AS CLARISSAS NA MADEIRA
UMA PRESENÇA DE 500 ANOS
1
Otília Rodrigues Fontoura, osc.
AS CLARISSAS NA MADEIRA
UMA PRESENÇA DE 500 ANOS
CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÒRIA DO ATLÂNTICO
SECRETARIA REGIONAL DO TURISMO E CULTURA
FUNCHAL
2OOO
2
Nos 500 anos da chegada das primeiras
Clarissas à Pérola do Atlântico (1497).
Em homenagem às Clarissas da
Ilha da Madeira - do passado e do presente.
3
CELEBRANDO 500 ANOS DE LOUVOR
HINO DO CENTENÁRIO
Ao Senhor nosso Deus cantemos hinos
de altíssimo LOUVOR e GRATIDÃO;
cinco séculos de favores divinos,
presença de VIDA em doação!
“Por mares nunca dantes navegados,”
Portugal avançou cheio de amor.
Novos Jardins de Assis foram plantados:
Celebram a BONDADE do Senhor.
Nas ilhas do Santíssimo Sacramento
dia e noite Jesus é adorado!...
Ressoam belos CANTOS em silêncio
àquele imenso “AMOR que não é amado!”
Às flores perfumadas: PAZ E BEM!
Madeira, és beleza e esplendor!
As Clarissas unem-se à TERRA-MÃE,
cantando as maravilhas do Senhor.
Francisco e Clara aqui se demoraram
- Paraíso de tanta formosura -!
A Boa Nova da Paz proclamaram
cheios de alegria e de ternura!
Letra:
Adelaide Maria da Cruz, osc
Música:
Mário de Jesus Pereira da Silva, ofm
4
HINO DO CENTENÁRIO
Mário Silva
5
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Arquivo Distrital de Beja
Arquivo Histórico da Diocese do Funchal1
Arquivo Histórico Ultramarino
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Arquivo Regional da Madeira
Biblioteca do Arquivo Regional da Madeira
Biblioteca da Cúria Provincial dos Franciscanos (Silva Carvalho) - Lisboa
Biblioteca da Diocese do Funchal
Biblioteca da Direcção Regional de Assuntos Culturais
Biblioteca do Mosteiro de Clarissas da Caldeira
Biblioteca do Mosteiro de Clarissas de Lisboa
Biblioteca do Mosteiro de Clarissas de Sintra
Biblioteca Municipal do Funchal
Biblioteca Nacional da Ajuda - Lisboa
Biblioteca Nacional de Lisboa.
Biblioteca do Seminário Franciscano da Luz - Lisboa
Centro de Estudos de História do Atlântico no Funchal
Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais
Direcção Regional de Assuntos Culturais
Ordem dos Frades Menores
Ordem dos Frades Menores Capuchinhos
Ordem dos Frades Menores Conventuais
Ordem de Santa Clara
Região Autónoma dos Açores
Região Autónoma da Madeira
Para os Escritos relativos a Santa Clara e S. Francisco
BC
BF
2C
LCL
FF I
FF II
PC
RCL
RH
RI
RU
TCL
1
Bula de Canonização de Santa Clara
Bullarium Franciscanum
Vida Segunda de S. Francisco (por Tomás de Celano)
Legenda de Santa Clara (por Tomás de Celano)
Fontes Franciscanas (São Francisco)
Fontes Franciscanas (Santa Clara)
Processo de Canonização de Santa Clara
Regra de Santa Clara
Regra do Cardeal Hugolino
Regra do Papa Inocêncio IV
Regra do Papa Urbano IV
Testamento de Santa Clara
Estando em organização o Arquivo Histórico da Diocese do Funchal, são provisórias as cotas aqui referidas para os documentos consultados no dito
arquivo.
6
FONTES E BIBLIOGRAFIA
I FONTES
Arquivo da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais
Conventos, Convento de Santa Clara do Funchal, in Album do Plano das Obras da DGEMN D 10 A F
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D 17 A F/A 24-2 e F 1-192 A – 24-2 A
Arquivo Histórico da Diocese do Funchal
Caixa 16, capelas, docs. avulso.
Caixa 25, Convento de Nossa Senhora da Encarnação, docs. avulso.
Caixa 26, Convento de Nossa Senhora das Mercês, docs. avulso.
Caixa 27, Convento de Santa Clara, docs. avulso.
Caixa 94, Curral, docs. avulso.
Caixa 100, maço 200, doc. 1683
Caixa 168, maço 336, doc. 2749
Caixa 172, maço 343, doc. 1886
Livro 1 de Ordenações
Livro 5 de Serviços Paroquiais
Livro 25, Recepções, entradas e votos das noviças do convento de Nossa Senhora das Mercês,
1751-1834.
Pasta 130, O Padroado de Nossa Senhora das Mercês, 1751-1834, doc. avulso.
Arquivo Histórico Ultramarino
Madeira:
Docs. 196, 260-261, 262 e 263, 264, 265, 389, 390, 620 – 627, 788-789, 842, 847, 1020-1023, 1023
e 1025, 1024 - 1027, 1642-1643, 1753 -1755, 1783, 1807, 3053, 3054, 3047-3049, 3563,
4576 - 4578
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Arquivo Histórico do Ministério das Finanças:
Caixa 2070, Convento de Nossa Senhora da Encarnação, Funchal, docs. avulso.
Caixa 2072, Convento de Santa Clara, Funchal.
Caixa 2076, Convento de Nossa Senhora das Mercês, Funchal, docs. avulso.
Chancelaria de D. Manuel
Livro das Ilhas
Chancelaria Régia de D. João V
Livro 70
Conventos e mosteiros:
Convento de Nossa Senhora da Encarnação, Funchal
L 1 - 41, em microfilme.
Convento de Santa Clara, Funchal
7
L 3, 9, 11, 13, 18, 22, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 37, 38, 42, 66, 67, 68.
Arquivo Regional da Madeira
Câmara Municipal do Funchal:
Tomo 1 da Câmara
Livro 4 do Tombo da Câmara
Conventos:
Convento de Nossa Senhora da Encarnação, Funchal
N º 1,2,3,4,5,6,7-10, 11-13, 14-29, e 30-35
Convento de Nossa Senhora das Mercês, Funchal.
N º 268,269, 270, 271, 272, 273 e 274.
Convento de Santa Clara, Funchal.
N º 38, 39, 40, 41, 42, 45, 46, 47, 48, 49, 50 e 347
Notariais:
Livro 13, 139 e 3857
Paroquiais:
Livro 325
Biblioteca da Ajuda, Lisboa
Rerum lusitanicarum
CVIII e CXVII
Biblioteca Nacional de Lisboa
Reservados:
Códice 1595, 9158 e 10935
Colecção Iluminados, 103
Conservatória do Registo Civil :
Câmara de Lobos:
Livro de Registos de Óbitos de 1926, 1938, 1945
Funchal:
Livro de Registos de Óbitos de 1929
Arquivo dos Mosteiros de Clarissas
Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, Calhetas, Açores
Livro da Crónica
Livro de Eleições
Correspondência vária
Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Madeira
Correspondência vária
Livro de Óbitos
Livro de Registos
8
Livro de Actas das Profissões
Livro de Eleições
Mosteiro de Santo António - Funchal:
Correspondência vária
Crónica do Mosteiro
Livro de Actas de Profissões
Livro de Actas de Reuniões capitulares
Livro de Óbitos
Arquivos Paroquiais
Câmara de Lobos
Paróquia do Carmo:
Livro de Óbitos de 1964.
Paróquia de São Sebastião:
Livro de Óbitos de 1913, 1916, 1922, 1927, 1938, 1945, 1949, 1950, 1958.
Funchal
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24 de Outubro de 1890
Correio da Manhã
5 de Março de 1927
Diário do Governo,
N.º 175, I Série de 18 de Agosto de 1943
N.º 225, I Série de 26 de Setembro de 1940
N.º 228, I Série de 29 de Setembro de 1948
N.º 254, I Série de 1 de Novembro de 1940
N.º 294, I Série de 28 de Dezembro de 1901
Diário de Notícias, Madeira
22 de Novembro de 1924
25 de Maio de 1991
4 de Outubro de 1927
Jornal da Madeira
14 de Outubro de 1910
13 de Junho de 1934
25 de Abril de 1959
10 de Janeiro de 1976
12 de Agosto de 1981
19 de Março de 1985
19 de Março de 1986
15 de Abril de 1986
17 de Setembro de 1990
18 de Outubro de 1992
27 de Setembro de 1998
4 de Outubro de 1998
O Jornal
18 de Janeiro de 1929
17 de Janeiro de 1944
O Patriota Funchalense
8 de Setembro de 1821
O Réclame
30 de Novembro de 1890
15
PREFÁCIO
O V Centenário da Ordem de Santa Clara, na Madeira, comemorado em Novembro de
1997, teve, entre outras belas iniciativas, a investigação paciente e cuidada da Irmã Otília
Rodrigues Fontoura, osc, em ordem à publicação do livro As Clarissas na Madeira - Uma
presença de 500 anos».
Fazia falta uma obra que apresentasse a riqueza espiritual e cultural da Ordem de
Santa Clara nesta diocese, tanto mais que as pedras dos monumentos deixaram de falar e as
que restam apresentam outra linguagem.
É doloroso constatar que todos os mosteiros antigos relacionados com a Ordem
Franciscana na Madeira tenham desaparecido, três destruídos, e o único que resta, o de
Santa Clara, só conserva o nome da fundadora mas sem Clarissas.
O livro da Irmã Otília apresenta a Madeira como uma terra que sempre foi
contemplativa, nela sempre houve pessoas apaixonadas por Deus que encontraram na oração
e no silêncio uma forma especial de viver e exprimir o mistério da Páscoa de Jesus Cristo.
Embora a «esponsalidade» seja uma dimensão de toda a Igreja, como afirma o Papa
João Paulo II, «a vida consagrada é a sua imagem viva, manifestando do melhor modo a
tensão para o único Esposo».
Desde o início do povoamento da Madeira, o povo cristão sentiu a necessidade da
presença deste sinal escatológico, «honra da Igreja e fonte de graças celestes». (João Paulo
II, Verbi Sponsa, 1).
A bula do Papa Sixto IV, de 04 de Maio de 1476, autorizando a vinda das Clarissas de
Beja para o Funchal, correspondia à vocação de algumas jovens madeirenses se
consagrarem a Deus, logo nos primórdios da ocupação das ilhas.
A comunidade cristã sempre dedicou às Clarissas de clausura uma especial estima e
simpatia, consciente de que a sua presença realizava em grau eminente a vocação
contemplativa de todo o povo cristão.
Os mosteiros erguiam-se dentro da cidade, mas suficientemente afastados dos ruídos e
agitação comercial, e constituíam, com as suas fortes estruturas em lugares elevados, cidades
sobre o monte, espaços de recolhimento que convidavam à oração e silêncio. Eram sentinelas
do espírito que vigiavam dia e noite e o povo cristão ali se reunia para orar, pedir orações,
participar na celebração da liturgia e agradecer a Deus o dom desta presença escatológica.
Numa terra pequena, em espaço e número de habitantes, entre os séculos XV e XVII
nasceram três mosteiros, que tiveram a particularidade de se expandirem para os Açores e o
continente português, dando origem ao mosteiro da Conceição em São Miguel, e ao da
Esperança em Lisboa.
A vida contemplativa não desapareceu no século XX, apesar da extinção do mosteiro
das Mercês em 1910, mas continuou presente no grupo de quinze religiosas que, vivendo em
suas famílias, permaneceram fiéis aos seus votos e se reuniam privadamente com a abadessa
Madre Virgínia Brites da Paixão.
Quando em 1931 foi possível obter um pequeno edifício, na Caldeira, em Câmara de
Lobos, sete religiosas e uma noviça entraram no pequeno mosteiro. Desta forma a presença
espiritual de Santa Clara continuou ininterrupta na Madeira.
Em 1976 um grupo de oito Clarissas dirigiu-se para os Açores, dando origem ao
mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, e em 1986 outro grupo seguiu para o Brasil, a
pedido do Bispo de Nova Iguaçu, e fundou o mosteiro de Santa Clara.
Todos estes factos são descritos com fidelidade histórica neste volumoso livro que nos
apraz apresentar aos leitores.
16
Esta obra alia uma investigação rigorosa e vasta ao espírito franciscano de recolher
humildes violetas para não se perder o perfume nem a cor.
Nalgumas páginas sente-se a frescura e simplicidade das «Florinhas de São Francisco»
embora a prioridade seja concedida aos factos históricos, narrados com precisão e frieza de
datas, números e mapas. É uma obra com rigor científico que pode ser consultada por
aqueles que se dedicam à investigação histórica e também pelos místicos que amam
contemplar os caminhos que prolongam a oração de Jesus «sobre o monte».
É curioso notar que a autora deste livro é uma religiosa Clarissa, formada em História,
e que, após a entrada no mosteiro, conservou o gosto e o rigor pela investigação histórica.
A sua vinda para a Madeira, por ocasião do V Centenário, foi oportuna e motivo para
lhe ser pedido este trabalho que depois se apresentou mais longo e exigente do que parecia à
primeira vista.
Agradecemos e louvamos, a Federação das Irmãs Clrarissas de Portugal pela
permissão concedida á Irmã Otília para ausentar-se durante tanto tempo para o Mosteiro de
Nossa Senhora da Piedade, na Madeira. Sem a cooperação deste mosteiro não teríamos esta
obra que nobilita a vida monástica em Portugal.
A Irmã Otília consultou arquivos, tanto civis como eclesiásticos, entrevistou pessoas,
visitou lugares, à procura não só de documentos e recordações, mas também do perfume,
quase diria de um espírito que impregnou pedras e lugares. Dos cinco séculos de Clarissas
na Madeira restam documentos e as suas filhas, dois testemunhos de beleza, santidade e
também debilidade humana.
Com paciência franciscana, a autora foi recolhendo com a exactidão possível a
verdadeira fisionomia das pessoas e das coisas destes cinco séculos de glória e devastação,
da chama do espírito e perseguição humana.
Neste livro desfilam sucessões de pessoas, quadros animados, paisagens, cores, odores,
fogo do céu e lama terrestre.
As qualidades da historiadora e da mística unem-se para nos oferecer um testemunho
de vida que nos emociona e comove e mostra como apesar do rolar dos séculos, a vida
contemplativa não passou de moda nesta diocese.
Numa época de consumo, os conventinhos das Clarissas da Caldeira e de Santo
António proclamam que o essencial consiste na vida em pobreza, solidão, contemplação da
Palavra e da Eucaristia, solidão do Tabor, alegria de uma aliança invisível mas radiosa com
o Deus de amor, sentido profundo de que a sua vocação as coloca no coração da Igreja. As
Clarissas, a exemplo das santas contemplativas, descobriram com o seu estilo de vida que,
para resolver os problemas do nosso tempo, há uma só forma de combate - o da santidade.
Quando alguém se coloca nas mãos de Deus como sua propriedade absoluta «torna-se
uma dádiva de Deus para todos», colabora para a edificação do Reino de Cristo, a fim de
que «Deus seja tudo em todos» (1 Cor, 15, 28).
Funchal, 29 de Setembro de 2000
gTeodoro de Faria,
Bispo do Funchal
17
AGRADECIMENTOS
As Clarissas na Madeira–Uma presença de 500 anos é fruto de uma valiosa
colaboração de muitos, de uma convergência de esforços e de vontades.
No momento em que o Centro de Estudos de História do Atlântico vai proceder à sua
publicação, a nossa gratidão dirige-se, antes de mais, para D. Teodoro de Faria, Prelado da
diocese do Funchal, de quem, em 1997, partiu o pedido da elaboração de uma obra histórica
que ficasse a marcar o quinto centenário da entrada das Irmãs Clarissas na Ilha da
Madeira. Para Sua Excelência Reverendíssima, que sempre soube estimular-nos no
prosseguimento deste trabalho, o nosso agradecimento muito sincero. A D. Teodoro de Faria
queremos ainda agradecer a fineza de prefaciar esta obra e a satisfação com que aceitou o
nosso pedido.
Igualmente desejamos ter uma palavra de muito apreço para com as Irmãs Clarissas
do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, nomeadamente, a Madre Maria Madalena, então
Abadessa, e a Irmã Adelaide Maria da Cruz que, em seu próprio nome e das Irmãs Clarissas
da Madeira, nos solicitaram e confiaram este trabalho, o qual sempre olharam com vivo
interesse.
O nosso reconhecimento dirige-se, de forma particular, aos Senhores Dr José Pereira
da Costa, membro da Academia Portuguesa da História e Presidente do Centro de Estudos
de História do Atlântico, no Funchal, e Doutor Alberto Vieira, também membro da Academia
Portuguesa da História e da Direcção do mesmo Centro. Ao Dr. José Pereira da Costa
agradecemos a amabilidade e deferência com que veio ao nosso encontro oferecendo o
Centro de Estudos de História do Atlântico para editar esta obra. Ao Doutor Alberto Vieira,
insigne especialista da História Insular Portuguesa, que com grande satisfação apoiou esta
publicação, somos devedoras de esclarecimentos histórico-culturais e metodológicos. A
nossa gratidão, pela colaboração e ajuda amiga.
Seguidamente, o nosso agradecimento vai para o Padre Doutor António Montes
Moreira, membro da Academia Portuguesa da História e ex-Professor da Universidade
Católica Portuguesa, que, com dedicação e amizade fraterna, se dignou assumir a revisão
desta obra. Com a sua vasta experiência e competência histórica, a obra As Clarissas na
Madeira – Uma Presença de 500 anos sai mais enriquecida. Apraz-nos expressar a tão
distinto historiador franciscano a nossa grande admiração, o nosso vivo reconhecimento.
Na informatização da obra, vários colaboradores nos deram o seu valioso contributo,
amigo e desinteressado. É para nós um dever prioritário mencionar o seminarista Ignácio
Victor Figueira Rodrigues, estudante universitário de Câmara de Lobos, cuja dedicação foi
inexcedível. Soube pôr-se ao serviço desta causa com entusiasmo e muita amizade,
sacrificando, por vezes, as suas férias. Além disso, em todas as dificuldades de ordem
técnica, foi ele que, ao longo de dois anos, solucionou problemas imprevisíveis. A nossa
palavra cheia de apreço vai igualmente para o Sr. João Manuel, bancário no Funchal, que,
com muita satisfação, durante quase quatro meses, concluído o seu horário de trabalho no
Banco de Portugal, subia à Caldeira para nos dar a sua colaboração. Cumpre-nos ainda,
agradecer à Irmã Adelaide Maria da Cruz, membro da comunidade do Mosteiro de Nossa
Senhora da Piedade, que jamais se poupou a sacrifícios para nos dar o apoio possível. Além
disso, diante de qualquer dificuldade, teve sempre uma palavra fraterna e estimulante que
nos fazia seguir em frente.
A nossa atenção dirige-se agora para os Arquivos, onde mais demoradamente incidiu
a nossa investigação e nos quais encontrámos sobejas manifestações de simpatia e
delicadeza. Referimo-nos ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo; ao Arquivo Histórico
Ultramarino em Lisboa, onde a Directora, Dra Maria Luísa Abrantes foi admirável em
18
acolhimento e dedicação; ao Arquivo Histórico da Diocese do Funchal, devendo agradecer
as facilidades e a confiança concedidas, a amabilidade e estímulo do Prelado do Funchal e
bem assim a disponibilidade do Dr. Orlando de Freitas Morna; ao Arquivo Regional da
Madeira, onde só encontrámos atenções e deferências. À Directora deste Arquivo, Dra Maria
Fátima Araújo de Barros Ferreira, queremos expressar o nosso reconhecimento pelo auxílio
dado e por todas as gentilezas de que nos rodeou. Devemos igualmente mencionar a
arquivista Dra Maria Favilla Vieira da Rocha Paredes, sempre atenciosa e pronta a ajudarnos em qualquer dificuldade, bem como os funcionários do mesmo Arquivo, nomeadamente
D. Elsa Maria Mendonça Pestana Gonçalves e o Sr. Leonardo Teixeira Pereira admiráveis
na sua competência e acolhimento.
Cumpre-nos ainda mencionar a preciosa colaboração da Secretaria Regional do
Turismo e Cultura na pessoa do Senhor Secretário Regional, João Carlos N. Abreu, que,
desde a primeira hora, apoiou as iniciativas das celebrações centenárias e a elaboração
desta obra, bem como o Director Regional de Assuntos Culturais, Dr. João Henrique G. da
Silva e os seus colaboradores. Entre estes salientamos o Dr. José de Sainz-Trueva sempre
atencioso e incansável em fornecer-nos as fotografias para esta obra, disponibilizando o
fotógrafo da DRAC Rui Camacho que, por sua vez, se manifestou sempre muito amável.
Devemos ainda agradecer ao Padre Daniel António Silveira Teixeira, franciscano, a
sua valiosa colaboração, bem como à Directora do Museu de Arte Sacra, Dra Luíza Clode, o
seu dedicado contributo.
E, finalmente, queremos deixar uma palavra de apreço e cordial gratidão para com as
nossas Irmãs na Ordem, pelo seu apoio espiritual e dedicação fraterna.
Possa esta obra ser transmissora da verdade histórica e de conceitos culturais mas
também de vivência interior, de amor, de paz e bem; daquela Paz e Bem que São Francisco
de Assis não se cansava de desejar aos seus irmãos no século XIII em que viveu.
Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Caldeira-Câmara de Lobos, 4 de Outubro de
2000, festa de São Francico de Assis
Otília Rogrigues Fontoura, osc
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PLANO GERAL
Introdução
PRIMEIRA PARTE
Origem, carisma e difusão da Ordem de Santa Clara de Assis
SEGUNDA PARTE
Mosteiros da Madeira no Passado
Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição ou de Santa Clara (Funchal)
Mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação (Funchal)
Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês (Funchal)
TERCEIRA PARTE
Mosteiros da Madeira no Presente
Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade (Caldeira - Câmara de Lobos)
Mosteiro de Santo António (Lombo dos Aguiares - Funchal)
APÊNDICE
Crónica das Celebrações Centenárias
20
INTRODUÇÃO
1. Porquê este livro?
A obra As Clarissas na Madeira - Uma presença de 500 anos é a resposta fraterna a um
apelo que nos foi dirigido no início de 1997. Completava-se então meio milénio de presença
da Ordem de Santa Clara de Assis na Pérola do Atlântico.
As cinco primeiras clarissas saídas do real mosteiro da Conceição de Beja2 rumo à
Madeira, entre as quais se contava D. Isabel de Noronha, filha de João Gonçalves da Câmara,
capitão donatário, entraram no real mosteiro de Nossa Senhora da Conceição do Funchal,
mais tarde designado mosteiro de Santa Clara, exactamente a 5 de Novembro de 1497.
O mosteiro de Santa Clara, a primeira casa religiosa feminina das ilhas atlânticas, cresceu
e proliferou. Tornou-se como que uma metrópole, uma casa-mãe, donde a Ordem irradiou
para outras áreas geográficas. E tão radicadas ficaram as filhas de Clara de Assis nas ilhas de
João Gonçalves Zarco que, em época nenhuma, nem mesmo nos períodos conturbados e
violentos do Liberalismo e da República de 1910, a sua presença sofreu interrupção. As Irmãs
Clarissas madeirenses encontraram sempre motivações fortes para permanecerem firmes no
seu próprio viver. Nada nem ninguém, ao longo de 500 anos, conseguiu vencê-las ou afastálas do seguimento do seu ideal.
Esta presença, que sempre se traduziu na vivência do espírito de Assis, ainda que no meio
de dificuldades e de lutas, queriam as Irmãs Clarissas de hoje e a Madeira, sua terra-mãe,
celebrá-la com amor e júbilo. A ideia foi ganhando vulto...
Em Fevereiro de 1997, chegou até nós um apelo: elaborar a história dos mosteiros da
Madeira. Desejavam as Irmãs Clarissas madeirenses dispor de texto que lhes permitisse certa
difusão da efeméride. Do acolhimento deste pedido resultou um dossier de pouco mais de cem
páginas dactilografadas que foi enviado ao mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, na
Madeira.
Algum tempo depois, um novo contacto telefónico nos interpelava. O Senhor D. Teodoro
de Faria, prelado da diocese do Funchal, desejava a nossa presença na Ilha por dois motivos:
auxiliar a dinamização das celebrações centenárias e elaborar uma obra histórica que ficasse a
perpetuar o acontecimento.
Em atitude de obediência e serviço à Igreja e à Ordem, a 18 de Julho do referido ano,
deixávamos Lisboa, rumo à Madeira, para responder às solicitações que nos haviam sido
feitas.
2. A vastidão do tema
A complexidade e extensão da matéria que nos propusemos tratar, assumindo
aspectos, em certos casos, antitéticos, nascidos e vividos ao longo de cinco séculos, acarretou
consigo dificuldades. Essa a razão que nos levou a uma subdivisão do trabalho, sem que, no
entanto, lhe tivéssemos tirado algo da sua unidade e complementaridade. A obra foi, pois,
dividida em três partes seguidas de um apêndice em que se fez uma pequena crónica das
celebrações centenárias.
Na Primeira Parte visualizámos a pessoa da fundadora da Ordem, Clara de Assis,
inserida no contexto histórico-social, político e religioso da época, a origem e o carisma da
Ordem e a sua difusão no mundo, com particular realce para a sua entrada e evolução em
2
Sendo mosteiro a palavra exacta para designar as casas religiosas da Ordem de Santa Clara, somente usaremos outra terminologia em
transcrições e fundos arquivísticos.
21
Portugal. Com esta análise, ainda que muito breve, o leitor poderá situar-se no mundo
franciscano e seus matizes.
Na Segunda Parte fizemos o estudo dos três mosteiros do passado: Mosteiro de Nossa
Senhora da Conceição ou de Santa Clara do Funchal (1497-1890), Mosteiro de Nossa Senhora
da Encarnação do Funchal (1660-1890), Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal
(1667-1910).
O Funchal conheceu no passado dois mosteiros, Santa Clara e Nossa Senhora da
Encarnação, que se deixaram embarcar na ideologia do tempo, sendo, mais do que genuínos
mosteiros de Clara de Assis, resposta a necessidades sociais e estruturas políticas. Porém, bem
perto destes, o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, embora nascido, como aqueles, nesse
âmbito, soube subtrair-se ao pensamento e às praxes políticas e sociais do século XVII e
seguintes, para ser seguidor fiel do Evangelho, concretização de um ideal cheio de valores
espirituais. O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês foi, de facto, rocha firme, liame entre o
passado e o presente, viveiro das mais nobres e excelsas virtudes.
Certamente por isso, enquanto os dois mosteiros urbanistas, ou seja seguidores da
Regra de Urbano IV, foram, ao ritmo do tempo, manipulados pela sociedade e suas
necessidades, o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês soube mergulhar no espiritual,
vivenciar o carisma franciscano, ser concretização e resposta espiritual para a humanidade da
época.
Na Terceira Parte levámos o leitor até à Caldeira, onde poderá encontrar as
continuadoras do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal e aos mosteiros de Santo
António, no Lombo dos Aguiares, de Nossa Senhora das Mercês, nos Açores e de Santa
Clara, em Nova Iguaçu, no Brasil, para onde irradiou a comunidade do mosteiro de Nossa
Senhora da Piedade nestas últimas décadas do século XX.
E, finalmente, em Apêndice, apresentámos, a gesta de amor e de louvor que foram as
celebrações centenárias. Belo hino que ecoou por toda a Ilha e vibrou longe em terras do
Continente, Açores e Brasil.
3. Fontes e Bibliografia
Penetrar no mundo franciscano do passado, palmilhar com interesse e amor os caminhos
já trilhados por Clarissas de outras épocas, foi para nós trabalho entusiasmante. Se algumas
vezes nos pôs diante de comportamentos dissonantes que nos interpelam vivamente, enfim,
situações da fragilidade humana, no geral, Deus presidiu a esta história de luz e sombras. Este
estudo deu-nos a possibilidade de contacto com um mundo religioso e social, cheio de ideais,
de riquezas e matizes diversos. Para o conhecer, aprofundar e interpretar com objectividade,
procurámos documentar-nos em fontes inéditas e abundante biografia impressa.
Em Lisboa, fizemos investigações no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo
Histórico Ultramarino, Arquivo da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais,
na Biblioteca Nacional e na Biblioteca da Ajuda. Na Madeira, a nossa investigação foi longa
no Arquivo Histórico da Diocese do Funchal, no Arquivo Regional, nos arquivos das
Paróquias de São Sebastião e do Carmo, em Câmara de Lobos e ainda nos arquivos dos
mosteiros de Nossa Senhora da Piedade (Caldeira - Madeira), de Nossa Senhora das Mercês
(Açores) e de Santo António (Funchal).
Relativamente a fontes impressas, manejámos obras de carácter geral, de História de
Portugal e, sobretudo, de carácter específico, que nos ajudaram à inserção no tema;
encontrámo-las nas bibliotecas de Lisboa, Nacional, da Ajuda, do Seminário Franciscano da
Luz, da Cúria Provincial dos Franciscanos, dos mosteiros de Clarissas de Sintra e de Lisboa, e
nas bibliotecas da Madeira, Municipal, da Direcção Regional de Assuntos Culturais, do
22
Arquivo Regional, do Arquivo Histórico da Diocese do Funchal e do mosteiro de Nossa
Senhora da Piedade.
Devemos ainda mencionar as pesquisas feitas em periódicos e revistas de temas
culturais, nomeadamente, no Jornal da Madeira, Diário de Notícias, (do Funchal), Diário do
Governo, O Réclame, A Verdade, Correio da Madeira, O Jornal e nas revistas Islenha,
Atlântico e Girão.
Na Madeira, pudemos também observar importantes fontes históricas, que
directamente se ligam ao tema em questão, como sejam, monumentos, esculturas, pinturas e
outras mais. No Museu de Arte Sacra tivemos a possibilidade de apreciar algumas pinturas
flamengas, luso-flamengas e da escola portuguesa, que referimos na presente obra.
Julgámos, pois, ter percorrido os caminhos possíveis e essenciais para tratar o tema,
polifacetado mas uno. Dada a sua vastidão e complexidade, embora procurássemos, na
maioria dos casos, ir ao fundo da questão, certos problemas ficaram em aberto. Sobre eles
poderão incidir posteriores investigações. Tentámos dar uma visão de conjunto fixando-nos
no essencial e específico. Doutra forma o nosso trabalho seria excessivamente longo.
Apesar do cuidado que pusemos na elaboração do trabalho, não faltarão imprecisões,
lacunas e equívocos que, certamente, outros investigadores virão a rectificar.
*
Atendendo a que esta obra não se destina somente a uma elite cultural, mas se dirige a
um público mais vasto, permitimo-nos, como opção metodológica, adaptar um pouco a
estrutura da frase, assim como a pontuação, nas transcrições, particularmente para
documentos mais antigos, tendo em vista uma melhor compreensão do texto, sem, contudo,
adulterar a autenticidade do conteúdo.
23
PRIMEIRA PARTE
ORIGEM, CARISMA E DIFUSÃO DA ORDEM
DE
SANTA CLARA DE ASSIS
24
CAPÍTULO I
A VOCAÇÃO DE CLARA E A ORIGEM DA ORDEM
1. Assis, nos séculos XII-XIII
A estrutura feudal da Alta Idade Média, que durante séculos ditara o destino da Europa,
estava em crise desde as últimas décadas do século XII. Os grandes feudatários envolviam-se
em lutas contra as cidades, a fim de deter a força vertiginosa da burguesia nascente. As
cidades da Europa e, de forma muito acentuada, as da Itália, enriquecidas com o
desenvolvimento do comércio, embaladas por um rápido movimento comunal e movidas por
forte rivalidade económica e política, combatiam-se ferozmente.
Situada estrategicamente entre o Oriente e o Ocidente, a Itália tornara-se campo de
lutas violentas que se faziam sentir fortemente na pequena e belicosa cidade de Assis.
Habituada como estava a uma certa autonomia, tolerada pelo imperador alemão, Henrique VI,
a cidade, como muitas outras, havia organizado um governo comunal, com cônsules da sua
escolha. A luta entre os comuns de Assis e os nobres, muito ciosos do seu poder, agravou-se a
partir de 18 de Janeiro de 1200. Atacados com violência, vêem-se obrigados a deixar os seus
palácios e castelos e a refugiar-se em Perúsia, onde encontraram asilo e protecção. A guerra
entre as duas cidades, inimigas desde há muito, renasceu e ganhou proporções. A derrota de
Assis em Collestrade, em Novembro de 1202, agravou a situação. Por 1205, depois de quatro
anos de guerras violentas, a cidade, dilacerada pelo ódio dos partidos, sofria extrema miséria.
O antagonismo entre a velha nobreza, muito ciosa dos seus direitos e poder, e a burguesia, já
endinheirada e opulenta, atingira o apogeu.
Apesar do tratado de paz que havia sido feito em 1203, a guerra prolongou-se até 1209.
Só então, os nobres começaram a regressar a Assis. A 9 de Novembro de 1210, um pacto de
paz entre majores et minores proclamou a liberdade de todos os assisienses e estabeleceu a
ordem que, no entanto, muitas vezes voltou a ser perturbada3.
Sob o ponto de vista religioso, a situação não era melhor. A sociedade enfermava duma
grave crise de identidade evangélica. Da necessidade duma reforma profunda, especialmente
no respeitante à prática da pobreza evangélica e fraternidade, eram testemunho os
movimentos de tendência pauperística, que algumas vezes entravam em conflito com a Igreja
e outras vezes acabavam mesmo na heresia.
Na época que estamos a considerar, a hierarquia eclesiástica e os mosteiros,
identificando-se com uma determinada classe social, nem sempre davam testemunho de
vivência evangélica. Detentores de grandes propriedades e senhores de privilégios sem
número, gozando duma vida estável e com segurança, longe estavam da pobreza e da
fraternidade de que Cristo se fez arauto.
Porém, Deus, condutor da história dos homens, em cada época suscita os profetas de
que a Igreja precisa. Em Assis, Francisco, filho de um rico burguês da cidade, animado de
aspirações profundas, debatia-se a procura de prestígio e poder. Deus, operando nele uma
conversão lenta mas progressiva, quis servir-se deste ardoroso jovem para operar, na Igreja e
na sociedade, a transformação necessária. Ao seu lado, o Espírito Santo suscitou Clara, jovem
de uma distinta família de Assis, que iria descobrir uma nova forma de vida consagrada.
O ambiente social da época, com os seus antagonismos políticos e religiosos, com o seu
acentuado desequilíbrio entre o ser e o ter, com a mística da cavalaria, a exaltação do amor
puro e o fascínio do heroísmo, foi o terreno em que nasceu e se concretizou a vocação destes
dois jovens que, uma vez atraídos por Cristo, compreenderam que Deus basta e tudo o mais
3
Fernando Félix Lopes, ofm, O Poverello. São Francisco de Assis. Braga, 1983, pp. 28-33.
25
sobra. Fazendo parte do complexo social de então, inverteram os seus valores pouco a pouco,
por imperativo da palavra do Evangelho e a exemplo de Jesus Cristo. O espírito manifesta-se
em cada época sempre em novidade de vida, tudo renovando. No século XIII, Francisco e
Clara foram instrumentos de Deus para a renovação necessária e adequada.
2. Clara Offreduccio
Clara, a tão desejada primogénita, nasceu em 1194, em Assis, no seio de uma família
nobre e rica, no castelo dos Offreduccio, situado na Praça de São Rufino, junto à catedral.
Seus pais, Favarone Offreduccio di Bernardo, nobre cavaleiro, e Madonna Hortolana, senhora
rica e nobre, eram respeitados e muito apreciados na cidade, pela sua honradez e obras de
caridade.
Clara teve uma infância cheia de felicidade e de facilidades. Porém, a partir de 1200,
interrompida a paz em Assis, e porque violentas lutas se desencadearam entre os habitantes da
comuna e os senhores dos castelos, como acima se referiu, os pais de Clara não puderam
ocultar-lhe os horrores duma guerra fratricida. A família teve mesmo que exilar-se em
Perúsia, no palácio dos condes de Sasso Rosso, de quem eram amigos4. Regressando a Assis,
Clara respirou novamente a tranquilidade do seu palácio acastelado. Sua mãe, excelente
educadora, deu-lhe uma boa formação religiosa, humana e cultural.
Aos doze anos, conforme os costumes da época, a jovem foi prometida em casamento a
um nobre que a pretendia. Clara não demonstrou qualquer interesse pelo casamento, segundo
o testemunho do próprio pretendente, Ranieri di Bernardo, a quem Clara falava de Deus e do
desprezo das coisas do mundo.
Clara de Assis era um conjunto de dons e de valores, uma jovem de fé, de sentimentos
delicados, que iria tornar-se uma “mulher nova” e decidida, que não seguiria um caminho
comum. Ao lermos Tomás de Celano e outras fontes que nos falam de Clara, damo-nos conta
de que ela era alegre, simpática, inteligente; e, embora suave e dócil, manifestava-se enérgica,
decidida e empreendedora. A primogénita de Favarone e Hortolana tinha um coração
generoso, excepcionalmente delicado, totalmente altruísta.
Aos dezassete anos os pais e parentes quiseram dá-la em casamento, mas Clara não
aceitou de forma alguma, porque, por amor a Cristo, queria permanecer virgem e viver em
pobreza, como mais tarde o demonstrou5. Em Clara, o desejo de consagrar-se a Cristo era
muito profundo. Porém, queria viver a sua consagração duma forma nova - em simplicidade,
pobreza, em vivência radical do Evangelho, sem apoios humanos. Não queria ser monja,
segundo os moldes tradicionais. Desde há muito contemplava encantada o viver de Francisco
e seus irmãos. Viviam felizes. Não precisavam de bens materiais, propriedades, rendas, dotes;
de tudo se haviam despojado por amor de Jesus Cristo. Eram irmãos menores, haviam descido
a misturar-se com o povo, os fracos, os sem direitos. Cristo bastava-lhes, e isto encantava e
interpelava a filha de Favarone.
3. Uma opção plenamente livre
Na Idade Média, raríssimas vezes a mulher podia escolher o seu destino. Escrava duma
estrutura social, estava subjugada aos interesses da mesma. Se era nobre, estava destinada a
4
Maria Victoria Triviño, osc, Clara de Asís, ante el espejo, historia y espiritualidad, Madrid, 1991, pp. 40-44. A Irmã Maria Victoria
Triviño, clarissa espanhola contemporânea, tem-se dedicado ao aprofundamento da espiritualidade de Santa Clara.
Cf. PC, XIX, 2, in Fontes Franciscanas II, Santa Clara de Assis, Escritos – Biografias – Documentos, 2ª edição, Braga 1996, p. 213. Esta
obra, reunindo os escritos de Santa Clara, bem como os documentos e textos que, directa ou indirectamente, a ela se referem e à sua ordem,
deve-se ao franciscanao Frei José António Correia Pereira.
5
26
alianças entre famílias aliadas ou rivais - forma de acrescentar ou associar feudos - e a gerar
filhos. Mal completava os doze anos e em certos casos mais cedo, era prometida por contrato
dos pais e, aos dezassete anos, devia casar. Durante os cinco anos que decorriam entre a
promessa e o casamento, o cavalheiro procurava conquistar o afecto e o coração da sua dama.
Se o não conseguisse, porque a donzela não desejava contrair matrimónio, os pais,
responsáveis pela segurança da filha, convidavam-na a entrar num mosteiro.
“Clara, a Pomba Prateada, pomba do Franciscanismo”6, na linguagem de Guedes de
Amorim, não se sentia vocacionada para o casamento, nem tão pouco para um mosteiro de
monjas, como os existentes. Ela tinha o seu caminho próprio - seria irmã pobre, seguidora
intrépida de Jesus Cristo.
A família estava perplexa: se não queria casar, entrasse num convento de monjas
beneditinas ou de cónegas de Santo Agostinho, num desses grandes mosteiros do seu
tempo, destinados só a mulheres da nobreza. Assim honrava o seu nível social. Clara,
orientada por Francisco, depois de séria reflexão e o consentimento do bispo de Assis,
“deixou a casa, a cidade e os familiares e apressou-se a ir para Santa Maria da Porciúncula.
Os irmãos, que à volta do altar celebravam as sagradas vigílias, receberam a virgem Clara
com tochas acesas”7. Naquela noite de Domingo de Ramos, de 1212, nascia a Segunda
Ordem Franciscana.
O gesto de Clara humilhou os nobres e desorientou os seus familiares. Contudo, com
esta atitude, a nobre castelã afirmou o direito que assiste à mulher cristã de amar para além do
matrimónio e de decidir o seu futuro, independentemente dum plano familiar preestabelecido.
A reacção dos familiares era previsível, pois a nobreza feudal era muito zelosa em
defender o prestígio, a honra e o bom nome dos seus membros. E, quando estava em causa
uma mulher da sua linhagem, então, era maior o compromisso. Clara foi, pois, conduzida ao
mosteiro de beneditinas de São Paulo de Bastia, a três ou quatro quilómetros de Assis, para
que pudesse gozar de imunidade eclesiástica.
À agressão dos familiares, respondeu calma, serena, mas firmemente. Vestida com a
túnica da pobreza, recebida na capelinha de Nossa Senhora dos Anjos, bastou-lhe, para se
defender, um duplo gesto: quando o tio Monaldo, cercado de cavaleiros armados, tentou subir
os degraus do presbitério, Clara, com uma das mãos, agarrou-se ao altar, lugar privilegiado de
asilo e com outra levantou o véu que lhe cobria a cabeça sem os seus longos cabelos, não só
sinal de consagração como também de que já estava sob o foro eclesiástico8. Ali estava Clara,
digna e nobre, com todo o entusiasmo dos seus dezoito anos, a elegância do seu porte, mas
também, e sobretudo, com a certeza de que a firmeza da sua fé venceria todas as dificuldades.
Depois de uma curta estadia entre as beneditinas, Clara fixou-se no conventinho de São
Damião, ermida que fora restaurada por Francisco e na qual fizera então os últimos retoques
para receber as eleitas do Senhor, já em número de três: Clara, sua irmã Catarina (a quem
Francisco deu o nome de Inês) e Pacífica9.
4. A comunidade nascente
6
Guedes de Amorim, Francisco de Assis, Renovador da Humanidade, Lisboa, 1960, p. 188 e 247, 397 e 402
LCL, 8, in FF II, p. 246. Chiara Augusta Lainati, osc, Santa Clara de Asís, Oñate (Guipúzcoa), 1993, pp. 41-43. A Irmã Clara Lainati,
clarissa italiana, tem feito importantes estudos sobre Santa Clara e a sua espiritualidade. Todo o processo de adesão a Cristo de Clara de
Assis, pode captar-se na leitura das suas obras. Também o romance histórico “Santa Clara de Assis”, da clarissa francesa, Claire – Pascale
Jeannet, de leitura verdadeiramente atraente, dá uma visão exacta e historicamente correcta, do ideal de Clara, da sociedade, da Igreja e da
aventura franciscana do século XIII. A autora, além de explorar com muita minúcia as fontes e trabalhos históricos mais recentes, quis passar
algum tempo em Assis, para melhor captar a atmosfera, aroma, vibração e luz, não só de Assis, como também do mosteiro de São Damião.
8
LCL, 9, in FF II, p. 247.
9
LCL, 10, in FF II, p. 247.
7
27
A Clara depressa se juntaram outras donzelas que, como ela, queriam seguir a Cristo e
viver o Evangelho em estilo novo. Quando entraram no mosteiro de São Damião, já eram três,
como atrás se referiu. Clara, Inês e Pacífica sabiam que outras haviam de chegar. A quarta
eleita do Senhor foi Benvinda. Clara ficou radiante. É que Benvinda não era nobre e vinha da
1.Mosteiro de São Damião, em Assis. Foi aqui, nesta
pequena e modesta construção do século VII ou VIII,
situada entre oliveiras, que Santa Clara viveu quarenta
e dois anos. São Damião, um mosteiro pequeno e
modesto, viu florescer os mais nobres ideais. Com
razão lhe são atribuídos belos e expressivos epítetos:
“santuário da visão franciscana da vida”
(Omaechevarría), “delicioso jardim perfumado”
(Casolim).
maior rival de Assis – Perúsia. Depois chegaram Balbina, Cecília, Filipa, Cristina e tantas
outras10. Cada nova vocação era um precioso dom de Deus; Clara, mãe e mestra naquela
comunidade nascente, ia infundindo no coração de cada enviada do Senhor um profundo amor
a Cristo e, bem assim, àquela nova e santa forma de viver a consagração religiosa.
A Ordem, que acabava de nascer, cresceu e difundindo-se, porque o Senhor lhe enviava
2. Capela do mosteiro de Damião. Na rústica
construção de pedra, reparada pelo Irmão Francisco
no início da sua conversão a Deus, é bem visível a
torre sineira da igreja de São Damião, encimada pela
cruz, a marcar a presença do templo
muitas almas sedentas de santidade, porque era Ele a presidir a este milagre
franciscano. Em 1238, estavam em São Damião cinquenta religiosas, apesar das muitas que
iam saindo para novas fundações11. São Damião, no dizer de Miglioranza, “mais do que um
mosteiro, foi um ideal, um desafio, um sonho feito realidade12. Um ideal feito de mansidão,
de humildade, fraternidade, sentido profundo de Deus e de empenhamento ao serviço de
todos. Um amor incomensurável de Deus e das suas criaturas transparecia daquele “pobre
conventinho”, que enchia de mistério e emoção até os mais afastados de Deus. Poucas vezes a
vivência cristã se revestiu de tanta suavidade e encanto!
Quando as Irmãs já eram bastantes, Clara pediu a seu Pai e Mestre que lhes desse
normas para viverem o Evangelho, segundo o ideal franciscano. A Forma Vivendi,
gostosamente dada por Francisco, que se concretizava na vivência do santo Evangelho em
castidade, em obediência e sem próprio, orientou a vida das “Irmãs Pobres” de São Damião
nos primeiros anos. A “altíssima pobreza e a fraternidade” são nesta “Forma de Vida” valores
prioritários. Esta pequena regra foi posteriormente completada com outra legislação.
10
Tomás de Celano fala-nos entusiasticamente do afluxo de jovens a São Damião. Seguindo o exemplo de Clara “as virgens procuravam
conservar-se íntegras para Cristo(...) a mãe convidava a filha e a filha convidava a mãe a seguir a Cristo; a irmã seduzia a irmã e a tia as
sobrinhas. Todos pretendiam seguir a Cristo em fervorosa emulação. Todos desejavam partilhar desta vida evangélica que o exemplo de
Clara inspirava” (LCL, 10a, in FF II, p. 248).
11
“ Documento de venda de 1238”, in FF II, pp. 475-476. O documento diz respeito à venda da herança de uma religiosa. É assinado por
Clara e cinquenta Irmãs.
12
C. Miglioranza, ofm conv, “Santa Clara de Asís”, in Misiones franciscanas conventuales, Buenos Aires p.77; citado por Maria Victoria
Triviño, osc, op. cit., p. 105.
28
A Forma Vivendi, o escrito mais antigo que se conhece de São Francisco, ter-se-á
perdido. Contudo, a Regra de Santa Clara dá-nos o seu texto, embora não na totalidade13. Nela
estão contidos os dois aspectos mais importantes para Clara: a pobreza e a ligação espiritual
com os Frades Menores14.
13
14
RCL, VI, 3 e 4, in FFII, p. 53.
RCL,VI, 3 e 4, in FFII, p. 34.
29
CAPÍTULO II
COM CLARA DE ASSIS,
UMA NOVA FORMA DE SER CONTEMPLATIVA
1. Contemplação franciscana
1.1. Encanto e enamoramento
A contemplação franciscana tem o seu matiz próprio. Em Francisco, como em Clara
de Assis, a vida contemplativa brotou do encanto. Eles não estão em função de si mesmos,
mas da Igreja e do mundo. O segredo das suas vidas foi o enamoramento por Jesus Cristo e,
na sequência desse enamoramento, o seu grande ideal foi a identificação com Cristo pobre e
crucificado, que se traduziu em seguimento. A vivência radical do santo Evangelho foi neles
uma consequência do êxtase de amor por Jesus15.
Dentro desta dinâmica franciscana, seguir os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo,
antes de ser serviço, é adoração. Para que a alma e o coração possam expandir-se em louvor e
adoração, é necessário o silêncio de todo o ser, um coração vazio de tudo o que não é Deus;
há necessidade de contínua passagem do egoísmo ao amor, rectificação ou penitência,
conversão quotidiana. A contemplação franciscana tem em si implícita essa exigência,
caminho que, pela identificação com Jesus, gera a transformação, a cristificação. O Poverello,
o Alter-Christus, percorreu este caminho que no Alverne atingiu elevação máxima.
Todo possuído por Cristo, o Pobrezinho, vivia enamorado d’Ele. A pessoa de Jesus
surgiu a Francisco “linda, luminosa, encantadora, avassaladora”16. Não admira, pois, como diz
o seu biógrafo Tomás de Celano, o seu amor louco, a sua sede de Cristo. “Trazia Jesus no
coração, Jesus nos lábios, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos”17. Assim
imerso no absoluto de Deus, no seu Jesus pobre e crucificado, n’Ele se abraçou com a
plenitude do amor, a totalidade dos homens e a comunidade dos seres.
1.2. Em comunhão com toda a criação
A alma franciscana tem um dom específico: descobrir nos seres criados o sinete do
Criador, neles ouvir a vibração da sua voz e, por esse meio, a Ele ascender.
Francisco, ante a bondade do irmão e da irmã, a beleza do sol e da lua, o sorriso cândido
e transparente da criança, o canto melodioso do passarinho, a beleza e o perfume da flor, subia
às alturas e, em êxtase de amor, rompia em hinos de louvor ao Criador, autor de tanta beleza.
A perfeição e a beleza dos seres despertavam no seu coração a emoção, a admiração, o
encanto por Aquele que, sendo autor e Senhor de todos os seres, merece – e só Ele - toda a
honra e todo o louvor.
Diz São Boaventura que São Francisco de Assis percebia em cada criatura a bondade
infinita de Deus, um convite a um amor maior18. Ele, como Clara, sua “plantazinha”,
15
David de Azevedo, ofm, Sãp Francisco de Assis, Fé e Vida, Braga, 1984, pp. 30 – 43. Esta obra é um trabalho muito profundo, que deixa
ver, à evidência, toda a potencialidade da acção de Deus na pessoa de Francisco e, concomitantemente, numa abertura total de Francisco à
acção divina, a descoberta deslumbrante do amor do Pai, concretizado na pessoa de Jesus Cristo. A Editorial Franciscana de Aranzazu, a
pedido do Centro de Franciscanismo de Madrid, fez a sua publicação em espanhol.
16
David de Azevedo, ofm, op. cit., p. 29.
17
Tomás de Celano, “Vida Primeira”, IX, 115, in Fontes Franciscanas I, S. Francisco de Assis. Escritos-Biografías documentos, Braga
1994, p. 328; citado por David de Azevedo, ofm, op. cit., p. 31.
18
São Boaventura, Legenda Maior, V, 11, in FF I , p. 637. Pode ver-se: Otília Rodrigues Fontoura, osc, “Encanto de Clara de Assis ante a
criação - O homem e os seres”, in Cadernos de Espiritualidade Franciscana, Braga, 3, pp. 39-48.
30
passavam facilmente da criatura ao Criador, do belo à beleza total, da bondade ao
omnipotente e bom Senhor, do bem ao sumo bem. Clara ascendia a Deus, mediante a
contemplação do universo e descobria a sua beleza em todas as belezas criadas. “Tal como
Francisco”, diz René Charles Dhont, “Clara admirava nos seres formosos a beleza infinita do
Criador”19. Tudo para ela era motivo de elevação espiritual. Não era ela a “Flor de Altura”,
como gentilmente a chama o poeta José Régio20?
1.3. Uma só vocação, um só carisma, uma só família
Francisco e Clara!... Uma Família Franciscana, uma mesma vocação, um mesmo ideal –
o encanto, o enamoramento por Jesus Cristo. Uma só e mesma vocação contemplativa.
O frade menor e a irmã clarissa, porque enamorados por Jesus, são chamados à
identificação com o Senhor, à vivência do Evangelho, em pobreza e fraternidade. Ambos são
chamados a responder com a vida, à ordem do Senhor: “Francisco, vai e repara a minha casa
que, como vês, está quase em ruína”21. Uma mesma vocação, um mesmo ideal, uma mesma
responsabilidade, uma mesma resposta a dar22. A diferença está tão-somente na forma de
concretizá-la. O frade menor actua, por mandato do Senhor, no meio dos irmãos, proclamando
e testemunhando a plenitude do amor de Cristo, a bondade de Deus e a fraternidade dos
homens; a irmã clarissa, no escondimento do claustro, vivendo em pobreza, em oração
silenciosa e contemplativa, dá testemunho de Cristo em contemplação a sós com o Pai,
proclama “o encanto que Deus é ” e assume com Cristo, as dores, as alegrias e as esperanças
dos homens.
3. Crucifixo Bizantino de São Damião. Crucifixo que se venerou na igreja de São
Damião, em Assis, até meados do século XIII. Este belíssimo ícone bizantino mostra-nos
Cristo Crucificado, mas sem cravos e sem espinhos. Cristo vivo, ressuscitado e aureolado
de glória. Conserva-se na Basílica de Santa Clara desde a transferência das Clarissas para
o Protomosteiro de Santa Clara em Assis, no ano de 1260. Reprodução de Carlos Fotógrafo
2. O mosteiro de São Damião - Ideal e desafio
2.1. Vida em fraternidade
Alma genuinamente franciscana, feita a deslumbrante descoberta do amor gratuito do
Pai, revelado em Jesus Cristo, Clara imergiu com toda a potencialidade do seu ser no absoluto
de Deus, como consequência do enamoramento por Cristo pobre e crucificado e n’Ele se
abraçou com a plenitude do amor, a humanidade e a criação.
Clara tinha sua vocação peculiar. Era discípula do Pobrezinho de Assis, seguidora de
Cristo em estilo novo; não era monja, mas Irmã Menor, Irmã Pobre, vocacionada para a
fraternidade. O estilo de vida que abraçou era novidade na Igreja. Clara foi uma “Mulher
nova”, uma “Mulher forte e fiel”; sabia o que queria e foi capaz de percorrer todos os
caminhos para chegar aonde Deus a impelia. Clara, embora abrangida pelas normas jurídicocanónicas monacais, foi uma inovadora que, rompendo formas e tradições, fez nascer em São
19
René-Charles Dhont, ofm, Clara de Assis – O seu projecto de vida evangélica, Braga, 1980, p 82. Esta obra foi traduzida do espanhol pela
Irmã clarissa Gabriela da Virgem.
20
Em louvor de Santa Clara, Braga, 1954 (organizado por Armindo Augusto), p. 199-200. A Ordem de Santa Clara em Portugal, Braga,
1977 (não em 1976 como se lê no frontispício), pp. 55-56.
21
Tomás de Celano, “Vida Segunda”,VI, 10, in FF I, p. 367.
22
Chiara Augusta Lainati, osc, op cit., Prólogo à edição espanhola, p. 7; Thaddée Matura, ofm, “Uma só vocação, um só carisma, uma só
família”; conferência pronunciada na XXI Semana Internacional dos Franciscanos da Península Ibérica em Abril de 1993, Cadernos de
Espiritualidade Franciscana ,0, pp. 9 – 18.
31
Damião um novo estilo de vida religiosa contemplativa - vida pobre, em fraternidade e
serviço, humilde e simples, em amorosa contemplação de Deus e em sintonia com a
humanidade sofredora; em suma, vida de seguimento de Cristo pobre e crucificado”23.
Em São Damião, não havia estruturas verticais; não havia classes sociais nem
privilégios, a não ser o privilégio de ser pobre. Ali havia a simplicidade e a igualdade dos
filhos de Deus. Só Cristo e a sua Mãe pobrezinha serviam de modelo às damianitas.
No mosteiro de São Damião, vivia-se em fraternidade. Ali, havia Irmãs igualmente
consultadas e ouvidas. Todas eram chamadas a dar o seu consentimento na recepção de novas
candidatas24; os assuntos respeitantes à utilidade e bem espiritual das Irmãs eram tratados em
reunião conventual e até as mais novas deviam ser ouvidas, “pois muitas vezes é ao mais
pequenino que o Senhor revela aquilo que mais convém”25. Em São Damião, o
relacionamento era perfeito - era fraternidade. Estamos diante de uma estrutura horizontal,
dignificante da pessoa humana, porque estrutura evangélica.
2.2. O trabalho como meio de subsistência
Os mosteiros da Idade Média tinham a sua subsistência assegurada com rendas. Clara e
suas Irmãs viviam do trabalho e da ajuda dos fiéis. Esta filha de Assis considerava o trabalho
uma graça. “As irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar, ocupem-se fiel e
devotamente (...) num trabalho honesto e de comum utilidade”26.
Viver do trabalho num mosteiro medieval era viver em pobreza. Estar assegurada a
subsistência duma comunidade contemplativa pelo trabalho e pela caridade dos fiéis era
novidade na Igreja e doutrina impensável na Idade Média. Porém, Clara e suas Irmãs sabiam
que, se o Senhor alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo, não deixaria de velar por
aquelas que, confiantes, se entregavam à sua providência.
Em São Damião trabalhava-se. Nobres ou plebeias, damas ou servas, tornadas Irmãs,
fiavam, teciam, faziam todos os trabalhos domésticos, cuidavam da horta com a simplicidade
e alegria. Era a graça de poder trabalhar, a graça de formar e ser fraternidade27.
2.3. Em louvor e adoração
Em São Damião vivia-se em amorosa adoração, pois Clara de Assis era uma “Mulher
Eucarística”. Entre as Irmãs Pobres, no seguimento da doutrina do IV Concílio de Latrão,
desenvolveu-se a espiritualidade eucarística, praticando-se mesmo a adoração ao Santíssimo
Sacramento, o que era novidade. As damianitas foram as pioneiras a acolher esta doutrina
conciliar e de tal forma que Santa Clara aparece como arauto no reflorescimento eucarístico
do século XIII. A piedade popular assim o compreendeu; os artistas representam
23
O P. Larañaga diz que “Clara, na sua clausura contemplativa, levou à plenitude o sonho mais profundo, (...) de Francisco de Assis: a ânsia
de contemplar o Rosto do Senhor e de se dedicar exclusivamente a cultivar o desejo de Deus”. E acrescenta: “ sem Clara, o franciscanismo
seria como uma planta sem flor, uma partitura sem melodia” (Inácio Laranãga, ofm cap, O Irmão de Assis. Vida profunda de São
Francisco, Lisboa 1980, p. 239).
24
Regra de Santa Clara (RCL), II, 1, in FF II, p. 45.
25
RCL, IV, 18, in FF II, p. 50.
26
RCL, VII, 1 e 2, in FF II, p. 54; Santa Clara recomendava às Irmãs que, mesmo no trabalho, “não apaguem o espírito da santa oração e
devoção, ao qual todas as demais coisas devem servir” (RCL, VII, 2, in FF II, p. 54).
27
Tiago de Vitry-sur-Siene, bispo de São João d’Acre, antes de partir para o Oriente, escreveu uma carta em 1216, na qual, ao falar do
movimento franciscano, afirmava: “(...) as senhoras vivem juntas em alguns hospícios (pequenos conve
ntos), perto das cidades(...), vivendo do trabalho das suas mãos” (Chiara Augusta Lainati, op cit., p. 53; Inácio Larañaga, op. cit., p. 238.
32
repetidamente Santa Clara com a custódia nas mãos. É uma linguagem de símbolos que
expressa quanto a sua vida esteve vinculada ao Sacramento do Corpo do Senhor28.
Clara desejava que suas filhas comungassem; ela, quando o fazia, comovia-se até às
lágrimas, segundo depõem algumas Irmãs no processo de canonização29. Na Regra deixou
determinado que as Irmãs comungassem sete vezes por ano: “No dia de Natal do Senhor, na
Quinta-Feira Santa, na Páscoa, no Pentecostes, na Assunção de Nossa Senhora, na festa de S.
Francisco e no dia de Todos os Santos”30. Em função da época, esta determinação de Santa
Clara representava um grande amor à Eucaristia, um verdadeiro culto pelo Corpo do Senhor.
Nos dias em que as religiosas comungavam, Santa Clara, querendo ver a comunidade, tanto as
sãs como as doentes, reunidas em volta do altar, permitia a entrada do capelão, tendo, então,
lugar a celebração eucarística no interior da clausura31.
Clara penetrava e vivia o mistério da fé, sinal de unidade, vínculo de caridade. Este
amor à Eucaristia e à adoração, novidade no século XIII, como já referimos, deixou-o Santa
Clara às suas Irmãs e filhas como legado perpétuo. E tão gostosamente tem sido assumido por
todas que, desde há oito séculos, não há mosteiro da Segunda Ordem Franciscana onde não se
faça a adoração eucarística todo o dia ou pelo menos umas largas horas32.
Os dias de Santa Clara e de suas Irmãs deslizavam alegres e felizes na contemplação
amorosa de Cristo, com quem queriam identificar-se. Aquelas boas religiosas, no
4. Santa Clara de Assis (de Josefa de Óbidos)33.Alma
genuinamente contemplativa, soube, no silêncio do claustro
de São Damião, assumir e viver, em profundidade, o ideal
franciscano. Clara brilhou, na expressão de São Boaventura,
“como uma estrela fulgurante, como uma flor perfumada,
que desabrocha branca e pura na primavera”. Reprodução
de Carlos Fotógrafo.
escondimento do claustro, vivendo em pobreza, oração silenciosa e contemplativa,
proclamavam o encanto que Deus é e assumiam, com Cristo, as dores, as alegrias e as
esperanças dos homens.
No silêncio do mosteiro contemplavam embevecidas Jesus na simplicidade do presépio
de Belém, no mistério eucarístico, na loucura amorosa da cruz, na glória da Jerusalém celeste.
Todas procuravam “viver em íntima união com Cristo, aderir a Ele com todas as fibras do seu
28
No século XIII, à medida que os teólogos aprofundaram a doutrina eucarística, pondo em relevo a permanência de Cristo nas sagradas
espécies, viu-se a conveniência de que a reserva destinada aos doentes saísse dos armários, onde nem sempre se encontrava com a devida
dignidade e se instalasse em lugares mais apropriados, em tabernáculos abertos na ábside ou em “imagens – sacrários” que guardavam uma
pequena urna; podia colocar-se também sobre o altar em cibórios ou numa bela urna em forma de arca, que em cada dia se ia enriquecendo
com metais nobres e pedrarias (Jiménez, Historia de la espiritualidad franciscana, Barcelona, 1969, p. 647).
29
PC II, 11, III, 7, IX, 10, pp. 147, 154, 184 respectivamente e LCL, 28, p. 262, in FF II.
30
RCL, III, 14, in FF II, p. 49.
31
RCL, III, 15, in FF II, p. 49.
32
No pequeno mosteiro de São Damião havia uma caixinha ou arca de prata e marfim para a reserva do Santíssimo. Há também testemunhos
certos de que, em 1230, João Parente, Ministro Geral dos Frades Menores, tomou providências para que se colocasse o Santíssimo
Sacramento em píxide de prata ou marfim em lugar seguro, o que as Irmãs fizeram. Conserva-se uma custódia que dizem ser do tempo de
Santa Clara, embora haja algumas dúvidas sobre o assunto.
33
Josefa de Ayala Cabrera, natural de Sevilha, onde nasceu a 20 de Fevereiro de 1630, era filha de Baltasar Gomes Figueira, natural de Óbidos, e
sua mulher, D. Catarina D’Ayala Cabrera. Josefa, a simpática pintora portuguesa, artista de merecimento, foi autora de um bom número de quadros
de temas religiosos de grande expressividade mística, retratista e pintora de naturezas mortas. Passou a sua vida “a pintar, a ler mística ou a rezar
(...), merecendo aplausos e insignes elogios de honesta”. (Joaquim da Silveira Botelho, Óbidos, Vila Museu,2ª edição, 1996, pp 85-87)
“Santa Clara de Josefa de Ayala, a nossa boa e estimada Josefa d’Óbidos (1630-1684), é uma pequena tábua, ass.Josepha em óbidos,
167(?), de uma colecção particular, feita para devoção privada, sem a qualidade que denotam obras mais cuidadas da popular artista barroca, que
aqui seguiu, de modo corrente, uma gravura de Jerónimo Wierix, a buril, segundo Philippe Gale”. (Dados que nos foram enviados pelo Prof. Doutor
Vítor Serrão, distinto crítico de História de Arte, em carta de 27 de Abril de 1998).
33
coração”34, vê-lo nas criaturas e na criação, vê-lo na bondade dos homens, no sorriso da
criança, na beleza do sol, no perfume da flor. Para as Irmãs de São Damião, como para toda a
alma franciscana, viver em oração contemplativa era também entrar com todas as criaturas de
Deus, no mundo do Louvor, da Glória, do Amor e do Encanto.
Adorar! Foi esse o sonho lindo de Clara de Assis. Em São Damião, Clara e suas Irmãs
viviam imersas na adoração do Altíssimo, Omnipotente e Bom Senhor35.
34
Cf., Quarta carta de Santa Clara a Santa Inês de Praga, 9, in FF II, p 107. Conhecem-se quatro belíssimas cartas de Santa Clara a Santa
Inês de Praga e uma a Ermentrudis de Bruges. Filha do Rei Ottokar I da Boémia (1198 – 1230) e da rainha Constância da Hungria, Inês
nasceu no ano de 1205. Aos 3 ou 4 anos de idade foi prometida a Boleslau da Silésia, ficando livre de compromisso pela morte do jovem em
1211. Foi novamente prometida em 1213 a Henrique VII, filho do imperador Frederico II. Desfeito o compromisso em 1225, foi pedida em
1227 por Henrique II da Inglaterra e, por fim, no ano de 1233, pediu a sua mão o próprio imperador do Sacro Império, Frederico II. Inês
recusou estas propostas, por alimentar em seu coração anseios bem diferentes. Tendo chegado a Praga os primeiros Frades Menores,
edificou-lhes um convento. Por eles teve conhecimento da vida de Clara de Assis e, desejando viver como ela, fundou um mosteiro para as
Irmãs Pobres, no qual tomou hábito a 22 de Junho de 1234, festa do Pentecostes. Inês morreu no ano de 1282. Foi beatificada por Pio IX em
1874 e canonizada por João Paulo II em 1991.
35
Pode ver-se para maior desenvolvimento, Otília Rodrigues Fontoura, osc, “Oração contemplativa -Visão de Santa Clara”, in Cadernos de
Espiritualidade Franciscana , 7, pp. 19 – 38; e Inácio Larañaga, op. cit., pp. 237 – 240.
34
CAPÍTULO III
TEXTOS LEGISLATIVOS E REFORMAS
1.Defendendo o carisma próprio
1.1. Fuga à influência da Regra de São Bento - Luta pelo carisma próprio
Em 1215, o IV Concílio de Latrão (de 11 a 30 de Novembro), abordando temas
dogmáticos e disciplinares, determinou que, de futuro, quem quisesse seguir a vida religiosa
devia escolher uma das regras já existentes (cân. 13). Na sequência desta determinação as
damianitas foram convidadas a fazer a profissão sob a Regra de São Bento36.
Diante desta exigência jurídica, Clara encontrou um meio de salvaguardar o carisma
próprio: “o Privilégio de Pobreza,” confirmado por Inocêncio III, em 1216, que lhes permitia
“renunciar a toda a espécie de propriedade”37.
Entretanto, o Cardeal Hugolino, encarregado de velar pelo movimento franciscano,
compôs, para as Irmãs Pobres, uma regra ou constituições (1219), de acentuado pendor
beneditino, com a agravante de fazer silêncio sobre a pobreza, para Clara pedra de toque38. A
preocupação da discípula do Poverello tornou-se grande, quando, em 1227, Hugolino ocupou
o sólio pontifício. Como novo Papa, Gregório IX começou de imediato a oferecer bens de raiz
aos mosteiros, sem exceptuar São Damião. Clara, decidida como estava a manter o tesouro da
altíssima pobreza, pediu-lhe a confirmação do Privilégio de Pobreza, forma hábil de fazer
compreender ao Pontífice a sua firme decisão de continuar a viver, em toda a radicalidade, a
pobreza evangélica. A confirmação foi dada pela bula Sicut manifestum de 17 de Setembro de
1228.
Em 1243, foi eleito Inocêncio IV39. Em breve (1247) começou a empenhar-se na
elaboração de uma regra que teve o seu nome e se destinava aos mosteiros femininos de
espiritualidade franciscana. Com grande satisfação para Clara e suas Irmãs, a Regra de São
Francisco substituía a de São Bento, no acto de profissão, ficando as Irmãs Pobres sob a
jurisdição dos Frades Menores40. Dessa forma, finalmente, Clara e suas Irmãs eram
legalmente franciscanas. Porém, uma cláusula era para elas inaceitável: os mosteiros podiam
receber rendas e ter possessões. De facto, o número 11 da Regra de Inocêncio IV
especificava: “Seja lícito ter em comum e reter livremente rendas e possessões”41.
1.2. Testamento e Regra de Santa Clara - Salvo o carisma da Ordem
36
Pela força da decisão conciliar, as damianitas tiveram de aceitar a Regra de São Bento como base jurídica, sendo Clara convidada a usar o
título de abadessa. Ela, porém, no seu viver quotidiano, continuou a ser a “irmã”, a “serva das servas”, a “serva inútil”, a “serva e mãe” (in
Benção, Testamento, Regra e Cartas de Santa Clara). A filha do pobrezinho de Assis nada quis entender de títulos e hierarquias. Ela foi a
irmã entre as Irmãs; estava para servir com simplicidade e humildade.
37
Privilégio de Pobreza Seráfica dado pelo Papa Inocêncio III a Santa Clara em 1216 e confirmado por Gregório IX em 1228, (FF II, pp.
293 – 295).
38
A intenção do Cardeal Hugolino era tão determinante que convidava as Senhoras Pobres à observância da Regra de São Bento. “Sendo
necessário que imiteis os exemplos dos que serviram o Senhor sem desfalecer (...) damo-vos a Regra de São Bento” (RU 4, 3, in FF II, p.
310).
39
Após a eleição de Inocêncio IV, Inês de Praga, abadessa do mosteiro ali existente, solicitou do novo Papa a supressão da Regra de São
Bento e a elaboração de uma regra própria para as Irmãs Pobres. Santa Clara, apoiando-se na autoridade do Cardeal Protector, Reinaldo di
Conti e do franciscano Frei Filipe Longo, então visitador, insistiu no mesmo pedido. Porém, em 1245, o Papa Inocêncio IV apelou para a
observância das Constituições de Hugolino, com a profissão sob a regra beneditina. Clara, contudo, continou a confiar.
