2 de maio de 2013
“Um andaime?”
“Andaime”, repetiu Rigo, recitando a lição. “Eu pego muito peixe. Eu
trago peixe pra casa que nem sei o nome”. Rigo interrompeu-se. Parecia
aturdido, lembrando-se do começo, antes que lhe viessem os nomes. “Minha
mulher, ela diz o nome ‘geladeira’ não muito bom. Ela só aprendendo. Ela
diz que é ‘o museu do peixe morto’ .”
A cada 15 - Charles D’Ambrosio
“Gosto disso”, diz Ramage. “O museu do peixe morto.”
“Não comemos tudo que pego.”
“Fico surpreso que vocês tenham comido alguma coisa.”
A porta do bar se abriu, e a estrela loira tomou posse de um banco,
perto da caixa registradora. Seu drinque veio num cálice onde o bartender
fincou um para-sol de papel desbotado, reclinado sobre a borda do vidro
coberta de granizo. Era um enfeite de verão, mas não conseguia acrescentar
muita alegria ao bar escuro e semivazio.
“Em El Salvador”, disse Rigo, “você vai à praia com as crianças, no domingo, e fica lá o dia inteiro. A areia é limpa e branca, e vem um cara com
las ostras pra você. Limón, tabasco, pimenta, você vai comendo sem sentir”.
“Posso até sentir o gosto”, disse Ramage.
“Certamente”, confirmou Rigo. “Aqui, a praia é lixo. Tudo vai dar lá.
Agora de noite, acho uma porta de casa. Uma porta da casa de um homem,
Ramage.”
Rigo levantava as mãos acima do bar, olhando o espaço vazio que
elas criavam. Parecia estar imaginando a coisa que suas palavras tinham
acabado de descrever, tentando cercar aquela alucinação, mas suas mãos
estavam tensas, de tão frustradas. Não conseguia reter a coisa, e a imagem
que se formara em sua mente flutuou para longe. Rigo agarrou sua cerveja
e terminou-a. Pediu outra.
“Eu não come na praia aqui”, ele disse. “Mas o oceano ainda é oceano”.
Cruzaram os gargalos de suas garrafas, numa desleixada saudação de
espadachim, e Ramage bebeu, com a imagem da água azul e do mar aberto
à sua frente. A dor em seu corpo tinha se transformado num zumbido agradável na superfície da pele. Sentia-se relaxado e vazio.
“Eu não sabe que tipo de filme é esse”, Rigo disse.
“Não”, respondeu Ramage. “Não te contei”.
“Agora eu sabe”, disse Rigo.
Ramage bebeu seu uísque e girou o copinho vazio como um pião num
eixo inclinado. O copo bamboleou violentamente, parou, e ele girou-o novamente. Sentia-se dividido entre manter a sua dignidade ou encher a cara.
Cada palavra representava o fim de uma longa jornada. Em cada sentença,
arriscava lealdades.
“Estou surpreso com o jeito das coisas”, disse Rigo.
Ramage disse, “São só três dias”.
“Salvador”, disse Rigo, erguendo sua garrafa.
2 de maio de 2013
“Salvador”, disse Ramage.
Outro drinque, e mais outro, Ramage não conseguia acompanhar.
“Eu sem escolha, eu preciso ir embora, ou morro. Eu morro, minha
família morre. Eu venho aqui. Não sei pra quê. Pra quê, Ramish — pra quê?”
“Você vai voltar algum dia?”, perguntou Ramage.
“Eles estupram as mulheres com ratos”, disse Rigo. “Um homem na
minha cidade tem um prego” — ele martelou o ar — “na sua cabeça, no
seu-”, e com um punho fechado ele bateu na testa.
“Cérebro?”
“Sim, ele não falar com um prego no cérebro.”
Rigo imitou uma arma com a mão, seu polegar disparou rajadas de fogo,
enquanto apertava os olhos e perseguia um alvo pela fileira multicolorida
de garrafas brilhantes, atrás do balcão.
“Eles matam meu irmão”, ele disse. “Mas vou pra casa, Ramage. Um
dia vou pra casa.”
