1 Interesses, valores e representações sobre ciência e tecnologia dos usuários colaboradores da Wikipédia lusófona: é possível uma ecologia de saberes? Avanço de Investigação em Curso GT01 – Ciencia, tecnología e innovación Autor: Leonardo Santos de Lima (SANTOS DE LIMA, L.). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – Brasil. Mestrando em Sociologia pela UFRGS. Integrante do Laboratório de Difusão da Ciência, Tecnologia e Inovação Social (LaDCIS/UFRGS). Resumo Este artigo, realizado a partir dos resultados iniciais da pesquisa de dissertção em curso “A difusão e aquisição do conhecimento científico e tecnológico na era da web 2.0: é possível uma ecologia de saberes?”, busca investigar os limites e possibilidades dos ambientes virtuais participativos/colaborativos associados à aquisição e difusão de conhecimentos de conteúdo científico e tecnológico no que diz respeito à constituição de espaços capazes de promover dinâmicas favoráveis ao desenvolvimento de uma “ecologia de saberes” (Santos, 2010) entre seus participantes. Nesta investigação, optou-se pelo estudo da enciclopédia virtual Wikipedia em versão lusófona, a partir do qual foram realizadas 24 entrevistas com os principais usuários colaboradores dos artigos do “conteúdo destacado” do site em temáticas de ciência e tecnologia. Palavras-chave: Usuários colaboradores da Wikipédia lusófona. Conteúdo científico e tecnológico. Ecologia de saberes. Resumen Este artículo, basado en los resultados de la investigación en curso “A difusão e aquisição do conhecimento científico e tecnológico na era da web 2.0: é possível uma ecologia de saberes?” examina los límites y las posibilidades de los entornos virtuales de la era de la web 2.0 asociados a la adquisición y difusión del conocimiento científico y tecnológico con respecto a la creación de espacios que promuevan la dinámica favorable al desarrollo de una "ecología de saberes" (Santos, 2010). En esta investigación, se optó por el estudio de la enciclopedia virtual Wikipedia en su versión en lengua portuguesa, a partir de la realización de 24 entrevistas con los productores de los “artículos destacados” en temas de ciencia y tecnología. Palabras claves: Usuarios colaboradores de la Wikipedia en lengua portuguesa. Contenido científico e tecnológico. Ecología de saberes. 1.0 Introdução A rápida disseminação da internet a partir da década de 1990 e a atual proliferação de ambientes “participativos” ou ”colaborativos”, nos quais os próprios usuários são responsáveis pela produção de conteúdo em espaços virtuais de interação continuamente abertos a contribuições, têm tornado essa nova tecnologia cada vez mais relevante na produção, aquisição e difusão de informações e conhecimentos entre os diferentes agentes da sociedade. Vários dos principais sites da atualidade 2 (Facebook, Youtube, entre outros) e demais ambientes da internet como blogs, comunidades, listas de discussão etc., ou incorporam totalmente a dinâmica colaborativa, ou fazem uso de elementos importantes dessa cultura de participação. Da mesma forma, a partir de ambientes como esses, torna-se possível que usuários posicionados fora dos espaços tradicionais da produção científica e tecnológica não só tenham contato com o trabalho dos especialistas, mas também se engajem diretamente na dinâmica de disseminação e aquisição de novos saberes. A ampliação do acesso e a possibilidade de participação ativa nessas dinâmicas, contudo, só podem ser adequadamente compreendidas se forem considerados os valores e práticas sociais definidores de sua organização original e, em boa medida, da fase atual da rede – o período da web 2.0. Essa estrutura cultural, construída ao longo do desenvolvimento histórico da internet, fundamenta-se, inicialmente, na lógica de compartilhamento de seus criadores e primeiros usuários nas universidades norte-americanas nos anos 1960 e no valor da liberdade de acesso e uso da informação do universo hacker. Ambas serão acompanhadas, por sua vez, pela constituição das primeiras comunidades em ambientes virtuais ao longo das décadas seguintes, responsáveis pelo surgimento de formas sociais de uso orientadas pela comunicação horizontal e pela possibilidade de formação autônoma de redes (Castells, 1999 e 2003). Esse conjunto de valores e práticas que constitui a base da “cultura da internet” (Castells, 2003) traz como um de seus elementos principais o fato de apresentar uma série de características distintas (e mesmo opostas) às dos espaços tradicionais de