40
Lê-se na Regra de Inocêncio IV: “Com a autoridade das presentes constituições, entregamos ao cuidado do Ministro Geral e Provinciais da
Ordem dos Frades Menores, todos os mosteiros da vossa Ordem. Decretamos que, a partir de agora, deveis permanecer sob a obediência,
governo e magistério dos mesmos e dos seus futuros substitutos, a quem estais firmemente obrigadas a obedecer” (RI 4, 12, in FF II, p.
338).
41
RU 4, 11, in FF II, p. 337.
35
Clara sentiu em perigo o carisma da sua Ordem; doente como estava e receando deixar
as suas filhas naquela ambiguidade, de um só jacto, escreveu o seu Testamento, apontando
com firmeza três pontos que julgava fundamentais:
- fidelidade a Francisco e seus sucessores (implícita a fidelidade à Igreja);
- altíssima pobreza (viveriam do seu trabalho e não de rendas);
- união e comunhão fraterna (corresponsabilidade).
Entretanto, diante da resistência que a Regra de Inocêncio IV encontrou nos mosteiros
das Senhoras Pobres, o Papa explicava, a 6 de Julho de 1250, que não era sua intenção impor
obrigatoriamente a sua regra.
Chegara a hora de Clara. De facto, foi nessa altura que ela sentiu o ambiente propício
para unificar os mosteiros sob uma regra da sua autoria, tendo por base as normas recebidas
de São Francisco e como modelo a Regra dos Frades Menores. Só uma regra saída das suas
mãos poderia dar estabilidade à Ordem, ficando inviolavelmente defendido o carisma. É
opinião comum que Santa Clara começou a escrever a regra em 1247, isto é, a dar forma
escrita ao estilo de vida que desde há muito se seguia em São Damião.
Rapidamente e com carinhosa reverência pelo seu Pai e Mestre, São Francisco, Clara
pegou na Regra bulada, aprovada por Honório III a 29 de Novembro de 1223 para os Frades
Menores, e fez a sua adaptação a uma fraternidade feminina contemplativa. Transcreveu,
suprimiu, modificou e acrescentou com liberdade total e, do seu coração altamente criativo,
saiu a “Forma de Vida” ou Regra, que terá o seu nome. A 16 de Setembro de 1252, recebeu a
aprovação do Cardeal Protector, o Cardeal Reinaldo, e a 9 de Agosto de 1253, chegou às suas
mãos a bula Solet annuere do Papa Inocêncio IV, dando plena aprovação à Regra por ela
redigida42. Clara beijou a bula papal com suma alegria e reverência e, passados dois dias,
partiu gozosa para o Senhor. Foi a primeira regra saída do coração e da pena de uma mulher a
receber a aprovação papal.
5. Bula de aprovação da Regra de Santa Clara. O texto mostra-nos o
início da bula Solet Annuere do Papa Inocêncio IV, que aprovou a Regra
escrita por Clara de Assis. O texto original foi encontrado com os restos
mortais de Santa Clara, em 1893.
Podemos perguntar: e as determinações do cânon 13 do IV Concílio de Latrão? A Regra
de Santa Clara não era uma regra nova, mas tão-somente o rosto feminino da Regra dos
Frades Menores, como que um seu complemento.
A Regra redigida por Santa Clara, mais do que uma base jurídica, que dá existência à
sua Ordem religiosa, é a expressão de um carisma peculiar, de um programa de vida.
Perpassada pelo respeito pela pessoa da Irmã, pela docilidade ao Espírito do Senhor, tem, em
si mesma, pela abertura à Igreja e ao mundo, a vitalidade do Evangelho.
Enquanto o primeiro capítulo define o carisma próprio, vivência do Evangelho em
obediência, sem próprio e em castidade, e o segundo estabelece os princípios de admissão na
Ordem, o mais importante dos quais é a “inspiração divina”, o quarto postula a eleição para a
atribuição de cargos e de ofícios. Nela se dá lugar à corresponsabilidade fraterna, bem visível
na importância dada ao capítulo conventual como espaço de diálogo e de correcção fraterna.
42
RCL, 14-15, in FF II, pp. 62-63.
36
Nos capítulos terceiro, quinto, nono e décimo, a Regra incide sobre a vida de oração –
ofício divino, confissão e comunhão -, o jejum, o silêncio, como condição essencial para
entrar em comunhão com o Senhor, a caridade mútua e a comunhão fraterna.
Os capítulos sexto, sétimo e oitavo formam o núcleo da Regra de Santa Clara.
Preconizam a pobreza evangélica, uma vida de desprendimento total, sem rendas nem
possessões, para melhor seguir a Cristo pobre e humilde, bem como a busca da subsistência
no trabalho diário, feito sem perder o espírito de oração. No capítulo VI, o coração da Regra,
totalmente redigido por Santa Clara, encontramos, ainda que parcialmente, o seu Testamento e
o Privilégio de Pobreza, bem como os textos programáticos de Francisco - Forma de Vida e
Última Vontade. Neste capítulo, Santa Clara condensa o seu ideal e carisma:
- altíssima pobreza (renúncia a toda a propriedade);
- santa unidade (entre as Irmãs e com a Primeira Ordem);
- fidelidade a Francisco (implícita a fidelidade à Igreja).
Os dois últimos capítulos regulam as formas de relacionamento com o exterior, as
entradas na clausura e as funções do visitador.
A Regra de Santa Clara, fraterna, humana e flexível, contrastando com as anteriores,
rígidas e mecânicas, valoriza a pobreza, a fraternidade, a corresponsabilidade, a autoridade
como serviço e humaniza a clausura e o silêncio 43. Embora sujeitas à lei da clausura, as Irmãs
podiam sair quando se apresentasse “um motivo evidente, útil, razoável e aceitável”44, como
podiam “sempre e em qualquer lugar, comunicar em poucas palavras e em voz baixa o que
parecesse necessário”45.
2. Vicissitudes posteriores - Regras da Beata Isabel de França e de Urbano IV
A aprovação da Regra de Santa Clara não impediu o aparecimento de novas regras. Em
1259 foi aprovada por Alexandre IV a Regra das Sorores Minores Inclusae. Este texto foi
escrito sob a orientação da São Boaventura pela Beata Isabel de França, irmã do rei São Luís,
para o mosteiro de Longchamp. É uma combinação selectiva das regras precedentes, com uma
grande tonalidade mística, onde se espiritualiza o espírito da pobreza, dando mais ênfase à
humildade do que à pobreza exterior. Não admira que o mosteiro de Longchamp, ao qual a
regra se destinava, tivesse sido fundado sob a invocação da Humildade de Nossa Senhora.
Mais tarde vários mosteiros da França, Inglaterra e Itália assumiram esta regra.
Quatro anos mais tarde, o Papa Urbano IV, querendo unificar os mosteiros das Senhoras
Pobres, sob uma mesma regra, promulgou a 18 de Outubro de 1263, a chamada Regra
urbaniana ou de Urbano IV e ainda Segunda Regra de Santa Clara. Segundo ela, os mosteiros
uniam-se sob o nome genérico de Ordem de Santa Clara e dava-se à clausura força de voto.
Nesta regra, contudo, havia aspectos controversos que representavam um retrocesso em
relação ao espírito de Santa Clara e não tiveram aceitação, pois atingiam pontos carismáticos:
- abolia todas as outras regras, inclusive a de Santa Clara;
- estabelecia que os mosteiros, pudessem “receber, possuir e reter em comum
rendas e possessões;” para sua própria subsistência;
43
RCL, II, IV e VI, in FF II, pp. 45-47, 49-51 e 52-54, respectivamente.
RCL, II, 13, in FF II, p. 46.
45
RCL, IV, 4, in FF II, p. 51.
44
37
- subtraía os mosteiros à jurisdição dos Frades Menores, pondo-os sob a
dependência de um Cardeal Protector46.
Embora elaborada para unificar a Ordem, no próprio texto estava subjacente o germe da
divisão. De facto, a unidade não surgiu, pois os mosteiros mais fiéis ao genuíno espírito de
Santa Clara não podiam aceitar a Regra urbaniana. A partir de então, passaram a existir duas
regras: a Primeira Regra, a de Santa Clara, e a Segunda Regra, a do Papa Urbano IV. Ainda
hoje há mosteiros, segundo as últimas estatísticas cerca de trinta e cinco, que seguem a Regra
de Urbano IV. Situam-se na Europa, sobretudo em Itália e Espanha.
Desde há algum tempo, assiste-se, felizmente, ao regresso à Regra de Santa Clara. Já
poucas são as clarissas urbanistas. Eram 500 em 199847, o que dá, relativamente o total de
17.330, uma percentagem de 2,8%.
3. Movimentos renovadores
Nos mosteiros que seguiram a Regra de Santa Clara, começou a processar-se, a partir
dos começos do séc. XV um movimento reformador, ou seja de retorno ao carisma inicial,
pois ao longo dos tempos alguns desvios se haviam operado, por intromissão do poder civil,
particularmente dos monarcas, na vida interna dos mosteiros. Foi protagonista deste
movimento uma clarissa francesa, Coleta Boylet. Nascida em Corbie em 1381, empreendeu,
com o apoio do Papa de Avinhão, Bento XIII, uma reforma notável. Em 1406, Coleta
professou nas mãos do Papa a Primeira Regra de Santa Clara e lançou-se ao delicado trabalho
de recuperar o genuíno espírito da fundadora. Elaborou umas constituições ou estatutos,
aprovados em 1434 pelo Ministro Geral da Primeira Ordem Franciscana e confirmadas, já
depois da sua morte, em 1458, por Pio II48. Sem nada omitir ou acrescentar à Regra de Clara
de Assis, apontavam com firmeza pontos carismáticos fundamentais: pobreza individual e
colectiva, espírito de oração e contemplação, abertura à Igreja, união com a Primeira Ordem
Franciscana, vivência do espírito de fraternidade49.
Em síntese: a reforma de Santa Coleta deu primordial importância à pobreza evangélica
e à união fraterna. Em conformidade com a Regra de Santa Clara, proibiu a aceitação de
rendas e de dotes, valorizou a união fraterna e o capítulo semanal como expressão de
corresponsabilidade, tornou o trabalho, como já o fizera Clara de Assis, o meio normal de
sustentação. Apreciando a formação intelectual e espiritual das Irmãs, ordenou que todos os
mosteiros tivessem uma boa biblioteca50.
Coleta de Boylet captou de forma feliz o espírito de Santa Clara de Assis e, movida por
um profundo desejo de ver restabelecido nos mosteiros da Ordem o genuíno carisma da
fundadora, lançou-se, decididamente e sem qualquer receio, ao árduo trabalho da reforma.
Cabe-lhe o mérito de um grande êxito.
No século XVI, com Maria Lorenza Longo surgiram as Clarissas Capuchinhas,
aprovadas pelo breve de Paulo III, de 10 de Dezembro de 1538. Observam a Regra de Santa
Clara e as Constituições de Santa Coleta, com adaptações e aditamentos retirados das
Constituições dos Franciscanos Capuchinhos51.
46
RU 4, nº 3, 34 e 48, in FF II, pp. 346, 362 e 367, respectivamente.
Dados estatísticos recebidos do Departamento das Monjas, da Cúria Geral dos Frades Menores, Roma: (carta de Frei Herbert Schneider,
ofm, Delegado Geral para as monjas, de 11 de Janeiro de 1999).
48
Lazaro Iriarte, ofm cap, Historia Franciscana, 2ª edição, Valencia, 1979., p. 490.
49
Lazaro Iriarte, ofm cap , op. cit, p .490-491.
50
Lazaro Iriarte, ofm cap., op.cit., pp. 490-491.
51
Em meados do século XVII estabeleceram-se em Lisboa dois mosteiros de clarissas capuchinhas francesas: o da Porciúncula, em 1647, na
zona da Sé, e o do Santo Crucifixo, na Calçada da Estrela, em 1667. Vieram da Bretanha as primeiras e de Paris, com a rainha D. Maria
Francisca de Sabóia, as segundas. O mosteiro da Porciúncula ter-se-ia extinguido antes de 1739, pois não figura no exaustivo catálogo de
Frei Apolinário da Conceição (Claustro Franciscano erecto no domínio da Coroa Portugueza, Lisboa, 1740, pp. 161-162). O do Crucifixo
47
38
Esta reforma teve origem em Nápoles, na Itália, donde se difundiu para Perúsia, Gúbio,
Roma e Milão. Na segunda metade do mesmo século XVI irradiou para outros países
europeus e, seguidamente, para a América Latina e outras zonas do Globo.
esteve na dependência do Núncio Apostólico até 1739, altura em que passou para a jurisdição do Patriarca de Lisboa. Foram estes os únicos
mosteiros de clarissas capuchinhas que existiram em Portugal. (António Montes Moreira, ofm, “Breve História das Clarissas em Portugal”,
in Las Clarisas en España y Portugal - Congreso Internacional, Actas II/1, Madrid, 1994, p. 220).
39
CAPÍTULO IV
DIFUSÃO DA ORDEM DE SANTA CLARA DE ASSIS
1. A expansão da Ordem
Os mosteiros das Irmãs Pobres cedo se multiplicaram por toda a Itália e fora dela. Em
1228, havia 24 mosteiros na Itália. Nesse ano, foram fundados outros, entre os quais o
primeiro fora da Itália, o de Santa Engrácia, em Pamplona (Espanha). Por ocasião da morte de
Santa Clara, os mosteiros já haviam atingido um total de 111: 68 na Itália; 21 na Espanha; 14
na França e 8 nos países germânicos52.
A esta irradiação para o centro e ocidente europeu, juntou-se, neste mesmo século XIII,
uma linha de expansão de impulso missionário. De facto, as filhas de Santa Clara
expandiram-se para a Síria, Líbano e Palestina. E nem lhes faltou a auréola do martírio.
Sabemos que, em 1257, foram degoladas todas as Irmãs Clarissas de Antioquia por ordem de
Melek Saher Bibars53. Em 1289, quando Trípoli, no Líbano, caiu em poder do sultão do
Egipto, Melek El-Mansur, foram martirizadas todas as Irmãs da comunidade ali existente,
mártires ao mesmo tempo da fé e da castidade. Dois anos mais tarde, aconteceu o mesmo às
setenta clarissas da comunidade missionária de São João d’Acre 54, na Palestina.
Quadro nº.1 - Irradiação da Ordem de Santa Clara
Zona Geográfica
Espanha
Boémia
França
Bélgica
Polónia
Líbano
Baleares
Croácia
Síria
Portugal
Luxemburgo
Ano
1228
1234
1237
1250
1250
1255
1256
1256
1257
1258
1264
Zona Geográfica
Alemanha
Ilhas Britânicas
Chipre
Países Eslavos
Madeira
Açores
Antilha - S. Domingo
Perú
México
Colômbia
Chile
Ano
1269
1290
1290
1300
1497
1512
1551
1558
1570
1572
1582
Zona Geográfica
Equador
Canárias
Lituânia
Filipinas (Manila)
China (Macau)
Bolívia
Cuba
Brasil (S. Salvador)
Guatemala
Polinésia
África
Ano
1595
1600
1602
1621
1633
1639
1644
1667
1700
século XX
século XX
Fontes: Lazaro Iriarte, op. cit., pp. 501 - 507; Omaechevarría, op. cit., pp. 37 - 70, 147 - 158 e 165 - 187.
No tempo da reforma protestante, a Ordem de Santa Clara, perseguida na Europa,
aproveitando a expansão ultramarina, levada a efeito sobretudo por Portugal e Espanha,
implantou-se nas Américas e na Ásia. Em 1551, as Irmãs Clarissas fixaram-se em Santo
Domingo, nas Antilhas, onde fundaram o primeiro mosteiro do Novo Mundo: em 1621, em
Manila, nas Filipinas, donde partiram em 1633, para Macau; em 1667, chegaram a São
Salvador da Baía. Destes mosteiros irradiaram para outras zonas da América e da Ásia.55
O quadro anexo dá-nos uma ideia bastante precisa das linhas da expansão da Ordem.
2. Supressões e ressurgimento
52
Lazaro Iriarte, op. cit., p. 485.
Omaechevarria, Las Clarisas a través de los siglos, Madrid, 1972, p. 73.
54
Lazaro Iriarte op. cit.., p. 486; Omaechevarria, op.cit., pp. 73 – 74.
55
Lazaro Iriarte, op.cit., pp. 501-503,; Omaechevarria, op.cit., pp. 147-150 e 175-187.
53
40
Nos séculos XVIII e XIX, sucederam-se as supressões dos mosteiros, como
consequência do regalismo e liberalismo reinantes. O imperador da Áustria, José II, por
decreto de 12 de Janeiro de 1782, suprimiu os mosteiros da Ordem de Santa Clara e de outros
institutos religiosos. Em França, foram igualmente suprimidos os mosteiros por lei de 17 de
Agosto de 1792. Um decreto de 11 de Novembro de 1860 suprimia a vida religiosa na Itália56.
Esta onda anti-religiosa foi avançando para o ocidente europeu e atingiu Portugal em 1834.
O ressurgimento da Ordem aconteceu nalgumas nações da Europa, já no século XIX.
De facto, em França, Bélgica, Grã-Bretanha e Alemanha, a partir de 1846, os mosteiros de
Clarissas foram-se reorganizando e multiplicando57 No século XX, respondendo ao apelo de
Pio XII, na Constituição apostólica Sponsa Christi, de 21 de Novembro de 1950, e mais
recentemente do Concílio Vaticano II, as Irmãs Clarissas orientaram-se para outras linhas de
expansão: para o Pacífico (Taiti, na Polinésia), para a Califórnia, Brasil, Jamaica e, sobretudo,
para a África, a título de apoio espiritual às novas Igrejas.
A Sponsa Christi, reconhecendo a importância da vocação exclusivamente
contemplativa, prestou aos mosteiros uma atenção específica. Mantendo a clausura, como
meio necessário para uma maior comunhão com Deus, estimulou as comunidades a
abstraírem das mercês régias e a procurarem a sua subsistência no trabalho. Além disso,
propôs a organização de Federações. Esta nova estrutura tinha como finalidade evitar o
excessivo isolamento dos mosteiros, sem contudo lesar a sua autonomia, assumir em conjunto
a responsabilidade da formação das candidatas com a criação, se possível, de um noviciado
comum, e favorecer a passagem das religiosas de um para outro mosteiro, quando
necessário58.
Actualmente os mosteiros da Regra de Santa Clara gozam de Constituições Gerais, que
a Sé Apostólica aprovou a 3 de Maio de 1988, redigidas segundo a doutrina do Concílio
Vaticano II e o Código de Direito Canónico.
3. Alguns dados estatísticos
3.1 Ao longo dos séculos
Nascida em Assis em 1212, a Ordem de Santa Clara cedo se difundiu mundo fora. Ao
longo de seiscentos anos, o número de mosteiros foi sempre aumentando, atingindo a sua
expressão máxima em meados do século XVIII.
Os mosteiros podiam estar na dependência do bispo diocesano ou sujeitos aos
superiores da Primeira Ordem Franciscana. No segundo caso os prelados interferiam somente
nos casos expressos no direito universal.
Quadro nº. 2 - Alguns dados estatísticos:Séc. XIII-XVIII e XX
Ano
Mosteiros
N.º Clarissas
I - Mosteiros de jurisdição franciscana
1228
24
1253
111
1300
413
1371
452
1385
404
56
Omaechevarria, op. cit., pp. 223.
Omaechevarria,, op. cit., pp. 223-229.
58
Lazaro Iriarte, op. cit., pp. 505-506.
57
41
1587
1590
1661
1680
1700
60259
814
774
870
1067
40 00060
30 18661
34 100
38 000
II - Mosteiros de jurisdição franciscana e episcopal
1907
495
1929
12 173
1942
729
1960
713
16 972
1971
774
17 274
1972
907
18 000
1998
920
17 330
I Fontes: Lazaro Iriarte, ofm, op. cit., pp. 484 - 485, 502 - 503, e 508.
II Fontes: Lazaro Iriarte, ofm, op. cit., pp. 507 - 508; e dados
fornecidos pelo Departamento da Monjas, da Cúria Geral dos Frades
Menores, Roma (carta de Frei Herbert Shneider, ofm, Delegado Geral
para as monjas, de 11 de Janeiro de 1999) e Anuário Pontifício de
1998.
Pela análise deste quadro estatístico, se conclui que as ordens religiosas, apesar da
supressão, ressurgiram logo que as circunstâncias político-sociais o permitiram. No século
XX e nalguns países já no século XIX assistiu-se a um desabrochar de vocações e ao
recomeço da vida conventual62.
3.2 No final do século XX
Infelizmente não possuímos estatísticas recentes que nos possam fornecer dados
precisos. Apresentamos, portanto, quer para os mosteiros quer para as Irmãs Clarissas, os
valores numéricos que nos foram enviados da Cúria Geral dos Franciscanos por Frei Herbert
Schneider, Delegado Geral para as monjas, a 11 de Janeiro de 1999, bem como os dados do
Anuário Pontifício de 1998. Nesta base podemos dizer que ao terminar o século XX as Irmãs
Clarissas, num total de 17.330, estariam presentes em 92063 mosteiros distribuídos por 75
países. Estas religiosas estão diversificadas como se segue:
Quadro nº. 3 - Total de Clarissas no final de 1999
Regra
Regra de Santa Clara
Regra de Urbano IV
Designação
Clarissas
Clarissas Coletinas
Clarissas Capuchinhas
Clarissas Urbanistas
TOTAL:
Nº de Religiosas
13.500
830
2.500
500
17.330
Fonte: Dados estatísticos enviados pelo Departamento das Monjas, da Cúria Geral dos
Frades Menores, Roma (carta de Frei Herbet Shneider, ofm, Delegado Geral para as
monjas, de 11 de Janeiro de 1999) e Anuário Pontifício de 1998.
59
Não incluídas as dependentes dos Capuchinhos.
Este valor parece-nos exagerado.
61
Não incluídas as dependentes dos Reformados, Conventuais e Capuchinhos.
62
Para os séculos interiores ao XX, não possuímos qualquer dado estatístico relativo aos mosteiros de jurisdição episcopal.
63
Apesar de as fontes mais recentes apontarem um total de 920 mosteiros, o seu número não deve ser tão elevado.
60
42
Ao longo dos séculos, por razões de vária ordem, entre as quais, a mais forte foi a
pressão régia, os mosteiros seguiram quase todos a Regra de Urbano IV (urbanistas), que lhes
permitia ter rendas e propriedades. Entretanto o regresso às fontes, isto é, à genuína Regra de
Santa Clara, foi acontecendo. Hoje (1999) contam-se apenas 500 religiosas urbanistas; prevêse a passagem, ainda que lentamente, a uma Regra única – a Regra de Clara de Assis.
Desde o início do século, os mosteiros foram-se multiplicando e difundindo pelos mais
diversos países do mundo. Actualmente, a Ordem de Santa Clara está presente em 75 países,
sendo: 18 na Europa; 12 na Ásia; 18 nas Américas; 3 na Oceânia e 24 na África.
Quadro nº.4 - A Ordem de Santa Clara no mundo em 1999
Países
África do Sul
Alemanha
Argélia
Angola
Argentina
Austrália
Áustria
Bangladdesh
Bélgica
Bolívia
Bósnia
Brasil
Burundi
Camarões
Canadá
Chile
Colombia
Coreia
Costa do Marfim
Costa Rica
Croácia
Egipto
Equador
Eslovénia
Espanha
Most.
Países
Most.
Países
Most.
2
23
1
3
6
3
4
25
1
4
1
13
1
2
7
5
24
2
1
1
2
1
7
1
229
Estados Unidos
Etiópia
Filipinas
França
Gabão
Grã-Bretanha
Guatemala
Holanda
Honduras
Hungria
Índia
Indonésia
Irlanda
Israel
Itália
Japã o
Líbano
Madagáscar
Malawi
Malta
Marrocos
México
Namíbia
Nicarágua
Nigéria
41
1
21
55
1
16
5
10
1
1
13
6
5
2
173
5
1
1
1
1
1
106
1
2
1
Papua Nova Guiné
Paraguai
Perú
Polinésia Francesa (Taiti)
Polónia
Portugal
Quénia
Rep. Centro Africana
República Checa
Republica Dominicana
Ruanda
Salvador
Sri-Lanka
Suíça
Tailândia
Tai-wan
Tanzânia
Togo
Uganda
Uruguai
Venezuela
Vietname
Zaire
Zâmbia
Zimbabwue
2
2
7
1
16
11
1
1
1
1
1
1
2
3
7
1
3
1
1
3
3
1
3
1
1
Fontes. Monasteria Monialium Franciscalium Vitae Contemplativae, Roma 1994, pp. 457 - 519, com alguma
rectificações fornecidas por Frei Herbert Shneier na carta citada de 11 de Janeiro de 1999.
Desde meados do século XX, na Europa, particularmente na Espanha, Alemanha, GrãBretanha e Itália, o número de mosteiros tem diminuído. Em contrapartida, na América Latina
e nos novos países africanos, assiste-se a um desabrochar de vocações para a vida
contemplativa. Aí, vão-se multiplicando os mosteiros da Ordem de Santa Clara que, como
centro de vitalidade espiritual, são causa de alegria e esperança para o Povo de Deus.
43
CAPÍTULO V
A ORDEM DE SANTA CLARA EM PORTUGAL
1. Os quatro primeiros mosteiros
A Ordem de Santa Clara entrou cedo em Portugal, onde, em finais do século XIII, já
havia quatro mosteiros.
O primeiro, mosteiro de Santa Maria e de Santa Clara, surgiu em Lamego, em 1258,
cinco anos após a morte de Santa Clara de Assis, criado pela Bula Cum omnis vera religio de
Alexandre IV, datada de 20 de Fevereiro daquele ano. A comunidade foi, no ano seguinte,
transferida para Santarém, residência habitual da corte, onde o rei D. Afonso III construíu um
mosteiro de raiz64. É que, além da casa de Lamego não ter condições para vida conventual,
havia dificuldades na assistência espiritual. Ali, não havia franciscanos. Os mais próximos
viviam a muitas léguas, na Guarda e no Porto65. Esta transferência, autorizada por Alexandre
IV por bula de 29 de Abril de 1259, deve ter ocorrido ainda nesse ano, pois, segundo uma
bula de 28 de Janeiro de 1260, o novo mosteiro, na opinião de Manuel da Esperança, estava
construído66.
O segundo nasceu em Entre-os-Rios, no lugar do Torrão. Foram seus fundadores D.
Chamoa Gomes, senhora nobre da diocese do Porto, e seu marido, o fidalgo leonês D.
Rodrigo Forjaz, que, para o efeito, conseguiram uma bula de Alexandre IV, datada de 18 de
Março de 1256. A construção, começada de imediato, avançou rapidamente e “ poucos meses
andados de 1258” já era habitada por “ três religiosas do mosteiro de Santa Clara de Zamora,
Espanha, fazendo-lhes companhia algumas mulheres beatas67 de S. Vicente do Pinheiro e
algumas donzelas nobres”68. O lugar do Torrão, solitário e despovoado, não oferecia a
necessária segurança, pelo que o franciscano Frei João de Xira, visitador das religiosas e
confessor de el-rei D. João I, pediu à rainha D. Filipa de Lencastre a sua transferência para o
Porto, o que Inocêncio VII autorizou em 1405, mas que só se efectuou em 142769.
O terceiro mosteiro apareceu em Coimbra. Em 1286, Dona Mór Dias, senhora nobre e
de considerável riqueza, levantou junto à ponte do Mondego um novo mosteiro de clarissas.
As primeiras povoadoras foram algumas religiosas para ali deslocadas de outros mosteiros da
Ordem e a própria fundadora, Dona Mór Dias, com outras recolhidas das donas ou cónegas
agostinhas de Santa Cruz de Coimbra70.
Com efeito, Dona Mór Dias tinha-se acolhido a Santa Cruz em 1250 e vestira o hábito
das cónegas com declaração de “que, tomando aqueles sagrados panos, nem por isso
64
Sobre a história das clarissas em Portugal, veja-se o trabalho do P. António Montes Moreira, ofm, “Breve História das clarissas em
Portugal”, apresentado ao Congresso Internacional comemorativo do 8º centenário do nascimento de Santa Clara, que teve lugar em
Salamanca, em Setembro de 1993. Nele se faz uma análise pormenorizada e bem documentada da história da Ordem de Santa Clara em
Portugal. Pode encontrar-se em Las Clarisas en España y Portugal, - Congreso Internacional, ( Salamanca, 20-25 Septiembre, 1993) Actas
II/1, Madrid 1994 , pp. 211-231.
65
Fernando Félix Lopes, “As primeiras Clarissas de Portugal”, Colectânea de Estudos, 3 (1952) 216.
66
Frei Pedro de Jesus Maria e José, localiza a transferência nos fins de 1271, pois a construção do mosteiro de Santarém, atendendo à sua
grandeza, teria levado bastantes anos (Crónica da Santa e Real Província da Imaculada Conceição de Portugal da mais Estreita e Regular
Observância do Serafim chagado S. Francisco, II, p. 204. Na realidade, o mosteiro de Santarém já estava habitado por clarissas em 1261,
conforme consta numa sentença-arbitragem de 17 de Novembro desse ano sobre a organização do ministério da pregação por dominicanos e
franciscanos (cf. Frei António do Rosário, op.,”De Santarém pelo tempo de Santo António” in Colóquio Antoniano, Lisboa, 1983, p. 80 e 8788). Informação transmitida por Frei António Montes Moreira.
67
Beatas eram, no dizer do cronista franciscano Frei Manuel da Esperança “as mulheres seculares que, sendo mais reformadas na vida e no
seu hábito parecem religiosas” (Frei Manuel da Esperança, História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco, na Província
de Portugal, I, Lisboa, 1656, p. 560.
68
Frei Apolinário da Conceição, ofm, Claustro Franciscano erecto no domínio da Coroa Portugueza, Lisboa, 1740, p.122; Frei Manuel da
Esperança, ofm, op. cit.,I, p. 560; António Montes Moreira, ofm, op. cit., pp. 213-214.
69
Frei Apolinário da Conceição, op.cit., pp. 122-123 e 135; Frei Manuel da Esperança, op cit., I, 557-603.
70
António Montes Moreira, op. cit, pp. 214-215. Ao longo dos séculos, as cheias do Mondego obrigaram a uma nova construção.
44
entregava sua pessoa ou bens havidos e por haver, a mosteiro ou religião alguma; mas que
tudo reservava em a sua liberdade para dispor pelo tempo adiante, ou na vida ou na morte
como bem lhe parecesse”71. Os cónegos de Santa Cruz, responsáveis pelo mosteiro das
cónegas de Santo Agostinho, entenderam, porém, que se tratava de verdadeira profissão
religiosa. Segundo eles, Dona Mór Dias não podia dispor dos seus haveres para com eles
fundar o mosteiro de Santa Clara, nem de si mesma para nele professar. Daqui nasceu uma
complexa e arrastada causa em tribunais eclesiásticos de Portugal e de Roma, antes e depois
do falecimento de Dona Mór Dias (1302). O processo levou à extinção do mosteiro em 1311 e
só terminou em 1319 na sequência da mediação iniciada pela Rainha Santa Isabel em 1307.
“Um problema de direito medieval”, comenta Frei Fernando Félix Lopes, resumindo os
meandros do conflito72.
Entretanto, em 1314, o papa Clemente V já tinha autorizado a rainha a refundar o
mosteiro de Santa Clara. A segunda construção fez-se no mesmo local a expensas e sob a
orientação da própria D. Isabel. Em 1317, apesar de ainda incompleto, o mosteiro já estava
habitado por nove clarissas vindas de Zamora. Junto ao mosteiro a rainha edificou um hospital
para trinta pobres e um paço onde se recolheu em 1325 quando enviuvou. Na mesma ocasião,
em cerimónia não litúrgica, vestiu o hábito de Santa Clara em sinal de luto e devoção, mas
sem emitir votos religiosos.
Frei Manuel da Esperança fala com admiração das Clarissas de Coimbra: “Nelas havia
modéstia no trato, desprezo das vaidades do mundo (...)”73. E continua o cronista: “Daqui se
foi levantando fama universal que em todas as cidades engrandeceu esta casa, de muito
religiosa, honestíssima e santa”74.
Com o andar dos tempos as enchentes do rio Mondego foram submergindo os
edifícios e deixaram somente as paredes da bela igreja gótica de Santa Clara-a-Velha. Para
remediar a situação, o rei D. João IV, em 1649, mandou levantar outro mosteiro, o de Santa
Clara-a-Nova, a meio da encosta no vizinho monte de Nossa Senhora da Esperança, onde
Mapa 1
jamais o Mondego poderia chegar. As clarissas e o túmulo da Rainha Santa foram transferidos
para lá em 167775.
O quarto mosteiro foi construído em Lisboa, no campo de Santa Clara, junto a São
Vicente de Fora. A sua fundação, autorizada por bula de 4 de Agosto de 1288, do Papa
franciscano Nicolau IV, deve-se a quatro senhoras nobres da cidade de Lisboa, sendo a mais
entusiasta D. Inês Fernandes, asturiense de nascimento e viúva de um rico mercador genovês,
que vivera largos anos na capital. A 1 de Fevereiro de 1292, a fundadora entregou o mosteiro
às Irmãs Clarissas, estando presente o Provincial da Primeira Ordem Franciscana e outros
religiosos.76 Este mosteiro foi restaurado e ampliado no século XVII, ficando a igreja a ser a
71
Frei Manuel da Esperança, op. cit., II, pp. 20-21.
Frei Manuel da Esperança, op. cit., II, pp. 19-33; Frei Fernando Félix Lopes, “Fundação do mosteiro de Santa Clara de Coimbra. Problema
de direito medieval”, in Colectânea de Estudos, 4 (1953) 166-192.
73
Frei Manuel da Esperança, op. cit., II, pp. 43-44.
74
Frei Manuel da Esperança, op. cit., II, p. 55.
75
Frei Manuel da Esperança, op. cit., II, p. 19-90. António Montes Moreira, ofm, op.cit., p. 215.
76
Frei Manuel da Esperança, op.cit., pp. 95-134; História dos mosteiro, conventos e casas religiosas de Lisboa, obra anónima do início do
século XVIII, Lisboa, 1972 pp. 231-258.
72
45
maior de todos os mosteiros de Lisboa e a parte habitacional com capacidade para duzentas e
trinta religiosas. O terramoto de 1755 destruiu-o completamente77.
2. Fundações nos séculos XIV - XIX
No século XIV foram fundados mais quatro mosteiros: em Vila do Conde, Beja (Santa
Clara) Guarda e Portalegre. No século XV surgem mais seis: Amarante, Estremoz, Évora
(Santa Clara), Beja (Nossa Senhora da Conceição), Setúbal e o de Santa Clara no Funchal, o
primeiro mosteiro nas ilhas do Atlântico. O século XVI foi o período de maior
desenvolvimento da Ordem de Santa Clara em Portugal. Surgiram então quarenta e duas
fundações, onze das quais nos Açores78.
No tempo que decorreu até ao Liberalismo, registaram-se mais vinte e uma fundações
das quais duas no Funchal - mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação (1660) e de Nossa
Senhora das Mercês (1667) e seis nos Açores.
Quadro nº.5 - Fundações em Portugal
Século
Nº de Mosteiros
XIII
XIV
XV
XVI
XVII e XVIII ( até ao Liberalismo)
4
4
6
42
21
Total:
77
Fontes: António Montes Moreira, ofm, op. cit., pp. 211 – 219.
Desde a entrada da Ordem em Portugal, em 1258, até à sua extinção com o Liberalismo,
fundaram-se em Portugal 77 mosteiros, dos quais, 57 no Continente, 17 nos Açores e 3 na
Madeira. Este cômputo não considera três transferências,79 nem duas fundações ultramarinas,
Macau em 1633 e S. Salvador da Baía em 1667; mas inclui o desmembramento do mosteiro
de Vale de Cabaços, e o mosteiro que existiu em Olivença no século XVII, durante uns dez
anos80.
Cerca de dois terços, viviam sob a jurisdição dos franciscanos81, sendo os restantes de
jurisdição episcopal. Só as Províncias e Custódias da Regular Observância tinham jurisdição
sobre mosteiros de Clarissas a saber: Província de Portugal, Província dos Algarves, Província
de São João Evangelista, nas ilhas dos grupos central e ocidental dos Açores, Custódia da
Conceição, nas ilhas açorianas de São Miguel e Santa Maria, e Custódia de São Tiago Menor,
na Madeira. A maioria destes mosteiros professava a Regra de Urbano IV, sendo apenas doze
os que seguiam a Regra de Santa Clara82.
Uma boa parte deles formou-se a partir de recolhimentos de senhoras piedosas,
designadas mantelatas. Tratava-se de Terceiras Franciscanas Seculares que usavam o hábito
77
António Montes Moreira, ofm, op.cit., p. 216.
Neste cômputo consideramos o mosteiro de Nossa Senhora de Vale de Cabaços, na lha de São Miguel dos Açores, fundado em 1522 e os
seus dois desdobramentos: o mosteiro de Santo André de Vila Franca, em 1532, e o da Esperança de Ponta Delgada, em 1541.( Veja-se a p.
121 desta obra).
79
O mosteiro de Santa Maria e de Santa Clara, que passou de Lamego para Santarém em 1259, o de Santa Clara de Entre-os-Rios, para o
Porto, em 1427 e do Aljustrel, para Caminha, em 1561.
80
Frei Jerónimo de Belém, Crónica Seráfica da Santa Província dos Algarves da Regular Observância de Nosso Seráfico Padre S.
Francisco, II, Lisboa, 1753, pp. 776-778.
81
António Montes Moreira ofm, op.cit., pp. 222 - 224.
82
António Montes Moreira ofm, op.cit., pp. 222 - 224. São eles: Setúbal (fundado em 1490), Lisboa – Madre de Deus (1508), Faro (1541),
Évora – Santa Helena do Calvário (1570), Sacavém (1581), Lisboa – Nossa Senhora da Quietação em Alcântara (1586), Angra – S. Sebastião
(1666), Funchal – Nossa Senhora das Mercês (1667), Lisboa – Mosteiro do Crucifixo (Francesinhas - 1667), Louriçal (1709), Guimarães –
Madre de Deus (1716) e Lisboa – Santa Apolónia (1718).
78
46
completo da sua Ordem, quer fazendo vida comum em recolhimentos quer em suas casas.
Nestes casos as moradoras dos recolhimentos passavam em conjunto à Ordem de Santa Clara,
como aconteceu nos séculos XIV-XV, em Amarante, Guarda, e no real mosteiro da
Conceição de Beja. No século XVI passou para a Ordem de Santa Clara uma boa dezena de
recolhimentos de mantelatas. O mesmo aconteceu em 1667 com o mosteiro de Nossa Senhora
das Mercês do Funchal.
Não há estatísticas precisas sobre o número global de Clarissas em Portugal. Temos,
porém, para 1650, um estatística das Clarissas dos mosteiros canonicamente dependentes dos
franciscanos da Província de Portugal, do cronista Frei Manuel da Esperança. Seriam nesse
ano 4 50083. Em 1739, a avaliar pelas informações colhidas por Frei Apolinário da Conceição,
somavam 4 80084.
3. Extinção
Com o Liberalismo, enquanto as Ordens Religiosas masculinas foram extintas de
imediato, por decreto de 28 de Maio de 1834, as femininas apenas foram proibidas, por lei de
5 de Agosto de 1833, de receber noviças e emitir votos. Era uma supressão por morte lenta. O
Estado, se não antes, pelo menos quando morria a última religiosa, tomava posse do
edifício85. Porém, apesar da lei civil, alguns mosteiros continuaram a receber candidatas.
Eram conhecidas pelo nome de pupilas e viviam com as religiosas e como elas,
comprometendo-se com o carisma da comunidade e da Ordem86. Em 1910, o governo
republicano ordenou a expulsão das religiosas e tomou posse desses mosteiros.
4. Reestruturação da Ordem (século XX)
O ressurgimento da Ordem de Santa Clara em Portugal seguiu três linhas
complementares: restauração de três mosteiros antigos, fundação de sete novos mosteiros e
criação de uma Federação.
Neste renascer da Ordem de Santa Clara em Portugal, é justo que destaquemos uma
figura: o P. José do Nascimento Barreira, franciscano, que soube incentivar e acompanhar o
novo desabrochar da Ordem. Inexcedível foi a sua doação por esta causa, ao longo de quase
quarenta anos. Desempenhou o cargo de Assistente da Federação até 1992.
4.1. Restauração de três mosteiros antigos
Mosteiro do Santíssimo Sacramento do Louriçal
A restauração começou no Louriçal. Aqui fora fundado em 1630 o Recolhimento de
senhoras. Em 1709 estava concluído o mosteiro do Santíssimo Sacramentol, mandado
construir pelo rei D. João V. Para iniciá-lo foram transferidas seis Clarissas da cidade de
Évora, que receberam as recolhidas como noviças. Foi mosteiro florescente até 1910, ano em
que as religiosas foram expulsas.
Quando em 1925 o mosteiro do Louriçal apareceu à venda em hasta pública, a Madre
Maria Nazaré dos Santos, com os seus bens patrimoniais e de outras Irmãs e ainda o auxílio
da Primeira Ordem Franciscana, conseguiu comprar o mosteiro que, desde 1911, estava
83
Frei Manuel da Esperança, op. cit., I, p 14-15; António Montes Moreira, op. cit., p 222.
Apolinário da Conceição, op. cit., pp. 182-184, 196-197 e 202-205; António Montes Moreira, op.cit., p 223.
85
António Montes Moreira ofm, op.cit p. 225 - 226; Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, VIII, Lisboa, 1986, pp. 200 – 203.
86
António Montes Moreira ofm, op.cit., p. 225 - 226.
84
47
transformado em posto da Guarda Nacional Republicana. A 14 de Janeiro de 1928 entrou nele
um grupo de Irmãs Clarissas às quais se juntaram algumas candidatas.
A 21 de Julho de 1931, o bispo de Coimbra, D. Manuel Luís Coelho da Silva, mandou
proceder a eleições canónicas. A comunidade era então constituída por cinco religiosas
professas (já haviam falecido duas), quatro noviças e algumas postulantes.
Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal
Na Madeira, as Irmãs Clarissas do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês foram os
pilares bem firmes que sustentaram a Ordem de Santa Clara em Portugal. Logo após a
expulsão, as quinze religiosas que constituíam a comunidade, catorze professas e uma noviça,
tentaram organizar-se. O grupo maior, constituído por sete membros, fixou-se em casa
particular na Palmeira, enquanto um segundo, formado por três professas e uma candidata, se
estabeleceu junto à capela de Nossa Senhora da Piedade, no sítio da Caldeira, freguesia de
Câmara de Lobos. Cinco permaneceram na casa paterna.
A partir de 1929, apoiadas pelo bispo do Funchal D. António Manuel Pereira Ribeiro,
puderam iniciar na Caldeira a construção do novo mosteiro. A 16 de Abril de 1931, as oito
sobreviventes, acompanhadas de duas candidatas, entraram felizes no mosteiro de Nossa
Senhora da Piedade. A 13 de Novembro do mesmo ano, tiveram lugar as primeiras eleições
canónicas sob a presidência do franciscano Frei Leonardo de Castro como delegado do bispo
da diocese. A comunidade era, então, constituída por sete religiosas professas e cinco noviças.
Mosteiro do Santíssimo Sacramento de Lisboa (Conventinho)
O real convento do Santíssimo Sacramento, situado no Campo de Santa Clara, junto à
igreja de Santa Engrácia, foi fundado pela infanta D. Maria Vitória em 1783, com religiosas
do mosteiro do Louriçal, levantado sobre as ruínas do mosteiro de Santa Clara que fora
totalmente destruído pelo terramoto de 1755. Conhecido pelo nome de Conventinho do
Desagravo do Santíssimo Sacramento ou simplesmente Conventinho, gozou de grande estima
entre a população da cidade de Lisboa87.
O seu ressurgimento, em Lisboa, foi acidentado. Em 2 de Maio de 1927, a Sé
Apostólica considerou-o não-extinto; em 11 de Abril de 1928, fizeram a profissão perpétua
duas pupilas do Conventinho, no mosteiro de Clarissas de Ciudad Rodrigo (Espanha), com
vista à restauração; entre 1941 e 1945, a comunidade, organizada em casa particular em
Lisboa, passou por Carnide e Laveiras, nos arredores, e voltou de novo à cidade, ocupando o
edifício nº. 53 da Rua de D. Dinis; em 15 de Maio de 1945, as Irmãs deram entrada no prédio
nº 15 da Rua da Estrela. Em 1958 e anos seguintes, fez-se a transferência de algumas
religiosas professas solenes do mosteiro do Louriçal para Lisboa, onde, a 14 de Junho de
1963, se procedeu a eleições canónicas, por mandato do Cardeal Patriarca de Lisboa. Em 16
de Agosto de 1971, a comunidade, com autorização dada por D. António Ribeiro, Cardeal
Patriarca de Lisboa, transferiu-se para Sintra.
Estes três mosteiros situam-se, pois, numa linha de certa continuidade histórica com os
três mosteiros dissolvidos pela República de 1910 e um deles, o do Louriçal, no primitivo
edifício88.
4.2. Fundação de sete novos mosteiros
87
88
Ver José do Nascimento Barreira, FM, Origem e história do Convento do Desagravo. O “Conventinho” de Lisboa, Braga, 1965.
António Montes Moreira, op. cit., p. 227.
48
Referência sumária
Os sete mosteiros fundados entre 1955-1981 assumem o genuíno carisma de Santa
Clara na sua opção pela Primeira Regra, ou seja, a Regra de Santa Clara e privilegiando a
dimensão contemplativa eucarística clariana. São eles:
1. Mosteiro de São José, em Vila das Aves, fundado pela Madre Maria Cruz Clara do
Imaculado Coração Maria e mais três religiosas vindas do mosteiro de Ciudadela, na Ilha de
Minorca, arquipélago das Baleares; foi canonicamente erecto a 17 de Junho de 1955. A 6 de
Janeiro de 1959, o arcebispo primaz de Braga, D. António Bento Martins Júnior, procedeu à
imposição da clausura e presidiu à primeira eleição canónica.
2. Mosteiro de Nossa Senhora do Rosário, em Fátima, fundado pelo mosteiro do
Santíssimo Sacramento de Lisboa. A fundação principiou com um pequeno grupo de
religiosas que para ali partiu a 10 de Outubro de 1966 que, lentamente e com dificuldades de
vária ordem, procedeu à adaptação da casa que havia sido adquirida na Moita Redonda, perto
da Cova da Iria. Foi erecto canonicamente a 12 de Agosto de 1969.
3. Mosteiro de Santa Clara, em Monte Real, fundado pela Madre Teresa do Menino
Jesus e três religiosas do mosteiro do Louriçal que, obtidas as necessárias licenças, para ali se
dirigiram a 5 de Março de 1965. A este pequeno grupo se foram juntando algumas candidatas.
As religiosas viveram em casa provisória, enquanto se construía o novo mosteiro, que foi
erecto canonicamente a 19 de Março de 1972.
4. Mosteiro de Santo António, precisamente na casa onde, a 17 de Janeiro de 1929,
morreu a Madre Virgínia Brites da Paixão em odor de santidade. A fundação, que começou a
1 de Março de 1967, com três religiosas idas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade
(Câmara de Lobos), foi autorizada por decreto do bispo do Funchal de 21 de Junho de 1971.
Foi erecto canonicamente a 25 de Dezembro de 1975.
5. Mosteiro de São Francisco de Assis, em Vila Nova de Famalicão, fundado em casa e
cerca pertencentes à Primeira Ordem Franciscana, foi erecto a 21 de Novembro de 1976, com
oito religiosas saídas do mosteiro de São José (Vila das Aves). A comunidade, agora
numerosa, prepara-se para uma fundação na diocese de Santarém.
6. Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, nas Calhetas, Ilha de São Miguel, Açores.
Depois de século e meio de ausência, a Ordem de Santa Clara voltou aos Açores, onde tinha
deixado um rasto de gloriosa tradição. A entrada solene das oito religiosas fundadoras, idas do
mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Ilha da Madeira, acompanhadas de uma candidata, e a
erecção canónica efectuaram-se a 2 de Janeiro de 1977.
7.Mosteiro de Nossa Senhora da Boa Esperança, em Montalvo, concelho de Constância,
fundado a 22 de Agosto de 1980, por um grupo de Clarissas saídas do Louriçal. As
fundadoras haviam estado em Medelim, concelho de Idanha-a-Nova, pelo curto espaço de
catorze meses, após o que, por falta de condições ambientais, foram transferidas, pelo bispo
da diocese, para Montalvo. Foi erecto a 1 de Janeiro de 1981.
49
Mapa 2
Em fundação
1. Desde 1993, está em fundação em Lisboa, à Rua da Estrela, 17, o mosteiro do
Imaculado Coração de Maria. Cabe ao mosteiro do Santíssimo Sacramento de Sintra o mérito
da construção deste mosteiro. A comunidade, ao longo de algumas dezenas de anos,
empenhou-se e sacrificou-se por aquela causa com inexcedível generosidade.
2. O Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, cuja fundação está a ser levada a cabo
pelo mosteiro de São Francisco de Assis de Vila Nova de Famalicão, é em Portugal a
fundação mais recente.
Numa quinta adquirida em Santarém, onde desde há cerca de um ano se vem fazendo a
restauração dos prédios ali existentes, estabeleceu-se no dia 20 de Maio de 2000 a
comunidade fundadora. O prelado da diocese, D. Manuel Pelino Domingues, acompanha com
solicitude o mosteiro nascente. As religiosas já tinham estado algum tempo em Rio Maior.
Mosteiros fundadores
Nestas fundações devemos salientar essencialmente a acção de dois mosteiros
reorganizados em 1931: Santíssimo Sacramento do Louriçal e Nossa Senhora da Piedade,
Caldeira (Madeira), que, cheios de vitalidade, a partir dos anos sessenta, puderam irradiar para
outras fundações, como nos é dado ver no quadro anexo:
Quadro nº.6 - Mosteiros fundados
Nome
Local
Início da Erecção
fundação canónica
Mosteiro fundador
Mosteiro de São José
Mosteiro de Nª. Sª. do Rosário
Vila das Aves
Fátima
1955
1966
1955
1969
Most. S. Clara ( Minorca)
Most. SS. Sacramento (Lisboa)
Mosteiro de Santa Clara
Mosteiro de Santo António
Mosteiro e São Francisco de Assis
Mosteiro de Nª. Sª. das Mercês
Mosteiro Nª. Sª. Boa Esperança
Monte Real
Funchal
Famalicão
Calhetas (Açores)
Montalvo
1965
1967
1976
1977
1980
1972
1975
1976
1977
1981
Most. SS. Sacramento (Louriçal)
Most. Nª. Sª. Piedade (Caldeira)
Most. São José (Vila das Aves)
Most. Nª. Sª. Piedade (Caldeira)
Most. SS. Sacramento (Louriçal)
Mosteiro de Santa Clara
Nova Iguaçu (Brasil)
1986
1989
Most. Nª. Sª. Piedade (Caldeira)
Fontes: Crónicas dos mosteiros
O mosteiro do Santíssimo Sacramento do Louriçal que, entre 1948-1963, com a saída
de alguns dos seus membros, revitalizara em Lisboa o pequenino grupo do Conventinho, de
forma a tornar possível a 14 de Junho de 1963 a primeira eleição canónica, já pôde fazer duas
fundações: o mosteiro de Santa Clara, em Monte Real e o mosteiro de Nossa Senhora da Boa
Esperança, em Montalvo.
Ao mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, continuador da heróica comunidade de
Nossa Senhora das Mercês do Funchal, que bem cedo se encheu de vocações jovens e cheias
de entusiasmo, já foram possíveis três fundações: o mosteiro de Santo António, no Funchal, o
mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, nas Calhetas (Açores) e o mosteiro de Santa Clara
iniciado em 1986, no Nova Iguaçu (Brasil).
50
Outros deram o seu contributo neste crescimento e irradiação da Ordem, na medida que
lhes foi possível.
4.3 Criação da Federação do Imaculado Coração de Maria
Por decreto da Sagrada Congregação dos Religiosos e Institutos Seculares, de 22 de
Agosto de 1967 e em conformidade com a Constituição apostólica Sponsa Christi de Pio XII,
de 21 de Novembro de 1950, os mosteiros das Clarissas de Portugal, então em número de
seis, constituíram-se em Federação, à qual se foram juntando os fundados posteriormente.
Nela está englobado, o mosteiro de Nossa Senhora de África em Kibala (Angola), fundado
por Clarissas do México.
A primeira Presidente, a Madre Maria Cruz Clara do Imaculado Coração, abadessa do
mosteiro de São José em Vila das Aves, eleita a 18 de Outubro de 1967 e Frei José do
Nascimento Barreira, franciscano, nomeado Assistente da Federação pela Congregação dos
Religiosos naquela mesma data, procuraram, com uma total dedicação, dar à Federação do
Imaculado Coração de Maria o incremento necessário.
5. Alguns dados estatísticos
Quando em 1931 se reorganizaram as comunidades do mosteiro do Santíssimo
Sacramento do Louriçal e de Nossa Senhora da Piedade, na Madeira, o número de religiosas
estava reduzido a quinze professas e oito noviças89. Entretanto, as vocações surgiram e, por
isso, o número de Clarissas foi aumentando, atingindo a sua expressão máxima em 1994, ano
em que as professas solenes atingiram o total de cento e oitenta e três, as professas simples
três e as noviças também três. Neste número estão incluídas vinte e oito religiosas que,
movidas pelo desejo de uma maior comunhão com Deus, depois de obtida a necessária
autorização da Sé Apostólica, transitaram de diversos Institutos Religiosos e de Institutos
Seculares para a Ordem de Santa Clara. Estas opções vêm-se verificando desde há algumas
décadas.
O quadro junto mostra a evolução quantitativa da Ordem de Santa Clara em Portugal,
desde 1931.
QUADRO nº.7-Dados estatístico da Ordem de S. Clara em Portugal (Séc. XX)
Ano(ref. a 31/12)
Professas
Noviças
Postulantes
1931
1933
1941
1943
1945
1953
15
16
24
27
35
50
8
4
4
6
2
6
5
2
4
5
5
7
Prof. Solenes
Prof. Temporárias
1958
1959
56
62
5
4
6
8
8
10
1962
70
9
8
10
1968
1972
1980
1984
1987
1988
1989
92
120
142
148
154
152
158
9
10
12
12
11
13
11
6
4
10
13
6
8
10
9
8
10
15
15
15
9
89
Estão incluídas as duas religiosas que haviam professado em Ciudad Rodrigo, como atrás referimos, que nessa data tentavam organizar em
comunidade o grupo de “pupilas” oriundas do Conventinho.
51
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
159
161
160
170
183
181
175
170
165
166
11
12
13
10
3
5
3
5
5
6
10
9
5
5
3
3
7
4
6
2
8
6
6
6
2
4
9
6
3
2
Fontes: Dados fornecidos pelas Irmãs Clara de Maria e Gabriela da Virgem ex-secretárias federais, e pela Irmã Adelaide
Maria da Cruz, actual secretária federal.
O quadro mostra também que depois 1931, quando a Ordem de Santa Clara em
Portugal iniciou a reorganização, o número de religiosas foi aumentando gradualmente,
atingindo o seu valor máximo em 1994 com cento e oitenta e nove religiosas das quais três
eram noviças. A década de oitenta foi o período em que as candidatas afluiram em maior
número
Nos últimos anos as vocações vão diminuindo o que é fenómeno extensivo à Europa,
em geral.
52
SEGUNDA PARTE
MOSTEIROS DA MADEIRA NO PASSADO
I Secção: Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição
ou de Santa Clara (Funchal)
II Secção: Mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação (Funchal)
III Secção:
Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês (Funchal)
53
I SECÇÃO
MOSTEIRO DE SANTA CLARA)
1497-1890
54
(fotografia)
6. Mosteiro de Santa Clara. Construído no final do século XV, o mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, mais tarde
chamado de Santa Clara, foi a primeira casa religiosa feminina nas ilhas atlânticas. É bem visível a torre quadrangular,
encimada por uma cúpula oitavada com um pináculo, recoberta de azulejos do séc. XVII. Fotografia do Jornal da
Madeira
55
CAPÍTULO I
ESTRUTURA MATERIAL E ECONÓMICA
1. O primeiro mosteiro feminino na Madeira
A Madeira nasceu franciscana.
Quando no raiar do século XV o povo luso se lançou na epopeia dos descobrimentos
foram os franciscanos que, levados pelo desejo de “fazer cristandade”, acompanharam os
mareantes Atlântico dentro. Segundo os antigos cronistas, nas naus de João Gonçalves Zarco,
que aportaram à Madeira em 1419, encontravam-se dois franciscanos que benzeram a terra e
celebraram a primeira missa na Ilha.90 Outros vieram depois.
Iniciado o povoamento da Ilha logo após a descoberta, muitos nobres se transferiram
para lá, assistindo-se a uma verdadeira proliferação de linhagens locais.
Por razões religiosas, isto é, “para melhor servir a Nosso Senhor” e por imperativos
tantas vezes sociais e políticos, a população insular começou a sentir a necessidade de um
mosteiro na Ilha. De facto, as donzelas nobres e não nobres, que queriam levar vida
conventual, por falta de casa religiosa no Funchal destinada a esse fim91, tinham de dirigir-se
para o Reino, solução pouco agradável para as famílias que faziam vida na Ilha.
Foi João Gonçalves da Câmara, filho do descobridor e segundo capitão donatário do
Funchal, que chamou a si a iniciativa de fundar o primeiro mosteiro, “não só para
recolhimento das suas filhas como de outras pessoas que desejavam seguir a vida
monástica”92.
Admite-se a possível influência de D. Manuel, duque de Beja e Senhor da Madeira, na
qualidade de Mestre da Ordem de Cristo, na determinação do donatário, pois que também ele
via a urgência de satisfazer essa necessidade93. Podemos até adiantar a hipótese de que a
atitude decisiva de João Gonçalves da Câmara se deva a diligências anteriormente havidas
junto da Sé Apostólica pelo duque de Beja e pelo clero do Funchal, representado na pessoa do
vigário de Nossa Senhora do Calhau, Nuno Cão, freire do Mestrado de Tomar94.
2. Autorização papal
Do relacionamento das entidades sobreditas com a corte pontifícia de Roma resultou a
bula Eximiae devotionis affectus” de 4 de Maio de 1476, de Sisto IV, insigne Papa
franciscano, que autorizava a construção do mosteiro95.
90
Jerónimo Dias Leite, Descobrimento da Ilha da Madeira e discurso da vida e feitos dos Capitães da dita Ilha, Coimbra, 1947, pp. 9-10; P.
Fernando Augusto da Silva, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, I, 1425-1800, Funchal, 1946, p. 161; Fr. Domingos de
Gubernatis a Sospitello, Orbis Seraphicus-Historia de tribus Ordinibus a Seraphico Patriarcha S. Francisco institutis, deque eorum
progressibus,& honoribus per quatuor mundi partes, IV, Roma, 1685: De nova Custodia Insule & lignorum, sive de Madeira, fol. 310. O
cronista ao redigir a memória da criação da Custódia da Madeira, ao mesmo tempo que fala da acção dos franciscanos, faz uma descrição
geográfica e histórica de grande intersse..
91
P. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, Elucidário Madeirense, Funchal, 1984, I, p. 309. Citaremos: Elucidário
Madeirense.
89 Elucidário Madeirense, I, p. 309.
93
Elucidário Madeirense, I, p. 309.
94
Jerónimo Dias Leite, op. cit., pp. 43-44; Eduardo Clemente Nunes Pereira, Ilhas de Zargo, 3ª edição, II, 1968, p 424. Citaremos Ilhas de
Zargo.
95
Manuel Taveira, ofm, “Bulas referentes a Ordem Franciscana em Portugal, no Bulário Franciscano”, in Itinerarium 6 (1960) 284.
56
Sisto IV, respondendo ao capitão e dirigindo-se à Igreja lisbonense, concedeu a João
Gonçalves da Câmara e a sua esposa D. Maria de Noronha não só a autorização para construir
o mosteiro como também o padroado do mesmo. A referida bula concedia autorização a
7. Vista aérea do mosteiro de Santa Clara. A fotografia que, em primeiro plano, deixa ver o jardim interior, onde se
construíram as dezasseis capelas particulares, mostra--nos, ao alto, uma grande parte da cidade do Funchal.
Fotografia de Rui Camacho, DRAC.
D. Maria de Noronha “para entrar no convento acompanhada de três ou quatro senhoras e de
falar com a abadessa e religiosas, ter com elas recreação e sentar-se à mesa da comunidade”96.
Porém, apesar desta autorização de Roma e da muita vontade do duque de Beja, as obras não
começaram.
Em carta de Almada de 17 de Julho de 1488 ainda o duque insistia com as autoridades
e o povo da Madeira para que fosse iniciada a construção. “(…) Eu tenho havido letra do
Santo Padre para na igreja de Santa Maria de Cima, haver de fazer um mosteiro de freiras de
observância (…) E porque é causa do serviço de Deus, bem e honra dessa Ilha (…) por razão
do mosteiro onde podereis meter vossas filhas para em ele servirem a nosso Senhor, (…) eu
vos rogo e encomendo que tanto que esta virdes, vos ajunteis logo em câmara com o capitão
(…) E vos praza de se assim fazer, dando vossas esmolas e ajudas para o dito mosteiro se
poder logo começar e fazer (…) com vossas ajudas e minha, ele deva ser honrado e bem
provido”97.
Posteriormente, em resposta a questões que lhe foram postas, D. Manuel observava:
“(…)as freiras que nele hão-de entrar, não hão-de ser estrangeiras, mas filhas e parentes dos
principais da terra, pelo que deveis mais de folgar e de dar aviamento a este feito”98.
Desconhecemos as razões que teriam obstado ao começo da obra, mas sabemos que a 1
de Fevereiro de 1491, através do mesmo duque de Beja, se conseguiu de Inocêncio III uma
nova autorização para a construção e fundação do mosteiro, e logo nesse mesmo ano ou mais
provavelmente em 1492 , se deu começo às obras99.
3. A construção
O mosteiro surgiu junto à igreja de Santa Maria de Cima, também designada de Nossa
Senhora da Conceição de Cima, fundada por João Gonçalves Zarco ou pelo Infante D.
Henrique, junto à casa do descobridor, a Casa das Cruzes, hoje Quinta das Cruzes, em lugar
alto, sobre uma rocha, “com alegre e larga vista da terra e do oceano” e tão perto dele que, diz
Noronha, “não pode alargar-se mais nem ter cerca igual à sua grandeza, sendo-lhe necessário
ter as hortas e pomares, fora da clausura,”100 em lugares vários da Ilha.
96
Joseph Pou y Marti, Bullarium Franciscanum, nova série, III, Quaracchi, 874 (1949) 428 - 431; Manuel Taveira, ofm, “Bulas referentes à
Ordem Franciscana em Portugal, in Itinerarium, 6 (1960) 284-285; António Domingues de Sousa Costa, “ O Infante D. Henrique na
Expansão Portuguesa” in Itinerarium, 5 (1959) 520-521 e 527-528; Frei Fernando da Soledade, História Seráfica Cronológica da Ordem de
S. Francisco na Província de Portugal, III, Lisboa, 1705, p. 349.
97
ARM, Câmara Municipal do Funchal, tomo I da Câmara, fol. 163v e 164 v; Arquivo Histórico da Madeira, Funchal, 16 (1973) 212–213,
doc. 126: Carta do Duque de Beja para os fidalgos, cavaleiros, escudeiros e homens bons e povo da Madeira, de 17 de Julho de 1488.
Elucidário Madeirense, I, p. 309; Henrique Henriques de Noronha, Memórias Seculares e Eclesiásticas, para a composição da História da
Diocese do Funchal, na Ilha da Madeira, Funchal, 1996, (reimpressão da edição de 1722), p. 261 e ss.
98
ARM, , Câmara Municipal do Funchal, I da Câmara, fol. 164 v e ss.; Arquivo Histórico da Madeira, , 16 (1973) 212–213, doc. 126: Carta
do duque de Beja para os fidalgos, (...) de 17 de Julho de 1488.
99
Elucidário Madeirense, I, p. 309; Frei Apolinário da Conceição, Claustro Franciscano, erecto no domínio da Coroa Portugueza, Lisboa,
1740, p. 146; Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 174 ss.; Fernando da Soledade, III, op. cit., pp. 349-350; Jerónimo Dias Leite, op. cit., p.
42.
100 Noronha, op. cit., pp. 263 e 264. Quanto ao local, mandava o duque de Beja que se fizesse “em baixo, em Santa Maria do Calhau ou em
São Sebastião, onde melhor parecer ao vigário, ao capitão e a vós”. (ARM, Câmara Municipal do Funchal, I da Câmara, fol. 164v; Arquivo
Histórico da Madeira, 16 (1973) 212 –213, doc. 126 ).
57
A igreja foi incorporada na construção, tendo recebido importantes modificações, a fim
de ficar adaptada à clausura. A capela-mor recebeu os restos mortais do descobridor, ainda
antes da igreja estar integrada no mosteiro. Mais tarde, nela foram sepultados os cinco
primeiros capitães donatários do Funchal e alguns membros dos Câmaras. Os familiares do
terceiro capitão, Simão Gonçalves da Câmara, que morreu em Matosinhos, fizeram questão de
mandar trasladar os seus restos mortais para o Funchal, a fim de ser sepultado no mosteiro de
Santa Clara101.
O donatário procurou dar ao edifício as dimensões necessárias, provê-lo de salas,
oficinas comuns e particulares, dormitórios em número de doze e outras divisões que a
finalidade exigia, havendo também o cuidado de anexar-lhe algumas propriedades, entre as
quais a Vargem do lado sul das Cruzes, que constituíam um espaço agrícola necessário às
religiosas102, ainda que insuficiente.
8. O claustro gótico do mosteiro de Santa Clara. Bem visíveis as robustas colunas oitavadas da arcaria gótica que fecha a
ala norte do claustro. As pedras, de tonalidade amarela, na opinião de alguns autores, terão vindo do Continente.
Fotografia de Rui Camacho, DRAC.
Segundo o cronista Frei Fernando da Soledade, João Gonçalves da Câmara empenhouse em que o mosteiro ficasse espaçoso e funcional. Ouçamo-lo: “Aqui fez o capitão este
insigne mosteiro, que na verdade o é, e muito digno de toda a estimação, assim por causa do
seu território notavelmente alegre, como por sua grandeza e perfeição dos edifícios e tanta
capacidade, que (contando somente as freiras e meninas que se criavam para o mesmo estado)
Planta 1
recolhia cento e doze pessoas”103.
As obras decorreram com certa morosidade, não só pela “capacidade de estilo” mas
também pela ausência do capitão que, sendo conselheiro régio104, muitas vezes ia para o
“Continente do Reino”, onde a permanência era sempre demorada, devido sobretudo à
dificuldade das comunicações. Apesar de João Gonçalves da Câmara ter o cuidado de, nas
suas ausências, se fazer substituir por sua filha D. Constança de Noronha na vigilância das
obras, certo é que elas avançaram lentamente e só se concluíram em 1497105.
9. O claustro gótico noutra perspectiva. Vista noutra perspectiva, a ala norte do claustro, opulenta e bela, deixa ver a parte
do imóvel que corre ao longo da Calçada de Santa Clara. Fotografia de Perestrellos Photógraphos – Museu “Vicentes”
101 Elucidário Madeirense, III, pp. 242, 243; Noronha, op. cit., p. 265.
102 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara, Funchal., L 31, não paginado; Noronha op. cit., p. 264.
103 Fernando da Soledade, op. cit., III, pp. 350 – 351.
104 Jerónimo Dias Leite, op. cit., p. 42,.
105
Jerónimo Dias Leite, op. cit., p. 42.
58
Finalmente, tinha a Ilha da Madeira o primeiro mosteiro de Irmãs Clarissas, que havia
de ser, como escreveu o cronista Dias Leite, em 1579, “tão magnífico na fábrica como ilustre
nas muitas e virtuosas Madres que nele hoje em dia fazem vida de santas”106.
4. Licença papal definitiva
A bula Ex injunto nobis do Papa Alexandre VI, de 30 de Março de 1495107, concedeu a
licença definitiva. O papa dirigiu a bula à Igreja lisbonense, confiando a sua execução ao
vigário geral da Sé de Lisboa, Afonso Gil, bacharel em cânones, da qual só a 6 de Junho de
1497 tomou conhecimento. Nesta bula, o pontífice romano, para além da licença referida,
determinava que108:
- o mosteiro fosse da Regular Observância, com perpétua clausura, grande
recolhimento e obedecendo em tudo ao guardião do convento do Funchal;
- as primeiras fundadoras do edifício espiritual fossem quatro ou cinco religiosas do
mosteiro da Conceição de Beja;
- com elas viesse por abadessa D. Joana de Noronha, professa da Casa de Beja, filha
do mesmo capitão”109.
E, posto que o mosteiro iria seguir a Regra de Urbano IV, também dita Regra Segunda
de Santa Clara, que dava algumas facilidades, particularmente no que concerne à pobreza, o
pontífice pôde fazer algumas concessões: que o mosteiro tivesse propriedades e fazendas de
raiz, com as quais se pudessem sustentar as religiosas sem alheia dependência, e que as
religiosas pudessem comer carne, lacticínios e ovos todos os dias do ano em que os seculares
podem usar semelhantes iguarias110.
Com o fim de dar execução à bula de Alexandre VI, e a instâncias do vigário da Sé de
Lisboa, logo o capitão partiu para Beja, donde trouxe, não D. Joana, mas sim D. Isabel,
também “sua filha, nomeada já abadessa, com quatro fundadoras, D. Joana de Albuquerque,
D. Maria de Mello, Maria Pessanha, Ana Travassos e algumas meninas nobres suas parentes
que se criavam para freiras no próprio mosteiro”111.
106
Jerónimo Dias Leite, op. cit., p. 42; Fernando da Soledade op. cit., III, pp. 350 – 352.
Lucas Wadding, ofm, Annales Minorum, XV (1492-1515), Quaracchi, 1933, p.139; Reg. Lat. 969, fols.7v-8v; ed. Wadding, XV, 614 ex
Lib. 69, fol.7. - Alva, Indiculus, 122 num. 4: “Privilegium pro Monasterio Clarissarum Insulae Lignorum. Ex iniuncto, 3 kal,. Aprl.,Wadding
fol.114”.
108
Fernando da Soledade, op.cit. III, p. 351-352; Jerónimo Dias Leite, o.p cit., p. 43 e Noronha, op. cit., p.262. Noronha e Fernando da
Soledade atribuem ao referido breve a data de 1 de Abril de 1495.
