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Templos midiáticos: a comunicação como instrumento de propagação da fé
Rosa Malena Pignatari1
Resumo
Este artigo explana sobre o fenômeno do avanço pentecostal na contemporaneidade e o
papel relevante da mídia nesse processo crescente, traduzido pela sensação de o altar ter
ser transferido para a esfera comunicacional. Como ler a mídia religiosa, observando de
que modo crenças e práticas distintas fazem sentido para determinados grupos que as
adotam, dentro de contextos sócio-históricos e culturais específicos, é ponto
imprescindível para a reflexão. Trazemos, com isso, algumas perguntas desafiadoras
numa conjuntura de tensionamento próprias do assunto, bem como o cenário de ‘guerra
santa’ que surge em meio a essa expansão proselitista.
O fato do pentecostalismo brasileiro não ser apenas um fenômeno exógeno e se
constituir como produto social e analisado enquanto manifestação cultural, traz a lume
outra realidade que não apenas a visão da atuação das crenças frente aos valores e
práticas sociais. Hoje, talvez mais do que em qualquer outra época, assista-se a fé
materializada em uma quantidade de produções midiáticas jamais dimensionada antes.
Jornais, revistas, sites, blogs, podcasts, programas de TV evangélicos, telejornais
veiculados em redes evangélicas, enfim, representam um emaranhado de conteúdos
criados por profissionais em grande parte da área da comunicação.
Comentar o papel da midiatização do campo religioso implica examinar algumas
definições, imbricando esse quadro conceitual com as próprias mudanças no cenário dos
processos midiáticos, somando as reconfigurações que o fenômeno religioso vem
sofrendo no Brasil. Atuando em cima do vácuo político-assistencial deixado pelo
Estado, as instituições religiosas elegem “políticas de atendimento”, convertendo a
cultura midiática na esfera em que as demandas temporais dos indivíduos serão
transformadas e/ou capturadas para os fins instrumentais das instituições. (Barbero,
2002, p. 5 apud Neto, 2004, p. 167)
Nos últimos quarenta anos, alguns acontecimentos contribuíram para o estreitamento da
relação entre religião e a mídia no Brasil. Um deles diz respeito ao fato de a televisão ter
1
Graduada em Jornalismo pela Unesp/Bauru, e mestranda do Programa de Pós-graduação em
Comunicação,
Faculdade
de
Arquitetura,
Artes
e
Comunicação
da
Unesp-Bauru.
[email protected]
2
se tornado, poucas décadas após seu aparecimento, o maior veículo de comunicação do
país. Outro fator foi a da TV abertura ao mercado – programas que antes eram
importados na década de 1970 foram substituídos por programas nacionais no horário
nobre. Soma-se a isso, o aumento dos evangélicos na população brasileira, que
justificou o surgimento de uma mídia especializada voltada a este grupo e, outro ponto,
o fim do regime militar no país propiciando uma abertura cultural-religiosa, sem limite
de fronteiras. (Freston, 1993, p.136 apud Santana, 2003, p.13).
O campo religioso “apropria-se da cultura e dos processos midiáticos não só para
atualizar a existência dos “velhos templos”, mas também para construir sua presença via
novos processos de disputas de sentido”. (Neto, 2004, p.164) Nesse sentido, a cultura
midiática passa a servir como referência para a organização das novas estratégias e
táticas simbólicas das igrejas. Nesse campo simbólico “as estratégias midiáticas
ensejam aos seus consumidores não apenas algo para escutar, mas também para olhar,
tocar e sentir”. (Neto, 2004, p.165)
As estratégias midiáticas tiram a religião do transcendente, submetendo-a a um modelo
de experiência do “aqui e agora”, demonstrando que o avanço da vertente pentecostal
protestante não é expressivo apenas no plano demográfico e religioso. Estende-se pelos
campos: editorial, político-partidário, assistencial e de produtos religiosos. E mais: seus
adeptos não se restringem somente aos estratos pobres da população, encontrando-se
também nas classes médias, incluindo empresários, profissionais liberais, atletas e
artistas. (Mariano, 2004, p. 121)
É como se o altar tivesse se transferido para a esfera comunicacional, no sentido da
institucionalização e propagação da mensagem de fé nas mais variadas mídias. O campo
midiático manifesta a fé ou a fé é manifestada pelo campo midiático? O fato é que
novas formas de religiosidade estão sendo instauradas. As religiões se fariam muito
mais “pela mediação das estratégias de produção de sentido midiático e dos seus efeitos
e muito menos da permanência das formas elementares da vida religiosa, conforme
descreveu Durkheim” (Neto, 2004, p. 177). O quadro reitera que uma das conseqüências
do avanço e ápice da religião na contemporaneidade esteja em sua personificação
através da comunicação e cultura midiática enquanto forte estrutura mediadora.
