DA PRÁTICA À TEORIA, DA TEORIA À PRÁTICA
(dedicado aos alunos e professores do Ensino Médio)
Profa. Dra. Fernanda Machado de Bulhões
Departamento de Filosofia/UFRN
Resumo: A fim de contribuir mesmo indiretamente com a volta da filosofia nas escolas do
Ensino Médio, apresento aqui um breve artigo que trata da antiga e recorrente questão que a meu
ver determina e orienta o modo como se ensina e se aprende o saber filosófico, a questão é: o que
é filosofia? Várias são as respostas. Farei aqui breves formulações sobre o tema ressaltando o
parentesco entre filosofia, ciência e arte.
Palavras-Chave: Filosofia, Ciência, Arte.
N
ós, seres humanos, uma das espécies de vida que existem na imensidão -
finita ou infinita - desse universo, somos os únicos que refletimos sobre a existência,
criando inúmeras teorias sobre as várias realidades que existem a nossa volta. Como
todos os seres vivos, nós nascemos e morre(re)mos, mas, diferentes dos demais,
perguntamos qual o sentido disso tudo? Tem algum sentido, ou não? Sem dúvida, uma
de nossas maiores idiossincrasias é procurar uma explicação tanto para o universo
quanto para nossa própria existência. Procuramos uma verdade maior que nos oriente
em nosso dia a dia, nesse sentido, somos todos filósofos: uns, bem mais, outros, bem
menos.
Embora a filosofia seja um saber que pode despertar grande interesse, não é um saber
fácil. A compreensão das questões metafísicas, fundamentais e insolúveis que ela trata
requer tempo e proximidade. Para entrar em seu universo é preciso conhecer sua
história, os filósofos, as principais teorias e, sobretudo, seu vocabulário que é próprio e a
princípio hermético e incompreensível para os não “iniciados”. Vários são os fatores que
dificultam a entrada no universo da filosofia, por isso, levando em consideração que aqui
no Brasil ela está voltando às escolas, é importante e oportuno uma reflexão sobre seu
ensino. Como apresentar a filosofia para jovens do Ensino Médio? Sem entrar no aspecto
metodológico, tratarei aqui de uma questão filosófica - “o que é filosofia?” – que a meu
ver é determinante no modo como se ensina o saber filosófico, em todos os níveis
acadêmicos, já que a maneira como se compreende a filosofia é uma espécie de pano de
fundo a partir do qual os diversos conteúdos ganham sentido. Existem várias respostas à
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questão o que é filosofia. Neste breve ensaio, escrito numa linguagem acessível aos
iniciantes, trago comigo meu principal “aliado”, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche
(1844-1900).
Filosofia e ciência
A filosofia é um tipo de ciência situada entre as Ciências Humanas. Mas, podemos
também dizer que ela é a mãe de todas as ciências, já que seu nascimento significou o
nascimento do espírito científico. Com a filosofia nasceu o modo de pensar racionalcientífico, um modo lógico, dedutivo, construído passo a passo, indo de premissas às
conclusões, seguindo o fio da causalidade.
Filosofia é ciência. De que tipo de ciência é a filosofia? Um antigo ditado popular, muito
citado por meu avô, dizia: “Filosofia é a ciência que com a qual ou sem a qual o mundo
resta tal e qual”. De acordo com essa definição, a filosofia é um tipo de saber que não
muda em nada o mundo. Com ou sem filosofia o mundo resta tal e qual. Mas, que mundo
é esse? O universo (a phýsis) ou o mundo dos homens? Segundo meu avô, os dois. A
filosofia não intervém na vida nem na dos homens, menos ainda na da natureza.
