A Educação Moral:
dialogando com Bertrand
Russell e os PCN
Bruno Olivatto*
A educação moral tem sido tema recorrente
de discussão entre educadores de todo o mundo,
em todos os tempos. A atenção dispensada a ela
não decorre de algum modismo teórico, mas da
preocupação dos homens com a sua própria
conduta, seja no plano individual ou social. Essa
preocupação tem se acentuado com a
desestabilização dos valores tradicionais, que
serviam de orientação para a relação dos homens
com a natureza e dos homens entre si. O único
consenso desse permanente debate parece ser
a responsabilidade que as escolas e os professores
devem reafirmar como formadores de caráter.
Enquanto vivermos numa época de transição, de
mudança e de crise, será oportuno discutir a
respeito da formação de valores e procedimentos
morais e serão sempre bem-vindos propostas e
argumentos que possam ajudar a iluminar a nossa
caminhada para um futuro mais humano, mais
justo e mais fraterno.
No contexto escolar, o tema obteve ampla
visibilidade a partir da discussão dos temas
transversais, dentre os quais se inclui a Ética,
contidos nos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN), um documento atualmente recomendado
e legitimado pelo Ministério da Educação do Brasil
como expressão de um ideal da sociedade
brasileira para a educação integral dos jovens de
todo o país. Assim, pretende-se neste artigo
apresentar a proposta de educação moral
defendida pelo filósofo Bertrand Russell e
estabelecer um diálogo entre suas idéias e as
proposições dos PCN no campo da Ética.
Esta sistematização, embora limitada e
expressa num ar ligeiro de texto, configura-se
como possibilidade rica do ponto de vista analítico
ao abordar a questão filosófica da ética na
educação bem como o reconhecimento de
Russell como autor potencialmente relevante para
a educação, mas pouco lembrado nos círculos
acadêmicos, assim como uma oportunidade de
revisitar os PCN, agora em companhia de um
interlocutor de idéias originais.
Apesar de Russell não ser conhecido como
teórico da pedagogia, a educação se constituiu
como preocupação constante ao longo da sua
obra. Vale ressaltar que Russell não construiu um
sistema de idéias no campo pedagógico e sim
teceu considerações esparsas sobre diversos
temas educacionais.
Trazer um autor do porte intelectual de
Bertrand Russell para somar no debate em torno
da questão da moralidade é, sobretudo,
aproveitar seus escritos a serviço de um projeto
de sociedade melhor, o que se condiciona,
necessariamente, a um trabalho competente da
escola que possibilite reflexões críticas das morais
estabelecidas. Este artigo pode ser encarado,
também, como um convite às idéias desse filósofo.
A eleição dos PCN, para o Ensino
Fundamental e sua proposta de educação moral,
impôs-se como referencial mais adequado no
estabelecimento deste diálogo na medida que
eles representam o paradigma governamental de
orientação e subsídio à organização do currículo
da Educação Básica no Brasil, especificamente o
seu capítulo sobre ética, contido no volume dos
Temas Transversais.
*
Pedagogo e Coordenador de Projetos de Formação Continuada de Professores da Educação Básica do Centro de Estudos e
Assessoria Pedagógica (CEAP). [email protected]
Revista de Educação CEAP - Ano 12 - n° 45 - Salvador, jun/ago 2004 (p. 59-71)
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A Educação Moral... - Bruno Olivatto
Vale ressaltar que, ao apresentar e discutir
a proposta de educação moral de Russell, não
será pretensão do texto tratar a questão da
multiplicidade e complexidade do tema ética,
tampouco dos PCN na sua totalidade, ainda que
ambos sejam elementos parcialmente analisados
neste estudo.
Algumas palavras sobre Bertrand Russell
Bertrand Arthur William Russell nasce aos
10 de maio de 1872 em Trellek, País de Gales.