1. Campo de conflitos e tensionamento
Da mesma maneira que houve estudos que identificaram o caráter nocivamente
ideológico e alienante da mídia evangélica (Assmann, 1986), há estudos (Campos,
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1997) que procuram entender a mídia como lugar de representações, cuja compreensão
permitira entender as lógicas que animam os discursos, os símbolos e as visões de
mundo de grupos evangélicos, a fim de dissipar preconceitos e hostilizações
direcionadas a essa parcela religiosa no Brasil. (Bellotti, 2004)
Nesse duelo de intenções, o discurso tende a se enriquecer ao lançar mão de indagações
que exprimem ambos os pensamentos. Afinal, a mídia seria apenas o reflexo das
intenções de seus produtores, que perfariam a mensagem por si só? Seria ela um meio
de dominação ideológica, que ludibriaria a audiência com falsas promessas de milagres,
curas, prosperidade, em troca de doações em dinheiro? (Bellotti, 2004, p.108) A autora
esclarece que tais perguntas nascem de pressupostos uniformes como: Em que medida
os grupos evangélicos usam a mídia como instrumento de alienação ideológica? Como
traçar um perfil de identidade evangélica autêntica? Ou ainda, quais os grupos que
seriam genuinamente evangélicos? “São perguntas que presumem que os evangélicos
formam um bloco indistinto e até “mancomunado” disposto a usar a mídia com más
intenções” (Bellotti, 2004, p. 109)
Por outro lado, quando os pressupostos mudam de uma abordagem para outra, a
desconstrução sugere outros questionamentos: Como cada grupo evangélico utiliza a
mídia para se fazer ouvir numa sociedade não evangélica? Quais os recursos simbólicos
que cada um utiliza para legitimar sua mensagem? Como cada grupo evangélico se vê a
partir da mídia e como ela constitui um espaço específico de diálogo com diversos
grupos evangélicos e não evangélicos? Quais os usos e os sentidos dos produtos da
mídia evangélica dados pelos seus enunciatários? (Bellotti, 2004, p. 109). Na esteira
dessas observações, os meios parecem não serem puramente um espelho das intenções
dos produtores, nem tampouco podem ser explicados somente por elas. É fundamental
ler os produtos de mídia com uma combinação de conteúdo e forma e a forma faz parte
da mensagem. Analisar a especificidade de cada produto de mídia religiosa “significa
aliar as limitações e as potencialidades de cada meio de comunicação (“forma”) às
representações contidas nesses meios (“conteúdo”)” (Bellotti, 2004, p. 110). Isso
porque, as representações estão vinculadas à história do grupo produtor da mensagem, o
que implica a construção de uma identidade e de uma tradição que dão sentido à ação
desse grupo na atualidade, em relação a uma sociedade não-evangélica, mas, no entanto,
majoritariamente cristã como a brasileira.
