamento. Temos então uma realidade
revisitada, refundada, compreendida. Compreensão que comporta
um compromisso com o mais próximo; ou seja, conosco mesmos.
Xavier Villaurrutia, em “Noturno da estátua”, nos presentifica,
de uma maneira singularmente didática, esta condição, bastante
dinâmica, do leitor:
Correr hacia la estatua y encontrar sólo el
grito,
querer tocar el grito y sólo hallar el eco,
querer asir el eco y encontrar sólo el muro
y correr hacia el muro y tocar un espejo.
Entretanto, a imagem que nos devolve o espelho está longe
de ser um reflexo puramente ideológico. Não obedece à idéia que
possamos ter de nós mesmos, obedece aos componentes emocionais
e sentimentais que nos conformam. A leitura de um poema será “a
maneira insólita” de nos vermos, de visionarmos por meio do
continente passional que nos conforma.
¡Oh cristalina fuente,
Si en esos tus semblantes plateados
Formases de repente
los ojos deseados
Que tengo en mis entrañas dibuxados!
Confessa san Juan de la Cruz, situando-nos em um estágio de
comunhão a partir da leitura que fazemos de nós mesmos ao ler o
poema. Há um reconhecimento que se ativa por meio do que se
poderia denominar memória lírica, que desperta diante da
provocação que o poema suscita no leitor.
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Esse botim ou memória lírica a partir da qual os lugares se
tornam histórias – como diria Lope - determinou aos homens uma
posição diante do mundo, diante da vida. A cotidianidade foi
surpreendida pelo milagre, pelo êxtase que permite a contemplação
do instante. Contemplação que é possível graças ao arroubo, à
própria aplicação cuidadosa de quem contempla.
Ao visionar a realidade – o homem – deixa de vê-la para
padecê-la; funde-se a ela. O visionário, ao nos dar notícia do milagre,
tensiona o tom do poeta. O poeta se coloca assim na órbita do
sagrado. Isto, em todo tempo, mas de forma premente no nosso
século, reveste a definição, volitiva e geradora, de um verdadeiro
ato político, mas de um ato político como se compreendeu e se
transmitiu ao longo do Antigo Testamento; como uma revelação
de um caráter coletivo, nacional.
O exílio
a don Alfredo Garcia Vicente
Pode parecer que, de uma ou outra forma, o poeta sempre é
um tipo de exilado com relação a uma maioria que o rodeia, mas
não o atinge e menos o compreende. A própria situação de exílio é
complexa. Há os que se exilam sem sair, não somente do perímetro
que chamamos pátria, mas da própria cidade em que nasceu. Foi o
caso do checo Jaroslav Seifert ou do cubano José Lezama Lima. Há
outros expulsos violentamente, sem outra alternativa, com risco de
sua própria integridade física. Foi o caso de Ovídio, no século
primeiro de nossa Era; ou de Garcilaso, a princípios do século XVI,
em pleno Renascimento espanhol. Os dois poetas haviam perdido
as graças do imperador. O primeiro, de César Augusto; o segundo,
de Carlos V. Há também aqueles que se exilam de sua própria língua,
de sua própria tradição. Como poderia ser o caso do peruano César
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Moro ou do espanhol Juan Larrea que decidem, em certo momento
e levados por uma urgência expressiva, abandonar o espanhol e
cultivar o francês – como foi o caso desses dois poetas – como
língua para o seu trabalho poético. Não esqueçamos aqueles que
abandonam por vontade própria seu espaço nacional. Penso em
Murilo Mendes que deixa o Brasil para radicar na Itália e morrer em
Portugal; ou em T.S.Eliot que abandona sua St.Louis natal, nos
Estados Unidos, para mudar-se, de maneira permanente, para a
cidade de Londres, assumindo – inclusive – a nacionalidade britânica.
Há os extremos, aqueles que se exilam até de si mesmos, como
poderia ser o caso de Hölderlin, a princípios do século XX. Não
nos esqueçamos daqueles outros que se vêem exilados pelos críticos
da história literária nacional, para serem logo não só readmitidos
como canonizados pela academia do turno. Pensemos em William
Shakespeare, para a língua inglesa, e em Luís de Góngora, para a
espanhola. Tanto Shakespeare como Góngora serão esquecidos e,
obviamente, menosprezados em sua valia estética. O romantismo
de Víctor Hugo reavaliará o primeiro, e a modernidade de Mallarmé,
o segundo. O exílio, então, pareceria ser uma condição sine qua non
do poeta. Nada mais longe da realidade.
Alargando mais ainda a cartografia, não já do que entendemos
mas do que conseguimos compreender com o termo exílio,
poderíamos acarinhar o longo e sinuoso corpo de uma serpente
bicéfala que suporta, inexoravelmente, duas cabeças que correm para
a mesma direção: a da distância e a do tempo. Por um lado, a
intempérie e a distância em que se situa o exilado obedecendo ao
seu deslocamento, tanto físico como psicológico, em direção ao
centro ou em direção à periferia, com relação a um continente que
deixou, precisamente, de contê-lo e agasalhá-lo. A distância do
exilado, sua lonjura, não é somente de caráter geográfico e cultural,
mas também psicológico, sentimental. Tal distância lhe permitirá
uma perspectiva de estranhamento com relação à realidade
contemplada. Realidade que estará conformada tanto pela nostalgia
de um paraíso como pelo assombro diante de um presente cotidiano
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que resiste a ele, que lhe é alheio no seu entendimento. Por outro
lado, mas pertencendo ao mesmo corpo, mencionamos o tempo
do exilado. Um ontem que o assalta constantemente e condiciona a
percepção de um presente que, poucas vezes, consegue oferecer-se
como um espaço seguro. Já que a realidade do presente será sempre
alcançada pela idealização do passado ou pela interrupção, nunca
ressarcida, que emana desse passado. Será um tipo de pentimento
em que o apagado, o interrompido, isto é, o passado, aquilo que se
viveu no primeiro traço na tela, transmutará e modificará o presente:
aquilo que está vivendo, pintando na tela, ao aparecer subrepticiamente no novo quadro:
Cuando tiempo y distancia
Engañan los recuerdos,
¿Quién lo ignora?, es amargo
Volver. Porque interpuesto
Algo está entre los ojos
Y la imagen primera,
Mudando duramente
Amor en extrañeza.
Luis Cernuda nos confirma neste fragmento de seu poema
“Hacia la tierra”, de seu livro Como quien espera el alba (1941-1944).
Texto onde já se infiltra, de maneira categórica, a experiência do
exílio.
O poeta, porque é dele que estamos falando, refunde sua
experiência e condição de exilado em seu projeto criativo, em sua
ingovernável poiesis. Sabemos de seu exílio pela crônica histórica.
Sabemos de seu exílio, somente através de sua obra. Octavio Paz,
em um de seus livros imprescindíveis: Cuadrivio, ao referir-se ao poeta
português Fernando Pessoa, escreveu: “Os poetas no têm biografia.
Sua obra é sua biografia.” A frase é todo um achado da reflexão, da
inteligência crítica de seu autor. Penso em três artistas da poesia do
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século XX. Ezra Pound, Herman Broch e Jorge Guillén. As três
experimentaram o exílio. Os três se viram expostos a diferentes
circunstâncias vitais. O primeiro, foi declarado traidor da pátria –
como que Dante no século XIV- pelo governo de seu país e
confinado num sanatório mental em Washington, em que escreveu
“Os cantares de Pisa”, parte nuclear de sua obra Os cantares. Elizabeth
Bishop escreveu um melindroso e belo poema sobre isso. O segundo,
foi detido y preso pela Gestapo quando – à semelhança de san Juan
de la Cruz nas celas da inquisição – concebe a gênese de seu poema
narrativo A morte de Virgilio. O terceiro, na Guerra civil espanhola,
logo abandona sua cátedra na universidade de Sevilha, e se estabelece
nos Estados Unidos. Isto não interrompe, absolutamente, a sua
produção em marcha: Cântico, que, desde 1928, irrompia na lírica
de língua espanhola. Pound, quase quinze anos depois e uma vez
tendo “alta”, volta para a Itália; à Itália dos poetas toscanos do século
XIII. Broch não regressa mais para a Alemanha, morre em New
Haven sonhando os últimos dias de Virgilio. Jorge Guillén, ao final
de sua vida, regressa, depois de uma longa ausência, à Espanha para
receber as homenagens mais elevadas e merecidas pela sua luminosa
e transparente obra.
O que esses autores têm em comum – para mim como leitor –
não reside somente no fato anedótico de que tenham sofrido desterro,
perseguição e cárcere; mas na capacidade criativa que manifestaram
para dar-lhe, ao referido acontecimento, expressão artística; ou bem,
para entesourar essa experiência – por intensa que ela tenha sido –
como material poético para a edificação de um objeto estético que
denominamos poema. Mas aqui convém pontuar o seguinte para evitar
equívocos ou interpretações equivocadas. Se o poeta – nas palavras
de Paz, que viveu longas temporadas fora do México – não tem
biografia mas obra, seu projeto de obra será seu projeto de vida como
afirmou Pierre Reverdy – outro que sentiu a urgência impostergável
do recolhimento e optou por viver em solidão consigo mesmo, como
faria no século XVI frei Luis de León. Paz também escreveu que somos
o que fazemos e não o que pensamos que somos.
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Entretanto, o exílio, a partir desse concerto que são as Epístolas
do Ponto, de Ovídio, foi-se convertendo em tema literário. E como
tema está vazio, precisamente, porque carece da presentificação,
porque o silêncio não se rompeu, porque o indizível não se
pronunciou, porque o inexistente não se manifestou, porque a
linguagem ainda não se enamorou do universo que está para ser
nomeado. Ou seja, é somente um tema literário, uma casca gorada,
calcificada por todos os tópicos, frases feitas e fórmulas que se foram
cunhando ao longo de seu repertório. Uma espécie de crosta
conformada – como toda crosta – por células mortas que nos
impedem de chegar à medula, à palpitação viva que todo poema é.
