Da Carta de Atenas ao Estatuto da Cidade: questões sobre o planejamento urbano no Brasil FROM THE LETTER OF ATHENS TO THE STATUTE OF THE CITY: QUESTIONS ABOUT URBAN PLANNING IN BRAZIL ALEXANDRE M. MATIELLO Resumo A atualidade do planejamento urbano no Brasil é o tema desta reflexão. Para tanto, estabelecemos uma contextualização da crise desse planejamento, recuperando as influências do urbanismo modernista, na tentativa de reconhecer, no que se tem como planejamento urbano alternativo, traços persistentes do antigo paradigma. Alvo principal dos questionamentos é o Estatuto da Cidade (Lei 20.257/01), e seu ambiente de surgimento e atual difusão. Trabalhamos com a idéia de que a alternativa que ora emerge o faz em termos de substituição de um pensamento hegemônico, e se configura como um pensamento fraco, ainda carente de legitimidade. A reflexão permite reconhecer traços tanto de um como de outro paradigma, nos limites mostrados pela ainda recente instalação desse estatuto. Palavras-chave PLANEJAMENTO URBANO – ESTATUTO DA CIDADE – PLANO URBANO. Universidade Comunitria de Chapec (Unochapec) [email protected] Abstract The present of Brazilian urban planning is the subject of this paper. Therefore, we contextualize the crisis of this planning, recovering the influences of Modern Urbanism, trying to recognize, in an alternative urban planning, persistent traces of the old paradigm. The main object of the questions is the Statute of the City (law 20.257/01), and its environment of emergence and current diffusion. We work with the idea that the appearance of the alternative conception can be a substitution of a hegemonic thought, presenting itself as a weak thought, lacking legitimacy. The reflection allows the recognition of aspects from both paradigms within the limits shown by the still recent enactment of the Statute. Keywords URBAN PLANNING – STATUTE OF THE CITY – URBAN PLAN. Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 Impulso44_art03.indd 43 43 27/11/06 19:45:28 INTRODUÇÃO A reflexão que trazemos aqui parte da tentativa de compreensão dos rumos do planejamento urbano, tomando por base a crise em que ele se encontra em nível mundial, particularizando-se para a situação brasileira. Para tanto, reconstituiremos brevemente o contexto de conformação dessa crise, a partir da difusão das idéias modernistas no planejamento das cidades, destacando os aspectos processuais que marcaram-lhe as críticas em âmbito nacional, expressas sobretudo no Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU).1 Dessa forma, nos remeteremos aos autores que qualificam e avaliam esse cenário atual e os possíveis avanços de um planejamento nomeado alternativo em relação a seu antecessor. Nossa ponderação é centrada na identificação do modo de fazer desse planejamento emergente, que pode ser caracterizado por um pensamento fraco, bem como na verificação do quanto ele se antepõe à visão hegemônica ou forte, capitaneada pelo ideário modernista, ou se continua ainda assumindo suas persistentes nuanças. Finalizaremos, detendo-nos no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), procurando identificar como ele comparece como proposta e as possíveis críticas a suas alternativas, pretendendo tanto perceber se ele se configura num pensamento fraco quanto avaliar as conseqüências estimadas com sua recente aplicação para a alteração de rumo e a real contraposição efetuada por esse à noção hegemônica do planejamento urbano. URBANISMO MODERNISTA: PARADIGMA EM CRISE, OU A VELHA “NOVA” ROUPA DO REI? O urbanismo modernista caracterizou-se por difundir, a partir do início do século XX até seus meados, os pressupostos da cidade funcional presentes na Carta de Atenas,2 documento formulado com base nas discussões das várias edições do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), do qual Le Corbusier foi seu principal baluarte. Entre os pressupostos, estava a obrigatoriedade do planejamento regional e intra-urbano, a submissão do solo urbano aos interesses coletivos, a industrialização de componentes e a construção padronizada, a limitação do tamanho e densidade das cidades e a edificação em meio ao verde contínuo. O que balizava tais determinações era o zoning, rigoroso zoneamento de funções apoiado na premissa de um homem-tipo, cujas necessidades são universais. Esse instrumento, carregado de um poder de 1 O MNRU organizou o primeiro Fórum Nacional pela Reforma Urbana, em outubro de 1988, a partir da convocação para o Seminário Nacional pela Reforma Urbana. Articulou os movimentos sociais na constituinte federal, buscando incluir no texto da Carta Magna a questão da política urbana e, nessa, a participação social na gestão municipal. Conseguiu apresentar emenda à constituição (“Emenda Popular de Reforma Urbana”), solicitando o tratamento da gestão na cidade da ótica do cumprimento da função social. 2 A Carta de Atenas, divulgada quase oito anos após sua redação, é um texto dogmático e polêmico, formulando exigências e estabelecendo os critérios para organização e gestão das cidades. Foi elaborada durante o IV CIAM, num cruzeiro entre Marselha e Atenas, em 1933, e publicada em 1941, por obra de síntese de Le Corbusier. Sua edição brasileira tem interessante prefácio de Rebeca Sherer (LE CORBUSIER, 1993). 