Artigo de revisão
Aspectos históricos da educação no Brasil
versus violência física na infância: reflexões
History aspects of education in Brazil versus
physical violence during childhood: reflections
Janete Ricas1, Miguir Terezinha Vieccelli Donoso2
RESUMO
1
Médica pediatra, mestre e doutora em Pediatria.
Professora Titular de Pediatria do Curso de Medicina da
Universidade Federal de São João Del Rei, MG - Brasil.
2
Enfermeira, mestre em Enfermagem, doutora em
Ciências da Saúde – área de concentração em Saúde da
Criança e do Adolescente. Professora da Escola de
Enfermagem da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil.
O texto foca a relação entre o processo de educação de crianças no Brasil e a prática
de castigos físicos. Por meio de revisão de literatura, as autoras refletem sobre as questões contextuais de violência física e a evolução do papel da criança na sociedade.
Aborda a família e a escola na vida da criança, enfatizando as suas relações e o castigo
físico nesses dois âmbitos. As autoras concluem que as formas de educação da criança
hoje ainda apresentam traços históricos culturais que favorecem fortemente a prática
de violência física na infância, colocando a questão das mudanças culturais como
ponto estratégico para o combate à violência no país.
Palavras-chave: Violência; Criança; Maus-Tratos Infantis; Violência Doméstica; Educação/
história.
ABSTRACT
The text focus is on the relationship between the children education process in Brazil and
the corporal punishment practice. Through the literature review, the authors reflect on the
contextual issues of physical violence and the evolution of children´s role in the society.
It discusses the family and school on children´s life, emphasizing their relationship with
corporal punishment in both areas. The authors Conclusion is that the forms of education of children today still show historic cultural traces that strongly favor the practice of
physical violence in childhood, raising the issue of cultural changes as strategic point for
fighting violence in the country.
Key words: Violence; Child; Child Abuse; Domestic Violence; Education/history.
introdução
Recebido em: 19/05/2010
Aprovado em: 04/06/2010
Instituição:
Escola de Enfermagem da UFMG,
Belo Horizonte, MG - Brasil.
Endereço para correspondência:
Campus da Saúde. Escola de Enfermagem da UFMG
Avenida Alfredo Balena, 190 - sala 216.
Santa Efigênia
Belo Horizonte, MG - Brasil
CEP: 30.130-100
Email: [email protected]
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Na nossa sociedade, a violência física, outras formas de abuso e desrespeito aos
direitos humanos não estão apenas nítidos, mas também banalizados. A criança,
pela sua relativa fragilidade física e emocional, está fortemente exposta e sofre seriamente as consequências deste contexto de “fragilidade social”. As mortes e acidentes evitáveis, o fracasso escolar, a negligência, a exploração da mão-de-obra
infantil, o espancamento e o abuso sexual fazem parte da realidade observada no
dia-a-dia de quem trabalha com a saúde e educação de crianças, mas também claramente evidenciada na mídia, estampada em jornais e noticiários de televisão. Bauer1
estima que anualmente ocorram 1.000.000 de casos de maus-tratos de crianças no
mundo. Considera, ainda, que muitos casos de abuso e de negligência não são noti-
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ficados ou são inconsistentes. Por isso, o número das
crianças abusadas, negligenciadas e mortas pode ser
ainda mais elevado. A UNICEF considera que 18.000
crianças e adolescentes sejam diariamente espancados no Brasil.2
A compreensão desse fenômeno pelos profissionais de saúde e da educação é essencial, por exercerem papel crucial na detecção dos casos de violência
e também pela ação fundamental na promoção da
saúde, na prevenção do agravo e no acompanhamento das crianças vitimadas. Segundo Minayo3, a visão
do setor saúde sobre a questão da violência tem duas
vertentes. A primeira foca a questão a partir de uma
reflexão filosófica e teórica. A segunda é operacional,
fundamentada na constatação de danos biológicos,
emocionais e físicos que sua dinâmica causa na qualidade de vida das vítimas. A autora frisa a necessidade
de integração das duas vertentes, para a produção de
conhecimentos não somente a partir dos dados epidemiológicos, mas também de dados qualitativos que
permitam a compreensão dos contextos mantenedores ou geradores da violência, de forma a permitir
abordagem ampliada da questão da violência.