produção do conhecimento científico e tecnológico. Ou mais especificamente: se por um lado o paradigma científico moderno, orientado por valores e representações do “senso comum” da ciência e da tecnologia, conduz à sua compreensão como formas de conhecimento universalmente verdadeiras e independentes de condicionantes externos a seu campo de produção, aliada a uma perspectiva determinista do conhecimento e à perpetuação de privilégios sociais, políticos e epistêmicos (Santos, 2006, 2010 e 2011a), as novas tecnologias, e entre elas a internet, por outro lado, têm sido capazes de diversificar o perfil dos agentes envolvidos, seja nos processos de produção e expressão, seja de circulação e apropriação desses conhecimentos (Nunes, 1995 e Faria, 2001), de modo a potencializar sua democratização. Não se pode ignorar, por outro lado, que a produção e difusão de conhecimentos através da internet permanecem permeadas por um processo de hierarquização de saberes, continuamente produzido e reproduzido pelos agentes sociais, no qual a sociedade, repetidas vezes, subordina-se aos interesses dos produtores da ciência e da tecnologia, em lugar destes lançarem-se ao encontro dos interesses da sociedade. No entanto, não se pode deixar de destacar também que, diante dos valores que fundamentam sua estrutura de organização, os ambientes virtuais participativos/colaborativos da web 2.0 podem vir a se constituir como elementos de fundamental importância na abertura de novas possibilidades no que tange à articulação entre diferentes sistemas de representações, interesses e práticas de saber nos processos de interação voltados à aquisição, difusão, e mesmo à produção de conhecimentos relacionados ao universo da ciência e da tecnologia. A expressão “universo da ciência e da tecnologia” torna-se especialmente interessante, nesse contexto, na medida em que reflete o conjunto de transformações por que passam as dinâmicas que envolvem o conhecimento científico e tecnológico atuais, diante do desenvolvimento de novos espaços, como os acima mencionados, associados a um ambiente de complexidade cujo entendimento é indispensável à apreensão dessas transformações. Ao nos referirmos ao “universo da ciência e da tecnologia”, portanto, queremos trazer à discussão um conceito mais específico, elaborado com vistas a permitir uma melhor compreensão dos fenômenos aqui discutidos: a noção de universo das ciências. Entendemos esse conceito como o conjunto de espaços (e das relações que estruturam esses espaços) onde estão posicionados os agentes sociais interessados no conhecimento científico – isto é, que (conforme o sentido bourdieusiano) de algum modo agem com o desejo de “estar em”, de participar dos “jogos sociais” (Bourdieu, 2008) associados à constituição da ciência –, sob a influência de forças 3 estruturais de diferentes intensidades, desde aquelas produzidas pelos campos sociais (e, em especial, o campo científico) até as relativas aos espaços e posições de menor influência em sua produção. O conceito de “universo das ciências” potencializa, assim, a capacidade de apreensão de fenômenos relacionados à constituição do conhecimento científico que se manifestam em espaços comumente desconsiderados pela ciência oficial (aqui classificados como “regiões invisíveis”), porém relacionados ao seu desenvolvimento em uma perspectiva mais ampla, como é o caso dos ambientes virtuais participativos/colaborativos. É sob orientação desse conceito que o trabalho a seguir apresentado – realizado com base nos resultados e análises iniciais da pesquisa em curso “A difusão e aquisição do conhecimento científico e tecnológico na era da web 2.0: é possível uma ecologia de saberes?” –, busca investigar os limites e possibilidades desses novos ambientes no que diz respeito à constituição de espaços (mesmo que em regiões periféricas, ou ainda “invisíveis” do universo da ciência e da tecnologia) capazes de se contrapor àqueles relacionados à ciência e à tecnologia tradicionais – reprodutores de assimetrias e privilégios sociais e epistêmicos – e em direção à constituição de uma “ecologia de saberes” (Santos, 2010 e 2011a) entre seus participantes. Nesta pesquisa optou-se pelo estudo empírico da enciclopédia virtual Wikipédia em versão lusófona. Atualmente, uma das mais importantes dentre as mais de 260 versões idiomáticas ativas, o site apresenta-se como o ambiente virtual participativo/colaborativo mais representativo dentre aqueles em língua portuguesa, tanto por seu nível de abrangência (em torno de 19 milhões de visitantes únicos/mês), quanto pelo número de pessoas engajadas em seu projeto – mais de 1 milhão usuários registrados e 750 mil artigos produzidos. Da mesma forma, dado seu caráter enciclopédico, direcionado à produção de conteúdo em todas as áreas do conhecimento, e sua estrutura de organização, em que as interações entre os usuários são muito mais diversificadas e intensas em comparação a outros ambientes virtuais de natureza semelhante, como blogs e fóruns de discussão, a Wikipédia é aquele que melhor permite observar as dinâmicas de difusão e aquisição de conhecimentos relativos ao universo da ciência e da tecnologia através de espaços de interação originados a partir das práticas e valores que servem de base à “cultura da internet”. A partir do estudo dos colaboradores da Wikipédia lusófona, portanto, este artigo apresenta e analisa de modo preliminar alguns dos interesses e os principais valores e representações manifestados pelos participantes do site, de modo a investigar seu nível de afinidade seja com o universo de valores e representações hegemônicos da ciência e da tecnologia, seja com os da “cultura da base” da internet, ou ainda com aqueles associados à noção de “ecologia de saberes”. Antes da exposição dos resultados e das análises desta investigação, buscaremos, contudo, delinear brevemente as principais aproximações potenciais este último conceito entre o objeto de estudo deste trabalho. 2.0 Ecologia de saberes e Wikipédia A noção de “ecologia de saberes”, empregada nessa pesquisa, diz respeito, fundamentalmente, à promoção de um diálogo ente diferentes formas de saber que circulam na sociedade e entre seus sujeitos (Santos, 2011b), o que não significa, contudo, a descredibilização do saber científico, tampouco a busca, unicamente, de uma distribuição mais equitativa deste. Nesse sentido, a “ecologia de saberes” caracteriza-se como uma ecologia: “porque assenta no reconhecimento da pluralidade de saberes heterogêneos, da autonomia de cada um deles e da articulação sistêmica, dinâmica e horizontal entre eles. A ecologia dos saberes assenta na independência complexa entre os diferentes saberes [reconhecendo-se em cada qual limites externos e internos] que constituem o sistema aberto do conhecimento em processo constante de 4 renovação e criação [uma vez que] O conhecimento é interconhecimento, é reconhecimento, é auto-conhecimento”. (Santos, 2010, p.157) Por outro lado, como enfatiza o autor, sua constituição não pode ser implementada a partir do diálogo abstrato entre conhecimentos, mas sim entre práticas de conhecimento e seus impactos em outras práticas sociais. Logo, maior é credibilidade de uma forma de saber quanto mais eficaz ela for no combate à injustiça social, derivada da injustiça cognitiva proveniente de privilégios epistemológicos herdados e de critérios de eficácia definidos “a priori”. Da mesma forma: “Ao contrário das epistemologias modernas, a ecologia de saberes não só admite a exigência de muitas formas de conhecimento, como parte da dignidade epistemológica de todos eles e propõe que as desigualdades e hierarquias entre eles resultem dos resultados que se pretendem atingir com uma dada prática do saber. É a partir da valoração de uma dada intervenção no real em confronto com outras intervenções alternativas que devem emergir hierarquias concretas e situadas entre saberes. Entre os diferentes tipos de intervenção pode haver complementaridade ou contradição e, em qualquer caso, a discussão entre eles pauta-se menos por juízos cognitivos do que por juízos éticos e políticos ... A objetividade que preside ao momento cognitivo não colide com a não-neutralidade que preside ao momento ético-político”. (Santos, 2010, p.159-60, grifos nossos) A “ecologia de saberes”, portanto, traz como um de seus principais objetivos o desenvolvimento de um conhecimento científico e tecnológico mais bem construído sem, contudo, negar sua especificidade em relação às demais formas de saber. Ou seja, visa permitir que outras práticas de conhecimento contribuam para a constituição de práticas científicas e tecnológicas mais adequadas à diversidade de interesses e necessidades dos agentes e dos contextos sobre os quais exercem influência, em que o papel da ciência e da tecnologia e seus modos de aplicação são repensados e reconstituídos a partir de uma postura que se afaste das exclusões prévias de experiências de conhecimento. A Wikipédia, por sua vez, é orientada por um conjunto de valores e princípios