Título: Projeto Fazer é preciso: Desenho industrial no contexto socioeconômico das
comunidades excluídas.
Autores: Luiz Eduardo Cid Guimarães [email protected] Annamaria Laurentino
Teodósio [email protected] Rafaela de Andrade Carvalho
[email protected]
Área temática: Tecnologia
Instituição: Grupo de Desenho Industrial e Desenvolvimento Sustentável – GDDS.
Departamento de Desenho Industrial. Centro de Ciências e Tecnologia. Universidade
Federal de Campina Grande.
Resumo: O artigo descreve uma intervenção em andamento na Cooperativa dos Trabalhadores de Materiais
Recicláveis - COTRAMARE. A cooperativa, localizada no “lixão” de Campina Grande - Paraíba, é formada
por 52 membros e contém um grupo de produção de vassouras confeccionadas em garrafas de plástico PET. O texto argumenta que, para intervir nesse contexto o desenhista industrial deve considerar o
conhecimento tácito e a experiência de vida dos membros da comunidade, aspectos fundamentais para uma
intervenção eficaz e sustentável.
Palavras chave: desenho industrial, comunidades excluídas, meio ambiente, geração de emprego e renda.
Abstract: The paper describes an ongoing intervention at the Recyclable Materials Workers’ Cooperative –
COTREMARE. The cooperative, based at the “lixão” (big rubbish dump) of Campina Grande- Paraíba
State is composed of 52 members and operates a production group manufacturing brooms made from PET
bottles. The text argues that to intervene in this context the industrial designer has to take into consideration
the community members’ life experience and tacit knowledge, crucial aspects for an efficient and sustainable
intervention.
Keywords: industrial design, excluded communities, environment, generation of employment and wages.
Objetivo:
Desenvolver a capacidade de inovação técnica da Cooperativa dos Trabalhadores de
Materiais Recicláveis – COTRAMARE. .
Introdução
O Desenho Industrial – DI é uma atividade que surgiu no Brasil há aproximadamente 40
anos. Apesar de sua importância para o desenvolvimento tecnológico dos países menos
industrializados, essa atividade tem dado prioridade aos aspectos comerciais em detrimento
das demandas sociais.
Entendemos que o DI pode desempenhar um papel importante no atendimento das
demandas das populações excluídas, através da incorporação de preocupações ecológicas
na atividade projetual. Isso inclui, entre outras coisas, a redução do uso de matéria prima
com a conseqüente redução do consumo de energia e a reciclagem ou reutilização de
materiais e produtos.
Outro aspecto importante dessa atividade é o seu potencial no apoio às organizações
populares, em particular na geração de emprego e renda. Nesse contexto o DI pode atuar,
através de intervenções que envolvam a participação das comunidades envolvidas, no
desenvolvimento da capacidade de inovação técnica dessas unidades produtivas. Criar ou
desenvolver essa capacidade é, em nossa opinião, fundamental para o desenvolvimento e a
sobrevivência de pequenas unidades de produção.
O Desenho Industrial
O desenho industrial, atividade relacionada à concepção de produtos, tem sido utilizado
como uma ferramenta para estimular o consumo. Nas décadas de 1960 e 70 ocorreram
algumas manifestações de desenho industrial com preocupações sociais. O quadro mudou
gradativamente e na década de 80 a relação desenho industrial/negócios foi enfatizada. A
partir da década de 90 propostas antigas foram resgatadas e conceitos como o "ecodesign" e
design sustentável foram incorporados ao discurso atual.. Esses conceitos questionam o
papel do desenho industrial e sua participação no uso desenfreado de recursos naturais e
propõe novos métodos de projeto onde preocupações com o meio ambiente estejam
inseridas.