A literatura tem mostrado a associação de vários fatores - individuais ligados à criança, fatores familiares
e fatores sociais - com a violência4,5. Ligados à criança:
idade; gênero; características físicas; características
emocionais, de personalidade e comportamento.
Em relação à família, citam-se as seguintes associações: doença mental na família, sobretudo dos
pais; uso de substâncias psicoativas, principalmente
o álcool; cultura familiar; história de maus-tratos na
infância dos pais; violência entre os cônjuges; família monoparental; não-acesso a estruturas de suporte
social; ignorância acerca de estratégias educativas e
crença no poder pátrio.
Finalmente, os seguintes fatores sociais mais amplos associam-se à violência: pobreza e desigualdade
social; aceitação cultural da violência; ausência de
suporte social e jurídico; desemprego e baixa escolaridade dos pais.
Como se pode observar, as questões históricas e
sociais, além de serem indicadas como diretamente
associadas à violência, perpassam outros fatores identificados, tais como gênero, diferenças físicas, história
de maus-tratos na infância, ignorância de estratégias
educativas alternativas, crença no poder pátrio, etc.
Entre os fatores históricos culturais, destacam-se na
literatura, de forma interdependente, a percepção social sobre a criança - que determina o seu valor e lugar
social e seus direitos e deveres em época e cultura
específica - e as práticas educativas e disciplinadoras
utilizadas pela sociedade, família e escola.
Vários estudos mostram que a história social mais
ampla e a história da educação integram a memória
discursiva sobre a educação na nossa época, estando presentes no discurso dos educadores e em outras formações discursivas, refletindo-se nas atitudes
individuais do dia-a-dia, nas relações familiares e nas
práticas sociais.6 Desta forma, a busca pela compreensão da violência física relacionada ao processo
educativo remete à necessidade de conhecimento
da história da educação no Brasil. Este texto discorre sobre o fenômeno, focando especialmente o lugar
social da criança, da família e da escola, as práticas
disciplinadoras usadas nessas instituições e as interrelações entre as mesmas, buscando contextualização nos aspectos históricos sociais, políticos e econômicos mais amplos. Tomam-se a família e a escola
como instituições sociais que sofrem influências e
influenciam o contexto histórico-social mais amplo.
Assim, as questões políticas, econômicas e sociais
mais abrangentes refletem e conformam a estrutura,
a função e as relações dessas instituições, incluindo
a relação com a criança. Espera-se contribuir para a
compreensão e reflexão da prática de violência física
na infância hoje, de modo a buscar alternativas no
seu processo de enfrentamento.
Objetivo
Este trabalho realiza um apanhado da história da
educação da criança no Brasil, focalizando-se em
crenças, atitudes e práticas de épocas e o seu processo de transformação, de modo a contribuir para a
reflexão sobre as crenças, atitudes e práticas atuais,
hoje consideradas violentas.
Percurso metodológico
Para este estudo, realizou-se revisão de literatura
por meio de busca nas bases de dados SCIELO, MEDLINE, LILACS e BDENF, combinando-se os descritores violência física, infância e história da educação. Os
critérios de inclusão foram: artigos em português ou
em inglês publicados nos últimos 10 anos. A análise
dos dados foi realizada mediante uma síntese, relacionando-se o exposto pelos autores e a finalidade desta
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revisão. Também se utilizaram livros tradicionalmente
relacionados à trajetória da educação e da infância no
mundo, textos disponíveis nos periódicos CAPES e publicações da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações
da UFMG, incluindo-se busca secundária de trabalhos
citados em teses e dissertações da UFMG.
Resultados e discussão
O papel da criança na sociedade
ao longo dos tempos
O conceito de violência não é dado a priori, ou
seja, não é natural. Sendo socialmente construído, ganha diferentes conotações e significados em épocas
e culturas diferentes. Desta forma, não se trata de “julgar o passado” ou outras culturas, mas de descrever a
provável origem de crenças e atitudes que persistem
implícita ou explicitamente na nossa época e que são
hoje, de acordo com os atuais valores, consideradas
violentas. Faz-se também necessário ressalvar que a
história consiste sempre em construção feita a partir
de sujeitos cuja visão de mundo, sentimentos e valores são moldados a partir da sua época e da sua cultura. Portanto, os recortes e sua interpretação guardam
fortemente “a marca do presente”, com tudo que isto
significa em termos de interesses econômicos, políticos e sociais.