Muito antes de existir esse ditado popular, Aristóteles já dizia que é próprio da filosofia
ser um conhecimento que não visa uma finalidade prática. O filósofo pensa apenas por
pensar, quer conhecer apenas para conhecer e não para usar esse conhecimento
adquirido. No entanto, vale ressaltar que, bem diferente de nossa pragmática realidade
moderna, para os antigos gregos, o fato de a filosofia não ter uma utilidade prática é sinal
de sua superioridade em relação às outras ciências, pois significa que a investigação
filosófica não está a serviço de algo externo ao próprio pensamento. Se o que é útil é o
que está a serviço de algo, então a filosofia é uma ciência inútil, já que não tem uma
finalidade fora dela própria. Não fazemos nada com o pensamento filosófico a não ser
pensar, aliás, podemos dizer que a prática da filosofia é esse exercício teórico.
Nietzsche, em geral conhecido como crítico fervoroso da herança socrática-platônica,
concorda com Aristóteles ao valorizar o aspecto inútil da filosofia e ao considerá-la
superior às outras ciências, justamente porque “prefere o inútil ao útil”. Para ambos os
pensadores, a filosofia se interessa apenas pelo que é grandioso e mais fundamental e,
por isso mesmo, não pode ser utilizada ou aplicada à realidade sensível e particular.
Sobre esse aspecto, Nietzsche segue Aristóteles e inclusive cita o “mestre”:
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Aristóteles diz com razão: “Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será
chamado de insólito, assombroso, difícil, divino, mas inútil, porque eles
não se preocupavam minimamente com os bens terrenos”. Ao escolher e
discriminar assim o insólito, assombroso, difícil e divino, a filosofia marca
o limite que a separa da ciência, do mesmo modo que, ao preferir o inútil,
marca o limite que a separa da prudência. (NIETZSCHE, 1985, p.12).
Quem é o filósofo?
Se a filosofia é um saber inútil, quem é o filósofo? Como descrevê-lo? Provável
descrição: um homem velho, parado, sentado, calado, os olhos abertos, mas sem ver
nada a sua frente, um olhar absorto, como se estivesse ausente dessa nossa humana
realidade. Desligado do mundo ao seu redor, ele só fica pensando, pensando, sem sair
do lugar, e quando sai tem que ter muita atenção para não cair no buraco, como ocorreu
com o primeiro filósofo grego, Tales de Mileto, que vivia olhando o céu e as estrelas
tentando decifrar os enigmas do universo.
Nietzsche e a sua imagem do filósofo-artista
Nietzsche, em suas obras, nos proporciona um modo alternativo de pensar a figura do
filósofo e compreender o que é a filosofia. Grande crítico da vaidade e da arrogância que
caracteriza o que ele chama de os homens de ciência, entre os quais se encontram os
filósofos que acreditam na capacidade de a razão descobrir a verdade escondida no
âmago do ser, Nietzsche considera que os primeiros filósofos gregos, também chamados
de “filósofos arcaicos”, são os verdadeiros modelos do autêntico filósofo. Eles nada
tinham de apático, de parado, de insensível. Muito pelo contrário, os primeiros filósofos
gregos eram revolucionários, que ousaram pensar o mundo de um modo completamente
diferente e contra a tradição. Cada um por si mesmo, rompendo com o pensamento
mítico que até então predominava em todos os lugares, buscou descobrir qual é a lógica
ordenadora do Cosmo. E cada um encontrou, sozinho, a sua própria e exclusiva verdade
sobre o universo.
Profundo conhecedor da cultura, das artes e da língua grega, Nietzsche considera que a
filosofia quando surgiu na Grécia arcaica se revelou “na sua forma mais pura e mais
grandiosa” (NIETZSCHE, 1994, p. 83). Aí foram formulados os “tipos principais do
espírito filosófico” e os seus problemas fundamentais. Para ele, os primeiros filósofos
geniais e originais - Tales, Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Anaxágoras,
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Empédocles e Demócrito – expressam a exuberância e criatividade dessa época áurea
dos gregos, a época trágica (século VI e V a. C.). Por isso, diz ele, se alguém quiser
saber o que é a filosofia e quem é o filósofo não deve buscar respostas na Ásia ou no
Egito, nem na modernidade. É preciso voltar-se para os primeiros pensadores gregos
entre os quais a filosofia apareceu à altura que sempre deve ter:
Os gregos souberam começar na altura própria, e ensinam mais
claramente do que qualquer povo a altura em que se deve começar a
filosofar. Não só na desgraça, como pensam aqueles que derivam a
filosofia do descontentamento. Mas antes na felicidade, na plena
maturidade viril, na alegria ardente de uma idade adulta, corajosa e
vitoriosa. Que os gregos tenham filosofado nesse momento (da sua
história) informa-nos tanto sobre o que é a filosofia e o que ela deve ser
como sobre os próprios gregos (NIETZSCHE, 1987, p.18).