44 Impulso44_art03.indd 44 Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 27/11/06 19:45:30 difusão justificado na sua capacidade de síntese, alcançou o planejamento urbano em todo o mundo, inclusive no Brasil. Para Pereira,3 a influência do urbanismo modernista fez do zoneamento funcional sinônimo de planejamento urbano. O zoneamento ainda trazia embutida uma concepção tecnocrática que muito se coadunou ao ideário centralizador e racional-tecnicista de desenvolvimento brasileiro e, no caso das cidades, implicou um modelo de planejamento implantado de cima para baixo, à revelia do que seriam os anseios da população, afirmando o caráter coercitivo de seus instrumentos. Esse autor reflete que, de ferramenta de controle jurídico, o zoneamento passa a ser utilizado como instrumento técnico-projetual, interferindo implicitamente no modo de conceber as cidades e repercutindo na maneira de viver de seus cidadãos. Holston,4 em sua crítica à cidade de Brasília, sintetiza algumas outras conseqüências do zoneamento modernista que se aplicam às cidades sob o mesmo auspício: concentração do espaço de trabalho e dispersão do espaço da habitação, uso do solo urbano sustentado em movimento pendular casa-trabalho-casa, alto custo do transporte devido aos grandes deslocamentos e modelo centrífugo de separação das classes sociais, entre outros. A vida oscila entre trabalho e residência, e o espaço público é pobre em relações de encontro, ritual e movimento. É como que decretada a morte da rua. Ainda conforme esse autor, uma das justificativas para que o modelo dos CIAMs se reproduzisse por tantos lugares do mundo está em seu caráter desistoricizante: a marca do modernismo, dissociada de vieses ideológicos, permitiu que surgisse Brasília, um exemplo emblemático: planejada por um liberal de centro-esquerda, que teve seus prédios projetados por um comunista, construída num período desenvolvimentista e consolidada durante um regime ditatorial autoritário, perfil ao qual muito se coadunou. Outro aspecto que merece destaque para esse autor, no que se refere ao ideário modernis- ta de cidade, é a condição de que os urbanistas pudessem dispor do solo conforme seu entendimento e, assim, superar os conflitos advindos do interesse do capital privado. A Carta de Atenas vai propor não a expropriação da terra, mas o direito de dispor dela, redefinindo, porém não abolindo, a propriedade privada do solo. Le Corbusier não explicita as questões jurídicas, mas se compreende que ao Estado caberia o controle da alienação do solo. Isso exprime três possibilidades: a crença na racionalidade e no saber técnico para projetar o futuro, o desenvolvimento global sobre todo o território (incluindo o campo) e o fim dos efeitos perniciosos da especulação imobiliária. Para Souza,5 essas idéias-força de ordem e racionalidade alinhariam as propostas modernistas ao imaginário capitalista. Esse resgate que empreenderemos aqui da contribuição do paradigma modernista para a crise do planejamento urbano nos dias de hoje tem, contudo, mais que um sentido historiográfico ou contextualizador. Implica a própria reflexão do quanto desse modelo ainda sobrevive nas tentativas de se fazer um outro planejamento urbano. Essa hipótese se baseia na opinião de autores como Souza, para quem: 3 5 4 PEREIRA, 1999. HOLSTON, 1993. Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 Impulso44_art03.indd 45 Na verdade, aquilo que do Urbanismo modernista sobreviveu e resiste até hoje na prática de planejamento nos mais diferentes países não é tanto a sua estética, mas sim o espírito funcionalista de zoneamento do uso do solo. Além do mais, a idéia-força central do Urbanismo modernista, a modernização da cidade, é, ao mesmo tempo, embora de modo não tão evidente ou ruidoso, a idéia-força central do “planejamento físico territorial” clássico em geral, o mesmo aplicando-se às demais idéias-força como ordem e racionalidade.6 Dessa maneira, acreditamos que, mesmo nas manifestações ditas mais alternativas a esse paradigma, ainda subsiste muito de seu ideário. Por exemplo, esse caráter modernizador, à base das transformações físicas, é percebido igual ou 6 SOUZA, 2002. Ibid., p. 131. 45 27/11/06 19:45:31 mais fortemente no mainstream do planejamento estratégico, entendendo-o como aquele que engloba experiências difundidas a partir de Barcelona e suas intervenções para os Jogos Olímpicos de 1992 e que vem alcançando repercussão ampla.7 Corrobora ainda, nessa interpretação quanto à inércia e resistência do paradigma modernista, a opinião de autores brasileiros envolvidos com a versão brasileira do enfrentamento da crise – o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), na década de 1980 –, o qual comentaremos mais a seguir. Entre esses autores está Maricato,8 que alerta para o lugar do planejamento modernista ainda não estar vago nas academias e nos departamentos governamentais. Portanto, ainda não foi convenientemente substituído por qualquer outro modelo, seja na formação de profissionais seja nas administrações públicas. Para essa autora, ainda predominam o ponto de vista positivista e a concepção do planejamento neutro, enfatizando, sobretudo o papel do Estado, e, assim, continua atual a noção das idéias fora do lugar,9 expressão que denuncia e sintetiza bem o descolamento da realidade por parte do planejamento urbano no Brasil. Além da questão de importação de modelos estrangeiros – não rara por aqui, uma vez que o urbanismo brasileiro não costuma ter comprometimento com a realidade concreta –, também se percebe, por parte do Estado, a tentativa de implantação de uma ordem que diz respeito a uma parte da cidade apenas, de acordo com a racionalidade burguesa, configurada no controvertido binômio cidade legal/cidade ilegal. Conquanto isso, percebemos que o planejamento urbano vem in7 Muitos autores vêm associando ao planejamento estratégico a concepção de projeto urbano, ao invés de plano urbano. De acordo com NOVICK (2005), diferentemente dos planos, o projeto urbano daria forma ao espaço sem tentar incidir sobre o conjunto da cidade e, em oposição aos projetos de arquitetura, propõe outra vinculação com o tempo (incorporando-se às largas temporalidades urbanas). Assim, o projeto urbano se apresentaria como o último baluarte do urbanismo frente à planificação abstrata e gerencial. Segundo outras opiniões, os projetos urbanos são vértices de projetos gerais para a cidade, pactuados socialmente, ao passo que, para seus críticos, manifestam a legitimação da especulação imobiliária diante da carência de uma arbitragem pública que garanta os equilíbrios sociais e espaciais da cidade. 