Para a autora, ainda que os produtos religiosos sejam constituídos com objetivos
específicos (evangelização, instrução, diferenciação etc.) podem ganhar outros sentidos
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quando se leva em conta a recepção de evangélicos das mais diferentes igrejas e
também de não evangélicos. “A audiência não é passiva e suscetível à dominação
econômica ou religiosa”. (Bellotti, 2004, p. 109). Afirmação que vai ao encontro do que
preconizou o teórico Jesus Martin Barbero, quando disse que os anos 90 marcaram um
novo modelo de análise nas pesquisas em comunicação, quando à cultura cabia o papel
de mediação social e teórica com o popular, com a vida cotidiana, com os meios. “Toda
a problemática do mal-falado receptor está sendo repensada radicalmente” (Barbero,
1980 apud Berger, 2001, p.268). Existiria a cumplicidade do enunciatário na
dominação, mas também nas formas de resistência, ainda que Barbero reconheça a
relatividade da resistência. Contribuindo assim, para uma afirmação no próprio universo
de pesquisa de que a comunicação deve ser tratada no cenário da cultura. Posição que na
América Latina encontra eco na sua formação híbrida, em que propicia múltiplas
mediações na recepção das mensagens. (Berger, 2001)
Conforme elucida Canclini (2006), o processo comunicacional na atualidade é mais
complexo do que uma relação entre meios manipuladores e dóceis audiências. Estudos
de comunicação de massa mostram que a hegemonia cultural não se realiza mediante
ações verticais nas quais dominadores capturam enunciatário. Entre uns e outros se
reconhecem os mediadores — a família, o bairro, o grupo de trabalho etc. Lopes (2001)
diz que a presença do popular no interior do massivo não é uma presença estranha a ser
“integrada” mas uma proposta que coexiste conflitivamente com outras que procedem
de expressões de outros sujeitos sociais. Contribuem sim, segundo Lopes (2001), para o
caráter ambíguo dos meios de comunicação de massa em suas funções de absorver as
diferenças e ao mesmo tempo acomodar as disparidades entre o popular e o nãopopular, o nacional e o transnacional. Ele alerta para o perigo das explicações dualistas,
ou seja, cultura popular oposta à cultura de massa, ou as etnocêntricas, cultura popular
como atraso e negatividade. Refuta, contudo, qualquer tentativa de reificar o popular
superestimando seu poder de resistência e recusa ou o de dar escassa relevância em seu
interior dos mecanismos de dominação ideológica. Por isso, conclui a questão da
democratização transcende a esfera do político, perpassa os movimentos sociais e no
papel que as diferentes culturas (ou subculturas) aí desempenham. Não que a cultura
toma o lugar da política, mas ressaltando que, hoje, em sua função de dinamicidade
cumpre um espaço na revelação de dimensões inéditas do conflito social. A cultura das
classes subalternas, diz Gramsci, não é um todo homogêneo mas apresenta-se como
uma vasta gama de representações de grupos que mantêm entre si relações dinâmicas
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nem sempre horizontais. “O que distingue o canto popular no quadro de uma nação e de
sua cultura não é o fato artístico, nem a origem histórica, mas seu modo de conceber o
mundo e a vida em contraste com a sociedade oficial” (Gramsci, 1978, p.190 apud
Lopes, 2001, p.64) Para o autor, o popular se define não por sua origem, mas pelo seu
uso. É popular o que é adotado, usado e consumido pelas classes subalternas dentro de
seu modo desnivelado de conceber o mundo em contraposição às concepções de mundo
oficiais. Nesse ponto de vista, uma revista ou um jornal, por exemplo, só são populares
se forem adotados e consumidos por grupos sociais subalternos. A investigação deve
buscar como e de que modo a revista é consumida, o que a faz ser tão consumida por
certos grupos sociais e o que é também que tais grupos fazem com a revista. (Lopes,
2001)
2. Gênese do pentecostalismo: diferenças internas e segmentação
Formado no início do século XX nos Estados Unidos, o pentecostalismo vem crescendo
em vários países em desenvolvimento do Sul do Pacífico, da África, do Leste e do
Sudeste da Ásia, sobretudo na América Latina, onde o Brasil se destaca. Estima-se que
no Brasil a vertente abrigue cerca de trinta milhões de evangélicos. Essa expansão não é
recente e nem tampouco episódica. Ocorre de modo constante já há meio século, o que
permitiu que o pentecostalismo protestante se tornasse o segundo maior grupo religioso
do país (Mariano, 2004, p.121).
Ainda no que se refere à gênese do pentecostalismo no Brasil, onde encontrou um
terreno previamente arado por várias igrejas protestantes, as missões evangélicas
começaram a chegar na metade do século XIX. Pioneiras nesse trabalho foram as
chamadas sociedades bíblicas, de origem inglesa e norte-americana. Além delas, vieram
as missões metodistas. Estima-se que os metodistas chegaram no país em 1835,
lançando-se diretamente ao trabalho de conversão. Como conseqüência não demorou
muito para a formação de congregações protestantes com forte inclinação proselitista.