109
Fernando da Soledade, op.cit., III, p. 351; Apolinário da Conceição, op.cit., p. 146. No breve papal lê-se, de facto: “(...) e com elas viesse
por abadessa D. Joana de Noronha, professa da casa de Beja”. O cronista franciscano Fernando da Soledade refere uma memória manuscrita
que lhe chama Isabel, “mas nós”, diz o cronista, “lhe damos o nome que o Papa assina” (op .cit., p. 351). Também Noronha nas suas
Memórias Seculares e Eclesiásticas, pp. 262 – 263, apresenta D. Joana de Noronha como primeira abadessa do mosteiro de Santa Clara do
Funchal. Ao longo dos tempos, os diversos autores foram apontando um e outro nome, convictamente ou entre dúvidas. Contudo, sabe-se
que João Gonçalves da Câmara, no seu testamento ( 26 de Junho de 1499) deixou ao mosteiro da Conceição de Beja 10.000 réis pela alma de
D. Joana sua filha “(...) que no dito mosteiro jaz (...)” (Arquivo Histórico da Madeira, 4 (1934-1935) 20). Numa lápide tumular, existente na
varanda que conduz ao claustro, adossada à parte sul dos dois coros, pode ler-se: “Aqui jaz D. Constança de Noronha (...) e sua irmã D.
Isabel, primeira abadessa, filha do segundo Capitão donatário desta Ilha”. Tudo está claro. De Beja não saiu D. Joana, como diz o breve, mas
sim D. Isabel, sua irmã. Numa lápide tumular ninguém se equivocava. A revista Islenha 1( 1987) 83, transcreve a referida inscrição tumular.
110
Fernando da Soledade, op.cit., III, pp. 351-352.
111
Fernando da Soledade, op. cit.., III, p. 352; Jerónimo Dias Leite, op. cit., p. 43; Numa relação de 1615, respeitante ao mosteiro de Nossa
Senhora da Conceição de Beja, sobre a saída de religiosas para outros mosteiros, lê-se o seguinte: “Daqui foi este convento em tanto aumento
de virtude e santidade, que dele foram edificar o muito religioso mosteiro das Chagas de Vila Viçosa, de São João de Estremoz e de Santa
Clara da Ilha da Madeira. E foram desta casa reformar Santa Clara desta cidade de Beja, Santa Clara de Vila do Conde e Santa Clara de
Coimbra e Araceli de Alcácer do Sal, dos quais se tem resultado tanto aumento de virtude e santidade” (ADB, Tombo dos bens, foros,
propriedades, que pertencem ao mosteiro de Nossa Senhora da Conceição desta cidade de Beja, 1577-1609, fol. 347v. e ss.). Esta
informação, que nos foi gentilmente enviada pelo Dr. Jorge Pulido Valente, Director do Departamento Sócio-Cultural de Beja, mostra a
credibilidade espiritual do real mosteiro da Conceição daquela cidade alentejana.
107
59
Reforçando os privilégios e concessões de Alexandre VI, também o rei D. Manuel
permitia ao mosteiro “faculdade para possuir bens que comprasse ou adquirisse por
herança”112.
Chegadas que foram à Ilha da Madeira, para se refazerem um pouco dos sustos da
viagem, o capitão “as hospedou em sua casa, com a boa companhia que lhes fez sua filha D.
Constança, irmã da abadessa”. Porém, elas suspiravam por encontrar-se no mosteiro, onde
“fizeram sua entrada no Domingo que caiu no Oitavário de Todos os Santos (…) Foi este o
dia mais festival e alegre que tinha experimentado a Ilha da Madeira, porque nunca dantes
tinha visto Esposas de Jesus Cristo (…) Ainda brilhou mais o triunfo da entrada, porque
algumas donzelas mais nobres do Funchal e outras filhas do mesmo capitão, vestidas já com o
hábito de Santa Clara, fizeram companhia às Fundadoras, ficando com elas na clausura, na
qual foram experimentando os rigores e asperezas do noviciado”113.
A Ilha da Madeira tinha, a 5 de Novembro de 1497, o seu primeiro mosteiro de
religiosas professas.
5. O padroado da família Câmara
Na Europa, durante os séculos XII e XIII, o número de conventos femininos, criados de
propósito para receberem nobres aumentou substancialmente, primeiro na Ordem Beneditina,
depois na Cisterciense e na de Santa Clara.
Quando no século XV se fez o povoamento da Ilha da Madeira, as linhagens que ali se
iam constituindo viam nos mosteiros um óptimo lugar para as filhas que não casassem, além
do prestígio que dava aos nobres o padroado dos mosteiros.
Sabe-se que o mosteiro de Santa Clara do Funchal foi expressamente fundado como
dependência da família Câmara, para abrigo das mulheres solteiras da sua linhagem e também
da restante nobreza, o que Soledade confirma, quando diz: “eram todas nobres e de gente
principal e melhor da Ilha.”114 Também o duque de Beja, em carta enviada para a Madeira,
assim se expressa: “As freiras que nele hão-de entrar (…) hão-de ser filhas e parentes dos
principais da terra”115.
A bula Eximiae devotionis affectus de Sisto IV, já referida, concedia a João Gonçalves
da Câmara e sua esposa D. Maria de Noronha o direito de padroado do mosteiro, bem como a
faculdade de transmiti-lo aos seus sucessores primogénitos. Contudo, o direito de padroado
dos Câmaras não era tão amplo como nos conventos medievais, não incluindo o direito de
apresentação da abadessa pelos padroeiros. Tal restrição deve-se ao facto de a Regra de
Urbano IV, seguida pelas religiosas do mosteiro de Santa Clara, estipular que a abadessa fosse
eleita democraticamente pela totalidade das Irmãs capitulares, ou seja, pelas religiosas
professas116. Era, pois, um padroado muito mitigado e indulgente, mas muito significativo em
termos de prestígio. Mesmo assim sendo, a família Câmara teve nas suas mãos o governo do
mosteiro, até meados do século XVI.
Sabe-se que ali professaram D. Elvira de Noronha, filha de João Gonçalves da Câmara,
D. Beatriz, D. Isabel e D. Maria de Noronha, filhas do terceiro capitão donatário, Simão
Gonçalves da Câmara, e muitas filhas dos capitães que se sucederam, bem como dos mais
112
ANTT, Chancelaria de D. Manuel, Livro das Ilhas, fol.. 55: Carta de Alcochete de 13 de Julho de 1496; ANTT, Conventos e Mosteiros,
Conv. S. Clara F., L 18, fol. 5, Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 351.
113
Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 352.
114
Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 351.
115
ARM, Câmara Municipal do Funchal, tomo I da Câmara, fol. 164 v e ss ; Arquivo Histórico da Madeira, 16 (1973) 212-213, doc. 126 :
Carta do duque sobre se fazer o mosteiro e a igreja.
116
RCL, IV, 1-8, FF II, p. 49.
60
ricos e nobres fidalgos da Madeira117. Foi entre estas religiosas, membros da família Noronha
(linha feminina dos Câmaras) que, ao longo de muitas décadas, foi escolhida a abadessa.
Por carta de Gaspar Vaz do Funchal, de 20 de Maio de 1542, sabemos que, desde a
fundação do mosteiro, sempre as “abadessas andaram de parente em parente todas
Noronhas”.118 Mais diz a carta que a eleição feita naquela data, sob a presidência do
franciscano Frei Nuno, igualmente caiu “numa abadessa freira desta linha que veio de
Portugal, por nome Aparícia, virtuosa pessoa (pelo que) estão todos muito consolados”119.
A partir do quinto capitão donatário, primeiro conde da Calheta, finaliza a capitania do
Funchal. O cargo de donatário tomou uma posição meramente honorífica em face da
administração pública. Ele é o último capitão donatário que se faz sepultar na capela-mor da
igreja do mosteiro, a qual vinha servindo de panteão aos seus antecessores. Contudo, o
padroado do mosteiro permaneceu na descendência do fundador, tendo depois passado aos
condes e marqueses de Castelo Melhor. De facto, em razão do casamento de Simão
Gonçalves da Câmara, terceiro conde da Calheta, filho de João Gonçalves da Câmara, sexto
capitão donatário, com D. Maria de Vasconcelos, filha e imediata herdeira do primeiro conde
de Castelo Melhor, o condado da Calheta integrou-se na Casa Castelo Melhor, depois erguida
a marquesado120. Em 1867, ainda encontramos os condes e marqueses de Castelo Melhor a
reclamar a posse do mosteiro, não só como padroeiros mas também como seus legítimos
senhores e proprietários121.
6. Instituição de “capelas”
O homem da Idade Média, sensível ao religioso, preocupava-se, embora em moldes
muito da época, com a vida para além da morte. Alguns fidalgos, e não só eles, instituíam o
que chamavam capelas, garantindo sufrágios que se concretizavam em missas rezadas ou
cantadas e ofícios dos defuntos em seu favor e de seus entes queridos, que o Juízo da
Provedoria dos Resíduos, mais tarde designado Juízo dos Resíduos e Capelas, geria,
fiscalizava e penalizava, quando necessário. Estas capelas não podiam ser alienadas e os seus
possuidores receberiam apenas uma parte dos rendimentos dos bens, sendo a restante
destinada a satisfazer encargos pios122.
João Gonçalves da Câmara que, além de conselheiro régio e capitão donatário, era
também Governador da Justiça na Ilha da Madeira e Senhor das Desertas, foi a primeira
pessoa a instituir uma capela no mosteiro por ele fundado, que formou com a terra da Várzea
ou Vargem, situada um pouco abaixo da sua casa e o lugar que havia recebido de Fernão de
Annes: “Esta terra e lugar aparto para uma capela contínua que mando que todos os dias se
diga uma missa rezada na capela-mor da igreja do dito mosteiro da Conceição que eu fundei;
a qual missa servirá pela alma do meu pai e da minha mãe, e da senhora minha mulher, que
Deus haja e minha, e do dito Fernão de Annes, que o dito lugar me deixou; e o capelão que a
dita missa disser haverá em cada ano catorze mil réis”123.
Segundo o testamento do capitão, esta capela estaria cumprida em 1826, com sobras de
1.511.400 réis para o futuro à razão de 14.000 réis cada ano para missas. Pedia João
Gonçalves da Câmara que nos Autos da conta desta capela ficasse uma nota esclarecedora de
117
Elucidário Madeirense, I, p. 310.
ANTT, Corpo Cronológico, I, 72, 9. Citado por Rui Carita, História da Madeira, Funchal, 1989, I, p 306; João José Abreu de Sousa, O
Convento de Santa Clara do Funchal, Funchal, 1991, p. 13. Esta obra apresenta fundamentalmente a inserção do mosteiro no regime de
colonia que, de certo modo, já vigorava na Madeira no século XV, esquecendo aspectos essenciais da vida dum mosteiro, tais como:
orgânica, vivência espiritual e cultural, dinâmica vocacional, inserção na Igreja local, na sociedade contemporânea e outros mais.
119
ANTT, Corpo Cronológico, I, 72, 9. Citado por Rui Carita, op. cit., I, p. 306; João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 13.
120
António de Aragão, Para a história do Funchal, 2.ª edição, Funchal, 1987, p. 112; Elucidário Madeirense, I, p. 309.
121
Elucidário Madeirense, I, p. 309.
122
Elucidário Madeirense, I, p. 243.
123
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 31, não paginado, e L 11, fol. 148; Arquivo Histórico da Madeira, 4 (1934) 17 e ss.
118
61
“estar satisfeita esta pensão até ao ano vindouro de 1933, com sobras de 13.400 réis para o
ano de 1934”124.
Seguem-se outras capelas, em condições idênticas a esta primeira, instituídas por
Gonçalo Pires, P. Manuel Homem de Menezes, Maria Andrade, Beatriz Rabela, D. Maria e
seu marido António Homem Barreto125.
Em função dos testamentos dos instituidores de capelas nos Autos do Cartório dos
Resíduos ficava averbado o que cada capela devia ao mosteiro de Santa Clara em cada ano.
Sabe-se que a capela do segundo donatário devia ao mosteiro 2.700 réis anuais e a de Beatriz
Rabela 600 réis126.
Estas capelas impunham ao mosteiro obrigações espirituais sérias em favor dos
instituidores. A 26 de Junho de 1667, Frei Diogo dos Mártires, comissário das capelas,
certificava: “A abadessa tem satisfeito com todas as obrigações das capelas e mandado dizer
as respectivas missas”127 e, a 28 de Janeiro de 1673, Frei Francisco da Conceição, então
comissário das capelas, depunha igual testemunho: “certifico que a madre abadessa, D.
Francisca da Nazaré, tem satisfeito com todas as obrigações das capelas e mandado dizer as
missas anuais a que é obrigado o Convento de Santa Clara”128.
Quando em 1741, D. Frei João do Nascimento assumiu o governo da diocese do
Funchal, verificando irregularidades, com grande firmeza exigiu cumprimento rigoroso dos
legados pios a cargo de leigos, mantendo persistentes lutas durante toda a sua vida contra eles
e o próprio tribunal do Juízo dos Resíduos e Capelas, relaxado na execução das suas
obrigações129.
7. O património do mosteiro - Propriedades rústicas e urbanas
Para fazer face a todas as despesas que advinham da obrigação de sustentar o elevado
número de pessoas que viviam no mosteiro e enfrentar outros gastos complementares, eram
necessários rendimentos certos e suficientes.
O mosteiro foi, na sua origem, protegido pela coroa portuguesa e autoridade pontifícia,
que lhe permitiram bens imóveis - propriedades rústicas e urbanas - privilégios e isenções.
Porém, enquanto no mosteiro fundador, o real mosteiro da Conceição de Beja (1479), D.
Fernando e a infanta D. Brites foram padroeiros solícitos130, outro tanto não sucedeu com o
mosteiro de Santa Clara do Funchal, onde “são as próprias freiras que vão custear, em grande
parte, graças aos seus dotes e doações, a sua subsistência”131. De facto, eram os dotes das
religiosas, oriundas de famílias nobres e abastadas, bem como as dotações de pessoas
piedosas e amigas, que lhes davam os maiores proventos.
Sabe-se que João Gonçalves da Câmara dotou as suas filhas com a propriedade do
Curral Grande que, para o efeito, comprara em 11 de Setembro de 1480 a Rui Teixeira e sua
esposa D. Branca que, sem dúvida, foi o prédio rústico mais vasto e importante que o
mosteiro possuiu. Foi-lhe entregue por João Gonçalves da Câmara na ocasião em que as suas
filhas D. Elvira e D. Constança de Noronha foram admitidas132.
124
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 31.
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa. 27, capilha 1, doc. avulso. A capela de D. Maria e seu marido, António Homem Barreto, segundo o
referido documento, foi instituída em 1762. Para o AHDF ver a nota de rodapé na p. IX , desta obra
126
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 31.
127
ARM, Conventos, Conv. S. Clara F., L 44, p. 122.
128
ARM, Conventos, Conv. S. Clara F., L 44, p. 122 v.
129
Ilhas de Zargo, II, p. 450.
130
ADB, Tombo dos Bens, Foros, Propriedades, que pertencem ao mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Beja, 1577-1609, fols. 347v
e ss; João José Abreu de Sousa, “ O Paço de Belas e a Madeira” in Atlântico, 13 (1998) 46-50.
131
João José Abreu de Sousa, art. cit., in Atlântico, 13 (1988) 49-50.
132
Elucidário Madeirense, I, pp. 309 - 310; Rui Carita op. cit., I, p. 307.
125
62
Também Simão Gonçalves da Câmara “meteu suas filhas no mosteiro de Santa Clara
com boas rendas, que para isso lhes aplicou”133. E, a 15 de Maio de 1506, as religiosas, pelo
procurador Paio Rodrigues, tomaram posse duma propriedade em Câmara de Lobos que D.
Constança doara ao mosteiro. Tratava-se da propriedade de Fajã, muito produtiva134.
As dotações e heranças sucediam-se e, em cada século, o mosteiro tomava posse de
novas propriedades. Referimos algumas das mais importantes, nos concelhos do Funchal,
Ponta do Sol e Câmara de Lobos.
Quadro nº.8 - Nos séculos XV e XVI
Funchal
-
Ponta do Sol
“A Horta” à Calçada de S. Clara.
Curral das Freiras.
Quinta de Santo António (Trapiche)
Uma propriedade na Senhora do Monte
Torrinha em Santa Luzia
Quebradas, em São Martinho
Garanicos e Corujeira
- Ribeira Grande:
Feiteira
Moinho
Torre das Vinhas
Porta do Caetano
Portela.
Câmara de Lobos
-
Lombo Campanário:
Porta Nova e Palmeira
Quebradas
Eira da Figueira
Pomarinho ou Adega
Casa Nova.
-
Câmara de Lobos:
Rancho
Serrado das Casas
Pico de Alforra
Fazenda da Quinta.
Fontes: ARM, Conventos, Conv. S. Clara F, L 42, fols 15 v - 162; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério
das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 31.
Ao longo do século XVII, recebeu o mosteiro novas propriedades nestes mesmos
concelhos, entre as quais o vasto património pertencente a D. Branca de Atouguia,135 em
1615, ano da sua profissão. Ela e suas filhas D. Bernardina e D. Antónia, já professas, deram
ao mosteiro de Santa Clara muitas e boas propriedades situadas, na sua maioria, no
Campanário136. Assim, aos prédios rústicos que vinham do século XVI outros se juntaram.
Quadro nº.9 - No século XVII
Funchal
Ponta do Sol
Ilhéus
Ribeira Brava: Covão, Cortadas, Lombo
Loureira, Santa Luzia
Gordo, As Fontes, Eira da Bica, Eira do
Esteios
Poço, Coroa de Domingos Lopes, Ribeira
Quebradas
das Nogueiras, Outeiro, Ribeira dos
Força, São Gonçalo
Vinháticos.
Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv.
Conv. S. Clara F., L 42, fol. 15 v - 162.
Câmara de Lobos
Estreito de Câmara de Lobos: 5 pomares no
Pico dos Bodes.
Campanário: Chamorra, 5 serrados nas
Quebradas, Furnas, Pedregal, Ribeira,
Massapez, Arrodal e Rocha.
S. Clara F,2072 doc. 31; ARM, Conventos,
133
Elucidário Madeirense, I, p 310; Rui Carita op. cit., I, p. 308. No tríptico de São Tiago e de São Filipe, atribuído a Pieter Coeck Van
Aelst (século XVI), belo exemplar de pintura flamenga, está representada, nos volantes, a família de Simão Gonçalves da Câmara, terceiro
capitão donatário do Funchal. Pode ver-se no Museu de Arte Sacra do Funchal (Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, Museu de
Arte Sacra do Funchal . Arte flamenga, Lisboa, 1997, pp. 102-107).
134
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, maço 11, doc. avulso.
135
D. Branca de Atouguia pertencia aquele número de freiras que se destacaram, não pela santidade, mas pelo volume dos bens que deixaram
ao mosteiro e pelo prestígio social que gozavam. Era bisneta paterna do fundador do Convento de São Francisco do Funchal. Casou pela
primeira vez com Gonçalo Pires, homem honrado e rico, mas simples lavrador, com propriedades no Campanário e Ribeira dos Socorridos,
onde morava (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finança, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. 11) e, pela segunda vez, com André
Afonso de Drummond, de nobre linhagem. Do primeiro casamento teve quatro filhos: Gregório de Atouguia (ANTT, Conventos e Mosteiros,
Conv de S. Clara F. L 11, fol. 116), que Noronha por lapso chama Nuno Alves da Costa, que foi para a Índia; Francisco de Atouguia e duas
filhas, D. Bernardina e D. Antónia, que professaram no mosteiro de Santa Clara. Viúva pela segunda vez, entrou no mosteiro, onde
professou. Fez testamento a 10 de Setembro de 1615, um tanto contrariada, pois, mais do que ser professa, lhe interessava simplesmente estar
“recolhida” (ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara, F., L 11, fol. 166).
136
ARM, Conventos, Conv. S. Clara F., L 42, fol. 133.
63
O século XVIII veio aumentar as propriedades de Santa Clara com a posse da Vela
Latina, propriedade pertencente à família dos Acciaiuoli137, pela entrada de Guiomar Estrela e
Brites do Céu, filhas de Roque Acciaiuoli e, além de novas terras naqueles mesmos
concelhos, tomou posse de outras nos de Santa Cruz, Calheta e Porto Santo.
Quadro nº.10 - No século XVIII
Funchal
Cova, em São Roque
Vela Latina, em Santa Luzia.
Casa Branca, em Santo António.
São Gonçalo: Morteiras, Louros,
Farrobo, Escadinhas e Fonte.
São Martinho: Fé, Nazaré e
Quebradas.
Nossa Senhora do Monte.
Santa Cruz
Gaula
Caniço: Paço, Calçada e Oleiros.
Ponta do Sol
Câmara de Lobos
Tabua: Corujeira, Quebradas, Colaços, no Campanário.
Pico do Ferreiro e Barreira.
Forneiras, no Estreito.
Hortas, em Madalena do Mar.
Malpica, Furna e Canhas.
Calheta
Ribeira de São Bartolomeu.
Porto Santo
Várias terras.
Três pequenos prédios.
Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finança, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc
31; ARM, Conventos, Conv. S. Clara F., L 42, fols. 15v - 162.
Sintetizando: nos séculos XV e XVI o mosteiro tomou posse de trinta e três
propriedades, no século XVII de outras trinta e três e no século XVIII de trinta e oito. O séc.
XIX é de decadência.
Estas propriedades espalhadas por toda a Ilha eram entregues a colonos ou a simples
arrendatários em regime de meias ou a troco de rendas pagas em dinheiro ou géneros. O
mosteiro apenas cultivava directamente, servindo-se de pessoal assalariado, a sua pequena
cerca.
O mosteiro de Santa Clara possuía também alguns prédios urbanos no Funchal, nas
freguesias da Sé, Santa Luzia, Santa Maria Maior e em Nossa Senhora do Monte138 e casas
noutras localidades, como seja em São Gonçalo, no Caniço e em Gaula e ainda algumas no
Porto Santo139.
8. O saque de 1566
A cidade do Funchal, à medida que foi enriquecendo com o cultivo do açúcar e do
vinho, passou a ser porto sempre procurado pelas embarcações que, saídas das ilhas atlânticas,
do Oriente e da América, se dirigiam para o velho Continente. Ao longo dos séculos XV, XVI
e XVII, a Ilha da Madeira foi demandada por negociantes estrangeiros, particularmente
ingleses, holandeses, franceses e italianos, que nela centravam os seus negócios. Também a
nobreza do reino, particularmente a voltada para as lides marítimas, fazia questão de se passar
para a Pérola do Atlântico. Ali se ia reunindo um valioso tesouro artístico: ricas e belas peças
em ouro, prata e prata dourada, trabalhos belíssimos em marfim, sedas, brocados, damascos,
ricas tapeçarias de origem persa e indiana, pinturas flamengas de valor, as mais raras jóias
137
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., doc. avulso.
ARM, Conventos, Conv. S. Clara F, L. 42, fol. 29 v - 34 v.
139
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 42, fol. 40 v - 45 ; AHU, Madeira, docs. 265 e 627.
138
64
orientais, mobiliário inglês, francês e oriental dos mais requintados estilos. Toda esta riqueza
despertava a cobiça de aventureiros e de políticos que, camufladamente, incentivavam e
protegiam a guerra de corso140.
Uma das mais terríveis incursões verificou-se em 1566. Em Setembro desse ano,
Bertrand de Montluc, gentil-homem da casa de Carlos IX, rei de França e segundo filho do
marechal Blaise de Montluc, embarcou em Bordéus cerca de mil e duzentos homens, em três
navios de alto bordo e oito embarcações de menor lotação. Nesta expedição tomaram parte
homens de armas, fidalgos franceses e alguns portugueses exilados, entre os quais Gaspar
Caldeira, conhecedor dos tesouros e da importância económica da Ilha141.
A 2 de Outubro daquele ano, estavam a atacar a Vila Baleira, no Porto Santo, que,
apanhada de surpresa, foi saqueada e incendiada. Os habitantes de Machico e de Santa Cruz,
enquanto preparavam a defesa, avisaram o governador do Funchal, Francisco Gonçalves da
Câmara, da presença dos piratas. Na manhã do dia seguinte, apareceram naus suspeitas na
Ponta de São Lourenço, seguindo em direcção ao Funchal. O governador reuniu o conselho de
fidalgos, mas, enquanto se tomavam medidas, os galeões seguiram costa abaixo e, chegados à
Praia Formosa, efectuaram o desembarque da sua gente, sem a menor dificuldade. Apenas se
propagou na cidade a notícia de que os corsários haviam desembarcado, foi grande o desatino
e confusão. O capitão Montluc, vencida a resistência oferecida pela guarnição da cidade,
avançou e organizou o ataque, dividindo as suas forças em três colunas: uma subiu a encosta
do pico dos Frias e dirigiu-se para o Mosteiro de Santa Clara, pretendendo apoderar-se de
todos os valores ali existentes; a segunda desceu a São Lázaro e a terceira, a principal,
comandada por Bertrand de Montluc, foi direita à cidade pela Rua da Carreira, entrando pela
ponte de São Paulo142.
No mosteiro de Santa Clara, os corsários não conseguiram entrar, pois encontraram o
portão bem fechado e tão bem trancado que não o puderam arrombar, apesar do seu grande
esforço. Quando menos o esperavam, foram atingidos por alguns tiros vindos da torre da
igreja e, julgando estar o mosteiro bem defendido, desistiram do cometimento; descendo a
calçada, foram juntar-se ao grosso do ataque que, sob o comando de Montluc, se dirigia para a
fortaleza,143 reservando o assalto ao mosteiro para depois.
Nesse entretanto, as religiosas, para não serem vítimas daquela horda selvagem, viramse obrigadas a abandonar o seu mosteiro. Saíram precipitadamente por entre os canaviais,
numa longa e mortificada caminhada, só parando no Curral Grande, a uns dezassete
quilómetros da cidade; assim se foram, sem salvar nenhum objecto valioso, a não ser uma
custódia do Santíssimo Sacramento e alguns cálices que puderam levar escondidos nas
mangas; tudo o mais, particularmente o que tinha valor, foi roubado.144 Enquanto os corsários
permaneceram no Funchal - umas duas semanas - na sua fúria de destruição e matança,
permaneceram as religiosas no Curral Grande, juntamente com muitas pessoas nobres, só
regressando ao seu mosteiro após a retirada dos corsários145.
A abadessa, não resistindo ao esforço da caminhada e abalo moral, faleceu durante o
trajecto da ida. Antes de abandonar o mosteiro, havia escondido os objectos mais valiosos alfaias de culto e mais valores em prata e ouro - e só ela guardava o segredo do valioso
depósito. No retorno ao mosteiro, apesar de diligente pesquisa, não foi possível descobrir o
140
Ilhas de Zargo, II, pp. 639-640.
Eduardo Clemente Nunes Pereira. Piratas e Corsários nas Ilhas ,Funchal, 1955, pp. 57 - 63. Ilhas de Zargo, II, p. 639-640; Rui Carita,
op. cit., I, p. 362. Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 355.
142
Rui Carita, op. cit., I, pp. 363 - 364; Eduardo Pereira, op. cit., pp. 61- 63.
143
Rui Carita, op. cit., p. 364; Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 356. Jerónimo Dias Leite refere que acudiu ao convento o senhor
Teixeira de Machico, que ali tinha uma filha, o qual, com um arcabuz, disparou da torre da igreja do mosteiro, sobre os franceses, fazendo-os
debandar; porém, Gaspar Frutuoso e Noronha dizem ter sido Sebastião Mendes o autor da defesa (Noronha op. cit., p. 274; Rui Carita, op.
cit., I, p. 364, nota 967).
144
Fernando da Soledade, op. cit., pp. 355 - 366; Elucidário Madeirense, I, pp. 310 e 340; Ilhas de Zargo, II, pp. 815-816.
145
Fernando da Soledade, op. cit., pp. 355 - 366; Elucidário Madeirense, I, pp. 310 e 340.
141
65
seu esconderijo. Ao longo dos séculos, sempre as religiosas se lamentaram de tão grande
perda,146 sem conseguirem acreditar que tudo tinha sido levado pelos corsários.
Desta vez saíram bens abastecidos de tapeçarias, baixelas, sedas e brocados, cofres
cheios de dinheiro, objectos de ouro e prata. Do convento de São Francisco e do mosteiro de
Santa Clara, levaram valiosíssimos vasos sagrados de metal precioso e tudo o que
encontraram de valor. E foi tal a carga que, embora aumentada a frota com uma caravela e a
nau de São Tomé, que se encontravam no porto e das mais que puderam, tiveram de deitar ao
mar parte do saque “para poderem marear as velas”147. Quando chegou do Reino uma armada
de socorro, já os corsários haviam partido em direcção às Canárias, onde venderam uma parte
considerável da riqueza saqueada no Funchal148.
Foi tal o horror deste ataque que D. Sebastião se apressou a mandar fazer o projecto da
cerca do Funchal, com cinco portas para serventia da cidade, obras confiadas ao fortificador e
mestre das obras reais, Mateus Fernandes, e a construir o forte de São Lourenço, no lugar do
antigo forte manuelino.149 As obras decorreram com morosidade, pelo que a edificação da
fortaleza só foi concluída no período filipino. Foi residência dos capitães donatários e
governadores da Madeira, função que veio sobrepor-se à sua utilização defensiva,
generalizando-se a designação de palácio após a construção do andar nobre, no último quartel
do século XVIII150.
9. Obras de ampliação e restauro
A construção do mosteiro de Santa Clara obedeceu a três fases fundamentais. Porém, as
grandes obras de ampliação e restauro tiveram lugar no século XVII. A igreja e o edifício iam
aumentando à medida que o número das religiosas se tornava maior e as finanças da
comunidade o permitiam.
À capela de Nossa Senhora da Conceição, integrada no edifício, com uma sacristia de
tecto mudéjar151, hoje desaparecido, capela-mor de talha dourada, que recebeu os túmulos dos
capitães donatários, foi adicionada a nave da igreja e o seu remate no termo oposto, bem
como os coros de baixo e de cima, este com um belíssimo tecto mudéjar e ambos com o
pavimento atapetado de azulejos hispano-árabes (sevilhanos) de rara tonalidade verde e outros
de policromia diversa, com desenhos geométricos relevados, figurando estrelas lineares. Ao
fundo da igreja, na parede dos coros, sob um arco gótico, encontra-se incrustado o túmulo de
Martins Mendes de Vasconcelos, que era casado com D. Helena Gonçalves da Câmara, filha
de João Gonçalves Zarco. É um maravilhoso e imponente arco de cantaria, lavrado em gótico
flamejante, de delicada execução, onde não falta uma belíssima decoração de elementos
fitomórficos.152 Na base, a sustentar o referido jazigo, encontram-se três leões jazentes153.
146
Ilhas de Zargo, II, p. 816.
Ilhas de Zargo, II, p. 640.
148
José Manuel Azevedo e Silva, A Madeira e a Construção do Mundo Atlântico. (Séculos XV - XVII), II, Funchal, 1995, pp. 834.
149
José Manuel Azevedo e Silva, op. cit., II, pp. 835 - 836.
150
Em 1836, a separação dos poderes civil e militar determinou a divisão da Fortaleza - Palácio entre o Governador Militar (área leste, hoje
afecta ao Comando da Zona Militar da Madeira) e a residência do Governador Civil (área oeste, compreendendo as salas nobres que
constituem propriamente o palácio, gabinetes e zona privada), sendo, desde 1976, a residência oficial do Ministro da República para a Região
Autónoma da Madeira. O palácio de São Lourenço, classificado como Monumento Nacional em 1940 (Decreto 30 762 de 26 de Setembro
de 1940, Diário do Governo, nº 225, I série, do mesmo dia, mês e ano) e reclassificado em 1943 (Decreto 32 973 de 18 de Agosto de 1943,
Diário do Governo, nº 175, I série do mesmo dia, mês e ano; Ilhas de Zargo, II, p. 691), foi aberto ao público em 1995.
151
Segundo Oliveira Marques, o estilo mudéjar não se mostrou tão original como o gótico, pois, apesar das nítidas características
essencialmente islâmicas, aparece numa época em que a presença islâmica na Espanha já não se faz sentir. Surge nas formas decorativas,
motivos geométricos, revestimentos de azulejo, nos tectos chamados de alfarge, de madeira trabalhada, todos enquadrados numa estrutura
gótica ou gótico-islâmica. O mudéjar teve enorme importância na arquitectura civil, mais do que em edifícios religiosos (Oliveira Marques,
História de Portugal, I, Lisboa,1985, pp. 347-349).
152
Noronha, op. cit., p. 264; António Aragão, op. cit., pp. 113 - 115.
153
António Aragão, op. cit., pp. 114.
147
66
Penetra-se nesta magnífica igreja por um portal gótico de mármore branco continental,
com várias arquivoltas que repousam sobre columelos lisos, rematados por simples capitéis
onde se encontram folhagens e, em dois deles, uma cabeça humana154. Segundo Rui Carita,
este portal deve datar dos fins do século XV ou princípios do XVI, mantendo ainda nas portas
de madeira uma decoração de inspiração mudéjar típica dessa época155.
No século XVII, para satisfazer as necessidades da comunidade, que havia aumentado, e
da população do Funchal, que acorria às liturgias conventuais e ainda porque os corsários, no
saque de 1566, haviam feito nela consideráveis estragos, a igreja sofreu notáveis
modificações. De uma só nave, com as paredes revestidas de azulejo de deslumbrante
policromia azul, amarelo e branco, formando enormes tapetes parietais, como padrão na Ilha
da Madeira, e belíssimo tecto recamado de pintura, a igreja de Santa Clara, ganhou majestade.
Ficou com aquela extraordinária beleza, digna do culto sagrado. Nela podemos ver cinco
altares em talha dourada belíssimos, cujas invocações são de Santa Clara, com uma pintura
que faz alusão à refeição que o Papa tomou com a Santa e suas religiosas, dos Reis Magos,
Santa Ana, Nossa Senhora da Piedade e Santa Quitéria156. Na talha, trabalhou o imaginário
Manuel Pereira.
Neste mesmo século, a partir de 1667, houve melhoramentos nos coros, lugares
destinados às religiosas, cujas paredes foram revestidas de azulejo azul e branco. A decorá-las
e a dar ao espaço tonalidade religiosa, encontram-se, ainda hoje, belas pinturas formando
quadros envolvidos por molduras em talha dourada e azulejos artísticos, também em azul e
branco157.
O coro de baixo é grande, nobre e com cadeirais dispostos a todo o comprimento das
paredes laterais, num total de cinquenta, mandados fazer em 1736, por D. Maria Helena da
Vitória, então vigária do mosteiro. Era ali que a comunidade rezava e participava nos ofícios
divinos. Em frente da porta e encostada à parede, vê-se uma vitrina com a imagem do Senhor
dos Passos, oferta testamentária de Roque José Araújo Viana, em 1787158.
O coro alto era o lugar onde se assistia à música que “nesta casa”, diz Noronha, “se
conservou sempre com particulares vozes e ciência”159. Neste coro, encontra-se uma imagem
de Nossa Senhora de um metro de altura, rodeada de anjos, obra típica e formosa de escultura
do século XVI. Parece remontar aos primórdios da igreja da Conceição de Cima.
De finais do século XVI ou princípios do XVII, é a torre sineira, de forma quadrangular
e encimada por uma cúpula oitavada com pináculo recoberta por azulejos da época160.
O sacrário, feito com a prata de algumas religiosas, reunida em 1666161, é obra dos
ourives António Soares, António Neto e António Araújo. Foram doadoras de objectos de
prata e de dinheiro as Madres:
- Margarida, filha de Gaspar Berenguer e sua mulher D. Isabel de França162,
- D. Catarina Santana, filha do provedor Pedro de Sousa Correia,
- D. Francisca de Santa Clara, filha de Diogo de Bettencout,
- D. Isabel dos Mártires, filha de Pedro Teive,
154
António Aragão, op. cit., pp. 113-115; Ângela Maria de Freitas Alves, Abel Gomes Fernandes, Julieta Maria R. do Vale Fernandes e Irene
Rodrigues, Quinta das Cruzes “Museu”, Funchal, 1983, p. 142.
155
Rui Carita, op. cit., I, p. 115.
156
ANTT, Arquivo. Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso; Noronha, op. cit., p 264.
157
ANTT, Arquivo. Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 39.
158
No testamento que Roque José Araújo Viana fez em 24 de Agosto de 1787 lê-se: “Também sou senhor de uma imagem dos Santos Passos
(...), por falecimento de minha mulher, a deixo às religiosas do mosteiro de Santa Clara desta cidade, para colocarem onde melhor veneração
possa ter (...) e havendo quem lha peça emprestada para com ela fazerem alguma procissão pública de preces particulares por falta de água,
esterilidade, terremotos (...) a poderão emprestar, devendo recolher ao real mosteiro depois de completada tal função (AHDF, Conv. S. Clara
F., caixa 27, capilha 1, doc. avuso).
159
Noronha, op cit., p. 264.
160
Ângela Maria de Freitas Alves, Abel Gomes Fernandes, Julieta Maria R. do Vale Fernandes e Irene Rodrigues, op. cit., p. 143.
161
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 29.
162
O casal Berenguer virá a ser o fundador do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, em 1667.
67
- D. Maria da Apresentação, filha de Gaspar Pimentel.
Entre os vários objectos de prata destinados a serem fundidos e utilizados na obra de
ourivesaria deste sacrário, aparecem colheres, púcaros, garfos, salvas, uma garrafa e outros163,
que dizem bastante sobre os hábitos sumptuários da nobreza insular, a vida de luxo e
opulência que se patenteava não só nos solares dos nobres, como também nos conventos de
religiosas. O total teria importado em 745.215 reis. Este sacrário é algo semelhante ao da Sé
do Funchal e da igreja de São Pedro. Dividido em três peças sobrepostas, maravilhosamente
trabalhadas, aparecia habitualmente incompleto por motivo de exposição do Santíssimo
Sacramento, pois a custódia só nas grandes solenidades ocupava o camarim164.
10. Património artístico do mosteiro
No claustro do mosteiro de Santa Clara encontravam-se dezasseis capelas e oratórios de
freiras fidalgas. Estas capelas, verdadeira regalia de nobres, foram admiráveis santuários
artísticos. Gostavam estas religiosas de ter os seus oratórios privados, edificados à sua custa,
onde satisfaziam as suas devoções e em cuja decoração primavam. Eram das seguintes
invocações:
- Ressurreição, que se encontra cuidadosamente restaurada;
- Encarnação, com uma pintura da Anunciação;
- Bom Jesus;
10. Altar-mor da igreja do mosteiro de Santa Clara. Rico em talha dourada, tem ao centro o
artístico sacrário de prata, obra da segunda metade do século XVII, feito com jóias e objectos
de prata de algumas das suas religiosas. Fotografia do Rui Camacho, DRAC.
163
Santíssimo Sacramento (ainda existente, mas em estado degradado);
Ascensão, com um belíssimo painel da subida de Jesus ao Céu;
Porciúncula, de inspiração franciscana;
Assunção;
Senhora da Conceição, com um tríptico da Imaculada Conceição;
Desterro;
Rosário, com o retábulo da Árvore de Jessé, atribuído a Martim Conrado165;
São João, onde havia uma valiosa tábua pintada, representando o nascimento de São
João Baptista;
São José, com uma belíssima pintura do Santo e Jesus adolescente;
Santa Clara de Assis;
São Francisco de Assis;
Santo António, com dois painéis do século XVII, reproduzindo os seus milagres;
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 23.
Ilhas de Zargo, II, p. 813.
165
O pintor Martim Conrado foi um artista do século XVII, ainda integrado na geração protobarroca de inspiração sevilhana. Apareceu
activo na Ilha da Madeira logo a seguir à Restauração portuguesa, entre 1640-1654, trabalhando amiúde e com crescente aceitação para
entidades religiosas e nobres da Ilha, especialmente para os Berenguer. São-lhe atribuídos, além dos painéis aqui referidos: o de Nossa
Senhora das Mercês, na capela do mosteiro do mesmo nome; a Imaculada Conceição, com dois doadores da igreja Matriz do Caniço (1646);
São Miguel e Almas do Purgatório da igreja Matriz da Ribeira Brava; Nossa Senhora da Boa Hora, da capela da Boa Hora, na Torre (Câmara
de Lobos); a Ascensão de Cristo e Árvore de Jessé do mosteiro de Santa Clara do Funchal: o Martírio das Onze mil Virgens (1653), a obra de
maior requinte compositivo e de melhor correcção plástica, e outras mais. (Vítor Serrão “Martim Conrado in Dicionário de Arte Barroca em
Portugal, Lisboa, 1989, p.131.
164
68
- São Gonçalo, com um retábulo de Martim Conrado, onde o Cristo da Ascensão
adquire graça italianizante.
Esmerava-se cada fundadora em adornar a gosto próprio o seu santuário privativo,
enriquecendo-o o mais possível de elementos arquitectónicos, picturais e escultóricos166.
A Ilha foi, nos séculos XVI e XVII, inundada de obras de arte flamenga, encomendadas
inicialmente por Lisboa e, a partir de 1472, directamente pela Madeira. Sabe-se que a
cobiçada iguaria de luxo, o açúcar, era trocada pelo que de melhor a Flandres tinha para
oferecer - as boas esculturas, pintura e ourivesaria. De lá vinham não só as obras de arte
valiosas mas também pintores, escultores e entalhadores que, provavelmente na Madeira,
conceberam obras de raro valor, algumas das quais se conservam no museu de Arte Sacra do
Funchal.
Os painéis flamengos, de apreciável valor artístico, distinguem-se pelas suas grandes
dimensões, pouco comuns nos museus da Europa. Nesta pintura, alia-se a emocionante
espiritualidade das figuras e o vigor do modelado das vestes com a harmonia da cor. Em seu
equilíbrio de atitudes e gestos, não lhe falta a minúcia e o requinte do pormenor; envolvidas
por íntima atmosfera religiosa, estão integradas na paisagem, onde é destacável a observação
realista do mundo e a ciência da perspctiva.
O mosteiro de Santa Clara deve ter possuído muitas e valiosas pinturas flamengas e
luso-flamengas. Porém, as mais valiosas não escaparam à pilhagem dos corsários franceses de
1566167.
11. Cristo no túmulo. Pintura a óleo sobre madeira ( 210 x
122cm ), de escola portuguesa. Remonta ao segundo quartel do
século XVI. Esta bela pintura encontrava-se na capela da
Ressurreição do mosteiro da Santa Clara. Hoje podemos vê-la
no Museu de Arte Sacra do Funchal. Fotografia do Museu de
Arte Sacra.
Da Escola Portuguesa, provenientes deste mosteiro, possui o Museu de Arte Sacra
alguns exemplares do século XVI, de pintura a óleo sobre madeira: Aparição de Cristo a
Santa Madalena, Aparição de Cristo à Virgem, Cristo no Túmulo e Descida da Cruz, volantes
de um tríptico e ainda o Nascimento de São João Baptista, em madeira de carvalho, A Virgem
e Cristo.
São dignos de menção os painéis de Santo António: o painel central, do início do século
XVI, e dois painéis laterais, do século XVII, reproduzindo os milagres do Santo: sermão aos
peixes, milagre da mula e outros. Estes painéis localizavam-se na capela de Santo António no
claustro do mosteiro.
12. Cristo. Pintura a óleo sobre madeira ( 60x41 ), de escola
portuguesa, do primeiro quartel do séc. XVI. Esta bela pintura de
Cristo pertenceu ao mosteiro de Santa Clara. Podemos vê-la no
Museu de Arte Sacra do Funchal. Fotografia de Rui Camacho,
DRAC.
166
Ilhas de Zargo, II, p. 714-715; Noronha, op. cit., p. 264.
Maria de Lourdes Ferraz, A Ilha da Madeira sob o domínio da casa senhorial do Infante D. Henrique e seus descendentes, Funchal, 1986,
p.72.
167
69
11. O mosteiro de Santa Clara, reflexo de uma época
Na primeira metade do séc. XIII, em que nasce a Ordem de Santa Clara, os mosteiros
então existentes, como se referiu na primeira parte deste trabalho, eram diferentes dos de
Santa Clara, particularmente no que respeita à pobreza e fraternidade. Clara de Assis,
seguidora de Cristo em estilo novo, querendo evitar que a sua Ordem fosse atingida pelos
mesmos males, ao redigir a sua Regra, definiu um conjunto de critérios de natureza
carismática. Assim:
- Para a admissão das candidatas, a abadessa devia pedir “o consentimento de todas as
irmãs e a licença do Cardeal Protector da Ordem”168, e somente admitir as que se
sentissem chamadas “por inspiração divina”169;
- A abadessa em tudo devia observar “a vida comum, de maneira especial na igreja, no
dormitório, no refeitório e na forma de vestir”170;
- As irmãs não poderiam “receber algum domínio ou propriedade, ou alguma coisa que
possa ser considerada como tal”171;
- Ninguém poderia morar com as religiosas no mosteiro, “sem que antes tenha sido
recebida segundo a forma da nossa profissão”172.
E, para que os mosteiros da sua Ordem pudessem viver sem propriedades e respectivas
rendas, prescreveu o trabalho como meio de subsistência: “As irmãs a quem o Senhor deu a
graça de trabalhar, ocupem-se (...) num trabalho honesto e de comum utilidade”173.
Clara de Assis, com seu olhar de águia, via alto, via longe. Na Regra, deixava os
antídotos contra males futuros que, infelizmente, vieram a atingir muitos mosteiros da sua
Ordem, entre os quais o de Santa Clara e o de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal, que
tão marcados foram por ideologias e erros sociais da época.
Ao longo dos séculos, reis e padroeiros e até mesmo a legislação eclesiástica, oscilando
entre imperativos ideológicos e contextos sociais estruturados, foram dando aos mosteiros
uma coloração diferente daquela que lhes fora imprimida pelos fundadores das respectivas
Ordens, isto é, subtraindo-os ao carisma próprio. Não era fácil, no século XII e seguintes,
compreender-se que um mosteiro pudesse viver a pobreza evangélica e pudesse abstrair de
rendas e possessões para viver do próprio trabalho e do contributo dos fieis. Na Ordem de
Santa Clara, logo após a morte da fundadora, surgiram divergências sobre a maneira de
entender a pobreza. Talvez por isso, em 1263, dez anos apenas depois da morte da intrépida
discípula de Francisco de Assis, já a Regra de Urbano IV traçava um rumo anticarismático
para as Irmãs Clarissas, pois lhes permitia “receber, possuir e reter em comum rendas e
possessões”174. O mosteiro de Santa Clara do Funchal assumiu esta Regra, como a maioria
dos mosteiros do tempo.
Na Idade Média e nos séculos seguintes, a mulher não podia decidir livremente o seu
futuro. A Europa, vivendo encerrada em esquemas próprios, subordinava aos seus interesses
de ordem social e política, o futuro das donzelas. Na Madeira sentiu-se fortemente esta
problemática. Nem sempre às jovens nobres da Ilha assistiu o direito de decidirem por si
próprias o seu futuro. Condicionalismos da época, sociais e mesmo políticos, determinaram
tantas vezes a sua entrada na clausura!... Os costumes medievais e a prepotência de fidalgos, a
168
RCL, II, 1, in FF II, p. 45.
RCL, II, 1, in FF II, p. 45.
170
RCL, IV, 13, in FF II, p. 50.
171
RCL, VI, 12, in FF II, p. 54.
172
RCL, II, 24, in FF II, p. 47.
173
RCL, VII, 1 e 2, in FF II, p. 54.
174
RU 4, XXI, 34, in FF II, p. 362.
169
70
conservação dos morgadios, concentrando nas mãos dos primogénitos o património familiar
em detrimento dos filhos segundos, que normalmente não eram contemplados175, a
necessidade de um devoto amparo e resguardo das filhas que não casavam, foram tantas vezes
razões que levaram pais e irmãos a encerrarem no mosteiro de Santa Clara as suas jovens.
Mesmo quando não podiam professar, ficavam como “freiras particulares” ou simplesmente
como “senhoras recolhidas,” com suas criadas e até escravas e escravos. D. Constança de
Noronha, filha do capitão fundador, é a primeira recolhida “não freira”. Ali a meteu seu pai,
João Gonçalves da Câmara, onde ficou toda a vida, se bem que santamente, “não querendo ser
freira professa porque sempre era enferma”176. Também Maria Fernandes, filha de Gonçalo
Fernandes da Serra de Água e de Isabel Fernandes, entrou para o mosteiro em 1543, onde,
embora não professasse por ser doente psíquica, “foi recebida com licença do Santo Padre”177.
Os casos multiplicaram-se.
Outras entravam ainda meninas, sem qualquer sintoma de vocação. Em 1807, Paulo
Malheiro de Mello, grande negociante da Ilha, viúvo há dez anos, pôs as suas filhas de dez e
onze anos no mosteiro para ali se “criarem para freiras”178. E, ao longo de cinco séculos, estes
casos aconteceram muitas vezes.
É evidente que não foi só o fervor religioso que levou as candidatas ao mosteiro, mas o
imperativo social, tantas vezes injusto e cruel. Que admira, pois, que, como diz o Elucidário
Madeirense, “o primitivo fervor na observância das regras conventuais e antiga austeridade da
vida das freiras deste mosteiro, fosse pouco a pouco resfriando”179? Não temos que admirarnos de que algumas delas, lesadas nos seus direitos familiares e postas no mosteiro sem
vocação, ali passassem a juventude e a vida “no meio de desesperos, anseios e lágrimas”180.
Nem sequer que procurassem compensações na construção de capelas da sua devoção, onde
punham requintes de luxo; que se cercassem de criadas e procurassem no bem-estar e nas
amizades frívolas a felicidade que o trato com Deus, que não tinham ou era nelas superficial,
lhes não dava.
Diante da complexidade do ambiente interno e os reflexos sociais que no mosteiro se
sentiam fortemente, não era fácil a santidade. Porém, podemos afirmar que, mesmo num
condicionalismo nada favorável, o perfume da virtude se fez sentir, santidade tanto mais
apreciável, quanto, para a viver, era necessário esforço e fidelidade aos mais íntimos apelos de
Deus. Ao lado de pessoas leigas e de vidas pouco fervorosas, porque sem vocação, muitas
almas verdadeiramente santas cresceram no mosteiro de Santa Clara, glorificando o Senhor e
espalhando em seu redor a beleza da virtude e da santidade!..
175
Normalmente os filhos segundos, em virtude da intensificação dos morgadios, ou caíam no abandono ou tomavam a iniciativa de emigrar
para a Índia ou o Brasil, procurando fora da Ilha o seu futuro. Foram os morgadios, vínculo indivisível e inalienável, que se transmitiam de
primogénito a primogénito, mas em linha recta varonil, os responsáveis por essa emigração, de certo modo forçada. A eles se deve também a
entrada de muitas jovens no mosteiro de Santa Clara, sem vocação.
176
Elucidário Madeirense, I, p. 310.
177
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa. 27, doc. avulso.
178
AHU, Madeira doc. 1783.
179
Elucidário Madeirense, I, p. 310.
180
Ilhas de Zargo, II, p. 717.
71
CAPÍTULO II
VIDA INTERNA - COMUNIDADE E GOVERNO,
1. A comunidade
1.1. As candidatas
No século XV, época em que o mosteiro de Santa Clara nasceu, ao lado de candidatas à vida
religiosa sem vocação, feitas freiras por imperativos dos familiares, muitas foram as jovens e senhoras
que, desejando consagrar-se a Deus, deixaram as pompas do mundo, a que estavam vinculadas, para se
entregarem no mosteiro à prática das virtudes cristãs, à oração, à vivência dos mistérios de Cristo.
Por uma e por outra razão, o mosteiro de Santa Clara do Funchal era procurado pela nobreza
mais distinta da Ilha, mostrando-se geralmente pouco disponível à recepção de candidatas de famílias
economicamente débeis.
Antes da entrada de qualquer candidata, os familiares deviam não só assegurar o dote
estipulado, como também munir-se de um breve pontifício que habitualmente precisava do beneplácito
régio e sempre do consentimento do Ministro Provincial dos Frades Menores. Esta atribuição, após a
criação da Custódia de São Tiago Menor na Ilha da Madeira, em 5 de Julho de 1683, passou para o
respectivo Custódio Provincial181.
A idade mínima da entrada em Santa Clara, e isto como educandas e mediante breves
pontifícios, era de sete anos. Gaspar Berenguer de Andrade que, com sua mulher D. Isabel de França,
foram os fundadores do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês em 1667, fez em 21 de Junho de 1648,
com Frei António da Porciúncula, um contrato de entrada da sua filha D. Margarida de Andrade, no
mosteiro de Santa Clara, “dizendo que era maior de sete anos e menor de catorze para entrar no dito
convento educationis causa, para nele se criarem nos usos e costumes”182. D. Margarida veio a
professar com o nome de Maria de São. Filipe.
Porém, casos houve em que entravam com menos. Em 1825, Gregório Francisco Perestrelo
obteve de Sua Majestade, D. João VI, licença para uma sua filha de cinco anos entrar em Santa Clara
como educanda, ficando sob a direcção de uma sua irmã que ali era religiosa183.
De certo modo, na Ilha da Madeira, não havia nobre, que se prezasse do seu brasão e
pergaminhos, que não mandasse, pelo menos uma das suas filhas, a professar no aristocrático mosteiro
de Santa Clara.
1.2. A profissão religiosa
O noviciado durava um ano, findo o qual, se a candidata fosse admitida, fazia a sua
profissão. A cerimónia tinha lugar no coro baixo, junto à grade, na presença do bispo ou de
um seu delegado, do escrivão da Câmara Eclesiástica e de duas testemunhas, normalmente o
capelão e o confessor, dos familiares e amigos. A neoprofessa prometia então viver sob a
Regra de Urbano IV durante toda a vida, em obediência, sem próprio, em castidade e em
181
Fr Carlos Maria Perusini, Chronologiae Historico-Legalis Seraphici Ordinis, III (1633-1718), Roma, 1752, fol. 230-231. Fr. Domingos
de Gubernatis a Sospitello, Orbis Seraphicus-Historia de tribus Ordinibus a Seraphico Patriarcha S. Francisco institutis, deque eorum
progressibus,& honoribus per quatuor mundi partes, IV, Roma, 1685, De nova Custodia Insule & lignorum, sive de Madeira, fol. 310-314.
A Custódia Franciscana da Madeira foi criada a 5 de Julho de 1683, por patente do Geral da Ordem, Frei Pedro Marino Sormano, e
confirmada pela bula Nuper pro parte do Papa Inocêncio X, de 30 de Julho do mesmo ano. Ficando os conventos franciscanos da Madeira
desligados da Província de Portugal, eram os custódios de São Tiago Menor que assistiam às eleições das abadessas do mosteiro de Santa
Clara.
182
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 9, fol, 416v.
183
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso.
72
clausura perpétua184. Usaria o burel cinzento de Santa Clara, véu preto e à cintura um cordão
branco, símbolo franciscano. O hábito devia estar de acordo com o espírito religioso, tanto na
cor como no preço, segundo o costume das regiões. Devia levar vida de oração, rezar o ofício
divino, viver recolhida185 - daí a necessidade do silêncio e da clausura -, empenhar-se na vida
da comunidade, crescer na prática de todas as virtudes humano-cristãs e viver em profunda
união com Cristo e a humanidade necessitada de auxílio espiritual.
Antes da profissão da candidata devia ser-lhe assegurado um dote que, além de um certo
quantitativo em dinheiro, que foi aumentando ao longo dos tempos, correspondia à
transferência de propriedades para o mosteiro, garantia da sua existência material.
Inicialmente o dote de cada candidata a religiosa professa era de 200.000 réis, mas em 1703
passou para 600.000. Frei António do Sacramento, Custódio da Madeira, em patente de 13 de
Novembro daquele ano, justificava esta decisão pelo “limitado rendimento que o dito
mosteiro tinha para gastos de tantas religiosas que nele serviam e pelo grande número de
pessoas que, além delas, havia no mosteiro” 186. Posteriormente, porque a dificuldades
económicas se agravaram, o dote passou para 800.000 réis, além de outras despesas, atingindo
aproximadamente um conto de réis, não sendo fácil às pessoas pouco abonadas em meios de
fortuna fazer parte desta comunidade religiosa187.
A Regra de Urbano IV, simultaneamente ampla e minuciosa, permitia a posse de bens
de raiz. O património conventual, sempre em crescimento, mas sofrendo as variações da vida
económica e do contexto social, tão oscilante desde o séc. XV até ao séc. XIX, não deixava
espaço à pobreza evangélica pela qual optara Santa Clara de Assis.
A comunidade do mosteiro tornou-se uma elite constituída a partir da mais fina nobreza
insular. Entre 1602 e 1677, por exemplo, professaram cento e setenta e três freiras, em grande
parte filhas de pais da melhor nobreza: dos Bettencourt, Ornelas, Berenguer, Machado de
Miranda, Atouguias, Carvalho e Esmeraldo, Valdavessos, do governador e capitão do
Presídio, António Moura, e de outros fidalgos da Ilha188.
De 1742 a 1800 professaram oitenta e uma noviças e entre 1800 e 1831 as profissões
chegaram a cinquenta e cinco. A última noviça foi Genoveva Carlota do Monte que professou
a 22 de Novembro de 1831189.
Em suma, até meados do séc. XVIII, o número de religiosas professas atingiu a sua
expressão máxima, começando, contudo, a decrescer gradualmente a partir de 1770.
2. O governo do mosteiro
2. 1. Eleições - corresponsabilidade fraterna
A comunidade era governada por uma abadessa assistida por um grupo de conselheiras
ou discretas190.
De acordo com os Estatutos, a abadessa era eleita por três anos, não podendo ser reeleita
para um triénio consecutivo. Porque o mosteiro de Santa Clara, em função da bula Ex injuncto
nobis do papa Alexandre VI, dependia juridicamente da Ordem dos Frades Menores, era
habitualmente o Ministro Provincial ou um seu delegado que presidia ao acto eleitoral. A
184
RU 4, III, 9, in FF II, pp. 348 - 349.
RU 4, IV, 10, in FF II, pp. 349 - 351.
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 18, fol. 103.
187
Elucidário Madeirense, I, p. 310; Rui Carita, op. cit., I, p. 308.
188
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, maço 6, doc. 23.
189
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 28, Livros de Autos e Perguntas, feito no segundo triénio da madre abadessa D.
Coleta Rosa de Santo Agostinho, sendo escrivã Margarida Jacinta de Santa Rosa, ano de 1742.
190
RU 4, XXII, 35 e 39, in FF II, pp. 362, 364, respectivamente.
185
186
73
partir de 1683, com o estabelecimento da Custódia de SãoTiago Menor na Ilha da Madeira, o
mosteiro ficou sujeito a ela. Foi, pois, o seu Custódio que passou a orientar e a presidir aos
capítulos electivos191.
A abadessa era auxiliada no exercício das suas funções pelo corpo das discretas ou
conselheiras, o discretório; o número de membros que o formavam dependia da totalidade das
religiosas que constituíam a comunidade, tendo oscilado normalmente entre três e oito. Eram
removíveis de três em três anos.
Sob a presidência da nova abadessa procedia-se à eleição dos diversos cargos ou
ofícios: vigária da casa, escrivã, porteiras, assistentes do médico, vigária do coro, mestra de
noviças, sacristã, enfermeira, rodeiras e outros. Estas eleições eram depois apresentadas à
confirmação do Custódio Provincial.
Um dos mais importantes deveres da abadessa era a convocação semanal do capítulo
conventual, constituído pelas religiosas professas, onde fraternalmente deviam ser tratados os
assuntos relativos à vida da comunidade192. Trata-se, pois, dum governo em
corresponsabilidade fraterna que não só admitia a consulta às Irmãs mas até associava ao
governo da abadessa um certo número de conselheiras. A abadessa devia, de três em três
meses, dar conta dos gastos e receitas ao capítulo conventual.
A última eleição efectuou-se a 28 de Março de 1883, havendo apenas quatro religiosas
no mosteiro em condições de votar. Foi eleita pela segunda vez sucessiva, contra o habitual, a
Madre Maria Amália do Patrocínio que morreu a 15 de Novembro de 1890193, tomando então
as autoridades posse do edifício.
2.2. A administração do mosteiro
Segundo a Regra de Urbano IV, para proceder à administração do mosteiro haveria um
procurador ou síndico, que devia dar contas de todas as receitas à abadessa e mais três Irmãs
nomeadas para o efeito pela comunidade e ao visitador sempre que este o desejasse194. O
procurador, nomeado ou substituído pela abadessa, devia ser prudente e fiel. Não podia
vender, trocar, hipotecar ou alienar qualquer bem do mosteiro, sem prévio consentimento da
abadessa e da comunidade.195 No mosteiro de Santa Clara os primeiros procuradores foram
sempre recrutados de entre a nobreza. Contudo, diante de dificuldades e problemas, que tantas
vezes o prejudicaram, dado que nem sempre procediam com honestidade, as religiosas
fizeram opção por um membro da Primeira Ordem Franciscana, de quem esperavam uma
colaboração conscienciosa e fraterna.
Em 1526, a Madre Isabel de Jesus de Noronha, filha do fundador e primeira abadessa do
mosteiro, cargo que ocupou por vários triénios, embora não consecutivos, chamou a si e a
suas sucessoras, a administração do mosteiro.
No início de cada triénio, a nova abadessa recebia do Custódio dos Frades Menores um
livro em cuja primeira folha estava escrito: “Livro de lançamento dos Rendimentos dos foros,
juros, aluguéis de casas, propriedades, pão, vinho e mais miudezas que pertencem a este real
mosteiro de Santa Clara da Ilha da Madeira, toda a despesa feita com as religiosas e mais
pensões da comunidade nos três anos em que serviu a abadessa (... ) eleita a (...), sendo
escrivã do convento (...)”196.
191
ANTT, Conv. S. Clara F., Livro de Eleições das Abadessas e mais oficiais deste Mosteiro de Santa Clara (...), ano de 1733 e ss; Fernando
da Soledade, op cit., III, p. 351; Apolinário da Conceição, op.cit., p. 146.
192
RU 4, in XXII, 37, FF II, p. 363.
193
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso.
194
RU 4, XXI, 34, in FF II, p. 362.
195
RU 4, XXI, 34, in FF II, p. 362.
196
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S .Clara F., L 66, fol. 5.
74
Naquele livro lançava a escrivã todos os rendimentos e despesas de que a abadessa
devia dar conhecimento à comunidade em reunião capitular, de três em três meses, como
acima ficou dito. No fim do triénio, o livro, depois de assinado pela abadessa, vigária,
conselheiras e escrivã, era enviado ao Custódio Provincial para aprovação.
Entremos em alguns casos:
No livro 37, correspondente ao triénio da Madre Francisca de São Diogo, que principiou
em 19 de Janeiro de 1724, averbou-se logo na primeira folha o valor das propinas dadas pela
Madre, no dia da eleição, às cento e sessenta e quatro religiosas que constituíam a
comunidade. Nas folhas 110-111, pode ler-se a aprovação do Custódio Provincial com um
louvor à escrivã e à abadessa: “Vi e revi estas contas de Receitas e Despesas do mosteiro de
Santa Clara (...) sendo abadessa a R. M. Francisca de São Diogo e escrivã a Madre Antónia
Rosa de Viterbo e nelas não encontrei erro algum, antes achei nelas muita clareza, boa
disposição e as verbas muito ajustadas e portanto as aprovo”197.
No final do triénio da Madre Rosa Maria do Céu, que decorreu de 19 de Janeiro de 1727
a Janeiro de 1730, o livro de contas foi enviado ao P. Manuel de São Dâmaso, comissário
visitador, o qual, depois de examinadas as contas ali lançadas pela escrivã, a Madre Joana
Teresa da Glória, antes da sua assinatura, deixou algumas observações referentes à pouco
clareza quanto ao consumo, produção e venda de algumas pipas de vinho198. A assinatura é de
12 de Setembro de 1732, cerca de ano e meio mais tarde. Teria obedecido este atraso a razões
que não conseguimos detectar.
O livro 66 para o governo da Madre D. Inácia Maria da Conceição, eleita a 14 de
Setembro de 1808, sendo escrivã do mosteiro a Madre Carlota Matilde da Conceição199,
apresenta no final do triénio a receita de 36.329.315 réis e a despesa de 28.480.470 réis.
“Como” diz a escrivã, “a receita é maior do que a despesa em 7.848.845 réis,” puderam
gastar-se em vestuário das religiosas 5.664.810 réis, ficando como “sobras líquidas”
2.184.035 réis200. A 18 de Abril de 1812 assinaram o livro a abadessa, sete discretas e a
escrivã201 e, a 15 de Maio do mesmo ano, as contas receberam a aprovação de Frei Januário
das Chagas, Custódio Provincial.
Em 1829, um novo livro recebeu o mosteiro para o triénio da Madre D. Ana Ifigénia da
Santa Rita, que começou a 29 de Janeiro desse ano. A escrivã Bibiana Narcisa do Lado, no
final daquele triénio, 1829-1832, apontou como receita 9.497.695 réis e como despesa
8.854.879 réis, ficando o saldo de 620.816 réis, que gastaram em calçado para as cinquenta ta
e uma religiosas, em pagamentos de dívidas e provimentos202. Só em 29 de Junho de 1833,
ano e meio mais tarde, foram aprovadas por Frei Joaquim do Cenáculo, Custódio
Provincial203.
O mosteiro desde há muito entrara em crise económica, verificando-se saldos negativos
muito significativos na década de 70 do século XVIII. Retomaremos este assunto no capítulo
VII, onde trataremos da decadência.
3. Alguns dados estatísticos sobre a evolução da comunidade
O número de religiosas professas em qualquer mosteiro não era arbitrário; impunha-se o
necessário equilíbrio entre os recursos do mosteiro e o número de pessoas que lá habitavam.
197
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 37, fol. 1 - 2 e 110 - 111.
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 38, fol. 58 e 58 v.
199
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 66, fol. 5.
200
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 66, fol. 45 e 46.
201
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 66, fol. 46.
202
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 68, fol. 52.
203
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 68, fol. 52.
198
75
Era preciso um controlo perfeito.
A comunidade era constituída por religiosas professas e noviças, como candidatas à
vida religiosa. Havia ainda as pupilas, meninas que no mosteiro “se criavam para freiras”,
religiosas particulares, que não professavam, e as irmãs servidoras ou irmãs leigas, ligadas ao
mosteiro por um compromisso religioso e ainda as educandas, por ordem régia. As irmãs
servidoras, além dos trabalhos que desempenhavam na comunidade, faziam também o serviço
de fora sempre que lhes era solicitado pela abadessa.
Para o mosteiro de Santa Clara do Funchal, o número de religiosas professas
“consignado pela Província Franciscana não excedia o de 60”, tendo, no entanto, “capacidade
para cento e doze”204. Em 1720, o visitador franciscano da Custódia de São Tiago Menor, da
Ilha da Madeira, por patente de 30 de Junho daquele ano, em cumprimento do que decidira o
Ministro Geral com o seu Definitório, determinou que o número inicialmente estabelecido
passasse para cem, podendo ainda haver extranumerárias205.
Poucos anos após a fundação do mosteiro, já o número de religiosas professas e
“meninas educandas que ali se criavam para freiras” era considerável. Em 1590 ou talvez
mais cedo, estava atingido o númerus clausus com que o mosteiro havia sido fundado –
sessenta religiosas de véu preto, quer dizer, professas. A partir dessa data foram sempre em
aumento. A comunidade até meados do século XVIII não parou de crescer. Neste século
atingiu o seu máximo com cento e setenta religiosas em 1722, fenómeno que, em geral, era
comum a todos os mosteiros do reino nessa mesma data.
Em 1764, foram proibidas as admissões ao noviciado. Com esta medida, o Marquês de
Pombal pretendia o desaparecimento dos mosteiros e conventos por morte lenta. Como
consequência, a partir desta data, mais exactamente a partir de 1770, o número de religiosas
começou a descer gradualme e assistiu-se ao envelhecimento da comunidade
Em 1781, a Madre Ana Quitéria de São João, abadessa do mosteiro de Santa Clara,
dirigiu-se à rainha D. Maria I, dizendo: “há dezoito para dezanove anos se não têm admitido
religiosas no convento e, no decurso deste tempo, tem falecido grande parte (...) e as que
existem são de idade tão avultada que a religião padece grande detrimento por não haver
quem supra as obrigações da comunidade e ofícios divinos”206. Para análise correcta da
situação, foi enviada uma lista nominal das religiosas que então viviam no mosteiro: sessenta
e três professas numerárias207 e vinte e nove extranumerárias208, das quais trinta e cinco
tinham mais de sessenta anos. As mais novas, Ana Inácia de Santo Agostinho e Inácia Maria
da Conceição tinham trinta e quatro anos e as mais velhas, Mariana do Sacramento e
Francisca do Amor Divino, oitenta e nove209. Sendo poucas para o serviço do coro e demais
necessidades da comunidade, solicitava a abadessa a entrada de oito candidatas, com as quais
ficaria atingido o número autorizado210.
Em 1793 encontravam-se no mosteiro apenas sessenta e três religiosas. Na opinião da
abadessa, havia rendas que bastavam para o sustento de oitenta, o que a levou a pedir ao
príncipe regente D. João, autorização para que entrassem dezassete noviças com os seus
respectivos dotes. O pedido foi satisfeito em 1795; contudo, ou porque não tenham entrado as
204
Fernando da Soledade, op.cit., III, p. 351.
AHU, Madeira, doc. 620; doc. 623: Cópia do capítulo X da primeira patente que mandou Frei José da Conceição, do convento de
Alferrara, da Província de Santa Maria da Arrábida, de 30 de Junho de 1720.
206
AHU, Madeira, doc. 622: Requerimento da abadessa e mais religiosas do mosteiro de Santa Clara do Funchal, pedindo licença para
receber noviças.
207
AHU, Madeira, doc. 624.
208
AHU, Madeira, doc. 625.
209
AHU, Madeira, docs. 624 e 625.
210
AHU, Madeira, doc. 620: Carta de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão de 21 de Julho de 1781; doc. 622: Petição da abadessa e mais
religiosas do mosteiro de Santa Clara do Funchal, solicitando licença para receber noviças; doc. 623: Cópia do capítulo X da primeira patente
que mandou Frei José da Conceição, do Convento de Alferrara da Província de Santa Maria da Arrábida, de 30 de Junho de 1720.
205
76
dezassete ou tenham morrido algumas religiosas, a 26 de Março de 1796, estavam somente
setenta e duas, incluídas as noviças.