E nos situa, pelo contrário, em uma horizontalidade de índole
superficial, onde cabem todas as boas intenções, em que o poema é
reduzido a um meio que, em geral, obedece a uma emoção cujo
caráter fácil se esgota, precisamente, no tema – no vazio – e não na
presentificação que encarnará o raio do vertical.
É inegável que o poema somente pode estar a serviço de si
mesmo. A arte não é amoral, é terrivelmente moral. Sua moral
descansa na congruência de sua natureza subversiva, em sua força
liberadora, no Eros que todo poema destila através da linguagem.
Nesse encantamento que nos isola e nos distancia, que nos exila –
aparentemente – permitindo-nos a distância e o estranhamento
necessários que o estado poético exige. Daí a frase, de Harald
Bloom, de que todo poema sincero está condenado a ser um mau
poema, se confirma, já que não se estabelece nem o distanciamento
nem o estranhamento que a imagem poética exige.
Ao contrário, a proximidade e a sincera objetividade da
emoção fazem com que o poema se desconjunte e deixe de sê-lo
para converter-se em um panfleto que obedece a uma moral de
valores alheia ao poema. Estamos falando de uma literatura
ideológica em que o tema é o embasamento que sustém e outorga
valor ao texto. Estamos, pois, ante uma literatura do exílio, diante
do compromisso imediato, mas não urgente que obedece ao tempo
e à distância da expressão poética. Há que diferenciar muito bem
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duas situações que com freqüência se confundem. O imediatismo
da encenação e a urgência da presentificação. Por um lado, a
encenação – no poema – fica só na descrição ou no retrato de uma
realidade imediata (o exílio, a perda) que dispara, mas não sustenta
o poema. Por outro lado, está a presentificação que não busca nem
a descrição nem o retrato de uma realidade imediata, mas a
consumação de uma realidade sentimental, apaixonada, que
conforme o poema, que seja o poema em sua absoluta resolução.
O tema, qualquer que ele seja, nunca foi finalidade de poema
algum; ao contrário, a presentificação, que é e faz o poema, e sempre
problematiza e se opõe ao repertório circundante, invariavelmente
tem condicionado e fixado seu próprio tema. Por outra parte, o
exilado, também, se converteu em uma personagem literária, tendo
seu máximo representante na figura de Ulisses da Odisseia homérica.
Ao descrever isso penso em dois filhos que se opõem e resistem e,
ao mesmo tempo, continuam o modelo homérico: Dante o viajante,
na Comédia; e Leopold Bloom no Ulisses, de Joyce.
Isto leva a colocar-me o seguinte. Temos poetas que viveram
no exílio, não importa a causa, cujas obras se iniciaram em casa –
para dizê-lo de alguma forma – e foram continuadas e concluídas
fora dela. Obras em que a experiência anedótica se converteu em
material poético – não em poesia – que propiciou a consolidação
plena e autônoma do poema como objeto estético, redimensionando
assim o ato mesmo da criação. Já que cada poema é em si um
acontecimento único que não se pode repetir, que põe à prova todas
as capacidades do autor, sejam estas de natureza emocional ou
intelectual, mas sempre asseguradas pelo pressuposto da paixão. E
não somente do autor, mas também de sua língua, em uma memória
viva e explosiva que Joseph Brodsky qualificava com o nome de
Musa. É aqui que volto aos meus exemplos: Os Cantares, de Ezra
Pound, A morte de Virgílio, de Hermann Broch e Cântico, de Jorge
Guillén. Como não computar nessa paupérrima enumeração de
obras máximas realizadas no e contra o exílio A realidade e o desejo,
de Luis Cernuda; com certeza um dos livros chave da lírica do século
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XX, e não se diga da poesia em língua espanhola. Poemas em que a
acumulação do vivido – e por vivido entendo tudo, absolutamente
tudo, tanto social como íntimo, tanto sonhado com os olhos fechados
como imaginado em vigília – encontra sua justa e alta expressão na
consumação que é o poema (contenção e corpo da poesia): sinal
inequívoco, este último – a poesia – de nossa humanidade. Nada
mais distante do exílio estóico, que reclama o mundo como pátria,
que a expressão poética com seu tremendo realismo e seu amoroso
apego ao particular. Já que o canto – lembremos – é linguagem
atingida pela paixão. A paixão, então, nos obriga à imaginação. A
imaginação nos leva à contemplação. A contemplação problematiza,
em sua agudeza e tremenda clareza, a realidade contemplada com
os sentidos da alma. É então que tomamos consciência de nosso
estar no mundo. Pode parecer, paradoxalmente, que os exilados
são os outros e não o que canta.
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OS JOGOS COMO UMA
DISCIPLINA HUMANÍSTICA1
GAMES AS HUMANISTIC
DISCIPLINE
Tamer Thabet
(BrockUniversity-Canadá)2
Tradução: Helvio Moraes
Talvez sejamos, de fato, as testemunhas – ou os artesãos – de certa
morte, a morte da arte de narrar, da qual decorre a morte da narrativa
em todas as suas formas... Talvez seja necessário, apesar de tudo...
continuarmos a acreditar que novas formas de narrativa, que ainda não
estamos aptos a identificar, já estejam em processo de nascimento... Pois
não temos ideia do que poderia ser uma tal cultura, na qual não se
soubesse mais o significado de narrar.
(Paul Ricoeurapud Fleishmanvii)
1
Palestra proferida no Mestrado em Estudos Literários (PPGEL), da Universidade do Estado
de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra, em 2013.
2
Doutor em Literatura pela Universidade de Antuérpia, Bélgica.
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Enquanto as histórias nos fazem experimentar mundos
possíveis e impossíveis, fazemos delas o objeto – e, talvez, a vítima
– de nossas interpretações pessoais. Reais ou ficcionais, as histórias
são, talvez, o mais humano de todos os produtos; somos a única
espécie que conta histórias. Temos lido, assistido e ouvido histórias
e, agora, podemos jogá-las. Os video games podem nos fazer viver
histórias de forma virtual.
Esta palestra é sobre o que significa jogar a história, e sobre o
que acontece quando você – pessoalmente -é arrastado para este
mundo. A outra questão concernente a este trabalho diz respeito à
crítica: o que significa, neste momento, a crítica, uma vez que nos
acostumamos a contar e a perceber nossas histórias de forma
interativa, dentro de um mundo virtual e computadorizado. Não
somente aqueles que jogam deveriam se preocupar em dar respostas
a estas questões, mas também os que pensam, contam, escrevem,
desenham, projetam e educam no campo dos video games.No que
segue, a ficção de video game é apresentada como uma experiência
psicológica personificada, um processo de produção de sentidos
que permite ao jogador redescobrir seu próprio tema de identidade.
A estrutura narrativa do jogo
1.1 –Relacionar taxomicamente os video games a outras formas
ficcionais. Neste ponto, podemos determinar que os video games
podem ser dispostos em meio às narrativas representacionais.
1.2 – Explicar a divisão habitual dos textos narrativos em
três níveis.
2 – Falemos agora sobre a Narração nos jogos:
2.1 – Narrador e voz: o narrador é um agente narrativo
metafórico e antropomorfizado detectado por marcadores de voz
no texto. A função do narrador é contar a história.
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2.2 – A narração ao longo do jogo: nos video games, a
performance do jogador cumpre as funções do narrador.
2.3 – Expressão não verbal: nos jogos, a comunicação
narrativa é amplamente não verbal.
2.4. – O narrador cinemático: seção que nos permite
estabelecer diferentes conceitos do narrador em filmes e, assim,
identificar sua relevância para as narrativas de video game.
2.5 – O narrador impessoal: a teoria de Burgoyne sobre o
narrador fílmico nos ajuda a desenvolver o conceito de narração de
jogos, além de perceber a inter-relação entre as duas agências narrativas
em jogos: o jogador e o Dispositivo de Composição do Jogo.
2.6 – O Jogador-Narrador: O jogador de uma história de
video game (co)narra através de sua performance no jogo, que consiste
em um número de ações que cumprem a função da narração de
forma não verbal, o que significa que as ações do jogador têm um
grande impacto sobre como a história é contada, além de serem
essenciais tanto à apresentação quanto à criação do discurso. Por
um lado, as ações e reações do jogador indicam sua personalidade e
projetam uma forma de “expressão subjetiva”, que substitui o
conceito de “voz” nas narrativas impressas. Por outro, o controle
da câmera, por parte do jogador, é uma função narrativa no sentido
cinemático: ele determina o que é apresentado e o que é deixado de
fora, além do que é focado e do que é ignorado.
2.7 – O Dispositivo de Composição do Jogo: este é o termo
que proponho para a outra agência narrativa nos jogos e que se
contrapõe à narração do jogador. O jogador não é o único narrador
numa história de video game; o sistema do jogo também narrapor
meio de uma agência narrativa mais complexa, que é dominante e,
em muitos casos, mais poderosa do que a narração do jogador, uma
vez que lhe estabelece limites.
2.8 – A situação narrativa nos jogos: a narração em tempo
presente nos jogos cria narrativas simultâneas. Tal situação narrativa
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é caracterizada por um colapso da distância entre o narrador e o
focalizador.
