Sete cores,
sete vezes
Entre a tua casa e a minha
há uma ponte de estrelas.
Mário Quintana
Aprendi antes da escola que em nossa língua a paz tem um nome:
paz. Tem uma cor: o branco. Tem um belo símbolo, uma ave: a
pomba. Possui poucos sinônimos e alguns não são muito fiéis:
tranqüilidade, harmonia, calma, serenidade, trégua.1
Aprendi que tendo poucos e nem sempre bons sinônimos, a paz
deriva algumas palavras geradas por ela, entre substantivos, verbos,
adjetivos e advérbios: pacífico, pacificador, pacificar, pacificamente,
pacificante, pacificado. Existem outras?
E a paz gera várias expressões tradicionais bem conhecidas: “viver
em paz”, “buscar a paz”, “vai em paz”, “que a paz te acompanhe”,
“em boa paz”, “lutar pela paz”, “assinar um tratado de paz”, “quebrar
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A canção das sete cores
a paz”, “eu vos dou a minha paz”, “semear a paz”, “conquistar a paz”,
“a paz de Deus”, “o Deus da paz”, “paz e bem” (dos franciscanos),
pro bono pacis (“para o bem da paz”, dos romanos).
Ao longo da vida fui lendo aqui e ali e ouvindo algumas frases
de efeito sobre a paz. Uma delas me foi dita por alguém que a atribuiu
a Gandhi: “não há caminho para a paz, a paz é o caminho”. Gosto
de repeti-la. Outra nós encontramos pintada de preto, em quatro
línguas, naqueles belos e pequenos marcos brancos fincados nos
locais onde alguém ou algum grupo humano participa da “causa da
paz”. Sim, pois a paz também tem a sua causa. Diz assim: “Que a
paz prevaleça”. Ou, em uma versão mais completa: “que a paz
prevaleça entre todos os povos da Terra”. Há uma outra, bastante
difundida e atribuída a Tito Lívio: “uma paz certa e segura é melhor
do que uma vitória esperada”. Bem mais justa e prudente do que a
odiosa: “se queres a paz, prepara-te para a guerra”, bem mais aceita
em nossos turvos dias. Imagino que seja o lema preferido entre os
fabricantes de armamentos.
Dante Alighieri escreveu: “é claro, portanto, que a paz universal
é a melhor dentre as coisas que contribuem à nossa felicidade”
(Monarchia, 1, 4). Fiquemos por aqui.
A paz tem uma bandeira: um pano branco sem mais nada a não
ser a alvura de sua cor. Ou, em algumas versões mais raras, o branco
com uma pomba também branca, desenhada. Vi um dia na televisão,
depois em Porto Alegre, nas caminhadas dos Fóruns Sociais
Mundiais, uma bandeira da paz diferente. Tinha longas faixas com
as cores do arco-íris e a palavra Pace escrita entre elas. O desejo pela
paz ganhou agora sete cores.
Outro dia me falaram sobre, e depois me mostraram outra
bandeira, parecida mas diferente. Eu a conheci nas ruas de La Paz,
na Bolívia, e ali me contaram que ela tornou-se o símbolo da paz e
da luta em prol dos direitos do povos indígenas, entre quéchuas,
aymaras e outras etnias dos Andes, onde há uma complexa simbologia
a seu respeito e ela é chamada de Whipalla. Dali em diante eu me
acostumei a vê-la tremulando em inúmeras passeatas pacifistas.
Sete cores, sete vezes
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Em vez de ser retangular e toda branca ou listada com sete cores na
horizontal, é uma bandeira quadrada e dividida em 49 caselas, tendo
como resultado sete linhas verticais cruzando por igual sete linhas
horizontais. Suas sete cores: branco, amarelo, laranja, vermelho, lilás,
azul e verde, ocupam, cada uma, sete caselas. A cor branca ocupa as
da diagonal do centro e, assim, divide a bandeira em duas partes
iguais. A amarela ocupa uma casela da parte de cima e seis da de
baixo; a laranja, duas e cinco, e assim por diante. Experimente
desenhar e colorir essa bandeira. Não é difícil e o resultado é belo e
sugestivo: sete cores, sete vezes.