Quadro nº.11 - Alguns dados estatísticos
Número de Religiosas
Ano
1590
1665
1668
1722
1724
1750
1764
1781
1793
1796
1820
1823
1829
1832
1840
Total
Numerárias Extranumerárias
96
63
57
29
60
113
116
170
164
165
153
92
63
72
68
60
61
51
52
Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. .S.
Clara, caixa 2072, doc. avulso e Conventos e Mosteiros, L 29, não
paginado, L 37, fol.1, L 68, fol. 56; AHU, Madeira, docs. 261 e 624;
AHDF, S. Clara F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso; Noronha, op.cit, p.
264.
Ao longo do século XX, o número de religiosas foi diminuindo gradualmente atá 1890,
ano em qe faleceu a última religiosa professa, a Madre Maria Amália do Patrocínio, como
atrás ficou dito.
77
CAPÍTULO III
VIDA INTERNA – SPIRITUALIDADE E CULTURA
1. Espiritualidade
1.1. Oração comunitária e vida litúrgica
As religiosas de Santa Clara, professas e noviças, deviam rezar o ofício divino - oração
da Igreja por excelência - com seriedade e modéstia, solenizando com o canto as horas
canónicas principais - Laudes, Vésperas e Matinas -, as quais tinham lugar de manhã, à
tardinha e à meia-noite, respectivamente. O ofício divino compreendia ainda a hora de Prima,
rezada pelas seis horas da manhã, Tércia às nove, Sexta ao meio-dia e Noa às quinze horas.
Para a celebração da missa e ofício divino a comunidade tinha um capelão privativo,
coadjuvado por um sacristão, vivendo em casa anexa. Quando havia doentes que não podiam
sair da enfermaria, o capelão entrava, sempre que para isso fosse solicitado pela abadessa,
para administrar os sacramentos, podendo mesmo celebrar junto das doentes, para o que
estava a enfermaria apetrechada com altar próprio211.
Com a oração litúrgica - missa e ofício divino - conjugavam as religiosas, em função da
espiritualidade eucarística, tão característica da Ordem de Santa Clara, a adoração ao
Santíssimo Sacramento, tendo para o efeito custódias riquíssimas, uma das quais estava
cravejada de pedras preciosas, bem como a respectiva lúnula212. A exposição tinha lugar sobre
o sacrário ou no camarim. À oração comunitária, com horário próprio, juntavam-se as
devoções particulares.
As religiosas procuravam cultivar as tradições da Ordem. Daí o amor à Eucaristia, à
Paixão de Cristo e à Santíssima Virgem, que gostavam de invocar sob o título de Imaculada
Conceição. Empenhavam-se em manter as devoções caracteristicamente franciscanas como
era a via-sacra e a coroa das sete alegrias de Nossa Senhora.
Nas grandes celebrações religiosas, como era o Natal, dia de Reis, Páscoa, festa de
Santa Clara e de São Francisco e em todas as festividades marianas, as liturgias revestiam-se
de beleza espiritual. Os cânticos, a decoração da igreja, as vestes litúrgicas e a grande
afluência de população davam às celebrações brilho e ar festivo. Por vezes, ao capelão e
confessor habitual, juntavam-se, a pedido das religiosas, outros sacerdotes, como acontecia no
Natal, na Semana Santa e dia de Páscoa, para que a vivência litúrgica fosse profunda.
Havia preocupação de rezar pelas defuntas e cumprir as capelas e outros encargos de
ordem espiritual, de que eram devedoras por legados pios dos benfeitores. Usufruindo dos
benefícios materiais por eles deixados, não deviam descurar os sufrágios a que os mesmos
tinham direito.
Para orientação espiritual das religiosas, havia o confessor, de nomeação episcopal, que
atendia igualmente a restante população do mosteiro e a quem lho solicitasse. Pela Páscoa
assumia a responsabilidade da desobriga, desde as religiosas aos servos e disso notificava o
prelado diocesano.
1.2.Viveiro de santidade
211
212
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha I, doc. avulso; RU 4, VII, 15, in FF II, pp. 351- 352.
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 31; AHDF, Conv .de S. Clara F., caixa 27, capilha 1, doc. avulso.
78
Soledade, referindo-se às fundadoras saídas de Beja, diz que “eram mulheres de opinião
venerável, muito pobres, zelosas do bem comum, devotas, penitentes e por extremo
observantes da sua Regra”. Mais diz que “as observâncias religiosas e os estilos monásticos
ficaram tão radicados (…) os jejuns, a devoção e fervor de espírito e todas as mais virtudes,
estavam neste santo domicílio tão vigorosas que, penetrando as paredes da clausura, corriam
pela cidade com títulos de assombro”213. Segundo o cronista, o mosteiro de Santa Clara era
uma casa que “por sua virtude, seria digna dum discurso muito extenso”214 e isto, pelo rigor e
perfeição introduzidos pelas fundadoras.
Das filhas de Simão Gonçalves da Câmara, D. Beatriz, D. Isabel e D. Maria de
Noronha, que seu pai meteu no mosteiro de Santa Clara com boas rendas, diz o Elucidário
Madeirense:“ Ali viveram sempre mui virtuosa e santamente”215. E a respeito de D.
Constança, filha de João Gonçalves da Câmara, se afirma, como atrás ficou dito, que “sempre
viveu santamente, não querendo ser professa, porque sempre era enferma”216.
António Cordeiro, autor da História Insulana, referindo-se ao mosteiro em 1500,
testemunha: “(...) Há nesta Cidade um Convento de freiras de Santa Clara de grandes rendas e
maiores virtudes e de sessenta freiras de véu preto; fica numa rocha muito forte e com boa
vista para o mar, mas não para terra, por causa dos altos muros e com pequena cerca”217.
Na História Seráfica, salienta-se não só a santidade das fundadoras mas também de
outras religiosas “que tão admiravelmente trocaram as pompas do mundo pelos abatimentos e
mortificações da Religião”. Ali “floresceram muitas Madres cuja virtude famosa tem grandes
aplausos na lembrança”218. Entre elas podemos mencionar a Madre Bernardina do Espírito
Santo, abadessa desde 1626-1629, que cultivou uma grande devoção ao Santíssimo
Sacramento, a Madre Isabel de Valdavessos, que professou em 1632, dotada de grande
espírito de oração e de sacrifício. Também a Madre Clara da Encarnação, professa desde
1635, foi uma religiosa santa, de grande humildade, espírito de pobreza e muito amiga dos
pobres com os quais “não só gastou o que tinha, mas constituindo-se sua procuradora, andava
sempre pedindo para eles”219. Na mesma época viveu a Madre Aurélia de Santa Clara que, diz
Noronha, “foi também uma religiosa de raras penitências, de extrema pobreza e de perpétua
oração”. Quando estava moribunda pediu às religiosas que a assistiam, que se erguessem,
“porque estava a visitá-la a sua Madre Santa Clara”220.
Alma profundamente contemplativa foi a Madre Isabel Baptista. Sendo muito doente,
encontrava na oração grande alívio para as suas dores. Faleceu em 1652 e, “na hora em que
expirou, se ouviram suaves cânticos”221. Outra alma boa foi a Madre Clara das Chagas que era
cheia de ternura pelo Menino de Belém. Muito sensível ao mistério da Encarnação, introduziu
no mosteiro a festa do Menino-Perdido, que adiante referiremos. Enquanto o procuravam, ela
ficava em oração e penitência no seu mosteiro; quando era achado, radiante e feliz, “com toda
a comunidade em procissão pelos corredores do convento, em altas músicas, o levava à
abadessa”222. Também a Madre Ana do Sepulcro, observantíssima da sua Regra, penitente e
alma de oração, mestra de noviças e das pupilas, foi religiosa exemplar. Tinha grande devoção
213
Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 353.
Fernando da Soledade, op .cit., III, p. 353
Elucidário Madeirense, I, p. 310.
216
Elucidário Madeirense, I, p. 310.
217
António Cordeiro, História Insulana das Ilhas a Portugal sujeitas no Oceano Ocidental, Lisboa, ano de 1981, (reimpressão de 1717), p.
76.
218
Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 353.
219
Noronha, op. cit., p. 266.
220
Noronha, op. ci.t, p. 267.
221
Noronha, op. cit., p. 267.
222
Noronha, op. cit., p. 267.
214
215
79
a Nossa Senhora e punha todo o seu esmero na decoração da capela de Nossa Senhora do
Rosário, que estava a seu cargo. Faleceu em 1690223.
Estas religiosas movidas por uma fé profunda e por um grande amor a Cristo,
procuravam viver em grande união com Ele. Respondendo ao apelo missionário de Cristo e da
Igreja, esforçavam-se por ajudar, com a sua oração e total doação ao Senhor, a humanidade
sofredora. Sabiam dar-se a Deus com amor gratuito e generoso.
Já nos fins do século XVII, as Madres Isabel da Natividade e Leonor da Encarnação,
almas profundamente silenciosas, foram também religiosas de grande austeridade de vida.
Igualmente a noviça Maria do Horto, morta em 1662, atingiu em pouco tempo grande
perfeição: era alegre, humilde, mortificada e alma de oração. Na Quaresma passava muitos
dias a pão e água em espírito de penitência.
Em 1722, faleceu, com noventa anos de idade, a Madre Inácia do Espírito Santo, que
havia entrado como educanda e que, por sua livre vontade, quis ser religiosa professa. Ainda
muito pequena perdera o ouvido e, já com bastante idade, perdeu também a vista. Alma de
muita oração, gostava de ocultar-se no silêncio e na paz. Tinha o dom da profecia e a
faculdade de ler no íntimo das pessoas. O seu amor ao Menino-Deus era notório e muitas a
ouviam falar com Ele. Enquanto teve vista, era ela que, por devoção e com muito amor, fazia
o presépio no Natal. Porque esteve muitos anos entrevada, o seu corpo encheu-se de chagas, o
que lhe ocasionava grandes sofrimentos, que sempre aceitou sem se queixar. Ouviam-na
muitas vezes falar com Santa Clara que amorosamente a vinha confortar e encorajar224.
Noronha fala-nos também duma serva, Maria de São Bernardo, natural de Machico,
filha de pais humildes, mas muito honrados, que exerceu no mosteiro o ofício de enfermeira
com tanta caridade e delicadeza que a todas edificava. Atingida por uma doença contagiosa
teve, por ordem médica, de viver isolada bastantes anos, o que, sendo para ela um grande
sacrifício, aceitou com humildade e espírito cristão. Na oração e na contemplação de Deus,
encontrou a força de que precisava para sofrer com amor. Faleceu na véspera da festa de
Santa Marta, de quem era muito devota,225 a 28 de Julho de 1722.
No mosteiro de Santa Clara santificaram-se muitas religiosas, senhoras leigas e até
servas que, movidas de amor pelo Senhor, souberam entregar-se à prática de todas as virtudes,
chegando a alcançar grande união com Deus. O odor das virtudes ali praticadas fazia-se sentir
e, especialmente nos primeiros séculos, foi causa de atracção de novas vocações.
Num mosteiro onde um grande número de religiosas entraram e permaneceram, não
por se sentirem vocacionadas, mas por imperativos familiares e sociais, a presença de
religiosas que viviam felizes e totalmente entregues ao Senhor era muito positiva e
construtiva.
1.3. Celebrações natalícias
O Menino-Perdido e Achado
O Natal de Jesus Cristo foi para a população madeirense, desde os primórdios do
povoamento, a festa por excelência. A festa que se celebrava com felicidade interior,
contentamento religioso e místico, com entusiasmo e regozijo.
Como ainda hoje acontece, esta solenidade era precedida de uma novena de Missas do
Parto, celebradas antes do amanhecer e abrilhantadas com loas ao Menino Deus. Todos se
223
Noronha, op. cit., pp. 267 - 268.
Noronha, op. cit., pp. 268 - 269.
225
Noronha, op. cit., pp. 269 - 271.
224
80
iam encaminhando para a igreja paroquial ou dos conventos e mosteiros, ainda antes do
romper da aurora, com alegria e ao som de toques e descantes. O rajão, a gaita e outros
instrumentos de uso regional cadenciavam o passo dos ranchos. Costumes ancestrais de
particular beleza que nos mosteiros de Clarissas do Funchal encontravam eco vibrante.
A embelezar espiritualmente os lares e casas religiosas, estava a lapinha que sempre se
armava antes da Missa do Galo e da hora da consoada. A lapinha, diminutivo de lapa, numa
clara alusão à gruta ou lapa de Belém, onde era figurado o nascimento de Jesus, sempre teve
lugar privilegiado no seio das famílias cristãs madeirenses, graças à influência franciscana.
As Irmãs Clarissas do mosteiro de Santa Clara acompanhavam e viviam toda a tradição
natalícia da sua terra e primavam na vivência do mistério da Encarnação do Senhor. Era
grande entre elas o amor ao Menino de Belém, sensibilidade herdada de São Francisco e de
Santa Clara.
Algumas tradições, dando beleza original às festas natalícias, tiveram origem nos
mosteiros. De entre as mais belas e amorosas destas tradições natalícias da Ilha da Madeira,
ressalta a do Menino-Perdido, nascida no mosteiro de Santa Clara, que se foi perpetuando
através dos tempos.
Segundo reza a história, no mosteiro havia um Menino, obra-prima de escultura em
madeira, muito prendado de jóias que lhe desciam do pescoço até às fivelinhas das sandálias,
recamado de ouro, fios de pérolas e abotoaduras ricas, oferenda de fidalgos e morgados que
lhe recomendavam as filhas que haviam confiado à clausura. Passada a festa dos Reis Magos,
saía o Menino-Perdido, secretamente do mosteiro, a esconder-se numa casa fidalga do
Funchal, pondo em reboliço metade da população. A abadessa, única depositária do segredo,
guardava sigilo do esconderijo; as demais religiosas convidavam as pessoas das suas relações
e amizade a descobrir o paradeiro do encantador Infante, compensando o trabalho com um
generoso presente a quem o retivesse sob a sua guarda - era a Achada do Menino226. Um ano
foi o Menino ter à Fortaleza de São Tiago. Viu-se tão honrado com esta visita o comandante
da praça que não se conteve dentro dos limites da costumada discrição; mandou que
saudassem o Menino Deus com cento e um tiros de artilharia da defesa da cidade. Como se
temiam os assaltos dos corsários e piratas, alarmou-se toda a população, acorrendo a tomar os
postos as milícias e a demais gente fugiu espavorida. O comandante respondeu em conselho
de guerra, mas foi absolvido como bom cristão, sendo apenas condenado a pagar a despesa da
pólvora queimada ao Estado227.
Foi a Madre Clara das Chagas que, no século XVII, concebeu e introduziu esta festa
natalícia no mosteiro. Era grande a sua sensibilidade diante dos mistérios de Cristo,
particularmente os mistérios da Encarnação e da Paixão; levada pelo seu grande amor ao
Menino de Belém, envolveu a população do mosteiro e da cidade do Funchal, naquela
espiritual diversão. Ela, enquanto todos se empenhavam a encontrar o Menino, permanecia
em oração e penitência. Passados três dias era a Madre Clara, como atrás se referiu, que, com
a comunidade em procissão, o levava entre cânticos, à abadessa. E, para que esta festa tivesse
continuidade para além da sua morte, deixou uma renda para o efeito, como obséquio ao
Menino Deus228.
Ainda dentro das festividades do Natal, dava-se particular realce ao ano novo. No dia 31
de Dezembro cantava-se o Te Deum que, no mosteiro de Santa Clara, graças ao valor do
órgão e aos dons musicais das religiosas, ganhava solenidade. Aquele Te Deum de acção de
graças pelos benefícios recebidos ao longo do ano que então findava, era liturgia que tinha
lugar em todas as paróquias.
226
Ilhas de Zargo, II, p. 513.
Ilhas de Zargo, II, pp. 514 - 515.
228
Noronha, op. cit., p. 267; Ilhas de Zargo, II, pp. 513 - 515.
227
81
O mosteiro, para além do seu horário de oração e cerimónias religiosas próprias, vibrava
de entusiasmo e alegria espiritual nas festas mais significativas e particularmente na quadra
natalícia.
Presépios artísticos
No século XVIII, generalizaram-se os presépios de barro, verdadeiramente belos e
artísticos, muitos dos quais eram feitos nos conventos e mosteiros ou sob a sua influência.
Estavam encerrados dentro de nichos, sendo alguns desdobráveis em belos trípticos. Em
Santa Clara havia alguns destes presépios.
Ao lado dos presépios de barro, outros surgiam de matérias-primas diferentes, devendo
salientar-se um de âmago de figueira, de princípios do século XIX, verdadeiramente curioso e
artístico. Segundo é tradição, este presépio foi feito por um frade do convento de São
Francisco do Funchal e oferecido ao mosteiro de Santa Clara, onde se conservou com devoção
e amor. É verdadeiramente admirável pelas “figuras miniaturas de pássaros, pastores e outras,
documentário fiel da indumentária da época usada pelas diversas classes sociais. Também é
exótico pelas espécimes de flora que apresenta”229.
As religiosas de Santa Clara não só cultivavam grande devoção ao Menino Deus, mas
empenhavam-se em difundi-la entre a população que contactavam. Francisco Ferreira, antigo
colono do Monte, e caseiro da confiança das religiosas, talhou em madeira e cortiça um
avantajado presépio, a lapinha do caseiro, verdadeira obra-prima de arte popular. Artista nato,
dedicou a vida inteira à escultura religiosa, chegando a trabalhar para o estrangeiro230. Quem
não vê aqui um reflexo do amor ao Menino de Belém que as religiosas de Santa Clara viviam
e infundiam nas pessoas com quem mais se relacionavam? Este amor a Jesus Menino tornouse tão natural e espontâneo entre a população da Madeira!...
2. O mosteiro como centro cultural - Escola de formação feminina
Podemos afirmar que, para além das suas funções religiosas, o mosteiro desempenhou
um papel importante no campo social e educativo, pois funcionou praticamente, pelo menos
até meados do século XVII, como a única escola feminina da Madeira. Peritas em leitura,
caligrafia, música, artes decorativas, doçaria e bordados, as religiosas empenhavam-se não só
em desenvolver estes dons bem como em transmiti-las às candidatas e educandas.
2.1. As letras e a música sacra
Na Madeira, onde a nobreza insular ia ganhando prestígio, não faltavam preceptores
particulares entre os nobres, como sucedia nas famílias Câmara, Noronha e outras. Também
os mestres-escola eram bem aceites e mesmo procurados.
Sabemos que na Idade Média a cultura se circunscrevia à classe eclesiástica, aos nobres
e, em certos casos, aos burgueses, classe mercantil que, para bem gerir os seus negócios,
precisava de ter conhecimentos literários. Na Idade Moderna, alargou-se o campo da cultura.
Com efeito, com o movimento humanista, as transformações económicas, sócio-culturais e
políticas, cresceu o anseio de saber e houve uma forte procura dos mestres de ler, que quase
sempre foram os clérigos, bacharéis, estudantes e até mesmo os sacristães.
229
230
Ilhas de Zargo, II, p. 509.
Ilhas de Zargo, II, pp. 509-510.
82
Dentro desta ânsia de aprender, nasceu no Funchal em 1570, o colégio jesuítico de São
João Evangelista. Bem depressa se tornou um centro cultural de renome, chegando a ser
frequentado por algumas centenas de alunos. O seu ensino, essencialmente humanístico, cuja
aprendizagem assentava no latim, teve no P. Manuel Álvares, jesuíta natural da Ribeira Brava,
o mestre de maior fama e prestígio231. A juventude madeirense encontrou neste
estabelecimento de ensino o apoio ao seu crescimento na área da cultura.
A comunidade de Santa Clara, que prezava a formação dos seus membros,
particularmente das candidatas, foi favorecida pelos meios de que dispunha a cidade do
Funchal.
As religiosas de Santa Clara cultivaram a leitura, mesmo do latim, escrita, caligrafia e
música. Para rezarem o ofício divino, dar solenidade ao canto e se enriquecerem com a
leitura, precisavam de ter conhecimentos culturais. Muitas delas, dada a sua condição de
nobres, haviam tido preceptores particulares ou aprendido com os mestres-escola, dado que na
Madeira, desde muito cedo, houve interesse pelo saber, como dissemos. Outras cultivaram-se
já no mosteiro.
Dado que nas celebrações litúrgicas, missa, ofício divino e outras se usava o latim, as
religiosas precisavam de conhecê-lo. Embora não fosse profunda a sua aprendizagem, pelo
menos na leitura procuravam especializar-se.
Pela análise dos registos de profissão, verificamos que todas as noviças que professavam
sabiam ler e escrever o português com muita perfeição. Os livros de contas, de óbitos, de actas
e documentos vários que as escrivãs, entre as quais as Madres Joana Teresa da Glória, Bibiana
Narcisa do Lado, Carlota Matilde da Conceição, Antónia Rosa de Viterbo e outras nos
deixaram, revelam-nos os seus excepcionais dons caligráficos. Estamos diante de pessoas
competentes, metódicas e artistas. Textos claros, tantas vezes iniciados por belíssimas letras
capitulares e sempre bem ordenados. Nesta escrita caligráfica são dignos de admiração o
traçado do desenho, os elementos decorativos, o sombreado, a harmonia do conjunto.
13.Carta para o vigário capitular. Nesta pequena carta dirigida ao vigário capitular,
podemos apreciar a perfeição caligráfica do texto, a boa redacção e um certo requinte
artístico no traçado das letras iniciais.
A fotografia aqui inserta fala-nos da competência da comunidade. Sendo uma simples
carta para o vigário capitular revela perfeição e dons caligráficos.
Sabe-se também que cultivavam a música e o canto, tão necessários às suas liturgias. O
mosteiro gozou desde os primeiros tempos de um órgão. Segundo César Nascimento e
Guilherme Lino, que nos princípios do século XX, para o repararem, fizeram pesquisas no seu
interior, foi mandado construir pelos filhos de João Gonçalves Zarco, os quais em 1489 o
ofereceram a Santa Clara232.
Noronha, ao descrever os coros da igreja, apresenta o coro de cima como o lugar “onde
se assiste à música que nesta casa se conservou sempre com particulares vozes e ciência”233.
As celebrações litúrgicas do mosteiro de Santa Clara, muito apreciadas pela população do
Funchal e até de outras partes da Ilha, mereciam a admiração de quantos tomavam parte nelas.
2.2 Culinária, bordados e artes decorativas
231
José Pereira da Costa, “Introdução”, in Gramática Latina do P. Manuel Álvares, 1974 (reimpressão da edição de 1572), p. XI-XVI.
Elucidário Madeirense, III, p. 20; “Convento de Santa Clara e filhos e genros de Zargo”, in Diário de Notícias, Funchal, 22 de Novembro
de 1924.
233
Noronha, op.cit., p. 264.
232
83
As religiosas eram especialistas em doces de todas as qualidades, dos quais guardavam
o segredo e em muitos manjares que, dentro e fora do mosteiro, eram apreciados. Os bolos
gastavam-se na comunidade em dias festivos, ofereciam-se a amigos e benfeitores, nobres e
eclesiásticos. Também se produziam para venda e se exportavam. À feitoria da Flandres
chegaram as iguarias da Pérola do Atlântico. Segundo uma referência do historiador belga
Goris, D. Manuel “fazia chegar cada ano ao feitor João Brandão, dez arrobas das melhores
compotas, amêndoas e conservas da Ilha da Madeira, em consideração pelas grandes festas
que ele é forçado a dar”234. Não chegariam a D. Manuel e à Flandres as iguarias do mosteiro
de Santa Clara?... Certamente que sim. Ilhas de Zargo referem que em confecções de iguarias
o mosteiro de Santa Clara do Funchal gozou de fama mundial.235 Sabemos que doces,
conservas e compotas, a que tanto se dedicavam, eram fonte de receita para o mosteiro236.
Como nas suas propriedades se fazia apicultura, as religiosas dispunham de mel que tanta
qualidade dava aos seus bolos, aproveitando também a cera das abelhas para o culto religioso
da sua igreja. Do Curral lhes vinha muita manteiga que igualmente aplicavam nos doces que
confeccionavam237.
Além do mel, gastavam grandes quantidades de açúcar e melaço, farinha de trigo e de
cevada que, pelo menos em parte, lhes vinham das suas fazendas, bem como especiarias,
essências, corantes, nozes, amêndoas e tantos outros produtos que adquiriam por bom preço.
Entre as variedades confeccionadas, podemos apontar os bolos de mel, talhadas de amêndoa,
queijadas, rosquilhas, coscorões, bolos de cevada, sonhos e outras variedades.
Depois dos jesuítas terem comprado a Quinta dos Frias, por onde passava o cano que
abastecia de água o mosteiro, as religiosas passaram a ter problemas de abastecimento,
chegando, em 1664 a estar 342 dias consecutivos sem água canalizada. A comunidade foi
então afectada na sua economia. As freiras queixaram-se de terem sido prejudicadas “nos
lucros cessantes pela falta de seus doces e conservas que deixaram de fabricar, por falta da
dita água e que com os ditos doces e conservas têm suas negociações”238. Estas actividades
foram retomadas logo em 1665.
Também os bordados e outros lavores artísticos eram requinte das religiosas de Santa
Clara. Nas propriedade do Curral Grande e São Vicente, e possivelmente noutras, cultivavam
o linho destinado a alvas, toalhas e outras alfaias de culto, confeccionadas com muito
esmero239. Faziam e bordavam belíssimos paramentos, vestes para imagens do mosteiro ou
mesmo solicitadas, além de outros artigos de valor e requinte. Normalmente o bordado era
feito sobre seda, damasco ou linho. Com o matiz combinava harmonicamente o ouro e a prata,
dando às vestes litúrgicas beleza e valor. Confeccionavam também flores de cera e de penas
pintadas, feitas com arte, que se vendiam e ofereciam a pessoas amigas ou benfeitores.
As religiosas de Santa Clara também se exercitaram nas artes decorativas.
Conta o médico inglês Hans Sloane quando, em 1687, foi convidado pela abadessa de
Santa Clara a ir àquela casa religiosa a dar a sua opinião sobre algumas freiras que estavam
doentes: “(...)tendo visto a maior parte destas doentes neste local, retirei-me depois de me ter
234
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, Museu de Arte Sacra do Funchal. Arte Flamenga, Lisboa, 1997, Introdução não
paginada. É de salientar que o feitor João Brandão estabeleceu contactos com Albrecht Dürer que o retratou e dele recebeu presentes. Dürer
diz no seu diário: “ O feitor Brandão ofereceu-me dois grandes e belos pães de açúcar refinado, dois boiões de açúcar em compota” (Luísa
Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit. Introdução não paginada).
235
Ilhas de Zargo, II, p. 583.
236
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso. Citado por João José Abreu de Sousa,
op. cit., p. 31.
237
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 37, fol. 10 e ss. A confeitaria Felisberta, na Rua das Pretas, aberta ao público em
1837, que criou a aura de apresentar boas doçarias, tais como queijadas, pingos de ovos ou lágrimas e outras, teria usado, depois da extinção
do mosteiro de Santa Clara, algumas receitas dele provenientes (Rui Santos, Crónicas de outros Tempos, Funchal, 1996, pp. 31-32).
238
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso. Citado por João José Abreu de Sousa,
op. cit., p. 237.
239
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 37, fol 10 e ss..
84
deliciado com uma bela refeição de frutas e compotas. Os doces e a mobília do quarto tinham
sido feitos pelas próprias freiras. Até agora quer nas compotas, quer no mobiliário, nunca vi
coisas tão boas”240. É possível que o mosteiro tivesse oficina própria. As religiosas fariam nas
obras de marcenaria a parte decorativa com aplicações de folha de ouro e pintura.
Crê-se que nos finais do século XVI estaria a funcionar em Santa Clara uma pequena
oficina de barro. A existência de duas Piedades no espólio do mosteiro, assim como de uma
quantidade apreciável de fragmentos de esculturas todas executadas em barro vermelho,
muito semelhante ao utilizado depois para a execução de presépios, permite levantar esta
hipótese241.
2.3. Educação de “moças nobres”
Para satisfazer as necessidades sociais da época e a vontade dos reis, muitas vezes havia
no mosteiro, além das candidatas ao noviciado, jovens educandas, “moças nobres”, como as
designam os cronistas, que ali ficavam temporariamente para receberem formação religiosa,
cultural e feminina. Embora a sua presença nem sempre fosse positiva, dado o seu gosto pelas
vaidades e encantos da sociedade a que pertenciam, as religiosas esmeravam-se na educação
das jovens que lhes eram confiadas e para elas havia sempre uma mestra. Esforçavam-se por
dar-lhes uma formação religiosa, intelectual e doméstica muito completas. Educadas dentro
dos princípios religiosos, ficavam senhoras de uma sã moral que lhes permitiria um
comportamento exemplar no seio da sociedade. Além do saber intelectual da época que o
mosteiro lhes dava - conhecimentos de escrita, leitura, música, pintura, e outros -, recebiam
uma primorosa formação feminina que as deixava aptas em manjares de cozinha, arranjos
artísticos e regras de cortesia.
Ser educada em Santa Clara era, na Madeira, requinte e distinção.
240
A Madeira vista por estrangeiros, 1450-1700 (coordenação e notas de António de Aragão), Funchal, l982 pp. 162-163; citado por Rui
Carita, op. cit., III, p. 336
241
Rui Carita, op. cit., I, pp. 412-413
85
CAPÍTULO IV
VIDA INTERNA: ECONOMIA
1. O Curral das Freiras e a Quinta de Santo António
Tanto o Curral das Freiras como a Quinta de Santo António eram propriedades de suma
importância para a vida da comunidade do mosteiro. A quinta era uma granja modelar com os
mais variados produtos e o Curral, rico no abastecimento de produtos pecuários: manteiga,
queijo e carne.
O Curral Grande, que depois da sua doação ao mosteiro passou a designar-se também
Curral das Freiras, bela propriedade com que João Gonçalves da Câmara dotou as suas filhas
que nele entraram, teve enorme importância para Santa Clara, primeiro como centro de
criação de gado e, depois, como colónia agrícola242. De facto, o aproveitamento económico do
Curral sofreu ao longo do tempo uma evolução. A criação de gado foi a forma que revestiu o
início da sua exploração económica. Nos meados do século XVII João Fernandes de Vares
pagava anualmente ao mosteiro 20.000 réis em dinheiro, dez botijas de manteiga, quinze
cabritos, vinte e seis arrobas de carne de porco, por quarenta porcos do mosteiro que tinha
também no Curral, além das “meias” que dava das vacas243.
Sendo a exploração pecuária, até meados do século XVIII, a actividade dominante do
Curral, a partir de então procedeu-se a arroteias, à arborização e ao aproveitamento agrícola.
O Curral acabou por tornar-se uma excelente zona agrária, que produzia, vinha, árvores de
fruto, tais como pessegueiros, pereiras, ameixoeiras, cerejeiras, nogueiras, castanheiros e
cereais, entre os quais merece especial menção o trigo244.
A Quinta de Santo António era uma das principais propriedades dos arrabaldes do
Funchal. A sua situação, junto à ribeira de Trapiche, facilitou a instalação de um engenho de
açúcar e do regadio dos canaviais, onde trabalhavam, desde há muito, algumas dezenas de
escravos245. Paralelamente à cana também se cultivava a vinha em latadas.
Em meados do século XVI, o mosteiro tornou-se proprietário da quinta, pela entrada de
D. Isabel Gonçalves Ferreira ou Isabel de Azevedo, viúva de Lopo de Azevedo, seus
proprietários, procedendo-se então ao seu arrendamento em prazos de dezoito anos, com o
pagamento de grande parte da renda em géneros, ou seja pagamento de “meias”.
Gradualmente, a cultura da cana, pela concorrência do açúcar do Brasil e das Antilhas, foi
dando lugar à vinha que, já em princípio do século XVII, era a principal cultura da quinta.
Além deste produto, destinado a ser comercializado, a Quinta de Santo António
assegurava à comunidade uma parte substancial dos víveres necessários às religiosas e
pessoal, no quotidiano.
2. Produtos comercializados: o açúcar e o vinho
2.1. O açúcar
242
ARM, Conventos, Conv. S. Clara F., L 42, fol. 125 v.
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 18, fol. 176, L 22, fol. 178 e L 37, fol. 10 e ss..
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 13, fol. 164 v e L 37, fol. 10 e ss.; Elucidário Madeirense, I, p. 341.
245
A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, 12ª edição, Lisboa, 1985, I, p 274. Atingida a costa ocidental africana, faziam-se
incursões directas ao interior, trocando “escravos por panos e outros artigos que os portugueses iam muitas vezes adquirir a Marrocos. De
Portugal, grande número, se não a maioria dos escravos, vendia-se depois com bons lucros para Castela, Aragão e outros países Europeus, e
só uma parte ficava nas produções de açúcar e em serviços agrícolas ou domésticos da Madeira e Portugal” Continental (I, p. 275), “suprindo
a falta de mão de obra na Europa e na Ilha da Madeira” (II, p. 66).
243
244
86
Iniciado o povoamento da Ilha da Madeira, logo se experimentou o cultivo da cana
sacarina. Desde muito cedo (1433), a cana sacarina foi ali cultivada com intenções de
produção exportadora246. Em meados do século XV, Diogo de Teive, escudeiro do infante D.
Henrique, levantou na Ilha o primeiro engenho de açúcar247. A partir de 1468, altura em que
os mercados de Bruges e Antuérpia estavam já em activa projecção internacional, as relações
comerciais de Portugal com a Flandres, Alemanha e outros países, ganharam vulto248. Nos
fins do século XV, o açúcar inundava todos os mercados da Europa, generalizando-se o seu
uso. Os historiadores têm considerado este acontecimento do século XV como “um êxito
notável” e o seu negócio como “o mais importante entre os de todos os outros produtos dos
dois arquipélagos - Madeira e Açores”249.
É espantoso como em trinta anos foi possível fazer da Ilha da Madeira, desabitada e
densamente arborizada, um centro de exportação de açúcar de grande importância!...“O
açúcar dela, o melhor que agora se faz no mundo (...) tem enriquecido muitos mercadores
forasteiros e boa parte de mercadores da terra”250, diz Gaspar Frutuoso. Era tão grande a sua
importância económica e projecção nacional que o rei D. Manuel, ao elevar a vila do Funchal
a cidade em 21 de Agosto de 1508, lhe deu como armas, em vez das quinas de Portugal, cinco
pães de açúcar dispostos em cruz.
Nos meados do século XVI, a principal produção da Madeira era, de facto, o açúcar.
Havia na Ilha quarenta engenhos, com a produção máxima de umas duzentas mil arrobas
alcançadas em 1570; as plantações requeriam uma extensa mão de obra, importando-se
anualmente centenas de escravos africanos251.
Depois de preparado (moagem, cozimento e purga), estava o “pão de açúcar” branco e
mascavado, pronto para ser pesado, encaixotado e exportado. Para o efeito se faziam caixas de
madeira indígena como o cedro, til e vinhático, que nos países importadores eram utilizadas
como “boa madeira”. No testamento de João Gonçalves da Câmara (1499) fala-se em caixas
de açúcar de cinco, seis ou sete arrobas cada.
O mosteiro de Santa Clara recebia açúcar das terras do norte da Ilha, mas era nas terras
do sul que a cana abundava (...)252. Os contratos do mosteiro com os colonos multiplicavamse no sentido de incrementar aquela cultura. Na zona de Câmara de Lobos tinham as
religiosasvários engenhos, utilizando a água da ribeira dos Socorridos. Em 1546 a
comunidade arrendou a Manuel de Amil um desses engenhos253. Em 1558 fez um contrato
com Francisco Martins, ali morador, entregando-lhe uma fazenda de canas que tinha “(...)
além de Câmara de Lobos com suas águas (...)”, insistindo em que plantasse canas em toda a
extensão possível, facilitando o mosteiro que o arrendatário pudesse utilizar os engenhos para
a preparação do “pão de açúcar”254.
246
Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1949, I, pp. 217 – 221.
Segundo Álvaro Rodrigues de Azevedo, anotador de As Saudades da Terra, Diogo de Teive está na origem da “família Teive” da
Madeira. No ano de 1452, fez um contrato com o infante D. Henrique, onde se diz escudeiro do mesmo infante, no qual se obrigou a levantar
na Ilha da Madeira um engenho de açúcar, o primeiro que aqui houve. Teve na Ribeira Brava e na parte norte da Ilha muitas terras de
sesmaria e aí fez morgadio (Elucidário Madeirense, III, p. 349). Quando, a partir de 1450 se procedeu à colonização da Ilha Terceira, nos
Açores, Diogo de Teive, convidado pelo Infante a acompanhar Jácome de Bruges, primeiro capitão da Ilha, para lá se dirigiu. A “família
Teive” proliferou nos dois Arquipélagos simultaneamente. (Francisco Ferreira Drummond, Anais da Terceira .I, Porto, 1981, reimpressão
fac-símile da primeira edição de 1850, pp. 25 - 29.
248
História Universal, adaptada e revista por Jorge Borges de Macedo, Lisboa, II, 1994, pp. 68 - 72.
249
Virgínia Rau e Jorge Borges de Macedo, O açúcar da Madeira nos fins do século XV - Problemas de produção e comércio, Funchal,
1962, p. 11. Acerca da posição relevante que a Madeira teve não só na produção e comercialização do açúcar como também na irradiação da
cana no mundo atlântico, pode ver-se de Alberto Vieira e Fernando Clode A Rota do Açúcar na Madeira – The Sugar Route in Madeira,
Funchal, 1996, obra bilingue.
250
Gaspar Frutuoso, As Saudades da Terra-História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, II, Funchal, 1873, p. 65.
251
Oliveira Marques, op. cit., II, p. 258. Sobre a introdução do escravo no arquipélago da Madeira, sua proveniência, actividades na Ilha,
processo evolutivo do seu contributo na constituição da sociedade madeirense, desde o século XV ao XVII e consequente integração social,
pode ver-se a tese de doutoramento de Alberto Vieira Os escravos no arquipélago da Madeira. Século XV a XVII, Funchal, 1991.
252
Oliveira Marques, , op. cit., II, p. 36.
253
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso.
254
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 11.
247
87
Os contratos entre o mosteiro e os colonos eram em grande número. Há, da parte das
religiosas, uma insistência em incrementar a cultura da cana, chegando a oferecer água para a
rega, comprometendo-se os meeiros a plantar, regar, aumentar a extensão produtora.
Pretendia-se não só abastecer o mosteiro, que habitualmente gastava muito açúcar, mas
também exportar a fim de fazer face com esse rendimento a outras necessidades. Em São
Vicente encontravam as madeiras necessárias para o fabrico das caixas destinadas à
exportação do açúcar.
Cedo o açúcar brasileiro e das Antilhas começou a fazer concorrência ao açúcar das
ilhas atlânticas. Dado o seu baixo preço, que orçava por metade do da Madeira e porque uma
doença sobreveio na cana, a produção desceu para quarenta mil arrobas e o número de
engenhos estava reduzido a sete ou oito em 1610255. Tentando superar a crise, resolveram os
madeirenses organizar um sistema de compra de açúcar no Brasil, que vendiam depois como
se fosse produção própria. Diante da ineficácia do sistema e porque a concorrência era
fortíssima, a Madeira substituiu a cana pela cultura da vinha.256 O mosteiro de Santa Clara
depressa fez essa viragem.
2.2. O vinho
O vinho passou então a ser tudo na economia da Madeira e tornou-se tão famoso e
divulgado como outrora o seu açúcar, chegando a todos os pontos do império português e a
boa parte da Europa.
As freiras de Santa Clara deram um tal incremento à cultura da vinha que, em meados
do século XVII e ao longo do século XVIII, o vinho tornou-se o produto fundamental na sua
economia.
Para apoiar os seus arrendatários, o mosteiro dispunha de um sistema de adegas, a cargo
dos feitores e caseiros e de larga distribuição por toda a Ilha. As adegas mais importantes
estavam localizadas no Campanário, Santo António, Ribeira Brava, Câmara de Lobos,
Estreito de Câmara de Lobos e outras localidades, chegando a reunir mais de cem tonéis,
como se verificou em 1677, em que a colheita do vinho chegou a cento e quatro tonéis. O
vinho novo renovava as pipas ainda existentes, “(...) pipas velhas de muitos anos (...) cerca de
cento e sessenta e uma em 1667 (...) que estavam para se vender na primeira novidade daquele
ano” 257. O próprio mosteiro tinha uma loja para arrecadar o vinho com capacidade para, pelo
menos, nove tonéis.
O vinho do norte, que não era de boa qualidade, não podia ser comercializado,
especialmente a partir da expansão da exportação, verificada numa fase avançada do século
XVIII, para não tirar a fama ao vinho “de boa qualidade”. Era, pois, transformado em
aguardente258, que era igualmente exportada. De facto, no sul da Ilha, o vinho vai-se tornando
a mais importante produção, passando a ser a grande fonte de receita. O norte, porque não
produzia bom vinho, passou a ser a zona de pecuária, exploração florestal, culturas
cerealíferas e excelentes pomares.
De São Vicente, que já fornecera madeira para as “caixas de açúcar”, receberam as
freiras as madeiras necessárias para a manutenção das suas adegas até ao fim do século XVII,
altura em que os arcos e aduelas dos tonéis e vasilhames diversos começaram a ser
importados da Grã-Bretanha.
255
Oliveira Marques, op. cit., II, p 295. Segundo este autor, no final do século XVII, a Madeira possuía apenas cinco engenhos (p. 295).
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., Introdução não paginada.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 39; citado por João José Abreu de Sousa, op.
cit., p. 74.
258
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 37, fol. 10 e ss..
256
257
88
2.3. Os juros
Além das rendas, em géneros ou dinheiro e as “meias”, os juros eram uma importante
fonte de receita. Recebiam-nos as religiosas de empréstimos que faziam a quem lhes
solicitava esse favor. Era frequente pedir-se dinheiro emprestado ao mosteiro, ficando como
seus devedores, pessoas amigas, os caseiros, que hipotecavam as suas benfeitorias e mesmo
os grandes proprietários que, através do crédito, dotavam as suas filhas que professavam no
mosteiro, isto é, ficavam a dever o valor do dote e dele pagavam juros.
De certo modo, Santa Clara lembra um pouco uma casa bancária, onde muitas pessoas
encontravam solução para os seus problemas de ordem financeira. O antigo regime permitia
ao mosteiro juros modestos que normalmente não passavam de 5%259.
Os juros e os rendimentos do vinho permitiram que, no século XVII, se realizassem
grandes obras na parte habitacional e na igreja, altura em que o altar-mor foi todo remodelado.
Na segunda metade do mesmo século, a comunidade atingiu uma situação económica folgada,
com um património imobiliário de grande dimensão.
3. O quotidiano
3.1 O abastecimento de água
O mosteiro não dispunha de águas nascidas na própria cerca e, por isso, foi necessário
canalizá-la de terrenos exteriores e de distância relativamente grande.
Em meados do século XVII a Quinta dos Frias, por onde descia o cano abastecedor,
passou para o colégio dos jesuítas. A partir de então, alguns conflitos foram surgindo, entre o
mosteiro e o colégio que, devendo zelar pela conservação do cano, nem sempre o fazia. Pelo
menos uma vez tiveram as religiosas de recorrer à justiça, lavrando o Juiz de Fora, em 14 de
Julho de 1664, uma sentença favorável à comunidade260.
A falta de água embaraçava seriamente a comunidade, não apenas pela necessidade que
dela tinham para a vida do dia a dia, mas também por prejudicar a sua actividade como
produtoras de conservas, de bolos e de outras iguarias261, como já foi referido. O mosteiro
chegou a estar 342 dias sem água canalizada, havendo necessidade de recorrer à água
acarretada por tracção animal. Nessa altura, as religiosas, lesadas no bom funcionamento da
vida comunitária e nas suas economias, por terem de parar a preparação das conservas e o
fabrico de doçaria, lamentaram-se amargamente. Pela falta de água, segundo diziam,
“padeceram gravíssimas calamidades por não terem outra água alguma de que pudessem
beber e cozinhar e se servirem para a fábrica dos seus doces”262. Isto afectou a sua economia,
pois ficou o mosteiro sem os proventos que lhe vinham do fabrico de conservas e doçaria.
No século XVIII os problemas de abastecimento de água agravaram-se de tal forma que
as religiosas chegaram a sair do mosteiro em sinal de protesto. Tal facto, além de ser causa de
censuras por parte da autoridade eclesiástica, motivou a intervenção régia.
D. João V, em alvará de 15 de Novembro de 1712, impôs uma multa de 8.000 reis a
quem danificasse o cano da água, devendo o provedor da Fazenda Real velar por assunto tão
importante e delicado.263 Como os problemas continuassem, a 18 de Outubro de 1721, uma
259
AHU, Madeira, doc. 264 e 265.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. Citado por João José Abreu de Sousa,
op. cit., p. 31.
261
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. Citado por João José Abreu de Sousa,
op. cit., p. 31.
262
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. Citado por João José Abreu de Sousa,
op. cit., p.31.
263
BNL, Reservados, Códice 10935, p. 99: “ Memória sobre a criação e o aumento do estado eclesiástico na Ilha da Madeira” (...).
260
89
provisão régia mandava nomear um “olheiro” que semanalmente visitaria o dito cano;
qualquer conserto necessário seria pago à custa dos jesuítas e o salário do “olheiro”, pelos
mesmos e o mosteiro264. Em 1770 surgiu novo desentendimento por causa do aqueduto, que
Domingos Afonso Barroso, provedor da Fazenda na cidade do Funchal, e Francisco Moreira
de Matos, notificam oficialmente265, talvez porque os incidentes se iam avolumando e
repetindo.
3.2. Os géneros alimentícios
O trigo era uma das bases da alimentação no mosteiro de Santa Clara. Depois da cana e
da vinha, era ele a cultura de maior escala nas suas propriedades. Porém, a quantidade obtida
não chegava para as suas necessidades quotidianas e tinham de adquirir trigo e outros cereais
a produtores da Ilha e até importá-lo. Em 1543, Santa Clara devia 50.000 reis ao mercador
Simão Fernandes, residente no Funchal, por trigo que lhe havia comprado266.
O trigo era cultivado especialmente nas terras do norte - São Vicente, Porto da Cruz,
Ponta Delgada e outras, que o mosteiro aí possuía e que, por serem terras pobres, não
permitiam culturas mais exigentes. As fazendas de São Vicente pagavam os seus foros em
trigo que, em meados do século XVII, rendiam uns catorze moios e cinquenta alqueires, trigo
recolhido no celeiro que as freiras tinham nessa freguesia267. E, porque a farinha de trigo era
necessária à cozinha, nas terras “da banda de Traz da Ilha” costumavam as rendas ser pagas
em produtos, especialmente cereais. Por meados do século XVII Santa Clara tinha em São
Vicente uns 600 foreiros que davam à comunidade, anualmente, 950 alqueires de trigo, 27
galinhas, 3 frangas e 2 lençóis de linho268. A este se juntava muito outro trigo cultivado nas
diversas propriedades espalhadas pela Ilha.
Da Quinta de Santo António recebia o refeitório das religiosas uvas e frutas diversas,
bem como hortaliças, legumes e outros produtos. Do Curral, como já foi referido, recebiam
carne e laticínios - queijo e manteiga - leite, ovos e grande variedade de frutas: cerejas,
pêssegos, ameixas, nozes, castanhas, uvas e alguns cereais, entre os quais predominavam o
trigo. De diversas propriedades, sobretudo da Vargem ou Varge, vizinha do mosteiro,
vinham-lhe cebolas, abóboras, alhos, couves, lentilhas, chícharo, inhames, feijão branco e
feijão pardo, favas, figos, cevada e centeio269.
O peixe - bacalhau, atum, arenque, sardinha e outros - era adquirido na portaria a
compradores certos. A carne de vaca, que gastavam em abundância, obtinham-na nas zonas
produtoras de gado, especialmente no Curral das Freiras. O mosteiro de Santa Clara tinha
licença régia para matar e cortar a carne, privilégio régio que no tempo de D. João V também
as religiosas da Encarnação conseguiram obter270.
A cerca, bastante pequena, pouco rendia para a cozinha, pois a comunidade gostava de
ter os seus jardins e espaços de descontracção onde pudessem recrear-se, passear e contemplar
as belas flores.
3.3. O pessoal trabalhador
Em breve papal de 4 de Junho de 1489, Inocêncio VIII autorizava as freiras do real
mosteiro da Conceição de Beja, fundado por D. Fernando e pela infanta D. Brites, a “terem
264
Citado por João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 31.
AHU, Madeira, doc. 389 e 390.
266
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso.
267
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso.
268
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso.
269
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 37, fol. 10 e ss.
270
ANTT, Chancelaria régia de D. João V, L 70, fol. 5 v. e 6.
265
90
criadas livres e escravas para as servirem nas suas necessidades e doenças”.271 Quando dali
partiram as fundadoras de Santa Clara do Funchal, consigo levaram a autorização e o
costume.
Num mosteiro de freiras fidalgas, as criadas, escravos e escravas eram elementos
indispensáveis, pois que, na Ilha da Madeira, o escravo era imprescindível no quotidiano da
vida. Em muitos casos, as criadas e escravas acompanhavam as candidatas na sua entrada. Foi
o que aconteceu a D. Bernardina e D. Antónia, filhas do primeiro matrimónio de D. Branca de
Atouguia, que levaram duas escravas moças “para se servirem delas no mosteiro”.272 Esta
nobre senhora, que pertencia a uma das melhores linhagens da Madeira, procedendo da
nobreza anterior ao povoamento do Arquipélago, parece que pretendeu desembaraçar-se das
duas filhas, pondo-as em Santa Clara, para contrair segundas núpcias com André Afonso de
Drummond, homem de renome. Viúva pela segunda vez, também ela entrou, levando consigo
um vasto património e alguns escravos. Para a escrava branca, chamada Ana, “a qual quando
eu me recolhi neste convento meti comigo nele (...), para meu serviço e das minhas filhas”,
pedia que, depois da sua morte, sendo ainda viva “fique por serva no dito convento e que se
não possa lançar fora dele”273.
Eram os escravos e escravas que, além de outros serviços, garantiam uma série de
trabalhos na cerca e fora dela, como eram o arrecadamento de víveres, transporte de água em
situações em emergência, como por exemplo, as avarias do aqueduto. Trabalhavam na horta,
limpeza de caminhos, jardim e em tantos outros serviços necessários. Quando em 1664, o
cano da água que passava na Quinta dos Frias, nessa data em posse dos jesuítas, entupiu,
ficando o mosteiro de Santa Clara sem água durante trezentos e quarenta e dois dias e as
religiosas passaram a abastecer-se de água nas “Fontes de João Dinis”, junto à fortaleza de
São Lourenço, eram os “boieiros”, auxiliados por escravos, que carregavam as pipas. Como,
porém, os ditos boieiros, tanto “queriam ir como não ir”, o mosteiro comprou três bestas e era
o almocreve que, com a colaboração dos mesmos escravos, fazia o carreto da água274.
Este pessoal trabalhador prestava também, dentro da clausura, certos serviços ao
conjunto da comunidade ou às religiosas a título particular, pois mesmo vivendo no mosteiro,
as freiras fidalgas não abdicavam do seu estilo nobre.
271
João José Abreu de Sousa, “ O Paço de Belas e a Madeira”, in Atlântico, 13 (1988) 49. Trata-se de D. Fernando, filho do rei D. Duarte.
ANTT, Conventos e Mosteiros, L 11, fol 166: Testamento de D. Branca de Atouguia de 9 de Outubro de 1615.
273
ANTT, Conventos e Mosteiros, L 11, fol 166: Testamento de D. Branca de Atouguia de 9 de Outubro de 1615.
274
João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 31.
272
91
CAPÍTULO V
INSERÇÃO E COLABORAÇÃO COM A IGREIJA LOCAL
A igreja de Santa Clara foi um importante centro de culto público na cidade do Funchal,
ao longo de mais de quatrocentos anos. A comunidade do mosteiro, sintonizando com a
espiritualidade da época, inseria-se facilmente em formas de espiritualidade então habituais,
como aconteceu em meados do século XVIII, quando foi criada a confraria de Nossa Senhora
do Monte. Estava também aberta às necessidades da Igreja local. Assim, no final do século
XVIII, as religiosas cederam gratuitamente o espaço necessário para a construção da igreja de
Nossa Senhora do Livramento, matriz da paróquia que então foi criada no Curral das Freiras
1. Culto público na igreja do mosteiro
Desde a origem do mosteiro a igreja de Santa Clara foi frequentada pela mais selecta
população do Funchal, bem como pela população circunvizinha que aproveitava a missa
quotidiana celebrada a horas certas e outros actos religiosos como as novenas preparatórias
das grandes festividades. A mais distinta nobreza da ilha que ali tinha as suas filhas gostava
de tornar-se presente naquele templo nas grandes solenidades religiosas.
A igreja disponha de um órgão oferecido pelos filhos de João Gonçalves Zarco em
1498, que dava grande beleza aos actos litúrgicos. As religiosas cultivavam a música sacra e
eram exímias nas suas liturgias, em que tomavam parte não só os capelães e confessores, mas
outros membros do clero e autoridades eclesiásticas quando o desejavam. Segundo Henrique
Henriques de Noronha, a comunidade de Santa Clara cultivou a música. Naquela casa
religiosa, diz o historiador, a música “conservou-se sempre com particulares vozes e
ciência”275.
Não faltavam na igreja do mosteiro as tradicionais Missas do Parto, em que a população
e as religiosas participavam com devoção. Em 1822, porém, D. Francisco José Rodrigues
Andrade, atendendo a que nalgumas igrejas se ia misturando o profano com o religioso, e sem
qualquer respeito pelos lugares sagrados, se permitiam “muitas coisas ofensivas à honra de
Deus”276, determinou que em “nenhuma igreja ou capela, assim de seculares como de
regulares, se possa celebrar o santo sacrifício da Missa, antes das seis horas da manhã,
debaixo de pena de suspensão ipso facto, a todo o presbítero que o contrário praticar, assim
como se não possam abrir as igrejas ou capelas antes das cinco horas e meia”277. As
religiosas, embora na sua igreja não se verificassem abusos, em obediência ao seu prelado,
passaram a ter as Missas do Parto às seis horas e não mais cedo.
Ali se celebrava também a Missa do Galo, precedida do auto do Natal, por vezes misto
de religioso e de profano. Os prelados madeirenses procuraram, sem ofender a tradição, ir
purificando as festas natalícias daquilo que não era religioso. Em 1860, D. Patrício Xavier de
Moura, renovando a determinação de 1859, mandou que se suspendesse “o uso de se celebrar
missa rezada na noite de Natal.”278 Na igreja de Santa Clara, onde sem dúvida nunca houve
abusos, a missa à meia-noite continuou, pois que a circular do prelado deixava uma
275 Noronha, op. cit., p. 264. Para além das celebrações litúrgicas a igreja de Santa Clara serviu muitas vezes para sessões de música sacra,
momentos em que ali se tornava presente a mais fina nobreza da ilha.
276
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta do arcediago da diocese.
277
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc avulso: Carta do arcediago da diocese. Esta carta circular foi também enviada aos
mosteiros da Encarnação e de Nossa Senhora das Mercês.
278
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular do arcediago José Joaquim de Sá, vigário geral, para abadessa do
mosteiro de N. S. das Mercês, de 18 de Dezembro de 1860.
92
alternativa: podia “haver missa à meia-noite, mas deve ser solene.”279 Nesta celebração
empenhavam-se o capelão, os confessores e o sacristão. Cuidadosamente preparada pela
14. A igreja do mosteiro de Santa Clara. Bem visível o portal que dá acesso à igreja, em mármore branco, de boa
arquitectura gótica. À direita, o portão de entrada para o mosteiro, sobre o qual podemos ver as armas franciscanas.
Fotografia de Rui Camacho, DRAC.
comunidade, enchia de alegria espiritual a quantos nela participavam. De facto a igreja de
Santa Clara não estava só ao serviço do mosteiro, mas também, em atitude eclesial, de toda a
população do Funchal. Ali se concentrava muita população quando, pedido pela liturgia
religiosa ou pelo monarca, em gesto de agradecimento por alguma ocorrência importante, se
cantava o solene Te Deum. Na igreja de Santa Clara encontrava-se uma veneranda imagem do
Senhor dos Passos, objecto de “especial veneração e culto” da população da cidade do
Funchal e de outros pontos da Ilha; por esse facto, era a sede da Confraria de Nosso Senhor
dos Passos, de altas tradições na Madeira e lugar de soleníssimas festividades em
determinadas épocas litúrgicas 280.
Quando, a 15 de Novembro de 1890 faleceu a última religiosa professa e as autoridades
mandaram fechar a igreja de Santa Clara, a reacção do bispo do Funchal, D. Manuel
Agostinho Barreto, da confraria de Nosso Senhor dos Passos e da população em geral, logo se
fez sentir, pois que “a igreja de Santa Clara, onde se celebrava missa todos os dias em horas
certas e onde eram feitas com notável esplendor muitas festividades religiosas, era
efectivamente muito concorrida dos moradores de uma grande parte do Funchal, aos quais se
não oferece nenhum outro local igualmente cómodo e acessível para suas devoções”281.
Nas cartas que o reitor da confraria fez seguir para Sua Majestade formulam-se queixas
que nos informam da importância que aquela igreja tinha para a população funchalense:
“Causou impressão muito desagradável esta medida (...), da qual resultou ficarem grande
número de pessoas privadas da frequência do templo, onde costumavam regularmente assistir
a certos cultos e praticar suas devoções”.282 Não admira, pois, que, em Abril de 1891 a igreja
estivesse de novo aberta ao público.
2. O mosteiro de Santa Clara, membro da confraria de Nossa Senhora do Monte
Os conventos e os mosteiros da Madeira, bem como a população em geral, inseriam-se
com entusiasmo nas confrarias que na ilha tiveram grande desenvolvimento nos séculos XVII
e XVIII.
Instituições de carácter religioso, onde os confrades se comprometiam a realizar em
comum certas práticas religiosas ou serviços de beneficência, as confrarias remontam à Idade
Média, período histórico em que, por vezes, se confundiam com as corporações de artes e
ofícios. Nelas encontrou o homem cristão a protecção espiritual de que se sentia carenciado.
Constituídas inicialmente só por homens, tornaram-se ao longo dos séculos extensivas às
senhoras, embora a participação destas fosse mais restrita. As pessoas faziam questão de
279
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular (...),de 18 de Dezembro de 1860.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso. Sobre a imagem do Senhor dos Passos,
veja-se a nota 69, p. 69.
281
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso.
282
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara, F., caixa 2072, doc. avulso: Carta do reitor da confraria João
Barbosa de Mattos e Câmara, Visconde do Ribeiro Real, de 10 de abril de 1811
280
93
pertencer a várias confrarias283. O Arquivo Regional da Madeira guarda setenta e seis fundos
arquivísticos de confrarias. Cinco são do século XVI, quinze do século XVII, quarenta e sete
do século XVIII e nove do século XIX, sendo compostos na sua maioria por livros de
despesas e receitas, de entradas de irmãos e de inventários de bens.
Vejamos a espiritualidade específica destas instituições:
Quadro nº.12 - Espiritualidade das confrarias
Confrarias
Quantitativo
Confrarias Marianas
Confrarias do Santíssimo Sacramento
Confrarias das Almas do Purgatório
Confrarias de Santo António
Confrarias de São Miguel
Confrarias do Senhor Jesus e Senhor Bom Jesus
Confrarias do Santíssimo Nome de Jesus
Confrarias de São Pedro
Outras Confrarias
18
15
6
4
3
3
3
3
21
Total:
76
Fonte: Arquivo Histórico da Madeira, 20 (1997) 127 - 147.
Este quadro aponta para os valores espirituais mais vivenciados pela população do
bispado do Funchal: Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora, o que evidencia uma forte
devoção à Eucaristia nas chamadas “Ilhas do Santíssimo Sacramento”, como as designava D.
Francisco Antunes Santana nas suas prédicas, e, bem assim, à Virgem Santíssima, venerada
sob os mais diversos títulos entre os quais sobressaía o de Senhora do Monte
De 1741 a 1753 foi bispo do Funchal D. Frei João do Nascimento, natural de Lisboa,
membro da Primeira Ordem Franciscana, moldado pela austeridade do convento de Varatojo
(Torres Vedras), que, auxiliado pelo clero da sua Ordem, procurou empreender uma profunda
reforma de costumes na Madeira284.
Quando, em 1748, um grande tremor de terra abalou toda a Ilha, arruinando edifícios e
igrejas, foi D. Frei João do Nascimento verdadeiramente incansável. A todos procurou
confortar e socorrer da forma que lhe era possível. Em seguida, empenhou-se na construção
de várias igrejas, entre as quais a de Nossa Senhora de Monte, onde, em 1750, fundou a
confraria dos Escravos e Servos de Nossa Senhora do Monte, que tornou extensiva a todas as
paróquias , conventos e mosteiros.
Explicava o prelado: dado que “nesta ilha da Madeira, resplandece como o sol (...) a
sacrossanta Virgem Maria, com o venerando título de Nossa Senhora do Monte”, a Ela nos
deveríamos consagrar. A Senhora do Monte, como especial protectora, advogada e padroeira,
seria o amparo dos madeirenses em todas as “aflições e necessidades, assim espirituais e
corporais, como públicas e particulares”. Propõe, pois, D. João do Nascimento que, se as
pessoas devotas da Senhora do Monte o acharem louvável, se poderá instituir na sua igreja
uma devota confraria com o título dos Escravos e Servos de Nossa Senhora do Monte. Assim,
a 6 de Abril de 1750, tornou público o documento da sua instituição. Ele foi “o primeiro que,
a impulsos da sua fervorosa devoção, se alistou por escravo da mesma Senhora”285. Desejava
o prelado que o clero, as religiosas e o povo, em reconhecimento dos contínuos benefícios que
283
Uma benfeitora da Misericórdia, Catarina de Ornelas, declarou, em 1658, que era irmã das confrarias “de Nossa Senhora do Rosário, de
Santo António, do Nome de Deus e de São Bento do Convento”; e no testamento de Filipa de Sousa, datado de 1680, existente no segundo
livro da Misericórdia de Santa Cruz, lê-se: “Declaro que sou irmã das confrarias seguintes: Nossa Senhora do Rosário, dos Santos Passos,
Nossa Senhora da Piedade, Santo António e Santo Benedito (Rui Carita, op. cit., III, p. 352, nota 837).
284
Ilhas de Zargo, II, p. 450.
285
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, L 29, não paginado
94
esta Ilha havia recebido e estava recebendo de Deus por intermédio de Nossa Senhora,
seguissem o seu exemplo.
Nos mosteiros de religiosas clarissas do Funchal encontrou eco o apelo do seu prelado.
A Madre Francisca dos Querubins, então abadessa de Santa Clara, solicitou a extensão da
confraria ao seu mosteiro, conforme o depoimento do próprio bispo: “(...) fazemos saber que a
R. M. abadessa do mosteiro da Nossa Senhora da Conceição da Ordem de Santa Clara de
Assis, desta cidade do Funchal, por si e em nome de todas as religiosas, educandas, servas e
comensais do mesmo mosteiro, nos representou que elas desejavam generosamente ser
admitidas na confraternização da gloriosíssima Virgem Maria, Nossa Senhora do Monte,
soberana padroeira de toda a Ilha286. Acolheu gostosamente o prelado a disponibilidade
revelada e logo respondeu à abadessa: “Atendendo nós e reconhecendo a fervorosa devoção e
louvável vontade com que as suplicantes procuram empenhar-se em cultos e obséquios da
soberana Senhora do Monte, havemos por bem admiti-las na confraternização da mesma
Senhora e permitir que se alistem por suas escravas”287.
Porque eram muitas as pessoas que viviam no mosteiro, o bispo permitiu que pudesse
ter livro próprio. Logo o envia à escrivã, que deveria tê-lo em seu poder e nele fazer os
assentos e, no fim de cada Quaresma, receber as respectivas quotas, remetendo-o, em seguida,
ao escrivão da Câmara Eclesiástica. Inscreveram-se de imediato pelo próprio punho ou pela
mão da escrivã cento e sessenta e cinco religiosas professas, das quais a primeira foi a
abadessa, quatro irmãs e algumas servas288.
3. Em benefício da população do Curral das Freiras
3.1. A capela de Santo António e seus capelães.
Situado no interior da Ilha, rodeado de altas e caprichosas montanhas, intercortadas por
declivosas ravinas, situa-se um vale amplo, “miniatura campesina de um paraíso”289, que logo
nos primórdios do povoamento teve o nome de Curral, por se ter tornado aquele local
importante centro de criação de gado lanígero e caprino. O Pico Ruivo, com os seus 1861
metros de altitude, o ponto mais alto da Madeira, sobressai entre as montanhas envolventes.
Lá no fundo, vale abaixo, entre desfiladeiros e abismos que, quase a pique se precipitam do
alto do Pico, corre a Ribeira dos Socorridos, à procura do oceano, que só atinge em Câmara
de Lobos.
Muito cedo ali se foram alojando escravos fugidos dos povoados, bem como homens
escapados à acção da justiça. Nos fins do século XV, já havia no Curral população fixa.
Em 1480, como já foi dito, João Gonçalves da Câmara fez a compra do Curral que,
pelas suas dimensões e importância, passou a designar-se Curral Grande, o qual, em 1497, foi
entregue ao mosteiro de Santa Clara como dote das filhas do donatário que nessa data ali
entraram, D. Elvira e D. Constança290, passando então a designar-se Curral das Freiras.
À população desta importante propriedade, como zona pecuária primeiro, e granja
agrícola depois, prestou o mosteiro a necessária atenção, pois se sentia, de certo modo,
responsável pela assistência religiosa de quantos ali residiam. Por esse motivo, na primeira
metade do século XVII, Frei António da Porciúncula empenhou-se na construção duma capela
286
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, L 29.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, L 29.
O termo da inscrição era como se segue: “Aos 11 dias do mês de Maio de 1750, se constituiu escrava de Nossa Senhora do Monte a R.M.
abadessa Francisca dos Querubins, obrigando-se a pagar de esmola cada um ano 200 réis, de que fez este termo que assinou, dando de
entrada 200 réis”. Em termos de igual texto se inscreveram religiosas professas, irmãs e servas ao longo de muitas dezenas de páginas, com a
única diferença de que a quota a que se comprometiam era de 50 réis. (ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 29).
289
Elucidário Madeirense, I, p. 339.
290
Elucidário Madeirense, I, pp. 310 e 340.
287
288
95
da invocação de Santo António, que fez a expensas suas, embora ficasse depois a pertencer ao
mosteiro291. Se não antes, pelo menos em 1644, estava “acabada e preparada para nela se
dizer Missa”292.
A capela de Santo António teve os seus capelães privativos com residência mais ou
menos fixa.293 À comunidade de Santa Clara cabia a obrigação de providenciar quanto às
alfaias necessárias ao culto religioso.
A população do Curral, embora pertencente à freguesia de Santo António do Funchal,
foi-se habituando a uma certa autonomia. Sabe-se que em 1678 era capelão do Curral das
Freiras o P. Cristóvão Vieira, o qual fazia todo o serviço religioso e recebia os visitadores
episcopais.
Em 1756, aquando da visita feita pelo Dr. António Mendes de Almeida, a comunidade
de Santa Clara do Funchal foi alertada sobre a atenção a prestar àquela população e à capela
de Santo António. De facto, o referido visitador, deixou exarado no arquivo da paróquia que
se avisasse a abadessa de Santa Clara para prover aquela capela das alfaias necessárias ao
culto, conforme era a sua obrigação294.
3.2. Cedência do terreno para a construção da igreja de Nossa Senhora do Livramento
Diante do aumento populacional do Curral e da importância que aquela zona ganhou ao
longo do século XVIII, sentiu-se a necessidade de criar ali uma paróquia que, ganhando
autonomia relativamente à de Santo António, se organizasse e desenvolvesse. Esta urgência
viam-na os moradores do Curral e da Fajã dos Cardos e dela se apercebeu a autoridade civil e
eclesiástica.
A 11 de Maio de 1782, o Ministério da Fazenda Real, por carta de Alberto Rodrigues
Lage, informava o bispo do Funchal de que “ os moradores de Fajã dos Cardos e Ribeira das
Freiras da freguesia de Santo António, distantes cinco léguas da freguesia, não tendo pasto
espiritual, de sacramentos e missa, sofriam com isso grande vexação, pelo que, tinham
requerido e pedido a erecção duma nova paróquia”295.
Entretanto, como o despacho de tal pedido dependia da rainha, D. Gaspar Afonso da
Costa Brandão, bispo do Funchal, enquanto se iam dando os passos necessários para a criação
da nova paróquia, “ deveria pensar no acrescento do alpendre da ermida existente, para
caberem mais pessoas e ainda na casa para o capelão que aí deveria habitar”296. Em 1782 o
Curral das Freiras passou a ter um serviço paroquial quase independente da freguesia de Santo
António pelo que a sua vida espiritual melhorou consideravelmente. Tinha agora condições
novas.
A 24 de Julho de 1787, foi lavrada uma escritura pelo Tabelião de Notas, António
Rodrigues da Costa, pela qual o mosteiro de Santa Clara do Funchal fazia a doação do terreno
necessário para a construção da igreja matriz, residência do respectivo pároco e seu passal.
Naquela data, na presença da Madre Paula Luísa de Santa Teresa, abadessa, e mais seis
religiosas297, de Frei Luís da Conceição, Custódio Provincial, e de um representante da
291
Arquivo Histórico da Madeira, IX, 1951, p. 248.
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 18 do Cartório do Convento de Santa Clara do Funchal, fol. 133 v., ano de 1644;
Arquivo Histórico da Madeira, 9 (1951) 248-249: “Título da Fazenda que está na Ribeira dos Acorridos que vulgarmente se chama o Curral
das Freiras”. O Elucidário Madeirense refere que foram as freiras do mosteiro de Santa Clara que mandaram construir no Curral a capela de
Santo António que, segundo a mesma fonte, “remonta talvez aos fins do século XVI (III, p. 253). Será necessário corrigir esta informação.
293
Elucidário Madeirense, III, p. 253.
294
Elucidário Madeirense, I, p. 340.
295
ARM, Câmara Municipal do Funchal, L 4º do Tombo da Câmara, fol. 205, em microfilme; AHDF, L 77, fol. 205: Manuela Santos,
“Notas sobre a Freguesia do Curral das Freiras” in Girão, 2 (1989) 39-42.
296
Manuela Santos, art. cit. , in Girão, p. 40.
297
Além do Tabelião e do Custódio Provincial, assinaram o instrumento de doação as Madres: Paula Luísa de Santa Teresa, abadessa;
Joaquina Ana do Desterro, vigária da casa; Francisca Teresa de Jesus, discreta; Petronila Rosa de São Pedro, discreta; Ana Quitéria de São
João, mestra da ordem; Antónia Caetana de Santa Teresa, imediata.