8 MARICATO, 2000. 9 Expressão cunhada por Francisco de Oliveira diante da exposição de tese de livre docência por Ermínia Maricato. 46 Impulso44_art03.indd 46 sistindo, seja através de sua pretensa racionalidade normativa, seja em seu caráter até então autocrático e centralizador, em responder a problemáticas urbanas que só se avolumam a cada novo plano. Concordamos com Maricato, ao atribuir em parte à academia e, portanto, à formação de profissionais, a grande inércia do paradigma modernista de planejamento. Contudo, não há como negar que, num cenário de democracia representativa ainda recente e de mobilização política popular mais oscilante do que crescente, a crise do modelo modernista se deve não só a aspectos intrínsecos, mas também a outros de ordem exógena, por exemplo, a crise do próprio Estado, que aqui só mencionaremos, sem aprofundar. Da crise – terreno fértil – emergem propostas distintas, contudo, não tão inovadoras assim, nas quais se advoga do desenvolvimento sustentável ao planejamento estratégico,10 passando pelo novo urbanismo, reivindicando para si o papel do dito redentor do planejamento tradicional. Para Del Rio, “Metodologicamente, ainda nos encontramos perigosamente perdidos entre paradigmas modernistas, modelos incompletos de planejamento urbano, imposições ‘técnicas’ de engenharia de transportes, práticas políticas, fisiologistas e participação comunitária incompleta”.11 Ainda que num contexto de permanência velada dos ideários de um padrão até então hegemônico, não se pode deixar de reconhecer o papel, para o panorama atual da política urbana brasileira, da contribuição dos movimentos sociais que culminaram com o MNRU. Como aponta Souza,12 a reforma urbana tem o mérito de ser uma estratégia largamente construída entre nós, e não simplesmente importada. Da mesma forma, isso torna o Brasil – que, a seu ver, dispõe de um potencial acadêmico muito superior ao da grande maioria dos outros países do Terceiro Mundo – privilegiadamente capaz de exportar idéias e ser referência internacional no que tange ao enfrentamento dos problemas urbanos. 10 Sobre a tipologização do planejamento, SOUZA (2002), na parte II, desenvolve abrangente apanhado. 11 DEL RIO, 1997, p. 42. 12 SOUZA, 2000. Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 27/11/06 19:45:32 Embora esse mesmo autor destaque, em suas obras, a lacuna estabelecida entre o debate promovido pelo MNRU e a Constituição Federal, foi essa que, em 1988, deu o primeiro passo para a conquista de uma política urbana, com um capítulo exclusivo garantindo sua regulamentação. A última iniciativa mais significativa foi a do Estatuto da Cidade (Lei n.o 10.257, de jul./01), que se fundamenta na Constituição e possui, como estabelecimentos principais, ordenar as funções da cidade e propriedade, definir o plano diretor como seu instrumento-base e, mais especificamente, garantir a ela uma função social. Por isso, regulamenta os chamados instrumentos de política urbana, entre eles, o direito de superfície, o imposto progressivo e a outorga onerosa, que poderão estar presentes nos planos diretores municipais. Na verdade, esses instrumentos não chegam a ser novidade, mas contam a partir de então com uma lei federal a respaldar-lhes a implantação. Sobre isso, Rolnik13 lembra terem sido os movimentos populares urbanos organizados, com o apoio do setor profissional dos urbanistas e advogados ligados ao temário da reforma urbana, os que contribuíram para que tanto os instrumentos de regularização fundiária quanto os de controle sobre a disponibilidade de oferta de terras e de participação popular entrassem nesse novo ideário do planejamento urbano. Até mesmo os autores outrora envolvidos em graus diferentes no MNRU ponderam sobre o teor real das conquistas. É o caso de Maricato,14 que critica a exigência de planos diretores na Constituição de 1988, como se o problema das cidades fosse a falta de planejamento. Em contraponto a essa orientação, a autora aponta a iniciativa de uma Emenda Constitucional de Iniciativa Popular de Reforma Urbana,15 que não incorporou a proposta da obrigatoriedade do plano diretor, atentando para a definição de instrumentos urbanísticos de controle fundiário e de participação democrática na gestão das cidades. Souza,16 ao comparar o contexto do MNRU empreendido no Brasil com aquele no qual emergem os planos diretores, diz ter havido uma derrota estratégica. Ela se deve ao fato de os planos privilegiarem as dimensões instrumentais e técnicas, caindo num legalismo, em detrimento de uma análise social mais ampla, o que redundou na secundarização do papel mais democrático do planejamento e gestão. Isso é percebido na superênfase dada aos instrumentos em relação ao menor crédito, por exemplo, ao desempenho dos conselhos de desenvolvimento urbano. Para esse autor, estaria aqui configurado um tecnocratismo de esquerda, numa alusão ao tradicional tecnocratismo. Maricato17 comenta que não por falta de leis as cidades tomam o rumo que se observa. E nem é com o Estatuto da Cidade que se inauguram instrumentos com a promessa de fazer cumprir a função dos planos diretores: promover um desenvolvimento urbano equilibrado, harmônico ou sustentável. Aliás, a tendência é que, quanto mais valorizado o solo urbano, mais detalhada seja a sua legislação. Ela diz que “a perseguição a instrumentos mais aperfeiçoados ou virtuosos é e sempre será importante, mas a questão central não é a técnica”18 e reafirma: “nenhum instrumento é adequado em si, mas depende de sua finalidade e operação. Nenhuma virtualidade técnica substitui o controle social sobre essa prática”.19 Portanto, se existe um razoável consenso em meio a esse cenário de crise e de propostas emergentes, é que a racionalidade técnica necessária ao plano, se não se extingue, ao menos se relativiza, e a dimensão política deve ser incorporada, senão mesmo privilegiada, em relação ao viés técnico. Souza20 sintetiza bem os matizes que colorem o que ele denomina como planejamento urbano alternativo, difundido a partir do MNRU como opção ao menos no que se refere ao cenário brasileiro. E ele assim o faz em comparação com o planejamento urbano modernista: 16 13 ROLNIK, 2000. 