Escritor de abrangente capacidade, em seus 98
anos de vida publicou mais de 40 livros a respeito
de temas variados, como filosofia, política, religião,
história, ética e ciência. As suas obras mais
significativas centram-se em preocupações lógicas,
epistemológicas e metafísicas. Apaixonado pela
matemática, revolucionou a lógica, substituindo a
linguagem da tradição aristotélica pela linguagem
precisa dos números.
Mas é entre 1910 e 1913, beirando os 40
anos, juntamente com Alfred North Whitehead,
que publica a sua principal obra, Principia
Mathematica, ganhando a admiração de grandes
nomes da ciência universal. É reconhecido
internacionalmente pela publicação da História da
Filosofia Ocidental, considerada também como
obra de relevante impacto nos meios intelectuais.
Em 1950, aos 78 anos de idade, recebe o
maior prêmio da sua vida, o Nobel de Literatura.
Pertenceu à corrente da Filosofia Analítica na
modalidade Empirismo Lógico, da qual foi também
fundador, que propunha que a finalidade da
filosofia não deveria ser a formulação de novas
proposições sobre a realidade, mas tornar claras
e comprovadas as proposições já existentes. Aos
dois de fevereiro de 1970, com 98 anos,
despede-se da vida em Penrhyn-deudracth, País
de Gales, sendo considerado um dos maiores
expoentes da filosofia contemporânea.
A sua concepção de Educação Moral
Antes mesmo de apreciar as especulações
acerca da educação moral para Russell, é
necessário compreender que esta se constrói a
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partir do conjunto de objetivos que se deseja
atingir com ela, ou seja, é imperioso reconhecer
uma íntima relação entre a moral defendida pelo
autor e os fins, para ele, da educação.
(...) deveríamos, na educação, visar à repleção da
mente com conhecimentos de direta utilidade prática,
ou tentar fornecer aos alunos dotes intelectuais que
tenham valor em si mesmos ?! (...) por outro lado, ser
capaz de apreciar o Hamlet não tem muita utilidade
na vida prática, mas dá a um homem qualquer coisa
mental de que ele sentiria falta e que o torna, de algum modo, um ser humano melhor. É esta espécie de
conhecimento preferida pelos homens que sustenta não
ser a utilidade o fim único da educação (Da Educação, p.12).
Assim, valores como a bondade, a
solidariedade, a obediência, a coragem, o saber,
a honestidade e a retidão – somente para citar
alguns – devem ser compreendidos como
virtudes desejáveis relativas e não-consensuais,
diretamente relacionadas às mais diversas
pretensões dos sistemas educacionais existentes.
Vale lembrar, então, que esses fins serão
construídos, sobretudo, fundamentados nas
múltiplas expressões da tradição cultural de cada
povo e seu contexto histórico.
Tal afirmação não descarta, contudo, a
possibilidade da existência de interseções entre
as mais diversas concepções de educação moral,
ainda que vivamos num mundo plural em que
não há mais consensos plenos em torno daquilo
que devemos seguir como parâmetro rígido de
ideal moral.
A tarefa da educação moral é aprender a lidar com as
incertezas. Isso supõe a superação da relação educativa
tradicional, caracterizada pela transmissão de certezas
aos alunos, e a adoção de uma nova perspectiva
reflexivo/comunicativa. Trata-se de sensibilizar os alunos
para a questão da moralidade, introduzi-los no debate
dos temas mais importantes que envolvem o ser
humano e a sociedade na contemporaneidade,
buscando contribuir para a formação de uma
subjetividade a partir da qual cada pessoa possa fazer
as suas leituras e tomar as suas decisões (Pedro
Goergen, 2001).
Russell defende a excelência humana como
a finalidade maior da educação. A partir dessa
premissa, lança quatro características virtuosas que
necessariamente precisam coexistir e que seriam
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a base indispensável à formação de um caráter
ideal: a vitalidade, a coragem, a sensibilidade e a
inteligência. Contudo, limitar-se-á esta análise às
suas duas últimas características por serem estas
as que melhor possibilitam o diálogo aqui
proposto.