No final do século XIX, estavam praticamente implantadas no Brasil as denominações
clássicas do protestantismo: luteranos, anglicanos ou episcopais, metodistas,
presbiterianos, congregacionalistas e batistas.
Porém, é no início do século XX que as denominações pentecostais foram
implementadas. Em 1910 havia apenas dois templos, um deles na capital paulista e,
outro, no interior do Paraná, ambos da Congregação Cristã do Brasil. E, em 1911,
instala-se em Belém do Pará, a Assembléia de Deus. Ambas as denominações logo se
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difundiram pelo país inteiro. A partir da segunda metade do século XX, os evangélicos
pentecostais cresceram tanto e se diversificaram de tal forma que acabaram por se tornar
amplamente majoritários entre os protestantes brasileiros. No início da década de 90,
pelo menos um décimo dos brasileiros adultos era pentecostal (10%), ao passo que os
protestantes históricos representavam apenas 3% da sociedade brasileira (Pierucci,
2006, p. 307).
O pentecostalismo — que desde seu início exibiu diferenças internas não apenas no que
diz respeito ao aspecto teológico, mas em relação ao seu perfil comportamental —
afasta qualquer tentativa de análise homogênea. Portanto, são tantos os ramos que
brotam da árvore pentecostal que é tarefa desafiadora discerni-las, quanto mais atribuir
identidade. No entanto, alguns estudiosos como Paul Freston embrenharam-se na
tentativa de categorizar o movimento. De acordo com ele, o pentecostalismo brasileiro
pode ser compreendido tendo como fio condutor de sua história três ondas de
implementação de igrejas.
A primeira onda corresponde ao período entre 1910 e 1950, com a chegada da
Congregação Cristã (1910, SP) e da Assembléia de Deus (1911, PA). Fundadas,
respectivamente, pelo italiano Luigi Francescon, e pelos missionários suecos Daniel
Berg e Gunner Vingrer. Caracterizam-se em linhas gerais pela ênfase na glossolalia
(falar em línguas), na evangelização dos povos indígenas, conduta ascética e ferrenha
oposição ao catolicismo.
A segunda onda pentecostal se inicia com a chegada no Brasil de dois missionários
norte-americanos, Harold Williams e Raymond Botright, pertencente à Igreja
Internacional do Evangelho Quadrangular (International Church of the Foursquare
Gospel), constituindo um período que vai da década de 1950 ao início de 1960, marcado
pela criação da Cruzada Nacional de Evangelização. Nesse intervalo, propriamente em
1951 é que se dá a fundação da Igreja Quadrangular. Entre os elementos que a distingue
das demais há a ênfase na cura divina, o dom de falar em línguas associado ao batismo
do Espírito Santo e à liderança vinculada em boa parte às mulheres. Ainda como
estratégia proselitista, além de enfatizar a cura, essa denominação notabilizou-se pelo
intenso uso do rádio e pela pregação itinerante com o uso de tendas de lona,
aproximando o público dos pregadores.
Esse período também marca uma certa emancipação dos missionários brasileiros às
organizações estrangeiras, criando e difundindo suas próprias organizações,
desencadeando a segmentação. A relação com a sociedade se dinamiza e em meio a
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dezena de outros grupos menores surgem Brasil para Cristo (1955, SP), Deus é Amor
(1962, SP) e Casa da Bênção (1964, MG).
A terceira onda começa na segunda metade da década de 1970, ganha força nos anos 80
e continua em processo de crescimento até os dias de hoje. Seus principais
representantes são a Universal do Reino do Reino de Deus (1977, RJ), a Internacional
da Graça de Deus 1980, RJ), a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1976, GO) e
a Renascer em Cristo (1986,SP). Seus líderes são pregadores nacionais; caracterizam-se
no plano teológico por enfatizar a guerra espiritual contra Satanás, por difundir a crença
de que o cristão deve ser próspero (Teologia da Prosperidade), a cura física e emocional,
além de orientarem sob atitudes que o adepto deve tomar para a resolução de problemas
familiares, afetivos e de sociabilidade, como o desemprego. Nesse contexto, como num
“pronto socorro mágico” passam a responder as necessidades imediatas não apenas das
camadas mais pobres, mas também dos estratos médios da população, incluindo
empresários, profissionais liberais, atletas e artistas.