formais que a aproximam significativamente daqueles delineados pelos pressupostos da “ecologia de saberes”. Nesse ambiente, os princípios mais importantes são denominados de “5 pilares”, os quais estabelecem “os grandes traços que definem a enciclopédia e as condições de sua elaboração” e os “fundamentos de todas as regras e recomendações que enquadram a elaboração da Wikipédia” (Wikipédia, 2013). Nesse sentido, definem, por um lado, o que o site deve ser quanto ao tipo e a forma do conteúdo produzido (“A Wikipédia é uma enciclopédia”) e os valores centrais no desenvolvimento de seu conteúdo: a imparcialidade no tratamento das informações (“A Wikipédia rege-se pela imparcialidade”) e a abertura e liberdade de acesso, edição e difusão do conteúdo (“A Wikipédia é uma enciclopédia de conteúdo livre”). Definem, por outro, princípios gerais de relacionamento com os demais editores que constituem a comunidade do site (“A Wikipédia possui normas de conduta”), orientados pela ideia de civilidade e pela presunção da boa-fé dos demais colaboradores. Da mesma forma, buscam favorecer o aprimoramento contínuo do conteúdo e da comunidade (“A Wikipédia não possui regras fixas”), ao incitar a participação “audaz” e criativa dos colaboradores, em um projeto coletivo que, por suas próprias características, constitui-se como um produto sempre aberto e inacabado. Quanto aos usuários do site, de acordo com o modo pelo qual interagem com o ambiente da Wikipédia, podem ser classificados em três categorias principais: i) usuários visitantes, que apenas utilizam o conteúdo disponível para a realização de pesquisas, motivados pelos mais diversos fins; ii) usuários não registrados (ou anônimos), participantes dos processos de produção colaborativa, cuja identificação no site limita-se ao registro do IP do computador utilizado para conexão; iii) usuários registrados, também voltados à colaboração na Wikipédia e nela identificados por meio da criação de uma “conta” e um “nome”, disponíveis em suas “páginas de usuário”. Estes últimos podem, ainda, 5 serem designados, após um processo de candidatura e eleição pelos demais usuários, para realização de “tarefas administrativas” (ao assumir a função de burocratas, administradores, eliminadores, reversores etc.), responsáveis por proteger e desproteger, eliminar e restaurar páginas internas ou artigos, bloquear e desbloquear usuários, entre outras atividades. São os usuários anônimos e, principalmente, os usuários registrados, os responsáveis pela dinâmica de colaboração existente na Wikipédia e sua estruturação a partir dos “5 pilares” e das demais políticas específicas de cada comunidade idiomática. Eles atuam com base em três principais tipos de ação: criação, discussão e edição, tanto de artigos, quanto de “páginas internas” do site. Os artigos (ou verbetes) são as páginas de conteúdo enciclopédico que contêm informações sobre os assuntos de interesse de seus produtores, organizados a partir de regras específicas, definidas coletivamente pelos usuários e passíveis de alteração por consenso. Já as páginas internas do site se destinam, fundamentalmente, à apresentação de informações gerais sobre o universo da Wikipédia, além de organizar a distribuição das centenas de milhares de artigos existentes. As ações de criação e edição estão associadas à expansão ou à alteração do conteúdo, ou seja, ao acréscimo ou modificação de informações e conhecimentos disponibilizados, sobretudo por meio de textos escritos. Já as ações de discussão ocorrem através de páginas especiais (“páginas de discussão”) e são o reflexo do modo de produção colaborativa que estrutura a Wikipédia. Resultam das divergências (amigáveis ou não) surgidas ao longo do processo de construção coletiva do conteúdo. Modificar uma página sem participar das discussões sobre sua alteração com os outros colaboradores é, portanto, uma atitude que fere a etiqueta da comunidade wikipedista. A consideração dos princípios e valores formais, da estrutura e do conjunto de práticas de participação que constituem a Wikipédia permite vislumbrar a constituição de um espaço de interação potencialmente favorável à aquisição e difusão do conhecimento científico e tecnológico a partir de dinâmicas mais plurais e abertas em comparação às que caracterizam os espaços produtores das formas de saber socialmente hegemônicas. Do mesmo modo, a observação preliminar dessas dinâmicas permite pressupor sua capacidade de fomentar a interação entre práticas de saber envolvendo agentes de diferentes espaços e posições sociais, relacionados, em maior ou menor grau e sob diferentes formas, ao universo da ciência e da tecnologia. Será a extensão e os limites dessas potencialidades o que buscaremos analisar a partir de agora. 