3. Quem observa na história de video game?
Focalização:
3.1 – O Jogador-focalizador: O jogador de jogos em
primeira pessoa personifica o protagonista, adota seu nome, vê
através de seus olhos e adquire suas habilidades. No entanto, não
sabemos muito sobre a personalidade do protagonista, uma vez
que ela se desvanece em relação a (e se confunde com) a própria
personalidade do jogador. É o jogador que se torna, de fato, a
personagem observável.
3.2 – A presença da personagem: o jogador em jogos de
primeira pessoa ocupa o espaço do protagonista, vive a história ao
invés do protagonista e, geralmente, torna-se o protagonista.
Os Jogos como uma Disciplina Humanística
Pessoalmente, considero o termo “game designer” um pouco
artificial, além de não abranger por inteiro o fato de que um designer
de jogos possa ser um artista, um contador de histórias, um animador
e um empreendedor. Proponho que se use o termo “gamewright”3
para se referir aos futuros designers de jogos.
Se a jornada do “gamewright” deve começar na sala de aula,
os educadores em jogos precisam adotar uma pedagogia focada na
ideia de inspirar a criatividade por meio das forças interdisciplinares
das disciplinas humanísticas. A imaginação artística não se origina
nem floresce no vácuo. Portanto, deveria ser estimulada no estudo
da cultura, da arte, da literatura e da condição humana. A primeira
coisa que um designer de jogos veterano aconselha é: “Você quer
povoar sua mente com uma diversidade de ideias extraordinária e
colorida, um grande carnaval de heterogeneidade conceitual. E como
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você poderia cumprir essa tarefa? Simples: Leia. Aqui está o maior
fracasso de nossos jovens designers” (Crawford, Game Design 99).
Ele também ressalta que os melhores designers de jogos como Sid
Meiere, Dan Bunten, Brian Moriarty, Gordon Walton, Greg
Costikyan e Eric Goldberg são, todos, grandes leitores.
O romance de AynRand, Atlas Shrugged (em português, A
Revolta de Atlas), publicado em 1957, serviu de inspiração para
BioShock4. O contexto histórico e ideológico do romance realizase numa representação surreal de muitas convenções artísticas
reminiscentes de seu cenário, tais como o estilo ArtDeco e a
evocativa perfor mance melodramática desempenhada por
personagens que não jogam. Da mesma forma, Assassin’sCreed5 é
inspirado em relatos históricos da irmandade médio-oriental
Hashashin, entre os séculos VIII e XIV. É óbvio que o êxito na
realização destes dois jogos não está meramente na programação
magistral e na modelagem em 3D; os “gamewrights” de BioShock
e de Assassin’sCreed foram inspirados pela história, pelas artes,
pelos clássicos.
Um dos cursos que ministro é sobre a ficção em jogos. Ao
lado do típico trabalho em sala de aula e de discussões em
seminários, esse curso conta com as “DesignFridays”, em que os
alunos se dividem em times de designde jogos (“game design
teams”), usando o quadro branco, marcadores, lápis, papel e
laptopspara resolver problemas de design de jogos ou resolver
problemas usando o design de jogos. O que, de fato, interessa nas
“DesignFridays” é a imaginação artística como um processo usado
para a concepção de jogos e que precisa ser provocado e
continuamente aprimorado, até que a originalidade se torne
evidente. Os exercícios de design atribuídos aos alunos baseiam-se
na bibliografia discutida em sala anteriormente ao longo da semana,
não apenas para colocar à prova a publicação acadêmica, mas
também para encontrar inspiração no sentido de aprimorar ideias
de jogos, de modo a não cair em clichés ou no gênero exploitation6.
Exemplo de um exercício de designatribuído aos alunos é o
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quadroPollice Verso (1872), de Jean-Léon Gérôme. Cada grupo é
instado a usar a pintura para encontrar inspiração, analisar,
desconstruir, problematizar e, finalmente, aplicar um certo valor
inspirado pela obra no desenho de uma personagem, um cenário,
um enredo ou uma técnica de jogo.
Entender a ficção unicamente no sentido literal da palavra
(por exemplo, irreal ou algo imaginado) consiste na desvalorização
de uma das criações mais humanas. A ficção é um relato imaginário
de eventos e personagens usados para capturar o estado de espírito
humano, as relações, e expressa sérias ideias como a esperança, a
perda, o amor, os complexos, etc. A ficção cinemática está ainda
mais adiantada quanto a histórias, enredos imprevisíveis e
caracterização vibrante e diversa, que representa o que é humano
na mais ampla extensão de situações e cenários vividamente
imaginados. Os “gamewrights” deveriam invejar o sucesso fílmico
por trazer os méritos do intelectualismo. O modo de alcançar [tal
sucesso] é através da imaginação inspirada, que deveria ser uma
prioridade nos cursos sobre jogos. Um design de jogos inovador
requer criatividade e imaginação, e nada disso pode vicejar sem a
inspiração, daí a imersão nas artes, nos clássicos, nas literaturas.
Em termos gerais, isso serve para enfatizar a necessidade de apoiar
as forças humanísticas, acadêmicas e interdisciplinares, o que a
indústria do jogo nos recomenda fazer nas universidades (Gouglas
48).
Referências
Crawford, Chris. Chris Crawford on Game Design. Indianapolis: New
Riders. 2003, Print.
Gouglas, Sean, Jason Della Rocca, Jennifer Jenson, Kevin Kee, Geoffrey
Rockwell, Jonathan Schaeffer, Bart Simon and, Ron Wakkary. “Computer
games andCanada’s digital economy: The role ofuniversities in
promotinginnovation”. Reporttothe Social Science Humanities Research
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Council. Knowledge Synthesis Grantson Canada’s Digital Economy.
2010. AccessedonDecember 11, 2011. Web. <http://grand-nce.ca/
newsandmedia/news-container/2011/how-important-is-the-video-gameindustry-to-canada-extremely-important.-thats-why-you-should-read-thisreport>
Notas
3
Termo de difícil tradução para o português, daí minha preferência por mantê-lo no original.
Acredito que faça alusão a “playwright” (em português, dramaturgo). Nesse sentido, seria
mesmo algo mais abrangente do que “aquele que projeta um jogo”, pois envolveria também
qualidades literárias e artísticas, mais que as meramente técnicas (Nota do Tradutor).
4
Video game em primeira pessoa lançado em 2007 (N.T.).
5
Video game lançado em 2007 (N.T.)
6
O termo “gênero exploitation” é usado geralmente para classificar filmes de baixo orçamento
e baixa qualidade estética, que justamente “exploram” determinados gêneros cinematográficos
de maior apelo popular, cujos temas se relacionam à violência, ao sexo e ao romance; algo como
“filme B” (N.T.).
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ENTRE A CRÍTICA E A
POETISA: ENTREVISTA DE
MARIA LÚCIA DAL FARRA
BETWEEN THE POET AND
CRITIC: INTERVIEW WITH
MARIA LÚCIA DAL FARRA
Concedida a Fabio Mario da Silva1
(USP/FAPESP)
A Professora Doutora Maria Lúcia Dal Farra, com titularidade
pela Universidade Federal de Sergipe e consultora Ad Hoc do CNPq,
é um nome consolidado no ensino universitário no Brasil e um nome
frequentemente citado em muitos trabalhos acadêmicos no exterior.
Suas publicações tornaram-se referências em vários concursos de
agregação e provas de acesso a cursos de pós-graduação, como,
por exemplo, O Narrador ensimesmado: o foco narrativo em Vergílio Ferreira
(Ática, São Paulo, 1978) – leitura obrigatória na seleção para o
mestrado na área de estudos literários na Universidade Estadual da
1
Pós-doutorando da USP como bolseiro da FAPESP. Investigador do CLEPUL e CEC da
Universidade de Lisboa, pesquisador do CNPq.
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Paraíba, em 2012 – ou Trocando Olhares (Imprensa Nacional/Casa
da Moeda, Lisboa, 1994) – obra obrigatória para as provas de
agregação na Universidade de Paris, em 2002. Contudo, em 2012
foi revelada para o grande público uma outra faceta desta crítica
que agora se afirma, definitivamente, como escritora, mais
especificamente, como poetisa. Apesar de já ter publicado dois
livros de poesia anteriormente – Livro de Auras (Iluminuras, São Paulo,
2002) e Livro de Possuídos (Iluminuras, São Paulo, 2002) – é em 2012
que Maria Lúcia Dal Farra ganha projeção nacional, e em todo o
mundo lusófono, quando foi galardoada com o prémio Jabuti na
categoria de melhor livro de poesia do ano, com a obra Alumbramentos
(Iluminuras, São Paulo, 2012).
Esta entrevista visa saber como Maria Lúcia Dal Farra crítica
vê e se relaciona com sua face de poetisa, bem como compreender
as diferenças fundamentais entre sua obra premiada e suas obras de
estreia.
Como a crítica e os leitores receberam suas duas primeiras obras em
verso, Livro de Auras e Livro de Possuídos, e qual a diferença dessa
recepção em relação à de Alumbramentos?
- A única diferença é que desta vez cheguei até a levar
bordoadas... coisa que nunca tinha me acontecido antes. Como a
gente fica mais exposta quando recebe um prêmio divulgado e
expressivo, as pessoas querem se manifestar, pra bem ou pra mal.
Todavia, não desgosto de ser visada desse jeito, uma vez que só
assim você pode ter verdadeiramente a dimensão de como se
comunica com os seus leitores.
O início do seu trabalho como poetisa coincide com o de crítica literária?
Se sim, a que atribui essa coincidência; se acaso não, fale um pouco desse processo
antagónico.
- Não coincide no tempo. Como desde muito cedo leio sem
parar, escrevo poesia desde pelo menos o início da minha
adolescência. Fui estudar Letras para ver se compreendia o que se
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passava comigo, mas ainda não me dei por satisfeita - o que é ótimo,
porque não paro nunca.