É fácil, diz Rolim (1985) perceber nas pregações e testemunhos nos cultos pentecostais
como o sentir toma todo um plano principal em que se insere a crença no poder de Deus
e na compensação futura. De maneira global, o pentecostalismo (Souza, 2006)
representa um tipo de cristianismo desinteressado da doutrina e focado no emocional, na
vivência do sobrenatural. Uma religião que dá pouca relevância ao fator intelectual
formador de seus membros e muito mais aos sentimentos cotidianos. Daí os sinais como
a glossolalia, os exorcismos, os milagres, as curas emocionais e físicas serem tão
repetidamente ecoadas e divulgadas nos cultos e através dos próprios meios de
comunicação mantidos pelas diferentes denominações.
O teórico Antônio Flávio Pierucci (2005) diz ainda que há dois conceitos-chave para
entender melhor essas comunidades modernas: reavivamento (do inglês revival) e
“conversão individual”. Os cultos não contam com uma liturgia fixa como nas igrejas
católica e luterana, caracterizando por uma maior liberdade. Há elementos regulares
constantes: bandas de louvor tocando, orações espontâneas, atendimento individual dos
obreiros às pessoas da igreja e às que chegam pela primeira vez, atendimento individual
às crianças por meio das escolinhas. Cada congregação tem sua independência,
inclusive com a promoção de cursos bíblicos. Há ainda evangelização por parte dos
obreiros e demais membros convidados a doutrinar em cadeias públicas, praças, pontos
de prostituição e de drogas etc.
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Além de preconizar a salvação por meio da conversão, o batismo nas águas (por
imersão como os batistas) o pentecostalismo, conforme reitera Pierucci (2005) se
alicerça num terceiro estágio, o batismo no Espírito Santo, que acaba sendo um traço
distinto como a que os discípulos tiveram em Pentecostes, registrado no livro de Atos
dos Apóstolos capítulo dois (Almeida, 1993). Os que são batizados no Espírito Santo
descobrem biblicamente que possuem dons do discernimento, o de profetizar, o dom de
cura e o de línguas estranhas etc. Mas embora os pentecostais creiam na cura pela fé,
não recusam tratamentos ou cuidados médicos. Nem tampouco de especialista no campo
emocional como psicólogos.
3. Breve contexto histórico: pluralismo, identidade e diversidade cristã no Brasil
Depois de quase quatro séculos como uma nação oficialmente católica, onde o clero
fazia parte do funcionalismo público remunerado pelo Estado (Pierucci, 2005), o Brasil
assistiu no final do século XIX, quando a monarquia foi substituída pelo regime
republicano (1889), o rompimento com o sistema de padroado, separando a Igreja
Católica do Estado nacional. Desde então, este foi declarado laico, isto é, religiosamente
neutro, religiosamente isento, religiosamente abstrato. E a primeira constituição de
1891, sela, pelo menos até agora, a moderna liberdade de culto. Isso significa “o
respeito a todas as formas de expressão religiosa, o respeito escrupuloso às convicções
mais íntimas de um ser humano, a liberdade de consciência” (Pierucci, 2005, p.302)
Continua o autor, a liberdade de culto implica ainda outras liberdades tão fundamentais
para a vida social quanto a liberdade de pensamento como a liberdade de reunião, de
associação, de expressão coletiva e, talvez a mais importante de todas, a livre
concorrência entre as organizações religiosas.
Daí o cenário de hoje se estabelecer dentro de um pluralismo religioso sem precedentes,
“energizado por um processo de conversão e reconversão muito complexo e dinâmico,
com os mais diferentes movimentos de reavivamento das religiões tradicionais, além da
incorporação de novas formas de religiosidade”2 (Pierucci, 2005, p. 302). De acordo
com o teórico, por força da intensa concorrência religiosa, que se instalou no país, os
brasileiros tendem a fazer de si a imagem de uma nação multicultural, etnicamente
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Conceito relevante para se analisar os fenômenos religiosos. Entende-se por religiosidade a forma e o
sentimento com que cada indivíduo vive suas crenças e práticas religiosas, independente de ele estar
filiado a uma instituição religiosa. Tal qual a identidade, a religiosidade pode ser inconstante, sujeita a
questionamentos existenciais, a pressões e incentivos de um grupo, a circunstâncias. (Bellotti,
2004,p.110)
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heterogênea e não raro hibridizada, em decorrência desse pluralismo em matéria de
religião. “E isso é bom... mais que um país católico, o Brasil parece se tornar cada vez
mais um país cristão...”. (Pierucci, 2005, p. 303).