Sensibilidade
Aqui, Russell inicia esclarecendo que é
indispensável distinguir o que está considerando
um valor dentro da análise da sensibilidade. Esta,
do ponto de vista amplo e teórico, pode ser
definida como uma multiplicidade de estímulos
que despertam emoções no indivíduo. Mas assim
considerando-a, ela não seria necessariamente
boa.
Para que a sensibilidade seja boa, é
necessário que a reação emotiva seja adequada,
não bastando apenas a intensidade. E o que seria
uma reação emotiva boa? Aquela que se aproxima
da simpatia, sobretudo que se manifesta mesmo
a distância, sem a necessidade de se ter o objeto
ou quadro situacional diante dos olhos. A esse
fenômeno dá-se o nome de simpatia abstrata.
Russell valoriza essa virtude por conta dela
se aproximar da inteligência. Toda vez que a
leitura de um determinado romance ou fria
estatística remeta a um quadro situacional de
calamidade e possa produzir a sensação de
sofrimento, de dor etc, aí manifestou-se a mais
gloriosa evidência de sensibilidade. A sua
constatação é de que a simpatia, na maior parte
das pessoas, não costuma ser despertada por
estímulos abstratos apenas.
Inteligência
No discorrer dessa qualidade, Russell inicia
lamentando o que a Igreja fez com este valor na
medida que, para defender seus dogmas,
ideologicamente, preconizou, por séculos, a
virtuosidade como bem desejável ao homem.
Enquanto persistir essa atitude, será impossível fazer
os homens compreenderem que a inteligência produz
mais bem do que uma convencional ‘virtude’ (Da
Educação, p. 61).
Quando fala de inteligência, inclui não só o
conhecimento do real como também a
receptividade ao conhecimento. Os dois estariam,
na realidade, estreitamente relacionados. Quanto
mais um homem aprende, mais facilidade terá
para aprender, sobretudo porque essa apreensão
da realidade não adveio de um dogma. Já este
somente poderá ser aprendido por força de
revelação.
Não há dúvida de que a palavra “inteligência”, quando
propriamente definida, significa mais a aptidão para adquirir conhecimentos do que o conhecimento já adquirido; mas não creio que essa aptidão possa ser adquirida
sem o exercício, mais do que a capacidade de um pianista, ou de um acrobata (Da Educação, p. 93).
O cultivo da inteligência é, assim, um dos
maiores propósitos da educação (p.28). Essa
afirmação de Russell pode ser tachada de trivial.
Contudo, a tradição escolar evidencia que ainda
persiste no meio docente o mau hábito de inculcar
nos alunos certos conceitos sacramentados como
verdades, e isto revela o quão desatentos estão
sendo os docentes ao deixarem passar preciosas
oportunidades do exercício da inteligência.
Uma grande porção dos males do mundo moderno
deixaria de existir se pudéssemos remediar esse fato,
isto é, se pudéssemos aumentar a capacidade para a
simpatia abstrata. A ciência em muito acresceu o nosso
poder de afetar a vida dos povos distantes, sem
aumentar correspondentemente a nossa simpatia por
eles (Da Educação, p. 38).
O fundamento instintivo da vida intelectual é
a curiosidade (p.26). Assim, a consagração de
verdades tira a oportunidade e o encanto da
descoberta, das experiências enriquecedoras
surgidas durante este processo investigativo.
Dessa forma, os questionamentos e as reflexões
são mínimos, pois a nefasta autoridade já se
prontificou a destruir o espírito curioso que haveria
de ali nascer.
Essa sensibilidade cognitiva deve ser
incentivada às gerações como hábito salutar para
a efetiva implementação de um novo projeto de
humanidade, este mais sensível e distante das
crueldades e horrores, ainda hoje disseminados.
A partir de então, atém-se à defesa da
curiosidade, sobretudo daquela que visa as idéias
gerais em oposição àquela que privilegia aspectos
particulares. A primeira caracterizar-se-ia como o
mais alto nível de inteligência.