292
96
diocese, o P. Nicolau Francisco de Carvalho Maysingh, fez-se o instrumento de doação
gratuita em favor da diocese. “Por esse instrumento, elas, senhorias, dão licença e dotam
gratuitamente à Ex.ma. e Rev.ma Mitra da porção de terra, quanto for precisa e necessária
para edificação da dita igreja e casa do capelão do dito Curral (...) segundo seu orçamento, no
lugar onde mais útil for e junto da casa do Reverendo Capelão largam seis alqueires de terra
para seu passal, sendo este passal donativo que fazem ao Reverendo Capelão em benefício
dos moradores do mesmo lugar, sendo obrigatório, tão-somente, os Reverendos Capelães do
mesmo lugar, contribuírem cada ano, por dia de Santa Clara, em doze de Agosto298, com um
frango, pelos seis alqueires de terra do referido passal, para reconhecimento de senhorio do
mesmo referido passal e de futuro servir no conhecimento do benefício que o mesmo seu
mosteiro fez ao dito Reverendo Capelão”299. Ficavam, pois, os respectivos capelães, segundo
o mesmo documento, com obrigação, puro gesto simbólico, de todos os anos, na festa de
Santa Clara, dar um frango ao mosteiro. E, quanto ao terreno para a igreja e casa do capelão,
continua o documento, “o dão gratuitamente por condescendência com a vontade e gosto do
Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, mas sempre o seu mosteiro ficará sendo senhorio do
Padroado (...) perpetuamente”300. Lembra este interessante e significativo gesto, aquele outro
de São Francisco de Assis e seus irmãos, que todos os anos levavam um cestinho de peixes ao
abade do mosteiro do Monte Subásio “em sinal de pobreza e humildade”, pela cedência da
capelinha da Nossa Senhora dos Anjos, também chamada Porciúncula, de cujo uso os
franciscanos desfrutavam301.
Esta doação à diocese do Funchal, em favor dos moradores do Curral, que passou a ter
igreja própria, ganhando autonomia como paróquia, foi gesto de comunhão eclesial e de amor
à população daquela localidade que servia as religiosas, como muito bem o reconheceu o
bispo do Funchal ao agradecer “às ditas Senhoras Doadoras o grande benefício que fazem aos
moradores daquele lugar”302.
3.3.
Erecção da paróquia do Curral das Freiras e Fajã dos Cardos ou paróquia
de Nossa Senhora do Livramento
De imediato, D. José da Costa Torres fez chegar a D. Maria I a notícia da cedência, por
parte do mosteiro de Santa Clara, do espaço necessário para a construção da igreja matriz,
residência do pároco e seu passal, insistindo na urgência da criação de uma paróquia
independente, relativamente a de Santo António303.
O processo para a sua criação que, por ordem régia de 21 de Fevereiro de 1790, passou
pela Mesa de Consciência e Ordens no dia 1 de Março daquele ano, chegou a seu termo a 17
do mesmo mês, dia em que a rainha deu o seu beneplácito ao respectivo documento304. Nessa
data, D. Maria assim se dirigiu ao bispo do Funchal: “Eu Rainha (...) faço saber a Vós,
Reverendo Bispo da Ilha da Madeira, do meu Conselho, que, tendo entendido que os
moradores do Curral das Freiras e Fajã dos Cardos não podem receber os socorros espirituais
298
A festa de Santa Clara, que actualmente se celebra a 11 de Agosto , tinha então lugar a 12 do referido mês.
O Réclame, 30 de Novembro de 1890: Instrumento de Doação lavrado pelo Tabelião de Notas, António Rodrigues da Câmara Costa, a 24
de Julho de 1787, no locutório do real mosteiro de Santa Clara. A escritura de doação foi feita em 1787 e não em 1784, como se lê no
Elucidário Madeirense ( I, 340), na revista Girão, (2 (1989) 41-42) e noutras publicações. O Réclame publicou o documento na íntegra.
300
O Réclame, 30 de Novembro de 1890 : Instrumento de doação (...).
301
Legenda Perusina, 8, in FF I, p. 910.
302
O Réclame, 30 de Novembro de 1890. Instrumento de doação(...).
303
O P. Fernando Augusto da Silva, no seu livro Subsídios para a história da Diocese do Funchal, apresenta nada menos que sete capelas e
duas igrejas paroquiais dedicadas a Nossa Senhora do Livramento. As capelas situam-se nas freguesias do Caniço, Ponta do Sol, Senhora do
Monte, São Vicente, Funchal (para uso privativo da antiga cadeia), Estreito de Câmara de Lobos e Estreito da Calheta. As duas igrejas são
matriz das paróquias das Achadas da Cruz e do Curral das Freiras (pp. 244 e 326 - 327).
304
AHDF, paróquia do Curral das Freiras, caixa 94 , fol. 4 v - 5: Petição do Padre Manuel Fernandes Pitta, Cura da paroquial igreja de
Nossa Senhora do Livramento, do Curral das Freiras, e Fajã dos Cardos, pela qual pretende que o reverendo vigário de Santo António se não
intrometa na sua jurisdição. Este manuscrito contém uma cópia do alvará régio de D. Maria I, dado em Lisboa a 17 de Março de 1790.
299
97
15. Igreja de Nossa Senhora do Livramento do Curral. Em
terreno cedido pelo mosteiro de Santa Clara, levantou-se a Igreja
de Nossa Senhora do Livramento que ainda hoje serve a
população.
sem muitas dificuldades do pároco de Santo António”305, “Hei por bem acordar minha Real
Permissão e Beneplácito, para que os ditos moradores se desmembrem e se separem da
paróquia de Santo António, que nas suas aldeias seja erecta um nova paróquia, que se deverá
considerar filial da sobredita”.306
16. Frontispício da igreja. Por sobre a artística porta e
janela de cantaria branca, são visíveis as armas régias.
Ao novo cura “eram concedidos pelo alvará régio oitenta mil reis em dinheiro, trinta
alqueires de trigo e meia pipa de vinho”. Este alvará, dado em Lisboa, em 17 de Março de
1790, ordenava a rainha que “fosse registado nos livros da igreja e da Câmara Eclesiástica”.307
Esta nova igreja bem cedo começou a ser agraciada com mercês régias. Por uma petição
que em 1812 o cura da paróquia da Nossa Senhora do Livramento do Curral, o P. Manuel
Fernandes Pitta, dirigiu a D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde, vigário apostólico do
Funchal,308 se sabe que, desde há alguns anos, a Coroa vinha concedendo à nova paróquia
cera e azeite: “concedo duas arrobas de cera e trinta e seis canadas de azeite para a freguesia
da Nossa Senhora do Livramento do Curral das Freiras,”309 lê-se naquele manuscrito.
A construção da igreja matriz da nova paróquia, segundo Alberto Artur Sarmento, teria
tido início em 1784. Este autor, na sua obra Freguesias da Madeira, falando do Curral, assim
se expressa: “(...) foi elevado a paróquia, incluindo a Fajã dos Cardos, por alvará de D. Maria
I, de 27 de Março de 1790, sob a invocação de Nossa Senhora do Livramento, na igreja de
que havia seis anos se iniciara a construção, pois incapaz para o culto se achava já a vetusta
capelinha de Santo António”.310
Não sendo fácil precisar a data exacta do fim das obras da nova igreja, sabemos,
contudo, pela dedicatória bem visível na cantaria da artística janela que se sobrepõe à porta
305
AHDF; Paróquia do Curral das Freiras, caixa 94 , fol. 4v - 5v: Petição do Padre Manuel Fernandes Pitta, Cura da paroquial igreja de
Nossa Senhora do Livramento (...). Mas, segundo a referida petição, não era só o pároco que tinha dificuldade em servir os habitantes do
Curral, eram estes também que só com muito custo podiam chegar à igreja matriz de Santo António, ou à residência paroquial, quando essa
necessidade se lhes oferecia. A rainha decidiu-se, pois, pela criação da paróquia do Curral. Na contracapa do Livro de Baptizados do Curral
das Freiras, iniciado em 1788, que o AHDF guarda nos Índices, caixa 204, encontra-se averbado, por equívoco, que a paróquia foi criada a
27 de Março de 1790.
306
AHDF, Paróquia do Curral das Freiras, caixa 94, fol. 4 v–5 : Petição do Padre Manuel Fernandes Pitta, Cura da paroquial igreja de Nossa
Senhora do Livramento (...). Segundo o Index da Provedoria, a criação da nova freguesia de Nossa Senhora do Livramento foi feita “na
Ermida de Santo António do Curral das Freiras e Fajã dos Cardos” (ARM, Index da Provedoria, fol. 116 v: Alvará da criação da freguesia do
Curral das Freiras, 17 de Março de 1790), dado que a construção da igreja de Nossa senhora do Livramento ainda não estava concluída.
307
AHDF, Paróquia do Curral das Freiras, caixa 94, fol. 5: Petição do Padre Manuel Fernandes Pitta, Cura da paroquial igreja de Nossa
Senhora do Livramento (...).
308
D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde, natural do Porto, professo da Ordem de Santo Agostinho e Arcebispo de Meliapor, governou a
diocese do Funchal, de 1811 a 1819, na qualidade de vigário apostólico.
309
AHDF, Paróquia do Curral das Freiras, caixa 94, fol. 2v.: Petição do Padre Manuel Fernandes Pitta, Cura da paroquial igreja de Nossa
Senhora do Livramento (...).
310
Alberto Artur Sarmento, Freguesias da Madeira, 2ª edição, Funchal, 1953, p. 63. Alberto Artur Sarmento refere o alvará a “27 de Março
de 1790” (op. cit., p. 63). Trata-se dum pequeno equívoco.
98
principal, que estaria concluída em 1793, pois foi nesse ano que D. Maria I dedicou a igreja à
Rainha do Céu e da Terra, Virgem do Livramento.311 O conteúdo da inscrição é o seguinte:
À
À
RAINHA
DO CÉU E DA TERRA
VIRGEM
DO LIVRAMENTO
DEDICA
MARIA PRIMEIRA RAINHA FIDEL.
ANNO MDCCLXXXXIII
17. Dedicatória à Virgem do Livramento. Por sobre a cornija da porta, encontra-se
a dedicatória da rainha D. Maria I, de l793.
Na fachada, por sobre a janela, a dar valor histórico à igreja de Nossa Senhora do
Livramento, ostentam-se em alto-relevo, com expressivo requinte estético, a coroa régia de D.
Maria e as armas de Portugal.
Certo é que, se não antes, pelo menos a partir de 1793, o Curral passou a dispor da bela
igreja de Nossa Senhora do Livramento, cuja festa se reveste de encanto pela manifestação de
fé e culto das tradições ancestrais, tão cheias de significado religioso e histórico.
Uma dúvida, porém, impõe-se-nos: a pedra onde está gravada a inscrição que, pelas
fracturas nos cantos superiores, parece já ter sido usada e onde a palavra RAINHA e
ANTÓNIO se sobrepõem, não teria pertencido à capela de Santo António? “ Por incapaz para
o culto,” como acima ficou dito, não teria sido demolida aquando da construção da nova
igreja? Tudo leva a crer que sim. Essa é a hipótese sustentada pela população do Curral312.
311
Deverá corrigir-se o conceito de que a igreja matriz de Nossa Senhora do Livramento da paróquia do Curral “é construção dos primeiros
anos do século XIX”, conforme se lê em Fernando Augusto da Silva, Diocese do Funchal. Sipnose Cronológica, Funchal, 1945, p. 92,
Arquivo Histórico da Madeira, 20 (1997) 88 e revista Girão, 2 (1989) 41-42.
312
É voz corrente no Curral que a capela ficava mais abaixo, no sítio ainda hoje chamado “o sítio da capela” e que aquela pedra veio de lá.
99
CAPÍTULO VI
MOSTEIRO DE SANTA CLARA,
CENTRO DE IRRADIAÇÃO DA ORDEM
Em breve, no mosteiro de Nossa Senhora da Conceição do Funchal formou-se uma
comunidade numerosa e rica em virtude. Pôde, pois, ser centro de irradiação da Ordem para
os Açores, o arquipélago franciscano, como lhe chama Bartolomeu Ribeiro, dando-se o
honroso e significativo facto de terem sido chamadas algumas religiosas deste convento para
iniciar a fundação e reforma de outros”313, diz Fernando Augusto da Silva.
Como único que era nas ilhas atlânticas314, recebia não só as nobres da Madeira e
Porto Santo mas também das ilhas dos Açores, pois que as mais distintas linhagens da
Madeira, como os Câmaras, Noronhas, Teives, Bettencourt e outras, proliferavam igualmente
naquele arquipélago.
Quando em 1512, por bula pontifícia, o recolhimento da Praia se transformou em
mosteiro da Ordem de Santa Clara, com o nome de mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação
ou Senhora da Luz, não teriam ido do Funchal as fundadoras?
Nos anos seguintes, dos dezasseis mosteiros da Ordem de Santa Clara fundados nos
Açores, os três primeiros têm a sua origem a partir da Madeira. São eles:
- O mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Vale de Cabaços (Ilha de São Miguel),
em 1522;
- O mosteiro de Jesus da Praia (Ilha Terceira), em 1534;
- O mosteiro de Jesus de Ribeira Grande (Ilha de São Miguel), em 1555.
Posteriormente outros nasceram a partir destes.
No século XVII, o mesmo mosteiro projectou-se para Lisboa com a fundação do real
mosteiro da Nossa Senhora da Esperança, em 1535, e, seguidamente, a partir de madeirenses
de Nossa Senhora da Esperança, para Alenquer em 1555.
1. Irradiação para os Açores
1.1. Mosteiro de Nossa Senhora da Luz, da Praia (Ilha Terceira)
Doada a Ilha Terceira, foi seu primeiro capitão, por carta passada em Silves a 2 de
Março de 1450, Jácome de Bruges. A ele se juntou Diogo de Teive, da Ilha da Madeira, a
quem o infante D. Henrique, havia passado alvará para o efeito.315 Depois de graves
desinteligências entre eles, que se estenderam por dezenas de anos, e da divisão da Ilha em
duas capitanias, vemos como capitão da Praia Antão Martins que, em 1483, promoveu a
fundação de um recolhimento junto da capela de Nossa Senhora da Luz que ele fundara316.
Segundo Frei Diogo das Chagas e Drummond, deu começo ao recolhimento, “ o
primeiro que se fez e fundou neste mar Oceano”317, D. Catarina d’Ornelas de Teive, filha de
Diogo de Teive Ferreira (neto de Diogo de Teive, da Madeira) e de D. Inês Machado de
313
Fernando Augusto da Silva, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, I, p. 174.
Nas Canárias, o mosteiro mais antigo, também de Clarissas, foi fundado em La Laguna (Tenerife), em 1547, cinquenta anos após a
entrada das primeiras Clarissas no mosteiro de Santa Clara do Funchal; Omaechevarria, ofm, Las clarisas através los siglos, Madrid, 1972,
p. 147 e Joseph de Viera y Cavijo, Noticias de la historia general de las islas Canarias, II, Santa Cruz de Tenerife, l982, pp. 784-786.
315
Francisco Ferreira Drummond, Anais da Ilha Terceira, I, Porto, 1981 (reimpressão fac-simile da edição de 1850), pp. 23 - 26.
316
Drummond, op. cit., I, p. 78.
317
Frei Diogo das Chagas, Espelho cristalino em jardim de várias flores, 1989, p. 234.
314
100
Andrade318, utilizando para isso a própria casa de seus pais. O recolhimento, segundo
Bartolomeu Ribeiro, teria sido inaugurado em 1483. Ali entraram muitas nobres, senhoras que
se empenharam na prática das mais excelsas virtudes. Segundo o mesmo autor, em 1512, teria
sido transformado em mosteiro professo, por bula pontifícia, recebendo o nome de mosteiro
de Nossa Senhora da Luz ou da Encarnação319.
De onde poderiam ter saído as fundadoras e mestras deste primeiro mosteiro dos
Açores, senão da Madeira? A proximidade territorial e os laços familiares que uniam os
Ornelas e Teives dos Açores à Pérola do Atlântico, certamente a isso o conduziriam. Apesar
do silêncio das fontes a que nos reportamos, formulamos a hipótese de que ao mosteiro de
Santa Clara do Funchal cabe o mérito daquela primeira fundação da Ordem de Santa Clara de
Assis em terras açorianas.
Segundo o cronista Frei Agostinho de Monte Alverne, as religiosas só usavam roupas
de “estopa muito grosseira (...) não tinham criadas, mas às semanas se serviam umas às
outras, enfim, um mosteiro onde se criavam pérolas finas”320, entre as quais a Madre Catarina,
a fundadora, as Madres Clara de São Francisco, Helena da Cruz, Francisca de São Boaventura
e muitas outras321.
Nos tremores de terra que se verificaram em Abril-Maio de 1614, o edifício ruiu, tendo
as religiosas saído para Angra, onde estiveram até 1686, ano em que, estando construído um
novo mosteiro na Praia, para lá passaram no dia 1 de Julho “em procissão muito solene”322.
Mapa 3
1.2. Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Vale de Cabaços (Ilha de
São Miguel)
Na costa meridional da Ilha de S. Miguel, muito perto da vila de Água de Pau, entre
rochas vulcânicas batidas pelo Atlântico, espraiaa-se um formoso vale, outrora designado
Vale de Cabaços (actual Vale da Caloura), “em virtude de se encontrar profusamente coberto
de grandes flores brancas, de uma erva denominada legação, pertencente à família das
liliáceas, que lembram flores de cabaças”.323 Ali havia de levantar-se o mosteiro de Nossa
Senhora da Conceição, a que Petronila da Mota e Isabel Afonso deram começo.
Petronila da Mota, filha de Jorge da Mota, nobre e virtuoso cavaleiro da Ordem de Aviz,
morador em Vila Franca do Campo, “tão avessa ao mundo como afectuosa ao silêncio do
318
Drummond, op. cit., I, p. 78. Segundo Drumond, o Livro do Tombo da Câmara da Praia, fol.144 e ss., refere esta fundação; Frei Diogo
das Chagas, op. cit., p. 308.
319
Bartolomeu Ribeiro, “Açores, Arquipélago Franciscano”, in Colectânea de Estudos, 5 (1949) 61; Henrique Pinto Rema, ofm, “A Ordem
Franciscana nos Açores (no passado e no presente)”, Itinerarium, 42 (1996) 510. Segundo o cronista franciscano Fr. Agostinho de Monte
Alverne, o breve papal e mais papeis ficaram enterrados aquando do tremor de terra de 24 de Maio de 1614 (Frei Agostinho de Monte
Alverne, Crónicas da Província de São João Evangelista das Ilhas dos Açores, III, 1988, p. 127) ; Maria de Deus Beites Manso “ Memórias
para a História dos Conventos do Arquipélago dos Açores”, in Islenha, 14 (1994) 40.
320
Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III, p. 127.
321
Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III, p. 127 - 131.
322
Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III, p. 132; Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 510.
323
António de Albuquerque Jácome Corrêa, O Convento da Caloura, Lagoa ( Açores), Caloura, 1996, p. 15. O mosteiro actualmente ali
existente recebeu este nome, bem como o respectivo vale, porque os religiosos que o habitaram, a partir de 1632, se chamavam calouros (op.
cit. p. 15). O autor desta valiosa obra histórica é o actual proprietário do imóvel.
101
retiro”324 e uma amiga, Isabel Afonso, que seu pai recolhera em sua casa, desejando
consagrar-se ao Senhor, começaram a fazer vida de “oração, a jejuar, visitar as igrejas,
vestidas de burel e indo descalças; suas praticas eram falar em Deus, em coisas do Céu que,
quantos as ouviam, se edificavam”.325 Após o terremoto de 22 de Outubro de 1522, a
conselho do pregador dominicano Frei Afonso de Toledo326, Petronila, acompanhada da
amiga e de quatro meninas, suas irmãs, saíram de casa e recolheram-se na ermida de Nossa
Senhora da Conceição de Vale de Cabaços. Seu pai, acompanhado de alguns homens
honrados, apressou-se a ir buscar as filhas, mas não conseguindo demover Petronila do seu
propósito, apenas fez regressar a casa as quatro irmãs mais novas.
“A Câmara e o povo daquela vila de Água de Pau as visitava com muito amor e lhes
fizeram, à sua custa, uma casa pequena, onde ambas se recolheram com as quatro
meninas”,327 que o pai, a instâncias de Petronila, lhes restituíra. Cerca de um mês depois
juntaram-se-lhe duas senhoras mais maduras, honradas e ricas, também de Vila Franca do
Campo.
Rui Gonçalves da Câmara, terceiro capitão donatário da Ilha de São Miguel e “segundo
neto de João Gonçalves Zarco”, segundo Noronha, “movido de zelo e devoção a todas tomou
sob a sua protecção, pelo que para elas edificou umas casas junto à ermida, com bom espaço
de terra que marcou para cerca e, por este modo, estabeleceu clausura”328, ficando ele e a sua
mulher, D. Filipa Coutinho, por seus padroeiros, para que fosse mosteiro com todos os
privilégios. Para melhor cuidar dele, mudou-se com a família para junto da ermida de Vale de
Cabaços, sendo ele e sua mulher quem, à sua custa, as sustentavam329.
O capitão, dado o seu parentesco com os Câmaras da Ilha da Madeira e o seu
conhecimento do mosteiro de Santa Clara onde tinha, segundo o cronista Frei Fernando da
Soledade, “muitas parentes suas”, fez diligências para que daquela casa religiosa fossem
enviadas algumas fundadoras para São Miguel, “para ali plantarem os santos costumes e
cerimónias religiosas”330. Uma delas, a Madre Maria de Cristo, natural da Madeira, filha de
pais ilustres, Afonso Correia de Sousa e D. Helena Gonçalves da Costa, veio a ser, mais tarde,
a grande impulsionadora do mosteiro de Jesus da Ribeira Grande em São Miguel331.
Quando já eram um grupo capaz de formar uma comunidade, tratou o capitão de lhes
alcançar a licença da Sé Apostólica, pelo que duas delas se teriam dirigido a Roma a solicitar
o breve de fundação. O Papa Clemente VII (não Paulo III, como se vem afirmando332)
ofereceu-lhes, segundo é tradição, a imagem do Senhor Santo Cristo, a que os açorianos,
desde logo, votaram grande devoção.333
324
Fernando da Soledade, op. cit., IV, L II, pp. 209 - 210.
Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, pp. 67-68.
Henrique Pinto Rema, ofm, op. cit., p. 511. Há alguma dúvida quanto ao ano da fundação, que teria sido em 1522 ou 1523. Os autores
divergem. Nós optamos pela primeira data, que nos aparece mais aceitável.
327
Agostinho de Monte Alverne, ofm, op. cit., II, p. 69.
328
Fernando da Soledade, ofm, op. cit., IV, L II, pp. 209 - 210; Henrique Pinto Rema, ofm, op. cit., p. 511.
329
António de Albuquerque Jácome Corrêa, op. cit., p. 18; Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p. 71.
330
Fernando da Soledade, op.cit., III, p. 354; Noronha, op. cit., p. 273.
331
Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p. 327.
332
Consta ter sido a imagem do Senhor Santo Cristo oferecida pelo Papa Paulo III às duas freiras que, de Vale de Cabaços, foram a Roma
impetrar a bula apostólica para a fundação do mosteiro. Todavia, deve ter sido Clemente VII (Papa de 26 de Novembro de 1523 a 25 de
Setembro de 1534) e não Paulo III (Papa de 3 de Novembro de 1534 a 10 de Novembro de 1549), o autor daquela oferta. Se não vejamos:
tendo ido as primeiras religiosas para aquela ermida em 1522 ou 1523, segundo alguns autores; tendo o capitão Rui Gonçalves da Câmara
obtido, por bula pontifícia, licença não só para a erecção do mosteiro mas também para ele e sua mulher serem seus padroeiros, junto do qual
viveram dez anos e nele fizeram obras; tendo o Núncio Apostólico em Portugal, legado à latere do Papa Clemente VII, dado breve de
fundação ao mosteiro de Santo André ( Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p.71 ; Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 512), iniciada em
1532, com dezoito freiras saídas do mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Vale de Cabaços, como poderia ter sido Paulo III o oferente
da referida imagem? Pelos considerandos anteriores, julgamos poder afirmar que a imagem do Senhor Santo Cristo só podia ter sido
oferecida pelo Papa Clemente VII. Esta é também a opinião de António Albuquerque Jácome Corrêa (op .cit., p. 22), bem como de Hugo
Moreira (António Albuquerque Jácome Corrêa, op. cit., p. 22, nota 14).
333
António de Albuquerque Jácome Corrêa, op.cit.., p. 22.
325
326
102
Cerca de oito ou dez anos mais tarde, estando o mosteiro já fundado, com bula
apostólica, freiras professas, abadessa e suas oficiais, sendo vinte e sete entre professas e
noviças, segundo Agostinho de Monte Alverne, os seus parentes pediram que as mudassem
dali, pois, estando junto do mar, longe dos moradores da vila, corriam perigo por causa dos
corsários. Um grupo de dezoito, entre professas e noviças, partiu para Vila Franca onde, em
1532, fundou o mosteiro de Santo André334 e as restantes, em número de doze, a 23 de Abril
de 1541, fundaram o mosteiro da Esperança, em Ponta Delgada.335 Estas religiosas levaram
consigo a Imagem do Senhor Santo Cristo, a que o Arquipélago do Açores, consagra, ainda
hoje, grande devoção, como acima se disse.
1.3. Mosteiro de Jesus da Praia
O mosteiro de Jesus de Praia da Vitória, na Ilha Terceira, foi autorizado por breve
apostólico do Núncio no Reino, de 23 de Fevereiro de 1534, mas só fundado na segunda
metade do século XVI. Foi sua fundadora D. Beatriz de Noronha que, por muito piedosa, o
referido breve autorizava a transformar em mosteiro as casas onde morava na Praia e a ir
buscar as fundadoras ao mosteiro da Conceição do Funchal, onde tinha duas irmãs professas,
as Madres D. Joana da Cruz e D. Catarina de Jesus; em função de breve apostólico, estas
religiosas foram retiradas para a ilha Terceira, acompanhadas de Catarina da Trindade,
também religiosa e uma servente do mesmo mosteiro da Conceição336.
Entraram como noviças três irmãs da fundadora, D. Brianda, D. Inês e D. Francisca de
Nazaré337 e uma tia. Feitas eleições, foi nomeada abadessa a Madre Joana da Cruz, irmã mais
velha da fundadora. Em breve, outras senhoras das mais distintas linhagens se lhes juntaram.
O mosteiro era de jurisdição episcopal338. “Como não fosse fundado com lugares fixos, de
ordinário tinha oitenta religiosas”339.
Em consequência do tremor de terra de 24 de Maio de 1614, que destruiu os mosteiros,
conventos e igrejas da Praia e arredores, as freiras, a 31 de Maio do mesmo ano, saíram para o
mosteiro da Conceição de Angra “com mui honroso acompanhamento, assim de gente de
cavalo como de pé, acompanhadas dos principais da terra”340. Segundo Drummond, por
influência de Angra e protegidas pelo bispo D. Agostinho Ribeiro, as religiosas queriam ficar
em naquela vila, onde seria construído o novo mosteiro341. Não o consentiu, contudo, a
população da Praia que, recorrendo ao rei, obteve o alvará de 16 de Fevereiro de 1619, que
determinava o seu regresso à Praia, o que, no entanto, só sucedeu em meados de 1621.
1.4. Mosteiro de Jesus da Ribeira Grande
Honravam-se os grandes da terra em transformar as suas casas em mosteiros. Assim,
Pedro Rodrigues da Câmara e sua mulher, D. Margarida Bettencourt, obtiveram de Roma um
breve pontifício, datado de 8 de Fevereiro de 1543, que os autorizava a fundar um mosteiro
nas casas em que moravam. Quando lhe chegou às mãos, logo os padroeiros, a 16 de Março
de 1545, contrataram um mestre-de-obras, para construir a igreja. Pouco depois, em 1550,
fizeram a escritura do padroado, de dezoito moios de trigo, 200 cruzados em dinheiro, em
334
Apolinário da Conceição, op.cit., p. 147; Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 512.
Apolinário da Conceição, op. cit., p. 147; Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p. 71; Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 511- 512.
Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 513.
337
Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III, pp. 137-138.
338
Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 513; Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III, p. 137-138.
339
Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III p. 135 e ss..
340
Manuel Maldonado, Fenix Angrence, II, Angra do Heroísmo, 1989, II, p. 43.
341
Drummond, op. cit., I, p. 434.
335
336
103
foros, em cada ano342. “Estando o mosteiro feito, capaz de morarem freiras nele, no ano de
1555”, pela liberdade que o breve lhes dava, levaram para lá, como fundadoras”, “duas
religiosas de muita virtude e santidade e não menos nobreza, filhas de D. João de Noronha, da
Ilha da Madeira (...), D. Joana da Cruz e D. Catarina de Jesus, que já estavam no mosteiro de
Jesus da Praia da ilha Terceira”343.
Durante quatro anos, dedicaram-se cuidadosamente à formação das candidatas que
foram entrando, após o que houve necessidade de regressarem ao mosteiro de Jesus da Praia.
Ficando aquela casa religiosa sem abadessa, a fundadora, D. Margarida Bettencourt,
pediu a Frei António Taboado, comissário franciscano nos Açores, que, de acordo com o
breve de fundação, permitisse a passagem da Madre Maria de Cristo, madeirense, do mosteiro
de Vila Franca para o de Jesus de Ribeira Grande, como abadessa344. Saiu aquela religiosa
para o mosteiro de Jesus “acompanhada de muita gente honrada de cavalo e foi recebida na
vila com muitos repiques e alegria do povo”345.
Quando em 1563, sucessivos tremores de terra as obrigaram a recolher-se no mosteiro
da Esperança, em Ponta Delgada,346 “já eram vinte e uma professas e dez noviças”.347 Após o
seu regresso, a comunidade começou a crescer em número e em santidade, sendo, em meados
do século XVII, constituída por sessenta religiosas professas. Estas religiosas viviam com
grande perfeição no seu mosteiro, pelo que, “voando a fama da sua muita virtude”, mesmo
depois de haver um mosteiro em Ponta Delgada, “os nobres preferiam levar as suas parentes e
filhas a serem freiras no mosteiro de Jesus”.348
2. Projecção para o Continente
2.1. Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade da Esperança
O mosteiro da Nossa Senhora da Piedade da Esperança, uma fundação do Funchal,
surge no outeiro da Boa Vista, na zona da Madragoa, na actual Avenida D. Carlos I.
Foi D. Isabel de Mendanha, dos Abedaños de Biscaia que, já viúva do terceiro filho de
D. João de Meneses, senhor de Cantanhede, tomou a iniciativa de construir em Lisboa um
mosteiro de religiosas nobres, sob a Regra Segunda de Santa Clara, ou seja a Regra de Urbano
IV. Tendo falecido em 20 de Agosto de 1532, com as obras inacabadas349, foi D. Joana d’Eça
que prosseguiu tão piedoso empreendimento. Esta distinta senhora, filha de João Fugaça,
vedor do rei D. João III e de D. Maria d’Eça, sua mulher, era viúva de D. Pedro Gonçalves da
Câmara, filho do segundo donatário da Ilha da Madeira. A ela se deve a grande importância
que os Câmaras tiveram na corte, até à morte de D. Sebastião, por sua muita validade junto da
rainha D. Catarina.
Findas as obras, dotou o mosteiro com uma “larga quinta” que o marido tinha no Arco
da Calheta, Ilha da Madeira, onde fizera construir o templo de Nossa Senhora do Loreto “na
342
Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 518; Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p. 327.
Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p. 327.
344
Agostinho de Monte Alverne, op.cit.., II, p. 327.
345
Agostinho de Monte Alverne, op.cit.., II, p. 327.
346
Henrique Pinto Rema, op.cit., p. 518.
347
Agostinho de Monte Alverne, op.cit., II, p. 327.
348
Agostinho de Monte Alverne, op.cit., II, p. 272. Como informação complementar, diremos que, além dos seis mosteiros a que já fizemos
referência, se fundaram nos Açores até ao liberalismo mais onze: no século XVI, o mosteiro das Chagas (Praia da Vitória), Santo André
(Ponta Delgada), São João Baptista (Horta), São Gonçalo e Nossa Senhora da Esperança (Angra); no século XVII, o mosteiro de Nossa
Senhora da Conceição e São João Evangelista Ante Portam Latinam (Ponta Delgada), São Sebastião e Nossa Senhora da Conceição (Angra)
e Nossa Senhora da Glória (Horta); no século XVII, o mosteiro de Nossa do Rosário (Velas).
349
Fernando da Soledade, op. cit., IV, pp. 215 - 216; Noronha, op. cit., p. 271.
343
104
mesma arquitectura da Sé”, propriedade que as religiosas, algum tempo depois, venderam a
Francisco Vasconcelos Bettencourt350.
Para povoar o aristocrático mosteiro da Esperança, destinado a “freiras das famílias da
melhor nobreza”, pediu D. Joana d’Eça nove religiosas professas ao mosteiro de Santa Clara
do Funchal, as quais, uma vez no Reino, aguardaram no mosteiro de Santa Clara de Santarém
que as obras fossem concluídas. Segundo Frei Apolinário da Conceição, para sua erecção
“alcançou-se Breve Pontifício aos 16 de Janeiro de 1524”351; porém, Soledade, comsidera-as
entradas no mosteiro só a 25 de Outubro de 1535352. Neste dia, entraram no mosteiro da
Esperança para aí iniciarem a vida conventual, nove clarissas provenientes da Madeira: Inês
de Deus, que foi a primeira abadessa do mosteiro da Esperança, Maria da Assunção e Helena
de Jesus, filhas de D. Joana d’Eça, Bárbara de Assunção, Clara do Paraíso, Inês de São
Francisco, Ana de São José, Maria da Conceição e Ana do Espírito Santo. A elas se juntaram
mais duas cedidas pelo mosteiro de Santa Clara de Santarém353.
Estas religiosas deram no novo mosteiro frutos de santidade. Noronha não hesita em
dizer: “Chegaram a Portugal os odoríferos perfumes das virtudes com que se faziam
exemplares as grandes religiosas do mosteiro de Santa Clara do Funchal”354. Mais tarde, em
1538 ou 1539, o mosteiro do Funchal enriqueceu a comunidade com mais duas religiosas, as
Madres Ângela de Jesus e Filipa de Santo António, esta filha de D. Joana d’Eça, a quem a
comunidade da Esperança elegeu abadessa, findo o mandato da Madre Inês de Deus355.
A Madre Filipa, que já em 1535 devia ter saído para o mosteiro da Esperança, mas que a
comunidade de Santa Clara do Funchal reteve por causa do “muito valimento que sua mãe
tinha junto da corte de D. João III”, era rica em virtudes e muita santidade, como
testemunham as religiosas daquele mosteiro: “permitiu Deus nosso Senhor e foi servido que
esta divina planta viesse do seu Convento a este da Esperança, dar com a sua vida exemplo de
santidade, onde, com suma alegria e contentamento, foi recebida pelas religiosas e sua mãe
que, com grande alvoroço, a esperava.”356 As filhas de D. Joana, eleitas alternadamente,
mantiveram nas suas mãos o governo da comunidade desde 1539 a 1550, o que mostra a
influência que a nobre e distinta senhora, sua mãe, tinha como padroeira do mosteiro.
2.2. Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Alenquer
Para o mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Alenquer, fundado em 1553 e
povoado de religiosas em 1555,357 saíram do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade da
Esperança “duas fundadoras, netas do capitão João Gonçalves da Câmara”358. Trata-se das
Madres D. Ana do Espírito Santo e D. Maria da Assunção, esta filha de D. Joana d’Eça e de
Pedro Gonçalves da Câmara, que fora abadessa no mosteiro da Esperança em dois triénios:
1539-1541 e 1548-1550359.
350
João José Abreu de Sousa, op. cit., pp. 55 - 56.
Apolinário da Conceição, op. cit., p. 134.
352
Fernando da Soledade, op. cit., IV, cap. .XXVIII.
353
Soledade, op. cit., IV, cap. XXVIII. Temos algumas dúvidas quanto aos nomes das fundadoras. Os diversos autores não são unânimes.
Demos prioridade ao cronista Frei Fernando da Soledade.
354
Noronha, op. cit., p. 271.
355
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 11, fol. 182; Fernando da Soledade, op. cit., IV, pp. 218-219. Tratou da transferência
o licenciado Álvaro da Costa, corregedor com alçada na Ilha da Madeira, e Frei Nuno de Figueiredo que as foi buscar para as levar para o
Continente. A Madre Ângela de Jesus morreu em 1570, com mais de 100 anos “dando certíssimos sinais de santidade”, tendo sido mestra de
noviças.
356
BNL, Reservados, Colecção Iluminados, n.º 103. Livro da fundação, ampliação e sítio do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade da
Esperança, 1620 e ss.; Fernando da Soledade, op. cit., IV, cap. XXVIII.
357
Apolinário da Conceição, op. cit., p. 136. O mosteiro de vila de Alenquer que Frei Apolinário da Conceição designa mosteiro de Nossa
Senhora da Conceição, aparece em João José Abreu de Sousa, com o nome de mosteiro de Santa Clara (op. cit., p. 56).
358
Noronha, op. cit., p. 273.
359
João José de Abreu de Sousa, op. cit., p. 57.
351
105
3. Duas fundações do mosteiro de Santa Clara no Funchal
Em função do aumento populacional que se verificou na Madeira a partir de meados do
século XVII e do fervor religioso que na mesma época se acentuou, a Ilha viu nascer mais
dois mosteiros, fundados a partir da comunidade de Santa Clara do Funchal. São eles os
mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação, fundado em 1660, e o de Nossa Senhora das
Mercês, em 1667.
No início do século XIX, aquando da ocupação da Ilha pelos ingleses (1807-1814),
sendo o mosteiro da Encarnação requerido para aquartelamento das tropas britânicas, a
comunidade esteve incorporada na de Santa Clara durante sete anos, após o que regressou ao
seu mosteiro.
Dado que o estudo destes dois mosteiros constituirá o tema da II e III secção desta
Segunda Parte, limitamo-nos por agora a esta notícia sumária.
CAPÍTULO VII
DECADÊNCIA
1. Condicionalismo sócio-político
Em qualquer época não faltaram jovens que, chamadas a um lugar à parte, de oração e
de silêncio, procuraram alegre e fervorosamente louvar o Senhor. Os mosteiros foram, e são
ainda hoje, recantos de paz, onde as almas chamadas por Deus podem dilatar o seu coração
em oração silenciosa e em entrega amorosa a Deus e à humanidade. Porém, condicionalismos
sócio-políticos, tirando à jovem a possibilidade de decidir livremente o seu futuro, muitas
vezes desvirtuaram a sacralidade vocacional. E, digamos, na ilha da Madeira, esta pressão
social e familiar sentiu-se fortemente.
Segundo os costumes dos séculos XVI a XVIII, a prepotência dos fidalgos, a
conservação dos morgadios, a necessidade de um devoto abrigo e resguardo das filhas que
não casavam, a orfandade, a viuvez foram tantas vezes razões para os familiares encerrarem
nos mosteiros as jovens que, mesmo quando não professavam, ficavam como “ freiras
particulares” ou simplesmente como senhoras recolhidas. Acrescia que as meninas podiam ser
postas nos mosteiros com sete anos ou até menos, para ali serem “criadas para freiras”360, se
essa fosse a vontade dos seus progenitores.
Pelos motivos expostos e porque a partir do século XVI a cidade do Funchal se tornou
ponto de passagem das armadas de todo o mundo361 e nela apareciam os mais diversos
aventureiros, os mosteiros poderiam oferecer o necessário abrigo moral e social. Este contexto
impôs exigências e criou condicionalismos aos quais, mesmo representando um
desvirtuamento carismático, não foi possível fugir.
As muitas criadas, senhoras recolhidas, jovens educandas, rendas e propriedades,
lentamente, foram tirando o aroma de simplicidade, de pobreza evangélica, de austeridade de
vida. O mosteiro de Santa Clara caminhou a este ritmo. Contudo, honravam-se os nobres de
pôr as suas filhas em Santa Clara.
360
361
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, doc. avulso.
Oliveira Marques, op. cit., II, 1984, p. 258.
106
Não havia nobre na ilha da Madeira que se prezasse do seu brasão e pergaminhos, que
não mandasse pelo menos uma das suas filhas a professar no aristocrático mosteiro de Santa
Clara, tivesse ou não tivesse vocação.
Que admira, pois, que algumas delas, lesadas nos seus direitos familiares e postas nos
mosteiros sem vocação e contra a sua vontade, ali passassem a juventude e a vida entre
anseios e lágrimas? Vítimas de tradições e de costumes, de ambições de fidalgos e de
esbulhos de herdeiros, dramas e tragédias domésticas que as levaram à clausura, não podiam
sentir-se bem e felizes.362 E reparemos que este desvirtuamento, esta problemática vocacional
atingiu no Funchal proporções consideráveis.
Que admira, que, como refere o Elucidário Madeirense, “o primitivo fervor na
observância das regras conventuais e antiga austeridade de vida das freiras fosse pouco a
pouco resfriando?!...363
Nem nos admiremos de que algumas freiras e recolhidas levassem vida frívola e
mundana; nem sequer de que algumas aventuras como a do jovem alemão que, por causa da
fidalga ali recolhida, escalou a muralha, ficassem a manchar a história daquela casa
religiosa364.
2. Iregularidades internas
2.1 As criadas
Era habitual o mosteiro de Santa Clara, por ser de “freiras da mais alta nobreza insular”,
ter criadas para o serviço comum e o serviço particular das religiosas. E as chamadas criadas
particulares foram-se multiplicando. Embora este costume remonte aos primórdios da
fundação, intensificou-se e tornou-se abusivo nos séculos XVIII e XIX. Neste mosteiro, “há
uso e costume”, dizia um membro da comunidade, “haver criadas particulares para servirem
as religiosas dele e assistir-lhes nas suas doenças e necessidades”365. Para consegui-las
recorria-se a breves pontifícios que careciam de beneplácito régio e autorização do bispo da
diocese.
As criadas viviam no mosteiro em cela própria, sendo responsável pela sua alimentação
e vestuário um leigo, normalmente familiar da própria religiosa que, para tanto, contribuía
com uma quota anual366. Estas criadas serviam as religiosas nas suas necessidades e doenças e
até em estado de saúde. A quantas preparavam suas refeições!... Em 1799, as Madres
Francisca Maria das Mercês e Ana Emília da Santa Coleta solicitaram do Núncio Apostólico
um breve para terem criadas para as servirem nas suas “necessidades e moléstias”367. Alguns
anos depois, as Madres D. Ana Violante do Amor Divino, D. Emília Rosa da Encarnação e D.
Helena Maria da Exaltação e outras tinham criadas para lhes fazerem “os trabalhos
domésticos”368. Estas criadas multiplicaram- se no mosteiro, chegando no século XVIII a
mais de cem369.
Quadro nº.13 - Alguns dados estatísticos
362
Ilhas de Zargo, II, p. 717.
Elucidário Madeirense, I, p. 310
Ilhas de Zargo, II, p. 716
365
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso ; AHU, Madeira, doc. 261, Elucidário Madeirense, I, p. 310.
366
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, docs. avulsos.
367
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 1, doc. avulsos.
368
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 2 e 3, docs. avulsos.
369
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 2 e 3, docs. avulso.; Noronha op. cit., p. 264.
363
364
107
Ano
Servas ou Criadas
Mulheres de fora
Da Comunidade
1665
1668
4
Total
Particulares
59
63
89
89
1722
100
1764
33
41
74
1840
21
21
42
Fontes: AHU, Madeira, doc. 261; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara
F., caixa 2072, doc. avulso; AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso; Noronha, op.
cit., p. 264.
Não era fácil às freiras fidalgas renunciarem aos seus costumes nobres. Contudo, não
era esse o espírito da Regra de Urbano IV que, numa óptica franciscana, mandava cuidar das
doentes “com o máximo de solicitude. Que elas sejam servidas com ardente caridade,
benignidade e atenção (...) tanto no respeitante nos alimentos aconselhados pela doença, como
noutras necessidades”370.
Todas as criadas seriam facilmente dispensáveis, se os corações daquelas religiosas
estivessem revestidos de caridade e humildade evangélica, de simplicidade e fraternidade
franciscanas. Só à luz da época é possível entender, até certo ponto, que as freiras do mosteiro
de Santa Clara não pudessem cuidar das suas doentes com ternura e caridosa solicitude.
Complexos de “fidalguia”, comportamentos ditados pela ideologia reinante, para os quais
havia breves apostólicos e beneplácito régio!... Tempos que passaram.
2.2.
A presença de seculares dentro da clausura
Não eram, contudo, as criadas, ao serviço da comunidade ou particulares, as únicas
pessoas leigas no interior da clausura. Desde a origem do mosteiro se assistiu à presença de
senhoras recolhidas e de servas alojadas, que ali tinham morada habitual, como por exemplo
D. Constança, filha de João Gonçalves da Câmara, que entrou com as fundadoras. Em 1806,
D. Luísa Júlia de Freitas Esmeraldo, filha de Bento João de Freitas Esmeraldo, fidalgo
escudeiro e professo na Ordem de Cristo, de 30 anos de idade, solicitava a entrada no
mosteiro, como recolhida, onde pretendia “passar o resto da sua vida, pois que, ainda que não
seja religiosa, no mesmo estado de recolhida (...) pode servir a Deus”; ficava assim ao abrigo
dos problemas a que “no mundo está sujeita uma infeliz órfã”371. E outros casos poderíamos
referir, verificados antes e depois dos apresentados.
Também ao longo dos séculos se foi generalizando o costume de senhoras piedosas da
Ilha, geralmente nobres, se munirem de breves pontifícios com o respectivo beneplácito régio,
para poderem entrar nos mosteiros, por alguns dias, para sua consolação espiritual. Permitiase-lhes fazer oração com a comunidade, com ela tomar as refeições e ter recreação372. Estes
breves estendiam-se geralmente a dez anos, podendo as solicitadoras entrar duas, três e até
seis vezes cada ano e ali ficar os dias nele determinados, por vezes dez; exceptuavam-se as
épocas penitenciais, de maior recolhimento e silêncio, Advento e Quaresma. Estas senhoras
faziam-se acompanhar de algumas matronas e, por vezes, de alguma filha e criada. Tais
entradas tornaram-se bastante frequentes, acentuando-se nos séculos XVIII e XIX. D. Isabel
Ana de Sá Meneses Acciaiuoli, em 1796, obteve um breve de Sua Santidade para poder entrar
três vezes cada ano, pelo espaço de dez dias, não só no mosteiro de Santa Clara mas também
370
RU 4, XII, 22, in FF II, p. 355.
AHU, Madeira, doc. 1643.
372
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 2 e 3, docs. avulsos.
371
108
nos da Encarnação e Mercês, podendo levar consigo três matronas e uma das filhas, onde
ficariam de manhã até ao pôr do sol373. Em 1813, a senhora marquesa D. Joana Bernarda de
Lorena, e antes e depois dela muitas outras, gozaram deste mesmo privilégio374.
Também as mães das religiosas professas obtinham, por igual processo, licença para
entrar no mosteiro a visitar as suas filhas, permanecendo no interior da clausura por alguns
dias. Os breves apostólicos, com o beneplácito régio dos palácios de Queluz, Nossa Senhora
da Ajuda, Bemposta e até do Rio de Janeiro, multiplicaram-se. Houve mães que, “por amor
maternal e para sua consolação espiritual”, tiveram autorização para entrar “três vezes por
ano” pelo espaço de três dias, e até “uma vez por mês”, acompanhadas de outras filhas, tias,
sobrinhas e cunhadas375. Foi o caso da D. Joana Francisca de Carvalhal de Britto, D. Isabel
Jacinta Esmeraldo, viúva do capitão-mor Bento João de Freitas Esmeraldo, D. Maria Joaquina
Valéria, D. Maria Balbina, D. Ana Augusta de Ornelas e tantas outras. Esta nobre senhora, em
1828, obteve licença de entrar com suas sete filhas, cunhada e sobrinha, três de cada vez, três
vezes ao ano durante três anos, para visitar uma sua filha, Maria Clementina do Menino
Jesus376.
Poderíamos ainda acrescentar a presença de educandas, “moças nobres”, que chegaram
a ser muitas e que tantas vezes dificultavam a vida dentro da clausura!377.
É evidente que tudo ajudava ao afastamento da vida de austeridade com que se iniciara
aquele mosteiro. Está fora de dúvida que o secularismo se foi acentuando dentro da
comunidade e com ele muitos males nasceram.
2.3 O abuso dos locutórios: excesso de visitas
Não faltam escritores, alguns dos quais turistas, que, referindo-se ao mosteiro de Santa
Clara no final do século XVIII e século XIX, abordam outro aspecto degenerativo do carisma
próprio: o abuso dos locutórios.
No século XIX, sobretudo, as visitas tornaram-se não só frequentes como impróprias.
Em certos dias, escreveu Emily Shore em 1839, a afluência ao mosteiro chegava a atingir
duzentas pessoas. No trajecto dos turistas, a passagem por Santa Clara era ponto de referência.
Algumas destas visitas tinham como motivação o contacto com freiras de particular beleza
como eram as Madres Maria Clementina, Cândida Luísa, Genoveva, Helena Maria da
Exaltação e outras. Sobretudo Maria Clementina, loura e de olhos azuis, de maneiras
delicadas, mas afectadas e mundanas, suscitava admiradores.
As visitas começavam pela entrada no locutório e entrega de ofertas às freiras e
terminavam com a aquisição de recordações: florinhas feitas de penas pintadas, flores de cera,
gulodices ou compotas. As conversas eram longas, geralmente banais, onde não faltavam os
galanteios. Depois apareciam os doces e as bebidas. Na expressão de Júlio Dantas, “uma
espécie de chá das cinco, oferecido pelas freiras na grade grande, a todos os visitantes
assíduos”378 . Neste ambiente, mais mundano que conventual, gostavam as freiras de cantar
para os seus admiradores. Maria Clementina que, segundo o testemunho dos seus familiares,
aos cinquenta anos, com modos mais próprios da corte que do claustro, e vestindo não o burel
mas vestuário requintado, ainda ostentava a sua excepcional beleza, gostava de cantar
acompanhada de guitarra379.
373
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 1, doc. avulso.
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 3, docs. avulsos.
375
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 2 e 3, docs. avulsos.
376
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso
377
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso.; AHU, Madeira, doc. 4576 e 4578.
378
António Ribeiro Marques da Silva, Apontamentos sobre o quotidiano madeirense, Lisboa 1994, p. 125.
379
António Ribeiro Marques da Silva, op. cit., p. 105.
374
109
Decorria a primeira metade do século XIX. A autoridade régia facilitava o evoluir
destes desregramentos. Em 1836, o vigário capitular em cumprimento das ordens de D. Maria
II, comunicava às religiosas: “querendo a Rainha que gozem daquelas comodidades que, de
certo modo, suavizam a vida claustral”(...), achou por bem determinar “que no tempo do
Advento e Quaresma possam as religiosas desse convento gozar de parlatórios e comunicar
com os seus parentes e mais pessoas de seus conhecimentos”380. Não podendo a autoridade
eclesiástica subtraír-se ao cumprimento da ordem régia, mandou que a abadessa “convocasse
todas as suas súbditas e fizesse ler o referido ofício para que todas ficassem inteiradas do seu
conteúdo”381.
A abertura excessiva do mosteiro a olhos estranhos foi progressiva, atingindo maiores
proporções no século XIX, como vimos dizendo. Criou-se então um ambiente propício a
irregularidades a que o Padre Fernando Augusto da Silva se refere no Elucidário Madeirense.
O ambiente mundano, generalizado nos mosteiros da Europa, chegara à Madeira. O mosteiro
de Santa Clara do Funchal sofreu, em cheio, a influência desta ideologia. Também certas
sessões literárias e culturais que se vinham fazendo em certos mosteiros, mas que nada tinham
de religioso, eram nocivas. Contavam com a presença de homens de letras, alguns, escritores
de talento. Porém, tais encontros não passavam de exibições literárias e musicais, que em
nada contribuíam para o crescimento humano e espiritual da comunidade e que geralmente
degeneravam em veleidade. No mosteiro de Santa Clara estes círculos literários tiveram lugar.
Algumas freiras acompanhando esta evolução, tornaram-se leitoras entusiastas de obras
profanas como sucedeu com a Madre Maria Clementina, grande admiradora de Madame
Stäel.
2.4. Saídas da clausura
A partir das últimas décadas do século XVIII, as saídas da clausura tornaram-se
frequentes. A situação ia-se degradando progressivamente.
Em 1835 a Madre Maria Clementina do Menino Jesus fez saber à autoridade
eclesiástica “que tinha uma imperiosa necessidade de sair a tomar ares de campo por alguns
meses”382, por causa da moléstia de que sofria, diarreia crónica, conforme o atestado do Dr.
Luís Henriques, médico e cirurgião na cidade do Funchal383. Bem inserida no novo sistema
liberal, entendia que o vigário geral, “conforme o espírito do feliz sistema que nos rege e leis
novíssimas”384, sem recurso a outras autoridades, podia permitir a sua saída. Obteve, de facto,
licença de sair “e permanecer fora da clausura, entregue aos desvelos de seu irmão e tia, sem
limitação de tempo”385, enquanto durasse a doença.
Em 1836 a Madre Helena Maria da Exaltação pedia para “deixar a clausura por algum
tempo para procurar fora dela remédio profícuo à sua saúde”, pois necessitava de “dar
passeios, de ares de campo, de banhos de mar”. Com licença pontifícia e régia esteve, pois,
em casa do seu irmão, o capitão João Diogo de Meneses, durante quatro meses”386. Dois anos
mais tarde, alegando “ser direito natural de todo o indivíduo procurar os meios da sua
conservação”, obteve nova licença: “sair para casa de sua prima D. Maria Madre de Deus
380
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc avulso : Ofício do P. Jerónimo Álvares da Silva Pinheiro, provisor do bispado, de 22
de Novembro de 1836, para a abadessa do mosteiro de Santa Clara.
381
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4 , doc. avulso: Ofício do P. Jerónimo Álvares da Silva Pinheiro, (...) para a abadessa do
mosteiro de Santa Clara
382
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso: Carta da Madre Maria Clementina do Menino Jesus para o vigário geral do
bispado, de Abril de 1835.
383
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso: Atestado médico passado pelo Dr. Luís Henriques de 21 de Março de 1835.
384
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso: Carta da Madre Maria Clementina do Menino Jesus (...) para o vigário geral
do bispado, de Abril de 1835.
385
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso: Alvará de António Alfredo, vigário geral, de 11 de Abril de 1835.
386
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso.
110
Faria Bettencourt, assistente em casa de seu irmão, o morgado Joaquim José de Faria
Bettencourt, morador no Funchal, pelo tempo que for necessário para tratar da sua saúde”387.
E os casos iam-se repetindo. A Madre Augusta Carlota do Céu solicitou a D. Maria II o
beneplácito régio para o breve pontifício que a autorizava “a permanecer mais um ano com os
familiares em tratamento das suas moléstias”388.
O que é interpelante não é o facto de haver necessidade, reconhecida pelo médico, de
sair da clausura, para restabelecimento da saúde, mas sim a assiduidade com que isso
acontecia e, mais ainda, a ideologia que, alguns pedidos reflectem. Por exemplo, a Madre
Helena Maria da Exaltação, já referida, entendia que “conforme a liberal carta constitucional
do excelso Imperador do Brasil, o senhor D. Pedro IV, de eterna saudade, deu a liberdade aos
portugueses, também as religiosas deveriam usufruir dessa mesma bem entendida
liberdade”389.
Em 1851, a Madre Luciana Joaquina da Conceição enviou à rainha, para confirmação, o
breve apostólico já obtido, que lhe concedia licença de permanecer fora da clausura durante
seis meses390.
À medida que a ideologia liberal ia penetrando no mosteiro, é natural que se mudassem
mentalidades e ideais. Se o encanto pelo Senhor, a intimidade com Deus, não era em cada
religiosa motivação geradora de felicidade, de alegria, bem estar e harmonia íntima, não
admira que outras necessidades se criassem. Se Deus não é tudo em nós, a vida deixa de ter encanto
e beleza.
2.5
Tentativas para deter o mal
Algumas abadessas, desejosas de um bom ambiente e tentando deter a onda decadente,
empenharam esforços para evitar abusos, eliminando as suas causas. Abundam as cartas para
a autoridade eclesiástica e régia, procurando solução para estes graves problemas. Assim, a 18
de Fevereiro de 1819, o bispo do Funchal, a pedido das religiosas, enviou uma súplica a D.
João VI com a informação de que deviam ser atendidas. Queixavam-se de que, “vivendo em
tranquilidade e paz (...)” eram perturbadas por algumas moças nobres que, “por ordem régia
têm entrado no convento a título de educandas”391. Sem vocação religiosa e “gostando dos
encantos do mundo,” a sua presença era inconveniente. Suplicavam, pois, ao monarca, “a
especial graça de não conceder licença a moça alguma daquela Ilha, seja de que qualidade for,
para entrar no mosteiro como educanda”, pois que, a sua presença era causa de “alterar a
caridade fraterna e apartar as religiosas do retiro e oração a que vivem aplicadas na fiel
observância das suas regras”392.
E, porque o abuso continuou, mais uma carta chegou a Sua Majestade, em que se
detecta uma situação aflitiva e preocupante: “ (...) rogo a V. A. R. que, por sua piedade, se
digne cortar absolutamente toda a admissão ulterior de outras quaisquer pessoas seculares
que, por bem triste experiência, vão disseminar no claustro males antipáticos (...) males que,
deixados a vigorar, causarão, sem dúvida, irreparáveis e bem visíveis danos”393. Desejosa de
pôr cobro a tais males, a abadessa termina deste modo: “Peço a V. A. R. queira, por sua
religiosa piedade, expedir as providências mais eficazes aos dois assuntos que a suplicante
apresenta”394.
387
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso.
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso.
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso.
390
AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso.
391
AHU, Madeira, doc. 4578.
392
AHU, Madeira, doc. 4578.
393
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso.
394
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso.
388
389
111
Era tarde. O secularismo fora-se impondo, crescendo e avassalando o ambiente, em
detrimento do carisma próprio. Como se foi diluindo o ambiente de oração, de silêncio, de
fraterna simplicidade, de encanto pelo Senhor, por tudo o que é belo e bom!?...
A 1 de Junho de 1825, do palácio de Bemposta, acusava-se a recepção de um
requerimento da abadessa e religiosas do real mosteiro de Santa Clara do Funchal que, depois
de bem analisado, teve a seguinte resposta: “Houve o Senhor por bem, determinar que se
conserve o referido mosteiro na sua primitiva instituição, não sendo nele admitidas seculares,
senão as que se proponham à vida religiosa”395.
Nesta resposta régia está patente a gravidade da situação. Não poderão detectar-se
tentativas de transformação do mosteiro em simples recolhimento? Se isso não aconteceu em
1825, foi porque na alma da abadessa e da sua comunidade houve alguma inquietação e
desejo de fidelidade ao compromisso assumido. Não fora isso e o mosteiro de Santa Clara do
Funchal teria conhecido outro destino ainda antes da extinção das Ordens Religiosas pelas leis
liberais.
3. O mosteiro de Santa Clara nos fins do Século XVIII: Crise espiritual e económica
À sobriedade dos primeiros tempos seguiu-se a prosperidade do século XVII, que se
traduziu em opulência no seguinte: os rendimentos eram abundantes, o mosteiro pôde realizar
grandes obras, e a comunidade atingiu o número máximo de religiosas, cento e setenta, em
1722396. Simultaneamente, as religiosas foram-se deixando influenciar pela ideologia
materialista da época em detrimento da sua vida espiritual.
3.1. Crise espiritual
Com o século XVIII, nasceu uma nova mentalidade, como consequência de uma nova
ideologia. O cientismo com o seu gosto pelo saber, o criticismo agnóstico que se traduzia na
falta de fé, o secularismo, o exagerado exibicionismo, iam dominando a sociedade e tomando
o lugar do sagrado. Toda esta ideologia e doutrina foi entrando no mosteiro, traduzindo-se em
formas concretas: as freiras, deixando o burel cor de cinza de Santa Clara, vestiram-se de seda
azul arrastando pomposas caudas, adoptaram modas e costumes mundanos, entraram num
letargo espiritual que se concretizou na decadência da virtude e da disciplina conventual,
males que as cartas de D. Gaspar Brandão e D. José da Costa Torres, bispos do Funchal,
deixam transparecer397.
Evidentemente, que o resfriamento do fervor não começou no século XVIII. Desde há
muito, no mosteiro de Santa Clara, estavam latentes as causas da decadência que agora se
concretizava. As muitas criadas que o Elucidário Madeirense apelidava de “imperdoável
abuso”, a presença de freiras sem vocação, de senhoras recolhidas, de educandas e outras
arbitrariedades, lentamente, foram afastando a comunidade do caminho certo. Se atendermos
ao estrato social donde provinham as religiosas e com o qual mantinham relações exageradas,
apesar da clausura, facilmente compreenderemos a influência que a sociedade exerceu sobre
elas.
O cronista Frei Fernando da Soledade, falando da virtude, da santidade das primeiras
religiosas e da fama do mosteiro de Santa Clara, nos anos que se seguiram à fundação, quase
395
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso.
Noronha, op. cit., p. 264.
397
AHU, Madeira, doc. 260 –261 e 842.
396
112
em tom profético, escreveu: “(...) será lastima que o descuido das preladas, ocasione alguma
relaxação, por onde venha a descair desta ilustre perfeição”398.
È um facto que o espírito de oração se foi perdendo, com o consequente
enfraquecimento da intimidade com Deus, que a prática das virtudes humanas e cristãs se foi
descurando, que a felicidade interior de cada religiosa foi resfriando. Daí a procura de
compensações, que se traduziram em vaidades, amizades mundanas, vida superficial. Não é,
pois, sem razão, que o P. Fernando Augusto da Silva, autor do Elucidário Madeirense, insiste,
referindo-se ao ambiente da comunidade nos século XVIII e XIX, na falta de fervor, fuga à
austeridade de vida, inobservância das regras conventuais, abusos e escândalos que exigiram a
intervenção da autoridade eclesiástica e a aplicação de penas canónicas. Tempo houve em que
o viver das freiras não se distinguia do resto da sociedade a que pertenciam399, diz o mesmo
autor.
Nem lhes faltou o tabaco400, cujo uso se generalizou na sociedade de então, pelas suas
propriedades medicinais, especialmente como analgésico, chegando, contudo, a ser
consumido viciosamente. A partir de meados do século XVIII, o uso do tabaco no mosteiro
tornou-se habitual. A abadessa oferecia-o às freiras pelo Natal, ano novo, dia de Reis, festa da
Madre e outras mais. Uma grande maioria gostava de “cheirar tabaco”.
Quando em 1820 houve eleição de abadessa, o Custódio Franciscano queixou-se da
“(...) decadência da virtude e da disciplina regular”401.
Contudo, não duvidamos de que, entre formas decadentes de virtude e fugas ao
carisma próprio, houvesse baluartes de santidade, almas de eleição que embalsamavam a
comunidade e o exterior com o bom aroma da virtude. Havia santas, sem dúvida. No meio de
uma certa frivolidade, de irregularidades e dispersão, também ali morava o espírito de oração
e a intimidade com Cristo em muitas religiosas. Ao lado das pouco fervorosas, houve
baluartes de fé, almas santas.
3.2. Crise económica
Podemos afirmar que, no mosteiro de Santa Clara, no início não havia preocupação de
lucros, desejando as religiosas obter somente o necessário para a sua subsistência. Porém, ao
longo dos anos, lamentavelmente, foi-se acentuando um certo espírito lucrativo, diremos
mesmo, empresarial, que, obviamente, foi enfraquecendo a sensibilidade espiritual. À
prosperidade do século XVII e primeira metade do XVIII, seguiu-se uma crise económica
que se foi agravando, sem que ninguém conseguisse detê-la.
Para esta crise, podemos apontar razões de varia ordem: as leis pombalinas
desfavoráveis aos conventos que, cerceando seus direitos e privilégios, lhes reduziram os
rendimentos; a ganância dos procuradores que em pouco tempo enriqueciam à custa do
mosteiro; a má administração de algumas abadessas e escrivãs; as más colheitas, resultantes
de irregularidades climáticas, na medida em que diminuíam os rendimentos em géneros a
entregar à comunidade, dado o regime de meias e rendas pagas em géneros; aumento de
preços, resultante de conflitos bélicos como sejam a Guerra dos Sete Anos e consequente
guerra dos corsários no Atlântico, bem como a guerra da independência das colónias inglesas
da América do Norte, que, afectando grandemente o comércio da Ilha, condicionavam e
limitavam a exportação.
398
Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 353.
Elucidário Madeirense, I, p. 310.
Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 75.
401
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., Livro das Eleições das Abadessas e mais oficiais deste mosteiro de Santa Clara, ano de
1733 e ss; João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 49.
399
400
113
Assim, a partir de 1770, as receitas foram diminuindo e, não raro, nem sequer cobriam
as despesas. Vejamos:
Quadro nº.14 - Desequilíbrio financeiro
Ano
Rendimento/réis
Despesa/réis
Saldo
Negativo
1773
11 157 568
9 553 565
1774
8 925 726
9 667 276
750 550
1775
11 073 740
10 419 850
1776
8 874 836
9 367 548
482 612
1777
5 491 641
9 001 599
3 509 958
1778
10 108 686
8 999 001
1834
7 163 787
8 485 816
1 322 029
1835
6 781 761
8 686 833
1 905 072
Fontes: AHU, Madeira, doc. 627; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv.
S. Clara F., L 67. Não paginado.
O maior défice verificou-se em 1777, não porque tivesse havido aumento de despesas
mas porque as receitas desceram para quase metade, talvez porque nesse ano não tivesse sido
possível a exportação do vinho, dado os conflitos políticos e bélicos que então deflagravam e
que tanto afectaram o comércio intercontinental. Quase imobilizaram o porto do Funchal,
determinando não só uma quebra na vinda dos indispensáveis cereais e outros mantimentos
mas também a exportação de produtos da Madeira, particularmente do vinho, o que criou
situações drásticas que se traduziam em dificuldades de toda a ordem e até em períodos de
fome na Ilha.
As dificuldades eram reais e graves. Em 1781, na opinião do bispo do Funchal, D.
Gaspar Afonso da Costa Brandão, havia problemas económicos que afectavam o viver
quotidiano das religiosas. Quando a 21 de Julho daquele ano, para satisfazer o pedido da
rainha D. Maria I, D. Gaspar Brandão enviou ao ministro Martinho Melo e Castro um
relatório sobre o mosteiro, que fazia acompanhar da relação nominal das noventa e duas
religiosas, falou nestes termos: “(...) o sustento das religiosas com que lhe contribui a
comunidade diariamente (...) manifesta a penúria com que são assistidas (...) e, na doença, se
lhes não dá mais coisa alguma senão a mesma porção e a mesma qualidade costumada no
tempo da saúde (...)”.A mesma dificuldade havia na compra de medicamentos e vestuário,
pelo que as religiosas não queriam que se aceitassem noviças, pois diziam: “quantas mais
freiras existirem, maiores serão os gastos da comunidade”402.
Quando em 29 de Janeiro de 1832 foi eleita como abadessa a Madre D. Maria Júlia do
Espírito Santo, o mosteiro atravessava um período muito difícil. No final do segundo ano do
seu governo (1834), o saldo negativo atingiu 1.322.019 réis, tendo o mesmo, no fim do
terceiro ano, aumentado para 1.905.072 reis403.
E, porque os gastos eram realmente grandes e as receitas diminutas, houve necessidade
de aumentar o dote com que cada religiosa entrava por ocasião da sua admissão. Segundo o
Elucidário Madeirense, no segundo quartel do século XIX, passou para 800 mil reis, além de
outras despesas, pelo que a entrada de uma freira não custava menos que um conto de reis”,404
valor muito elevado, que mereceu ao mosteiro censuras eclesiásticas.
Em carta de 22 de Agosto de 1814, D. Frei Joaquim Meneses e Ataíde, Arcebispo de
Meliapor que governou a diocese do Funchal como vigário apostólico de 1811 a 1819,
procurou defender o mosteiro, junto da autoridade régia, subtraindo-o ao pagamento de
dízimos a que a Junta da Real Fazenda da Ilha pretendia obrigar as religiosas. “Não sabemos”,
diz, “em que se fundamentam os actuais administradores dos dízimos, para quererem exigir
402
AHU, Madeira, doc. 620.
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 67. Não está paginado.
404
Elucidário Madeirense, I, p. 310.
403
114
das freiras, os dízimos dos frutos das propriedades que elas administram, quando é certo que,
desde tempos antiquíssimos, elas gozam do privilégio de os não pagar, privilégio que lhes tem
sido muitas vezes disputado, mas que sempre lhes é concedido por sentença dos tribunais”405.
CAPÍTULO VIII
O MOSTEIRO DE SANTA CLARA NA POSSE DO ESTADO.
SITUAÇÃO ACTUAL
1. O mosteiro na posse do Estado
1.1.Extinção das Ordens Religiosas (1832-1834)
Desde há muito, o regalismo, defendendo os direitos do Estado sobre a Igreja, se fazia
sentir na Europa. Na Áustria, o imperador José II, a 12 de Janeiro de 1782, suprimiu muitos
conventos e mosteiros, sobretudo de religiosas contemplativas. Em França, com a Revolução
Francesa, foram igualmente suprimidos os conventos por lei de 17 de Agosto de 1792406. Esta
onda anti-religiosa foi avançando para ocidente e chegou a Portugal.
O advento do Liberalismo marcou o início da segunda fase da história das Clarissas,
durante a qual todos os mosteiros foram suprimidos em virtude de circunstâncias políticas
adversas.
O programa anticongreganista liberal começou nos Açores em 1832, quando D. Pedro
dominava apenas esta parcela do território nacional, e estendeu-se ao continente depois da
conquista de Lisboa pelas tropas liberais a 24 de Julho de 1833407.
Por decreto de 5 de Agosto de 1833, não seria permitida aos Institutos Religiosos a
admissão ao noviciado, nem a emissão de votos, “na previsão da extinção gradual das
405
AHU, Madeira, doc. 3 563.
Lazaro Iriarte, ofm cap., op. cit., 504; Historia Universal, adaptada e revista por Jorge Borges Macedo, Lisboa, II, 1994, pp. 196 e 198 –
205.
407
António Montes Moreira, op. cit., p. 225.