Apesar do seu aspecto positivo, esse discurso teve repercussão reduzida na sociedade e nas
escolas de desenho industrial, manifestando-se apenas em projetos individuais. Poucas
organizações têm uma política explícita e eficaz de "ecodesign" como parte da estratégia
curricular e administrativa. Recentemente esse discurso conseguiu penetrar, como
obrigação legal ou estratégia de marketing, em algumas empresas, principalmente nas de
grande porte. O problema maior reside na grande quantidade de micro e pequenas empresas
que não percebem a importância de suas atividades no impacto sobre o meio ambiente.
No caso das micro empresas, em particular no setor informal e nas empresas sociais, o
desenho industrial tem exercido pouco ou nenhum impacto. A literatura científica sobre a
área de DI dispõe de poucas pesquisas relacionadas à aplicação do desenho industrial em
projetos comunitários, envolvendo populações excluídas. Os textos que mais se aproximam
dessa temática são os que abordam o problema do artesanato. A intervenção do desenho
industrial no artesanato pressupõe uma abordagem diferente da utilizada nas "empresas
artesanais". Essas empresas também são muito pequenas e usam de tecnologia rudimentar.
Porém, fabricam produtos industriais com funções específicas.
Nossa linha de trabalho baseia-se nas idéias de autores (Papanek 1985, Gui Bonsiepe 1973,
Vance Packard 1991) que questionam o papel do desenho industrial na sociedade. Para eles
o desenho industrial cumpre um papel social importante e deve direcionar seu potencial
para projetos que tenham uma prioridade social. No caso dos países menos industrializados
essa atividade deverá considerar como prioridade o suprimento das necessidades básicas da
população excluída.
Possibilidades para o Desenho Industrial no Brasil
É do conhecimento geral que existe uma grande distância entre a universidade e a
sociedade. Apesar de algumas ações para reduzir esse afastamento, muito ainda tem que ser
feito face ao atual quadro socioeconômico do Estado da Paraíba. Acreditamos que a
experiência de trabalho com a comunidade do lixão é um desafio para todos os envolvidos,
pois requer dos participantes que operem dentro de um quadro de limitações materiais e
financeiras. Além disso, exige dos participantes uma mudança de postura em relação à
atividade de desenho industrial. O envolvimento com outras áreas do conhecimento, em
particular com as Ciências Humanas, traz novos elementos para a realização do projeto de
produtos.
A coleta de resíduos sólidos dos depósitos de lixo urbano é uma atividade viável que
possibilita a sobrevivência de milhares de brasileiros. Há alguns anos essa atividade
empregava um número maior de pessoas, pois a remuneração era melhor do que nos dias
atuais. Mudanças na legislação e a necessidade de reciclagem de produtos industriais
atraíram muitas pessoas para a catação. Porém, devido à competição e aos baixos preços
pagos pelos materiais, fica cada vez mais difícil tirar o sustento dessa forma. Por exemplo,
catadores autônomos no “Lixão do Roger” em João Pessoa conseguem tirar em torno de
R$30 por mês (Oliveira, 2002). Essas pessoas chegam a trabalhar mais de 12 horas por dia
coletando todo o tipo de resíduos sólidos. Em Campina Grande a situação não é muito
diferente. Existem, de acordo com a Secretaria de Assistência Social, cerca de 29 mil
famílias sobrevivendo com uma renda de meio salário mínimo (Silva 2002). Mais de 300
famílias estão envolvidas com a coleta de resíduos no lixão. Em média uma catadora
consegue em torno de R$20,00 por semana (Araújo 2002).
Portanto, está claro que apenas vender os materiais para reciclagem não gera a renda
mínima necessária para que esses trabalhadores sobrevivam. Por exemplo, 1 kg de ferro é
vendido por R$0,04 para o comprador de sucata. Portanto, a proposta é transformar esses
materiais em produtos, tanto para uso da comunidade em geral, quanto para gerar renda
para os membros da COTRAMARE.
Metodologia
O projeto, iniciado efetivamente em agosto de 2002, terá a duração de seis meses e foi
dividido em 12 etapas. A intervenção se dará, entre outras atividades, através do
desenvolvimento de novos produtos para o grupo de produção de vassouras, melhoria do
leiaute da produção e dos processos produtivos desse grupo. Inclui também a proposta de
criação de novos grupos de produção e a capacitação de membros da COTRAMARE.
