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Ética para o Mundo do Trabalho na Escola
- notas para um seminário do SESI -1
Parece haver, no Brasil, um acordo tácito: formação ética é tarefa da família.
Com efeito, salvo raras exceções, as instituições brasileiras de ensino não possuem
estratégias para tal formação. Embora tenham sido lançados em 1997, os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCBS), que prevêem a ética como tema transversal, ela
permanece brilhando pela ausência nos programas de Ensino Fundamental e Médio.
Todavia, alguns pensadores, e não dos menores, alertaram para as limitações da
família para a formação dos futuros cidadãos. Citemos apenas três, começando pelo
filósofo Emmanuel Kant, autor de alguns apontamentos sobre educação, que escreveu:
“Em geral, a educação pública parece ser mais vantajosa do que a educação doméstica
não somente no que concerne às habilidades, mas também no que se refere ao
verdadeiro caráter de um cidadão. A educação doméstica, longe de corrigir os defeitos
da família, os reproduz”.
Fazendo eco a seu ilustre antecessor, o filósofo Alain afirmou em seus Propos
sur l’Education que “a família instrui mal e até mesmo educa mal”. Por quê? Porque “o
amor é sem paciência”, porque ele “espera demais”, porque “os sentimentos tiranizam”,
porque as relações afetivas acabam por mesclar-se aos princípios morais,
particularizando-os e logo, deformando-os.
De seu lado, Emile Durkheim, autor do clássico livro l’Education Morale, não
hesitava em dizer que “Contrariamente à opinião, demasiadamente difundida, segundo
a qual a educação moral caberia antes de tudo à família, estimo que a função da escola
no desenvolvimento moral pode e deve ser da mais alta importância (...) Pois se a
família pode sozinha despertar e consolidar os sentimentos domésticos necessários à
moral e mesmo, de forma mais geral, aqueles que estão na base das relações privadas
mais simples, ela não é constituída de maneira a poder formar a criança para a vida
em sociedade”.
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O presente texto foi elaborado para o Seminário Ética na Educação Básica por Yves de La Taille, Professor da
Universidade de São Paulo, com contribuições de Renato Caporali, Diretor Superintendente do SESI/DN e José
Veríssimo Romão Netto, Gerente de Planejamento do SESI/DN.
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No Brasil (e também em vários países do ocidente), tais reflexões acima
expostas parecem ser desconhecidas ou terem sido esquecidas. Ou será que os
educadores delas discordam? O SESI tomou a decisão clara de agir em concordância
com a linha de pensamento que atribui à Escola um papel essencial para a formação
moral e ética dos estudantes; o seminário Ética na Educação Básica na Rede Escolar
do SESI será um momento para submeter a debate a linha de trabalho que será
implementada. No momento em que propomos a criação/adaptação de uma disciplina
no Ensino Médio sobre temas de Ética na Vida Social, é certamente da maior
pertinência que voltemos a discutir o papel da educação formal na formação ética de
seus alunos. Daí a proposta de um seminário interdisciplinar para se discutir a questão.
Porém, não é apenas o tema da participação das instituições educacionais na
formação ética de seus alunos que deve ser objeto de reflexão. Para fazer isso de forma
adequada, duas outras questões a antecedem: como pensar a ética no mundo
contemporâneo? Que conteúdos eleger para que sejam trabalhados?
O seminário proposto será organizado em três partes, que passamos a apresentar.
1. Ética e mundo contemporâneo.
O conceito de ética precisa, antes de tudo, ser definido. Isto se faz necessário,
pois, por convenção, o conceito pode receber definições variadas. Por exemplo, Paul
Ricoeur chama de ética as questões relativas à ‘vida boa’, seguindo assim os passos de
Aristóteles. Para alguns, a ética é a reflexão filosófica ou científica (histórica,
sociológica, psicológica, etc.) a respeito dos diversos sistemas morais. Outros ainda — e
a própria linguagem natural — assumem a sinonímia entre ética e moral: ambas se
referem a sistemas de valores que, por intermédio de princípios e regras, normatizam as
condutas interindividuais das pessoas que vivem em determinada sociedade.
A definição que será assumida no simpósio é esta última entre outras razões por
simplicidade, para evitar que o debate derive para uma discussão de cunho acadêmico.
Quando se fala em formação ética, fala-se em estratégias para que os alunos conheçam e
legitimem alguns valores que inspiram a convivência (por exemplo, justiça, tolerância,
disciplina, generosidade) e neles pautem suas condutas.