406
115
Ordens” 408. Logo em seguida, o decreto de 28 de Maio de 1834, de Joaquim António de
Aguiar, promulgado por D. Pedro a 30 de Maio de 1834409, ordenou a extinção imediata de
todas as casas religiosas masculinas de Portugal e Ultramar410. O decreto que afectou
quatrocentas e uma casas religiosas, incluindo colégios e hospícios, aboliu todos os mosteiros
e conventos masculinos e dispersou a sua população411. Porém, não atingiu os institutos
femininos que ficaram sujeitos à lei de 5 de Agosto de 1833.
Os mosteiros femininos iam-se extinguindo por si próprios, uma vez que não podiam
receber candidatas. Quando morresse a última religiosa, o Estado procedia à ocupação do
edifício. Em muitos casos, não se esperou pelo último falecimento; quando o número baixava
para quatro destinava-se-lhes um pequeno sector da casa e o resto começava, por orientação
das autoridades civis, a ser utilizado para outros fins412.
Alguns mosteiros de Clarissas continuaram a receber candidatas, que usavam, quando
possível, o hábito religioso e viviam com as religiosas, comprometendo-se com o carisma da
comunidade. Pelo menos três mosteiros mantiveram-se deste modo até 1910-1911: Nossa
Senhora das Mercês do Funchal, Santíssimo Sacramento do Louriçal e o de Lisboa.
1.2. Supressão do mosteiro de Santa Clara (1890)
À data do decreto da extinção, as religiosas professas do mosteiro de Santa Clara não
eram mais de umas cinquenta, poucas e envelhecidas. A última noviça, Genoveva Carlota do
Monte, havia professado a 22 de Dezembro de 1831413, a última profissão antes do decreto da
extinção.
A 15 de Novembro de 1890 morreu a última religiosa professa do mosteiro de Santa
Clara, a Madre Maria Amália do Patrocínio414, ficando um grupo de pupilas, servas e senhoras
recolhidas, num total de trinta e uma.
Como já foi referido, a partir do quinto capitão donatário, os condes e marqueses de
Castelo Melhor, sempre se consideraram, não só padroeiros do mosteiro e respectiva igreja
mas seus legítimos senhores e proprietários415, pelo que, após a extinção das Ordens
Religiosas em 1834, reivindicaram a sua posse. Em 1867, depois de um pleito judicial
intentado em 1862, em que demonstraram o direito que lhes assistia à propriedade do
mosteiro, registaram-no na Conservatória da Comarca do Funchal.416
Por ocasião da morte da última religiosa, podiam os marqueses de Castelo Melhor ter-se
legitimamente apropriado do edifício, o que não aconteceu, caindo o imóvel em poder do
Estado.
Apressaram-se as autoridades a mandar concluir o inventário dos bens daquele
mosteiro, “não só para evitar-se que os empregados encarregados daquele serviço tenham de
entrar repetidas vezes naquela casa, onde vivem recatadas muitas senhoras de diferentes
idades mas também, para que, recebida nesta Secretaria de Estado uma cópia do inventário,
possa dispor-se convenientemente das alfaias, vasos sagrados, paramentos e mais objectos de
culto que ali se acham, em conformidade com o artigo décimo das instruções de 31 de Maio
de 1862”417.
408
Oliveira Marques, op. cit., III, p. 115.
Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., VIII, p. 202.
Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., VIII, pp. 202 - 203.
411
Oliveira Marques, op. cit., II, p. 115.
412
Atónio Montes Moreira, ofm, op. cit., pp. 225 - 226.
413
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 28, Livro dos autos de perguntas, feito no segundo triénio da Madre D. Coleta Rosa
de Santo Agostinho, sendo escrivã Margarida Jacinta de Santa Rosa, ano de 1742.
414
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso.
415
Elucidário Madeirense, I, p. 309.
416
Elucidário Madeirense, I, p. 309.
417
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso.
409
410
116
1.3.Encerramento e reabertura da igreja de Santa Clara
Nos primeiros dias de Março de 1891, tornou-se voz corrente, que o Estado ia proceder
ao encerramento da igreja de Santa Clara418.
Desafogando a sua mágoa e fazendo-se intérprete do desejo da população do Funchal, o
bispo da diocese, D. Manuel Agostinho Barreto, no ensejo de impedir o acontecimento,
escrevia às autoridades: “Aquela igreja é necessária, não só às pessoas recolhidas naquela
casa em número de trinta e uma, como também às muitas pessoas de toda a cidade e
especialmente da vizinhança, que costumam satisfazer ali os seus preceitos religiosos”419.
Apesar dos esforços do prelado o facto consumou-se. Por essa razão, em 10 de Abril de 1891,
seguiu para o rei uma exposição do visconde Dr. João Barbosa de Mattos e Câmara, reitor da
confraria do Senhor dos Passos, onde se lê que: “já a igreja do extinto mosteiro de Santa
Clara, se encontrava fechada, tendo sido removido o sacrário e algumas alfaias de culto e
suspensos os actos religiosos na mesma igreja”420.
A igreja de Santa Clara, onde se celebrava missa todos os dias a hora certa, onde eram
feitas com notável esplendor muitas festividades religiosas e a referida confraria tinha a sua
sede, não podia permanecer fechada. Insistia, portanto, Matos e Câmara em que se dignassem
“conceder-lhes o uso da igreja, das alfaias e objectos de culto que a ela pertencem, e ainda as
pequenas casas que servem de moradia aos respectivos empregados, a fim de que ali se
possam continuar a celebrar os actos religiosos como dantes (...) sob a orientação do ordinário
da diocese”421. A 14 do mesmo mês, as autoridades do Funchal reforçaram o pedido422.
A resposta de Lisboa não se fez esperar. A 2 de Maio, em cumprimento do telegrama de
24 de Abril, emitido pelo Ministério da Fazenda, as autoridades competentes, em acto
público, fizeram a entrega das chaves ao reitor da confraria do Senhor dos Passos423. Deste
acto lavrou-se uma acta, a 24 de Maio, que foi assinada pelo Dr. João Barbosa de Mattos e
Câmara, pelo tesoureiro, secretário e primeiro oficial da Repartição da Fazenda Distrital do
Funchal, Francisco Joaquim Pestana.
2. O edifício. Seu destino e utilidade
2.1. Recolhimento
Quando a 15 de Novembro de 1890 morreu a última religiosa professa, a Madre Maria
Amália do Patrocínio, ficavam no edifício treze pupilas, onze servas e sete senhoras
recolhidas, sob a direcção de uma regente, a pupila Domiciana Ifigénia de França Bivar424.
Desejosas de ali permanecerem, a 25 desse mesmo mês, as pupilas e servas fizeram
seguir para Lisboa um requerimento em que suplicavam que lhes fosse concedida, “à
semelhança do que já em 1888 acontecera com o mosteiro da Madre de Deus da cidade de
Guimarães e outros, a graça de poderem conservar-se no edifício com o usufruto dos móveis
ali existentes”425. Nesse mesmo dia, um outro requerimento foi expedido, este das senhoras ali
418
419
420
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso.
AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso.
.
421
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso.
423
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. IV/B/27/36. A 23 de Abril, a Confraria do
Senhor dos Passos recebeu informação particular de que estava autorizada, provisoriamente, a fazer uso da igreja, sacristia e anexos
indispensáveis, ficando a concessão definitiva dependente da resolução das cortes legislativas.
424
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso.
425
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa.2072, doc. avulso.
422
117
recolhidas. Apressavam-se a solicitar licença régia de permanecer “naquele lugar que tinham
escolhido para refúgio do mundo, pois, previam ser convidadas a sair”, diziam, “se Vossa
Majestade, não vier obstar a que lhes seja imposto mais este doloroso sacrifício”426.
Por despacho de 5 de Dezembro de 1890, todas elas, pupilas, servas e senhoras, foram
autorizadas a permanecer no edifício e, a 16 de Janeiro do ano seguinte, era concedido um
subsídio mensal às mais necessitadas427, de acordo com o artigo quarto do decreto de 28 de
Maio de 1834428.
Desta forma, passava o extinto mosteiro a recolhimento provisório, subordinado ao
bispo do Funchal, pois que, dizia o ministro e secretário dos Negócios Eclesiásticos e de
Justiça: “pela sua elevada posição, especial competência e autoridade, é quem deverá
superintender no governo interno daquela casa, enquanto for habitada por pessoas que ali se
conservam por autorização superior”429.
Quando a 5 de Agosto de 1896 se fazia a entrega provisória do edifício e dependências
do suprimido mosteiro à Sociedade Auxiliar das Missões Ultramarinas, entidade civil
correspondente à Congregação das Franciscanas Missionárias de Maria, exceptuava-se “a
parte do convento conhecida pela denominação de dormitório da calçada de São Pedro (…),
julgada indispensável para a habitação das pupilas (...) e recolhidas (...) da qual a mesma
Associação, só poderá tomar posse por falecimento da última”430.
Nessa data eram vinte e nove as recolhidas, sendo a maior parte delas pobres e idosas,
pelo que, na opinião de Luís do Rego Barreto, delegado do Tesouro, protegê-las seria “um
acto de beneficência e de justiça”, até porque algumas delas ali haviam entrado muito novas,
“mal conhecendo a vida exterior”431. Segundo uma relação da Repartição da Fazenda do
distrito do Funchal, em 22 de Maio de 1897, residiam no recolhimento, nove pupilas, nove
servas e onze senhoras, uma das quais D. Maria Isabel de Quental, admitida a 20 de Maio de
1896. Era um total de vinte e nove pessoas sendo a mais nova, Ester de Freitas da Silva, de
quinze anos, e as restantes de idade variável entre os vinte e nove, e oitenta e seis anos.
Em 1940, segundo as Ilhas de Zargo, informação confirmada pelas Franciscanas
Missionárias de Maria, então no edifício, ainda ali se encontravam algumas pupilas.
2. 2. Colégio ao serviço da Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas
Por decreto de 12 de Março de 1896 e nos termos do artigo décimo primeiro da carta de
lei de 4 de Abril de 1861, o edifício do extinto mosteiro de Santa Clara foi cedido à
Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas. Destinava-se à fundação de um
estabelecimento ou colégio de educação, um sanatório para as irmãs voltadas de África
refazerem a saúde e as forças, uma escola preparatória para as aspirantes a irmãs missionárias
que, se o desejassem, seguiam para o instituto de formação em Carnide, um asilo para
raparigas pobres e ainda outras obras de caridade, se para tanto chegassem os meios432.
A concessão era provisória e com a cláusula de ser o decreto sujeito à aprovação das
cortes e reversão para o Estado, sem indemnização alguma, no caso de não ter as mencionadas
aplicações, ou quando ao Estado conviesse dar outra aplicação ao edifício em causa433. A 5 de
426
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso.
428
Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, Legislação Portugueza, 42 (1833-1834)189. Citado por Joaquim Veríssimo Serrão, op.
cit., VIII, p. 202.
429
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso.
430
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso.
431
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. IV/B/47/33.
432
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso: Carta de Ernesto Rodolfo Hintze
Ribeiro de l2 de Março de 1896. Esta portaria foi publicada no Diário do Governo, n.º 63, de 18 de Março de 1896.
433
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso.
427
118
Agosto daquele mesmo ano procedeu-se, na presença do vigário geral, o Dr. João Joaquim
Pinto, na qualidade de delegado do bispo do Funchal, do procurador da Associação Auxiliar
das Missões Ultramarinas, Dr. Romano Santa Clara Gomes e do delegado do Tesouro do
distrito do Funchal, Barros Lima, à entrega oficial do edifício, dependências e cerca.434 A
condessa da Silva Sanches, na qualidade de vice-presidente da Associação, a 14 de Julho de
1896, constituira o Dr. Romano Santa Clara Gomes, seu procurador, a fim de tomar posse do
mosteiro de Santa Clara em favor da dita Associação, em conformidade com o decreto de 12
de Março daquele ano435. Para assumir esta responsabilidade, solicitou o Dr. Romano a
disponibilidade da Congregação das Franciscanas Missionárias de Maria que, apesar da sua
insistência, só em 18 de Janeiro de 1898, depois de bem ponderado o assunto, teve uma
resposta favorável e definitiva. Em Outubro de 1898 começou a funcionar o Colégio de Santa
Clara, que iria servir as famílias da Ilha, particularmente da cidade do Funchal, até 1910, ano
em que, proclamada a República, as religiosas foram convidadas a retirar.
2.3. Novamente ao serviço da Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas
O antigo mosteiro foi então abandonado à cobiça de quem quis apoderar-se dos seus
mais preciosos valores artísticos436. Nos anos que se seguiram à proclamação da República, o
imóvel foi concedido sucessivamente à Câmara Municipal do Funchal, à Santa Casa da
Misericórdia e à Associação Auxílio Maternal, para fins específicos. A pretexto de obras, que
não chegaram a realizar-se, foi demolida uma parte considerável do mosteiro, “praticando-se
então actos de verdadeira destruição e vandalismo”437 e de desrespeito por aquele santuário
artístico, simultaneamente religioso e pátrio.
Posteriormente, por não se haverem realizado as obras projectadas e não se ter cumprido
o fim específico da concessão438, o imóvel voltou à posse do Estado.
Em 1926, havendo o Governo tomado o compromisso de fortalecer a obra missionária
nas colónias portuguesas, por decreto de 25 de Janeiro de 1927 e portaria de 12 de Junho do
mesmo ano, o Ministério das Finanças autorizava a cedência do antigo mosteiro de Santa
Clara ao Ministério das Colónias, para ser de novo entregue à Associação Auxiliar das
Missões Ultramarinas439. Chamadas novamente, as Franciscanas Missionárias de Maria para
ali regressam em 1928, retomando as suas funções pedagógicas e apostólicas. O Colégio de
Santa Clara começou, a partir de então, em novos moldes de funcionamento
2.4. Obras de restauro
Após o regresso das Franciscanas Missionárias de Maria, o edifício, classificado como
Monumento Nacional pelo decreto 30 762 de 26 de Setembro de 1940440 e reclassificado a 18
de Agosto de 1943 pelo novo decreto 32 973441, sofreu algumas adaptações, em função das
actividades que as religiosas ali iriam desenvolver.
434
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso: Termo da entrega provisória do edifício
e dependências do suprimido convento de Santa Clara à Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas, de 5 de Agosto de 1896.
435
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso: Termo da procuração da entrega
provisória.
436
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso.
437
Elucidário Madeirense, I, p. 311.
438
Elucidário Madeirense, I, p. 311.
439
Elucidário Madeirense, I, p. 311
440
Diário do Governo, nº 225, I série, de 26 de Setembro de 1940.
441
Diário do Governo, nº 175, I série, de 18 de Agosto de 1943; Ministério das Obras Públicas, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos
Nacionais, Conventos, Plano de Obras, in Album do Plano de Obras da DGEMN, F 1-53, A-22-1, A; Ilhas de Zargo, .II, p. 691.
119
Na década de quarenta, “ porque se encontrava bastante necessitado de obras, as quais
em pequena parte foram ultimamente realizadas”, dizia o arquitecto chefe da primeira secção
a 1 de Outubro de 1948, decidiram os Monumentos Nacionais proceder a obras de restauro,
nesta data, orçamentadas em 1.692.000$00, conforme o quadro:
Quadro nº.15 - Obras a realizar
Obras exteriores
Reconstrução da armação e cobertura dos telhados, excluindo a ala já reconstruída
Reconstrução de duas alas do claustro de betão armado
avimento de tijolo prensado, assente com argamassa, no claustro
Reparação geral de rebocos com argamassa hidráulica
Construção de caixilharias e portas e reparação de outras
Demolição duma varanda de betão construída há poucos anos
Arranjo do jardim do claustro e logradouro
600.000$00
60.000$00
70.000$00
100.000$00
200.000$00
5.000$00
45.000$00
Obras interiores
Pavimento de lagedo na galeria do claustro, junto à igreja
Reconstrução do pavimento dos dormitórios, incluindo o tecto de carvalho da galeria
Pavimento de tijolo prensado nas arrecadações, sala do capítulo e anexos
Restauro de azulejos policromados do século XVIII na igreja
Reparação e reconstrução de rebocos interiores
SOMAS:
20% para imprevisto e administração
60.000$00
150.000$00
50.000$00
20.000$00
50.000$00
1.410.000$00
282.000$00
1.692.000$00
TOTAL:
Fonte: O Ministério das Obras Públicas, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais,
Conventos, Plano de Obras, in Album do Plano de Obras da DGEMN, F 1- 53, A- 22-1, A.
A 15 de Novembro do mesmo ano o mosteiro de Santa Clara do Funchal figurava na
lista de dezassete Monumentos Nacionais, para cujas obras, já orçamentadas, se estabeleciam
prazos de execução. As respeitantes ao mosteiro de Santa Clara, nas quais se gastaria a verba
supracitada, deviam ser levadas a cabo no espaço de três anos, conforme o despacho do
respectivo Director dos Serviços442.
3. Situação Actual
No antigo mosteiro que, desde 1928, foi semi-internato, escola primária e lar de
estudantes, funciona actualmente um Jardim de Infância ao cuidado das Franciscanas
Missionárias de Maria, prestando as religiosas relevantes serviços à Igreja local e à população
madeirense, nomeadamente à do Funchal. As religiosas têm tido aquela casa aberta a
encontros bíblicos, retiros e outros apoios, à acção cultural e pastoral.
Verdadeira jóia arquitectónica, é assiduamente visitado por turistas quer portugueses
quer estrangeiros, que admiram a grandiosidade, a precisão estética e evocação histórica
deste vetusto edifício.
Mas o mosteiro de Santa Clara não é somente um tesouro artístico de excepcional
valor, uma jóia arquitectónica que nos fala eloquentemente dos “ nossos maiores” e que deve
ser preservado, a todo o custo, de qualquer adulteração da sua arquitectura original. O
mosteiro de Santa Clara é, sobretudo, evocação dum passado glorioso, afirmação da gesta
442
Ministério das Obras Públicas, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Conventos, Plano de Obras; in Album do Plano de
Obras da DGEMN, F 1- 53, A-22-1, A.
120
ímpar dos nossos navegantes e descobridores, presença palpável do sentir nacional, social e
religioso de cinco séculos; é tesouro sagrado, onde se podem ler páginas da história de
Portugal, páginas da sua sublime vocação marítima, do seu “dar ao mundo novos mundos”.
Que a Ilha da Madeira o guarde como pérola de raro valor!...
II SECÇÃO
MOSTEIRO DE NOSSA SENHORA DA ENCARNAÇÃO
1660 - 1890
121
(fotografia)
122
18. Mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal. Litografia de Picken. Desenho de F. Dillon, 1850
(Casa Museu Frederico de Freitas). Lá no alto do Funchal, desfrutando de “um panorama arrebatador” ficava
o mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação. Fotografia de Rui Camacho, DRAC.
CAPÍTULO I
O RECOLHIMENTO DE SANTA TERESA
1. Voto do Cónego Henrique Calaça de Viveiros
O mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação foi fruto de um voto do Cónego Henrique
Calaça de Viveiros: "levantar um convento em honra e louvor da Virgem da Encarnação, de
quem era muito devoto, quando o seu país se libertasse do férreo jugo castelhano"443, e "dar
graças a Deus pela feliz aclamação de D. João IV"444.
Acrescia que o surto populacional que se verificava na Madeira, exigia a existência de
mais mosteiros. Havia, realmente, um grande número de meninas "nobres e de mais condição
"que desejavam servir a Deus em clausura, mas não o podiam fazer, por não existir "em toda
a Ilha e bispado mais que um mosteiro de freiras da Ordem de Santa Clara, no qual viviam as
freiras com muito aperto, por serem muitas e o sítio mui limitado e se não poderem estender
por estar entre caminhos e rocha"445. O mosteiro que o cónego se dispunha a construir dava
resposta a esta premente necessidade.
Natural da Ilha do Porto Santo, Henrique Calaça de Viveiros era filho de Bento Martins
e de Cecília Calaça, casados na Sé do Funchal a 18 de Agosto de 1588. Por parte de sua mãe,
era neto de Maria Gonçalves de Viveiros e de Guilherme Acré, do qual procedem os
elementos do seu brasão, como se pode ver no seu retrato a óleo. A família era de pequeno
443
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa. 2070, doc. 25; Elucidário Madeirense, II, p 307: “Igreja da
Encarnação (Funchal)”, Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 84 (1956) 36.
João Cabral do Nascimento, A Restauração de Portugal e o Convento da Encarnação, Funchal, 1940, p. 14: Instrumento de Doação do
Cónego Henrique Calaça de Viveiros de 14 de Fevereiro de 1668. Noronha, op. cit., p 276.
445
João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 14-15 : Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658.
444
123
relevo social, mas de haveres, que o fundador herdou e reuniu no seu património, vindo a
empenhá-los na construção do mosteiro da Encarnação e respectiva dotação. Fez os seus
estudos nas escolas da diocese do Funchal e, ainda novo, decidiu-se pela carreira eclesiástica.
Homem recto, bem dotado e empreendedor, exerceu o múnus sacerdotal com muita
competência e dignidade.
Foi escrivão da Câmara Eclesiástica e cónego reitor do Colégio Real do Seminário,
capitular da Sé do Funchal e chanceler da mesma. Depois de uma vida dada a Deus, à Igreja e
à sociedade do seu tempo, com entusiasmo e amor, morreu a 26 de Maio de 1662 com setenta
e quatro anos446.
Para cumprimento do seu voto soube enfrentar, com serenidade mas firmeza, todas as
dificuldades. Nada nem ninguém o fez recuar e, assim, conseguiu chegar onde desejava:
transformar o recolhimento de Santa Teresa, que inicialmente funcionou no edifício, em
mosteiro professo, para o que conseguiu licença papal e alvará régio.
Homem santo, sem ambições ou desejo de prestígio, que de tudo se despojou, até do
gosto de deixar os seus bens aos familiares para empenhá-los todos na construção e dotação
do mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, que fez "só com grande zelo do serviço de
Deus e amparo das donzelas "447. Era, o bondoso cónego, homem tão despretensioso que, até
ao direito de padroado teria renunciado, se a isso não obstasse Sua Majestade que, com
firmeza, determinou que lhe pertencia " com todas as honras e direitos e proeminências "448.
19. Mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação. O mosteiro sobressai na panorâmica geral da zona de Santa Luzia,
destacando-se a cúpula da sua capela. Lá do alto, eram visíveis a parte baixa da cidade, o porto e as campinas.
Fotografia de Perestrellos Photógraphos – “Museu Vicentes”.
2. A construção do edifício
Triunfante a revolução de 1640, logo o patriótico cónego, então membro do cabido da
Sé do Funchal, cumpriu religiosamente o seu voto, fazendo erguer um recolhimento para
donzelas numa "formosa e grande quinta” que possuía “no melhor sítio de toda a cidade” e
contígua à ermida de Nossa Senhora da Encarnação. Nessa excelente propriedade, a 20 de
Novembro de 1645, foi lançada a primeira pedra do indispensável edifício"449.
Planta 2
Convencido de que iria concretizar tão piedoso anseio, não fez caso algum do decreto
de 1610 do rei Filipe II que proibia a fundação de novos mosteiros450. Cheio de confiança em
Deus, "foi fabricando a obra do dito recolhimento com todas as oficinas e mais coisas
necessárias, para que, sendo Sua Majestade servido conceder que pudesse ser mosteiro
professo, não lhe faltasse coisa alguma para isso (...)"451. Nele fez três dormitórios com celas
suficientes para trinta religiosas professas e as divisões necessárias para os serviços. Forneceo de móveis e alfaias que bastassem para uma comunidade ordenada. Todo o edifício e a cerca
446
AR M, Paroquiais, Livro de Óbitos da Sé, nº 74, fol. 26 v.
João Cabral do Nascimento, op. cit., p 16 : Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658.
448
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 24 : Doação e Erecção do recolhimento em mosteiro Professo, de 13 de Abril de 1660.
449
; “Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 36. Fernando Augusto da Silva, op. cit., I, p 182; Elucidário
Madeirense, p 307.
450
João Cabral do Nascimento, op.cit., p 15 : Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658.
451
João Cabral do Nascimento, op.cit, pp. 12 e 15: Petição do Cónego.
447
124
estavam rodeados de muro alto de pedra e cal com uma única porta de entrada. O cónego pôs
nas obras "tal grandeza, que nelas gastou perto de vinte mil cruzados"452.
Segundo o auto da vistoria, a cerca do mosteiro estava rodeada de muros, tinha
dormitórios suficientes, um refeitório, bastantes cozinhas, granéis, despensa e oficinas "e em
tudo mais se achou bastantemente ornado e provido"453. Porém, sabendo o cónego que o
mosteiro não estava totalmente concluído, embora com o necessário para a fundação,
determinou que se retirassem sempre 100.000 reis do dote de cada religiosa para a sua
continuação e remodelação. As obras foram, pois, prosseguindo. Por exemplo, a Madre Clara
de São Bernardo, em 1666, andava empenhada na construção de um dormitório novo e para
ele deixou, no fim do seu mandato, uma grande quantidade de materiais, entre os quais
cinquenta dúzias de tabuado de til para soalhar, grande quantidade de castanho, travejamento
de til, tabuado de pinho, mais de vinte e oito mil réis de pregos, uma fornada de cal, cantaria
já lavrada para todo o dormitório e telha454.
3. A incorporação da capela de Nossa Senhora da Encarnação
De arquitectura gótico-manuelina, a capela da Encarnação teria sido "instituída,
segundo se presume, por António Mialheiro, finado em 1565455, na qual D. Isabel Maria
Acciaiuoli mandou fazer a capela-mor"456, onde existiu um tríptico flamengo de Nossa
Senhora da Encarnação.
20. Capela de Nossa Senhora da Encarnação. A fotografia mostra-nos a capela de Nossa. Senhora da Encarnação
no traçado que ainda tinha no início do séc. XX. As duas janelas sobrepostas à porta principal, gótico manuelina,
iluminavam o coro das religiosas.
21. Portal principal da capela do mosteiro da Encarnação. Pormenor da artística cantaria do portal principal,
cuja estrutura tem afinidades com a Sé do Funchal. Nela podemos detectar marcas decanteiro e máscaras, também
visíveis no púlpito da Sé. Fotografia de Rui Camacho, DRAC
A porta principal apresentava uma estrutura idêntica à da Sé Catedral do Funchal,
embora em escala menor, desenhando a última arquivolta o mesmo tipo de arco
contracurvado de remate. Há ainda outras afinidades, como sejam as máscaras do demónio e
marcas de canteiro, entre as quais se distinguem, com muita nitidez, letras, uma das quais o R,
bem visíveis na cantaria das portas principal e lateral da capela, e igualmente, na escada no
púlpito oferecido por D. Manuel à Sé457. Estes elementos valem como assinatura e como
452
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv Enc. F., caixa 2070, doc. 25 : Inventário dos bens móveis e imóveis do
convento de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal, 14 de Abril de 1863; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv Enc., F., fol. 7-9; João
Cabral do Nascimento, op. cit., p 19: Provisão Régia de 15 de Novembro de 1659.
453
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 29 : Auto da Vistoria de 11 de Abril de 1660.
454
João Cabral do Nascimento, op. cit., p 45: Inventário dos materiais que a Madre Abadessa de São Bernardo deixou ao convento para
acabar o dormitório novo.
455
Os Mialheiros, fidalgos da Galiza, estabeleceram-se em Portugal nos princípios do século XV, tendo passado à Madeira ainda nesse
século. Pedro Gonçalves Mialheiro, falecido em 1521, designado o Amo, por ter sido o responsável pela educação de Simão Gonçalves da
Câmara, terceiro capitão donatário, foi o avô de António Mialheiro, o fundador da capela de Nossa Senhora da Encarnação. Este fidalgo da
casa do rei levou vida de larga ostentação, sendo chamado à corte por D. João III, em 1556 (Noronha, op.cit., p 278 e João José Abreu de
Sousa. “ Os Mialheiros. Século XVI-XVII, Islenha, 9 (1991)50 ). Do seu casamento com D. Cecília da Silva deixou um filho, Jorge
Mialheiro Pereira, que veio a desposar D. Helena de Menezes, a 13 de Junho de 1559 ( João José Abreu de Sousa, art. cit., Islenha, 9 (1991)
50 e Noronha, op cit., p 278).
456
“Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 35; Elucidário Madeirense, .I, p. 307.
457
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, Museu de Arte Sacra do Funchal. Arte Flamenga, Lisboa, 1997, p. 70.
125
datação e permitem concluir que o gracioso templo gótico da Encarnação foi traçado pelo
mesmo mestre-arquitecto da Sé e edificado pouco tempo depois da época da construção da Sé
Catedral (1493-1518)458. Esse mestre-arquitecto, segundo António Aragão, foi Pero Anes e
não Gil Enes, conforme durante muito tempo se pensou; este ultimo, na realidade, foi apenas
o pedreiro-mestre.459 Em 1658, esta igreja manuelina, já então administrada pelo cabido da
Sé, foi incorporada no mosteiro, servindo, feitas as necessárias adaptações, de igreja
conventual460.
No auto da vistoria feito pelo deão do cabido461, lavrado a 11 de Abril de 1660, referese que o mosteiro se encostou à capela que, depois de adaptada, ficou "suficientemente
ornada, com sacrário do Santíssimo Sacramento, e mais coisas necessárias (...) grades para a
segurança da clausura, coro baixo e alto, e tribuna junto do altar"462. O mesmo dignitário
eclesiástico achou também que a capela estava com grande dignidade e apetrechada com
todos os paramentos necessários para as celebrações do culto divino e o mosteiro bem
edificado e próprio para a clausura463.
A capela-mor recebeu os restos mortais de António Mialheiro, direito que lhe assistia
como instituidor, de sua mulher e herdeiros. A lápide tumular, a meio da capela-mor e em
frente do altar, ostenta, ainda hoje, em letras de bom tamanho e facilmente legíveis, o nome
do filho, Jorge Mialheiro Pereira, e de sua esposa D. Helena de Menezes, ali sepultados em
1585 e 1583, respectivamente464. “Não obstante o letreiro daquela sepultura”, diz Noronha:
“nela achámos já sepultado seu pai, António Mialheiro (...), fidalgo da Casa del Rei, que
faleceu em 15 de Janeiro de 1565”465.
22. Porta lateral da capela da Encarnação. Esta porta é
encimada por uma cabeça esculpida, coberta por um barrete,
tipicamente quinhentista. Na esquina do contraforte, à esquerda,
vemos uma máscara do demónio, muito semelhante à do púlpito
da Sé do Funchal. Fotografia de Rui Camacho, DRAC
Por disposições testamentárias do cónego fundador do mosteiro, também os padroeiros
proprietários, que foram, por disposição do mesmo, os provedores da Fazenda Real de Sua
Majestade, Francisco de Andrada e seus sucessores no cargo, adquiriram o direito de ter
sepultura na capela-mor no mosteiro da Encarnação466. Noronha, referindo-se ao altar de
Santa Teresa, situado na capela-mor do lado do Evangelho, afirma: “A seus pés têm seu
enterro os Provedores, proprietários da fazenda real, e nele jaz Ambrósio Vieira de Andrada,
fidalgo da Casa de Sua Majestade, provedor proprietário, que faleceu em Setembro de 1699, a
quem as religiosas concederam o Padroado”467, conforme o testamento do fundador. Também
458
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 70
António Aragão, Para a História do Funchal, 2ª edição, 1987, p. 128.
460
João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 28 - 29: Auto da Vistoria; Luiza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 70.
461
Deão é o dignitário eclesiástico que preside ao cabido, ou seja, à assembleia dos cónegos da Sé ou Catedral. Após a morte de D. Jerónimo
Fernando, a diocese ficou vaga durante 30 anos, pois só em 1671 a cidade do Funchal teve novo bispo residencial, D. Frei Gabriel de
Almeida; esta a razão porque o processo de fundação do mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação, em 1660, e de Nossa Senhora das
Mercês, em 1667, passou pelo Dr. Pedro Moreira, na qualidade de provisor e vigário geral em todo o bispado. (Ilhas de Zargo, II, pp. 448 –
449).
462
João Cabral do Nascimento, op.cit., pp. 28 - 29:Auto da Vistoria.
463
João Cabral do Nascimento, op.cit.,, pp. 28 - 30: Auto da Vistoria.
464
Noronha, op. cit., p. 278; Arquivo Histórico da Madeira, 4 (1934) 34; João José Abreu de Sousa “Os Mialheiros - século XVI-XVII,
Islenha, 9 (1991) 50; “A Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 34.
465
Noronha, op. cit. 278; João José Abreu de Sousa, art. cit., Islenha, 9 (1991) 50; “ A Igreja da Encarnação “(Funchal), Boletim da
DGEMN, 84 (1956) 34.
466
Noronha, op. cit., 278 - 279; João Cabral do Nascimento, op cit., p. 38.
467
Noronha, op. cit., p. 278 - 279.
459
126
Fernando de Menezes Vaz esclarece que já lá havia sido sepultado Francisco de Andrada e
sua esposa468.
23. Lápide tumular do instituidor da capela. No
presbitério da capela, em frente do altar de cantaria
branca, pode ver-se a “Sepultura de Iorge Mialheiro
Pereira e de sua Molher Dona Ilena de Menezes e seus
Erdeiros”. Fotografia de Rui Camacho, DRAC
24. Lápide tumular dos padroeiros Ao lado da sepultura
do instituidor da capela, onde outrora ficava o altar de Santa
Teresa, vê-se a lápide tumular dos padroeiros. Nela pode
ler-se: “Sepultura de Maria Frere de Andrada e de seus
Filhos com Legado nesta Capela”. Fotografia de Daniel
António Silveira Teixeira, ofm
4. Abertura do Recolhimento de Santa Teresa
Um ano depois do começo das obras, entravam no edifício as cinco primeiras
recolhidas, cujo número foi aumentando posteriormente469. O fundador deu-lhes a regra
Terceira da Ordem do Carmo e organizou-as como se fossem uma comunidade religiosa. Este
recolhimento, intitulado de Santa Teresa de Jesus, era superintendido por uma regente, Teresa
de Jesus, sobrinha do fundador, que, no exercício das suas funções, era auxiliada pela vigária,
Catarina da Encarnação, e a escrivã, Teodora de Jesus. Eram porteiras Maria do Sacramento e
Clara da Conceição, esta também sobrinha do cónego. O trabalho de sacristã estava confiado
a Luzia de São José. A estas se juntavam onze recolhidas e quatro servas, que executavam os
trabalhos domésticos e outras tarefas. Em 1658, quando o cónego dirigiu uma petição à rainha
regente para que pudessem professar, já eram vinte470.
Segundo Noronha, "principiou com grandes alicerces este recolhimento"471. Algumas
senhoras "que não chegaram a professar, por lhes faltar a vida" ali viveram com grande
santidade472.
Acontecia, porém, que, o recolhimento fundado não poderia passar a mosteiro
professo da ordem da bem-aventurada Santa Teresa de Jesus, dado que a regra da Ordem do
Carmo, proibindo o uso da carne, exigia o recurso ao peixe, lacticínios e legumes473. Ora,
sabemos que o peixe não abundava na Ilha e, precisamente no século XVII, a falta de pescado
fez-se sentir de tal forma na Madeira, que havia necessidade de recorrer ao peixe da Berbéria,
em Marrocos, e das Canárias474. O fundador foi-se, pois, consciencializando de que seria
necessário optar por outra regra, uma vez que, para prescindir do uso da carne, precisavam de
recorrer aos ovos, lacticínios e peixe. Ora, a falta de pescado era um grave problema. Acrescia
também que os legumes, parte substancial da alimentação das recolhidas, segundo a regra,
não eram muito abundantes na zona.
468
Fernando de Menezes Vaz, Famílias da Madeira e Porto Santo, Funchal, 1964, l I, p. 94.
Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 182.
470
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 14: Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658.
471
Noronha, op. cit., p. 279.
472
O P. João Ribeiro, jesuíta, que acompanhou espiritualmente o recolhimento, chegou a escrever a vida de Maria da Encarnação, falecida em
1653, pois fora alma verdadeiramente exemplar. Este mesmo sacerdote aponta o nome de outras recolhidas que ali viveram virtuosamente e
com grande edificação de todos (Noronha, op. cit., pp. 279-280).
473
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 17.. Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658.
474
ARM, Conventos, Conv. Enc., F., L 16, fol. 109 e L 22, fol. 60.
469
127
O cónego acabou por compreender que o mosteiro não poderia ser de professas da
Ordem do Carmo. Impunha-se outra opção.
CAPÍTULO II
PASSAGEM A MOSTEIRO DE CLARISSAS
1 Autorização apostólica (1651)
Estando as obras em bom seguimento e o recolhimento de Santa Teresa de Jesus com
óptima organização em tudo, muita virtude e santidade, impetrou o cónego uma bula de Sua
Santidade para que fosse mosteiro professo. Um breve apostólico de Inocêncio X, dado em
Roma a 16 de Novembro de 1651, dirigido ao deão e ao cabido da Sé, autorizava a fundação
de um mosteiro professo no recolhimento já em funcionamento, sob a jurisdição do bispo da
diocese. Permitia o referido breve a saída de uma religiosa do mosteiro de Santa Clara do
Funchal para "instrutora, mestra e plantadora" da regra que as religiosas viessem a professar,
"a qual seria uma das regras já aprovadas pela Santa Sé"475.
Munido desta autorização papal e estando o edifício provido do necessário e bem
dotado, o cónego dirigiu-se a Sua Majestade, em 1658, solicitando a passagem do
recolhimento a mosteiro476.
2. Autorização régia (1659 )
475
Frei Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 354; João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 26: Breve apostólico de Inocêncio X, dado em
Roma a 16 de Novembro de 1651.
476
João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 13 - 18 Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658.
128
De acordo com o Concílio de Trento, os mosteiros deviam ser dotados pelos seus
fundadores e, só depois de estar assegurada a sua sustentação com dotes, rendas ou esmolas
certas, se podia proceder à respectiva fundação e erecção canónica477. Foi essa a razão pela
qual o cónego se apressou a dotá-lo.
O instrumento público da dotação do mosteiro, lavrado na capela de Nossa Senhora da
Encarnação pelo tabelião Luís Gonçalves, na presença do deão do cabido Dr. Pedro Moreira,
do dotador e das recolhidas, teve lugar no dia 14 de Fevereiro de 1658478. O cónego dotava o
mosteiro da "quinta, casas, fazendas e foros" que possuía, e "mais bens que se achassem, por
sua morte, móveis e de raiz, caso Sua Majestade concedesse de ser mosteiro professo”;
pedindo também, porque tinha parentes pobres, “dois lugares de freiras para duas
sobrinhas"479. Além dos outorgantes assinou o instrumento público de dotação o P. Francisco
Gonçalves, pelas testemunhas que não sabiam escrever, bem como José de Barros e Francisco
de Sousa, moradores no Funchal480.
A resposta de Sua Majestade, dada pela provisão de 15 de Novembro de 1659, foi
favorável à petição da criação do mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, atendendo a que
a Madeira já tinha uma cidade e cinco vilas e um só mosteiro, o de Santa Clara, à decisão do
cónego de custear a fundação do mosteiro e ainda às cartas de empenhamento e aprovação
que merecera do cabido, governadores, Câmara Eclesiástica, religiosos, nobreza e povo das
Ilhas da Madeira e Porto Santo.
Assim, por alvará de 15 de Novembro de 1659, foram concedidas as licenças ao
cónego fundador, no que respeitava à profissão das sobrinhas e ao número de professas e
noviças, que deveria ser igual a trinta, não podendo fazer-se alteração deste número, sem
prévia autorização régia.
A finalizar, pedia Sua Majestade que o alvará fosse registado no arquivo do mosteiro,
do cabido e da Câmara Eclesiástica481.
3. Execução do breve de Inocêncio X
No dia 11 de Abril de 1660, o deão Dr. Pedro de Moreira, com a autoridade apostólica
que lhe assistia, fez a vistoria do edifício, achando que "a casa estava bem edificada e a igreja
mui decente"482. A 13 de Abril de 1660, conforme consta na "Sentença de Fundação e
Erecção de recolhimento em mosteiro", iniciou-se a clausura, ficando as religiosas
subordinadas ao prelado da diocese.483 Neste documento, fazia-se referência ao breve
pontifício que autorizava a transferência de uma religiosa professa do mosteiro de Santa Clara
para exercer o múnus de abadessa da nova casa religiosa. As recolhidas ficavam autorizadas a
iniciar o noviciado, no fim do qual podiam fazer profissão, ficando a usufruir todos os
privilégios e isenções da Ordem de Santa Clara484. Ficava, assim, fundado e erecto este
mosteiro.
477
AHU, Madeira, doc. 623: Cópia do capítulo X da primeira patente que mandou o Frei José da Conceição do Convento de Alferrara da
Província de Santa Maria da Arrábida, de 30 de Junho de 1720.
478
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 18: Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658.
479
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc., F., caixa 2070, doc. 25; João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 16 17: Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658.
480
João Cabral do Nascimento, op. cit., p.18 Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658.
481
João Cabral do Nascimento, op. cit., p 20: Provisão régia de 1659.
João Cabral do Nascimento, op cit., pp. 28 – 29: Auto da Vistoria.
483
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc., F., caixa 2070, doc. 25; João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 24 27: Breve apostólico de Inocêncio X, de 16 de Novembro de 1651.
484
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 23 : Sentença da fundação e erecção do recolhimento em mosteiro professo do deão, Dr. Pedro
Moreira, Vigário Geral e Cabido da Sé do Funchal, de 13 de Abril de 1660.
482
129
A autoridade eclesiástica foi buscar a primeira abadessa, a Madre Clara de São
Bernardo, à comunidade de Santa Clara, dado que o novo mosteiro dependia do bispo do
Funchal e a bula papal assim o determinava. A Madre passou para o mosteiro de Nossa
Senhora da Encarnação, no dia 18 de Abril de 1660, sete dias após a sentença de criação do
novo mosteiro, dada pelo deão, provisor e vigário geral485.
Nesta deslocação, a abadessa foi acompanhada de muitas senhoras nobres, do clero, do
cabido, do comissário do convento de São Francisco do Funchal, o P. José da Natividade, e
muito povo da Madeira. A Madre Clara de São Bernardo foi recebida no recolhimento pela
regente e recolhidas, que aceitaram a sua prelada com muita reverência, “fechando-se em
seguida a porta da clausura"486.
Além de abadessa, cargo que exerceu durante dois triénios consecutivos, foi "Mestra
de vida espiritual e, sendo só, nesta empresa de Deus, este Senhor lhe dispensou tais forças
que foi suficiente para ensinar vinte e nove, informando-as dos estilos regulares, com grande
consolação e aproveitamento de todas"487.
4. Regra e Constituições ou Estatutos
Quanto à regra a adoptar, diante da impossibilidade de o mosteiro seguir a regra de
Nossa Senhora do Carmo, uma vez que o breve apostólico de Inocêncio X dava a
possibilidade de "seguir qualquer regra aprovada pela Sé Apostólica", o cónego decidiu colher
o parecer régio. Por isso, quando no final do ano de 1658 escrevia a Sua Majestade, pedindolhe licença para que o recolhimento passasse a mosteiro professo e que as senhoras ali
recolhidas pudessem professar, deixava à rainha regente toda a liberdade de decidir quanto à
regra a observar488.
A resposta foi rápida. Na provisão real de 15 de Novembro de 1659, que autorizava que
o convento fosse professo, D. Luísa de Gusmão, remetia para o cónego aquela opção. Calaça
de Viveiros, conhecedor do apreço que a rainha, desde há muito, vinha mostrando pela Ordem
de Santa Clara, achou por bem, depois de consultadas as recolhidas, que o mosteiro fosse de
espiritualidade franciscana, o que o deão, o Dr. Pedro Moreira, e o cabido, em seu nome e dos
prelados futuros, aceitaram. Escolhida a Regra de Urbano IV pelo cónego e recolhidas, o
vigário geral concedeu-lhes “licença para tomarem o hábito que pedem da gloriosa virgem
Santa Clara"489 e iniciarem o noviciado, no fim do qual fizeram a profissão.
À Regra juntavam-se as Constituições ou Estatutos que, nada acrescentando ao texto da
fundadora, pormenorizavam, para cada circunstância, a forma de agir e as atitudes a assumir.
A comunidade devia observá-los no seu viver quotidiano. Elaborados após o Concilio de
Trento, e no seguimento dos princípios por ele preconizados, estabeleciam uma certa
uniformidade nos mosteiros da Ordem de Santa Clara, seguidores da Regra de Urbano IV.
Continham um total de cinquenta e um capítulos, dos quais os cinco primeiros diziam respeito
à Abadessa: eleição, atribuições e deveres. Os três seguintes estabeleciam as condições de
admissão e os restantes diziam respeito à oração, entradas na clausura e exéquias
485
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa 2070, doc. 25; Fernando da Soledade, op. cit., III, p 354; João
Cabral do Nascimento, op. cit, pp. 32-33: Auto da entrega que fazem o reverendo comissário dos convento de São Francisco e de Santa Clara
desta cidade e a madre dele, da reverenda Madre Clara de São Bernardo, freira professa do dito mosteiro de Santa Clara, para ir fundar o
novo da Encarnação, em virtude de um breve de Sua Santidade.
486
João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 32-34 : Auto da entrega que fez o Juiz Apostólico da Madre Clara de São Bernardo, dentro da
clausura do mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação, desta cidade, de 18 de Abril de 1660.
487
Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 354.
488
João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 17 - 18.
489
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 23 : Sentença da fundação e erecção do recolhimento em mosteiro professo (...), de 13 de Abril de
1660.
130
5. Padroado
Edificado o mosteiro a expensas do Cónego Henrique Calaça de Viveiros, e por ele
dotado segundo as normas do Concílio de Trento, assistiam-lhe todos os direitos do padroado.
Ele, porém, cumpridas as obrigações de fundador, não desejando para si direitos nem honras
consequentes, pediu que "Sua Majestade seja servido incorporar em sua real coroa todo o
honorífico da dita obra e padroado" e que, se fosse servido, o desse "a uma das pessoas reais
como o são os sereníssimos infantes deste Reino"490. E, na sua modéstia, acrescentou que "ele
em nada quer ser nomeado nem gozar de honras algumas e até a sua sepultura quer que seja
na capela maior da Sé, aonde se enterram os mais capitulares dela"491e não na igreja do
mosteiro, honra que lhe cabia como fundador. Pediu apenas que, como tinha parentes pobres
que, sem dúvida, esperariam herdar os seus bens, lhe fosse concedido que os dois lugares já
ocupados no recolhimento por Teresa de Jesus e Clara da Conceição, suas sobrinhas, ficassem
para sempre, isto é, fossem perpétuos, para que, após a sua morte, outras pudessem entrar,
escolhidas pelo bispo da diocese entre os descendentes do lado de pai e da mãe,
alternadamente492.
O alvará régio, de 15 de Novembro de 1659, dava resposta satisfatória em tudo, salvo
no que dizia respeito ao padroado do mosteiro. "E no mais do Padroado que ao suplicante, o
Reverendo Cónego Henrique Calaça pertence por fundador do dito mosteiro, mandamos se
lhe guarde em todo, com todas as honras, direitos e proeminências que de jure lhe
pertencem"493.
O cónego, primeiro padroeiro do mosteiro por ele fundado, teve sepultura na capelamor. No seu testamento deixou exarado: “No que toca a meu enterramento não disponho nada
porque como sou cónego nesta santa Sé do Funchal e vejo a caridade e amor com que o muito
Reverendo Cabido enterra os seus Irmãos, não me fica lugar mais que de lhe pedir seja
servido de me perdoar minhas faltas”494. Porém, as religiosas fizeram questão de que os seus
restos mortais tivessem sepultura na capela do mosteiro, direito que lhe assistia como
fundador e padroeiro. O Livro de Óbitos da Sé, 74, confirma o sobredito: “Aos 26 de Maio de
1662 faleceu o Reverendo Cónego Henrique Calaça, fundador do Convento da Encarnação
(...), foi sepultado no mesmo Convento”495.
No seu testamento, feito a 11 de Maio de 1662, deixou escrito: " e todo o direito que
tenho do dito mosteiro como fundador, que fui dele, à minha custa, deixo a minha sobrinha
Teresa de Jesus para que ela procure que vá em aumento o temporal dele. E peço à muito
Reverenda abadessa e mais Religiosas lhe tenham sempre o respeito devido e com ela se
aconselhem (...), que a experiência tem mostrado que para tudo tem talento e é a que tem e
sempre teve, maior trabalho na conservação do dito mosteiro"496. O cónego, embora tivesse
deixado por sua testamenteira a sobrinha Teresa de Jesus, religiosa professa do mosteiro, quis
associar a ela mais um membro: “deixo também por testamenteiro e procurador do dito
convento o P. João de Sousa de Almeida, Beneficiado da igreja de Nossa Senhora do Calhau,
por entender que com muito zelo procurará as coisas do mosteiro”497.
490
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 16: Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658, e p.19: Provisão régia de 15 de
Novembro 1659.
491
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa 2070, doc. 25, fol.1v: Auto de Avaliação do mosteiro de 14 de
Abril de 1863.; João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 16 : Instrumento de Doação (...)de 14 de Fevereiro de 1658.
492
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 16: Instrumento de doação (...)de 14 de Fevereiro de 1658.
493
João Cabral do Nascimento, op. cit, p. 24 : Sentença de Fundação e erecção de recolhimento em mosteiro professo, de 15 de Abril de
1660.
494
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 37: Treslado do próprio testamento do Cónego Henrique Calaça de 11 de Maio 1662.
495
ARM, Paroquiais , Livro de Óbitos da Sé, 74, fol. 26v.
496
João Cabral do Nascimento, op. cit., p.38: Treslado do próprio testamento (...) de 11 de Maio de 1662.
497
João Cabral do Nascimento, op. cit. ,p.39: Treslado do próprio testamento (...) de 11 de Maio de 1662.
131
Por escritura, de que no mesmo testamento se faz menção, a protecção do mosteiro
ficava confiada “ ao senhor Francisco de Andrada, provedor da Fazenda de Sua Majestade, e a
todos os seus sucessores no dito cargo, de que me fio que sempre ampararão o mosteiro como
seus protectores, no que farão grande serviço a Deus"498.
CAPÍTULO III
A FAMÍLIA CONVENTUAL
A comunidade era constituída por religiosas professas, que tinham o título de Madres e
por noviças, às quais estavam ligadas as candidatas, meninas que, por sua vontade ou dos
familiares, ali estavam para serem criadas para freiras e que, na idade própria, eram admitidas
ao noviciado.
Para todos os trabalhos necessários havia as servas, também chamadas irmãs, ligadas à
comunidade por um compromisso religioso. Com fins educativos entravam algumas moças
nobres cuja formação era sempre objecto de cuidados específicos por parte das religiosas.
A vida comunitária, caracterizada, então, pela regularidade, uniformidade e
recolhimento, era a forma mais profunda e radical de responder ao apelo de Cristo. Em função
do seu carisma, a ocupação mais importante das religiosas era a oração. Para isso, o mosteiro
tinha o seu horário de oração comunitária, na qual todas as religiosas deviam participar.
1. Constituição da família conventual
1.1. Candidatas ao noviciado
498
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 38. Trata-se da família Andrada e não Andrade.
132
Segundo a Regra de Urbano IV, nenhuma candidata deveria ser admitida ao noviciado
“sem prévio consentimento de todas as Irmãs ou pelo menos de dois terços delas”499 e depois
de se ter obtido licença do bispo da diocese. Durante o noviciado deveriam ser informadas
sobre o teor da vida da Ordem, para que a sua opção fosse livre e consciente. Não poderiam
ser admitidas à profissão candidatas com idade avançada ou doentes, para que não se
perturbasse ou relaxasse o vigor da vida religiosa. E, concluía a Regra de Urbano IV, “tenhase suficiente cuidado com as pessoas que se admitem, a fim de se evitarem tais perigos”500.
As candidatas do mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação eram oriundas
essencialmente da Ilha da Madeira, mas também lá viveram religiosas de Porto Santo, de
Lisboa, Viana, Leiria, Brasil e Irlanda. De Viana eram as Madres Mariana de Santa Teresa e
Luísa Maria dos Santos, esta órfã de pai, que professaram em 1689 e 1712, respectivamente.
Neste último ano professou a Maria Teresa de Jesus cujos pais eram de Leiria e em 1733
professou a Ana de São José, natural da Irlanda, viúva do morgado José Carvalhal.501Do
Brasil vieram três candidatas, das quais duas eram irmãs, órfãs de mãe, que professaram em
1706 e 1712. A outra, Teresa de Jesus, também órfã, professou em 1739502.
Segundo as leis canónicas, as candidatas não podiam entrar sem dote. As religiosas do
número legitimamente estabelecido pagavam o dote de 400.000 reis503 que, por meados do
século XVIII, passou para 600.000 e, em 1819, para 800.000504, enquanto as extranumerárias,
que aparecem a partir de 1677, entravam com o dote de 600.000 reis505 que, em meados do
mesmo século, atingiu 1.000.000 de réis506. Seis filhas do Dr. Luís Dias e de D. Beatriz
Mendes Saldanha, irmãs do Cónego Saldanha e do desembargador Bento Teixeira Saldanha,
que entraram a 6 de Junho de 1683 e professaram um ano depois como extranumerárias,
gozaram do especial privilégio de pagar o dote de 400.000 reis507. O dote era entregue ao
mosteiro, ou, pelo menos, era-lhe garantida a entrega antes da profissão. Nalguns casos, o
dotador ficava a dever o dote e dele pagava juros.
As candidatas madeirenses eram quase todas da parte meridional da Ilha, zona produtiva
e rica, pois que, sendo o dote muito elevado, não era fácil a entrada a jovens pertencentes a
famílias economicamente débeis. A maior parte delas eram naturais da cidade do Funchal,
predominando as filhas de famílias da capitania. Desde 1660 a 1777, das trezentas e cinco
religiosas que viveram no mosteiro, pelo menos cento e trinta e sete seriam naturais do
Funchal, pois lá viviam os seus progenitores 508.
Por imperativo da época, a maior parte das candidatas entrava de tenra idade, cinco,
sete, dez e doze anos, sendo ali “criadas para freiras”. A título de exemplo diremos que, em
meados do século XVII, a menina Úrsula, filha do provedor da Real Fazenda, entrou com oito
anos e em 1853 a Elisa Amália Correia, natural do Funchal, com onze509.
O mosteiro resolvia habitualmente problemas de orfandade. Num total de trezentas e
cinco admissões, desde a sua origem até 1740, sessenta e cinco, ou seja 20%
aproximadamente, eram órfãs. Entre elas havia quinze órfãs de pai e de mãe, dezasseis órfãs
499
RU 4, III, 7, in FF II, p. 348.
RU 4, III, 7 in FF II., p. 348.
501
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 7, fol. 65; Eduarda Maria de Sousa Gomes, O Convento da Encarnação. Subsídios para a sua
História, Funchal, 1995, p. 34. Esta dissertação de mestrado é trabalho bem documentado e de valor histórico.
502
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 4; Eduarda Maria de Sousa Gomes , op. cit., p. 34.
503
Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 70; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 8, 14 e 15; ARM, Conventos, Conv. Enc. F,
L 14 e 15.
504
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 35.
505
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 7 ; ARM, Conventos, Conv. Enc.F., L15 e 18.
506
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 16.
507
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 7, fol. 58; Noronha, op. cit., p. 281.
508
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 4; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op .cit., p. 33.
509
AHDF, Conv. Enc. F., caixa 25, capilha 6, doc. avulso: Súplica de Júlio Correia em favor de sua filha Elisa Amália Correia e despacho do
tesoureiro da Câmara Eclesiástica de 6 de Fevereiro de 1853. No mesmo documento Júlio Correia declara ter recebido a quantia solicitada.
500
133
de pai e trinta e quatro de mãe510. O mosteiro da Encarnação prestou neste campo serviço
relevante à sociedade madeirense.
Enquanto umas entravam em meninas, outras ingressavam numa fase tardia da vida,
como aconteceu com as seis irmãs do Cónego Saldanha e do desembargador Bento
Saldanha, que entraram a 6 de Junho de 1683 e professaram no ano seguinte, sendo de idades
compreendidas entre os cinquenta e cinco e os setenta e dois511. Estes e tantos outros casos
mostram, à evidência, que o mosteiro dava resposta a problemas de ordem social, conforme a
mentalidade da época.
No que concerne à origem social, verifica-se a entrada de candidatas nobres e também
de famílias humildes. Entre as que ascendiam à nobreza apontamos, como exemplo, quatro
filhas512 e uma neta513de Francisco de Andrada, “nosso fidalgo da Casa de sua Majestade,
cavaleiro professo de hábito de Cristo e provedor da Real Fazenda”514; duas filhas do capitão
Brás de Freitas da Silva, fidalgo de Sua Majestade e cavaleiro de Cristo515; várias sobrinhas
do cónego fundador e algumas filhas de morgados, entre os quais, Robert Vilovi.
O mosteiro recebia jovens com dificuldades económicas, particularmente se nelas se
detectasse verdadeira vocação. Em 1754, a comunidade pagou 4.445 reis que os pais da
religiosa Antónia de Santo Agostinho ainda deviam, por serem pobres e, consequentemente,
terem dificuldades económicas. Também o bispado auxiliava algumas vezes a completar o
dote a jovens pobres, como foi o caso de Elisa Amália Correia, a quem a Câmara Eclesiástica
ajudou com 26.000 reis516.
É certo que, se houve casos de religiosas cuja opção não foi livre, porque foram
pressionadas por familiares e por condicionalismos de natureza social, outras houve, e em
número bem maior, que foram movidas pelo desejo de viverem para o Senhor, pelo anseio de
se consagrarem a Deus pela profissão religiosa. Há casos encantadores: em 1827 uma filha de
João Mendes, a Matilde, da freguesia de Santa Luzia, entrou porque, diz o pai, “tem sumo
desejo e sincera vocação de servir a Deus no estado religioso, no mosteiro de Nossa Senhora
da Encarnação”517; a Elisa Amália Correia, já referida, filha de Júlio Correia da Silva
Acciaiuoli, morador na freguesia de Santa Maria Maior, que tinha no mosteiro uma irmã e
uma tia, freiras professas, desejava tanto entrar no noviciado que o pai se viu na obrigação de
auxiliá-la na concretização do seu anseio. “Esta criança” diz ele, “tendo visitado aquelas tias
até a idade de sete anos, ficou com toda a vocação de viver naquela casa e insta
continuamente para ser pupila nela”518.
1.2. Profissão religiosa
Normalmente, a jovem era admitida ao noviciado aos quinze anos; se a entrada no
mosteiro se fizesse mais cedo, aguardava a idade legal uma vez que a profissão só podia
fazer-se depois dos dezasseis anos. No coro, em cerimónia religiosa, em que presidia o
prelado ou um seu delegado, recebia o burel de Santa Clara cor de cinza e véu branco, que na
profissão era substituído por um véu preto.
510
Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit , p. 32.
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 7, fol. 58.
Trata-se de D. Isabel , D. Maria, D. Úrsula e D. Mariana de Andrada (Fernando de Menezes, op. cit., p. 94).
513
Trata-se de D. Teresa, filha do provedor da Real Fazenda e padroeiro do mosteiro, Ambrósio Vieira de Andrada, que sucedeu ao pai no
cargo real e no padroado do mosteiro (Fernando de Menezes, op. cit., p 94).
514
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 1, doc. avulso..
515
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F, L 7, fol. 12.
516
AHDF, Conv. Enc. F., caixa 25, capilha 6, doc. avulso: Súplica de Júlio Correia em favor de sua filha Elisa Amália Correia (...) de
Fevereiro de 1853.
517
AHDF, Conv. Enc. F., caixa. 25, capilha 5, doc. avulso.
518
AHDF, Conv. Enc. F., caixa. 25, capilha 6, doc. avulso.
511
512
134
Antes de terminar o noviciado, a admissão ou despedimento da candidata decidiam-se
por votação secreta. Se tivesse a seu favor a maioria das religiosas professas, disso se
informava o bispo da diocese, que deveria, antes da profissão, mandar fazer o exame
canónico, a fim de se informar da recta intenção, da autenticidade da vocação e da liberdade
de opção. Antes da profissão deveria ser feita e assinada a escritura de dotação.
Com antecedência se tomavam as necessárias providências para que a capela se
revestisse de festa, profusão de flores, muitos círios, as mais belas toalhas e paramentos. Em
1676, a comunidade pagou 150 réis pelo aluguer de vinte círios para a profissão de Joana de
Jesus519.
Este acto de consagração tinha lugar no coro baixo, na presença da comunidade, dos
familiares e amigos. A ela presidia o prelado ou um seu delegado. A neoprofessa
comprometia-se, diante de Deus, da Igreja e da Ordem, a “viver todo o tempo da sua vida sob
a regra concedida pelo Senhor Papa Urbano IV, em obediência, sem próprio, em castidade e
em clausura, segundo o que está ordenado na mesma regra”520. A sua profissão era um
testemunho público da prioridade de Deus. Dela se fazia uma acta em livro próprio, assinada
pelo presidente da celebração, pela abadessa e sua vigária, a mestra de noviças, as discretas e
a neoprofessa.
O dia da profissão era dia festivo, um dia celebrado com amor fraterno e carinho. Não
faltavam as flores, os bolos, o encanto e a alegria no rosto de todas, testemunhando a
felicidade das religiosas, que viam aumentada a comunidade com um novo membro, um
membro empenhado na prática da virtude e conquista da santidade. Não foi sem razão que
Noronha escreveu: “muitas têm sido as religiosas desta casa (...), que acabaram nela com
mostras de santidade; e delas teríamos muito que escrever (...); algumas floresceram nas
virtudes”521. Fernando Augusto da Silva refere que “muitas das suas religiosas foram modelos
na prática de todas as virtudes, tendo algumas deixado o nome aureolado pela santidade”522.
1.3. Evolução da comunidade
Conforme a petição do cónego fundador, a provisão régia e o breve apostólico, o
mosteiro era instituído para trinta religiosas; porém, bem depressa passou a ter mais. Na
segunda década da sua existência, as religiosas já eram sessenta, número que foi legalizado
pela autoridade competente. A estas religiosas ditas “do número” ou numerárias, foram-se
juntando as extranumerárias, também designadas supranumerárias, que nalgumas épocas
chegaram a ser mais que as do número autorizado.
Embora com alguma dúvida, apresentamos os seguintes dados estatísticos:
Quadro nº.16 - Evolução da Comunidade
Ano
Professas523
Noviças Educandas
Servas
519
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 9, fol. 129; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p..28.
RU 4, III, 9, in FF II., p. 348.
521
Noronha, op .cit., p. 279.
522
Ferrando Augusto da Silva , op. cit.,.I, p. 183.
523
O quadro inclui as religiosas numerárias e extranumerárias. Não é possível dissociá-las por falta de clareza documental.
520
135
1660
1666
1671
1677
1682
1690
1694
1697
1700
1702
1704
1705
1709
1712
1720
1725
1728
1731
1732
1733
1735
1740
1750
1764
1788
1808
1820
1822
1843
1861
1872
30
35
50
63
62
90
87
91
74
96
104
106
114
114
120
130
138
140
143
144
121
118
114
130
69
42
33
31
31
10
4
6
-
9
2
2
2
10
16
30
30
27
30
13
17
17
Fontes: AHU, Madeira, doc. 261 e 842; AHDF, Conv. Enc.F., caixa 25,
capilha 3, doc. avulso; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L
41; ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 1.
Observando estes dados, podemos constatar um aumento ininterrupto de religiosas
desde a origem do mosteiro até 1733, ano em que a comunidade atingiu o número máximo,
com cento e quarenta e quatro membros; as extranumerárias eram, então, em maior número.
Por uma relação de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, prelado do Funchal, enviada ao
ministro Francisco Xavier de Mendonça Furtado a 16 de Agosto de 1764, sabe-se que as
religiosas extranumerárias eram então setenta524. O aumento da comunidade verificado na
primeira metade do século XVIII é explicável pela prosperidade que então se constatava na
Ilha e consequente surto populacional. Tal prosperidade traduziu-se no mosteiro de Nossa
Senhora da Encarnação em opulência e ascensão. A partir de 1764, a descida foi brusca. Era a
repercussão, no interior da comunidade, das leis pombalinas que proibiam a admissão ao
noviciado. As religiosas foram diminuindo e envelhecendo, sem que jamais se pudesse
revitalizar a comunidade. As medidas pombalinas e depois delas as leis liberais, fizeram
entrar o mosteiro em lenta agonia.
A descida continuou até 1890, ano em que o edifício, por morte da última professa, a
Madre Felisberta Cândida de São Bernardo, foi tomado pelo Estado 525.
1.4. Moças educandas
Na época que estamos a considerar, os mosteiros apareciam como lugares de
concretização de anseios espirituais - consagração religiosa - mas também de preservação e
defesa de valores humanos, morais e religiosos da sociedade. A teor desta mentalidade, a
524
AHU, Madeira, doc. 261: Relação de todos os mosteiros de religiosas que tem esta Ilha da Madeira e bispado do Funchal e do número de
todas as ditas religiosas que residem nele.
525
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 3; O jornal A Verdade, de 24 de Outubro de 1890.
136
nobreza orgulhava-se não só de que as suas filhas professassem nos mosteiros como também
de que fossem educadas pelas religiosas as filhas que julgavam destinadas ao casamento. Os
documentos apelidam-nas de “moças nobres” ou “moças educandas”. Entravam por ordem
régia ou pelo menos, com a respectiva licença, com fins educativos. Depois de uma boa
educação religiosa, cultural e artística, a que se aliava uma primorosa formação feminina, isto
é, governo da casa e condução dos trabalhos domésticos, voltavam ao seio da sociedade. A
elas voltaremos nos apartados da Cultura e da Decadência.
1.5. Servas, servos e assalariados
O capítulo 37 dos Estatutos do mosteiro previa e permitia a existência de servas no
interior da clausura e determinava o seu número: um terço do número das freiras526. As servas
também apelidadas de moças e irmãs, estavam ao serviço da comunidade, mas sem dela
fazerem parte. Realizavam serviços no interior da clausura e ficavam alojadas na chamada
casa das servas. Tinham estatuto próprio, que lhes impunha um regulamento e exigia um
comportamento honesto e exemplar. A maior parte delas estava integrada na Irmandade das
Almas527.
Além destas servas ou irmãs528, o mosteiro tinha ao seu serviço servos que habitavam na
loja do mosteiro e eram alimentados, vestidos e calçados pela comunidade. Alguns deles
encontravam-se na condição de escravos.
A comunidade recorria também a assalariados ou jornaleiros que executavam todos os
trabalhos agrícolas das duas cercas, administradas por exploração directa: trabalhos de
lavoura, rega, horta, ceifa, encana, poda, vindima, trasfega, idas à serra, limpeza dos terreiros
e outras tarefas. Na primeira metade do século XVIII, o número dos assalariados, bem como a
sua diária, foi sempre aumentando, chegando o mosteiro a ocupar em certos meses, sessenta,
setenta, oitenta e cinco, cento e oito homens, trabalhando em “rancho”. Os preços diários
eram os correntes, mas variáveis conforme trabalhavam a seco ou a comer529. A partir de 1756
os trabalhadores foram reduzidos ao mínimo: vinte, quinze, sete, quatro e por vezes um, por
mês530.
Ao serviço do mosteiro estava também o almocreve, que se encarregava de alguns
transportes e o abastecia de lenha, e o boieiro, encarregado da moenda, de alguns carretos e da
debulha do trigo531.
2. O governo da comunidade
2.1. A abadessa
De acordo com a Regra e Estatutos do mosteiro a primeira autoridade era a abadessa.
Seria livremente eleita pela comunidade e confirmada pela autoridade jurídica competente,
que era o bispo da diocese ou o seu legítimo representante, salvo de 1807 a 1814, período em
que, estando a comunidade incorporada na de Santa Clara, dependiam do Custódio Provincial
da Ordem dos Frades Menores da Madeira.
526
Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit, p. 38.
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 1.
Hoje, às religiosas de qualquer instituto feminino apraz-lhes serem chamadas Irmãs. Na época que estamos a considerar, irmã era a serva,
a moça, a criada, pois os membros da comunidade autodenominavam-se madres ou freiras, nome que não tinha, então, o sentido pouco
amistoso dos tempos actuais. Também os membros de qualquer confraria usavam o apelativo de irmãos e irmãs.
529
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 22 e 23.
530
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L. 16, 22 e 24.
531
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 24, fol. 32 e L 33, fol. 42.
527
528
137
A Regra de Urbano IV recomendava que as religiosas deveriam ter o cuidado de eleger
para abadessa “uma religiosa virtuosa que se distinga das outras pela santidade de vida (...)
que seja fiel à vida comunitária, a fim de que as outras, estimuladas pelo seu exemplo, lhe
obedeçam por amor”532.
A eleição fazia-se por três anos somente e nenhuma abadessa podia exercer o cargo dois
triénios consecutivos. À eleição presidia o prelado ou um seu delegado. Obtida a maioria dos
Quadro nº.17 – Eleições das abadessas (1749-1882)
Triénios
Abadessas
Votantes
Votos
1749 – 1752
1752 – 1755
1755 – 1758
1758 – 1761
1761 – 1764
1764 – 1767
1767 – 1770
1770 – 1773
1773 – 1776
1776 – 1779
1779 – 1782
1782 – 1785
1785 – 1789
1789 – 1792
1792 – 1795
1795 – 1798
1798 – 1801
1801 – 1804
1804 – 1807
1807 – 1811
1811 – 1814
1815 – 1817
1817 – 1820
1820 – 1823
1824 – 1826
1826 – 1829
1829 – 1832
1832 – 1834
1834 – 1837
1837 – 1840
1840 – 1843
1843 – 1846
1846 – 1849
1849 – 1852
1852 – 1855
1855 – 1858
1858 – 1861
1861 – 1864
1864 – 1867
1867 – 1870
1870 – 1873
1873 – 1876
1876 – 1879
1879 – 1882
1882 - .....