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Para que a curiosidade dê frutos, ela deve estar
associada a certa técnica de aquisição de
conhecimentos. Exige hábitos de observação, fé nas
possibilidades do conhecimento, paciência e habilidade
(Da Educação, p. 41).
Percebe-se, assim, que a possibilidade
efetiva de potencialização desse valor condicionase a uma visão educacional ampla dos
educadores, que fuja dos modelos convencionais
da mera transmissão de conceitos e conteúdos.
A capacidade inata da inteligência não é aqui o
objeto de discussão trazido pelo autor, mas o seu
vivo direcionamento para um uso pleno e
ilimitado do ato de raciocinar.
A partir desse mosaico bem argumentado
por Russell acerca dos seus pilares da formação
moral, o próprio autor admite que esse conjunto
nos levaria a outro estágio de humanidade,
diferente de tudo o que o mundo viu até então.
Pouca gente seria infeliz. Atualmente, as principais
causas da infelicidade são falta de saúde, pobreza e
uma vida sexual insatisfeita. Tudo isso se tornará
extremamente raro. A boa saúde pode tornar-se quase
universal e mesmo a velhice pode ter o seu
aparecimento retardado. Depois da Revolução
Industrial, a pobreza é devida apenas à estupidez
coletiva. A sensibilidade faria com que os homens
desejassem abolir a pobreza; a inteligência mostrarlhes-ia o caminho; a coragem os levaria a se enveredar
por ele. (...) a educação é a chave do mundo (Da
Educação, pg. 45).
Os Parâmetros Curriculares Nacionais
procuram responder a uma demanda atual,
embora se reconheça que as questões éticas
coexistem com a própria existência humana,
porém as respostas a estas questões não podem
ser as mesmas porque as sociedades e os homens
que a compõem passam por transformações ao
longo dos tempos.
O conjunto central dos valores definidos no
documento – questão dos conteúdos – baseiase, sobretudo, no princípio de dignidade do ser
humano, um dos fundamentos da Constituição
Brasileira. Segundo esse valor, toda e qualquer
pessoa, pelo fato de ser um ser humano, é digna e
merecedora de respeito (p.102).
O critério de eleição desses conteúdos leva
em consideração, primordialmente, o princípio das
diferenças entre os indivíduos (sejam elas a etnia,
a cultura, a classe social, a religião, o grau de
instrução etc); a possibilidade de serem
trabalhados na escola; e a sua relevância tanto
para o ensino das diversas áreas quanto para o
convívio social.
Tais
conteúdos
apresentam-se
desmembrados em blocos, os quais correspondem
a grandes eixos que estabelecem as bases de diversos
conceitos, atitudes e valores complementares
(p.102) e constituem-se em: Respeito mútuo,
Justiça, Diálogo e Solidariedade.
Respeito mútuo
A Ética nos PCN
A justificativa da Ética como tema necessário
à prática pedagógica defende, sobretudo, a
intencionalidade de ações que levem os alunos a
uma reflexão sobre a sua conduta e a dos outros
a partir de princípios morais. Assim sendo, os
temas transversais não se configuram como
disciplinas, mas como proposta de temas a serem
tratados de forma subjacente a todo o universo
disciplinar do cotidiano escolar.
Os PCN entendem que o espaço escolar
é uma instituição importantíssima na formação
ética das novas gerações por este refletir a
nossa sociedade através da expressão de
valores e condutas influenciáveis no
desenvolvimento das crianças.
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O tema respeito é central na moralidade.
Os PCN esclarecem que há várias possibilidades
de associação a este valor. A primeira está ligada
à idéia de submissão, de respeito construído a
partir do medo, das potenciais retaliações
advindas da não-subordinação. Uma outra
associação comum se dá através da admiração
ou veneração a determinadas pessoas.
Em ambos os casos se percebe a expressão
do respeito em caráter apenas unilateral, sem que
a recíproca seja verdadeira ou necessária. É o
poder quem, nestes casos, determina a
construção dessa expressão desvirtuada,
afastando-a da plena concepção do termo.