Pretende-se realizar uma ação integrada de desenho industrial, baseada em uma estratégia
holística e transdisciplinar. Essa estratégia não considera desejável a realização de
intervenções pontuais que ignorem a complexidade do contexto. Dessa forma percebe-se o
desenho industrial como atividade central que tem a função de amalgamar diversas
intervenções das diferentes áreas do conhecimento. Como foi mencionado anteriormente, o
projeto pretende estimular a capacidade inovadora da cooperativa. Consideramos essa
capacidade fundamental para o desenvolvimento da COTRAMARE, pois a maioria das
ações planejadas envolve a produção industrial em pequena escala. O projeto tem a
participação de profissionais e leigos em diversas áreas, entre elas a Engenharia de
Materiais, a Engenharia Agrícola, e a Engenharia Civil. Além desses participantes, conta
com especialistas em vídeo e multimídia.
Entre os principais estágios do projeto estão o “levantamento das necessidades” da
cooperativa e da comunidade do Bairro do Mutirão, onde a maioria dos membros reside.
Outra etapa importante é o levantamento antropométrico da população alvo. Atualmente
não existe um estudo das dimensões da população paraibana. Este levantamento é
considerado crucial para o estudo do leiaute e redesenho de postos de trabalho do grupo de
produção de vassouras. Servirá também para auxiliar no dimensionamento dos postos de
trabalho dos futuros grupos de produção.
Outro estágio importante é a pesquisa sobre materiais com potencial de utilização em
produtos. Ficou constatado, nas visitas ao lixão, que os catadores desconhecem muitos dos
materiais encontrados no local. Para isso contamos com a colaboração de duas engenheiras
de materiais.
A capacitação também está sendo contemplada, através de diversos cursos em parceria com
a Prefeitura de Campina Grande e o Governo Federal. Estão incluídos entre os cursos o de
“Introdução ao desenho industrial”, o de “Identificação de materiais recicláveis” e o de
“Comercialização”.
Desenvolvimento do projeto
Até o presente momento algumas ações foram realizadas. Em relação ao grupo de produção
de vassouras, identificaram-se algumas necessidades urgentes. Como prioridade começouse a estudar o leiaute da produção das vassouras. O leiaute atual apresenta uma série de
problemas que influem no fluxo da produção e aumentam o risco de acidentes de trabalho.
Detectou-se também a necessidade de se redesenhar e aumentar a segurança em alguns
postos de trabalho, em particular na serra circular utilizada no corte das garrafas plásticas.
Para isso foram tomadas as medidas dos equipamentos e um modelo em escala reduzida foi
construído. Foram também feitas fotografias do uso dos equipamentos para se identificar os
problemas específicos.
Iniciou-se o treinamento de duas bolsistas para realizar a medição antropométrica.
Conseguiu-se uma cadeira de medição e, a partir de novembro de 2002, pretende-se realizar
medições na comunidade. Paralelamente às atividades de melhoria da produção das
vassouras, identificou-se a necessidade de se difundir o produto de forma mais eficaz. Para
isso foi projetado um expositor que será utilizado em mercadinhos, supermercados e outros
pontos de venda. O produto é composto de uma base e suporte para vassouras e um cartaz
explicando os objetivos do projeto.
A partir de reuniões com os membros da cooperativa ficou claro que o grupo de produção
de vassouras ainda não está sedimentado e que ajustes serão necessários. Um aspecto
importante é a necessidade de criação de novos produtos em PET, pois já existem pelos
menos duas outras fábricas operando em Campina Grande. Pretende-se desenhar outras
linhas de produtos compostas de escovas e outros materiais de limpeza.