Teresa Josefa de Santa Maria
Joana Luísa da Ressurreição
Luísa de Jesus Maria
Teodora do Monte Olivete
Luísa de Jesus Maria
Maria Bernarda do Vencimento
Lauriana Luísa da Natividade
Mariana da Paixão
Maria Bernarda do Vencimento
Luísa Catarina de São João
FranciscaTeresa dos Querubins
Juliana Maria da Vitória
Luísa Catarina de São João
Francisca dos Querubins
Luísa Catarina de São João
Juliana Maria da Vitória
Mariana Agostinha de Santa Gertrudes
Leonor Maria da Pureza
Ana Filipa do Vencimento
Luísa Maria da Estrela
Mariana Inácia de São Bernardo
Tomásia Delfina de Cantuária
Mariana Inácia de São Bernardo
Vicência Joaquina do Amor Sagrado
Filipa Nery do Espírito Santo
Vicência Joaquina do Amor Sagrado
Isabel Jacinta da Visitação
Vicência Joaquina do Amor Sagrado
Filipa Nery do Espirito Santo
Emília Romana do Empírio
Felisberta Cândida de São Bernardo
Emília Romana do Empírio
Felisberta Cândida de São Bernardo
Emília Romana do Empírio
Felisberta Cândida de São Bernardo
Emília Romana do Empírio
Felisberta Cândida de São. Bernardo
Emília Romana do Empírio
Felisberta Cândida de São Bernardo
Emília Romana do Empírio
Felisberta Cândida de São Bernardo
Emília Romana do Empírio
Felisberta Cândida de São Bernardo
Emília Romana do Empírio
Felisberta Cândida de São Bernardo
85
88
94
100
105
102
104
106
98
91
84
79
79
62
52
49
42
41
33
30
Nomeação
28
25
23
28
29
27
31
31
29
29
28
24
23
21
20
14
9
8
8
6
6
4
4
Nomeação
66
66
46
69
47
56
54
75
57
49
62
44
32
33
29
29
22
20
16
17
18
15
19
15
12
13
15
15
20
17
16
13
8
7
6
5
4
3
3
-
Fontes: ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 1
votos, era proclamada a eleita: “eu (...) secretário da eleição de todas as religiosas que
votaram, declaro por eleita em abadessa deste mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, a
muito reverenda madre (...), com (...) votos” 533. O bispo, ou o seu delegado, devia confirmar a
eleição. Depois procedia-se à eleição da vigária, do grupo das “conselheiras ou discretas”534,
532
RU 4, XXII, 36, in FF II, p. 362.
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 1, acta 2.
As conselheiras ou discretas não eram as antigas abadessas, como supõe Eduarda Maria de Sousa Gomes (op. cit., p. 26), mas sim as
Irmãs que, eleitas trienalmente, constituíam, como sucede ainda hoje, um corpo consultivo permanente, que a abadessa devia ouvir nos casos
previstos pela Regra e pelas Constituições.
533
534
138
em escrutínios secretos, escrivã e mestra de noviças. Estes cargos conferidos por três anos
careciam igualmente de confirmação do bispo da diocese. A abadessa com o seu conselho ou
discretório, tendo em conta a opinião da comunidade, procedia à nomeação das religiosas para
os ofícios mais importantes: porteiras, rodeira, enfermeira, mestra da ordem, sacristã e outros,
que eram renovados cada ano; as listas eram enviadas ao prelado para aprovação e
confirmação535.
Houve abadessas que fizeram mais que um triénio, mas nunca consecutivos, como
sucedeu com as Madres Luísa de Jesus Maria, Maria Bernarda do Vencimento, de
ascendência inglesa, Luísa Catarina de São João e Francisca dos Querubins, no século XVIII;
Mariana Inácia de São Bernardo, Vicência Joaquina do Amor Sagrado e Emília Romana do
Empírio, no século XIX.
Quadro nº.18 – Abadessas com mais que um triénio
Nome da Abadessa
Luísa de Jesus Maria
Maria Bernarda do Vencimento
Luísa Catarina de São João
Francisca dos Querubins
Mariana Inácia de São Bernardo
Vicência Joaquina do Amor Sagrado
Emília Romana do Empírio
Triénios
1755 – 1758 e 1761 – 1764
1764 – 1767 e 1773 – 1776
1776 – 1779, 1785 – 1789 e 1792 – 1795
1779 – 1782 e 1789 – 1792
1811 – 1814 e 1817 – 1820
1820 – 1823, 1826 – 1829 e 1832 – 1834
1834 – 1837 e 1843 – 1846
Fonte: ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 1, Livro das Eleições.
A Madre Clara de São Bernardo, na origem do mosteiro, governou durante dois triénios
consecutivos, isto é, de 1660-1666, mas, isto aconteceu porque, estando a comunidade no seu
começo, ainda não havia religiosas em circunstâncias de serem eleitas, pois, para o cargo de
abadessa, era necessário no mínimo trinta anos de idade e cinco de profissão e também ser
religiosa competente e com a devida experiência.
Com o Liberalismo a situação no interior do mosteiro tornou-se delicada. Não mais
houve profissões e as religiosas iam envelhecendo e adoecendo. As jovens que entravam
ficavam como pupilas. A ocupação do lugar de Abadessa passou a ser difícil quer pela
ideologia que começou a reinar no interior da comunidade quer pela situação política do país.
Desde o decreto de extinção (1834) até à morte da última professa (1890), verifica-se uma
alternância ininterrupta entre as Madres Emília Romana do Empírio e Felisberta Clara de São
Bernardo. Seriam as únicas religiosas capazes de exercer aquela função governativa com a
necessária prudência. A partir de 1882, não havendo condições para eleição canónica o
prelado fez simplesmente a sua nomeação.
Nos processos eleitorais, registam-se casos em que a abadessa eleita reunia a quase
totalidade dos votos, recaindo os restantes num grande número de religiosas.
Noutros casos, os votos recaíam, essencialmente, em duas eleitoras, sendo a eleição
decidida por uma diferença mínima de votos, por vezes, apenas um, como sucedeu em 1755,
com a Madre Luísa de Jesus Maria que ganhou a eleição com quarenta e seis votos, tendo a
Madre Teodora do Monte Oliveti, quarenta e cinco.
Verifica-se que, nestes casos, a segunda religiosa mais votada era, normalmente, a eleita
no triénio seguinte.
Quadro nº.19 – Votações mais aproximadas
Ano
Votantes
1755
94
Madres mais votadas
Teodora do Monte Oliveti
Nº de votos
45
535
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 3, doc. avulso: Pautas dos ofícios do Convento da Nossa Senhora da Encarnação dos anos 1805 e
1806.
139
1761
105
1764
102
1767
104
1773
98
1776
91
Luísa de Jesus Maria
Luísa Joana da Ressurreição
Luísa de Jesus Maria
Lauriana Luísa da Natividade
Maria Bernarda do Vencimento
Maria da Paixão
Lauriana Luísa da Natividade
Luísa Catarina de São João
Maria Bernarda do Vencimento
Francisca Querubins
Luísa Catarina de São João
46
42
47
41
56
37
54
32
57
32
49
Fonte: ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 1, Livro das Eleições.
Reparando nos quadros 17 e 19, verificamos que, de facto, das duas madres mais
votadas, apenas a Madre Luísa Joana da Ressurreição não foi eleita no triénio seguinte, talvez
por já ter sido abadessa de 1752 a 1755.
2.2. O Discretório
Após a eleição da abadessa, eram eleitas, como ficou dito, as discretas ou conselheiras.
O seu número era variável pois dependia da totalidade das religiosas que constituíam a
comunidade. Sendo três o número mínimo, quando a comunidade atingiu o seu crescimento
máximo, na primeira metade do século XVIII, as discretas chegaram a ser oito.
Atendendo à responsabilidade das suas funções, deviam ser religiosas professas
virtuosas, almas de oração e de paz, cheias de prudência e de bom senso. O seu mandato
durava três anos, não devendo ser reeleitas para um triénio consecutivo. As excepções foram
raras e sempre careciam de razões.
As discretas, juntamente com a vigária, constituíam um corpo permanente governativo –
o discretório. Cabia-lhes ajudar a abadessa do mosteiro com o seu parecer, ou o seu voto
conforme os casos, aliás previstos nos estatutos.
Esta assembleia, pela importância que tinha e pelo seu carácter de mobilidade, era um
testemunho de corresponsabilidade governativa e simultaneamente um sinal da dignidade em
que era tida a religiosa no seio da comunidade.
2.3. O capítulo conventual
O capítulo conventual, constituído pelas religiosas professas, gozava de voto
deliberativo ou consultivo, conforme os casos. Para que pudesse emitir um juízo justo e
chegar a uma decisão responsável, devia ser informado pela abadessa em cada caso, com toda
a clareza e rectidão. Só desta forma poderia ser feito um discernimento comunitário
consciente e assumida a responsabilidade de um voto por parte de cada religiosa. A abadessa
tinha o dever de consultar o capítulo conventual, em todos os assuntos de particular
importância. Assistia à comunidade o direito de ser convocada semanalmente para “dialogar
sobre os assuntos considerados úteis e importantes no âmbito espiritual e material, e até as
mais novas deviam ser ouvidas, porque”, diz Santa Clara “muitas vezes é aos mais
pequeninos que o Senhor revela o que é melhor”536. Era dever da abadessa dar contas à
comunidade da administração, pois que, embora pertencendo-lhe a gerência dos bens, não era
senhora deles537. Não podia vender propriedades, fazer contratos, aceitar ou doar bens,
contrair dívidas ou tomar outras decisões importantes sem consentimento das religiosas
capitulares e do respectivo prelado. De três em três meses devia apresentar as contas de
536
537
RU 4, XXII, 37, in FF II., p. 363.
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 15, fol. 117.
140
receitas e despesas ao capítulo ou, pelo menos, a quatro Irmãs nomeadas especialmente para o
efeito538. O parecer da totalidade das religiosas, ou da sua maioria, devia ser respeitado. Esta
corresponsabilidade, na sociedade de então, era uma verdadeira dignificação da mulher e
afirmação da fraternidade cristã.
Segundo a Regra, para que tudo fosse bem administrado, o mosteiro devia ter um
procurador ou síndico, prudente e fiel, “nomeado e removido pela abadessa e a comunidade,
como lhes parecesse oportuno”539. Este procurador devia prestar contas “de todas as receitas e
despesas, à abadessa e Irmãs nomeadas para o efeito pela comunidade e ao visitador, sempre
que este o requeresse, e nada podia vender, hipotecar ou alienar, sem consentimento da
abadessa e comunidade”540. Ao capítulo conventual, órgão supremo de governo, assistia o
direito de estar devidamente informado sobre os actos administrativos do procurador.
2.4. Livros de receitas e despesas
No início de cada triénio, o mosteiro recebia um livro de contas onde seriam lançadas
todas as receitas e despesas que tivessem lugar ao longo daqueles três anos. Na primeira folha
averbava-se a sua finalidade: “Livro em que será lançada a receita deste mosteiro de Nossa
Senhora da Encarnação, sendo abadessa (...) e escrivã (...) no presente triénio que começa a
(...)”. Por ordem do bispo, o livro era paginado e as suas folhas rubricadas pelo confessor, o
secretário da Câmara Eclesiástica ou outra entidade designada para o efeito541.
A escrivã lançava neste livro todos os rendimentos das propriedades rústicas e urbanas,
os juros, vendas, e qualquer outra receita, com muita minúcia e clareza. De igual forma, ali
registava todas as despesas: pagamento do capelão, sacristão, missas, despesas com a igreja,
reparações, despesas com as servas, servos e assalariados, procuradores, médicos, boticário,
calçado das religiosas, vestuário, compra de produtos de consumo – trigo, açúcar, especiarias,
peixe, carne e tantos outros.
Trimestral ou quadrimestralmente, a abadessa dava a conhecer o estado de contas ao
capítulo conventual, sendo, seguidamente, submetidas ao revisor indicado pela autoridade
eclesiástica, após o que, se estivessem correctas, eram aprovadas pelo bispo. Verificamos que,
em certos casos a aprovação episcopal se fazia no fim de cada ano. Vejamos, a título de
exemplo: a 26 de Junho de 1823 o P. João Manuel Andrade que, por ordem do bispo,
examinava as contas, deixou exarado no respectivo livro: “Em observância do provimento de
Vossa Excelência, examinei esta conta de receita do último trimestre da muito reverenda
abadessa D. Vicência Joaquina do Amor Sagrado e, conferindo-as com os documentos, as
achei conformes e certas (...) e lançadas com muita clareza”542. Era então escrivã a Madre
Felisberta Cândida de São Bernardo. Pôde, pois, o prelado do Funchal, D. Francisco José
Rodrigues de Andrade, aprová-las, o que aconteceu no dia 14 de Julho: “aprovamos as
presentes contas de receita que houve no quarto trimestre do terceiro ano em que foi abadessa
a reverenda Madre Vicência Joaquina do Amor Sagrado e muito louvamos o zelo e cuidado
com que administrou as rendas do convento de Nossa Senhora da Encarnação”543.
Ocasiões houve, e não poucas, em que nos livros ficavam averbadas observações pela
falta de clareza, ou porque foram encontrados erros, o que obrigava à revisão das contas.
538
RU 4, XXII, 38, in FF II., p. 363.
RU 4, XXI, 34, in FF II., p. 362.
540
RU 4, XXI, 34, in FF II., p. 362.
541
Assim se lê em cada livro: “Damos comissão ao escrivão da nossa Câmara para numerar e rubricar este livro, que servirá para no mesmo
se lançarem as contas da receita do mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação e fará no fim o competente encerramento. Paço Episcopal, 30
de Maio de 1826” (ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 35).
542
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 33, fol. 70.
539
543
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F, L 33, fol. 70 v.
141
À medida que estes livros nos passaram pelas mãos, verificámos a competência das
religiosas e a perfeição com que trabalhavam. Verificámos também que, raríssimas vezes, a
mesma religiosa exercia o ofício de escrivã mais que um triénio. Esta contínua mutação
demonstra que havia no mosteiro muitas religiosas cultas e aptas.
CAPÍTULO IV
ESPIRITUALIDADE E CULTURA
1. Vida espiritual
1.1. Eucaristia e ofício divino
A oração litúrgica - missa e ofício divino - era tempo prioritário na vida espiritual da
comunidade. O ofício, rezado ou cantado, era celebrado segundo o costume da Primeira
Ordem Franciscana e, recomendava a Regra, que devia ser celebrado com seriedade e
modéstia. Esta oração da Igreja estendia-se ao longo das vinte e quatro horas: Matinas à meianoite, Laudes e Prima ao romper da aurora, Tércia, Sexta e Noa, às nove, doze e quinze horas
142
respectivamente e Vésperas pelas dezoito horas. O dia terminava com a oração da noite,
Completas544, pelas vinte e uma horas. Esta oração tinha lugar no coro e nela participavam os
fiéis que o desejassem. A missa tinha lugar depois de Laudes e nela participava a comunidade,
bem como as pessoas que, vivendo no mosteiro ou na zona circunvizinha, a isso se sentissem
movidas.
Continuadoras do carisma eucarístico, específico da Ordem de Santa Clara, o mosteiro
tinha o Santíssimo Sacramento solenemente exposto, devendo cada religiosa ter, pelo menos,
meia hora de adoração, fazendo-se, nesse momento, representante de toda a humanidade junto
de Jesus Cristo. Este amor ao Santíssimo Sacramento receberam-no as clarissas da sua
fundadora, Santa Clara, mulher extraordinariamente eucarística. E tão gostosamente o
assumiram que, ao longo dos tempos, jamais os mosteiros deixaram de privilegiar a
Eucaristia, mantendo o Santíssimo Sacramento solenemente exposto, se não todo o dia, pelo
menos durante umas largas horas. No mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação viveram
religiosas marcadas por este amor. Entre outras, mencionamos as Madres Teodora de Jesus,
Joana Baptista e Filipa da Encarnação545.
A coroa portuguesa, ligada à orgânica dos mosteiros, contribuía para a manutenção do
culto eucarístico. A Câmara Eclesiástica do Funchal entregou, duma só vez, 36.060 reis para
quatro arrobas e meia de azeite e duas de cera, de que Sua Majestade dispunha para o culto do
Santíssimo Sacramento546.
O Funchal teve, ao longo dos séculos, três mosteiros de religiosas clarissas, mantendo a
adoração diurna; daí irradiou o amor a Jesus Eucaristia, que se tornou forte e palpável entre a
população! Não terá sido essa a razão que levou D. Francisco Antunes Santana, bispo do
Funchal, a chamar ao arquipélago da Madeira, nas suas prédicas, “Ilhas do Santíssimo
Sacramento”?
1.2. Outros actos de piedade
As religiosas, para além da oração dita comunitária, procuravam alimentar a sua vida
espiritual com práticas de piedade, particularmente a via-sacra, devoção caracteristicamente
franciscana.
As solenidades da igreja mais significativas deviam as religiosas celebrá-las com
esplendor não só na igreja mas na própria vida conventual. A alegria e o ar festivo
assinalavam o Natal, a Páscoa, as festas da Nossa Senhora, particularmente da Conceição e da
Encarnação, de Santa Clara, São Francisco, Todos os Santos e outras. Eram sempre
antecedidas por novenas preparatórias ou pelo menos por um tríduo, habitualmente, sob a
orientação dum pregador.
Respondendo ao sentir da época e, por vezes, até às solicitações dos prelados, as
religiosas inseriam-se em irmandades e confrarias, como aconteceu com a irmandade das
Almas547 e a confraria de Nossa Senhora do Monte, cumprindo todas as obrigações
devocionais a que cada membro se comprometia548.
Procuravam cumprir devotamente as capelas e outros legados pios e ainda os sufrágios
pelas religiosas e benfeitores falecidos e responder aos pedidos de oração que tantas vezes
lhes eram dirigidos: interceder pela saúde de alguém, pedir o regresso da guerra, a boa viagem
no mar549, o retorno ao bom caminho e até orar pela rainha quando esperava ser mãe. D.
544
RU 4, VI, 13, in FF II., p. 350.
Noronha, op. cit., pp. 279 - 282.
546
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F, L 28, fol. 51 v.
547
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1.
548
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 2.
549
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 5, doc. avulso.
545
143
Maria II, feliz por se haverem reatado as relações do Estado Português com a Sé Apostólica,
suplicava, em Junho de 1841, que “no primeiro Domingo ou dia santo, se cantasse o Te Deum
com solenidade, em cada uma das igrejas dos respectivos mosteiros e se rendesse graças a
Deus Nosso Senhor”550. Mais pedia que se solenizasse esse dia com “repiques de sinos”. Em
1865 foram pedidos três dias de oração, 6, 7 e 8 de Abril, aos mosteiros de clarissas do
Funchal, para obter a graça de um feliz nascimento do filho de D. Maria Pia de Sabóia, esposa
de D. Luís551.
1.3. Vida de recolhimento e ascese
Sabendo que a íntima comunhão com Deus supõe a necessidade de recolhimento de
todo o ser, o silêncio era vivenciado pelas religiosas, não como um mandato, mas como
espaço interior essencial e necessário para escutar o Senhor.
Santa Clara, boa pedagoga nesta matéria, “ensinava as irmãs a afastarem dos corações
toda a espécie de ruído, a fim de se fixarem unicamente na intimidade de Deus”552.
Segundo a Regra de Urbano IV, que a comunidade professava, o silêncio devia ser
observado fielmente, sempre que não houvesse razões para o contrário. Na enfermaria,
contudo, essa exigência desaparecia: “tanto as débeis e doentes como as enfermeiras, podem
falar para consolação das enfermas”553. Durante a noite, desde a hora de Completas até
Tércia, as religiosas deviam guardar silêncio rigoroso, em atitude de fraterna caridade. Só um
motivo grave podia justificar uma excepção. Nas festas e solenidades, para além do recreio ou
convívio habitual, a abadessa podia autorizar um segundo recreio “para falar sobre a
solenidade e os piedosos exemplos dos santos e sobre outras coisa lícitas e honestas, num
lugar destinado para esse efeito”554.
Em atitude penitencial e no seguimento da pessoa de Cristo, deviam levar vida ascética
e mortificada. A regra que professavam prescrevia o jejum no Advento e Quaresma, bem
como às sextas-feiras e noutros dias prescritos pela Igreja. Contudo, a abadessa, podia
“dispensar, por caridade (...), as mais novas, débeis e idosas”, como achasse melhor, “de
acordo com as suas debilidades e fraquezas”555. As religiosas viviam estas formas de
penitência com amorosa generosidade, porque sabiam o valor da sua fecundidade apostólica.
As religiosas sabiam também que a vida porque haviam optado era caminho de
transformação, de seguimento de Cristo. Daí a obrigação de se empenharem na prática da
caridade, humildade, espírito de sacrifício, conhecimento dos próprios limites. Não deveriam
“dar muita importância às exigências do corpo frágil”556, como recomendava Santa Clara às
suas irmãs no mosteiro de São Damião. No apartado Testemunhos de Santidade, desceremos a
casos concretos pois muitas religiosas da comunidade da Encarnação foram modelos na
prática destas virtudes.
1.4. Filiação em duas confrarias
Na Ilha da Madeira, a espiritualidade mariana estava muito vinculada à vivência
religiosa da população, espiritualidade essa que tinha manifestações concretas e, muitas vezes,
conduzia à criação de confrarias.
550
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 6, doc. avulso.
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 6,doc. avulso: Carta circular de 5 de Abril 1865.
552
LCL, 36, in FF II, p. 267.
553
RU 4, IX, 19, in FF II, p. 353.
554
RU 4, IX, 19, in FF II, p. 353.
555
RU 4, XI, 21, in FF II, p. 354.
556
LCL, 36, in FF II, p. 268
551
144
Em 1750, quando D. Frei João do Nascimento, bispo do Funchal, criou a confraria da
Senhora do Monte, sabendo da piedade mariana das religiosas, dirigiu uma carta à abadessa, a
Madre Teresa Josefa de Santa Maria, dando orientações para que a comunidade e pessoas
residentes no mosteiro se inscrevessem na nova milícia da Senhora. “Reconhecendo”, dizia o
prelado, “e louvando a devoção que têm para com a Nossa Senhora do Monte, padroeira desta
Ilha, todas as religiosas e mais pessoas do mosteiro que com toda a devoção, desejam e
pretendem constituir-se escravas e servas da dita Senhora na confraria erigida em sua igreja,
lhes concedemos licença para se alistarem na dita confraria”557. Para o efeito, o bispo enviou à
escrivã do mosteiro um livro com termos onde devia fazer-se os assentos. A mesma escrivã
recebia as esmolas anuais que, no final de cada Quaresma, remetia ao tesoureiro da Câmara
Eclesiástica.
Erecta a confraria em 6 de Abril de 1750, logo nesse mesmo mês, se procedeu ao
preenchimento do livro de assentos. Em termos de texto repetitivo, se inscreveram cento e
catorze religiosas, seis noviças, nove educandas e vinte e nove servas. Nos anos seguintes
continuaram as entradas.558Os membros da confraria de Nossa Senhora do Monte gozavam de
favores espirituais e de sufrágios depois da morte.
Os bens de que dispunha esta e outras confrarias eram aplicados na ajuda dos confrades
ou doutras pessoas carenciadas. Contudo, ao longo dos anos, os abusos aconteceram. Disso se
queixou D. José da Costa Torres, bispo do Funchal, em carta dirigida a D. Maria I, em 1788.
Para evitá-los, apontava formas de “aplicação útil dos sobejos do dinheiro”559, que o prelado
não chegou a especificar.
Na época, também era grande a devoção às Almas do Purgatório. As pessoas
procuravam auxiliá-las espiritualmente e também garantir sufrágios em seu próprio favor.
Dentro desta doutrina, aliás estimulada pelo Concílio de Trento, no mosteiro da Encarnação
instituiu-se em 1666 a Irmandade das Almas “por ordem e licença do prelado”, na qual se
inscreviam as religiosas e servas.
Cada membro da irmandade comprometia-se a “mandar dizer uma missa rezada por
alma das Irmãs que falecessem”. A escrivã da irmandade assumia a responsabilidade de
receber a esmola das missas, de as mandar celebrar, receber as quitações dos celebrantes e
elaborar os respectivos termos560. Com as funções da escrivã conjugava-se a acção de um
administrador cuja responsabilidade, em l686, cabia ao P. Manuel Pereira561.
Quando a comunidade se tornou numerosa, o número de missas chegou a oitenta,
noventa, cem e mais, por cada membro que falecia. Para além disso, todos os anos, dentro da
oitava dos fieis defuntos, era celebrada uma missa com todo o cerimonial das missas de
funeral, em que participavam todos os membros da irmandade e se rezava o ofício de defuntos
de nove lições562.
Nesta irmandade não eram recebidas pessoas seculares, mas podiam ser seus membros
os confessores e os capelães do mosteiro, com iguais obrigações e direitos. Em 1692 e 1693
faleceram, como irmãos confessores, os padres Álvaro d’Atouguia e António Moniz e em
1729, o padre Gaspar Mendes dos Santos, sendo celebradas por cada um oitenta missas e
rezado o ofício de defuntos de nove lições563.
557
ARM, Conventos, Cnv. Enc. F., doc. avulso: Carta do Cónego Manuel Álvares da Silva, escrivão da Câmara Eclesiástica, para a
abadessa do mosteiro.
ARM, Conventos,, Conv. Enc. F, L 2.
559
AHU, Madeira,, doc. 842.
560
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1: Termo do compromisso n.º 3.
561
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1, fol. 42 v.
562
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1: Termo do compromisso n.º 5.
563
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1, fol. 42 v.
558
145
O membro que, durante os oito dias que se seguiam à morte de alguma irmã, não
entregasse à escrivã o estipêndio da missa pela qual era responsável, podia ser convidado a
abandonar a irmandade564.
De 1680 até meados do século XVIII, isto é, enquanto a capela de Nossa Senhora da
Encarnação funcionou como sede da paróquia de Santa Luzia, a comunidade gozou também
dos benefícios espirituais anexos à confraria do Senhor Bom Jesus e Almas.
Dentro do mosteiro devia haver uma capela ou altar com um painel das Almas do
Purgatório para que mais as recordassem, aumentasse a “devoção e orações pelas almas das
suas Irmãs e fiéis”565.
Talvez por isso, em 1746, o Papa Bento XIV concedeu ao mosteiro “lugares sagrados
com benefícios espirituais de indulgências” num altar de São Pedro e São Paulo, não na
igreja, mas na parte habitacional, em favor das madres falecidas566.
1.5. Testemunhos de santidade
Segundo o cronista franciscano Frei Fernando da Soledade, “as religiosas empenhavamse na prática das virtudes cristãs e observâncias conventuais. Viviam com devoção os estilos
regulares e santos costumes. Era o mosteiro da Encarnação de grandes perfeições e preciosas
virtudes”567.
Também Henrique Henriques de Noronha, nas Memórias Seculares e Eclesiásticas, se
refere às religiosas que deram “singulares mostras de santidade (...), que floresceram nas
virtudes”568. De facto, mesmo no meio de irregularidades, tantas vezes problemáticas, quantas
religiosas ali se santificaram, deixando os mais belos exemplos de virtude!?... Religiosas que
viviam sempre contentes, irradiavam felicidade e eram, para a sociedade do seu tempo, sinal
de que Deus é bom e Pai.
Segundo o mesmo cronista, no recolhimento da Encarnação, ainda antes de estar
constituído em clausura, havia um ambiente de muita virtude. As recolhidas prezavam a sua
vida espiritual e de união com o Senhor e, talvez por isso, quando houve licença de ser
professo, todas pediram para serem admitidas ao noviciado, até mesmo a própria regente,
Teresa de Jesus.
Ouçamos Noronha: “A Madre Clara de S. Bernardo (...) plantou neste vergel as
odoríferas flores da virtude (...); não só com a lição, mas com o exemplo, se particularizou
tanto nas virtudes, que deixou uma grande memória de santidade, com que se faz saudosa às
suas filhas”569.
Maria de Corpus Christi, sobrinha do cónego fundador, “se adiantou tanto nas virtudes
que (...), sendo a primeira de todas as que ali professaram (1661), se esmerou tanto na
observância da santa regra, que serviu de exemplo às demais”570. Nesse mesmo ano professou
a Madre Teodora de Jesus que, por ser muito virtuosa, “várias vezes a elegeram prelada, em
que deu sempre grande exemplo às suas súbditas”571. A Madre Teodora de Jesus foi alma
verdadeiramente eucarística, de muita oração e intimidade com Deus. Quando morreu, em
1673, a comunidade vivia com muito fervor e profundidade espiritual.
564
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1: Termo do compromisso n.º 7.
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L1: Termo do compromisso n.º 7. No “Livro das Imãs das Almas e contrato espiritual entre as religiosas
e o Convento”, de 1666, ano da instituição da irmandade, onde se encontram as inscrições e os termos dos sufrágios aplicados a cada
membro após a morte, foram inscritas, até 1740, duzentas e noventa e uma irmãs religiosas.
566
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 2, doc. avulso; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p.113.
567
Fernando da Soledade, op.cit., III, p. 354.
568
Noronha, op. cit., p. 279.
569
Noronha, op. cit., p. 280.
570
Noronha, op. cit., p. 280.
571
Noronha, op. cit., p. 281.
565
146
Já “mulher maior”, entrou no mosteiro, com mais cinco irmãs, membros da família
Saldanha, a que já aludimos, a Madre Maria do Socorro, cuja vida foi exemplar. “Na última
doença que teve, de que faleceu, em que todo o corpo lhe ficou cheio de chagas, teve tanta
resignação e paciência que nunca se lhe ouviu uma queixa”. Faleceu na sexta-feira santa, 28
de Março de 1687, quando a comunidade rezava Matinas. Sua irmã de sangue, Catarina Maria
de Nazaré, falecida seis anos mais tarde, deixou maravilhosos exemplos de espírito de
sacrifício e de penitência572.
Nos começos do século XVIII, em 1705, faleceu a Madre Conceição, sobrinha do
Cónego Calaça de Viveiros, que ocupara um dos lugares que o tio pedira para suas parentes.
“Foi uma exacta observadora da sua santa regra, pelo que mereceu particulares mimos de
Deus, ainda nesta vida, e dos que está possuindo hoje, nos informa o seu corpo intacto e
incorrupto, exalando um odorífero cheiro, causa porque está vedado o abrir-se-lhe a sua
sepultura”573.
Almas verdadeiramente piedosas, almas de oração, foram as Madres Joana Baptista e
Filipa da Encarnação, que chegaram a ter grande intimidade com Jesus Sacramentado.
Também a Madre Maria dos Santos, natural de Porto Santo, falecida em Agosto de 1679, que
depois de viúva professou no mosteiro da Encarnação, foi exemplaríssima na prática de todas
as virtudes, “cuja vida aprovou Deus na sua morte, com alguns sinais de predestinação”. Da
mesma ilha, veio uma filha de Sebastião Coelho Calaça, Guiomar do Espírito Santo, que, à
semelhança de tantas religiosas da sua família que ali viveram santamente, também ela se
distingiu pelo espírito de oração e prática das mais excelsas virtudes, particularmente da
caridade. “Alma profundamente mística, passou os últimos anos entrevada sem poder
levantar-se. Nela eram frequentes os êxtases que, unindo-a ao Senhor, a alheavam das coisas
desta terra”574. Faleceu com claros sinais de santidade a 25 de Maio de 1722.
Entre a opulência do mosteiro e de certa dispersão, quanta santidade!... Fernando
Augusto da Silva, falando da vida da comunidade nos primeiros cem anos, assim testemunha:
“neste mosteiro manteve-se sempre a disciplina conventual (...) a prática de todas as virtudes
(...) a santidade”575.
Aconteceu, porém, que a ideologia do séc. XVIII, que se traduziu em opulência
primeiro e em decadência espiritual e económica depois, abriu caminho a irregularidades
conventuais que marcaram o começo de uma crise que progressivamente se foi arrastando e
levou o mosteiro à morte em 1890.
É pena que o mosteiro que começou tão bem e onde reinava a ordem e a virtude, se
tivesse afastado do fervor inicial.
1.6. Ao serviço da Igreja local
Na segunda metade do século XVII, o bispo do Funchal, D. Frei António Teles da Silva,
de vida profundamente exemplar, que administrou a diocese com o mais solícito empenho,
procurou dotá-la, material e espiritualmente, com os meios necessários à sua organização.
Reconhecendo a necessidade de descongestionar a freguesia da Sé para uma
regularização dos serviços paroquiais, foi escolhida a capela de Santa Luzia, situada perto do
mosteiro da Encarnação, para sede de uma nova paróquia. Criada por “Alvará do Senhor Rei
572
Noronha, op. cit., p. 281.
Noronha, op. cit., p. 281.
574
Noronha, op. cit., p. 283.
575
Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 183.
573
147
D. Pedro II, em 28 de Dezembro de 1676”576, foi seu primeiro vigário o P. Amaro de
Atouguia da Costa.
Na capela de Santa Luzia, pela sua pequenez e, sobretudo, pelo estado de degradação
em que se encontrava, nunca chegou a ter lugar o serviço paroquial. Enquanto não foi
construída uma nova igreja, funcionou a capela do mosteiro como sede da freguesia.
As religiosas tiveram a sua capela disponível para o serviço paroquial pelo espaço de
uns setenta anos577. Ai decorria toda a vida espiritual da paróquia de Santa Luzia, missas,
baptismos, casamentos, exéquias, práticas de piedade e devoções. No termo de abertura dos
livros de baptismo, matrimónio e defuntos, lê-se: “Livro dos Termos (...) desta igreja de
Nossa Senhora da Encarnação, intitulada de Santa Luzia (...) 1680”578. O primeiro baptismo
realizou-se em 13 de Julho de 1680; o primeiro óbito está averbado com a data de 15 de
Outubro do mesmo ano e o primeiro casamento realizou-se a 5 de Junho de 1681579.
A capela do mosteiro usufruiu, ao longo de quase setenta anos, de alguns benefícios
especiais concedidos à paróquia de Santa Luzia, logo após a sua criação. Assim, a 3 de
Dezembro 1680, quatro anos após a criação da paróquia, era erecta a confraria do Santíssimo
Sacramento por alvará concedido pelo prelado diocesano, D. António Teles da Silva. Tal
concessão foi causa de júbilo para as religiosas, dado que a igreja do mosteiro seria a sua sede
enquanto ali estivessem os serviços paroquiais. Foi grato constatar como o culto do
Santíssimo Sacramento se desenvolveu, tornando-se a igreja do mosteiro o centro de um
riquíssimo património espiritual de vida eucarística. Em breve a paróquia era agraciada com
um novo favor espiritual: A confraria do Senhor Bom Jesus e Almas, criada em 1681,
vinculada ao culto das Almas do Purgatório580. Embora no mosteiro funcionasse desde 1666 a
Irmandade das Almas, esta confraria favoreceu a vivência devocional às Almas do Purgatório.
A população do Funchal, e não só da referida paróquia, acorria à igreja da Encarnação
para desfrutar a beleza do ofício divino das religiosas e tomar parte nas celebrações litúrgicas
tão enriquecidas pelo canto, em que a comunidade primava. Ali se concentrava a mais alta
fidalguia da Ilha nas grandes solenidades e pregações. Muitas pessoas, movidas pelo amor à
Eucaristia, vinham fazer oração diante do Santíssimo Sacramento, que as religiosas
costumavam manter solenemente exposto. Nas grandes solenidades, a custódia ocupava lugar
de relevo na tribuna, dando à capela um maravilhoso ar festivo. Aos sábados costumava a
população citadina reunir-se neste templo para oração e devoções pessoais. As festas de
Nossa Senhora da Encarnação, que se revestiam de beleza e pompa, eram custeadas
totalmente pela nobreza da ilha, especialmente do Funchal.
Entretanto, por alvará régio de 1719, mandara D. João V proceder à construção de uma
igreja de Santa Luzia. Situada em local um pouco afastado da antiga ermida, surgiu ampla,
bela e digna. Desconhece-se o ano certo em que começaram as obras, mas sabe-se que foram
retardadas e que decorreram com morosidade, pois, em 1740, ainda estavam em curso e só
teriam sido concluídas no ano seguinte. “O alvará régio do Senhor D. João V, de 13 de
Agosto de 1745, criou um curato nesta freguesia”581.
Após a conclusão das obras, os serviços paroquiais, que tinham lugar na capela do
mosteiro, passaram para a nova igreja de Santa Luzia.
576
Ilhas de Zargo, II, pp. 429, 449 e 741; Tricentenário da freguesia de Santa Luzia, 1676 –1976. Monografia comemorativa e histórica,
Funchal., 1977, p 48 - 49; Fernando Augusto da Silva, op. cit., I, pp. 238 – 239.
577
A igreja de Nossa Senhora da Encarnação serviu de matriz, “não aproximadamente vinte anos”, como se lê, em Eduarda Maria de Sousa
Gomes (op. cit., p. 110), mas uns setenta, isto é, desde 1676, até 1745, ano em que D. João V criou um curato na nova igreja de Santa Luzia.
578
Tricentenário, (... ), pp. 69 , 71, e 73
579
Tricentenário ( ... ) pp. 70, 72 e 74. O volume XX do Arquivo Histórico da Madeira reproduz, na página 78, o artístico frontispício do
Livro de Óbitos.
580
Tricentenário, (...), pp. 107 - 108. A mais antiga confraria das Almas, na Ilha da Madeira, teve a sua sede na Sé do Funchal , 1587-1816
(“Confrarias e Irmandades”, Arquivo Histórico da Madeira, 20( l997)128 ).
581
Tricentenário (...), p. 48. Ilhas de Zargo, II, pp. 429, 449 e 741.
148
2. Cultura
2.1. O cultivo das letras e das artes no mosteiro
A comunidade, para poder desempenhar com competência as suas funções religiosas
precisava de uma boa formação cultural. Sendo o mais importante dos seus deveres, segundo
a Regra, a oração, e, com especial relevo, a oração da Igreja, o ofício divino, as religiosas
precisavam de conhecimentos culturais, particularmente a leitura, a escrita e o canto. E
devemos salientar, que o ofício era em latim. Daí que houvesse na comunidade grande
interesse em estudá-lo, no que se faziam auxiliar pelo capelão e pelo confessor. Pelos menos
na leitura deviam ser exímias. Diz a Regra de Urbano IV: “Em relação ao ofício divino, que
se deve tributar ao Senhor, tanto de dia como de noite (...) as que sabem ler e cantar, devem
celebrá-lo, segundo o costume da Ordem dos Frades Menores”582. Também a música sacra era
cultivada com muito interesse, dado que as celebrações litúrgicas deviam ser vivenciadas pelo
canto. Tanto a missa como o ofício divino pediam a competência das religiosas nesta matéria.
É evidente que, nos séculos XVII e XVIII, o desejo de cultivar-se se ia generalizando.
Às candidatas que entravam devia dar-se a cultura literária necessária.
Dentro do campo artístico, o desenho e a pintura mereceram a atenção das religiosas; as
artes menores, que cultivaram esmeradamente, transmitiram-nas às candidatas. Pelas
assinaturas das actas das tomadas de hábito e profissões, se detecta que cada religiosa sabia
escrever correctamente. À medida que manuseámos os livros de recitas e despesas, os livros
de actas, de óbitos e a correspondência oficial, verificámos a competência das religiosas, a
perfeição com que trabalhavam.
Algumas escrivãs distinguem-se pela perfeição e método, beleza artística e dotes
caligráficos, como por exemplo as Madres Mariana de Santa Teresa (1708-1711)583, Mariana
da Paixão (1755-1757)584, Carlota Matilde da Conceição (1808-1811)585, Felisberta Cândida
de São Bernardo (1820-1823 e 1826-1829)586, Emília Romana do Empírio (1831-1833)587.
A fotografia inserta na página seguinte, reproduzindo o frontispício do Livro de receitas
e despesas dos anos 1708-1711, é um exemplar belíssimo da capacidade artística da Madre
Mariana de Santa Teresa. A minúcia do desenho, a beleza do sombreado, a perfeição
caligráfica, a artística letra capitular, enfim, a harmonia do conjunto revelam dons apreciáveis.
Na arte de bordar tornaram-se exímias. O Museu de Arte Sacra possui alguns
paramentos litúrgicos de igrejas da diocese do Funchal que certamente terão sidos bordados
nos mosteiros da cidade ao longo dos séculos XVII e XVIII, entre os quais podemos
mencionar o de Nossa Senhora da Encarnação. O bordado era feito sobre seda e linho, em
matiz, ouro e prata, com aquele requinte que a finalidade exigia. O linho, para os trabalhos
litúrgicos, cultivava-se nas propriedades do Campanário, Porto Santo e outras588 .
25. Frontispício do Livro de Receitas e Despesas. Este belíssimo
frontispício do Livro de Receitas e Despesas do triénio da Madre D.
Mariana de São Bernardo (1708-1711) é uma amostra feliz da
capacidade artística da Madre Mariana de Santa Teresa, escrivã. A
perfeição e harmonia do desenho, o bom gosto, a delicadeza do
sombreado revelam espírito criativo, talento artístico, sensibilidade
estética. Fotografia de Jorge Valdemar Guerra, ARM
582
RU 4, VI, 13, in FF II, pp. 350 - 351.
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F., L 18.
584
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F., L 16.
585
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F., L 30.
586
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F., L 23 e 36.
587
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F., L 38.
588
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 32, fol. 19 v - 23.
583
149
2.2 A educação de “moças nobres”
Como era habitual na época, no mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação entravam
“moças nobres” que, com licença régia e eclesiástica, ficavam na clausura alguns anos, com
fins pedagógicos. Foi o que aconteceu com Úrsula de Andrada, que entrou em 1671, Ana
Eugénia da Conceição em 1742 e Rita Joaquina de Cássia no final do século XVIII. E os
casos foram muitos. Já no século XIX, em 1807, o visconde da Anadia, em nome do príncipe
regente, comunicava ao prelado do Funchal a entrada de D. Isabel Anacleta Bettencourt e
Câmara e D. Jesuína Bárbara da Câmara, como educandas. Um irmão encarregava-se das
despesas, o que nos faz pensar que seriam órfãs. O mesmo visconde pedia ao bispo, em nome
do mesmo príncipe: “nesta conformidade expeça as ordens necessárias à prelada do
mosteiro”589.
Para as educandas havia mestras específicas que, além da valorização cultural - leitura,
escrita e música -, lhes transmitiam conhecimentos das chamadas artes menores e outros
saberes: desenho, pintura, iluminura, decoração, culinária, particularmente as doçarias. Em
toda a espécie de doçaria e dos mais requintados pratos e raros manjares, ficavam
especializadas estas pupilas fidalgas. A par desta formação cultural e feminina, prezavam as
religiosas a preparação e vivência espiritual das suas educandas. Alias, quando os pais
procuravam munir-se das respectivas licenças, referiam-se sempre a esse aspecto: “a sua
educação civil e religiosa”.
A esta formação juntavam as religiosas a aquisição de boas maneiras e regras de
delicadeza, de cortesia e de relacionamento, tão necessárias às jovens que, uma vez na
sociedade, deveriam comportar-se com muita dignidade e distinção. Como facilmente
poderemos intuir, estas jovens foram muitas vezes causa de problemas no interior da clausura,
dado o seu gosto pelas vaidades do mundo. Em contrapartida, entre elas, despertaram algumas
vocações. Em 1677 a filha do provedor Francisco de Andrada, acima referida, a menina
Úrsula, que entrara com oito anos de idade como educanda, solicitou a entrada no noviciado
quando fez quinze anos590. Também Ana Eugénia da Conceição, que havia entrado com dez
anos, completados os quinze pediu para ser admitida como candidata ao noviciado, porque
desejava muito “ser noviça”591. Nos princípios do século XIX, foi Rita Joaquina de Cássia
que, recebida aos cinco anos como educanda, quis professar, facto que se verificou por 1810 1811 no mosteiro de Santa Clara, aquando da estadia da comunidade nesse mosteiro592, por
razões que indicaremos no capítulo Tentativas de superação da crise.
CAPÍTULO V
PATRIMÓNIO, ECONOMIA E SUBSISTÊNCIA DO MOSTEIRO
1. Património
1.1. Propriedades rústicas
589
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do visconde de Anadia, João Rodrigues de Sá e Mello, de 30 de
Setembro de 1807, para o bispo do Funchal.
590
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, doc. avulso : Petição de Francisco de Andrada, feita em 1671.
591
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 2, doc. avulso : Petição de Ana Eugénia da Conceição de 1747.
592
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 3, doc. avulso.
150
A Regra de Urbano IV, que o mosteiro professava, permitia que "as irmãs pudessem
receber, possuir e reter em comum rendas e possessões," contrariamente à Regra de Santa
Clara que exigia pobreza pessoal e colectiva593. Assim, e porque os papas e reis queriam por
este meio garantir a sobrevivência dos mosteiros, as propriedades foram-se acumulando, bem
como as rendas e privilégios. Estes bens eram provenientes dos dotes das religiosas, de
heranças, de arrematações e de compras.
Os bens imóveis do mosteiro consistiam em propriedades rústicas e urbanas. Ao longo
dos tempos estas propriedades foram aumentando, dada a sua proveniência. O mosteiro da
Encarnação teve propriedades em vários concelhos da Madeira. Entre as muitas propriedades
rústicas dispersas pela Ilha, mencionamos como as mais importantes:
Quadro nº.20 – Propriedades rústicas do mosteiro
Funchal
São Roque
São Gonçalo (9 fazendas)
São Martinho
Monte
Santa Luzia
Santo António
Corujeira
Calheta
Arco da Calheta (8 fazendas)
Lombo da Atouguia
Jardim de Baixo
Caminho do Risco
Ponta do Sol
Machico
Madalena do Mar
Água de Pena
Fajã da Areia
Porto da Cruz (4 fazendas)
Lombo das Terças
Sítio do Caramaxão
Achada do L. de S. João
Canhas
Tabúa
Serra d’Água
Sítio da Ribeira
Ribeira Brava
Pé de Vargem
Cabouco
S. Vicente
Pico da Murta
Fajã da Areia
Ribeirão
Boaventura
Santana
Achada do Vigário
Queimadas
Sítio da Furna
Sítio do Calhau de S. Jorge
Santa Cruz
Gaula
Lombada
Sítio da Fonte
Camacha
Montados
Caniço
Curral Velho
Sítio do Curral
C. Lobos
Campanário
Palmeira
Covão
Fonte: ANTT, Arquivo do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. 4, 5 e 9; AHU, Madeira,
doc. 262 e 263; ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L. 12 e 23.
Eram um total de sessenta e seis propriedades rústicas de valor variável594. A estas
devemos juntar o património que o mosteiro possuía no Porto Santo, constituído pela dotação
do fundador e dotes de algumas religiosas, como por exemplo, Maria dos Santos. Ali, o
mosteiro tinha propriedades no Sítio da Ponte, Sítio das Madres, Campo de Baixo, Lombas,
Marinhas, Fontinha, Sítio das Terças, Sítio das Freiras e outras mais. Um total de trinta e oito
propriedades que ocupavam uma área de 1 931 865 metros quadrados 595.
Nestas propriedades da Madeira e Porto Santo cultivavam-se os mais variados produtos:
vinha, trigo, centeio, batatas (semilhas), batata-doce, frutas, inhame, hortaliças que, como
veremos, eram fonte de receita para o mosteiro.
Quanto à forma de exploração das propriedades rústicas, encontramos o sistema de
“meias” ou meação, de arrendamento e foros. O mosteiro cedia o domínio útil da terra
mediante o pagamento de certo quantitativo em dinheiro e, por vezes, em géneros. O centro
pagador dos foros era o mosteiro. No entanto, a sua cobrança podia fazer-se localmente, de
início ao procurador que, para o efeito, se deslocava às freguesias; depois, aos arrecadadores
locais e nalguns casos aos vigários596.
593
RU 4, XXI, 34 , in F F II, p 362.
O livro 32 aponta e descreve as propriedades rústicas que o mosteiro possuía na Madeira e Porto Santo em 1815, ali averbadas pela
escrivã Madre Maria Angélica dos Serafins. Nessa data estavam reduzidas a cinquenta e três.
595
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 12; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 78.
596
Eduarda Maria de Sousa Gomes, .op. cit., p. 41-42.
594
151
No mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, o procurador foi sempre o cobrador de
rendas, trabalho que o obrigava a deslocamentos frequentes. Com o aumento do património
imobiliário, passou a ser auxiliado pelos arrecadadores, espécie de procuradores locais. A
partir de pelo menos meados do século XVIII, o mosteiro tinha um procurador em Lisboa, a
quem competia tratar das demandas que corriam na corte597. Normalmente, estes síndicos ou
procuradores eram membros do clero. Havia também um solicitador que ajudava a
comunidade nos assuntos de justiça.
1.2 Prédios urbanos
Os prédios urbanos que a comunidade possuía em 1764 situavam-se no Funchal e Porto
Santo. Os do Funchal encontravam-se no Corpo Santo, Rua dos Tanoeiros, Rua Direita,
Calçada da Encarnação, Rua do Monteiro, Rua de Santa Maria, Rua dos Murças, Rua da
Queimada598. Algumas destas casas estiveram arrendadas a inquilinos diversos que deveriam
fazer nelas as obras de manutenção que fossem necessárias, pelo que o seu rendimento não
era líquido. O sobrado da casa da Rua dos Murças, no século XVIII, esteve arrendado aos
ingleses Guilherme Mordok e Robert Franch599 e a loja a mercadores da mesma
nacionalidade, Thomas Lamar e Matheus Hiccok600. Desde a fundação o mosteiro possuiu
duas casas na rua dos Tanoeiros. O número de prédios urbanos, ao longo dos séculos XVII e
XVIII, foi sempre aumentando, dada a sua proveniência: doação e dotação, arrematação,
heranças e compra601.
No Porto Santo tinha, além de outras, uma casa térrea que durante alguns anos serviu de
habitação a um dos meeiros do mosteiro, Estevão Calaça602.
1.3. Juros
Os dotes em dinheiro eram uma fonte financeira muito substancial. O total de dotes a
render ascendia algumas vezes a mais de cem, dado que nenhuma religiosa professava sem
ele. O dinheiro era posto a rentabilizar, sendo os empréstimos a juros um processo usual no
mosteiro para o aumento de rendas que ajudava à auto-suficiência da comunidade. O juro
aplicável era normalmente de 5%. Houve épocas em que o total dos contratos de empréstimos
de dinheiro ascendia a mais de duzentas pessoas. Por exemplo, entre 1673-1749 o mosteiro
fez um total de duzentos e trinta e seis novos contratos de empréstimo, alguns dos quais a
dotadores603.
2. Economia: relações comerciais do mosteiro
2.1. Os produtos de consumo
No final do século XVII, o mosteiro comercializava parte do trigo cultivado nas suas
muitas propriedades, sendo por vezes moeda de pagamento para a aquisição de outros
produtos. No triénio 1675-1678, o mosteiro vendeu trigo: trinta e cinco moios e nove
597
ARM, Conventos Conv. Enc. F., L 18, fol. 14.
AHU, Madeira, doc 262 e 263; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F, L 9, fol. 83; ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 12, 14, 16 e
23.
599
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 23, fol. 35 e 148, respectivamente; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op.cit., p. 68.
600
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L. 16, 22 e 24; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 69.
601
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 12, 14, 16 e 23.
602
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 9, fol. 81.
603
Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., pp. 85 - 86.
598
152
alqueires; no de 1681-1684, dois moios e cinquenta e sete alqueires604. A partir de fins do
mesmo século, jamais foi auto-suficiente deste cereal que passou a comprar, por intermédio
de comerciantes ingleses, nas “Ilhas do Senhor Santo Cristo”, pois que os Açores
desempenhavam um papel relevante no fornecimento de pão à Madeira605. As referências ao
trigo das ilhas , trigo de Santa Maria, trigo de São Miguel, são frequentes nos livros de
receitas e despesas nas últimas décadas do século XVIII. Não admira, pois, que a ordem régia
de 1557, que limitava a exportação do trigo açoriano à “praça de Mazagão” e à Corte, tivesse
criado problemas na Madeira e, evidentemente, nos mosteiros606.
O mosteiro da Encarnação já em meados do século tinha muita dificuldade na aquisição
de trigo, pelo que a porção dada às religiosas que não comiam no refeitório comum, passou a
ser dada em dinheiro. Em 1741, por ordem do bispo da diocese, o vigário do Campanário
entregou trigo ao mosteiro. Nessa altura, o pão que se fazia para os trabalhadores era uma
mistura de trigo e centeio607.
Na Ilha da Madeira cruzavam-se as rotas comerciais entre a Europa, a Ásia e o
Continente Americano, que se desenvolveram nos séculos XVII e XVIII. Com a passagem do
centro financeiro de Amesterdão para Londres, a influência comercial francesa foi substituída
pela dos ingleses, que se tornaram detentores do comércio das ilhas do Atlântico, chegando
muitos deles a radicar-se na Madeira. As colónias inglesas da América do Norte e as Antilhas
passaram então a alimentar o comércio madeirense608.
Os ingleses não abasteciam a Ilha somente de trigo dos Açores mas também, e
sobretudo, de produtos das suas colónias da América, tais como cereais, peixe, carne e
tabaco, bem como de bacalhau, arroz e “trigo inglês de Londres”609, que traziam de outra
zonas.
No mosteiro da Encarnação o vinho, e nalguns casos a aguardente, era a moeda com que
se pagavam não só os produtos necessários ao quotidiano da comunidade mas também alguns
artigos ricos e quantidades consideráveis de tabaco. Era a única forma de conseguir exportar o
vinho. O mosteiro vendia vinho e aguardente para o Brasil610. Com outras áreas geográficas
mantinha relações directas ou por intermediários, como mostra o facto de entre 1690-1693 ter
perdido trinta e dois mil reis que enviara para a Ilha de Samatra611, talvez destinados ao
pagamento de especiarias que de lá houvessem importado.
No Funchal havia duas casas inglesas, a Casa do Cônsul e a Casa da Companhia Velha,
habituais abastecedoras da comunidade.
2.2. O tabaco
O tabaco, planta herbácea de origem americana, foi durante muito tempo designada
“erva santa” pelas suas propriedades medicinais, particularmente como analgésico. Muitas
pessoas, quando tinham dores de dentes, a ele recorriam como forma de alívio. Um outro
emprego era em feridas ou golpes de pouca extensão e profundidade. Aplicado sobre a parte
afectada, era rápida a cicatrização.
Porém, “o cheirar tabaco” tornou-se um hábito corrente na sociedade de então, e em
muitos casos degenerou em vício. O seu uso generalizou-se, sobretudo em pessoas de certa
604
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 9 e 16, respectivamente.
Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 91 e 101.
606
Sobre o abastecimento dos presídios do Norte de África, pode ver-se o nosso trabalho: Portugal em Marrocos na época de D. João III –
Permanência ou abandono?. Trata-se da tese de licenciatura apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, em 1966, publicada pelo Centro
de Estudos de História do Atlântico do Funchal em 1998.
607
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 22, fol. 46.
608
Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., pp. 95 - 96.
609
Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., pp. 95 - 96; A.H. Oliveira Marques, História de Portugal, Lisboa, 1985, II, p. 259.
610
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 23.
611
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 15, fol. 150.
605
153
idade, tornando-se como que um atributo da sua vivência. Tanto homens como mulheres
fizeram do “cheirar tabaco” um requinte e prazer612.
No século XVIII o uso do tabaco generalizou-se na Ilha e isto porque passou a ser a
moeda para a compra do vinho. Neste século o comércio inglês, por falta da moeda metálica,
assentava na troca directa e, portanto, as religiosas, para terem garantida a exportação do
vinho e da aguardente, recebiam das mãos dos ingleses os produtos que lhes eram oferecidos,
entre os quais o tabaco.
Na comunidade o uso do tabaco apareceu em 1705. No Natal desse ano foi uma das
ofertas da abadessa às religiosas. Desde então, passou a ser-lhes dado nas grandes festas:
Natal, Reis, Festa da Madre e outras613. Além do uso terapêutico que lhe era dado, as freiras
também gostavam de cheirar tabaco.
A partir daquela data, o tabaco passou a entrar no mosteiro em quantidades
progressivas. De 1735 a 1763 recebeu anualmente uma média de doze a dezoito arráteis, o
que é muito. Servia para presentear os feitores, procuradores e arrecadadores, médicos e
outras pessoas a quem as religiosas fossem devedoras de delicadezas. Em 1748 o arrecadador
da Calheta foi presenteado com tabaco,614como aconteceu ao procurador da mesma
localidade, José Bernardes, em 1750, que recebeu como presente, além de um presunto, uma
certa quantidade de tabaco615. O procurador do Porto Santo, que habitualmente não aceitava
remuneração, recebia frequentes presentes em tabaco. Em Agosto de 1761, em Janeiro de
1762 e em Junho de 1763, foi “mimoseado”, com um quarto de arrátel616. O tabaco que o
mosteiro recebia das mãos dos ingleses em troca de vinho, serviu, muitas vezes, de moeda
para pagar os trabalhadores agrícolas, os homens da poda, da vindima, da trasfega617e
igualmente para venda. Em 1705 um meeiro comprou às religiosas tabaco que pagou com
vinho618.
3. A subsistência do mosteiro
3.1. Os produtos, como meio de subsistência
O mosteiro dispunha de duas cercas, a cerca de cima e a cerca de baixo, numa área de
7.897 metros quadrados619.
A cerca de cima, inicialmente, produzia trigo que veio a dar lugar à vinha, pelo menos
até 1768; depois cultivou-se simultaneamente vinha e trigo. A cerca de baixo fornecia às
religiosas legumes e hortaliças - cebolas, couves, abóboras, agriões e nabos620.
Contudo, a produção das cercas era insuficiente, pois, além do elevado número de
religiosas, servas e servos e, geralmente, trabalhadores agrícolas, havia ainda as educandas e
senhoras recolhidas. Por isso, recebiam produtos de outras propriedades, trabalhadas em
regimes de meias, tais como o trigo e o centeio de São Vicente, o centeio, vinho, inhame,
abóboras, castanhas, tremoços, feijão de várias qualidades e galinhas, da Calheta e Santana, o
trigo e fruta, especialmente pêras, do Porto Moniz. De Santa Cruz, Câmara de Lobos e Porto
Novo vinham, além de trigo e vinho, muitas cebolas, nozes, pêssegos, inhame, castanhas,
612
Rui Santos, Crónicas de outros tempos, Funchal, 1996, pp. 110 - 118.
Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., pp. 144 - 145.
614
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 22.
615
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 23, fol. 35.
616
ARM, Conventos, Conv. Enc., F, L 23; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., 145.
617
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 24.
618
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 17; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 144.
619
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso.
620
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 23.
613
154
fruta, batatas e abóboras. De Machico chegavam, galinhas, feijão e ervilhas. O norte da Ilha
fornecia trigo e, muito esporadicamente, aves e favas621.
Da Ilha de Porto Santo chegavam os produtos mais variados. Além dos cereais, trigo,
cevada, centeio, vinha, fruta, açafrão, lentilhas, abóboras, melancias, muitos cordeiros para
abate622. Os grãos, ervilhas, lentilhas, feijão e favas, eram consumidos secos, visto que os
importavam.
Além dos produtos a que tinha direito pelo regime de exploração, o mosteiro também
comprava, segundo as suas necessidades, aos arrendatários. Havia dotadores que, ficando
devedores dos dotes de suas filhas, os pagavam em géneros. Em 1731, o capitão Francisco
França, viúvo, residente na Calheta, pai de três filhas que haviam professado em 1722,
entregou à comunidade aves e ovos no valor de 1.900 réis623 e, em Agosto do ano seguinte,
entregou também aves e ovos no valor de 2.000 réis624. O capitão Brás Moniz de Meneses,
residente no Porto da Cruz, com três filhas no mosteiro, que haviam professado em 1699,
1726 e 1729, pagou à comunidade os dotes de suas filhas em géneros. O açúcar, apesar de
haver alguma produção nas fazendas do mosteiro, era comprado às caixas. Esta aquisição
aumentava nos meses festivos de Dezembro, Abril e Agosto ou nos precedentes.
Em Lisboa a comunidade abastecia-se de azeite, grãos, especiarias, cera, papel, louça e
por vezes de trigo625.
O peixe, que se adquiria à porta626, era fornecido por Câmara de Lobos. As sardinhas
vinham de Lisboa. A comunidade comia peixe da Berbéria, em Marrocos627e das Canárias628.
A carne obtinha-se no açougue, quando os almotacéis impediam a compra de gado. A 7
de Março de 1726, D. João V, respondendo ao pedido que lhe fora apresentado, autorizou a
matar e cortar carne no próprio mosteiro, privilégio de que também gozava o Santa Clara629.
3.2. O quotidiano e os dias festivos
Em dias normais a alimentação era sadia mas sóbria. Faziam normalmente duas
refeições - jantar e ceia - podendo haver mais uma refeição ligeira. Uma das bases da
alimentação era o pão, feito no próprio mosteiro. Daí, o enorme consumo de farinha de trigo.
O arroz foi, depois do trigo, o cereal básico na alimentação da comunidade. A carne,
especialmente de vaca em dias comuns e de galinha nos dias festivos, era o conduto mais
frequente fora dos dias de jejum. Nestes, optava-se pelo peixe e mais frequentemente por ovos
ou queijo, dado que o pescado não abundava na Madeira. O peixe - bacalhau, atum, sardinha,
chicharro, pargo e arenque -, era consumido fresco, salgado e fumado. As religiosas também
gastavam legumes que provinham, na sua maioria, da cerca de baixo. Àquelas que não se
serviam do refeitório da comunidade, mas tinham cozinhas particulares, entregava-se,
segundo os Estatutos, uma determinada quantidade de trigo, carne e peixe. Em períodos de
difícil aquisição de produtos, essas religiosas recebiam o valor correspondente em dinheiro630.
As religiosas da Encarnação consumiam, abundantemente, as especiarias que, a partir
do século XV, inundaram a Europa: pimenta, canela, cravo, noz-moscada e outras.
621
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 9, 14-16, 18-19, 22, 24; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 90 e 175-181.
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 9, 14-16, 18-19, 22, 24; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 90 e 182-184.
623
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 18, fol. 23; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p.96.
624
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 18, fol. 25.
625
ARM, Conventos, Conv. Enc., F, L 16, fol. 175.
626
ARM, Convento, Conv. Enc. F, L 16, fol. 114; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit. p. 93.
627
ARM, Convento , Conv. Enc. F, L 16, fol. 109; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 93.
628
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L22, fol. 60.
629
ANTT, Chancelaria Régia de D. João V, L 70, fol. 5 v - 6; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p 92.
630
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 14, 15, 16 e 18.
622
155
Utilizavam-nas na preparação de pastéis, picados, chouriços, arroz-doce, bolos de mel e
outros manjares.
Em dias festivos, Páscoa, Natal, festa de Santa Clara, de São Francisco, de Nossa
Senhora da Encarnação, da Imaculada Conceição, dia de Todos os Santos, festa de São Tiago
Menor, padroeiro da diocese, no primeiro de Maio, e outras grandes solenidades, as refeições
eram melhoradas631. As religiosas celebravam estas festas com alegria, exultação e júbilo.
Não faltavam, então, os bolos, pastéis, arroz-doce e outros manjares segundo a época: a
batatada no Natal, as talhadas e queijadas na Senhora da Encarnação e na Páscoa, os bolos de
cevada pelo São João632.
Os Estatutos previam que, nas grandes festividades, se desse a cada religiosa um pão de
leite, um bolo, duas dúzias de argolinhas e outras iguarias conforme a época, mesmo àquelas
que não se serviam da cozinha da comunidade.
3.3. Peritas em doçarias e outros manjares
O açúcar, vindo do Oriente, durante muito tempo, foi vendido nas farmácias, pois era
destinado aos doentes. Introduzido na Ilha da Madeira o cultivo da cana sacarina, logo o
açúcar inundou os mercados da Europa, passando a usar-se largamente na doçaria em vez do
mel.
A Madeira guarda o segredo da confecção duma grande variedade de gulodices
afamadas, que deram nome mundial aos mosteiros de Santa Clara e da Encarnação. Estas
receitas divulgaram-se pelas casas fidalgas e destas passaram às mãos do povo. Por um códice
manuscrito do mosteiro da Encarnação, publicado no Arquivo Histórico da Madeira, em Maio
de 1937, pode fazer-se uma ideia da confeitaria conventual, com que as religiosas e as suas
pupilas fidalgas presenteavam doadores, eclesiásticos, padroeiros e feitores das suas terras,
como era costume no tempo633. Na ementa referente ao triénio 1811-1814, faz-se referência a
pastéis, sonhos, bolos, rapadura, batatada, fartes, alféloa (massa de melaço em ponto forte),
talhadas de amêndoa, broas, cavacas, rosquilhas, pão-de-ló, biscoitos, bolo de mel e queijadas.
Os doces, confeccionados em quantidades medidas por alqueires, para ofertas, e para
festejar as grandes solenidades religiosas e suas oitavas634, abundavam no Natal, Reis, Páscoa,
primeiro de Maio, nas festas de São João, São Pedro, Santa Clara, São Francisco, Nossa
Senhora da Encarnação, no Pão-por-Deus (Todos os Santos) e outras. Também as exéquias e
os dias de ofícios pelos defuntos eram assinalados com alguma especialidade. Em 1761,
gastaram-se sete alqueires de trigo na confecção de bolos para o dia do ofício635de D. Frei
João do Nascimento, Bispo do Funchal e, em 1769, os clérigos receberam dez libras de
chocolate no funeral da Madre Joana Baptista636. Em 1814, confeccionou-se um bolo no dia
do ofício da senhora marquesa637. Nunca deixava de assinalar-se o dia dos Fiéis Defuntos, 2
de Novembro, com algum bolo638.
Nesta doçaria, tradicional na Madeira, gastavam muita farinha e muito açúcar e tantos
doces fizeram que se tornaram peritas e mestras em doçaria e outras iguarias.
Os bolos de mel, segredo das freiras da Encarnação, eram por elas muito apreciados,
bem como por todos aqueles que tinham a dita de os receber como “mimos”. Iguaria
631
ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F, L 11, fol. 39, L 21, fol. 21v e outros.
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 14, 16, 18, 20 e 22.
633
João Cabral do Nascimento, “As freiras e os doces do Convento da Encarnação”, Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 68-75 ; Ilhas de
Zargo, II, p 583. João Cabral do Nascimento refere a confecção de pão-de-ló e outros manjares para os feitores (p.73 e 74).
634
João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira, 5 ( 1937) 68-75; Ilhas de Zargo, II, p. 583.
635
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 23; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 137.
636
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 24, fol. 20; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 138.
637
João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira,5 (1937) 74.
638
João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 72.
632
156
requintada, servia muitas vezes para presentear a quem se deviam particulares favores ou a
quem se dedicava especial amizade639. Sabe-se que, com o uso das especiarias, o bolo ganhou
requinte. Condimentado com os mais estranhos acepipes, tenro e quebradiço, aromatizado
com essências orientais, ornamentado de arabescos, marchetado de cidra, miolo de nozes,
amêndoa e passas, era, pelo Natal, oferenda de ostentação, um mimo requintado de cortesia.
Bolo rico, rescendente, para fidalgos e clerezia640.
A batatada, tão característica do Natal, era algumas vezes confeccionada para satisfazer
obrigações devidas a pessoas de fora. Era feita de açúcar e batata-doce e, por vezes, levava
almíscar. Era guardada em taças e conservava-se bem, chegando a ser enviada para o
Continente. Por exemplo, em Novembro de 1753 foi enviado um presente de batatada, seis
dúzias de cubos, ao procurador do mosteiro em Lisboa641.
As talhadas de amêndoa eram usadas na festa da Nossa Senhora da Encarnação, titular
do mosteiro, e também na Páscoa, juntamente com os coscorões, feitos essencialmente de
açúcar e ovos. No Domingo de Ramos não faltava o arroz-doce642. Os bolos de cevada
confeccionavam-se com açúcar, erva-doce, manteiga ou leite e farinha de cevada. Os sonhos,
feitos com perfeição e requinte, eram um manjar muito apreciado pelas freiras. Sempre se
faziam na entrada da Quaresma, no Advento e na festa da Imaculada Conceição643.
Quadro nº.21– Iguarias usuais nas festividades
Festividades
Iguarias
Santa Clara
São Francisco
Advento e Ent. da Quaresma
Nossa Senhora da Conceição
Natal
Fiéis Defuntos
Dia de Reis
Domingo de Ramos
Páscoa
Nossa Senhora da Encarnação
Espírito Santo
Sao José
São João
SãoPedro
Nossa Senhora do Monte
Corpo de Deus
Pastel , pastelão, bolo de mel, rapadura e miolo de manjar
Pastel e bolo doce
Sonhos
Fartes, sonhos, bolo doce, cuscuz e alféloa
Argolinhas, bolo de mel, pão de leite, batatada e chouriços
Bolo de manteiga
Bolo de mel
Arroz-doce
Talhadas de amêndoa e queijadas
Arroz-doce, cavacas, broas, rapadura, caramelo, talhadas de amêndoa,.queijadas e coscorões
Bolo doce e cuscuz
Rosquilhas e cavacas
Pão-de-leite, queijadas, arroz-doce, farte, pastel e pastelão
Chouriços, paios, presunto, queijo, gila e coalhada
Farte, bolo de manteiga
Pastel
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 20 - 24; João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira, 5
(1937) 72-75.
As religiosas nunca se esqueciam de fazer todos os anos uma boa quantidade de
marmelada que, das suas mãos, saía sempre uma especialidade. Os Estatutos previam que
cada religiosa pudesse ter certa quantidade de marmelada e doces para seu uso particular.
639
Pode ver-se “O bolo de mel das freiras da Encarnação” de Álvaro Manso de Sousa, in Das Artes e da História da Madeira, Funchal,
1948–1949, p. 51, onde se dá a esta confecção culinária grande realce. É pena que não tivesse chegado até nós a receita usada no mosteiro.
640
Ilhas de Zargo, II, pp. 583 - 584.
641
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 22, fol. 165.
642
João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 73.
643
João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 68-75; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L
11, fol. 39.
157
CAPÍTULO VI
PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO E ARTÍSTICO
158
1. Melhoramentos nos séculos XVII e XVIII
As rendas das propriedades rústicas e urbanas, o comércio do vinho e outros proventos,
desde as últimas décadas do século XVII até meados do século XVIII, proporcionaram ao
mosteiro uma vida desafogada.
A boa economia da comunidade permitiu importantes melhoramentos no mosteiro, que
passou a dispor de uma cozinha e refeitório remodelados, um coro maior e com melhores
condições, bem como de mais espaço habitacional para poder receber mais candidatas. Estas
transformações e acrescentamentos, alguns já previstos pelo cónego fundador que, para o
efeito, determinara que cem mil réis de cada dote reverteria a favor de obras, iam tornando o
edifício mais funcional.
Face ao aumento do número de religiosas, o edifício foi sendo ampliado. Assim, por
1682 construiu-se uma sala capitular, remodelou-se a cozinha, uma varanda e o refeitório, que
foi embelezado com azulejos. Remodelaram-se as celas e, naturalmente, aumentou-se o seu
número. Fez-se também um dormitório para as servas644. Em 1751 a Fazenda Real “contribuiu
com 750 mil reis para a construção do grande muro que ladeia a estrada que conduz à igreja
de Santa Luzia”645 e em 1757 com 1.000.000 réis para as obras de restauro.