Quando essa expressão revela condição
recíproca vinculada à idéia de igualdade,
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A Educação Moral... - Bruno Olivatto
evidencia-se, aí, uma situação de respeito mútuo,
e não-associação com a submissão, ou com
qualquer manifestação tendenciosa do uso do
poder. Este estado de reciprocidade se instala
quando do reconhecimento das diferenças e pela
necessidade de sentir-se respeitado na sua
singularidade.
Justiça
O conceito de justiça trazido pelos PCN
imbrica-se claramente com o valor anteriormente
apresentado: o respeito mútuo. Como devo agir
perante os outros? e Como ser justo com os outros?
são questionamentos que nos remetem à reflexão
da existência de uma possível “conduta legal” que
oriente o comportamento social.
Tal “conduta legal” pode ser entendida como
o conjunto de leis de uma nação e mais,
obediência a elas. Contudo, o conceito de justiça
vai muito além da dimensão legalista. A prova
disso são, por exemplo, as múltiplas possibilidades
interpretativas oferecidas a partir do texto legal
com base nos critérios éticos.
Daí decorre um exemplo primoroso da
importância ética na construção e discussão acerca
da justiça. Como esta estará sempre sujeita a
reflexões teóricas pautadas em leis que não
passam de normas estabelecidas socialmente, as
leis devem ser questionadas à medida que
palpitem reflexões que evidenciem indícios da
necessidade de ampliar os seus critérios de
igualdade e eqüidade.
Diálogo
Os PCN esclarecem, de imediato, que
pretendem discutir o valor diálogo – característica
essencialmente humana – numa perspectiva de
bem possibilitador de entendimento entre os
homens, logo potencial amenizador de conflitos e
desigualdades.
Não há dúvida de que um dos objetivos fundamentais
da educação é fazer com que o aluno consiga participar
do universo da comunicação humana, aprendendo por
meio da escuta, da leitura, do olhar, as diversas
mensagens (artísticas, científicas, políticas e outras)
emitidas de diversas fontes; e fazer com que seja capaz
de, por meio da fala, da escrita, da imagem, emitir
suas próprias mensagens (p.109).
O diálogo implica na capacidade de ouvir o
outro e de se fazer ouvir. É também um valor
que liga-se diretamente aos demais. A premissa
do ouvir o outro é condição de respeito e
elemento decisivo para a construção da justiça.
Contudo, esse direito ao diálogo não pode ser
usado de forma transgressora do seu real sentido
para fins violentos de domínio e opressão contra
o semelhante.
Vivemos numa democracia, onde se tem o
direito de expressar-se livremente. Na escola,
como em outros locais de convívio social,
presencia-se a necessidade de trabalhar com este
valor a fim de tornar mais harmoniosa a
convivência humana. Toda expressão plena do
valor diálogo deve levar à democracia.
Solidariedade
A proposta de apresentação da
solidariedade contida nos PCN prima pela
associação deste valor à idéia de generosidade,
da doação e ajuda desinteressada. Sua prática
impõe consonância com os demais pilares aqui já
mencionados, respeito mútuo, justiça e diálogo.
A rigor, se todos fossem solidários nesse sentido,
talvez nem se precisasse pensar em justiça: cada
um daria o melhor de si para os outros (p.110).
A intenção de situar bem a compreensão
acerca da solidariedade justifica-se na medida que
procura distanciá-la da idéia de cumplicidade, pois
nesse caso ela não tem nada de ético, ao
contrário, é condenável por ocorrer em benefício
próprio.
A solidariedade é uma virtude de relevância
para as relações interpessoais, sociais e políticas.
Pode ser percebida, inclusive de modo sutil,
quando do exercício da cidadania, lutando e
defendendo constantemente o bem comum, o
espaço e o direito de todos.
Segundo os PCN, os rótulos, por exemplo,
dados às pessoas a partir da sua conduta pessoal
– boa ou ruim –, estão inteiramente ligados à
concepção de moral internalizada por aquele que
emite o juízo de valor. Isso revela, nas entrelinhas,
toda a subjetividade e relatividade desse
processo de assimilação e construção morais.