Deu um tapa no balcão e se levantou. Ramage o observou trançando
em direção ao bar, parecia que ele tinha, no máximo, um vago palpite sobre
a direção em que ficava a saída.
Em vários momentos, Ramage tentou se lembrar sobre o que ele e a
loira estavam conversando. Mas as palavras escapavam de sua cabeça assim
que saíam da boca, e ele sempre voltava ao presente esvaziado. Quando o bar
começou a fechar, ela sugeriu que comprassem uma garrafa, fossem passear
no deque, e continuassem bebendo.
“Tem razão”, estava dizendo. “Meu nome não é Desiree Street — meu
Deus! — mas deixa pra lá, prefiro não falar do assunto. Em vez disso, vamos
inventar um nome para você.”
“Me chame de Payne, Payne com y”, disse Ramage. “Payne Whitney.”
“Payne é legal, um bom nome pornô. Payne-com-ípissilon-Whitney.
OK, Payne, pra onde vamos?”
“Está sentindo esse cheiro?”
Conforme iam deixando a praia e se afastando do oceano, o odor úmido
e enjoativo de algas era substituído pelo árido e amplo aroma do orégano
cozinhando, na fábrica de temperos. Era como se tivessem entrado numa
latitude nova e mais sensata. Foram andando por uma região da periferia
da cidade onde as calçadas eram rachadas e lajes de concreto se erguiam,
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abrindo caminho para o mato e as raízes de árvores. Um barco de madeira
jazia, virado de lado, num terreno baldio, um gato de olhos amarelos os
observava, da cabine sem vidro do piloto. Bem à frente, do outro lado da
rua, havia um prédio de tijolos dominado por um relógio quadrado, lá no
alto. O relógio tinha um mostrador branco com números romanos, e os
ponteiros negros ficaram presos no agradável horário das sete — um tempo
de começos. Começo de um novo dia ou de uma nova noite. Inclinaram as
cabeças para dentro de uma janela, aberta obliquamente por uma corrente.
Fumaça azul subia dos fornos, se espalhava e era sugada para fora, por um
exaustor que movimentava suas pás, zumbindo. Ramage, muito bêbado,
pediu silêncio levando um dedo aos lábios. “Olhe”, cochichou, “nativos”.
Dois homens e uma mulher estavam de pé, em frente a uma grande máquina
que girava. Vestiam-se com aventais brancos, chapéus de papel e máscaras
cirúrgicas, atrás deles, garrafas de vidro se enchiam com tempero, e eram
jogadas para baixo por um conduto de metal e levadas por uma rampa de
borracha para caixas já prontas, e as garrafas, tilintando, compunham uma
espécie de jazz de tempero latino, que se espalhava pela fábrica cavernosa.
Partículas de orégano choviam numa poeira verde que se depositava no chão
de cimento, uma fraca trilha de pegadas era visível, com o rastro dos tênis
impresso no tempero verde. Os homens e a mulher estavam cobertos com a
poeira verde, também. Ramage se inclinou, aspirou o ar quente e fragrante,
e começou a sufocar e tossir. A mulher dentro da fábrica, rindo ao fim de
alguma piada ou história, tocou levemente o cotovelo do homem a seu lado.
Eles se enrijeceram e o riso os abandonou. Olharam indecisos para Ramage
e Desiree, na janela, então, arriscaram um aceno. Ramage acenou de volta.
“Alguém se casou”, disse Desiree, quando eles voltaram ao motel. Ela
apontou o carro do vizinho.
“Estão em lua de mel”, disse Ramage. “Por isso vieram a esse paraíso”.
“Você está de porre.”
“Vamos fazer o seguinte.”
“O seguinte o quê?”
Ramage botou um dedo nos lábios. Conduziu-a ao quarto do vizinho,
testou a maçaneta e virou. Lá dentro, o homem e a mulher dormiam nus
sobre um emaranhado de lençóis, com o bebê aninhado entre eles, como
peça de um quebra-cabeças. Alguma coisa dentro de Ramage percebia que
ele estava vergonhosamente bêbado, e sufocou sua vontade de gritar. Fechou
a porta sem fazer barulho.