Ou seja, em suas análises que estão presentes em seus escritos póstumos de juventude,
Nietzsche destaca o caráter livre, ousado e revolucionário dos primeiros filósofos que
questionavam os mitos cantados por Homero e Hesíodo1. Não eram indiferentes ao
mundo, frios e insensíveis, como se não corresse sangue em suas veias ou, pior, como
se não tivesse nem veias Para eles, diz Nietzsche, o pensamento e a vida eram
indissociáveis. Neles não existia separação entre teoria e prática. Viviam como pensavam
e pensavam como viviam. Neles, o pensamento constituía “um apoio para a vida e não
para o conhecimento erudito”. Nietzsche ressalta a personalidade genial e intensa desses
homens cheios de vida, de força, todos bastante orgulhosos, certos e convictos de suas
verdades.
De acordo com a interpretação presente em O nascimento da tragédia foi somente a
partir do “socratismo” que surgiu a figura do “homem teórico”, cuja fé no poder da razão é
tão excessiva que desvaloriza todos os impulsos não racionais, principalmente, os
impulsos estéticos. Nietzsche vê uma clara ruptura entre o momento arcaico da filosofia e
o período cujo começo é marcado pela figura de Sócrates, o símbolo do homem teórico.
Podemos dizer que essas duas imagens de filósofos correspondem ao filósofo-artista e o
filósofo-cientista. Em A filosofia na época trágica dos gregos, Nietzsche nos oferece uma
imagem que ilustra bem essa diferença, ele nos descreve dois viajantes diante de uma
forte torrente de água. Para ultrapassá-la, graças a seu talento criativo e versátil, o
1
“Pode-se apresentar estes filósofos arcaicos como aqueles para os quais a atmosfera e os costumes gregos
são uma cadeia e uma prisão: por isso eles se emancipam (combate de Heráclito contra Homero e Hesíodo,
de Pitágoras contra a secularização, de todos contra o mito, sobretudo Demócrito). (...) Um conjunto de
fenômenos contém todo esse espírito de reforma”. NIETZSCHE, 2001, p. 90.
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filósofo-artista salta rapidamente sobre apoios frágeis, sobre as pedras que logo depois
serão arrastas pelas águas agitadas. O filósofo-cientista não salta, para sair do lugar
precisa antes ter a certeza de que seus passos pesados e prudentes encontrarão um
chão estável e sólido para pisar. Enquanto o pensamento intuitivo e imaginativo voa, o
pensamento calculador, científico, anda com a máxima cautela. Eis a cena:
Julga-se ver dois viajantes à beira de uma torrente agitada que arrasta
pedras consigo: um deles salta com leveza por cima dela, servindo-se
das pedras para se lançar à frente, mesmo que estas se afundem
bruscamente atrás dele. O outro se encontra desamparado a cada
momento, deve primeiro construir fundamentos que possam sustentar
seu passo pesado e prudente; às vezes, não consegue, e então nenhum
deus o ajuda a transpor a torrente. O que leva, pois, o pensamento
filosófico tão rapidamente ao seu fim? Distingue-se ele do pensamento
calculador só por percorrer mais rapidamente grandes espaços? Não,
porque lhe dá asas um poder estranho e ilógico, a imaginação. Impelida
por esta força, salta de possibilidade em possibilidade, que se aceitam
como certezas provisórias: aqui e ali, chega mesmo a apanhar certezas
em vôo (NIETZSCHE, 1985, p.10-11).