3.0 Procedimentos e técnicas de investigação A delimitação do universo de investigação e do conjunto de usuários investigados foi definida a partir na noção de corpus de pesquisa (Bauer & Gaskell, 2012), enquanto recurso metodológico de natureza qualitativa empregado para o estudo da variedade de valores, representações, atitudes, práticas etc. ainda desconhecidas e sobre as quais nada se sabe acerca de sua distribuição, o que inviabiliza a obtenção de uma amostragem de acordo com um racional de representatividade. Para isso, foram inicialmente adotados os seguintes procedimentos, com base em Santos de Lima (2012): a. Dentre o universo de artigos, foram selecionados os artigos do “conteúdo destacado” e do “conteúdo bom” do domínio pt.wikipedia.org (artigos destacados e artigos bons); b. Partindo-se do universo do “conteúdo destacado” e “conteúdo bom”, foram escolhidos 22 artigos de conteúdo científico e tecnológico, de um total de 149, divididos, conforme a classificação do site, em 5 áreas e 22 subáreas de conhecimento; c. A seleção dos entrevistados em cada artigo envolveu seus principais colaboradores, isto é, foi realizada entre aqueles posicionados no primeiro quartil de usuários, ordenados conforme seu 6 nível de participação1. Os artigos selecionados e a distribuição dos entrevistados, conforme identificados na pesquisa, são apresentados na tabela a seguir (Tabela 1). A escolha do “conteúdo destacado” é justificada pelo fato de este que é constituído por artigos que já passaram por sucessivos aprimoramentos, necessários até atingir a condição de destaque. Os usuários colaboradores do conteúdo destacado tendem, dessa forma, a conhecer de modo mais pormenorizado o universo de controvérsias e, portanto, a diversidade de valores e práticas implicados nas dinâmicas que envolvem sua produção. Por outro lado, estão potencialmente entre aqueles que apresentam, de um modo geral, ou o maior volume de produção em artigos site, ou o maior número de “edições menores” na Wikipédia, além da realização de outras tarefas administrativas nesse ambiente, 1 O nível de participação foi definido a partir da criação de um índice de participação (Ip), que associa o número de edições e o grau de vinculação do usuário com o site, como modo de dar mais peso àqueles mais ativos e influentes no ambiente da Wikipédia. O índice de participação é dado pela expressão Ip = Nr.Na (3E-Em), em que “Nr” e “Na” são, respectivamente, 7 o que confere a eles maior influência potencial na produção e reprodução da estrutura, das práticas e representações da Wikipédia e em seu desenvolvimento futuro, dado que os novos usuários, para integrarem-se ao universo de participação, terão que interagir em conformidade com a organização coletiva preponderante. As entrevistas com os usuários colaboradores foram realizadas através de ferramentas eletrônicas de troca de mensagens instantâneas (Skype e Facebook), num total de 22 entrevistas semiestruturadas e quase 80 horas de interação. Duas outras entrevistas foram realizadas por meio da troca de mensagens por correio eletrônico. Em função das assimetrias e da menor qualidade do conteúdo das respostas obtidas em comparação às dos demais participantes, foram complementadas com a realização de 2 entrevistas com outro colaborador de cada artigo, através dos mesmos procedimentos utilizados para os demais entrevistados. Os dados obtidos foram analisados a partir de procedimentos e técnicas de análise qualitativa de conteúdo (Bardin, 2011 e Bauer & Gaskell, 2012), com o auxílio do software Nvivo 10. 4.0 Perfil, interesses, valores e representações dos usuários colaboradores da Wikipédia lusófona nas áreas de ciência e tecnologia As entrevistas realizadas envolveram usuários provenientes dos dois principais países colaboradores da Wikipédia lusófona, responsáveis por mais de 90% dos participantes do site – Brasil (18 entrevistados) e Portugal (6 entrevistados). Contemplaram, do mesmo modo, usuários distribuídos entre todas as faixas etárias pertinentes ao objeto de estudo (“0-19 anos” a “60-79 anos”), de todos níveis de renda familiar (“até 2 salários-mínimos” a “mais de 20 salários-mínimos”)2, níveis de escolaridade (“Ensino Médio Incompleto” a “Pós-Graduação (Doutorado)”) e áreas de formação e