14 MARICATO, 2000. 15 Promovida por seis entidades de categorias profissionais ou de movimentos populares e assinada por 130 mil eleitores em todo o Brasil. Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 Impulso44_art03.indd 47 17 18 19 20 SOUZA, 2002. MARICATO, 2002. Ibid., p. 95. Ibid, p. 95. SOUZA, 2003. 47 27/11/06 19:45:32 Planejamento urbano tradicional (corbusiano) “Planejamento urbano alternativo” Busca da racionalidade e da ordem, adequando-se às exigências do capitalismo. Busca de justiça social como prioridade máxima. Separação rígida de funções (habitar, produzir, circular, recrear-se) como a essência do zoneamento urbanístico. Melhor distribuição dos serviços públicos em infra-estrutura pelo espaço da cidade para minimizar a segregação residencial e melhorar o acesso dos mais pobres a equipamentos de consumo coletivo. O planejamento compreendido como processo de elaboração, atualização e reelaboração de diretrizes técnico-políticas, ao que se acrescentam o acompanhamento e a fiscalização da implementação dessas diretrizes. Busca explicitar os conflitos e servir não como uma ferramenta de criação de harmonias artificiais, com base puramente na racionalidade técnica, mas como instrumento orientador da negociação política em torno dos destinos da cidade. O planejamento entendido como o momento de elaboração de um documento técnico (plano). Ignora que a realidade é marcada por conflitos. Contudo, mais que uma denominação, procuramos neste artigo refletir em que medida o planejamento urbano no País, no contexto pós-MNRU, pós-Constituição de 1988 e pós-Estatuto da Cidade (ou, dir-se-ia, com o Estatuto da Cidade), vem apresentando uma possibilidade de contestação ao paradigma modernista. E também de inovação ao que vem sendo proposto em outras realidades mundiais e nos chega, muitas vezes, introduzido por seu mainstream como tábua de salvação; portanto, mais que uma nova roupagem, um verdadeiro novo corpo ao planejamento urbano. ESTATUTO DA CIDADE: PENSAMENTO FRACO QUE PRETENDE SER FORTE (OU JÁ VEM SENDO?) Nossa reflexão prossegue aqui com base nos preceitos de Chalas,21 urbanista francês que, em consideração ao que emerge diante da crise do urbanismo tradicional, prefere nomear como urbanismo sem projeto aquele em oposição a outro conceito, o de governança urbana. Esse último, segundo ele, estaria associado à fábrica de imagens técnicas, remetendo a nosso ver ao mainstream do planejamento estratégico e sua ampliação do planejamento para além da esfera estatal. Já quanto ao urbanismo sem projeto, Chalas diz oferecer uma possibilidade de repolitização da vida urbana, de gestão do conflito entre todos os habitantes, muito além de troca entre especialistas, políticos, técnicos e agentes econômicos, abrindose amplamente a esfera coletiva. Contudo, longe de uma pretensa hegemonia e de se arvorar como pensamento dominante, esse urbanismo se enquadraria numa modalidade emergente designada como 21 CHALAS, 1998. 48 Impulso44_art03.indd 48 pensamento fraco,22 que ele classifica como “um pensamento tornado mais incerto, mais complexo, menos sistemático e, por isso mesmo, menos polêmico, menos constituído em doutrina”.23 Para Chalas, o surgimento do pensamento fraco caracterizaria os períodos de mutações históricas em que a sociedade se situaria entre dois mundos, no meio de uma redefinição da transcendência e da imanência que o privaria de pontos de referência imperativos e não lhe permitiria senão orientações relativas. O pensamento fraco, se não é sem referencial, pelo menos possui referencial fraco ou frio. Reportando-se ao urbanismo, esse autor diz: Este urbanismo teria uma legitimidade fraca, entendendo por legitimidade não o que denota legitimação e racionalização a posteriori de uma relação de força, mas o reconhecimento de uma ordem social comum, fundada em direito e razão. A legitimidade fraca corresponde a uma situação ou a um espaço no qual advém uma legitimidade diferente do poder já adquirido, uma legitimidade ainda problemática em seu exercício pelo fato de que ela não surge no momento atual na ordem da evidência ou do consentimento social amplo com a mesma possibilidade que ela tem no plano cultural. Há legitimidade fraca quando advém um novo poder que sofre de uma credibilidade retraída.24 22 O advento de novos modos de ser ao mundo, de agir e de fazer na sociedade iria ao encontro de certas transformações de nossa modernidade, ou certas formas de declínio dessa, ao que alguns chamam o fim da modernidade, como o filósofo italiano Gianni Vattimo, entre outros, de quem se empresta a expressão pensamento fraco. Do italiano, tem-se pensiero debole, pensamento ao qual falta força física, que não suporta o cansaço, e, frágil, mostra lacunas, não convence, faltando-lhe força moral. 23 CHALAS, 1998, p. 207. 24 Ibid, p. 208. Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 27/11/06 19:45:33 Atualizando essa discussão para o momento da crise brasileira do planejamento urbano, apesar do teor contestatório das experiências aqui postas em prática – especialmente no contexto seguinte ao do MNRU –, poder-se-ia, a princípio, muito bem enquadrar no que acima foi definido como esse pensamento fraco. Ainda que se oponha ao pensamento forte, o faz não por sua força própria em si, mas graças à debilidade aparente daquele (que insiste em permanecer). Entenda-se que a legitimidade da qual se fala é mais num sentido subjetivo do que propriamente legal, afinal, o Estatuto da Cidade, baluarte desse planejamento urbano alternativo, é LEI! Contudo, como é nãoexperimentado, acaba ainda por carecer de força, mesmo que se ponha em luta contra o paradigma hegemônico alicerçado sobre bases igualmente em crise: do Estado, da formação de profissionais e dos próprios planos urbanos. Chalas vai caracterizar esse urbanismo sem projeto, até agora só definido, a partir de cinco aspectos bastante correlacionados, apontando-o como: 1. não-espacialista; 2. performático; 3. integrador; 4. apofático; e 5. político. Esses aspectos subsidiam alguns questionamentos preliminares acerca da realidade que nos propusemos a analisar. URBANISMO NÃO-ESPACIALISTA: ao contrário do espacialista – no qual a ideologia do espaço construído atua como instrumento principal, tentando refazer a cidade e as pessoas –, reconhece que não há determinismo da forma sobre o comportamento. O urbanismo modernista (espacialista) abole a morfologia tradicional e instaura um novo padrão de ocupação urbana, e, de acordo com Holston,25 para isso se serve da descontextualização e da técnica de choque, que consiste em refutar qualquer referência ao modus vivendis tradicional. A experiência recente do planejamento urbano no Brasil, embora revestida de certa aura normativa por conta da Constituição e do próprio Estatuto da Cidade, se manifesta bem menos sob esse enfoque, talvez por não ser mais tão teórico, e, sendo tanto mais realista quanto menos utópico, já tenha assimilado o fracasso do determi- nismo espacial. Contudo, ao colocar a ênfase na questão fundiária, e ainda que o caráter processual prefigurado no Estatuto da Cidade oriente para a prática democrática e seus instrumentos possibilitem alcances sociais, há indícios de que mesmo alguns novos instrumentos teriam esse viés espacialista. É o caso do zoneamento para áreas especiais de interesse social,26 ao qual se aplicariam regras edilícias particulares, determinando inclusive um mínimo aceitável, o que faz memória certamente as pretensões modernistas da individualidade restrita e supostas necessidades básicas. Por outro lado, se no urbanismo espacialista a unidade habitacional era o ponto de referência, em oposição ao espaço público como pano de fundo, a concepção do estatuto não chega a resgatar o papel do espaço público deteriorado com a colaboração do modernismo – ao decretar a morte da rua, como diz Holston.27 O Estatuto da Cidade menciona o lazer como função social, mas não passa disso. URBANISMO PERFORMÁTICO: privilegia a dimensão do debate público para o projeto, e não sobre o projeto, buscando valorizar mais o processo que o resultado. Retomando a reflexão sobre o urbanismo espacialista, o caráter do urbanismo trazido pelo estatuto, a despeito de suas origens no MNRU e de suas determinações quanto à participação direta da população nos processos de planejamento urbano, ignora e superestima o papel das metodologias para que isso se concretize. Aqui, remetemos às considerações de Souza em algumas de suas obras28 – comentadas a seguir –, autor que reiteradamente vem alertando para a necessidade de uma crítica mais intensa aos processos rotulados como participativos. Vale o destaque feito por esse autor quanto à pouca especificação das modalidades dessa participação no texto do estatuto, que, quando não vazio, é ambíguo. URBANISMO INTEGRADOR: essa modalidade dá conta da complexidade e, a partir daí, evita o comportamento fragmentador, evidenciando a integração dos diversos aspectos no âmbito da noção de imprevisibilidade. O urbanismo integrador 26 27 25 HOLSTON, 1993. Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 Impulso44_art03.indd 49 28 Cf. art. 4.º, inciso III, alínea ‘f ”; art. 2.º inciso XIV; art. 4.º, § 2.º. HOLSTON, 1993. SOUZA, 2002 e 2005. 49 27/11/06 19:45:34 é o contrário do modernista, com seu ideal simplificador, sua concepção reducionista das funções da cidade e o padrão de homem-tipo, numa compreensão maquinal ingênua e fragmentada da real complexidade da vida moderna.29 Chalas comenta que “somente uma atitude flexível, aberta, atenta a cada vez, para cada projeto, às forças presentes, expressões, trajetórias, mas também às oportunidades e potencialidades, tem chances de obter sucesso”.30 A nosso ver, é assim que um plano construído com diretrizes, ações e programas, partindo de uma visão sobre a multiplicidade do território deveria se processar. O abandono do zoneamento como instrumento base daquela lógica reducionista seria a mais notória prova de que a noção fragmentadora fora abandonada. Aspectos processuais, e não só instrumentais, também denotariam uma prática integradora, como a intersetorialidade e a interdisciplinaridade na gestão, bem como o contínuo e crescente debate sobre o planejamento urbano, aspectos esses muito pouco explícitos no texto do estatuto. URBANISMO APOFÁTICO: conduzido a se preocupar não mais com a felicidade para todos, como preconizava o urbanismo teorizado, mas com a mínima contrariedade ou a mínima dificuldade para cada um na elaboração do projeto. Ele não parte do interesse geral existente a priori, determinado ou conhecido em sua substância antes de qualquer ação, mas aí chega, ao procurá-lo e produzi-lo em função dos projetos. Seria o urbanismo da realidade, que reconhece os conflitos, relativiza o poder do técnico e do Estado, realiza pactos, não parte de uma concepção a priori, mas vai determinando-a conforme as vicissitudes do processo. Ao verificar a realidade brasileira, podemos ver traços desse tipo de urbanismo, contudo, também questionamos se não persiste o caráter teleológico do modernismo, pois, em que medida o Estatuto da Cidade não parte de um ideário também preconcebido? Seus 29 Essa perspectiva fica bastante evidente na vanguardista crítica do cineasta Jacques Tati, em Mon Oncle, do fim da década de 1950. Esse filme demonstra como o modernismo não se coaduna nem mesmo com os personagens ditos mais modernos, submetidos às novas rotinas que lhes são estranhas, fazendo-os passar de agentes a passivos executores de tarefas robotizadas. 