Ficou também evidente que o grupo de produção de vassouras não conseguirá empregar um
número muito maior de membros da cooperativa. Portanto, ficou clara a necessidade da
criação de outros grupos de produção. Duas possibilidades estão sendo consideradas: Um
grupo de produção de produtos de papel e um grupo de produção de produtos de vidro.
Entre as razões para a escolha desses materiais está a grande disponibilidade dessas
matérias primas no lixão e o baixo preço de venda. Levou-se também em consideração o
baixo nível de tecnologia para se trabalhar os dois materiais. No caso do papel duas
vertentes foram consideradas:
1. Confecção de papel reciclado;
2. Confecção de produtos em papier maché.
Observações preliminares mostraram que existem boas possibilidades de introdução de
produtos em papel no mercado. No primeiro caso, o mercado de papelaria parece
promissor. Existe a possibilidade de produção de envelopes, cartões de várias espécies,
capas de cadernos, e outros materiais. No momento o problema é dominar a confecção do
papel e repassar a técnica para a cooperativa. A solução desse problema já está sendo
equacionada através de cursos de capacitação que começarão a partir de janeiro.
No segundo caso, as possibilidades também são promissoras. O papier maché, um
composto de polpa de papel, cola e outros materiais, é uma técnica antiga que teve seu
apogeu na época Vitoriana. Nesse período, o material foi utilizado numa grande gama de
produtos que variavam desde bandejas, cadeiras e mesas, até sofisticados modelos
anatômicos. Gradativamente o uso dessa técnica foi reduzido e hoje seu uso se concentra,
principalmente, na área artística. É muito utilizada na confecção de bonecos e pequenos
objetos de decoração. Testes preliminares, realizados no Laboratório de Modelos do
Departamento de Desenho Industrial, apresentaram resultados excelentes que demonstram
o potencial do papier maché em áreas como a construção de mobiliário e outros produtos
utilitários. A polpa de diferentes tipos de papel foi misturada a outros resíduos sólidos
poluentes, que funcionaram como material de reforço. Atualmente o estudo de uma cadeira
está sendo realizado no mesmo laboratório. Potencialmente, inúmeros produtos podem ser
confeccionados com esse material. Na medida que o composto pode ser impermeabilizado,
o papier maché poderá ser utilizado para a confecção de produtos maiores, substituindo
chapas de compensado ou madeira na fabricação de diversos produtos.
O vidro é um material que tem pouco valor como matéria prima, mas que existe em grande
quantidade no lixão. São milhões de garrafas e potes que podem ser transformados em
diversos objetos. Recentemente foi feito um contato com um especialista em Hialotecnia,
que se dispôs a ministrar cursos, ensinado aos membros da COTRAMARE as técnicas de
manufatura de produtos em vidro.
Um dos principais obstáculos para o desenvolvimento do projeto é a falta de recursos
financeiros para a compra de bens de capital. No momento a COTRAMARE não dispõe de
capital de giro e nenhum recurso para investimentos. É necessário que se resolva este
problema o mais rápido possível, pois isso limita as ações planejadas. Nesse sentido
estamos entrando em contato com instituições financiadoras e de desenvolvimento social
como a Companhia de Desenvolvimento da Paraíba CINEP, que se mostrou sensível ao
projeto.
Bibliografia
Araújo, R. “Mais de mil crianças trabalham no lixão.”Diário da Borborema, Especial.
Campina Grande, 12 de outubro de 2002, p.A6.
Bonsiepe, G. Development Through Design. UNIDO/ITD Working Paper. Viena.1973.
Oliveira, W. “Venda de sucata tem lucro pequeno”. O Norte, Economia. João Pessoa, 12
de maio de 2002, p. A5.
Packard, V. The hidden persuaders. Penguin Books. Londres. 1991.
Papanek, V. Design for the real world: Human ecology and social change. Thames and
Hudson. Londres. 1985.
Silva, F. “SEMAS revela que cerca de 29 mil famílias têm renda de meio salário mínimo”.
Jornal da Paraíba, Cidades. Campina Grande, 19 de outubro de 2002, p. 03.
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