Segundo Tourinho7, historicamente, o papel da
criança e do adolescente na humanidade foi quase
nenhum, o que teria desencadeado a violência contra os mesmos. As crianças e os adolescentes durante
muito tempo teriam representado segmentos completamente ignorados pela sociedade. As situações de
abandono, de maus-tratos e de rejeição encontrados
nos relatos históricos e literários poderiam refletir,
para o autor, de forma verdadeira, o pouco ou nenhum valor com que grande parte da população ocidental, até recentemente, visualizava o universo das
crianças e dos adolescentes.5
A história mostra que o infanticídio, o abandono
e o uso de crianças para o trabalho e a guerra foram comuns desde a Grécia Antiga até recentemente,
na civilização ocidental. Em Roma e na Grécia, uma
criança poderia ser eliminada por não ser desejada,
por motivos religiosos, por ser filho ilegítimo ou para
controle populacional. Em Esparta, aos seis ou sete
anos, os meninos passavam a residir com um adulto
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militar, que se encarregava de sua educação. O trabalho infantil escravo foi comum na Europa, sendo
ilustrativo o fato de que somente no século XIX foi
estabelecida a primeira lei, o Factory Act, na Inglaterra, que estabelecia o limite mínimo de idade para o
trabalho nas minas de carvão.8
Philippe Áries9 advoga que o “sentimento” da infância teria se iniciado na Europa, no renascimento,
tendo sido necessária longa evolução ao longo dos
séculos para que realmente se arraigasse às mentalidades. Kohan10, em análise de parte da obra de Platão, entretanto, procura mostrar como essa fase da
vida foi motivo de preocupação para o filósofo. Com
essa análise o autor declara que entre os seus objetivos estaria o de:
Oferecer elementos para problematizar uma
visão já consolidada entre os historiadores da
infância — particularmente desde o já clássico
História social da infância e da família de Philippe Ariès —, segundo a qual a infância seria
uma invenção moderna e ela não teria sido
“pensada” pelos antigos enquanto tal.10:11
Segundo essa análise, em Platão, a criança seria
vista como potencialidade e, portanto, sem o reconhecimento do “ser” em cada momento, estando o
seu valor associado a expectativas políticas, isto é,
como material para modelagem a partir da educação, para a construção da polis utópica.
O sentimento de infância, tal como o conhecemos
hoje, teria tido, segundo Áries11, suas primeiras manifestações perceptíveis em documentos e na iconografia, na Europa Central, no final da Idade Média, tendo
tido a Igreja Católica papel de relevo no surgimento e
evolução do mesmo. Essa nova forma de ver e sentir
teria tido como consequência novas formas de educação e de relação com a criança, impulsionando o
surgimento de escolas, de iniciativa e domínio exclusivamente religioso nos primeiros séculos. Essa nova
forma de ver e de sentir estaria também na origem
da crença sobre o amor inato e espontâneo da mãe
pelo filho12, que está na base do estranhamento que
se sente hoje em relação ao abandono e infanticídio
cometidos pelos pais, sobretudo pela mãe.
Sinteticamente, a situação da criança na Europa
teria evoluído de uma situação de abandono e infanticídio tolerados, ausência de identidade própria,
vínculos frágeis e precariedade dos cuidados, para situações progressivas de proteção e reconhecimento
de direitos no Renascimento e Idade Moderna. Esse
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movimento teria se dado por influência de mudanças na própria Igreja e no crescimento das cidades
com nova organização social e aparecimento da burguesia. Citam-se, além desses fatores, preocupações
políticas com as ameaças demográficas, a influência
das ideias iluministas que defendiam a “inclusão das
minorias” e, mais tarde, o início da industrialização
e do crescimento da Ciência, que começa a impor
novas formas de hábitos, relações e comportamentos
às famílias como forma de controle social da saúde.
Frisa-se que essa evolução da situação da criança,
até chegar ao estado de direito que é hoje defendida,
não foi processo rápido, homogêneo e linear. Desde
a promulgação da primeira lei conhecida, voltada
para a criança, proibindo o infanticídio no ano 374
d.C.12, até a promulgação da Declaração dos Direitos
da Criança em 1959 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, 600 anos se passaram.