30 CHALAS, 1998, p. 210. 50 Impulso44_art03.indd 50 instrumentos não pleiteiam pretensiosamente a consecução de objetivos apoiados numa utópica função social da propriedade e, assim, tentam criar à sua maneira, como os pré-urbanistas de meados do século XIX, modelos de convivência que amenizem conflitos, desconsiderando o próprio sistema capitalista que os gera? Ainda assim, se somente amenizam as conseqüências de uma crise maior, até que ponto os instrumentos presentes no estatuto, gestados no seio da intelectualidade, são capazes de atender ao que a sociedade realmente deseja? URBANISMO POLÍTICO: nele se demanda a repolitização do urbano, uma vez que o caráter técnico perde espaço para o lugar do debate. A politização do urbanismo significa que o debate público e aberto, de essência política, sobre a organização da cidade e do ser-conjunto na cidade torna-se mais a garantia de um melhor urbanismo, ou de um urbanismo ótimo, que a excelência técnica, estética, funcional e racional. Chalas comenta: “A dimensão formal e técnica do projeto torna-se secundária em relação à sua dimensão política. Neste sentido, é possível falar-se de uma desespacialização da questão urbana em proveito de sua repolitização”.31 Dessa maneira, comparece a ênfase do estatuto à questão política, seja ao longo do texto seja no capítulo específico sobre a gestão democrática. Contudo, sabe-se que esse tipo de exercício não é algo a ser aprendido por decreto ou lei, e que o aprendizado da cidadania e da participação pode ser longo e muito depende da forma como é concebido e configurado. Outro subsídio para questionamentos à situação brasileira vem das reflexões de Souza32 sobre os desafios a serem enfrentados por um planejamento e gestão urbana críticos, dos quais a seguir comentaremos alguns. EXAME BASTANTE PONDERADO DO ARSENAL DE INSTRUMENTOS DE QUE HOJE DISPÕEM O PLANEJAMENTO E A GESTÃO URBANOS: avaliando em que medida muitos deles podem ser reciclados ou subvertidos, com a finalidade de servir a propósitos diferentes daqueles para os quais foram original31 32 Ibid., p. 211. SOUZA, 2002 e 2005. Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 27/11/06 19:45:35 mente concebidos – e, não raro, francamente conservadores. Além de os instrumentos nascerem de uma experimentação em grande parte em metrópoles e grandes cidades, compreendem processos que carecem de avaliação no tempo e, assim, possam se medir seus impactos. Como considerar se o IPTU progressivo33 não será capaz de, ao tentar otimizar o uso do solo urbano com infra-estrutura, se coadunar mais ainda aos interesses do setor da construção civil? Como afirmar que a definição de áreas para urbanização de classes de baixa renda não permitirá o surgimento de enclaves sociais no tecido urbano? Como as ações consorciadas34 podem ser implementadas sem o risco de constituir intervenções que privilegiem poucos e não se revistam do caráter fragmentado já observado em projetos vinculados ao mainstream do planejamento estratégico? E ainda: como o controle social pode efetivamente se desenvolver, a ponto de dar a justa medida ao curso desses instrumentos? Esse aspecto do controle social merece um ponto especial aos questionamentos, como se terá a seguir. VALORIZAÇÃO SIMULTÂNEA DAS DIMENSÕES POLÍTICA E TÉCNICO-CIENTÍFICA DO PLANEJAMENTO E DA GESTÃO:35 a nosso ver, e como já comentamos, ela implica vencer uma resistência à revisão do papel do próprio planejador e à necessária comunicação entre a academia e a prática. Embora o Estatuto da Cidade caminhe nessa direção, há que se avançar nas duas dimensões, até mesmo porque boa parte dos instrumentos novos figurantes na 33 Estatuto da Cidade, art. 7.º. Ibid., arts. 32.º e 33.º. SOUZA (2002) aprofunda essa noção crítica com base na reflexão habermasiana a propósito da razão e do agir comunicativos, em que a primeira, orientada pela eficiência, acolhe uma dimensão de dominação e manipulação e a segunda guia-se por meio da comunicação, na qual prevalece o melhor argumento. Contudo, como ele comenta, não se deve desprezar o papel da técnica. “A diferença reside, primeiramente, em que o planejador crítico não se limita a ‘otimizar meios’ de maneira bitolada: ele deve envolver-se com questões de valor e pode e deve envolver-se, sem arrogância, nos debates sobre os fins, eventualmente chamando a atenção para possíveis contradições entre objetivos. A principal diferença, no entanto, é que ele reconhece o primado do agir e da razão comunicativos no que tange à decisão legítima sobre os fins – e, na presença de controvérsias ou alternativas igualmente válidas, também no que tange à escolha definitiva dos meios” (SOUZA, 2002, p. 39). Assim o perfil de profissional que se vê surgir é aquele com a excelência técnica balizada pela consciência política de seu trabalho, abrindo-se a perspectivas antes negadas, como a consideração dos usuários. Isso dá espaço também para que o conhecimento e o planejamento urbano se ampliem para além do âmbito da arquitetura e do urbanismo. 