Mas, afinal, o que fazem as pessoas a mudarem de religião? Uma pesquisa feita na
cidade de São Paulo sobre filiação religiosa², em dezembro de 1995 pelo Datafolha,
recolheu respostas sobre as razões que levaram as pessoas a se transferirem para outros
seguimentos religiosos. As cifras revelaram o seguinte: 50% dos entrevistados diziam
que procuraram a religião atual por questões espirituais e de identidade, ou por
insatisfação com a religião anterior. Outros 25% disseram que chegaram até sua religião
atual procurando pela cura de doenças e vícios, ou porque queriam emprego e alguma
folga financeira, casa para morar etc. Cerca de 4% justificaram sua mudança por razões
estéticas, por gosto; outros 4% falaram que queriam conhecer alguma coisa diferente,
por curiosidade. Do levantamento, 2% afirmaram que queriam ter uma religião que
fosse capaz de resolver seus problemas. Os dados só fazem revelar o quanto a conversão
está vinculada a razões de ordem prática e individual, o que denota que as pessoas não
hesitam em mudar de religião para atender algum de seus reclamos. (Pierucci; Prandi,
1996, p. 262).3
Com a pluralidade, o trânsito religioso também é um fator que faz parte da constituição
da identidade religiosa de inúmeros brasileiros, tendo em vista que “as pessoas possuem
religiões e não vice-versa, a identidade religiosa é uma trajetória que pode incluir idas e
voltas (Freston, 1993, p. 28 apud Bellotti). É nessa colocação de Freston “idas e voltas”
que a autora salienta que a identidade evangélica não é tida como imutável,
caracterizada por exemplo por cristãos herdeiros da Reforma que não aceitam a
mediação entre Deus e o ser humano, mas é sobretudo dinâmica, não estanque. A
identidade evangélica é sim tomada como algo que se constitui de forma relacional. Nos
cultos, nas orações, nos louvores, o sentimento de pertença precisa ser renovado a cada
dia. Num país de cultura católica, “ser evangélico requer um constante aprendizado,
dentre outras maneiras, por meio de produtos de mídia”. (Bellotti, 2004, p.110)
4. Comunicação no altar: a explosão proselitista e o cenário de ‘guerra santa’
3
A amostra, desenhada para ser representativa da população adulta da cidade, compreendeu 1.079
entrevistas. Outra amostra de 421 casos, com inclusão intencional, permitiu estimar valores para os
grupos minoritários pouco presentes na primeira amostra. A preparação do questionário contou com a
assessoria do sociólogo Ricardo Mariano.
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A ordem para a evangelização encontrada no livro de Marcos, capítulo dezesseis
versículo quinze (Almeida, 1993) “Ide por todo mundo e pregai o evangelho a toda
criatura” parece ter encontrado por parte dos pregadores, na sociedade do
conhecimento, um imperativo tecnológico apropriado tendo em vista a programação
religiosa abundante no cenário televisivo. “A centralidade da cultura de consumo e das
lógicas de mercado afetou as formas de inserção das igrejas na vida social”, atesta
Santos (2004, p. 170) ao desvelar a trajetória de ascensão das igrejas no universo
comunicacional. Embora as denominações pentecostais existam desde o início do século
XX, só agora, notadamente na década de 90, diz ela, vem conquistando expressiva
participação política e econômica e, conseqüentemente, midiática.
Por sua vez, a Igreja católica que manteve a supremacia a maior parte do século XX
começa a sofrer o revés da concorrência pentecostal. O reconhecimento da importância
dos meios de comunicação como veículos evangelizadores data da década de 1960,
período em que Assembléia de Deus, Igreja Adventista do Sétimo Dia e Igreja Católica
dividiam um espaço quase harmônico em outorgas de rádio. No caso da Igreja Católica,
esse reconhecimento veio a público em 1963, quando o Papa Paulo VI publicou um
Decreto em que eram estabelecidas as condições iniciais para a atuação católica na
mídia. Paralelamente as ações do vaticano, as articulações no universo pentecostal se
tornam igualmente mais expressivas. É quando surge nos Estados Unidos, o conceito de
igreja eletrônica. “Sustentada na retórica dos pastores, a igreja eletrônica mostrou-se um
instrumento de convencimento e conversão mais eficaz que templos e igrejas” (Santos,
2004, p 172).