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Os comportamentos que manifestam são reflexos
da educação moral que receberam direta ou
indiretamente na família, escola, no convívio com
outras pessoas, na sociedade como um todo,
revelando toda a complexidade do tema.
Concluindo
Antes de qualquer coisa, deve-se perceber
que as idéias sobre educação moral defendidas
por Bertrand Russell e a ética contida nos PCN
revelam-se duas obras de natureza e finalidade
distintas. Embora ambas tratem do mesmo tema,
ou seja, educação moral, a primeira expressa as
idéias de um filósofo que, como tal, buscava
apenas a verdade, enquanto a segunda expressa
e recomenda, como prática, concepções e valores
morais consagrados, na civilização ocidental, como
desejáveis.
Russell centra a sua proposta de educação
moral em torno do desenvolvimento intelectual
do aluno. É a priorização do aspecto intelectual
na formação moral. Tal primazia para com a
questão da inteligência como indispensável à
formação moral pode conferir a ele, inclusive, um
certo grau de originalidade. Afinal, ele ousa colocar
no centro a condição intelectual como te
desejado.
A ousadia de Russell não reside no fato,
puro e simples, de ele considerar a inteligência
como necessária à formação moral, mas, sim, em
trazê-la para a seara da moral, compreendendoa como uma virtuosidade. Até porque,
historicamente, há uma tradição milenar que
diferencia vida moral da vida intelectual.
Recuando na história da humanidade,
poderíamos, inclusive, ir buscar na Paidéia –
primeira teorização acerca da educação – a idéia
de que educar não é apenas promover a
socialização dos indivíduos, um ato meramente
repetitivo, uma atitude pragmática, mas um vôo
ao transcendente, uma busca constante pela
excelência humana. E isso tem relação direta com
a vida intelectual na medida que os sofistas
compreendiam essa excelência como um
virtuosismo da razão, expressa na arte da retórica,
na virtude de convencer pelo argumento.
Os PCN não se referem ao aspecto
intelectual da inteligência como condição
6
necessária à formação moral do aluno, ou pelo
menos não a colocam nesta seara, ainda que
possamos inferir que, ao propor o documento,
estejam favorecendo a melhoria da educação do
nível básico, e, implicitamente, defendendo a
propagação do exercício da inteligência entre os
alunos. Os PCN centram sua defesa de
construção moral em favor do respeito à
diversidade cultural e na tolerância em relação
ao outro, síntese dos quatro pilares que
defendem.
Uma clara aproximação com a proposta de
Russell, entretanto, não aparece nos PCN do
Ensino Fundamental, mas, sim, nos PCN do
Ensino Médio, volume das Bases Legais, quando
o documento conceitua como estética da
sensibilidade a valorização da criatividade,
inventividade, delicadeza, leveza, criação e
beleza. Isso nos remete aos fins da educação
onde, assim como Russell, os PCN admitem não
ser o pragmatismo da utilidade prática o fim último
do processo educativo.
Um outro aspecto original trazido por
Russell a partir, ainda, da sua priorização do
intelecto, é a relação que estabelece entre
inteligência e sensibilidade. A sensibilidade passa
a manter vínculos diretos com a inteligência a partir
do momento em que o conhecimento, construído
pela apropriação e apreensão da realidade, é que
fornece os elementos geradores de reações, ou
seja, provocadores de algum tipo de indignação.
É a capacidade de produzir – via exercício de
abstração – reações mesmo a distância, sem a
necessidade da experiência sensível.