Essa descrição dos dois viajantes à beira de uma forte torrente ilustra bem a diferença
entre o filósofo, impulsionado pela ilógica imaginação, que salta de possibilidade em
possibilidade, pois se sente confiante, forte e, sobretudo, leve e por isso capaz de voar
pelo vasto reino das possibilidades. Já o filósofo movido pela razão, segue rígidos
critérios metodológicos e se empenha na construção de fundamentos sólidos capazes de
sustentar seu passo prudente e pesado. Ele precisa de segurança, vive a procura de
verdades e certezas definitivas.
Essa metáfora mostra o parentesco do filósofo com a arte. Tal como os poetas, ele tem
uma sensibilidade apurada, uma intuição e imaginação aguçadas. De acordo com
Nietzsche, o grande problema que vem se perpetuando desde o socratismo é a tendência
a compreender o filósofo e a filosofia somente a partir da razão e da ciência. A filosofia
aparece como sendo séria, dura, seca, um saber abstrato, fechado em si mesmo. Na
contramão desse modelo excessivamente racional, Nietzsche apresenta essa filosofiaestética que, em vez de querer enunciar verdades metafísicas, pretende criar e multiplicar
as possibilidades de perceber a vida.
Considerações finais
Considero que a filosofia é constituída tanto por seus traços científicos quanto por seus
traços estéticos. Ela é um tipo de saber lógico construído com palavras, conceitos, ideias,
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argumentos, que procura refletir o mundo e a existência, mas, como existe uma
tendência do filósofo em ser dogmático, é preciso ter atenção aos limites próprios da
reflexão filosófica. A crença no poder da razão e da ciência de enunciar verdades
absolutas é problemática, pois pode tornar o homem um ser arrogante e vaidoso que erra
ao pretender reduzir a realidade às suas teorias, erra ao tentar acabar com os mistérios
da existência.
A filosofia é, sim, uma ciência, com seus temas e seu rigor conceitual, no entanto ela só é
capaz de elaborar teorias que só são verdadeiras para seus autores. Em vez de revelar o
necessário e universal, o que lhe é mais próprio é expandir as possibilidades do
pensamento, abrindo novas “perspectivas” que possibilitam ver o horizonte mais amplo.
Enfim, quando questionados a respeito do valor da filosofia, nós professores e nós
alunos, podemos responder: o valor da filosofia está em criar sentido e beleza à nossa
humana, cotidiana e efêmera existência. Assim como a arte, a filosofia serve para apurar
o gosto, refinar os sentidos, desenvolver a “arte da nuance”, deixando a vida mais rica em
tonalidades, mais interessante. Nas palavras de Nietzsche: “O valor da filosofia (...) não
corresponde à esfera do conhecimento, mas à esfera da vida, a vontade de existência
usa a filosofia tendo por fim uma forma superior de existência” (NIETZSCHE, 2001, p.
14).
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Referências:
NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na época trágica dos gregos. Trad. Rubens Torres Filho, in Os
Pensadores, volume “Os Pré-socráticos”. 3. Ed. São Paulo, Ed. Abril S.A, 1985.
____________________. A filosofia na época trágica dos gregos. Trad. Maria Inês Madeira de
Andrade. Lisboa, Edições 70, 1987.
____________________ Les philosophes préplatoniciens. Apresentação e notas: Paolo D’Iorio.
Trad. Nathalie Fernand. Paris, Editions de Léclat, 1994.
____________________
“O último filósofo. Consideração sobre o conflito entre arte e
conhecimento (outono-inverno de 1872)”, In O livro do filósofo. Trad. Rubens Eduardo Ferreira
Frias. São Paulo, Centauro, 2001.
_____________________ O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Companhia
das Letras, 1992.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro, Rocco, 1985.
___________. “Arte, ciência, filosofia”. In Nietzsche e a polêmica sobre o Nascimento da Tragédia.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.
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