Embora com forte sustentação da Igreja, a educação veio sofrendo influências gradativas da Ciência,
que passou, dessa forma, a ditar cada vez mais princípios e métodos educacionais no seio das famílias
e da escola. De acordo com Donzelot13, a partir de
meados do século XVIII, como sinal, consequência
e, ao mesmo tempo, determinante da mudança contínua e gradativa do lugar social da criança, floresceu
na Europa abundante literatura sobre o tema de sua
conservação. Essa literatura foi produzida por médicos, administradores e militares, que colocavam em
questão os costumes educativos do seu século, visando três alvos privilegiados: a prática de hospícios
de menores abandonados, a criação dos bebês por
amas-de-leite e a educação “artificial” das crianças
ricas. Além de outros males, segundo o autor, essas
três práticas sociais da época, com seu encadeamento circular, gerariam o empobrecimento da nação e o
enfraquecimento de sua elite.
Transformações na família brasileira
A história da educação e da criança no Brasil,
após a descoberta e a colonização, a partir do século
XVI traz a marca da história europeia, com forte influência religiosa no início e, posteriormente, também
da Ciência, fazendo-se notar na família e na escola,
instituições socialmente investidas do direito e dever
da educação da criança.
A influência da Igreja Católica na educação da
criança brasileira se fez sentir não só pelo carrea-
mento e manutenção das crenças e hábitos europeus
por parte dos imigrantes colonizadores, mas também
por ação direta dos jesuítas na educação. Segundo
Chambouleyron14, além da conversão dos pagãos, o
ensino das crianças teria sido uma das principais preocupações dos padres da Companhia de Jesus desde
o início da sua missão no Brasil, em que o castigo físico severo era recomendado, sendo prática também
usual no Brasil Colonial:
Nas aldeias administradas pelos jesuítas, Mem
de Sá mandara fazer tronco e pelourinho, “por
lhes mostrar que têm tudo o que os cristãos
têm”, como escrevia a Dom Sebastião e, também, “para o mineirinho meter os moços no
tronco quando fogem da escola”[...]. 14:62
Na colônia e nos primeiros tempos da Independência, são a Igreja e o senhor-de-engenho que ditavam as regras do “bem-viver”. No entanto, a corte
portuguesa com a vinda da família real, o crescimento das cidades e o término da escravidão aumentaram a influência dos costumes citadinos, levando
a modificações do universo familiar da colônia. A
importância das “famílias coloniais”, restritas à fazenda e ao engenho, foi gradativamente substituída
pela das “famílias colonizadas”. Como consequência, as famílias foram diminuindo em seu formato,
em razão do afastamento dos escravos e também
de familiares distantes, até adquirir, posteriormente,
características da família nuclear atual. Para esse
processo contribuiu também a Revolução Industrial,
que criou nova diferenciação entre vida urbana e
rural, com predomínio cada vez maior da primeira,
e restringiu ainda mais o número de pessoas constituindo o núcleo familiar. A influência dos costumes
burgueses e dos modismos dessa sociedade urbanizada causou efeitos no relacionamento entre pais e
filhos, principalmente quanto aos cuidados. Embora
a população da época não se restringisse a essas famílias, elas constituíam a elite econômica e política
da época, com forte influência ideológica sobre as
demais. A instituição familiar nessa época era caracterizada por permanente estado de mau funcionamento, sendo considerada pelas instâncias do poder
e pela Ciência como incompetente, incapaz e sem
qualidades para educar as crianças. Considerava-se
que a família colonial não sabia administrar a saúde física dos filhos. A família colonizada, por outro
lado, não se encarregava da higiene e da educação
de suas crianças, por submissão a outros interesses
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imposta pela sua nova realidade social, incluindo
costumes citadinos trazidos pela cultura europeia,
determinando novos hábitos e valores sociais.14
A campanha levada pelos médicos higienistas
para modernizar a família brasileira, no século XIX,
intervindo intensamente nessa situação, constituiuse em importante marco da influência da Ciência na
educação, no seio da escola e da família, sobretudo
da primeira. Esse movimento se posicionou contra
ambas em sua campanha para modernizar a família
brasileira.15 Na sua base estariam, além de motivos
médicos e religiosos, motivações econômicas e de
defesa da sociedade, mais do que a defesa das individualidades das crianças. Resolver o problema da
infância seria cuidar do futuro da ordem social brasileira. Um dos mais ativos e destacados nomes do movimento higienista foi o do médico pediatra Arthur
Moncorvo Filho, internacionalmente reconhecido
pela sua atuação em defesa da infância, tendo sido
o responsável em 1880 pela fundação do Instituto de
Proteção e Assistência à Infância no Rio de Janeiro.