Assim, “russellianamente” especulando,
talvez falte ao segmento dirigente do nosso país,
sempre distante da realidade caótica de sofrimento
e indigência do povo, inteligência para alcançar
esse nível sensorial abstrato. Dessa forma, nossos
representantes parecem não conseguir
sensibilizar-se com aquela parcela da sociedade
que sub-vive. É necessário que esse grupo dirigente
consiga ser tocado a distância. Curioso é que estas
distâncias progressivamente se encurtam e este
segmento insiste em manter-se desumano e
indiferente. É no mínimo admirável o que fez o
presidente Lula, no início do seu mandato,
quando convocou parte do seu ministério a
conhecer in loco o drama dos habitantes do semiárido, que convivem com a situação de seca por
Revista de Educação CEAP - Ano 12 - n° 45 - Salvador, jun/ago 2004 (p. 59-71)
A Educação Moral... - Bruno Olivatto
quase todo o ano. O recado pareceu claro: vejam
pessoalmente com os próprios olhos e
sensibilizem-se porque do gabinete, com arcondicionado, a miséria é apenas um frio dado
estatístico. O fato é (...) quem, em face desses
cenários dramáticos, não se indignar é inimigo da
sua própria humanidade (Boff, 2003). A frase nos
convida a ampliar a responsabilidade a todos
aqueles que colaboram, através de sua
indiferença, para perpetuação de tais cenários.
Se há realmente relação entre sensibilidade
e moral, é verdade que não poderá haver um
estado global de sensibilizados para as condições
desumanas vividas pela maioria desfavorecida
enquanto não se expandir o desenvolvimento da
inteligência. É como um ciclo fechado em si
mesmo: pouco desenvolvimento intelectual que
gera pouca capacidade de sensibilizar-se que gera
a indiferença que leva à manutenção do estado
de desigualdade, perpetuando, assim, o ciclo.
Obviamente que há outros condicionantes para
a reprodução deste círculo vicioso, contudo a
análise visa se ater exclusivamente à relação
sensibilidade/moral trazida por Russell.
Outra evidência importante a ser
comentada sobre as propostas apresentadas é o
tom individual com que Russell e os PCN tratam
a formação da moralidade. O primeiro, por
exemplo, não explicita em momento algum a
dimensão social como potencial influenciadora
desse processo. Quanto aos PCN, estes se
referem apenas à aceitação individual das
diferenças culturais. Ao desconsiderarem, por
exemplo, a dimensão socioeconômica ou, mais
explicitamente, as desigualdades sociais, como um
dos fatores responsáveis pela discriminação de
culturas, perdem a oportunidade de esclarecer a
não-superioridade de uma dada etnia e cultura
sobre outra, já que a visão de cultura superior
exerce forte influência na formação dos valores
morais.
A crise generalizada desses valores morais
da sociedade contemporânea tem relação íntima,
inclusive, com a crise da escola, por conta da perda
de clareza da sua função social. Enquanto a escola
continuar insistindo em não cumprir seu papel de
fazer o aluno pensar e exercitar a sua capacidade
infinita de aprender e de trocar saberes com o
outro, perpassando, necessariamente, pelo
domínio da escrita, da leitura e dos cálculos, muito
distante estaremos do ideal moral proposto por
Russell – quando exalta a inteligência – e
reafirmado pelos PCN – quando reconhecem a
escola como espaço de reflexão permanente
sobre a moralidade, já que ali está encharcado
de valores que se traduzem em princípios,
ordens, regras e proibições.
Diálogo entre propostas, nesse caso aqui
entre Russell e os PCN, deve continuar a fim de
que possamos cada vez mais agregar novas idéias
e, assim, renovar o nosso paradigma de educação
moral. O importante, mesmo, é mantê-lo em
debate. Nunca existirá uma moral definitiva nem
tampouco um conjunto ideal de normas que possa
nos esterilizar do contágio da circunstancialidade
e tornar-se fixo e útil a qualquer experiência
subseqüente. É bom não perder de vista,
contudo, após esse estudo, que a educação moral
não serve para internalizar normas corretas, mas
para aprender que as normas são necessárias
como parâmetros de salvaguarda de princípios
mínimos de convivência humana, como o
respeito à vida, à dignidade do indivíduo, e para
aprender a lidar com estes princípios em
circunstâncias concretas.
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