Imaginei-as cores sonoras que, entre as sete notas musicais, em
vez de cantarem algum hino vibrante, entoam juntas uma simples e
terna canção de paz: A canção das sete cores.
A canção das sete cores possui, além desta pequena introdução,
outros oito capítulos. Alguns foram escritos para o livro e outros
para serem lidos ou comentados em encontros entre educadores.
Essa é uma das razões para algumas diferenças de tons e temas entre
os capítulos. Esse é também um dos motivos pelos quais algumas
palavras e idéias podem aparecer repetidas entre um capítulo e outro.
Mas logo se verá que esse não é o único motivo.
Acompanhando minha trajetória de vida e de trabalho profissional
e militante, o que está escrito desta página em diante provém de três
vocações do trabalho do educador. Entre os anos de 1950 e agora,
elas ganharam nomes, adeptos, teorias e práticas, encontros (e alguns
desencontros), causas, frentes de lutas e vários manifestos. Seria um
erro dizer que cada uma delas provém de fontes ideológicas próprias,
pois convergindo para um mesmo lugar social e simbólico, cada uma
envolve uma pequena polissemia de tendências e de ênfases.
Elas são: a educação popular, a educação ambiental e a educação
para a paz. Em suas versões e vocações mais próximas às minhas
experiências, todas elas reclamam a busca por uma opção humanista
e emancipatória de formação de pessoas e de criação de culturas de
paz através do trabalho da educação. E se até um passado próximo
havia fortes desconfianças entre os seus diferentes praticantes, hoje
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A canção das sete cores
nos encontramos mais empenhados na busca por palavras e gestos
que nos unem e nos fazem interagir do que na defesa do que por
desventura nos separa ou mesmo nos opõe.
Entre propostas e projetos de ação cultural através da educação,
as diferenças, aqui e ali, estão mais nas ênfases e nos rumos a percorrer
do que nos destinos e horizontes aos quais sonhamos chegar. Assim,
ao mesmo tempo em que não queremos pensar e praticar a paz como
uma falsa harmonia que ignora e silencia os persistentes dilemas da
vida social, sabemos também que em nossos dias é ilusório
aprendermos a educar pessoas e a criar culturas devotadas à causa da
paz, se não soubermos estender a solidariedade e a conciliação desejada
entre os Seres Humanos, no âmbito da Vida e dos Seres da Vida.
Um dos mais fervorosos praticantes da causa da paz, Marcelo
Rezende Guimarães, lembra que hoje em dia poucas palavras são
pronunciadas com tanta freqüência, para tantos sentidos e usos, e,
ao mesmo tempo, são tão pouco praticadas.2 Poucas “causas” são
tão convergentes, tão atraentes, tão apropriadas para serem lema de
bandeiras de credos e partidos. Mas, no entanto, mesmo o que
significa de fato a paz ainda parece ser uma pergunta boa, mas difícil,
que busca respostas entre preceitos e, sobretudo, gestos confiáveis e
convincentes. Marcelo lembra na abertura de seu livro que estamos
em plena (e quase esquecida) Década das Culturas da Paz, de 2001
a 2010, proposta e reclamada pela Unesco.
Outro Marcelo, o monge beneditino Marcelo Barros, na
apresentação de Um novo mundo é possível, lembra palavras que repito
em A canção das sete cores. Ele diz:
Saber que a paz e a violência são elementos culturais que a
humanidade cria, assim como constrói casas ou faz pão, é uma
boa notícia, porque significa que está em nosso poder superar
essa cultura e educar-nos para formas de convivência mais
amorosas e justas. Descobrir que o fato de sermos diferentes não
nos opõe pode significar para cada um de nós um bom princípio
de auto-aceitação e de liberdade interior.3
De algum tempo para cá, de vez em quando temos nos lembrado
de associar a “paz” à “educação” e falamos então em: educação pela
Sete cores, sete vezes
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paz, educação para a paz. Existem espalhadas pela Europa várias
escolas e universidades abertas, dedicadas de maneira especial à causa
da paz. Aos olhos de algumas pessoas, qualificadores que pretendem
atribuir à educação algo mais do que uma instância programada de
capacitação de quadros para diferentes exercícios profissionais e
moderadamente cidadãos entre o trabalho e a vida são uma ilusão
a mais. Este livro pensa em outra direção.