Também não acho que se trata de um processo antagônico,
como você sugere. Crítica e produção literária se complementam, e
uma não anda sem a outra; aliás, uma se ressente da ausência da
outra. Cada vez que estudo um texto alheio fico entendendo melhor
aquilo que produzo, aquilo que está nos arredores e no próprio
âmago do que me debato para criar. Acho, apenas, que arrumei desde
cedo uma maneira de ser absolutamente feliz. O segredo é sempre a
gente se manter com disposição de entrar em diálogo com tudo o
que encontra – é o que passei a vida ensinando para os meus alunos.
Você nunca fica só, porque vive em grande e vivaz comunidade
com todos os escritores à mão ou in absentia.
Até que ponto a Maria Lúcia crítica se afasta, ou não, da Maria Lúcia
poetisa, quando esta cria versos? Ou seja, até que ponto existe a preocupação
com conceitos e estilos literários no momento da criação? E, se afastada nesse
momento, virá, no entanto, mais cedo ou mais tarde, com a releitura de suas
produções?
- Penso que a escrita da poesia é o lugar aonde estou mais una
na vida. Ali é um paraíso perdido que recupero quando nele me adentro
então. Não sou mais só a professora ou a crítica ou a pianista ou a
cantora ou a... sei lá mais o quê, pois que sou tantas. O meu leque de
pessoas se fecha e ali descansa com toda a carga da inteireza, porque
escrevo com absolutamente tudo o que sou, e inclusive com todos os
dilaceramentos (que me juntam naquele momento), com todo o gozo
e o sofrimento, com toda a ignorância e conhecimento, como se
precisasse de mim toda para, em seguida, me despedaçar de novo,
para recomeçar esse infindável processo que é o da vida, afinal.
A questão que me põe acerca de conceitos e estilos ou coisas
oriundas da teoria: certamente estão ali comigo, mas não as seleciono
naquele momento como prioridade, simplesmente porque não
existe, digamos assim, uma hierarquia que reja a criação, e visto que
não domino isso. Elas me chegam, suponho, quando me são
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necessárias para seguir por um ou por outros caminhos. E podem
me dizer, como o Zé Régio não gosta que digam – “vem por aqui!”.
Acontece que também posso acabar não indo por ali. Tudo é outra
coisa e tudo é muito provisório e mutável e errático nessas situações,
pois há interferências impensáveis e improváveis – assim como aquilo
que o Pessoa chama de “o homem de Porlock”. Ou seja, uma
intromissão externa fortuita e repentina que muda totalmente o rumo
daquilo que você escrevia.
Podemos encontrar nas suas obras várias alusões a outros escritores.
Harold Bloom, em A angústia da influência, reescreve à luz das teorias
Penfreudianas a história literária do complexo de Édipo; segundo Terry Eagleton,
o que Bloom faz é demonstrar que “os poetas vivem preocupados à sombra de
um poeta “forte” anterior a eles, como filhos oprimidos pelo pai, e qualquer
poema pode ser lido como uma tentativa de escapar dessa “ansiedade da
influência” pela remodelação sistemática de um poema “anterior”. Até que
ponto esses escritores influenciaram e/ou ajudaram na composição da sua escrita
poética?
- Suponho que eu seja filha de inúmeros pais, a perder de vista.
Ou numa versão pior: que eu sirva a vários senhores e senhoras, e
com muito prazer! Mas não me sinto oprimida por eles, ao contrário,
eles me deixam sentar no colo, me acolhem no seu regaço, me
mimam, me falam ao ouvido. E nem quero me libertar deles, dessa
“ansiedade de influência”: quero sofrê-la sempre. Esse é o lugar
onde sou mais feliz, como se ainda permanecesse numa infância
mítica e gozosa, porque estou sempre aprendendo e ouvindo
palavras outras que me botam de uma nova maneira, que me reviram
de registro.
E é assim: a minha escrita nasce desse contato com a leitura
deles. Tenho sempre algo a dizer a respeito do que eles me dizem, e
é assim que começa essa infindável e dolorosa delícia que é escrever,
e essa camaradagem entre nós, essa cumplicidade, que não leva em
conta o tempo ou quaisquer outros tipos de contingência. Estamos
todos juntos, laborando no mesmo.
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Depois do prémio Jabuti tenciona se dedicar mais à criação artística, ou
continuará empenhada na pesquisa académica? Podemos esperar futuras obras
narrativas (contos, romances, novelas) ou você pretende continuar somente com a
produção de versos? Seja qual for sua resposta, por favor explicite.
- Sempre continuo empenhada na pesquisa, porque, como
disse, não divorcio uma atividade da outra. Uma é a fome e a outra
é a vontade de comer. Quando estou estudando o faço em meu
próprio benefício, portanto. Sou sempre eu quem ganha primeiro.
Não penso que serei capaz de escrever um romance, muito
embora até quereria transformar a minha experiência de vida em
alguma coisa do gênero – mas não ia me conformar em não ser uma
Emily Brontë, por exemplo...
Tenho muita vontade de escrever um livro de poemas em
prosa. Ando matutando a respeito, mas não sei pra que lado vou.
Como diz a Florbela, o pássaro está na muda por enquanto.
O que Alumbramentos traz de contributo à literatura brasileira
contemporânea? Ou seja, quais os aspetos singulares desta obra, em comparação
com outras suas contemporâneas, que crê terem contribuído para ser galardoada
com o prémio Jabuti?
- Aí já é muita pretensão minha falar a respeito, e não sou nem
um pouco presunçosa. O livro não passa de uma releitura (no meu
diapasão) de muitos autores (cada capítulo indica um, não
necessariamente de letras mas também das artes plásticas). Isso parece
ambicioso, mas o leitor não tem necessariamente que conhecer a
todos esses meus interlocutores porque (espero) cada poema deve
falar por si só.
Agora, essa história de ganhar prêmio não quer dizer muita
coisa. Acho que é um acaso que esse livro tivesse sido galardoado.
Fiz parte de vários e diversos júris de prêmios literários e não me
iludo – há sempre arbitrariedades e no fundo é sempre um “jeu de
dés”, um jogo de azar.
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Cavalcanti, Hérlon. Xilogravuras do
Mestre Dila. Uma Visão Poética do
Nordeste. 2.ed. Caruaru: Edições
Fafica, 2011.
Fabio Mario da Silva1
(USP/FAPESP)
Falar de xilogravura é relembrar a complexa relação entre poesia
e pintura, ou mais precisamente, a famosa expressão horaciana “Ut
pictura poesis”2 que tem gerado algumas incongruências na sua
interpretação. Primeiro, por se entender que tal como a poesia é a
pintura; ou, então, que esses dois campos artísticos estarão ligados (o
que não deixa de ser verdade) como um mesmo tipo de composição.
Mas de fato o que Horácio defende é que o modo como se observa e
se admira uma obra pictórica deve ser o mesmo como para com o
texto poético. Neste sentido, a relação da xilografia com os versos de
cordel aponta, por um lado, para a harmonia com que estas duas
formas de arte cooperaram ou se inspiraram efetivamente uma na
outra; por outro, a maneira como o leitor/observador deve apreciálas, num mesmo patamar de qualidades artísticas.
1
Pós-doutorando da USP como bolseiro da FAPESP. Investigador do CLEPUL e CEC da
Universidade de Lisboa, pesquisador do CNPq.
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Neste sentido, Hérlon Cavalcanti assume a responsabilidade,
através da sua sensibilidade enquanto poeta, de dar visibilidade a
um dos grandes vultos da cultura tradicional pernambucana: Mestre
Dila (José Soares da Silva, Pirauá, 23 de setembro de 1937) que foi
o precursor, ainda na década de sessenta do século XX, da técnica
xilogravurista ao criar a chamada linogravura, que, como elucida
Cavalcanti, é um processo que utiliza “lâminas de borracha
vulcanizadas, numa alternativa que possibilitava substituir a madeira
que era a matéria prima para a confecção das ilustrações das capas
de cordéis” (CAVALCANTI, 2011, p.16). Num dos textos
introdutórios, intitulado “Conversando sobre Xilogravura”, o
estudioso esclarece a origem da xilogravura, técnica que nascera no
Oriente, mais precisamente na atual China, há mais de um milênio e
meio, através das impressões de orações budistas. Contudo, salientanos que na Europa, origem da tradição brasileira, tal técnica se
desenvolveu durante o século XV, para ilustrar baralhos e imagens
de santos (CAVALCANTI, 2011, p.22).
A obra divide-se em duas partes, sendo a primeira composta
por 75 xilogravuras sobre o cangaço (já que para o seu universo,
Dila assume-se como cangaceiro) e a segunda parte por 115
ilustrações. Neste segunda parte deparamo-nos com várias temáticas,
desde situações do cotidiano caruaruense (“A feira do troca-troca
de Caruaru”, “Caruaru foi Caruara”, “O vendedor de cordéis da
feira de Caruaru”, “Morro do Bom Jesus em Caruaru”); mitos, lendas
e crendices fortemente marcados no nordeste brasileiro (“O cego
Romero”, “O homem que virou bode”, “Macumba velha”, “A vaca
Salomé”); assuntos jornalísticos de grande repercussão nacional e
internacional (“O escândalo do mensalão”, “A morte de P. C. Farias
e de sua namorada”, “Atentado terrorista e o nosso sofrimento”);
temas humorísticos (“30 tipos de loiras. Pense numa bagaceira”,
“Jacaré no seco anda”, “A língua da minha sogra”, “Combustível
do Sertanejo”) e temas religiosos (“Jesus e São Pedro”, “Profecia
de Padre Cícero”, “O ateu e o mendigo”, “Jesus e o diabo”). Tal
organização das imagens revela o cuidado na disposição dos temas
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e a apaixonante visão que Hérlon Cavalcanti, amigo e admirador
do Mestre Dila, recolheu, em Pernambuco e na Paraíba, do material
mais significativo e quase completo do trabalho desse artista que é
considerado patrimônio vivo de Pernambuco.