Partindo do combate às causas da mortalidade
infantil, o movimento foi pouco a pouco se introduzindo para todos os aspectos da vida familiar e escolar, normatizando e interferindo nos hábitos de vida,
nas relações, na orientação familiar e na pedagogia
infantil, tendo localizado a escola como a instituição
ideal para a educação e proteção da criança. Com
o objetivo de normatizar e controlar as famílias, foi
delegada a estas, como representante do poder estatal, a função de educar de acordo com os preceitos
da Ciência, em oposição a um saber desqualificado
da família.
Enfatiza-se que, na visão dos higienistas, o poder
paterno sobre a criança e a família estaria na base
dos males por eles destacados. Esse poder teria se
retraído a partir do início do século XX, por intervenção cada vez mais importante do Estado e da Ciência
na família, mas sem desaparecer completamente.
Também a influência da Igreja vem gradativamente
diminuindo na medida em que o poder do Estado se
dissocia da Igreja e na medida em que a Ciência vem
substituindo a mesma no imaginário social como
referência para afirmação da verdade. Entretanto,
faz-se essencial a lembrança de que a influência
religiosa permaneceu ainda muito tempo de forma
explicita. Isto é atestado pelo fato de que, no final da
década de 1920, 70% das instituições de ensino privadas em funcionamento no país eram vinculadas à
Igreja Católica.16
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A escola na vida da criança
No início do século XX, a escola ocupava no Brasil um lugar de apoio à família. A sociedade esperava
que a escola educasse as crianças, além de transmitir
conhecimentos. Contudo, ao longo de sua trajetória, a
escola foi incorporando, mais rapidamente que a família, saberes científicos e se contrapondo aos saberes
domésticos tradicionais. Assim, a escola instaurou-se
como instância de poder, na qual o discurso da Ciência se contrapôs ao da família. A mentalidade que
passou a vigorar era de que o discurso científico tinha
mais status do que o da família, o que ocorre até os
dias de hoje. No entanto, na primeira década do século
XX a situação das escolas no Rio de Janeiro, então capital do país, era lamentável: casas com pouca estrutura eram alugadas e transformadas em escolas. Faltavam luz, água e ventilação. As doenças infecciosas se
propagavam, sendo a escola considerada foco de alastramento de epidemias que atingiam também outros
grandes centros do Brasil. Mesmo tendo diminuído em
função da Ciência, o poder religioso na escola impunha severa disciplina, sendo as crianças submetidas
a castigos nas escolas e em casa.16 Muitas crianças se
afastavam da vida escolar por diversos motivos, entre
eles as doenças, necessidade de trabalhar e medo de
castigos físicos. Como visto, o movimento higienista,
diretamente ou por intermédio do Estado, interferiu
nas escolas, influenciando desde as questões arquitetônicas até as questões disciplinares e pedagógicas.
No final do século XIX, na Ciência, a pedagogia
moderna instituía novas formas de compreensão do
indivíduo, colocando em relevo as suas características psicológicas, biológicas e sociais. Em decorrência disso, nas primeiras décadas do século XX, com
as novas teorias, constatou-se que a família precisava, junto com a criança, ser incluída nos processos
educativos e pedagógicos. Surge, então, o movimento da Escola Nova, iniciada com John Dewey, pedagogo, filósofo e psicólogo americano.
O avanço do processo de produção capitalista
provocando transformações na estrutura familiar,
com os pais trabalhando fora e um núcleo familiar
cada vez mais reduzido, também teria reforçado o
papel da escola e do Estado na educação.15
A partir da segunda metade do século XX, sobretudo na década de 1960, com a aceleração do processo de modernização da sociedade e novos contextos
políticos, tem sido fortalecido um novo discurso no
qual outros agentes, como juízes e policiais, além de
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Aspectos históricos da educação no Brasil versus violência física na infância: reflexões
pais e professores, estariam encarregados de normalizar crianças e jovens a serviço da ordem social.