Em todos os capítulos, a mesma seqüência de idéias e de preceitos
de vida e de aprendizagem toca, com ritmos e tons diferentes, nas
mesmas teclas. Primeira: nós educadores não nos capacitamos apenas
para o trabalho profissional que nos qualifica instrumentalmente;
nos formamos para exercer também o trabalho criativo e consciente
de construção dos mundos sociais em que vivemos. Ou em que
deveríamos viver. Segunda: esses mundos sociais, da minha rua ao
meu planeta, são obra do trabalho humano e da criação de seres
humanos como eu e você, pessoas da vida de todos os dias. Terceira:
uma coisa é o que as estruturas e os processos sociais fazem de nós;
outra, é o que aprendemos a fazer com o que eles fazem de nós.
Quarta: boa parte do que se passa entre um momento e outro
depende do que aprendemos enquanto nos educamos. Quinta: ainda
que sejam emoções, sentimentos ou fontes naturais de motivação
inatas à nossa espécie, como nas idéias de Humberto Maturana, o
amor, a solidariedade, a cooperação e, enfim, a paz são valores e
conhecimentos. São saberes, sentidos e sensibilidades assimiláveis.
A paz se cria. A paz se vive. A paz se aprende a criar e a viver.
Mas a vocação humana para a paz tem muito pouco a ver com
uma doce e abstrata disposição para buscar harmonias em tudo e
em todos. Nada pior para o amor e a paz do que imaginá-los como
vagas abstrações afetivas. Ao longo de toda A canção das sete cores,
falarei em nome de sentimentos e disposições para o pensamento e
a ação, muito concretos e realistas. Assim, por exemplo, acredito
que todos os projetos sociais fundados em preceitos de emancipação,
co-responsabilidade, sustentabilidade, cooperação e solidariedade
implicam atitudes pessoais e coletivas de uma enorme e sempre
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A canção das sete cores
crescente radicalidade. É preciso aprendermos e sabermos ensinar
às nossas crianças e nossas atitudes não apenas palavras e poemas,
mas gestos poéticos e atos políticos que comecem por transformar
pessoas e terminem por participar com elas da transformação de
suas vidas, de suas sociedades de vida cotidiana e da história.
Dentre as pessoas com quem tenho convivido “ao vivo” ou por
meio de leituras, algumas foram e continuam sendo presenças
cotidianas e, espero, “para sempre”. Assim, os traços de suas idéias e
de seus passos estarão sempre impressos aqui, mesmo que nas páginas
deste livro seus nomes nem sempre sejam citados. Entre os mais
próximos quero lembrar: Marcos Arruda, Rubem Alves, Leonardo
Boff, Paulo Freire, Tomás Baldoino, Pedro Casaldáliga, Marcelo
Rezende Guimarães, Marcelo Barros, Alda Borges Cunha e Maria
Alice Martins Brandão, com quem festejo, em 2005, 41 anos de vida
conjunta (comemoramos, no caso, o começo do namoro e não o
casamento). Dentre os mais distantes, que o nome de um indiano e
de dois judeus seja a memória de tantos outros: Mohandas K. Gandhi,
Emannuel Lévinas e Martin Buber.
Repito agora o que escrevi antes. De um capítulo para outro o
livro ganhou o tom de seqüências enumeradas de idéias, de valores,
de preceitos e de princípios. Em alguns casos isso aconteceu porque
minhas palavras seguem a ordem de manifestos e de outros
documentos semelhantes, trazidos para o livro. Em outros, porque
de repente me pareceu oportuno resumir amplas idéias cansadas de
teorias em conjuntos de rumos e práticas em que palavras
transformam-se em gestos que sonham tornarem-se atos solidários
a muitas mãos.
Carlos Rodrigues Brandão
Rosa dos Ventos
Em Caldas, sul de Minas Gerais.
Sete cores, sete vezes
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Notas
1
Na sinonímia de meu dicionário aparecem: calma, fleuma, placidez, quietação,
quietude, serenidade, sossego, tranqüilidade.
2
Marcelo Rezende Guimarães, Um novo mundo é possível, São Leopoldo, Sinodal, 2004.
3
Marcelo Barros, Apresentação do livro de Marcelo Guimarães, citado na nota 2, p. 3.
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primeiro capítulo - Editora Contexto