34 35 Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 Impulso44_art03.indd 51 lei foram aplicados em metrópoles e grandes cidades, onde inclusive a cultura política difere das de outros contextos. Cabe cuidar também de como introduzir a dimensão política. Souza expõe suas inquietações quanto à participação popular, muitas vezes maltratada ou secundarizada justamente entre aqueles que, ritualmente, seguem insistindo serem a ela favoráveis. Com freqüência, ela é encarada, na prática, como mero tempero, sendo os ingredientes principais os instrumentos contidos nos planos e nas leis. REFLEXÃO SOBRE O ALCANCE DE TERMOS COMO PARTICIPAÇÃO POPULAR: o Estatuto da Cidade representa grande avanço em matéria de marcos jurídicos. Não deve restar dúvida de que ele representa um ganho, inclusive no que concerne à participação popular, mencionada em sete artigos diferentes, três dos quais num capítulo específico sobre gestão democrática da cidade. Contudo, a sua importância tem sido costumeiramente exagerada (e seus defeitos têm sido muito pouco debatidos), bem no estilo do já nomeado tecnocratismo de esquerda. Acreditamos que a própria exigência legal de que os planos diretores estejam prontos até outubro de 2006 venha gerando uma aflição entre os prefeitos e, conseqüentemente, algumas incompreensões do que seria a participação popular. Souza comenta o tratamento dispensado a essa questão, afirmando que a maneira como o estatuto a ela se refere é, quase sempre, indefinida – admitindo-se uma interpretação que privilegia, dependendo da prefeitura, um processo deliberativo ou outro meramente consultivo – ou, então, a tônica é claramente consultiva. Para esse autor, o Estatuto da Cidade poderia ter amarrado melhor a previsão de participação popular no planejamento e na gestão urbanos, de modo a minimizar o risco de uma pseudoparticipação tão-somente com o objetivo de cumprir formalmente a lei.36 Ainda 36 SOUZA (2005) reflete sobre o texto do Estatuto e demonstra passagens de caráter indefinido ou ambíguo: art. 2.°, inciso II; art. 4.°, inciso III, alínea f; art. 33, inciso VII; art. 40, § 4, inciso I; art. 43, inciso I; art. 44; art. 45; com um caráter nitidamente consultivo: art. 2.°, inciso XIII, e no art. 43, incisos II e III. Nitidamente deliberativo, somente o art. 4.°, inciso V (que cita o referendo popular e o plebiscito, mecanismos que, de toda forma, já haviam encontrado acolhida na própria Constituição Federal), e o art. 43, inciso IV (que cita a iniciativa popular de projeto de lei e de planos, coisa que, igualmente, já se achava prevista na Constituição). 51 27/11/06 19:45:36 que não entrasse em detalhamentos – afinal é uma lei, e de abrangência nacional –, teria como remeter a maior parte do detalhamento a leis locais, em nome do bom senso e da salvaguarda do princípio da autonomia municipal. Por outro lado, a forte redundância entre vários dos artigos poderia ter dado lugar a uma mais minuciosa e refletida escrita sobre esses termos. Embora um pouco extensa, vale aqui a exemplificação desse autor quanto ao plano diretor desenvolvido em São Paulo. Realizado pela gestão de Luiz Erundina, quando pertencia ao PT, o plano foi aprovado só na gestão de outra petista, Marta Suplicy. Sintomaticamente, foi nomeado Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo e é, realmente, segundo Souza, um híbrido de plano estratégico (no estilo empresarialista ou empreendedorista) com elementos de desenvolvimento urbano sustentável e tinturas do ideário da reforma urbana. Contudo, onde está o espaço reservado à participação popular? Embora dedique quatro capítulos à gestão democrática do plano diretor estratégico, apenas o último focaliza mais diretamente o assunto da participação, e de forma bastante vaga. Não detalha praticamente nada em comparação ao que dispõem a própria Constituição (plebiscito, referendo, iniciativa popular) e o Estatuto da Cidade (debates, audiências públicas, conselhos). E, para o centro das atenções, o Conselho Municipal de Política Urbana e Ambiental, preconiza-se uma composição que reduz o papel dos setores populares e confere grande peso aos empresariais, a entidades associativas profissionais (representantes do saber técnico) e ao próprio aparelho de Estado: no total, 30 membros, um terço deles, representantes de base territorial representativas da população, outro terço de representantes de entidades de base setorial representativas de setores econômicos ou profissionais e outro terço de representantes de órgãos ou entidades públicas municipais. Dessa maneira, questionamos também como as tinturas de um ideário apoiado no empresariamento da cidade, derivado da concepção de planejamento estratégico, não se configura senão na intenção, pelo menos no texto do Estatuto da Cidade. A pseudoparticipação e a pouca permeabili- 52 Impulso44_art03.indd 52 dade à realidade social, características do planejamento estratégico, não estariam tão distantes de possíveis interpretações conferidas à escrita vaga do estatuto. CONSIDERAÇÕES FINAIS Além dessas considerações já tecidas à luz das contribuições de Chalas e também de Souza, outras poderiam ser agregadas a título de síntese geral. Percebemos que o estatuto é norma e supõe confiança normativa, como lei colocada em todo o território nacional para dirimir questões de escala local, seja urbana seja metropolitana. O caráter universalista da Carta de Atenas pode encontrar, nessa escala em que se processa o estatuto, uma certa reticência, o que preocupa, afinal, foi justamente a pretensa visão totalizadora que custou ao planejamento urbano sérios ônus. Ainda que, como comenta Carvalho,37 o Estatuto da Cidade reafirme os princípios básicos estabelecidos pela Constituição da União – preservando o caráter municipalista –, a centralidade do plano diretor como instrumento básico da política urbana remete, igualmente, à centralidade da função do poder público na regulação das relações sociais em matéria urbana, o que, pelo menos, está ainda longe de uma perspectiva mais autonomista, defendida por Souza.38 A própria função social do solo,39 que aparece no estatuto na tentativa de amenizar os conflitos gerados pela propriedade privada do solo – apesar das dimensões mais participativas dos processos de decisão ao qual se abre –, ainda atribui ao Estado um papel bastante acentuado. A solução modernista para a questão fundiária foi mais simplista e apoiada na arquitetura, com a publicização do rés-do-chão por meio dos pilotis,40 37 CARVALHO, 2001. Mais particularmente no capítulo 10, Parte II, em SOUZA (2002). As funções sociais, definidas no estatuto, abrangem as mesmas já identificadas na Carta de Atenas, explicitadas no art. 2.