Isto posto, impõe-se primeiramente discutir como se encontra a dimensão ética
na sociedade contemporânea, também chamada de pós-modernidade. Será que o mundo
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contemporâneo alterou de forma radical os valores que vieram do passado? Ou será que
há apenas pequenas variações? Ou seria nenhuma? Como anda da ‘saúde’ ética dos
cidadãos contemporâneos? Vivemos uma crise ética, como o pensam estudiosos como
Baumann? Ou será que, vivenciando uma espécie de ‘crepúsculo do dever’, para
retomar uma expressão de Lipovetsky, assistimos também ao nascimento de uma nova
ética, não mais baseada em obrigações e sacrifícios, mas sim na espontaneidade e na
liberdade. Outra pergunta pode ser colocada: qual o lugar da ética nos projetos de vida
dos nossos contemporâneos, qual a sua relevância para os grandes desafios que a
humanidade hoje enfrenta (como a questão da sustentabilidade)?
Responder ou procurar responder a essas perguntas (e outras semelhantes) é
tarefa incontornável tanto para se escolher os conteúdos a serem propostos aos alunos
quanto para aquilatar as chances de sucesso de diversas estratégias pedagógicas.
Em resumo, portanto, a mesa redonda Ética e mundo contemporâneo visará
procurar responder à seguinte pergunta: vivemos uma crise ética ou vivemos em tempos
de nascimento uma nova ética? Seja uma ou ambas respostas positivas, há pertinência
em retomar questões de filosofia moral no ambiente escolar em tal contexto histórico?
2. Conteúdos educacionais da ética
As falas e os debates da mesa anterior a respeito de uma possível nova ética
serão, evidentemente, valiosos para a reflexão sobre conteúdos a serem desenvolvidos
na proposta do SESI/DN. Porém, outras questões também poderão ser abordadas.
A primeira delas é a clássica oposição entre ‘virtudes’ e ‘a virtude’. Será a ética
um conjunto de qualidades de caráter como, por exemplo, a generosidade, a coragem, a
temperança, a humildade, etc.? Ou terá ela como eixo uma virtude, só e incontornável: a
justiça? O psicólogo americano Lawrence Kohlberg, inspirado em Kant e Piaget, optou
pela segunda tese, enquanto a tradição aristotélica leva à primeira. Dependendo da
escolha que se fizer, a justiça poderá ser a única a realmente ser trabalhada em sala de
aula, ou variadas outras poderão ser exploradas.
Mesmo nas correntes mais recentes, que costumam aceitar a justiça como eixo
incontornável da ética (esta primazia não é e não precisa ser contestada para se postular
uma educação moral multi-conceitual), outra virtude tem sido lembrada: a generosidade.
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Devemos a Carol Gilligan a diferença e complementaridade entre o que ela chama de
‘ética da justiça’ (centrada no respeito dos direitos de outrem) e a ‘ética do cuidado’
(centrada, como o seu nome o indica, não nos direitos, mas nas necessidades peculiares
de cada um).
Finalmente, temos uma terceira via: ver na justiça o eixo da ética, e nas demais
virtudes elementos essências ao desenvolvimento de atitudes éticas. Por exemplo, a
generosidade seria da maior importância para a constituição do universo moral das
crianças menores, como o defende La Taille. O SESI se inclina nitidamente por esta
terceira opção, uma vez que reconhece, no mundo contemporâneo, questões decisivas e
que dificilmente se resumem à questão da Justiça. Ademais, o curso terá por objetivo
instrumentar os estudantes para a reflexão ética, com o que a exploração dos conceitos
inerentes às variadas virtudes se torna um elemento técnico e metodológico decisivo
para a vida cotidiana e profissional dos jovens formados pelo SESI.
Enfim, o tema da ou das virtudes é relevante para a escolha de conteúdos a
serem contemplados numa eventual formação ética.
A questão adquire maior complexidade em decorrência da opção explícita do
SESI/DN de pensar uma formação ética comprometida com temas que digam respeito,
não somente à cidadania como um todo, mas também ao mundo do trabalho. Em
documento preliminar elaborado por esta instituição são apontadas virtudes como
perseverança, prudência, disciplina, cooperação, lealdade, esmero e zelo como
necessárias ao melhor exercício de toda profissão, e para o bom desempenho pessoal da
atitude profissional. Logo, uma discussão relevante é, em primeiro lugar, pensar se
existem, de fato, virtudes peculiares ao mundo o trabalho, e se seriam elas necessárias
ou convenientes para a própria vida. Em segundo lugar, se de fato houver virtudes a
serem desenvolvidas para o mundo do trabalho, quais seriam? Estas propostas pelo
documento preliminar? Há outras?