Em sua tese de doutorado, Susy dos Santos (2004), pontua ainda que até os anos 80,
diferentemente do caso das rádios, raras eram as emissoras de TV de propriedade das
igrejas. As primeiras obtenções de outorgas ocorreram na esteira da transição do regime
militar, como é o caso da TV Sudoeste, outorgada em 1979 em Pato Branco-PR,
pertencente à Fundação Cultural Celinauta, ligada aos padres Franciscanos; ou da TV
Rio, no Rio de Janeiro, outorgada ao Pastor Batista, Niltondo Amaral Fanini, em 1983.
É efetivamente nos últimos anos da década de 1980 que começa a acontecer uma
corrida mais intensa das igrejas para a televisão. Desta feita, em 1989, com a obtenção
da TV Record pelo bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, constituise o marco de uma igreja eletrônica em atividade no país.
Passado pouco mais de uma década, dados recentes revelam que no Brasil há 15 canais
religiosos pertencentes a dez denominações religiosas, exibidos tanto na TV aberta
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quanto nos pacotes de TV por assinatura. Além disso, as igrejas compram também
espaços de programação em diversos canais laicos. Em dezembro de 2003, eram
proprietárias de 12,6% das concessões de geradoras de TV aberta e de 14,3% das
permissões de RTV no país. (Santos, 2004)
Cabe salientar que a Rede Record muito embora figure como o mais evidente exemplo
de inserção religiosa na televisão aberta, em razão de sua programação nitidamente
comercial, o canal não pode ser considerado de natureza exclusivamente religiosa. Há
que se distinguir as retransmissoras afiliadas que pertencem a empresários e que não
estão necessariamente vinculados à Universal.
Todo esse alarido em torno da expansão evangélica não supera, contudo, a participação
católica no cenário midiático. A preocupação com a concorrência serviu de impulso
para a adesão católica aos princípios de igreja eletrônica. Canais como Rede Vida, TV
Canção Nova e TV Século 21 Educativa, além de suas retransmissoras são parte disso.
Assim, os meios de comunicação passam a ser vistos como espaços estratégicos não só
na conquista de adeptos, mas também “como ferramenta de publicidade para produtos
especificamente direcionados ao consumidor religioso. Nesta adesão, a lógica comercial
de concorrência ganha um estatuto divino de ‘guerra santa’.” (Cunha 1999, p. 5 apud
Santos, 2004, p. 178) Na esteira desse entendimento, para além do dízimo, o adepto
também se torna patrocinador da obra de Deus. De acordo com o líder da Igreja
Internacional da Graça de Deus (IIGD), missionário R.R. Soares, patrocinar a
programação da televisão da Igreja é “um chamado de Deus para salvar o mundo” e, na
lógica da Teologia da Prosperidade, todos que respondem ao chamado serão
recompensados.
Em termos de audiência, quando se exclui a Rede Record da categoria, os canais
religiosos não têm expressão significativa. Por outro lado, o volume de negócios e a
variedade dos produtos que advém dessa Indústria Cultural são significativos. Além da
participação na TV aberta, possuem rádios, editoras, gravadoras, operadoras de TV por
assinatura, provedores de acesso à Internet e portais nos quais são comercializados
diversos produtos.
De acordo com a revista Veja, em 2002, foram vendidos oito milhões de discos
religiosos, representando 14% das vendas da indústria fonográfica. No mesmo ano,
segundo a revista, as editoras religiosas alcançaram um faturamento de R$ 178 milhões.