º, e as questões habitacional e fundiária comparecem como primordiais, definindo amplamente os outros aspectos do estatuto, como os seus instrumentos. Observe-se que tais aspectos foram os mesmos que nortearam os preceitos do modernismo. 40 Quanto aos instrumentos do Estatuto da Cidade, chama a atenção o direito de superfície (art. 21.º), que flexibiliza a propriedade do solo do seu uso e, assim, remonta ao princípio dos edifícios sob pilotis que liberariam o solo para uso público, sem prejuízo da propriedade privada nos andares superiores. 38 39 Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 27/11/06 19:45:37 mas, diga-se de passagem, tão arraigada na profunda crença no poder do Estado como regulador do solo quanto o próprio estatuto. Ainda sobre o Estatuto da Cidade, Carvalho41 comenta a manutenção da divisão de competências entre os três níveis de governo, concentrando na esfera municipal as atribuições de legislar em matéria urbana. A permanência desse quadro, a seu ver, significa circunscrever o tratamento e a proposição de soluções às questões urbanas nos limites do território municipal, pois compete aos Poderes Executivo e Legislativo municipais equacioná-las. Contudo, ignora-se que o tratamento de muitos dos problemas urbanos extrapolam os limites de municípios, configurando as áreas metropolitanas e as aglomerações urbanas. Assim, acreditamos que o Estatuto da Cidade não se posiciona sobre um aspecto já descrito por muitos autores de forma crítica, que é o da competição entre cidades por sua colocação na rede mundial. Atentamos que instrumentos como as operações urbanas consorciadas poderiam ser meios eficazes na barganha em que se envolvem as municipalidades na atração de investimentos externos, o que acirraria esse ambiente de competição, pouco democrático, agravando desigualdades no território nacional. Outra consideração de Carvalho42 trata a imprecisão de alguns enunciados, como ordenação, bem-estar dos cidadãos e função social da propriedade, que soam genéricos e abstratos, acredita a autora, somente poderão expressar realidades históricas, definidas temporal e espacialmente, quando do exercício do processo de planejamento. Dessa forma, concordamos com ela e ampliamos a nossa justificativa quanto a não avançar mais em relação à crítica do estatuto, sob o risco de sermos precipitados, pretensiosos ou ainda injustos. Afinal, serão os passos derivados de sua compreensão e exercício que nos darão mais subsídios para avaliar o quanto avançamos da crise a um planejamento efetivamente alternativo e coerente com a realidade brasileira. 41 42 CARVALHO, 2001. Ibid. Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 Impulso44_art03.indd 53 Aqui demonstramos o que o próprio texto, ou ainda as avaliações acerca do contexto de surgimento do Estatuto da Cidade, e de aplicação isolada de seus instrumentos nos permitiram auferir. No que se refere à provocação feita tanto no título do artigo, como ao longo de todo o texto, de que o Estatuto da Cidade revela-se como um “pensamento fraco”, pode-se concluir que, no mínimo se identifica nele certa ambigüidade, pois tanto há traços significativos de certa inércia do paradigma anterior, quanto manifestações inequívocas de sua capacidade de superação do viés modernista. Retomando a definição de Chalas43 sobre o pensamento fraco, fundada numa legitimidade ainda problemática, própria de um momento em que surge um novo poder que sofre de uma credibilidade retraída, esboçamos um último questionamento, com a finalidade de conclusão. O urbanismo modernista, com seu caráter desistoricizante, fez surgir um paradoxo ideológico, conforme explicitamos no caso de Brasília. Nesse sentido, o Estatuto da Cidade poderia mesmo pretender construir uma política urbana inovadora, do ponto de vista ideológico, sem efetivamente deixar às claras o conflito de interesses nesse campo? A despeito do urbanismo modernista, difundido graças ao poder icônico de sua arquitetura, de qual artifício se serviria o estatuto, se realmente parte do pressuposto de que, independentemente do viés político, ideológico e partidário, terá uma resposta similar ou igual em toda a diversidade da Nação? Ingênuo ele não seria. Se tomarmos em conta episódios recentes da política brasileira, capitaneada hoje em dia pelo PT, a legitimidade que já era fraca e a credibilidade que vinha se consolidando beiram o xeque-mate, a ponto de por em risco igualmente o estatuto, gestado num contexto em que a participação desse partido foi decisiva. Se o Estatuto da Cidade pretende, como o paradigma anterior, ignorar aspectos intrinsecamente contraditórios, ainda não deixa claro sob o que os irá mascarar. Sua consecução e repercussão só nos deixam mais instigados a análises de monitoramento do poder que um pensamento forte possui, ao começar, assim, a se formar. 43 CHALAS, 1998. 53 27/11/06 19:45:38 Referências Bibliográficas BRASIL. Estatuto da cidade: Lei n. 10.257, de 10/jul./01, que estabelece diretrizes da política urbana. Brasília: Câmara dos Deputados/Coord. de Publicações, 2001. CARVALHO, S.N. de. “Estatuto da Cidade: aspectos políticos e técnicos do plano diretor”. 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