Nesta obra encontramos, além de vários estudos de Cavalcanti,
pequenas introduções das Professoras Tânia Bazante e Mabel
Cavalcanti, bem como um estudo sobre o cangaço de Daniel Silva,
estudioso que atentamente salienta que, apesar da hostilidade da
região seca do nordeste brasileiro, da vida nômada e do machismo,
houve espaço e afirmação feminina através da figura emblemática
da companheira de Lampião, Maria Bonita, que foi retratada diversas
vezes por Dila (2001, p.25). Observemos a xilogravura:
(2011, p.53)
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Um dos traços relevantes nesta ilustração são os chapéus
de cangaceiros (que lembram o formato do de Napoleão
Bonaparte) que assumem a metade superior da composição, quase
como coroas reais destacando como réis, “os do cangaço”, tão
admirados por Dila. Uma outra predominante são as enormes
estrelas nos chapéus, que lembram os metais nobres reluzentes
das peças usadas pela alta nobreza e que possuem o significado
de resplendor e riqueza.
No entanto, note-se, no chapéu de Maria Bonita,
diferentemente de Lampião, que além de uma estrela está um
coração e uma lua. Tais símbolos representam características
atribuídas historicamente às mulheres; o coração representa,
cremos, uma ligação mais forte da mulher com os sentimentos
afetivos e com a maternidade, já a lua é algo muito mais profundo
e enraizado na nossa cultura (a ocidental), quase como uma
imagem arquetípica do símbolo feminino. Recordemos que na
pré-história predominava a adoração e o culto ao cosmo e à
natureza; as fases lunares, porque associadas ao ciclo feminino,
eram cultuadas como símbolo de fertilidade. A lua esteve
também, durante séculos, associada ao poder maléfico, já que a
noite é o habitat natural da primeira mulher segundo a tradição
judaico-rabínica, Lilith – bruxa aterrorizadora de homens
casados e comedora de crianças inocentes. Contudo, a lua
também representa a abundância, em associação com a ideia de
fertilidade, bem como a pureza, na imagem da ninfa e da virgem.
Ou seja, Dila procura transferir da escrita de cordel as imagens
que os objetos artísticos têm por referência, acabando por revelar
algo mais profundo ligado à nossa mente primitiva, se assim
analisarmos pela ótica da psicologia junguiana.
Contudo, a xilogravura de Dila que mais se destaca nesta obra
é, sem dúvida, a que representa “Camões e o Rei Mágico”:
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(2011, p.174)
Esta imagem é reveladora de detalhes de expressão e formas
deveras complexas e detalhadas, seja pelas curvas e sombreados,
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seja pela harmonia da composição na qual a cobra se enrosca na
árvore e ao mesmo tempo no homem. É evidente que tal imagem
nos recorda a cobra tentadora do jardim do Éden, apesar da história
em verso que esta imagem ilustra focar outros assuntos. Observe-se
que apesar da rusticidade da técnica xilogravurista, Dila consegue
criar formas de tal maneira nítidas, que mesmo por entre os dentes
da cobra, a expressão do rosto do homem é visível. A composição
vive da disposição das figuras que, ao enroscarem-se (a árvore na
terra, a cobra na árvore e a cobra no homem) num mesmo plano,
produzem significados conceituais e simbólicos que nos permitem
identificar os efeitos de uma linguagem que consegue transmutar
ilustração em palavras.
Em suma, estes são pequenos exemplos de um trabalho
artístico consistente e do compromisso com a literatura de cordel à
qual Dila tanto se dedicou durante, praticamente, a sua vida inteira,
como bem nos adita o autor: “Este homem de espírito forte
enveredou pela poesia popular ainda muito cedo. Um mundo que o
fascinava e no qual mergulhou de cabeça, vivendo da arte da literatura
de cordel, abraçando o ideal de poeta, mas também de xilógrafo”
(2011, p.16). Herlón Cavalcanti, neste sentido, tenta resgatar e dar
visibilidade, de maneira didática, informativa e o mais completa
possível, deste que é, com certeza, um dos grandes expoentes ainda
vivo da cultura pernambucana.
Nota
2
Frase contida na obra Arte Poética, que na verdade é uma carta (Epístola aos Pisões) com
intenção de passar ensinamentos, o autor exemplifica-nos como atingir a perfeição de uma
poesia: “Mas vós, ó estirpe de Pompílio, censurai todo o poema que não for aperfeiçoado com
muito tempo e muita emenda e que, depois de retalhado dez vezes, não for castigado até ao
cabo” (Horácio, p.97-99).
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ESPANCA, Florbela. Obras Completas
de Florbela Espanca. Livro de “Soror
Saudade” (organização, fixação crítica
dos textos e notas de Cláudia Pazos
Alonso e Fabio Mario da Silva).
Lisboa: Estampa: Lisboa, 2012.
Anamarija Marinoviæ1
(Univ. de Lisboa- CLEPUL)
Seguindo a ordem cronológica da publicação, o Livro de “Soror
Saudade” de Florbela Espanca é a sua segunda obra em verso que
revela ao mesmo tempo uma continuidade na linha de pensar, sentir
e exprimir as suas inquietações, como também representa um
determinado amadurecimento como escritora. De acordo com o
mesmo modelo e estrutura adotados no primeiro volume das Obras
Completas, especialistas renomeados são convidados a escreverem
os estudos introdutórios, destacando-se entre eles a própria
organizadora Cláudia Pazos Alonso, que esclareceu a “irmandade”
espiritual entre Florbela e Camões, bem como alguns outros grandes
vultos da literatura portuguesa com os que a autora dialoga criando
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Doutoranda da Universidade de Lisboa- CLEPUL.
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a sua poesia. Por seu turno, Derivado dos Santos se debruça sobre
o problema das experiências e procuras místicas na sua poética; já
António Cândido Franco aproxima o leitor da temática da saudade
e da especificidade da “saudade louca” que impregna os versos desta
obra.
Na perspetiva de Cláudia Pazos Alonso, a poesia de Florbela
Espanca carateriza-se por um “sistema de máscaras” que variam
entre a freira mística, enclausurada num convento, e a princesa
encantada, outra vez encerrada e escondida no seu castelo. O fio
condutor entre estas duas faces do “eu” poético de Florbela é a
clausura, o que atribui aos seus versos uma forte nota lírica, intimista,
introspetiva, filosófica e sempre virada para o interior, para as
profundezas da alma e do coração. O que parece importante salientar
é que tanto as imagens do convento como as da torre ou castelo
aparentemente oferecem firmeza, constância e segurança ao sujeito
lírico dos poemas, estando ao mesmo tempo feitas de materiais
frágeis (de marfim, de névoa). Este contraste implica a noção da
fugacidade e de pontos sólidos de referência aos quais a alma que
procura estabilidade, plenitude e realização a todos os níveis se
poderia agarrar. Com razão Derivaldo dos Santos afirma que este
volume de poesia revela um mundo no domínio do modo conjuntivo,
um “como se fosse” que paira entre a realidade e o sonho, entre a
contradição daquilo que é e aquilo que se poderia ou deveria ser.
Uma outra constante neste volume de poesia é a frequência
das ocorrências do vocabulário do domínio da religiosidade cristã,
o que não se pode interpretar como um reflexo da religiosidade
pessoal e fortemente vivida de Florbela, porque, pelo que se sabe
da sua vida, ela não era particularmente crente e muito menos
praticante da religião católica. As cidades alentejanas onde nasceu,
Vila Viçosa, e onde morou, Évora, são tradicionalmente berço da
religiosidade cristã no sul de Portugal. Este imaginário e terminologia
que impregnam os seus versos no Livro de “Soror Saudade” têm uma
particularidade importante: do cristianismo, o seu “eu” lírico
absorveu apenas as associações com a dor, o sofrimento, a penitência,
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o recolhimento, sem a grandeza da ideia da salvação, da ressurreição
e da redenção de culpas e pecados. Esta poderia ser uma das razões
pelas quais a sua saudade é “louca”, sublinhada várias vezes mediante
o advérbio “doidamente”. Através da saudade, dum lembrar e
esquecer constante, o sujeito poético procura o além, o absoluto e
o infinito. É justamente por isso que António Cândido Franco afirma
que: “A Saudade pela memória é irmã gémea da eternidade” (p.72)
Outras duas máscaras que há que salientar no universo poético
de Florbela, que se manifestam claramente neste livro são a mulher
sensual que “bebe a Vida a longos tragos”, desfrutando do prazer e
da volúpia das “horas rubras” e a poeta (a duas verdadeiras faces
de Florbela?) que se contrapõem (e talvez contradizem) ao desejo
de sofrer, estar isolada e mergulhada na solidão e no isolamento de
um convento ou torre imaginada. Uma característica destas duas
imagens notavelmente oposta às primeiras imagens é o desejo de se
anunciar, revelar, de se expor, de estar em público, mostrando ao
mundo a sua capacidade de amar, de ser amada, de procurar, de ser
encontrada, aceite ou rejeitada, mas ser vista como ela é, na plenitude
dos seus defeitos e virtudes humanas. Daí a significativa presença da
visão, dos olhos e do olhar nos seus versos que compõem o Livro de
“Soror Saudade”. Trata-se do olhar do Outro, neste caso do amado
sobre ela e do olhar do sujeito lírico sobre o Outro. Neste jogo
múltiplo de ver, olhar, observar, ser visto, esconde-se uma variedade
de significados e interpretações de sentimentos e reações: frieza,
desejo, desprezo, erotismo, idealização, desorientação, procura,
ilusão, felicidade, transitoriedade de belos e plenos momentos na
vida. Este olhar varia entre “os olhos frios como espadas”, “o olhar
eterno” comparado com o repouso das folhas sobre os lagos, um
olhar através da janela, da cela ou da torre, um olhar de olhos
“límpidos, doces, languescentes”; olhar saudoso que cora os olhos
do amado de horas passadas, ausências e saudades; o não-olhar (os
olhos fechados para não verem os sofrimentos no mundo e a sedução
satânica). Tudo isto revela a complexidade do mundo interior, por
vezes impenetrável do sujeito lírico deste volume de poesias.