atuação profissional (“Ciências Exatas e da Terra”, “Ciências Agrárias”, “Ciências Biológicas”, “Ciências da Saúde”, “Ciências Humanas”, “Engenharias”, “Ciências Sociais Aplicadas”, “Linguística, Artes e Letras” e “Outros”3). Os atributos demográficos e socioculturais escolhidos para a identificação inicial do perfil dos colaboradores entrevistados e a análise de sua relação com os valores e representações dos participantes considerou, além das variáveis acima, a vinculação ou não dos entrevistados com diferentes campos sociais (político, econômico, científico, tecnológico, escolar, artístico, jurídico etc.) e com a “cultura de base” da internet (Castells, 2003), identificadas por meio das práticas sociais e profissionais, áreas de atuação e interesse e trajetórias de participação no site, conforme explicitadas nos depoimentos. As características demográficas e socioculturais dos colaboradores analisados são sintetizadas no “Gráfico 1”. Gráfico 1 – Perfil demográfico e sociocultural dos entrevistados 2 Cada uma das 5 faixas etárias utilizadas nesta pesquisa agrupam 4 faixas de idade do Censo 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). As faixas de renda familiar também tomam como base as faixas do Censo 2010, definidas a partir do valor do salário-mínimo (S.M.) brasileiro de 2013. 3 Para a definição das áreas de conhecimento relativas à formação e atuação profissional dos entrevistados, foram utilizadas as categorias da atual Tabela de Áreas de Conhecimento do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-Brasil). 8 Fonte: pesquisa A representação gráfica, realizada a partir de análise de cluster, por similaridade de valor de atributo, indica a distribuição dos usuários entrevistados em 4 grandes grupos, cujos componentes são identificados por cores distintas. O primeiro grupo (Grupo 1 – Azul) reúne, sobretudo, usuários com formação e atuação nas áreas de Ciências Exatas e da Terra e caracteriza-se como aquele com maior número de indivíduos com vinculação à cultura de base da internet, além de possuir mais da metade de seus integrantes associados, principalmente, ao campo tecnológico. A maior parte deles possui, da mesma forma, Nível Superior completo e é composto por jovens e integrantes de faixas etárias intermediárias. O Grupo 2 (“a” e “b” – Vermelho) caracteriza-se, por sua vez, por possuir todos entrevistados com nível de PósGraduação (Mestrado ou Doutorado), além da maior vinculação ao campo científico e acadêmico e a maior média de renda familiar. Assim como o Grupo 1, é composto por indivíduos jovens e de faixas etárias intermediárias, embora apresente integrantes de diferentes áreas de atuação e formação. 9 O terceiro grupo (Laranja) é formado, fundamentalmente, por indivíduos formados ou atuantes nas áreas das “ciências inexatas” (soft sciences), com o maior número de entrevistados com vinculação ao campo artístico, além de possuírem, predominantemente, Nível Superior completo. Assim como os grupos anteriores, seus componentes situam-se entre as menores faixas de idade e faixas intermediárias. Já o grupo 4 (Verde), concentra os colaboradores mais jovens em comparação aos demais grupos (com idades inferiores a 25 anos), com menor nível de formação (Nível Médio ou Nível Superior incompleto), menor nível de renda média familiar e menor número de indivíduos com atuação profissional e vinculação com o campo científico. Encontram-se distribuídos, por outro lado, em diversas áreas de formação. A fim de identificar a influência das áreas de formação e atuação e de outros atributos socioculturais sobre os interesses dos entrevistados na Wikipédia lusófona, foi observada, em um segundo momento, a distribuição das preferências em relação às áreas de conhecimento em que os participantes costumam colaborar, tendo em vista o perfil anteriormente identificado (Gráfico 2). Gráfico 2 – Áreas de interesse na Wikipédia Fonte: pesquisa. O Gráfico 2 indica a distribuição dos colaboradores em dois grande grupos (5 e 6), que representam, grosso modo, duas grandes áreas de conhecimento: a das “ciências moles” (soft sciences) e a das “ciências duras” (hard sciences). A identificação das cores dos entrevistados revela que os wikipedistas participantes de artigos nas áreas das soft sciences (grupos 5a e 5b) são, predominantemente, aqueles que já atuam profissionalmente e/ou possuem formação nessas mesmas áreas (usuários em laranja e parte dos usuários em verde). O mesmo ocorre, por outro lado, com o grupo interessado em colaborar em