Em junho de 2003, uma primeira medida foi tomada no sentido de maior
comercialização de canais essencialmente religiosos. Trata-se da nomeação do
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publicitário, Nizan Guanaes, para coordenar o canal TV Canção Nova, da Renovação
Carismática Católica. Nizan já tinha recebido uma série de autorizações de
retransmissoras (RTVs) quando coordenava a campanha de José Serra, candidato do
PSDB a presidência da república. Estas RTVs se tornaram retransmissoras da Canção
Nova, enquanto o publicitário prepara novos formatos para a programação. (Santos,
2004)
Além dos canais abertos retransmitidos pelas operadoras de TV por assinatura, há os
canais por satélite como o JesusSat, da Assembléia de Deus, ou o TV AD Sat e o Win
Time de TV, da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que também são incluídos em pacotes
de assinatura. No concentrado mercado de DTH, com somente nove outorgas no país e
apenas três em operação – SKY, DirecTV e TECSAT -, duas delas pertencem às igrejas
eletrônicas. A primeira é da Rádio e Televisão Record S.A. e, a segunda, da Rádio e
Televisão Modelo Paulista LTDA. Os líderes religiosos Edir Macedo e R.R. Soares,
representantes respectivamente da IURD e IIGD, detém 90% das cotas das empresas e
suas esposas, os 10% restantes. De acordo com informações da revista Pay TV, o grupo
de comunicações comandado pelo missionário Romildo Ribeiro Soares pretende
investir US$ 18 milhões na implantação do serviço de assinatura por satélite.
Destarte, o rápido crescimento das chamadas igrejas eletrônicas, aliado a ausência de
controle do conteúdo transmitido se mostra preocupante, conforme reitera Santos
(2004), a medida que em lugar de combater podem disseminar preconceitos religiosos e
morais. E lembra: alguns desses veículos estão definidos na outorga como de natureza
educativa.
Considerações finais
Há condicionantes sócio-históricas visíveis, que ajudam a interpretar a problemática em
torno do fenômeno contemporâneo de expansão proselitista e suas ramificações no
campo da comunicação. De um lado, é necessário assinalar o vácuo político assistencial
deixado pelo Estado, que como aparelho jurídico administrativo parece distante de sua
pretensão de assegurar racionalidade e equidade de valores, além da própria
industrialização, setor que não foi capaz de absorver as novas levas ocupacionais,
embora continue aumentando sua capacidade produtiva com o uso de novas tecnologias.
Soma-se a isso, a concentração de massas populares nas cidades que levam a situações
de grave desorganização social e, com ela, o irromper de três limites inerentes a
existência humana: a contingência, impotência e a penúria, segundo Thomas O’Dea
13
(Martelli, 1995). Por outro lado, está a imbricação desses elementos factuais servindo de
brecha para que a instituição religiosa “supra aquilo que o homem profano não dá... É
nesse momento, quando... a racionalidade econômica frustra, a certeza dos propósitos
rui, que as alternativas religiosas se mostram como respostas” (Pierucci; Prandi, 1996,
p.17).
Nessa lacuna, as instituições religiosas elegem “políticas de atendimento”, convertendo
a cultura midiática na seara em que as demandas temporais dos indivíduos serão
resignificadas por meio da via doutrinária. Assim, a esfera midiática, como mediadora
no processo de proselitismo, parece contribuir para a instauração de novas formas de
religiosidade. É como se a mídia, mediante toda sua diversidade eletrônica, digital e
impressa passasse a servir como instrumento decisivo na organização de novas
estratégias táticas e simbólicas das igrejas.
Ainda quanto ao quadro de amplitude audiovisual das igrejas, é fato que em meio aos
mais variados atores da sociedade civil que lutam por espaços mais qualificados, a
influência expressiva da expansão das igrejas constitui-se a grande novidade
contemporânea, tal a abundância de programas televisivos religiosos. As igrejas
eletrônicas, especificamente às fundadas na terceira onda pentecostal, “vêm alcançando
importante espaço a partir da sintonia entre as regras econômicas globais e a tradição de
clientelismo político nacional.” (Santos, 2004). Essa realidade comunicacional
proselitista suscita reflexão cuidadosa, à medida que, de um lado, chama a atenção para
um conteúdo que, no afã de atender a determinado grupo, possa instigar ou suscitar
manifestações de intransigência em outros ramos sociais. Por outro lado, há
necessidade de argúcia em como ler esta mídia religiosa, representativa de grupos que a
adotam, com práticas e crenças distintas, sabedores de que o papel de mediação social e
teórica com o popular, com a vida cotidiana, com os meios, cabe à cultura.
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