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Com todo o rigor científico e académico, com o aparato crítico
bem desenvolvido e fundamentado, esta obra oferece mais uma
leitura única e à sua maneira completa do sempre atual Livro de “Soror
Saudade”, que inscreveu Florbela Espanca num patamar alto e
privilegiado entre os e as grandes poetas portugueses e que a definiu
como uma figura inevitável no cânone literário lusófono.
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ANTUNES, António Lobo. Quarto
Livro de Crónicas. Alfragide: Dom
Quixote, 2011
André Corrêa de Sá
As crónicas de António Lobo Antunes possuem, cada vez
mais, uma voz surpreendente para interagir com a realidade do
tempo em que vivemos. São primariamente textos para a imprensa,
que saem quinzenalmente na revista Visão. E a estratégia do autor é
deliberada: se não deixa de ser legítimo que o autor as qualifique
como textozitos para os leitores de fim-de-semana, que escreve de
uma assentada na mesa da cozinha porque lhe faz jeito o dinheiro
que a revista lhe paga, é tão legítimo afirmar que se impregnam,
tanto no viço estilístico como nas entoações temáticas, do
temperamento literário em que o autor dos romances se inscreve
por inteiro. Não demora muito, aliás, a apercebermo-nos, em quase
todas, de que as crónicas são indestrinçáveis desse universo
romanesco.
Universidade de Évora
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Nas crónicas estamos simultaneamente perto do romances já
publicados e dos romances que talvez venham a ser escritos. Isto
em todos os quatro volumes já coligidos, compostos de núcleos
temáticos mais ou menos identificados: há textos com registo
manifestamente autobiográfico («O António a dar corda à
esperança», por exemplo, falando da relação com o pai, ou
«Variações sobre o silêncio»), outros em que a linha ficcional é
dominante («Migalhas»), alguns de homenagem a pessoas concretas
(como «Zé», dedicada a um camarada de guerra morto num acidente
de viação), e, sobretudo neste volume, uma importante série de
crónicas dedicadas à arte da escrita («Crónica para aqueles que vão
escrever», «Eu, às vezes», «A melhor maneira é a única boa», «Onde
o pobre escritor começa»).
A maioria destas 79 crónicas começa com a ativação de
fragmentos de memórias, episódios soltos, recorrências obsessivas,
que com frequência estão ambiguamente colados à experiência
pessoal do escritor. Tal como sucede na orquestração dos romances,
é a memória que se mantém como o gás propulsor da narrativa.
Mas primeiro existe o silêncio, e é esse, sobretudo, que importa ao
autor decantar sobre a textura da realidade. O poder de observação
de Lobo Antunes trata de exercitar, em duas páginas, uma implosão
devidamente concentrada dessas tantas experiências de mundo que,
em distintos graus de consciência, amontoamos, suspensas, no meio
de um silêncio interior. As vozes ensurdecidas são amplificadas e
delas se extraem tão belas sínteses do humano: daquilo que à primeira
vista, é preciso que se refira, não passa de uma mescla comum,
corroída, de trágico e grotesco. Talvez por isso me apeteça dizer
que as crónicas, no contexto onde originalmente aparecem, se
assemelhem à vertigem de um poço em que somos levados a cair de
cabeça.
Há uma espécie de densidade espumosa nos recortes de
universos em que, por meio de injunções bruscas, somos
posicionados. Falando com ele próprio, ou com alguém ausente, o
narrador está naquele recanto momentâneo também a falar connosco.
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O tom é essencialmente o de uma conversa intimista, em voz baixa,
que nos desarma antes de nos tocar por dentro. O seu ritmo,
seriamente vinculativo, provoca uma tensão de rutura com o restante
conteúdo da revista. Nem todos aceitam este protocolo. Eu abro a
revista, primeiro que tudo, para ler a crónica. Mas, para isso, tal
como nos romances, é necessário assumir um pacto de leitura, ou
uma esfera específica de ressonância, para dizê-lo noutra fórmula.
Há, portanto, uma condição comunicativa a que precisamos
de aceder. O foco de Lobo Antunes está sem medo sobre aquilo
que para muitos escritores é impronunciável: a imensa riqueza de
qualquer pessoa. E uma das suas qualidades mais específicas é a de
descobrir um núcleo de claridade em qualquer destes meios,
constelações de cafezitos, restaurantezitos, de pequenos vigaristas,
prostitutas, travestis, reformados miseráveis. Onde o que cintila é o
desprezível, o detestável, o desgraçado. Olhemos, para apontar um
só exemplo, a crónica «O grande Borges», em que o escritor, que
não tem substância para além dos livros, se assimila a um velhote
bêbado que vive perto do sítio onde escreve. Só assim,
experimentando reflexos em espelhos inverosímeis, é que seremos
capazes de encontrar, no meio das pequenas tragédias ensurdecidas,
a inesgotável dignidade humana que o autor nos quer fazer
experimentar.
Claro, a esfera cénica é nitidamente antuniana. Quase tudo se
passa no mesmo bairro, o da Estefânia, não um bairro, uma ilha, a
partir da qual podemos reconstituir, em gestos mais empáticos, uma
visão renovada sobre as pessoas do nosso país. Tal como nos
romances, há uma opção discursiva que assume os esforços de
diagnosticar a doença que impede as pessoas de serem felizes, de
acordarem do universo amargurado em que vivem: «Por que carga
de água vivemos tão mal? (p.89).
A crónica que abre com a interrogação que acabei de
transcrever será, nessa perspetiva, uma das mais exemplares que
Quarto livro de crónicas nos oferece. Permite-nos, por si só, fixar um
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dos sentidos de leitura que nos parece mais importante nesta coleção
de textos. O título introduz-nos logo num forte halo sugestivo:
«Crónica escrita pelo filho de Calamity Jane». Como começa num
tom autobiográfico, e com o pretexto de contrariar a infelicidade
resignada em que a maior parte das pessoas se deixa viver, o relato
deriva pelo enaltecimento do submundo de prostituição e pequena
criminalidade da zona daquela zona de Lisboa para, num desfecho
inesperado, a voz do narrador assumir a vontade de uma realidade
materna paralela àquela que foi a sua: «Desde criança que sonho ser
filho de Calamity Jane» (p. 92).
A confissão desse sonho produz-se em primeira mão na
intenção de um riso leve, adequado ao registo cronístico tradicional
e que é comum no estilo de Lobo Antunes e que, neste mesmo caso,
sirva de remate para o traço sarcástico que espreita em permanência
no elogio à arte governativa dos proxenetas. Que filho seria este? E
por isso, escolher ser filho de tão indomável mulher é uma preferência
a partir da qual posso experimentar uma outra ilação, extensível,
numa corrente subterrânea, a um fundo tonal dominante nestes
pequenos relatos. Num contexto de falta de afeto materno, a
aventureira do velho oeste Calamity Jane seria a progenitora desejada.
Mais do que uma peregrinação pelo tempo que passou, tratam estas
crónicas, essencialmente, de uma peregrinação pelo espaço. Do
mundo quer-se que seja uma expansão do útero materno. Não é
senão o que nos confidencia na página 146, sempre em voz baixa:
«devo ter sido muito feliz na barriga da minha mãe, por dentro da
sua voz, do seu sangue».
Num clima de ironia autorreflexiva, afirmar a possibilidade
de renascer daquilo de onde se foi configura-nos, sem dúvida, o
apelo a um horizonte onde a irredutibilidade do afeto permita
manter sobre o mundo um polo de curiosidade infantil, sempre
pronta a ser surpreendida por pequeníssimas coisas. Não estaríamos
errados, nesta perspetiva, se assegurássemos que a atividade da escrita
conflui num universo de apelos, como se diz na página 123: «E nisto,
no lugar escuro onde fiquei, tu vens de repente e pegas-me na mão».
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Além do mais, é verdade que na voz adulta que suporta a narração
de muitas destas crónicas desvendamos, sem dificuldades de maior,
a criança de antigamente, ávida pelo afeto materno, como na
«Crónica antiga que achei numa gaveta». Porque não são senão os
passos desses indivíduos, procurando a voz da mãe, que se fazem
subterraneamente ouvir numa camada profunda em todas as
crónicas.
Em contraponto à angústia da noite, anuncia-se nelas um repto
de imperecibilidade, uma vontade de encontrar a claridade que nos
faça continuar a resistir às angústias da vida, de que a crónica «Com
tão pouca coisa se constrói o mundo» nos dá uma intuição para
todo o livro: «começo a entender aquilo de que não tinha ideia, a
habituar-me à esperança, à certeza» (p.22). Os heróis solitários não
fazem parte destas cartografias humanas. Nisso, há uma orgânica
comum a todos os textos. Aqueles que vivem sozinhos deixam-nos
quase sempre a esperança de poder viver um futuro partilhado, em
ressonância, nem que seja com o vizinho do segundo andar: um
pouco velho de mais, e sem graça, mas também vive sozinho e talvez
o colchão, aos dois, nos aceite melhor que a um sozinho, como se
conta em «Adelaide».