artigos 10 na área das hard sciences (6a, 6b e 6c). Nele, predominam colaboradores com formação e/ou atuação nas áreas de Ciências Exatas e da Terra e das Engenharias (usuários em azul e parte dos usuários em vermelho). A área das Ciências Biológicas, por sua vez, parece constituir-se como um espaço de contato entre os dois grandes grupos, no qual alguns dos usuários com formação e atuantes em cada uma das duas grandes áreas decidem expandir seu raio de colaboração. Em resumo, cada grande grupo de usuários, de um modo geral, tende a não contribuir com a produção de conteúdo em áreas com as quais seus membros tenham pouco contato, seja por não atuarem, seja por não possuírem formação nas mesmas, o que se constitui como um indicativo do expressivo condicionamento sociocultural das preferências de participação, ainda que intercâmbios entre áreas de conhecimentos afins, dentro dos dois grandes grupos, ocorram com relativa frequência. O Gráfico 3 apresenta, por sua vez, os principais valores e representações sobre ciência e tecnologia dos usuários, ordenados pelo nível em que ocorrem entre entrevistados distintos. Gráfico 3 – Valores e Representações sobre Ciência e Tecnologia (nível de ocorrência entre os entrevistados) Fonte: pesquisa. A análise preliminar de sua distribuição indica a predominância de valores e representações bastante relacionadas ao universo da ciência e da tecnologia tradicionais. É o que expressa a grande ocorrência, por exemplo, da associação do conhecimento científico e tecnológico ao “desenvolvimento/progresso intelectual”, “desenvolvimento/sobrevivência material”, “desenvolvimento/progresso social”, em forte relação, por um lado, com a “cultura tecnomeritocrática” (Castells, 2003) constituinte da internet, cujas representações vinculadas à Modernidade e ao Iluminismo entendem o conhecimento como fator de progresso humano e para a qual a ciência e a tecnologia tradicionais seriam os produtos de saber mais favoráveis a obtenção do desenvolvimento. Por outro, tais valores e representações revelam a aproximação com o ideal baconiano de domínio da natureza (Moya, 1998) e com a “valorização moderna do controle” (Lacey, 2010), perspectiva segundo a qual o controle seria uma das “formas essenciais e primárias pelas quais nos expressamos como seres humanos modernos [...] nas quais são cultivadas ‘virtudes’ pessoais como criatividade, inventividade, 11 iniciativa, ousadia diante de riscos, autonomia, racionalidade e praticidade” (p.37-38). Da mesma forma, mesmo que não se oponham a representações de camadas menos conservadoras e mais contraculturais da internet (como a cultura hacker e a cultura comunitária virtual), ou ainda à noção de “ecologia de saberes”, as representações com grande proporção de ocorrência como “desenvolvimento/progresso intelectual” e “social” ocorrem conjuntamente com outras bastantes conservadoras, como a ideia da ciência e da tecnologia como as “melhores formas de saber/métodos de conhecimento”. Ou, ainda, às representações que admitem sua articulação com outros saberes, porém sob orientação ou predomínio do conhecimento científico. Os valores e representações mais próximos à ecologia de saberes – “uma forma de saber/interpretação do mundo”, “articulação horizontal com outros saberes”, “interligação entre conhecimentos” –, ainda que não se manifestem de modo preponderante, ocupam, entretanto, posições intermediárias e abrangem uma proporção expressiva de depoimentos, em volume semelhante àquelas que admitem a influência social e cultura na demanda e na produção da ciência e da tecnologia. Tais representações, por outro lado, são seguidas, em menor medida, por diferentes atributos do “senso comum” da ciência, comumente associados às suas principais características “diferenciais” em relação a outras formas de saber, como seus “valores epistêmicos” ou “virtudes epistêmicas” (Mcmullin, 1983 e Hempel, 1983). São expressos, por exemplo, na ideia de “busca da verdade”, “isenção/neutralidade/exterioridade”, “busca da imparcialidade/objetividade”, “clareza expositiva/rigor/precisão”, “racionalidade”, ou, ainda, na dualidade entre ciência – voltada, sobretudo, a fins teóricos – e tecnologia – identificada com objetivos práticos. O Gráfico 4 relaciona as representações sobre ciência e tecnologia mais recorrentes entre os entrevistados com sua distribuição conforme seu perfil demográfico e sociocultural. 