Finalmente, é preciso lembrar que há outra maneira de se pensar conteúdos,
agora não mais relacionados às virtudes éticas em si, mas sim aos temas sociais para os
quais tais virtudes deveriam ser exercidas. Os temas podem ser de ordem geral e,
portanto, atinentes a situações pelas quais qualquer pessoa passa direta ou
indiretamente: por exemplo, religião, política, preconceitos, esporte, mídia, família, etc.
Ou os temas podem ser diretamente relacionados aos do mundo do trabalho:
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competitividade, liderança, autoridade, distribuição de renda (salários justos ou injustos
e lucro), responsabilidade social, etc.
Dado a diversidade de reflexões que a mesa redonda conteúdos educacionais da
ética coloca, não é possível resumi-los numa pergunta única a não ser esta mais geral: o
que trabalhar?
3. Formação ética
A última mesa redonda será destinada ao tema central do simpósio, a saber, à
educação. A pergunta é: como proceder para uma formação ética dos alunos?
Se por formação ética entendermos o ensino de variados sistemas éticos
(Aristóteles, Spinoza, Kant, Durkheim, judaísmo, cristianismo, etc.), assim como se
ensinam teorias filosóficas e científicas, o desafio pedagógico não é grande: a rigor,
bons textos e bons professores. Todavia, o SESI entende por formação ética o
desenvolvimento de atitudes éticas (como agir de maneira justa, ser solidário, ser
generoso, ter humildade, ter honra, etc.), tornando, assim, o desafio real.
O fato é que propostas de estratégias pedagógicas de formação ética existem,
inspiradas pelos conhecimentos científicos criados pela Psicologia e pela Sociologia. Há
os adeptos das aulas de moral e civismo, fórmula que no Brasil foi implantada quando
do Regime Militar e suprimida depois da democratização do país. Há aqueles que, como
Piaget, aceitam o valor de tais aulas, mas lembram que, nas palavras do próprio
pesquisador suíço, “ela não pode dar seus frutos se não houver uma verdadeira vida
social no interior da sala de aula”.
A proposta brasileira apresentada no final da década de noventa, os Parâmetros
Curriculares Nacionais, segue, nas grandes linhas, tal postura defendida por Piaget: no
documento ‘Ética’, a ênfase é dada ao cuidado com o convívio escolar, que deve ser
cooperativo, respeitoso e democrático, mas também é sublinhada a necessidade da
chamada ‘transversalidade’, que não prevê aulas específicas, mas sim reflexões em sala
de aula sobre as dimensões éticas presentes nas demais disciplinas. Mas há também
aqueles que descartam aulas de educação moral, transversais ou não, e propõem que o
convívio escolar seja o alvo exclusivo das estratégias, como o faz Puig com sua
proposta de realização de assembléias de alunos. Nessa mesma linha, porém de forma
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radical, existem as ‘repúblicas de crianças’, nome dado por Helena Singer às escolas
que abolem toda e qualquer hierarquia escolar e entregam a direção da instituição a
assembléias das quais participam professores e alunos (o exemplo mais famoso é a
escola de Summerhill, na Inglaterra). Lawrence Kohlberg propôs algo parecido com
suas ‘comunidades justas’. E há outras propostas mais, notadamente no Brasil, descritas
e apreciadas por Suzana Menin e colaboradores.
Poder-se-ia até mesmo perguntar se uma formação ética em instituições
educacionais é realmente possível? Ou se tal formação depende de tantas variáveis,
notadamente afetivas, que nenhuma estratégia pedagógica pode pretender-se eficaz. Em
outras palavras, o que deveríamos esperar deste tipo de formação na vida escolar? O
conhecimento das noções morais, a capacidade de explorar sua dialética própria? O
SESI inclina-se por considerar relevante a simples apropriação dos conceitos, sem maior
pretensão em influenciar o comportamento moral. Sua hipótese é que a apropriação dos
conceitos suscita, em alguma medida, não conhecida porém não nula, o despertar de
sentimentos morais, com o que o processo educativo atinge algum grau de eficácia.
Em suma, propostas não faltam e existem avaliações sobre a sua eficácia. Logo,
a tarefa da mesa redonda formação ética será, por um lado, avaliar as dimensões
psicológicas e sociológicas que presidem o desenvolvimento de atitudes éticas, e, por
outro, levando em conta na medida do possível o que foi discutido nas duas mesas
redondas anteriores, apresentar e avaliar propostas pedagógicas para promover tais
atitudes.
O tratamento destes temas delineia o campo de aspirações deste Seminário sobre
Ética na Educação Básica para a Rede SESI de Ensino.
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