Num corpo e numa alma duramente fragilizados pela doença,
há que repor os níveis anímicos a partir da célula da escrita. As
crónicas também têm essa função, ou esse efeito. Como é típico da
narração antuniana, o presente parece estar permanentemente em
suspenso, em conflito com o passado obsessivo. A hipótese de viver
feliz joga-se nesse confronto e, como numa guerra, a dignidade dos
homens mede-se pela elegância com que aguentam o horror. Talvez
por isso a pergunta fundamental se mantenha, como uma espuma, a
filtrar das misérias uma voz em expetativa: «O que esperam, o que
desejam ainda?» (p. 221).
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FRANCO, Andréia. Terno de Reis, de Ricardo
Ramos, e o herói problemático: a representação
do sujeito num mundo em decadência. 2012.
Dissertação de Mestrado em Estudos
Literários (PPGEL), da Universidade do
Estado de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus
de Tangará da Serra. Orientador: Aroldo José
de Abreu Pinto.
Pesquisa empreendida junto ao acervo de Ricardo Ramos –
disponível na Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT,
câmpus de Alto Araguaia –, este trabalho consiste de um estudo
crítico sobre a configuração do herói problemático nos contos
“Terno de Reis”, “Viagem Noturna”, “Agreste”, “O Dia de
Genuíno” e “História de Empregada”, selecionados entre as doze
narrativas da obra Terno de Reis (1957). Para examinar a problemática
do herói na moderna ficção brasileira, nos ancoramos inicialmente
em Mário de Andrade (1974), José Paulo Paes (1999), Lukács (1965).
Mais especificamente, buscamos analisar as narrativas à luz da crítica
e da fundamentação teórica estudada, com a intenção de
compreender as características que cercam o texto ficcional do
escritor. Constatamos que o herói presente nos contos em análise
pode ser ora o sujeito indefeso e fracassado – mergulhado no caos
que é a vida em sociedade e preocupado com as coisas corriqueiras
do dia-a-dia –, ora um sujeito que se recusa a ser um “pobre-diabo”
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nessa sociedade que oprime e massacra a alma humana. Partimos
do pressuposto de que a batalha do herói ricardiano inserido nesse
mundo moderno é justamente pelo desvelamento da relação
opressor-oprimido, instaurada pelo capitalismo. Não há
acontecimentos grandiosos dentro dos textos analisados; pelo
contrário, há o pormenor. O sujeito é uma vítima das circunstâncias
a que é submetido. O herói, apesar de não se conformar com as
normas e valores estabelecidos, também não se rebela contra o
sistema. Enfim, os contos de Ricardo Ramos se mostram
esteticamente elaborados justamente pelo que deixam entrever. Para
completar o trabalho, buscamos, no acervo do escritor, textos
críticos publicados em periódicos sobre a referida obra e pudemos
observar que estes, com raras exceções, dão conta apenas de
elementos da camada mais superficial das narrativas, não chegando
a mencionar a questão do “herói problemático” levantada neste
trabalho.
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SFOGIA, Leocir Antonio . Leite derramado aspectos da configuração estética da memória
e do narrador. Dissertação de Mestrado em
Estudos Literários (PPGEL), da Universidade
do Estado de Mato Grosso (UNEMAT),
câmpus de Tangará da Serra. 2012.
A presente dissertação resulta da investigação e análise estética
do romance Leite derramado, de Chico Buarque de Holanda, das
lembranças narradas, um emaranhado de flashbacks que se
entrecruzam. Dela resulta a configuração da personagem Eulálio
Montenegro d’Assumpção, narrador e protagonista, que se dá
através de suas memórias e inserem a Historia do Brasil, Sociedade
e Política e seus Costumes, como pano de fundo contrastivo.
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LUZ, Loraine Ferrari. No rastro da poaia:
caminhos do romance-folhetim em Mato
Grosso. 2012. Dissertação em Estudos
Literários (PPGEL), da Universidade do Estado
de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de
Tangará da Serra.Orientador: Olga Maria
Castrillon-Mendes.
A pesquisa aqui apresentada revive os anos áureos de uma
das mais importantes produções naturais para a economia do Estado
de Mato Grosso, nas primeiras décadas do século XX: a poaia.
Escolhendo a narrativa ficcional para recontar as histórias recriadas,
tanto da oralidade, quanto as resultantes de pesquisas, Alfredo Marien
debruça-se sobre singulares fatos e cenários do universo sóciocultural, centralizando uma personagem que denomino de sertanejopoaieiro, ou seja, o ator social “de fora” com uma visão até certo
ponto estereotipada. Um franco-brasileiro em viagem pela história
e pela geografia de um Brasil interior ainda pouco conhecido e no
exercício estético da construção de imagens que resultam em quadros
da natureza e do cotidiano do interior de Mato Grosso, Era um
poaieiro (1944) é uma espécie de “novela romanceada” que tem a
particularidade de revisitar espaços que configuram uma cartografia
poética baseada nas experiências vivenciadas pelo escritor, buscando
compreender uma realidade que desafia a imaginação pela própria
complexidade de ser. Um espaço que recria tragédias sociais que
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trazem no bojo esperanças e anseios de uma população fadada a ser
esquecida no mapa, como de fato (ainda) o é, mas também o drama
das relações de poder que desaguam nas angústias e desesperanças
do homem brasileiro, num período histórico em que os projetos
nacionais se preocupavam em criar e explorar riquezas,
independentemente das consequências sociais e culturais da
exploração a mão-de-obra nativa. Nessa busca pelo sertanejo matogrossense, Alfredo Marien plasma as relações do homem com o
meio social e natural, abrindo-se para discussões de/sobre as
tendências do regionalismo realista em detrimento das novas
tendências estéticas em circulação. Naquele momento Era um poaieiro
é editado em livro no ano de 1944 e em 1949, reaparece nos rodapés
do jornal mato-grossense A Capital com características do romance
folhetinesco. No entanto, rapidamente, o romance desaparece dos
rodapés do jornal, restando apenas alguns fragmentos dele
publicados. Aos moldes europeus, Marien aposta na Belle Époque
como fonte de denúncia e estigmatização social. No percurso dessas
linhas de força, minha análise busca respaldo teórico em bibliografia
sobre o romance-folhetim, tanto no Brasil quanto nos países de onde
originou, em teoria da narrativa regionalista e em pesquisas que se
debruçam sobre os sentidos sociais e culturais da figura ímpar do
sertanejo-poaieiro.
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MENEGUCI , Sebastiana Rodrigues da Cruz
. Representações da guerra e o intelectual em Nós, os
do Makulusu, de Luandino Vieira. 2012. Mestrado
em Estudos Literários ( PPGEL) , Universidade
do Estado de Mato Grosso (UNEMAT),
câmpus de Tangará da Serra. Orientador: Vera
Lúcia da Rocha Maquêa
Esta Dissertação propõe discutir representações do intelectual
em Nós, os do Makulusu, de Luandino Vieira, através da personagem
Mais Velho, que sempre se posiciona de forma crítica a respeito da
guerra e a consequência dos seus desdobramentos, buscando
desmascarar as atrocidades do período colonial. O comportamento
intelectual e filosófico dessa personagem contrasta com a ideologia
de vida das demais personagens,principalmente do irmão alferes
Maninho, que mesmo odiando a guerra se submete às atrocidades
do regime salazarista, acirrando o antagonismo entre eles. O papel
da protagonista, a sua forma peculiar de ser, de pensar e de se
relacionar com as outras personagens e com a situação conflituosa
da guerra nos dão algumas características de que se trata de um
intelectual impulsionado a lutar pela independência de Luanda. Com
sua escrita original, Luandino Vieira se utiliza da voz do narrador
personagem para abordar experiências traumáticas desse período e
as contradições da guerra. A história de vida de Luandino Vieira
está intrinsecamente ligada à história da independência de Angola.
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Engajado no processo de libertação o autor sofre as conseqüências
de sua luta sendo preso por duas vezes. Quando o salazarismo
controlava qualquer manifestação nacionalista e rejeitava qualquer
reivindicação de direito para o povo angolano, esse autor é um dos
que se levantaram em favor da nação angolana livre. Através de sua
escrita que transita entre o português e o kimbundo, valorizando
muito a qualidade artística da sua obra, Luandino Vieira é uma das
vozes ressonantes em relação ao poder do Portugal salazarista e
suas formas arbitrárias de governo.
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RIBEIRO, Aparecida Cristina da Silva . Viagens,
identidades e travessias: uma leitura comparada
das obras Relato de um certo oriente, de Milton
Hatoum e O outro pé da sereia, de Mia Couto.
2012. Dissertação em Estudos Literários
(PPGEL), da Universidade do Estado de Mato
Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da
Serra, MTOrientação: Vera Lúcia da Rocha
Maquêa
Nesta pesquisa realizamos uma leitura comparativa de dois
romances contemporâneos, que entendemos pertencer ao
macrossistema literário da língua portuguesa, Relato de um certo Oriente,
do escritor brasileiro Milton Hatoum e O outro pé da sereia, do escritor
moçambicano Mia Couto. Como suporte teórico, utilizamos os
conceitos sistema literário, de Antonio Candido, e macrossistema literário,
desenvolvido por Benjamin Abdala Junior, que estuda as relações
literárias e culturais entre os países de língua oficial portuguesa. Nosso
estudo parte das relações que estabelecemos entre os temas identidades,
viagens e travessias, que se entrecruzam nas narrativas como representação
de constantes buscas de personagens deslocadas e fragmentadas, seres
que vivenciam conflitos sociais e subjetivos na sociedade
contemporânea. Os movimentos incessantes pela busca do que foi
perdido resulta então da condição itinerante, uma condição que traduz
os narradores e personagens dos romances estudados.