12 Gráfico 4 – Valores e Representações sobre Ciência e Tecnologia (distribuição por perfil demográfico e sociocultural e categorias de representações) Fonte: pesquisa. A distribuição dos entrevistados em três grandes grupos (7, 8 e 9), conforme as expressões mais recorrentes nos depoimentos dos colaboradores (acompanhadas do número de vezes em que ocorre cada uma delas), indicam sua associação a três conjuntos principais de valores e representações sobre ciência e tecnologia, cujas características permitem sua tipificação nas categorias previamente consideradas na pesquisa: “ciência e tecnologia tradicionais”, “ecologia de saberes” e “cultura de base da internet”. Os valores e representações relativos à primeira categoria (grupo 7) mostram-se predominantemente associados aos entrevistados mais jovens e de menor nível de renda familiar e de escolaridade, com pouca ou nenhuma vinculação ao campo de produção científica e tecnológica (em verde). A tendência a incorporar o ponto de vista relativo ao “senso comum” da ciência e tecnologia por parte desse perfil de usuários pode ser preliminarmente entendida como efeito da “boa vontade cultural” (Bourdieu, 2009) dos entrevistados com relação às formas de saber socialmente preponderantes ou “legítimas”, mas não, necessariamente, efetivamente conhecidas, diante das 13 vantagens simbólicas e de reconhecimento social que respostas “certas” ou “adequadas” sobre essas formas de saber poderiam gerar. Ou, ainda, poderiam resultar da crença na ciência e na tecnologia como formas de conhecimento efetivamente superiores, uma vez que seu poder simbólico reside, em boa medida, na denegação dos interesses extracientíficos da ciência (Bourdieu, 2008) por parte de seus produtores, cujo desvelamento é de difícil realização sobretudo pelo “indivíduo leigo”, que desconhece as dinâmicas internas que caracterizam o campo da produção científica. Os colaboradores do grupo 8, por sua vez, caracterizam-se pela diversidade de seus integrantes, marcada pela ausência de um perfil etário ou sociocultural preponderante. Quanto ao grupo 9, predominam colaboradores com os maiores vínculos com o campo científico (acadêmico) e tecnológico, com a área das hard sciences e os maiores níveis de escolaridade (em vermelho e azul). Tais características, em ambos os grupos, mostram-se em clara consonância, respectivamente, com o perfil esperado dos usuários associados a valores e representações próprios a “ecologia de saberes” (marcada pela diversidade de conhecimentos e de sujeito de conhecimento), de um lado, e à “cultura de base da internet”, de outro, sobretudo com suas camadas mais conservadoras como a “cultura tecnomeritocrática”, herdeira do universo dos tecnólogos e do ambiente acadêmico fundador da internet. 5.0 Conclusões preliminares Ao contemplar a variedade de agentes pertinente ao objeto de estudo, esta pesquisa buscou delinear, até o presente momento, alguns dos interesses e os principais valores e representações sobre ciência e tecnologia existentes entre os usuários colaboradores da Wikipédia lusófona participantes das dinâmicas de aquisição e difusão de conteúdo em áreas científicas e tecnológicas. A análise inicial dos resultados obtidos indica, em um primeiro momento, o forte condicionamento sociocultural tanto da distribuição dos interesses relativos às áreas de participação no site, quanto dos valores e representações dos entrevistados, uma vez que tendem a reproduzir a estrutura de distribuição dos espaços e posições ocupados pelos participantes da Wikipédia na sociedade. Por outro lado, embora tenha sido observada a ocorrência significativa de representações em ciência e tecnologia próximas à noção de “ecologia de saberes” e das camadas culturais da internet mais distantes da ciência e tecnologia tradicionais entre os colaboradores analisados, a manifestação expressiva de valores e representações conservadores e tradicionais revela sua força de disseminação e sua capilaridade social – uma vez associadas a formas de saber hegemônicas – mesmo em um ambiente cuja estrutura de organização e princípios orientadores se contrapõem, em diferentes aspectos, àqueles que definem as formas de conhecimento “legítimas”. Cabe agora aos próximos estudos aprofundar e diversificar as análise e conclusões inicialmente apresentadas, em busca de uma apreensão mais ampla e articulada do objeto de investigação. Referências Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo (L. A. Reto & A. Pinheiro, Trads.). São Paulo, SP, Brasil: Edições 70. Bauer, M. W. & Gaskell, G. (2012). 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