2 de maio de 2013
Colocou a chave na fechadura do seu quarto, abriu a porta, e então
caiu na soleira e engatinhou pelo tapete até a bolsa de ferramentas de lona.
Abriu a bolsa e apalpou entre o emaranhado de linhas de chumbo, chaves de
boca, tocos de lápis e fitas métricas, até achar sua arma. Um pouco mais de
procura produziu um estojo de cápsulas. “Olhe”, ele disse. Deitou de costas
como uma criança brincando, segurando a arma numa mão, as cápsulas na
outra. Bateu a arma e o estojo um contra o outro, e as cápsulas choveram
em sua cara.
“Alô, revólver”, disse, arremedando a voz da bala. “Olá, bala”. O cano
de polímero negro balançou quando o revólver perguntou, “Quer casar
comigo?”
“O que é isso, um fetiche?”, perguntou Desiree.
“Vamos ter um bebê!”, disse a bala.
“Me encha com sua semente”, respondeu o revólver.
Ramage carregou o revólver com uma cápsula. A bala fez um clique
satisfatório, como uma chave virando na fechadura.
“Estou grávida”, anunciou o revólver.
“Vou embora”, disse Desiree.
“Eles tiveram um bebê. Os recém-casados tiveram um bebê”, Ramage
pulou na cama e acenou com a arma, chamando Desiree.
“Por que você não me dá essa arma?”
“Vim aqui pra me matar.”
“Por quê?”
“Por que me matar?”
“Não, por que vir aqui?”
Ela saiu, deixando a porta aberta, e Ramage continuou lá por um tempo,
deitado na cama, ouvindo o barulho das ondas do outro lado da estrada. Sua
performance tinha sido grotesca. Ele se humilhara e agora se sentia enojado,
mortificado. Ficou lá se odiando e ao mesmo tempo olhando a porta aberta
e esperando que ela voltasse. Chegara bem perto de se sentir uma pessoa
decente, naquele momento em que olhava pela janela da fábrica de temperos, ao lado de Desiree, observando a silenciosa poeira verde girar pela sala
cavernosa. Mas agora não conseguia mais parar suas negras ruminações. Sua
mente girava e girava, deplorável, até que finalmente se imaginou cruzando
a estrada, entrando no mar e puxando o gatilho. Se perdesse a coragem e se
encolhesse, explodindo apenas uma parte da cabeça, o oceano o afogaria.
Não era raro que ficasse pesando esses escrúpulos. Era como um problema
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de matemática, no qual se trabalhava até que a conta desse certo. Regina,
sua amiga do hospital, tinha se vestido cerimoniosamente com o roupão do
avô, ensopado a fazenda atoalhada em gasolina e então riscado um fósforo,
imolando-se. Mas ela só se lembrava do barulho da combustão, do vento
uivando dentro das chamas. Foi por isso que quis parar. Rolou pelo jardim,
espojando-se desesperadamente na terra e extinguindo as chamas. Não queria
salvar sua vida, nem escapar da dor. Só queria que o barulho cessasse. Ficou
horrivelmente desfigurada. Sua boca virou um buraco murcho, os olhos
pendiam das órbitas derretidas, e sua pele toda marcada era amarrotada e
lustrosa, vermelha e crua, como se tivesse sido escalpelada e depois virada
pelo avesso. Mas dois anos depois de ter riscado o fósforo, ainda falava apenas
daquele horrível barulho.
Charles D’Ambrosio nasceu em 1958, em Seattle, e hoje vive em Portland, Oregon. Graduou-se no Programa Internacional de Escritores da
Universidade de Iowa, onde foi, mais tarde, um dos professores visitantes.
O museu do peixe morto foi finalista do PEN Faulkner Award, ganhou o
prêmio Whiting Writer’s Award e também o de Melhor Livro de Ficção
concedido pelo estado de Washington. D’Ambrosio recebeu, ainda, bolsas
de criação literária de prestigiadas fundações americanas,
como a Fundação Lannan.
Dele, a Grua Livros publicou A PONTA e O MUSEU DO PEIXE MORTO.
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