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RODRIGUES, Clarice Gomes Clarindo.
Personagem feminina em cena: um estudo de O
Primo Basílio, de Eça de Queirós. 2012.
Dissertação em Estudos Literários (PPGEL),
Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra.
Orientador: Elisabeth Battista
A pesquisa apresenta um estudo do romance O Primo Basílio
(1878), de Eça de Queirós, e se insere no âmbito da Literatura e da
Vida Social nos países de Língua Portuguesa. Tem como objetivo
refletir sobre a constituição da personagem Luísa na representação
do universo feminino, presente na sociedade burguesa da segunda
metade do século XIX, em Portugal. A partir de reflexões em torno
de elementos da estrutura da narrativa, especialmente do estudo da
personagem, procura analisar a importância que a personagem Luísa
desempenha na diegese e na representação literária, vindo a subsistir
ao longo dos tempos. Assim, o norteamento teórico crítico tomou
como elementos o contexto histórico, social e cultural, assim como
a presença feminina no Realismo. Deste modo, a reflexão sobre a
personagem de ficção, a revisitação dos mecanismos de
caracterização das personagens foram fundamentais para a
contraposição dos aspectos relativos à linearidade da personagem
Luísa. Em relação à representação literária especificamente, a análise
demonstrou que a construção da personagem feminina no romance
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O Primo Basílio constituiu-se sob a base ideológica discursiva em
voga nos discursos filosóficos presentes no contexto social de Eça
de Queirós. Além disso, verificou-se como a personagem feminina
interage nos espaços públicos e privados e como o seu percurso na
cena literária foi capaz de impactar a sociedade da época. Em suma,
considera-se que a personagem Luísa de Eça de Queirós contrapõese aos aspectos de linearidade na narrativa, constituindo-se como
um importante canal de expressão do processo de transição de estilo
literário e no modelo europeu de organização da vida social
burguesa.
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Os artigos podem ser redigidos, além de português, em
espanhol, francês, italiano, inglês.
Formatação:
Em Word for Windows ou programa compatível, fonte
Times New Roman, tamanho 12, espaço simples entre
linhas e parágrafos, e espaço duplo entre partes do texto.
Páginas configuradas no formato A4, sem enumeração,
com 03 cm nas margens superior e esquerda e 02 cm
nas margens inferior e direita.
Extensão: 10 páginas no mínimo e 15, no máximo.
Estrutura:
Título em negrito e caixa alta, centralizado. Tradução
em inglês. Imediatamente abaixo, alinhado à direita,
nome completo do autor, seguido da sigla de sua IES.
Em nota de rodapé: filiação científica - Departamento,
Faculdade, Universidade, CEP, cidade, estado, país.
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Normas de apresentação dos originais
Em Times New Roman e corpo 11: Resumo (máximo 200 palavras) e
Palavras-chave (máximo 06) no idioma do artigo; Abstract e
Keywords em inglês.
– Citações:
– No texto: entre aspas, sem destaque em itálico, seguidas, entre
parênteses, pelo sobrenome do autor em caixa alta, ano de publicação
e, quando necessário, da página (p.). “[...] moleques, mulatos/ vêm vêlos passar.” (FERREIRA, 1939, p. 65). Se o nome do autor estiver
citado no texto, indicam-se entre parênteses a data e a página: “Segundo
afirma Lotman (1991, p. 10).......”
Acima de 03 linhas: destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda,
corpo 11, sem aspas. Entre parênteses, sobrenome do autor em caixa
alta, ano, página.
Notas de rodapé: reduzidas ao mínimo, enumeradas, no pé de página,
corpo 10.
Referências bibliográficas:
Em ordem alfabética pelo último sobrenome do autor e conforme a
NBR 6023 da ABNT de 2006.
– Livros e monografias:
HATOUM, M. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras. 2005.
– Capítulos de livros:
AGUIAR, F. Visões do inferno ou o retorno da aura. In: NOVAES, A.
(Org.). O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 317-26.
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Normas de apresentação dos originais
ROSENFELD, A. Reflexões estéticas. In: _____. Texto e contexto.
São Paulo: Perspectiva, 1969. p. 19-120.
– Dissertações e teses:
SILVA, I.A. Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso. 1994.
Tese (Livre-docência) – Departamento de Linguística, Unesp,
Araraquara/SP.
– Artigos de periódicos:
HERNÁNDEZ M., L. La importancia de la filosofía del lenguaje de
Ludwig Wittgenstein para la linguística del cambio de siglo. Escritos,
Puebla, n.24, p.5-9, 2002.
– Artigos em jornais:
CARVALHO, M.C. Países pobres concentrarão mortos por fumo, diz
estudo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 28 ago.2009. Cotidiano, p.5.
– Trabalhos em eventos:
SILVA, A.J. Novas perspectivas ao romance brasileiro. In:
SEMINÁRIO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA, 1, 2002.
Mirassol. Anais... Mato Grosso: Unemat, 2003. p. 11-20.
– Publicações On-Line
SILVEIRA, R.F. Cidade invadida por vândalos. Alerta. Curitiba, 10
mar.1999. Disponível em http://www.alerta.br. Acesso em 10
mar.1999.
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RULES FOR SUBMISSION OF
ARTICLES TO ALERE
MAGAZINE
ISSN -1984-0055 (impressa) 2176-1841 (digital)
Publication targeted to doctors and masters
As for formatting
Articles should be typed in Word for Windows or compatible program,
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for which should be applied sizes 11 and 10, respectively), simple space
between lines and paragraphs, double space between parts of the text.
The pages should be set up in A4 format, unnumbered, with 3 cm at
the top and left margins and 2 cm in the bottom and right.
As an extension, the article set the format above, should have 15 pages
at most.
Organization implies the following sequence: title (centered, in
uppercase) author (left with a footnote indicating which binds
University) abstract (with maximum of 200 words) keywords (up to
06 words), written in the language of the article; abstract and keywords
(for English version of the Abstract and Keywords) Summaries, key
words, in Portuguese and English, should be typed in Times New
Roman, size 11.
References (only mentioned studies into the text). Footnotes should
be presented in foot of page, using Microsoft Word resources, in size
10, numbered following the order of appearance.
On quotations inside text, of up to three lines (NBR 10520 of ABNT,
2006), the author should be cited in parentheses by last name, in
capitals, separated by commas before date of publication (SOUZA,
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Normas de apresentação dos originais
2005). If the author’s name is mentioned into the text, indicates only
the date in parentheses: “Souza (2005) points out […]”. When necessary,
the specification of page(s) should follow the date, separated by
commas and preceded by p. (SOUZA, 2005, p. 145). The quotes from
various works by the same author, published in the same year should
be differentiated by small letters after the date without spacing
(SOUZA, 2005a). When the work has two or three authors, all may be
listed, separated by semicolons (SILVA; SOUZA; SANTOS, 2005);
when more than 3 authors, indicates the first followed by et al. (SOUZA
et al., 2005).
Direct quotations, with longer than three lines (NBR 10520 of ABNT,
2006), should be highlighted with a decrease of 4 cm from the left
margin, in size 11 and unquoted.
References at the end of the text should be arranged as recommended
for ABNT NBR 6023 in 2006. We will give some basic indications
here: should be arranged alphabetically by surname of the first author.
- Books and monographs (AUTHOR, A. Title of the book. Edition
number-ed., City: Publisher, number of pages p.).
HATOUM, M. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras. 2005.
- Book chapters (AUTHOR, A. Title of the chapter. In: AUTHOR, A.
book title. City: Publisher, Year. p. X-Y).
AGUIAR, F. Visões do inferno ou o retorno da aura. In: NOVAES, A.
(Org.) O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 317-26.
ROSENFELD, A. Reflexões estéticas. In: _______. Texto e contexto.
São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 19-120.
- Thesis and dissertations (AUTHOR, A. - dissertations /thesis title:
subtitle without italics. Number of leaves f. Year Dissertation / Thesis
(Masters / PhD in Concentration Area) - Institute / Faculty, University,
City, Year)
SILVA, I.A. Figurações e metamorphose: o mito de Narciso. 1994
(Livre-docência). Departamento de Linguística, Unesp, Araraquara/
SP.
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Normas de apresentação dos originais
- Journal articles (AUTHOR, A. title of article. Journal name, City,
vol. volume, n. paragraph, p. X-Y, Year).
HERNÁNDEZ M., L. La importancia de la filosofía del lenguaje de
Ludwig Wittgenstein para la linguística del cambio de siglo. Escritos,
Puebla, n.24, p.5-9, 2002.
CARVALHO, M.C. Países pobres concentrarão mortos por fumo, diz
estudo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 28 ago. 2009. Cotidiano, p.5.
- Work published in Annals of congress or similar (AUTHOR, A. title
of work. in: NAME OF EVENT, edition ed., year. Anais ... City:
Institution. p. X-Y).
SILVA, A.J. Novas perspectivas ao romance brasileiro. In:
SEMINÁRIO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA, 1, 2002.
Mirassol. Anais...Mato Grosso: Unemat, 2003. p. 11-20.
-Work published On-Line
SILVEIRA, R.F. Cidade invadida por vândalos. Alerta. Curitiba, 10
mar. 1999. Disponível em http://www.alerta.br.Acesso em 10 mar.
1999.
The texts in the format above should be sent to the following email:
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS-PPGEL
UNEMAT - S ECRETARIA DE P ÓS-G RADUAÇÃO
RODOVIA MT - 358, KM 07, JARDIM AEROPORTO, TANGARÁ
CEP: 78300-000
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