A Constituição de 1988 proclamou a proteção integral da criança e do adolescente. A promulgação do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 13 de
julho de 1990, estabelece nova política estatutária do
direito da infância e da juventude, reconhecendo crianças e adolescentes como sujeitos de direito e, portanto,
devendo ser reconhecidos como pessoas em desenvolvimento, como indivíduos com suas próprias necessidades e merecedores de proteção integral.17 O ECA possui
267 artigos garantindo direitos e deveres de cidadania a
crianças e adolescentes, discorrendo sobre políticas de
saúde, educação, lazer, adoção, tutela e outras questões
relacionadas à segurança e à proteção dos mesmos.
Vale notar que esse instrumento tornou obrigatória a notificação de casos suspeitos ou confirmados
de maus-tratos (art. 13), prevendo penas para os médicos, professores e responsáveis por estabelecimentos de saúde e educação que deixem de comunicar
os casos de seu conhecimento (art. 245).
Referências
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Bauer KA. Covert video surveillance of parents suspected of
child abuse: the british experience and alternative approaches.
Theor Med Bioeth. 2004; 4:311-27.
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6.
Donoso MTV. Representações sociais das famílias sobre violência física na infância como forma de educação [tese]. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina da UFMG; 2006.
7.
Tourinho JOS. Tutela jurídico-penal da infância e da juventude:
dos maus-tratos. [ Citado em 2010 mar. 10]. Disponível em: http://
www.periodicos.capes.gov.br
Considerações finais
8.
Tomás CA.A transformação da infância e da educação: algumas
reflexões históricas. Paideia. 2001; 20:69-72.
A trajetória da criança e sua inclusão na sociedade
vêm despertando cada vez mais interesse no nosso meio
e na mídia. Pretendeu-se, com este texto, mostrar que o
pensamento atual sobre a relação da sociedade com a
família e a escola e destas com a criança traz a marca
da história social da criança e sua educação, atualizado
pela realidade social contemporânea mais ampla e pela
evolução do conhecimento científico. Além disso, devese considerar a influência de conceitos, crenças, sentimentos e atitudes de grupos específicos sobre a relação
com a criança nas famílias e nas escolas.
Apesar de todos os avanços no reconhecimento dos
direitos da criança, a violência física e outras formas de
abuso constituem, ainda, práticas comuns, banalizadas
e até mesmo legitimadas pela sociedade como fazendo
parte do processo de educação, ainda que de maneira
velada. Assim, um traço histórico cultural importante
parece ser, ainda, a admissão do direito sem limites dos
cuidadores e educadores sobre a criança.
Como visto, o nosso país possui leis avançadas no
que tange ao respeito e ao tratamento de crianças e
adolescentes. Entretanto, estas ainda estão longe de
ser adequada e eficazmente aplicadas.
9.
Ariès P. Uma instituição nova: o colégio. In: Ariès P. História social
da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC; 1981. p.110-111.
10. Kohan WO. Infância e educação em Platão. Educ Pesq. 2003;1:11-26.
11. Ariès P. Uma instituição nova: o colégio. In: Ariès P. História social
da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC; 1981. p.175-82.
12. Badinter E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira; 1985. p.53-83.
13. Donzelot J. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal; 1980.
p.5-48.
14. Chambouleyron R. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista.
In: Del Priore M. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto; 2004. p.5-83.
15. Cunha MV. A escola contra a família. In: Lopes EMT, Faria Filho
LM,Veiga CG. Quinhentos anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica; 2000. p.447-68.
16. Nunes C. (Des)encantos da modernidade pedagógica. In: Lopes
EMT, Faria Filho LM,Veiga CG. Quinhentos anos de educação no
Brasil. Belo Horizonte: Autêntica; 2000. p.371-98.
17. Gouveia F. Estatuto da Criança e do Adolescente faz 15 anos.
[Citado em 2010 mar. 30]. Disponível em: http://www.portaldovoluntario.org.br
Rev Med Minas Gerais 2010; 20(2): 212-217
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