Quando, a 14 de Abril de 1863, em cumprimento da portaria régia de 20 de Junho de
1857, a comissão, para o efeito designada, procedeu à inventariação dos bens móveis e
imóveis do mosteiro, deixou-nos uma minuciosa explanação da estrutura do edifício. Lê-se no
referido documento: “Compõe-se o convento de uma igreja, sacristia, campanário, coro alto e
baixo, tribuna e sacristia da clausura, diferentes dormitórios, casas de oficinas, locutórios646,
portaria, duas cercas, uma maior e outra menor, duas pequenas capelas na cerca, casa do
capelão, confessor e sacristão, bem como a residência dos servos”647. Segundo o mesmo
inventário, havia quatro dormitórios. O primeiro com vinte e três celas, junto do qual ficava o
celeiro; o dormitório novo, com vinte e uma perto da casa do noviciado; no andar inferior
estava o dormitório velho que, por não ter celas, simplesmente servia de passagem para outras
divisões. Neste mesmo andar ficava o refeitório, a sala capitular, a cozinha e a casa de
amassar o pão. Por baixo do dormitório encontrava-se a casa da lenha. Na portaria situava-se
o dormitório das servas.
2. A capela no século XVIII
A capela do mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, resultante da ampliação e
adaptações feitas na capela inicial do século XVI, sofreu na primeira metade do século XVIII
importantes obras. Temos dificuldade em falar com precisão dos restauros que nela então se
fizeram, mas sabemos que as Memórias Seculares e Eclesiásticas de Noronha, editadas em
1722, a apresentam com dois altares laterais: “o da parte da Epístola, dedicado a Santo
António e o da parte do Evangelho a Santa Teresa”648, a que o auto da vistoria, feito em 1660,
não faz qualquer alusão649.
O inventário de 14 de Abril de 1863 descreve a capela como construção do século XVI,
de arquitectura gótica, com uma só nave e quatro altares, o da capela-mor, dois laterais e um
quarto à porta da capela. O altar-mor é “de talha de madeira dourada, tendo a meio o sacrário
e, no cimo deste, um quadro que representa a Anunciação do Arcanjo à Santíssima Virgem
644
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 15, fol. 2.
Elucidário Madeirense, I, p. 307.
646
Assim se designavam as salas onde as religiosas recebiam as visitas.
647
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa. 2070, doc. 25.
648
Noronha, op. cit., p. 278.
649
João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 28-29 : Auto da Vistoria.
645
159
Nossa Senhora, pintura antiga, em madeira, feita por artista hábil”. O altar colateral da direita,
junto ao arco da capela-mor, em talha dourada, dedicado a Santa Teresa, tem uma imagem da
Santa, “antiga, de boa escultura”. Do lado esquerdo, igualmente em talha dourada, fica o altar
dedicado a Santo António, cuja imagem é “bela e bem esculpida”. O altar lateral, junto à
“porta da igreja, em belíssima talha dourada é da invocação de Santa Úrsula”650. Nele há três
imagens: a da Santa, ao centro, e outras duas, companheiras no martírio, dos lados.
Na capela-mor, encontravam-se, além do tríptico de Nossa Senhora da Encarnação, três
pinturas em madeira, que o inventário atribui a um mesmo autor:
- “um quadro pequeno que representa a Assunção da Virgem Santíssima de
mão hábil (...);
- um quadro que representa S. Joaquim e Santa Ana na porta áurea;
- um quadro que representa o nascimento do Salvador, de boa madeira.”
Estas pinturas, pela “beleza do colorido, a atitude das diferentes figuras que nela
existem, as belas roupagens, o interessante das fisionomias que cada uma delas, representando
ao vivo os sentimentos de que deveriam estar penetrados (...), são dignas de muito apreço”651.
O coro alto foi objecto de importantes obras. Acontecia que, entre a muita população da
Ilha, não faltava quem desejasse viver no recolhimento e paz da clausura. A comunidade não
parava de crescer. No século XVIII, houve, pois, que fazer obras, “sendo então construído um
vasto coro, em substituição do antigo, que era de acanhadas dimensões”. Para estas obras
contribuiu a Fazenda Real com um conto de reis, concedido por alvará régio de Fevereiro de
1750652.
O adro da capela era grande e seguro “por ser defendido pelo sul e oeste, por uma
grande muralha”; dava-lhe acesso uma entrada larga, calcetada de pedra miúda e uma escada
de cantaria. Gozava de “uma vista deliciosa para a cidade”. Fora do alpendre encontravam-se
dois jardins pequenos e cercados de gradeação de ferro, donde se avistava a cidade e o porto e
as campinas, “panorama arrebatador”653. Esta beleza, pelo menos em parte, advinha-lhe do
século XVIII; nestas obras gastaram as religiosas muitos dos seus proventos.
3. Valores em ouro e prata
Quando se procedia à inventariação do mosteiro da Encarnação, foram encontradas três
peças em ouro: dois pares de botões com cadeia e uma chave do sacrário, enfiada num cordão
também de ouro, com o peso de quarenta e cinco gramas e quarenta, e nove peças de prata.
Entre estas peças mencionamos:
Quadro nº.22 - Valores em ouro e prata
Objecto
Castiçais de madeira revestidos de prata
Crucifixos
Coroas pequenas
Coroas grandes
Resplendores
Cálices em prata dourada
Estante de madeira e prata
Cruzes
650
Total
6
2
4
1
7
2
1
2
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25 : Inventário de bens imóveis do Convento da
Encarnação, datado de 14 de abril de 1863.
651
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25 : Inventário de bens imóveis do Convento da
Encarnação, datado de 14 de abril de 1863.
652
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25.
653
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc., F, caixa. 2070, doc. 25.
160
Bandeja
Caldeirinha
Turíbulos
Jarra
Rosário654
Palma
Lampadário655
1
1
2
1
1
1
1
Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças,
Conv. Enc. F.,caixa 2070; Eduarda Maria de Sousa Gomes,
op.cit., pp. 122 - 123.
Alguns destes valiosos objectos eram feitos com as jóias das religiosas. Sabemos que
com a prata deixada pela Madre Maria da Coroa a comunidade mandou fazer um vaso para a
Santa Unção656. Estes objectos de metal precioso, foram então avaliados em 804.087 réis, sem
contar o sacrário que era valiosíssimo.
Preciosas eram também as vestes litúrgicas da igreja do mosteiro. Não faltavam os
pluviais, dalmáticas, paramentos, capas de asperge, casulas, véus de ombros, em damasco ou
seda valiosa, bordados a fio de prata e ouro e com franjas e galões do mesmo metal precioso.
4. Pintura
4.1. Pintura flamenga
Tríptico de Nossa Senhora da Encarnação
Os painéis deste tríptico, pelas grandes dimensões, pela integração das figuras, pelas
suas atitudes e gestos em profunda atmosfera religiosa e ainda pelo modelado das vestes,
harmonia e vivacidade das cores, são um belo exemplar de pintura flamenga do século XVI,
mais propriamente da Escola de Antuérpia. O conjunto é surpreendente. A precisão do
desenho, o brilho do colorido, a magnificência da indumentária e do mobiliário, a
grandiosidade, enfim, de toda a composição, contribuem para converter este retábulo numa
obra de alto merecimento, na opinião de Manuel Almeida Cayola Zagallo657.
Este retábulo, cuja temática é o mistério da Encarnação, apresenta duas leituras
conforme se apresenta aberto ou fechado. Aberto, é todo ele, nos seus painéis, uma ilustração
maravilhosa e encantadora do tema da Encarnação do Verbo: a concepção puríssima de
Maria, escolhida para ser a mãe de Deus feito homem, no volante esquerdo; a Anunciação e o
mistério da Encarnação no painel central; e nascimento de Jesus no volante direito. Fechado,
o retábulo evoca dois intercessores privilegiados da comunidade local nos inícios de
Quinhentos: um dos santos protectores contra o flagelo da peste, São Sebastião, e o
taumaturgo português, Santo António. Os anversos dos volantes e o painel central são da
mesma mão, possivelmente de Joos Van Cleve658, enquanto os reversos serão de colaboradores
ou ajudantes de menos qualidade, o que era, aliás, comum nas oficinas da época e,
designadamente, no pintor referido659.
654
Este rosário tinha sessenta e duas contas revestidas de prata lavrada e uma medalha, tendo de um lado a imagem de Nossa Senhora em
relevo e do outro uma custódia.
655
Este lampadário foi oferecido ao mosteiro por João de Sousa Almeida, segundo informa o cónego fundador no seu testamento (João
Cabral do Nascimento, op .cit., p. 39).
656
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 22.
657
Manuel Almeida Cayola Zagallo, “Algumas palavras sobre o património artístico da Ilha da Madeira”, Arquivo Histórico da Madeira , 4 (
1934) 30.
658
Joos Van Cleve, pintor neerlandês, começou por ser conhecido como o mestre da Morte da Virgem, devido aos dois trípticos que
representam a Morte da Virgem e se conservam em Munique e Colónia. Sofreu sucessivamente a influência de Gérard David, Metsys e dos
maneiristas de Antuérpia, assim como de Leornado da Vinci. Morreu em Antuérpia em 1540 ou 1541 (Luíza Clode e Fernando António
Baptista Pereira, op.cit, p. 62).
659
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 72.
161
26. Triptíco flamengo da capela-mor do mosteiro da Encarnação. Pintura a óleo, sobre madeira de carvalho (205x194), cerca de
1510-1515, atribuída a Joos Van Clevee colaboradores.
Painel Central: Anunciação; Volante esquerdo: Natividade (anverso) e Santo António (reverso); Volante direito: Genealogia
da Virgem (anverso) e São Sebastião. Reprodução de Carlos Fotógrafo.
A Saudação Angélica assume neste tríptico características específicas que nos orientam
no sentido da compreensão do significado profundo do mistério da Encarnação do Verbo. O
arcanjo Gabriel apresenta-se com majestade de enviado de Deus. A atitude de Maria revela,
por seu turno, que a intenção do pintor visou sublinhar não apenas a saudação mas,
preferencialmente, o seu resultado, ou seja, a Encarnação. Com efeito, a Virgem, de olhos
semi-cerrados e escutando a mensagem de que o anjo é portador, manifesta a aceitação dos
desígnios divinos660. A seus pés há uma jarra de açucenas, símbolo de pureza.
No volante direito, o que mais contemplar? A suavidade da Senhora e a graciosidade do
Menino e dos anjos ou o realismo dos pastores que olham, embevecidos, o Redentor? No
esquerdo, que expressividade em São Joaquim e Santa Ana, recolhida, como que
interiorizando o mistério!... Acima, a Virgem com o Menino nos braços, coroada pelos
anjos661, não transparece interioridade, contemplação amorosa do mistério?!...
Segundo os críticos de História de Arte, a execução deste tríptico terá de situar-se no
tempo do primeiro período de actividade conhecida de Joos Van Cleve, ou seja, entre 1510 e
1515662.
Este tríptico, antes de recolher ao Museu de Arte Sacra, onde se encontra desde 1955,
esteve na Igreja de São Martinho, para onde foi levado quando, alguns anos após a
implantação da República, o templo, em estado de degradação, foi despejado do seu recheio
artístico663. Para ser adaptado ao altar-mor, sofreu mutilações. Contudo, graças a um correcto
restauro, é possível a leitura do que seria o original.
São Jerónimo
Esta pequena pintura, de acentuado carácter ascético, actualmente no Museu de Arte
Sacra do Funchal, foi pela primeira vez identificada e descrita por Manuel Almeida Cayola
Zagallo, em 1939. Este crítico de História de Arte considerou-a proveniente do mosteiro de
Nossa Senhora da Encarnação, uma vez que o inventário de 1862 dessa casa religiosa,
menciona um quadro “ de São Jerónimo, pintado em madeira, no valor de 100 réis”664. Cayola
Zagallo refere que o então director da Pinacoteca de Munique, a pedido do Dr. João Couto,
classificara a obra a partir duma fotografia, como pertencente à escola holandesa da primeira
metade do século XVI665.
Na recente obra, Museu de Arte Sacra do Funchal. Arte Flamenga, de Luíza Clode e
Fernando António Baptista Pereira, atribui-se o quadro a Marinus Van Reymerswalle, que se
teria inspirado directamente no São Jerónimo de Albrecht Dürer, de 1521, existente no Museu
de Arte Antiga, em Lisboa. Rui Fernandes de Almada ou Rodrigo de Portugal tê-lo-ia
recebido directamente do próprio Dürer numa das suas visitas aos Países Baixos.
A atribuição, feita pela primeira vez ao referido autor flamengo, baseia-se nas notórias
afinidades composicionais e de caracterização que o quadro de São Jerónimo do Funchal
660
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p.72.
Manuel Almeida Cayola Zagallo, art. cit., Arquivo Histórico da Madeira, 4 (1934) 30-32.
662
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op cit., p. 72.
663
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 72.
664
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., Caixa 2070, doc. avulso.
665
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 100.
661
162
partilha com outros exemplares do mesmo pintor, nomeadamente o do museu da Cartuxa de
Douai. O mesmo pode dizer-se relativamente à escolha dos elementos simbólicos
fundamentais comuns aos dois quadros, como sejam, a caveira, o livro e o veleiro666.
27. S. Jerónimo667. Pintura a óleo sobre madeira de carvalho (25x32 cm), cerca de1521-1540,
atribuída a Marinus Van Reymerswaelle668. Reprodução de Carlos Fotógrafo
Esta bela pintura, de carácter místico, representa o Doutor da Igreja, São Jerónimo, em
meditação sobre o livro das Sagradas Escrituras, assente sobre o chapéu cardinalício e
apontando para uma caveira. No alto, à esquerda, divisa-se um relógio de parede, com os
respectivos pesos, enquadrado por uma moldura renascença, alusão ao tempo que foge,
aproximando o homem da eternidade. No lado direito vê-se uma cartela da qual pende um
cordão de pérolas com uma inscrição latina, Memorare novissima tua et in aeternum non
peccabis, que tem a seguinte tradução: Lembra-te dos novíssimos e jamais pecarás.
4.2. Outras pinturas
Além do belíssimo tríptico flamengo Nossa Senhora da Encarnação, do quadro de São
Jerónimo e dos três pequenos quadros da capela, podemos mencionar, outros mais, alguns
apreciáveis obras de arte. São eles:
Os retratos do fundador, o Cónego Henrique de Viveiros e de uma sobrinha que ali
professou; Nossa Senhora da Conceição, em folha de cobre; Nossa Senhora das Mercês, da
Nazaré, da Graça, do Rosário e da Conceição; a Fuga para o Egipto, a Descida da Cruz, Santo
Antão, São João, Santa Joana, São Martinho e São Francisco, em alto-relevo.
O Museu de Arte Sacra conserva dois baixos-relevos do mosteiro: São João Evangelista
e a Virgem, em madeira de carvalho, estofados, dourados e policromados, da segunda metade
do mesmo século XVI, obra da escola portuguesa.
4.3. A escultura
Para além das imagens já referidas, os inventários de 1863 e 1891 dão-nos
conhecimento de outras obras de arte da capela e da parte habitacional, que constituíam um
valioso património artístico. Podemos mencionar as seguintes imagens: Santa Clara, São
Francisco, Sagrada Família, Nossa Senhora da Conceição, Senhor da Coluna, Senhor dos
Passos, Senhor do Lava-Pés, São Martinho, São Pedro, Santa Bárbara, Santo António, Santa
Teresa, Santa Isabel de Portugal, São Brás e cinco crucifixos669.
Destas imagens, conhecem-se somente a do Senhor da Coluna, em capela particular no
sítio da Estrela, na Calheta, para onde foi levada aquando da extinção do mosteiro, e a
imagem de Santa Isabel de Portugal670, do século XVII, em madeira estofada, dourada e
policromada, actualmente no Museu de Arte Sacra. Nesta valiosa imagem, podemos ver a
666
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 100-101.
Reprodução de Museu de Artye Sacra do Funchal. Arte Flamenga (p.101).
Marinus Van Reymerswaelle foi pintor neerlandês, cuja obras revelam a influência de Metsys e, no tema iconográfico Meditações de São
Jerónimo, do protótipo de Dürer. Teria morrido cerca de 1566 ( Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit, p. 98).
669
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso.
670
Embora não figure nos inventários, a Rainha Santa Isabel teria pertencido ao mosteiro da Encarnação (Eduarda Maria de Sousa Gomes,
op. cit., p 119). Eduarda de Sousa Gomes admite que esta imagem representa Santa Isabel da Hungria (op. cit., p 119). Deve corrigir-se este
conceito. Trata-se, de facto , de Santa Isabel de Portugal.
667
668
163
escarcela, bolsa de couro presa à cintura, e a concha de um molusco lamelibrânquio,
vulgarmente designado vieira, usada no chapéu pelos peregrinos, especialmente os de
Santiago de Compostela, o que nos permite afirmar que se trata, de facto, da Rainha Santa671.
4.4. As capelas da cerca
Além da capela de Nossa Senhora da Encarnação, o mosteiro tinha duas ermidas, na
cerca. A maior e mais antiga, da invocação de São Francisco, recebeu autorização eclesiástica
a 22 de Abril 1698, depois de feita a vistoria pelo cónego chanceler do bispado. Estava
situada a norte do mosteiro cercada de “bem altos e grossos muros”672. A segunda ermida era
dedicada a São João Baptista673. Eram apreciáveis lugares de recolhimento para as religiosas,
onde podiam ter tempos de oração e desfrutar espaços de intimidade pessoal com o Senhor.
Lembravam pequenos eremitérios. Hoje nada resta destas capelas.
CAPÍTULO VII
DECADÊNCIA ESPIRITUAL E ECONÓMICA
DESDE MEADOS DO SÉCULO XVIII
671
Devemos agradecer este esclarecimento à actual directora do Museu da Arte Sacra do Funchal, Luíza Clode.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. 25; AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 1, doc.
avulso: Autorização para a criação da ermida de São Francisco de Assis, 1698; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 110.
673
Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 110.
672
164
1. A caminho da decadência - a presença de senhoras e criadas na clausura
Ao longo da história a situação da mulher foi muito condicionada por mentalidades e
ideologias que a tornavam dependente do querer dos outros. No século XVII esta dependência
foi muito marcante. Para as jovens nobres, para quem não foi possível um casamento
favorável até um dado momento, a sua continuação no seio da família, por vezes com o pai e
os irmãos no Brasil, Índia ou outros lugares, ainda que provisoriamente, não era prudente,
pois poderia acontecer um casamento desvantajoso para os interesses familiares ou algo pior.
O mesmo risco corria uma viúva, sobretudo tendo riqueza, sentindo-se sem parentes chegados
e sem alguém que pudesse administrar os seus bens. A orfandade era outro grave problema.
Crianças sem mãe e sem pai precisavam de quem assumisse a sua educação e projecção na
vida.
A agudeza destas necessidades, reais e de todos os dias, entre a população do século
XVII e XVIII, urgia solução. Daí que se pretendesse que os mosteiros, neste caso também o
da Encarnação, fossem a resposta a tais problemas. Concretizando o que acabamos de expor,
apontaremos alguns casos de pessoas que viveram neste mosteiro sem profissão.
Em 1805 João Ângelo de Vasconcelos pedia a Sua Majestade que sua irmã Ana
Joaquina de Vasconcelos “se recolhesse com uma criada no convento de Nossa Senhora da
Encarnação da Ilha da Madeira, prontificando-se ele a sustentá-la à sua custa”674. Em 1840 D.
Emiliana Gil Gomes obteve igual concessão675. Em 1877 D. Joana Teresa Campos e Brito, D.
Antónia Guiomar Campos e Brito e D. Rosa Maria da Câmara Campos, filhas de Manuel da
Costa Campos, cavaleiro professo da Ordem de São Tiago de Espada, que viviam com um tio
de avançada idade, também elas idosas, eram autorizadas pelo rei D. Luís, o prelado e a
abadessa, a “entrar no Convento da Encarnação como Seculares Recolhidas, pagando uma
pensão e levando consigo uma criada para as servir”676. Em tais concessões havia o cuidado
de recomendar às suplicantes a dignidade, modéstia e moderação na forma de vestir.
Outro obstáculo eram as educandas que dificultavam a tranquilidade e a paz no seio da
comunidade. Por isso, a 18 de Fevereiro 1819, o prelado do Funchal enviou ao monarca uma
súplica das religiosas da Encarnação, acompanhada de uma instrução sua. Pedia-se que não
fosse permitida a entrada de seculares no mosteiro677. Queixavam-se as religiosas de que
“vivendo com muita tranquilidade na fiel observância da regra (...) tem acontecido que, por
ordem de Vossa Majestade, têm entrado no mosteiro algumas mulheres que, tendo gostado
dos encantos do século, têm incomodado muito o mosteiro”. Solicitavam pois, “por especial
graça, o não conceder licença a mulher alguma daquelas ilhas, seja de que qualidade for, para
entrar por muito nem pouco tempo no mosteiro”, para que as religiosas não fossem “apartadas
da oração e exercício das suas funções religiosas”678.
Às recolhidas e educandas devemos juntar as senhoras piedosas, geralmente nobres, que
se muniam de breves pontifícios com beneplácito régio, para poderem entrar no mosteiro e
nele permanecer por alguns dias para sua consolação espiritual. Em 1804 D. Mariana
Francisca de Caires obteve um breve do Núncio Apostólico, com a respectiva confirmação
674
AHDF, Conv. Enc, caixa, 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do visconde da Anadia, João Rodrigues de Sá e Mello, do Palácio de Queluz,
de 6 de Julho de 1805.
AHDF, Conv. Enc., caixa, 25, capilha 5, doc. avulso: Ofício de António Bernardo da Costa Cabral, do Paço das Necessidades, de 16 de
Março de 1840.
676
AHU, Madeira, doc. 1 023, 1 024 e 1 025: Petição de D. Joana Teresa, D. Antónia Guiomar Campos e Brito e D. Rosa Maria da Câmara
Campos.
677
AHU, Madeira, doc. 4 576.
678
AHU, Madeira, doc. 4 577.
675
165
régia, que lhe permitia entrar na clausura três vezes por ano e nela permanecer alguns dias679.
O mesmo aconteceu com outras senhoras.
Gerou-se também o costume de os familiares das religiosas, não querendo nas suas
visitas limitar-se aos locutórios, entrarem na clausura para o que obtinham licença eclesiástica
e régia.
Outra presença de seculares na clausura eram as criadas. O mosteiro nunca prescindiu
da presença de criadas para o serviço da comunidade, embora em número moderado; contudo,
não era permitido às religiosas terem criadas particulares. No final do século XVII aparecem
os primeiros pedidos nesse sentido, alegando razões de saúde, mas, sobretudo, a sua distinção
e nobreza. É o caso das Madres Isabel do Espírito Santo, Micaela dos Serafins e Úrsula Santo
Ambrósio, filhas do provedor da Fazenda Real que, em Fevereiro de 1688, pediram para ter
duas criadas particulares para seu serviço porque eram nobres e estavam doentes680. É
possível que estas religiosas não tivessem sido autorizadas, pois que em 1763 D. Gaspar
Brandão informava o nosso rei D. José de “não haver alguma criada particular, de
religiosas”681.
Quando, depois de 1764, a comunidade começou a diminuir em virtude da proibição de
receber noviças, o número de criadas manteve-se. De facto, o bispo do Funchal, D. José da
Costa Torres, no relatório que em 1788 enviou à rainha D. Maria, lamentava-se de que, apesar
da diminuição considerável de freiras, o mosteiro sempre conservava as mesmas criadas.
Apesar da discordância do bispo do Funchal, as religiosas começaram, a partir de fins
do século XVIII, a ter criadas particulares. A 9 de Outubro de 1794, D. Maria autorizava a
Madre Ana Filipa do Vencimento a ter uma criada682. Em 1806 à Madre Vicência Joaquina do
Amor Sagrado era feita igual concessão683. Em 1808 a Madre Tomásia Delfina de Cantuária,
que já há alguns anos obtivera licença de Sua Santidade para ter criada, passou a ter a seu lado
a Januária Maria, para que se ocupasse do seu serviço e lhe assistisse nas suas necessidades.
Ao longo do século XIX os pedidos para ter criadas particulares multiplicaram-se. As
religiosas do mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação haviam esquecido que a Regra que
professavam mandava “cuidar das doentes com o máximo de solicitude (...) com ardente
caridade, benignidade e atenção”684. Lamentavelmente, na sua posição de nobres,
encontravam motivo para se dispensarem do exercício da caridade fraterna, deixando as suas
doentes nas mãos de criadas.
A presença destas criadas para o serviço particular das religiosas representou não só um
aumento do número de pessoas sem profissão no interior da clausura, como demonstrou que
valores importantes e profundos, que deviam marcar o seu viver comunitário, se iam
perdendo.
2. Situação espiritual
No plano espiritual a situação do mosteiro não era melhor. A ideologia do século XVIII
havia entrado em cheio na comunidade e, evidentemente, mudado mentalidades e desvirtuado
valores. A atmosfera exterior, lentamente, foi penetrando na clausura e, quase sem que as
religiosas disso se apercebessem, o ambiente foi-se deteriorando e desembocou em crise
espiritual.
679
AHDF, Conv. Enc. F, caixa25, capilha 3, doc. avulso.
BNA, Rerum Lusitanicarum, CVIII, pp. 535 - 536; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op.cit., p 36.
681
AHU, Madeira, doc. 261.
682
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 2, doc. avulso: Beneplácito Régio de D. Maria I dado no Palácio de Queluz a 9 de Outubro de
1794.
683
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Beneplácito Régio de 31 de Março de 1806.
684
RU 4, XII, 22, in FF II, p. 355.
680
166
O Iluminismo, o exibicionismo do século, a falta de fé e superficialidade de vida
reflectiram-se no interior do claustro. De facto, os costumes e as modas do século entraram e,
com elas, se foi perdendo a moderação, a simplicidade, as observâncias regulares. As freiras
passam a vestir-se de seda azul depondo o burel cinzento de Santa Clara, que só com
dificuldade vieram a retomar. As visitas tornaram-se frequentes e, por vezes, inoportunas, o
que mereceu a intervenção da autoridade eclesiástica. Assim, em 1815 D. Frei Joaquim de
Meneses e Ataíde limitou as idas aos locutórios e reservou para si o direito de decidir sobre a
oportunidade de certas visitas que só seriam permitidas com licença sua, dada por escrito685.
Em virtude das leis de 1764, que proibiam a admissão de noviças, as religiosas
tornaram-se cada vez menos e, em breve, insuficientes para manter uma vida ordenada e
regular, já que eram poucas, envelhecidas e doentes. Não admira que D. José da Costa Torres,
em 1788 em carta para o ministro Martinho de Mello e Castro, dissesse que não tinham vida
comum, que se encontravam em estado de decadência e que o ambiente era de relaxação686. O
prelado do Funchal, consciente da decadência em que encontrava a comunidade e convencido
de que não havia qualquer hipótese de retrocesso, mais dizia: “eu vou proibindo a entrada às
que querem substituir os lugares vagos fazendo-me entretanto surdo às petições e queixas da
abadessa; e se não fossem certas considerações, que me embaraçam já teria mandado por fora
do convento uma grande parte delas”687.
Esta falta de vivência espiritual, que se evidencia no mosteiro na segunda metade do
século XVIII, tem por detrás causas profundas, como sejam: penetração das ideias do século
XVIII no interior da clausura e excesso do contacto com o exterior, como em cima ficou dito,
com a consequente entrada de maneiras mundanas e vaidades, tão contrárias à simplicidade
evangélica; vida faustosa e opulenta; fuga à vida de oração; falta de submissão à autoridade
eclesiástica, que não raro teve de recorrer a penas canónicas para reprimir irregularidades e
abusos. A mais grave porém foi, sem dúvida, a falta de discernimento na admissão das
candidatas. Ali entraram muitas jovens sem vocação, pressionadas pelos familiares, que não
podiam sentir-se felizes nem produzir frutos de santidade. Ouçamos o testemunho de uma
freira constitucional, que O Patriota Funchalense tornou público em 8 de Setembro de 1821:
“No recinto desta clausura onde me prenderam em uma idade em que tudo me parecia bom e
agradável, para satisfazer os desejos de meus Pais, tenho vivido, não digo bem, existido, para
amargurar a minha cruel sorte”688.
A presença de pessoas seculares sem profissão religiosa, como eram as recolhidas, as
educandas, as criadas, também não era positiva; as abadessas e a comunidade disso se deram
de conta, mas já muito tarde.
3. Dificuldades económicas
À prosperidade e à opulência que o mosteiro conheceu até meados do século XVIII
seguiu-se a decadência. Muitas foram as causas que contribuíram para isso:
Em primeiro lugar, a má administração, diremos mesmo, o abuso de alguns
procuradores que, conforme se afirma numa carta do bispo do Funchal, pretendiam enriquecer
à custa do mosteiro: “as religiosas do convento da Encarnação do Funchal, que segundo o
provável cálculo das suas rendas, tinham toda a razão para ter uma manutenção frugal e
honesta, estão reduzidas à mais lamentável situação de pobreza e miséria; todas as suspeitas e
toda a desconfiança recai sobre os administradores que, entrando pobres e aparecendo ricos,
excogitam todos os meios para não dar conta da sua administração e como pretexto de
685
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 35.
AHU, Madeira, doc. 842.
687
AHU, Madeira, doc. 842.
688
“Huma freira constitucional” in O Patriota Funchalense, de 8 de Setembro de 1821.
686
167
credores querem ali conservar-se com detrimento das freiras”689. O prelado culpa o P. António
Nicolau Lobo de Matos e o administrador Nicolau Baptista Spínola e pede a intervenção régia
para os despedir das suas funções administrativas.
Com esta administração abusiva de alguns procuradores associou-se a má administração
de certas abadessas, que chegaram a ser chamadas à atenção pela autoridade eclesiástica. Nos
livros de contas detectam-se algumas dessas observações.
Também, como escreveu D. José da Costa Torres em 1788, teria contribuído para a
decadência económica do mosteiro o aumento incontrolado de membros da comunidade:
“(...) se o mosteiro tivesse sempre conservado o número da sua instituição, certamente não
chegaria a tal decadência”690. De facto, o aumento sempre crescente de religiosas, que, de
trinta, número da instituição, passaram para sessenta, às quais se foram juntando as
extranumerárias, por vezes em maior número, causou verdadeiro desequilíbrio. “Por isso”,
continua o prelado, “as freiras não têm o necessário para viver que lhes dê o Convento,
padecem necessidades e, por consequência, não há vida comum”691. O bispo do Funchal temia
ir ao mosteiro, por lhe parecer que a reforma seria “mui difícil, se não impossível”; além
disso, “todas hão-de encalhar na falta do necessário, que é primeira causa da relaxação”,692
acrescentava o prelado.
Na época que estamos a considerar verificaram-se irregularidades climáticas. Os maus
anos agrícolas e, por consequência, as más colheitas, na medida em que diminuíam o
quantitativo a entregar ao mosteiro, quer em géneros quer em dinheiro, e ainda o consequente
aumento de preços, foram também responsáveis pelos problemas financeiros no interior da
clausura.
Como a comunidade tinha mais da terça parte das suas propriedades no Porto Santo, os
anos estéreis naquela Ilha criavam uma situação verdadeiramente problemática na
subsistência e vida económica do mosteiro. Já em 1764, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão,
em carta para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, referia que as rendas do mosteiro de
Nossa Senhora da Encarnação provenientes do Porto Santo eram diminutas, 160.000 reis, e
explicava que, apesar de as sementes serem fornecidas pelo mosteiro, os colonos ficavam com
a metade da produção693.
Na década de setenta a situação do mosteiro agravou-se. O alvará régio de 19 de
Outubro de 1770, dos quintos e oitavos, não beneficiou o mosteiro, pois que “ (...) nas terras
de Porto Santo os colonos que as fabricavam”, conforme a determinação régia passaram a
pagar “aos senhorios das ditas terras o quinto e oitavo em lugar da metade”694. As religiosas,
afectadas na sua economia, dirigiram ao rei um requerimento, pedindo a abolição da referida
lei. Alegavam para tanto a sua pobreza, consequência das leis económicas que as vinham
atingindo. A lei dos quintos e oitavos, contudo, não foi revogada, o que ocasionou ainda
maior diminuição nas suas rendas.
No entanto, a falta de produtos de consumo e a subida de preços não eram unicamente
dependentes de crises internas, mas também das vicissitudes do comércio internacional da
época.
Os acontecimentos bélicos do século XVIII, particularmente a Guerra dos Sete Anos, a
luta pela independência das colónias inglesas da América do Norte e a actividade dos
corsários no Atlântico, contribuíram poderosamente para a falta de géneros que se fez sentir
689
AHDF, Conv. Enc., F, caixa. 25, doc. avulso: Carta do bispo do Funchal, sem data. Este documento foi publicado por Eduarda Maria de
Sousa Gomes, op. cit., p. 160.
690
AHU, Madeira, doc. 842.
691
AHU, Madeira, doc. 842.
692
AHU, Madeira, doc. 842.
693
AHU, Madeira, doc. 263.
694
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 12, fol. 104 - 105. Este documento foi publicado por Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 158.
168
na Madeira e de que o mosteiro se ressentiu. Acresce que os seus rendimentos diminuíram
muito, dada a dificuldade da exportação do vinho.
Os comerciantes ingleses, habituais abastecedores da Ilha e do mosteiro, começaram a
faltar com os produtos, pois que, sendo o porto do Funchal afectado pelas guerras, as
transacções comerciais não se faziam. Esta falta de produtos de consumo fez nascer a carestia
e a fome.
Como consequência assistiu-se, na segunda metade do século XVIII, não só à subida de
preços dos mais indispensáveis produtos de subsistência como também dos mais diversos
ordenados. Vejamos:
- ao procurador António Gomes Silva, a partir de 1749, o mosteiro passou a dar em vez
de 30.000 reis, 70.000695;
- ao capelão, que no início do século recebia 15.000 reis, 696passou a dar 24.000 reis a
partir de 1748, ordenado do P. Francisco Luís Oliveira e sucessores697;
- ao médico de 15.000 reis,698passou a dar, 30.000 reis, a partir de 1744, , valor pedido
pelo Dr. José F. Tavares, em 1744699;
- o sangrador, que até 1720 recebia 4.000 reis,700passou a receber 8.000 em 1734701.
No Boticário os quantitativos a pagar aumentaram substancialmente, como nos mostra
o quadro 23.
À riqueza, à opulência e à prosperidade seguiram-se a pobreza, a falta do necessário, o
desequilíbrio económico e financeiro.
Quadro nº.23 – Despesas no boticário
Triénios
Quantitativo (reis)
1717 - 1720
1749 - 1751
1767 - 1769
194.555
354.507
355.800
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 19, 23 e
24, respecti- vamente.
Segundo o mapa que o bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, por
ordem régia, remeteu a Francisco Xavier de Mendonça Furtado em 10 de Dezembro de 1764,
os rendimentos anuais do mosteiro, resultantes dos foros a vinho e trigo, de alugueres de
casas, dos rendimentos das propriedades e juros, que ascendiam a 3.424.222 reis, já então
eram considerados insuficientes para sustentar cento e trinta religiosas que nele viviam, às
quais se juntavam, pelo menos, trinta criadas, servos e assalariados702.
695
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 16, 18, 22, 23.
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 18,19, 20 , 22.
ARM, Conventos, Conv. Enc .F, L 22 e 23.
698
ARM, Conventos, Conv. Enc .F, L 14, 15, 16, 18, 19, 22.
699
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 16, 22, 23.
700
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 9, 14, 15, 16, 18, 19.
701
ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 16, 22.
702
AHU, Madeira, doc. 263. Francisco Xavier de Mendonça servia no exército quando seu irmão, o marquês de Pombal, entrou para o
governo. Foi, então, nomeado governador e capitão-mor do Pará e Maranhão, com encargo de reprimir os jesuítas, defensores dos direitos
dos índios. Do Brasil, enviou a seu irmão vários relatórios desfavoráveis àqueles missionários. Regressando a Portugal ocupou a pasta dos
Negócios do Reino e seguidamente a da Marinha e Ultramar.
696
697
169
CAPÍTULO VIII
TENTAVIVAS DE SUPERAÇÃO DA CRISE
1. Projectos de reforma do bispo D. José da Costa Torres (1784-1796)
Segundo o parecer do bispo D. José da Costa Torres, sentia-se a necessidade de duas
instituições na Madeira e particularmente no Funchal: uma casa de correcção para mulheres
que, no dizer do prelado, poderia funcionar no antigo seminário e ser sustentada, pelo menos
em parte, com os juros das confrarias703; um colégio para educação de meninas que, bem
formadas, fossem esperança de uma sociedade melhor. O mosteiro de Nossa Senhora da
Encarnação poderia ser o espaço necessário para este segundo empreendimento, na opinião do
mesmo.
Segundo D. José da Costa Torres, o estado decadente do mosteiro, tanto no plano
material como espiritual, urgia solução. Em carta de 10 de Agosto de 1788 para Martinho de
Mello e Castro pedia que se propusesse à rainha a sua incorporação no de Santa Clara,
“sujeito aos franciscanos, o qual tem melhor governo e é rico”704. O edifício da Encarnação,
uma vez vago, “poderia ser ocupado por Salésias, para a educação de meninas, que é Instituto
de suma utilidade”705. Estas religiosas, assumindo este trabalho pedagógico e formativo,
dariam resposta a uma das mais prementes necessidades da Madeira. Mais pedia o bispo que,
se a rainha não concordasse com esta medida, ao menos permitisse a saída de quatro
religiosas do convento de Ursulinas de Lisboa para o Funchal, onde fariam uma fundação. E
acrescentava: “correrá por minha conta a sustentação das fundadoras, ao menos por três
anos”706.Incorporando a comunidade da Encarnação na de Santa Clara, metade das rendas
daquele mosteiro passariam de imediato para as religiosas Ursulinas e, por morte de todas
elas,707aplicar-se-ia à nova comunidade a sua totalidade que, segundo o prelado, poderia
sustentar, sem dificuldade, vinte Ursulinas.
Convicto de que a concretização deste plano traria a solução para os graves problemas
da Madeira, acrescentava: “se sua Majestade for servida atender ao que tenho escrito, poderei
fazer um plano mais circunstanciado nesta matéria”708.
2. O breve do Papa Pio VII de 1807
Desconhecemos os trâmites por que terá passado tão importante e delicado assunto e se
D. José da Costa Torres terá feito mais algumas diligências para consumá-lo. Sabemos,
contudo, que o seu sucessor, D. Luís Rodrigues Vilares, fez chegar a Roma o problema e
solicitou ao Papa não só a incorporação da comunidade da Encarnação na de Santa Clara mas
também a sua subordinação à Ordem Franciscana709.
Ponderadas na Cúria Romana as razões que levaram o prelado a pedir a reunião das
duas comunidades, decadência material e espiritual, o Papa Pio VII, por breve apostólico,
703
AHU, Madeira, doc. 842.
AHU, Madeira, doc. 842. Falam também da necessidade da incorporação dos mosteiros os documentos 1753, 1755 e 3047.
AHU, Madeira, doc. 842. Salésias eram as religiosas da Ordem de Nossa Senhora da Visitação, instituída por São Francisco de Sales e
Santa Joana Francisca de Chantal, em 1612.
706
AHU, Madeira, doc. 842. As Ursulinas, religiosas da Ordem de Santa Úrsula, foram fundadas em 1537 por Ângela de Merici.
707
Dentro de dez anos, mais ou menos, calculava o prelado, a morte das religiosas aconteceria, pois quase todas elas tinham setenta e mais
anos.
708
AHU, Madeira, doc. 842.
709
AHU, Madeira, doc. 3 047 e 3 049. O documento 3049 do mesmo arquivo contém um aviso ao bispo da diocese, D. Luís Rodrigues
Vilares, do seguinte teor: “Remeto a V. Excelência o incluso breve com o real beneplácito, para a união que V. Excelência solicitou dos dois
conventos de religiosas franciscanas da sua diocese”.
704
705
170
dado em Roma a 25 de Setembro de 1807, consentiu na incorporação e determinou-a710. .De
facto, o Papa, atendendo a que ambos os mosteiros professavam a mesma regra, facilmente
concedeu a autorização que lhe era pedida, convencido, como o prelado, de que tal união
representasse o fim das dificuldades espirituais e económicas711, que desde há muito se
vinham fazendo sentir na Encarnação.
O segundo problema, sujeitar os dois mosteiros à jurisdição da Primeira Ordem
Franciscana, Pio VII remeteu-o para o Núncio Apostólico, em Lisboa, por despacho de 15 de
Outubro do mesmo ano, com autorização “para que, em nome da Santa Sé, delegasse no
prelado do Funchal as necessárias e oportunas faculdades”712. A resolução cabia, pois, em
última análise, ao bispo da diocese.
Este breve teve beneplácito régio, dado no palácio de Nossa Senhora da Ajuda a 10 de
Novembro do mesmo ano: “O príncipe regente, Nosso Senhor, há por bem acordar o seu
beneplácito para a execução deste breve”713.
Entretanto, um acontecimento de natureza militar e política, veio precipitar a execução
da incorporação determinada neste breve: a ocupação militar da Ilha da Madeira pelas tropas
do general britânico William Carr Beresford.
3.União dos dois mosteiros urbanistas do Funchal
Avançavam os exércitos de Napoleão Bonaparte Europa fora, no intuito, loucamente
concebido, de se tornar senhor de um império que se estendesse da Península Ibérica aos
Montes Urais e do Báltico ao Mediterrâneo. Em 1807 as tropas francesas estavam em
Portugal714. Foi dentro deste contexto que a acção militar da Inglaterra se fez sentir no nosso
país e se processou a ocupação da Madeira em Dezembro daquele ano. William Beresford,
sob o pretexto de defendê-la dos franceses, invadiu a Ilha e instalou-se no palácio de São
Lourenço, como governador e comandante militar. Esta atitude foi arbitrária e abusiva,
violação do direito internacional. Beresford, só em 1809, por decreto de 7 de Março, foi eleito
marechal de campo do exército português. Só então lhe foram dados plenos poderes pela
Junta Governativa que, de certo modo, lhe permitiram governar o país até 1820715.
3.1. Retirada das religiosas da Encarnação e transformação do mosteiro em hospital
Depois de aquartelada “uma grande parte das tropas de sua Majestade Britânica” no
colégio de Jesuítas, então a funcionar como seminário, e no mosteiro de São Francisco, ainda
uma parte delas estava sem alojamento, permanecendo “abarracada no campo da Penha de
França”.
O major general, julgando estratégica a situação do mosteiro da Encarnação, pretendia
que o governador do bispado mandasse retirar as religiosas que ali viviam. Era formal a carta
que Beresford enviou à referida autoridade eclesiástica: “É com o maior pesar que verifico
que todas as diligências feitas para se aquartelarem os meus soldados, têm sido infrutíferas e
que me vejo precisado de pedir a Vossa Senhoria que avise a madre abadessa da triste
710
AHU, Madeira, doc. 3 049.
AHU, Madeira, docs. 3 047 e 3 049.
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso AHU; Oficio do conde de Anadia para o bispo do Funchal de 10 de Novembro de
1807.
713
AHU, Madeira, doc. 3 049: Breve de Pio VII, com o beneplácito régio, assinado pelo visconde de Anadia, dado no palácio de Nossa
Senhora da Ajuda a 10 Novembro de 1807.
714
História Universal, adaptada e revista por Jorge Borges de Macedo, II, pp. 212-213; Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., VII, pp. 13-37.
715
Oliveira Marques, op. cit., II, p. 363.
711
712
171
necessidade em que estou de as incomodar, passando-as para o mosteiro de Santa Clara (...).
Gostaria que o mosteiro estivesse despejado até quinta-feira, ao mais tardar”716.
Num segundo ofício, datado de 3 de Janeiro de 1808, Beresford exigia que o
governador do bispado mandasse “passar as ordens necessárias para as ditas religiosas saírem
no dia 7 do dito mês”717. O próprio Beresford fez diligências em Santa Clara para que não
obstassem à execução da sua determinação. A saída das quarenta e duas religiosas fez-se com
“aquela decência, silêncio, piedade e aparato religioso, que exigia um acto tão sério”718.
A exigência do comandante militar inglês foi precipitada e imponderada, pois, uma vez
despejado o mosteiro, logo se verificou a sua insegurança e quanto estava danificado. Assim,
a 16 de Janeiro, já William Beresford, em carta para o governador do bispado lamentava o
sacrifício exigido às religiosas, pois o mosteiro não servia para quartel. Só com enorme
despesa ficaria com a segurança necessária. Assim escrevia: “O convento da Encarnação foi
recusado pelo engenheiro inglês para servir de quartel (...) sinto não ter sabido antes, pois que
livrava a abadessa e as suas religiosas daquele convento, do incómodo que tiveram. Ofereçolhes a liberdade de voltarem”719.
Um mês depois, exactamente a 16 de Fevereiro de 1808, já o major general, temendo
que as religiosas optassem pelo regresso à Encarnação, pressionava a autoridade eclesiástica a
que “tratasse imediatamente de ultimar a sua união e incorporação no mosteiro de Santa
Clara, unindo, outrossim, todas as rendas de que até agora desfrutavam”, que deveriam
manter-se “enquanto durar alguma das ditas religiosas do convento da Encarnação”, pois o
mosteiro era-lhe necessário “para hospital das tropas britânicas”, sendo, portanto, “o regresso
das ditas religiosas para aquele convento impraticável” 720.
3.2.União e incorporação das duas comunidades
Vencidas algumas dificuldades e resistências, as duas comunidades puseram-se de
acordo, acabando até por ver vantagens na união. A autoridade eclesiástica, que tantos
esforços havia feito para incorporar as duas comunidades, tinha agora uma ocasião, oferecida
pelas circunstâncias ocorrentes, para a levar a cabo.
A abadessa e a comunidade de Santa Clara “recebem suas irmãs com excesso de amor e
ternura”721. O próprio Beresford em carta de 16 de Janeiro de 1808 para António Correia de
Bettencourt Vasconcelos, deão e governador do bispado, refere “a maneira tão benemérita
porque foram recebidas em Santa Clara”722. A 16 do mês seguinte é ainda Beresford que,
possivelmente com uma pontinha de lisonja, assim fala: “Participarão da abundância e bom
regimento que ali reina, que tem sido uma honra bem evidente, no magnífico agasalho e
tratamento com que foram recebidas”723. “Tal facto”, dizia Beresford, “tem merecido os
716
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de William Beresford, de 31 de Dezembro de 1807, para o governador do
bispado do Funchal.
717
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Lista das reverendas madres do mosteiro da Encarnação.
718
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Sentença e carta do deão Dr. António Correia de Bettencourt e Vasconcelos,
governador do bispado em nome de D. Luís Rodrigues Vilares, dada no Funchal a 5 de Março de 1808, escrita por Manuel Joaquim
Monteiro Cabral, escrivão da Câmara Eclesiástica do Funchal.
719
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de Wiliam Beresford para o governador do bispado do palácio de São
Lourenço, de 16 de Janeiro de 1808. As religiosas, dado o estado deplorável do edifício, a exiguidade das suas rendas, cada vez em maior
diminuição e desordem (AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso) e a esperança que tinham naquela união, não manifestaram
qualquer interesse no regresso e, felizmente, pois o comportamento de Beresford era por de mais arbitrário.
720
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso.
721
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso.
722
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de William Beresford para o governador do bispado, de 16 de Janeiro de
1808
723
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de William Beresford para o governador do bispado, de 16 de Fevereiro de
1908
172
maiores louvores em toda esta ilha e confirmado a alta opinião em que se tinham de suas
piedosas virtudes”724.
No auto de anexação e união do mosteiro da Encarnação ao de Santa Clara, lavrado a 20
de Janeiro de 1808 por Manuel Joaquim Cabral, escrivão da Câmara Eclesiástica, testemunhase que as religiosas foram tão bem recebidas em Santa Clara “que, mesmo quando souberam
que poderiam regressar, elas o não quiseram”.725
O Dr. António Correia Bettencourt e Vasconcelos, na qualidade de deão e governador
do bispado, devidamente credenciado pela Sé Apostólica e por D. Luís Rodrigues Vilares,
bispo do Funchal, então exilado no Santo da Serra, diante da disponibilidade das religiosas
dos dois mosteiros, achou que a união das duas comunidades era possível. Assim, a 5 de
Março de 1808, executou essa união: “Havemos por bem, suprimido e extinto o dito convento
de Nossa Senhora da Encarnação (...), podendo fazer-se do seu edifício, o uso e aplicação que
convier”726; e, como consequência, “unimos, anexamos, e incorporamos” as comunidades
para que constituam “uma única onde todas, sob a dependência da abadessa de Santa Clara,
terão iguais direitos”. Esclareceu e determinou o deão que só após a morte de todas as
religiosas da Encarnação, passariam “todos os bens, juros e rendas ao mosteiro de Santa
Clara, para serem aplicados como for serviço de Deus, da Igreja e bem do Estado, por ordem
e determinação dos legítimos superiores”727.
O Núncio Apostólico de Portugal, atendendo a que “em ambos os mosteiros se professa
a mesma regra e as religiosas da Ordem de Santa Clara estão bem satisfeitas com a
incorporação das suas Irmãs”728, em nome do Papa Pio VII, confirmou a incorporação,
ficando as religiosas da Encarnação a gozar de voz activa e passiva e de mais direitos e
privilégios, como se no mosteiro de Santa Clara houvessem professado. Esta confirmação era
dada pelos espaço de três anos, dentro dos quais “haverão de recorrer ao Santo Padre” e
acolher, se necessário, outras determinações729.
O Custódio Provincial Franciscano, da Ilha da Madeira, como autoridade jurídica que
era no mosteiro de Santa Clara, foi notificado desta incorporação e respectiva confirmação do
Núncio Apostólico.
4. Regresso ao mosteiro da Encarnação
4.1. Reacção das freiras perante o comportamento dos ingleses
Não passaram muitos anos sem que as religiosas começassem a desejar o seu regresso
ao mosteiro da Encarnação. Desse anseio e do repúdio pelo que os ingleses iam fazendo no
edifício, é testemunho gritante uma carta de 30 de Abril de 1813, assinada por dezoito
religiosas, enviada a D. Frei Joaquim Meneses e Ataíde que desde 1811 governava a diocese
do Funchal como vigário apostólico. Os ocupantes, dizem elas, “têm faltado a pagar à nossa
comunidade o aluguer ajustado, têm feito quantas obras querem sem licença do senhorio, que
é a comunidade.” A agravar a situação estavam outros factos: “os senhores ingleses querem
fazer no dito convento uma ermida, abrir portas no coro baixo, parte da igreja que ainda se
724
AHDF Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de William (...) de 16 de Fevereiro de 1908 .
AHDF, Conv, Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Sentença de anexação e união e incorporação do mosteiro de Nossa Senhora da
Encarnação com Santa Clara, dada no Funchal, a 5 de Março de 1808, pelo deão e governador do bispado, Dr. António Correia de
Bettencourt e Vasconcelos
726
AHDF, Conv, Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Sentença de anexação e união e incorporação (...).
727
AHDF, Conv, Enc.,. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Sentença de anexação e união e incorporação (...).
728
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de D. Lourenço, Núncio Apostólico dos Reinos de Portugal, Algarve e seus
domínios, de 29 de Julho de 1808, ano IX do Pontificado de Pio VII.
729
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de D. Lourenço (...).
725
173
não profanou”. E lamentavam-se, amargamente, de que desta forma ficavam sem “o seu
convento para onde querem voltar” 730.
As freiras da Encarnação residentes no mosteiro de Santa Clara que, a 7 de Janeiro de
1808, haviam saído do seu mosteiro “por cega obediência às ordens do General do Estado”,
protestavam agora contra o que acontecia, pedindo a D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde
que não as desamparasse, que as tomasse sob o seu cuidado e obstasse a que “se faça ermida
no mosteiro sem ordem régia”731. E, quase desorientadas, escrevem: “logo que tenhamos
notícia que tal obra se principia, nós sairemos e iremos para o nosso Convento”732.
4.2. Polémica entre o vigário apostólico D. Frei Joaquim Meneses e Ataíde e o
general inglês Jorge Hamilton Gordon
Porque as religiosas pediam insistentemente ao prelado “que oficie esta sua decisão aos
senhores governadores”, bem depressa Jorge Hamilton Gordon tomou conhecimento de que
não podia dar cumprimento às obras anunciadas. Assim escreveu o vigário apostólico do
Funchal: “Consta-me que o coro baixo e o adro da igreja da Encarnação se vai aplicar a usos
profanos. Eu não posso nem devo consentir que estes lugares sagrados, que são contemplados
como partes integrantes da mesma igreja, se destinem para usos não sagrados”733. O vigário
apostólico, como membro da Igreja Católica Romana “dominante nesta ilha”, procurou fazer
compreender a Gordon que não podia permitir tal acto, pois isso significaria ultrapassar as
regras da Igreja Católica, “que sua Alteza Real tanto respeita”734.
Daqui nasceu uma polémica epistolar entre o capitão general e D. Frei Joaquim
Meneses de Ataíde, que ganhou volume. Versava a polémica à volta da profanação dos
lugares referidos e da própria palavra “profanar”, utilizada pelo bispo em ofício dirigido ao
general. Diante da sensibilidade do major general, em carta subsequente, explicava D. Frei
Joaquim de Meneses e Ataíde que “profanar quer dizer secularizar, isto é, aplicar a usos civis
aquilo que pertence ao culto religioso”735e que, certamente, o intérprete não conheceria um
termo inglês que explicasse o conteúdo exacto do vocábulo.
No emaranhado da questão o vigário apostólico do Funchal lembrou a Gordon: “A
Nação Britânica sempre se distinguiu pela observância das suas leis, e V. Ex.cia, como digno
filho desta Nação, jamais poderá sentir-se de que eu cumpra as leis do meu país e da Igreja”.
E, com firmeza, acrescentou “o Senhor Arcebispo de Cantuária, mais que uma vez tem feito
castigar as transgressões das leis Eclesiásticas. Ele é ouvido pelo seu Príncipe”. D. Joaquim de
Meneses e Ataíde, estranhando deveras o comportamento de Gordon, mais diz: “Em Lisboa,
aquartelando-se as tropas britânicas em muitos e diferentes conventos, nunca ocuparam e
sempre respeitaram o templo, a sacristia, o coro e adro como lugares destinados ao culto
religioso”736.
4.3. Saída para o mosteiro da Encarnação em 1814
730
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de algumas religiosas da Encarnação, residentes em Santa Clara, para o
bispo do Funchal, de 30 de Abril de 1813.
731
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de algumas religiosas da Encarnação(...).
732
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de algumas religiosas da Encarnação (...).
733
AHDF, Conv. Enc. F., caixa 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do bispo vigário apostólico para o governador e capitão general deste
Estado, de 22 de Abril de 1813.
734
AHDF, Conv. Enc. F., caixa 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do bispo vigário apostólico para o governador e capitão general deste Estado
, de 22 de Abril de 1813.
735
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do bispo do Funchal para Gordon, 1813.
736
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do bispo do Funchal para Gordon, 1813.
174
A 1 de Outubro de 1814 o escrivão da Câmara Eclesiástica do Funchal, Manuel
Joaquim Monteiro Cabral, procedeu na igreja do mosteiro de Santa Clara, por ordem e em
nome do vigário apostólico, a um inquérito às religiosas da Encarnação.
A cada uma se perguntava se queria voltar para o mosteiro da Nossa Senhora da
Encarnação, se queria ficar em Santa Clara, sujeita à obediência dos religiosos franciscanos,
se o mosteiro da Encarnação tinha rendas que pudessem sustentar trinta religiosas, o número
da fundação, e ainda se lá podia haver observância regular e educandas seculares sem prejuízo
da comunidade737.
Deste inquérito resultou que, das quarenta e duas religiosas que haviam passado para
Santa Clara a 7 de Janeiro de 1808, vinte e oito regressaram ao mosteiro da Encarnação. “Na
manhã do dia 2 de Dezembro de 1814, sexta-feira, saíram do mosteiro de Santa Clara em
palanquins mui decentes, acompanhadas dos senhores Ministros Eclesiásticos, seus Oficiais,
Clero e Nobreza. Na portaria do seu mosteiro as esperavam o Ex.mo e Rev.mo Sr. Bispo,
Vigário Apostólico, Corregedor, e Juiz de Fora, sendo grande o concurso do povo nesta
ocasião”738. As religiosas voltaram a depender canonicamente do bispo do Funchal
5. Reestruturação da comunidade
5.1 Dificuldades e esforços
Reorganizar a vida comunitária com um pequeno número de religiosas cansadas e
envelhecidas!?... Numa casa desmantelada e sem o mínimo necessário, tudo eram
dificuldades.
O edifício estava não só danificado mas também modificado na sua estrutura. Depois de
seis anos ao serviço das tropas britânicas como hospital, o imóvel encontrava-se “todo
estragado, pois que desmancharam as celas, ficando cada dormitório uma sala para
enfermaria”739. Por isso, quando as religiosas para ali voltaram, “além dos reparos que
fizeram no mosteiro, cada religiosa teve de mandar fazer cela à sua custa, com dinheiro seu ou
que seus parentes lhe deram”740. De facto, o inventário de 1862 refere que um dos dormitórios
não tinha celas porque “as que nele havia foram desmanteladas pelos ingleses e não se
reedificaram outras, pelo que serve unicamente de passagem”741.
Num esforço quase heróico, todas tentaram adaptar-se à nova situação. Estavam ali
voluntariamente, porque o seu regresso lhes parecera mais agradável do que a sua
permanência em Santa Clara, onde, no entanto, havia ordem e vida conventual organizada.
Entretanto, algumas candidatas, qual aurora a romper cheia de esperança, solicitaram a
sua entrada: Matilde, da freguesia de Santa Luzia, em 1827; Ana Baptista Gambarro de
ascendência italiana, Elisa Amália Correia e outras, alguns anos mais tarde742.
Aconteceu, porém, que também entraram moças educandas e senhoras que ali
pretendiam ficar recolhidas. A sua presença dificultava a reestruturação da comunidade. Os
problemas avolumaram-se e a sua solução, além de difícil, era urgente. Não faltaram esforços.
Contudo, apesar das súplicas das religiosas, a entrada de pessoas seculares continuou a
verificar-se. Em 1830 entrou como educanda a Angélica Rita, filha de Lourenço Bartolomeu
de Barros, que queria “recolhê-la no Convento, para livrá-la dos perigos do mundo”743. Em
737
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Inquérito feito às religiosas pelo escrivão da Câmara Eclesiástica, por ordem do
bispo, a 1 de Outubro de 1814.
AHDF, Conv. Enc. caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: .Memória do regresso das religiosas da Encarnação, de 2 de Dezembro de 1814.
739
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc.F., caixa 2070, doc. 25, fol. 2
740
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25, fol. 2.
741
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25, fol. 3.
742
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 5, docs avulsos.
743
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso: Provisão de 7 de Julho de 1830.
738
175
1840, satisfazendo o pedido de D. Emiliana Gil Gomes e da sua irmã D. Ana Gil Gomes,
autorizou D. Maria II “que fossem admitidas no convento (...) a primeira como secular e a
segunda como educanda, sustentando-se à sua própria custa (...) e guardando a modéstia e
moderação nos vestidos, como cumpre às seculares na clausura religiosa”. E, em seu favor, se
acentuava: “ficando entendido, que não poderão de algum modo, ser obrigadas a fazer votos
religiosos, sob pena de se proceder, como é lei, contra a comunidade onde se tal praticar”744.
A agravar a situação, entrou a mentalidade da época. No interior da clausura viviam
freiras sem vocação que acompanhavam a nova ideologia liberal e por ela tomavam partido,
como atrás ficou dito.
5.2. Problemas de natureza económica
Diante da agudeza dos problemas económicos que afectavam a comunidade, as
religiosas haviam deixado de cumprir alguns encargos pios, facto que, naturalmente,
inquietava as suas consciências “mormente daquelas que têm a administração a seu cargo”745.
Nestas circunstâncias, em 1835, Madre Maria do Lado, então abadessa, dirigiu-se à
autoridade eclesiástica dizendo: “O convento tem encargos que não pode cumprir por causa
dos seus diminutos rendimentos (...) Em razão dos muitos danos e detrimento que o convento
experimenta nas suas rendas (...), nem é possível prover à sustentação das religiosas, não
obstante a mais vigorosa economia”746. Assim, viu-se na necessidade de solicitar a comutação
de dois encargos pios: o primeiro de duas missas semanais pelo fundador, conforme
determinação sua na escritura de doação de seus bens ao mosteiro: “Mando que se digam,
enquanto o mundo durar, duas missas cada semana, por minha intenção no mesmo
convento”747; o segundo de uma missa quotidiana da capela instituída por D. Frei João do
Nascimento.748
Face a esta dificuldade, o governador e vigário capitular em nome do bispo da diocese,
D. Francisco José Rodrigues de Andrade, à data exilado em Génova, decidiu comutar os
referidos legados: o primeiro em uma missa anual de defuntos, cantada, e o segundo em
quatro missas rezadas, duas no Advento e duas na Quaresma. Além disso, a comunidade devia
rezar o salmo Miserere em todas as sextas-feiras, durante um ano, em atitude penitencial749.
Diante desta situação, em 1835, o vigário capitular tomou algumas providências para
obstar “à progressiva e rápida decadência em que se acham os negócios da comunidade, em
outro tempo florescente e rica, mas actualmente tão destituída de recursos, que não pode
fornecer às suas religiosas o indispensável para seu vestuário e sustentação”750. Para esse
efeito, fez a nomeação de um síndico ou procurador dedicado pelo mosteiro, que “deveria
ordenar todos os actos de arrecadação e administração dos rendimentos da comunidade”751.A
escolha recaiu em António Joaquim Ferreira Pestana, reitor do seminário e chanceler do
bispado752.
744
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso: Carta de A. B. da Costa Cabral para o governador do bispado, do Paço das
Necessidades de 16 de Março de 1840.
745
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso: Carta da abadessa Maria do Lado para o governador e vigário capitular, de 1835.
746
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso: Carta da abadessa Maria do Lado para o governador e vigário capitular de 1835. O
bispo, D. Francisco José Rodrigues de Andrade, como consequência de posições assumidas no período difícil das lutas entre os partidários de
D. Pedro e de D. Miguel, encontrava-se exilado em Génova, onde faleceu ( Ilhas de Zargo, II, pp. 452 - 453).
747
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 38 : Treslado do próprio testamento do reverendo Cónego Henrique Calaça.
748
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso: Indulto do Governador Vigário Capitular, António Alfredo, de 8 de Maio de 1835.
749
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso : Indulto do Governador (...).
750
AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso : Indulto do Governador (...) ; João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 35 - 36.
751
João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 36.
752
João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 35 - 36. Já em 1819 D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde, vigário apostólico do Funchal, diante
da decadência em quer se encontrava o mosteiro determinou que o dote das freiras que entrassem não fosse inferior a 800.000 reis, salvo para
as muito pobres ou prendadas no canto e música (João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 35).
176
Em 1841, o Dr. Januário Vicente Camacho, deão da Sé do Funchal, comendador da
Ordem de Cristo e governador do bispado, determinou que a abadessa não podia fazer obras
sem consentimento do governo do mosteiro, mesmo que fossem pequenas, e do bispo, se
tivessem maior vulto; além disso, proibiu toda e qualquer obra nova, sob de pena de seis
meses de suspensão do ofício de abadessa753.
Os anos iam passando; no mosteiro envelheciam religiosas e servas. A 7 de Outubro de
1840 o vigário capitular, apesar das dificuldades de natureza financeira, permitiu a entrada de
Isabel Augusta Borges como criada, uma vez que duas servas se achavam “quase
impossibilitadas para exercer os seus empregos”754. Em 1843, a comunidade era constituída
por trinta e uma religiosas755 que, pelas suas doenças e idades, eram insuficientes para o bom
funcionamento da vida claustral. Dado que, segundo as leis liberais, não eram possíveis as
profissões, a comunidade ia diminuindo, envelhecendo e, lentamente, caminhava para o seu
fim.
A estas dificuldade juntavam-se as de ordem económica como nos é dado ver pelo
quadro anexo:
Quadro nº.24 - Desequilíbrio orçamental em fins do século XIX
Anos
1884 – 1885
1886 – 1887
1887 – 1888
1888 – 1889
Receita (réis)
Despesa (réis)
2.242 .940
1.180. 610
1.832. 988
2.463. 029
1. 894. 826
1 .915 .135
2 .089. 610
2 .514 .641
Saldo negativo (réis)
734.525
256. 612
51. 612
Fonte: ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 28, fols. 1 - 45.
Como poderemos ver pelo quadro anexo, nos últimos anos em que foi abadessa a Madre
Felisberta Cândida de São Bernardo, na sequência do desequilíbrio orçamental que se
verificava, as receitas normalmente não cobriam as despesas.
753
João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 35 - 36.
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 5, doc. avulso: Licença dada pelo Paço Episcopal a 10 de Outubro de 1840.
755
AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 6, doc. avulso: Ofício da abadessa Felisberta Cândida de São Bernardo para o governador do
bispado do Funchal , de 10 de Fevereiro de 1843.
754
177
CAPÍTULO IX
O SEMINÁRIO DIOCESANO NO LOCAL DO EX-MOSTEIRO
1. Extinção do mosteiro e passagem do imóvel para o Estado.
O século XIX que, com o liberalismo político sistemático, abriu um período antireligioso e anticongreganista, levou à extinção das Ordens Religiosas em Portugal e Ultramar.
O programa anticongreganista liberal começou a ser executado nos Açores em 1832, quando
D. Pedro IV dominava o arquipélago.
Um ano depois, o decreto de 5 de Agosto de 1833 proibiu a admissão de noviças, bem
como a emissão de votos. Era uma forma de extinção das casas religiosas por morte lenta. O
decreto mais conhecido é o de 28 de Maio de 1834, logo a seguir à vitória final do
liberalismo, que ordenou a extinção imediata. Contudo, este decreto de Joaquim António de
Aguiar não se aplicava aos institutos femininos. Para estes, continuava em vigor a lei de 5 de
Agosto de 1833, que proibia a admissão de noviças e as profissões.
Apesar da lei civil, os mosteiros iam admitindo candidatas conhecidas por pupilas, que
viviam com as religiosas, e como as religiosas, mas não podiam emitir votos.
No mosteiro da Encarnação, devido à entrada de pupilas ter sido diminuta, a
comunidade foi morrendo lentamente. A 24 de Outubro de 1890, faleceu a última religiosa
professa, Madre Felisberta Cândida de São Bernardo, que contava 94 anos756. De imediato, o
Estado tomou posse do edifício, aliás “um casarão velho e desmantelado, em adiantada
ruína”757.
A 26 do mesmo mês, o jornal O Réclame informava sobre o mosteiro de Nossa Senhora
da Encarnação: “saíram ontem as últimas recolhidas que ali se achavam; (...) todos os bens e
propriedades anexas passaram para o Estado”. Possivelmente, teriam sido convidadas a sair,
pois, a 12 de Fevereiro de 1891, quatro pupilas alojadas algures solicitavam licença “para
serem recolhidas no extinto mosteiro de Santa Clara”758. Algumas, porque eram cultas,
entraram no funcionalismo do Estado, enquanto outras ficaram nas suas famílias759.
Posteriormente no extinto mosteiro recolheram-se algumas senhoras solteiras e também
viúvas. Em 1895, ano em que morreu uma delas, ainda ali viviam cinco senhoras760. Já então,
o imóvel estava a ser alvo de solicitações diversas.
2. Solicitado para Hospital Civil e Oficinas de São José
Após a morte da última religiosa professa, D. Manuel Agostinho Barreto, bispo do
Funchal, pensou solicitar o mosteiro para seminário, o que não fez por lhe “ter afiançado o
Governador Civil, querer pedi-lo para recolhimento de raparigas abandonadas ou, segundo o
desejo da comissão da Misericórdia, para hospital civil”761. De facto, a 22 de Outubro de
1890, o governador civil do Funchal, em nome da referida comissão, contactou as autoridades
756
O jornal A Verdade, de 24 de Outubro de 1890. Para alguns autores, a Madre Vicência Violante do Céu, natural da freguesia da Calheta,
filha de André Nicolau da Silva e de D. Ana Joaquina de Bettencourt Atouguia, falecida em 25 de Abril de 1890, é a última freira professa
falecida no mosteiro. No Livro de Óbitos, iniciado em 1794, a notícia da sua morte é realmente a última ali exarada. Acontece, porém, que tal
notícia vem assinada pela abadessa, Madre Felisberta Cândida de São Bernardo, donde resulta que a Madre Vicência Violante do Céu,
embora sendo a última a figurar no Livro de Óbitos, não foi a última a falecer (ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F, L 3).
757
“A Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 41.
758
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa 2070, doc. IV/B/47//3.
759
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa 2070, doc. avulso: Carta de Isabel Cristina da Câmara Leme,
para Sua Majestade, não datada, mas possivelmente de 1905. Esta senhora, funcionária em Lisboa, fora, durante alguns anos, pupila no
mosteiro. A 30 de Janeiro de 1906 obteve licença régia para, numa ida à Madeira, ficar por alguns dias, com sua prima Isabel de Quental,
residente no recolhimento de Santa Clara.
760
ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 31.
761
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso.
178
centrais, para que obtivessem de Sua Majestade, o rei D. Carlos, autorização para que o
Hospital da Misericórdia daquela cidade fosse transferido para o mosteiro da Encarnação.
Apresentava como motivo do seu pedido a falta de silêncio, de sossego e salubridade da zona
onde o hospital estava situado que, tantas vezes, na opinião dos clínicos, “faziam malograr as
operações”. Acrescia que, na opinião do mesmo governador, “feita a mudança, ali poderiam
estabelecer-se as repartições do Governo Civil, da Junta Geral da Fazenda e do Comissariado
da Polícia, ficando a Fazenda do Reino aliviada das rendas que se pagava pelas casas onde as
mesmas se achavam”762.
A comissão da Misericórdia, considerando que seria necessário “arrasar o edifício para
levantar outro nas condições que a ciência exige, faltando-lhe os recursos para tão dispendiosa
edificação”763, desistiu de obtê-lo.
Entretanto, o ex-mosteiro foi prometido a uma comissão que se propunha fundar no
Funchal uma filial das Oficinas de São José de Lisboa. O seu director, “a convite de diferentes
pessoas importantes da Ilha e também para cumprir o desejo de Sua Majestade, a rainha D.
Amélia”, chegou a deslocar-se ao Funchal, para verificações in loco764.
Por uma portaria de Junho de 1895, foi, ainda que provisoriamente, concedida uma
parte do edifício para nele se instalar uma oficina de São José, como vinha sendo solicitado,
que ali teve uma vida precária e de curta duração765.
3. O Seminário da Encarnação
3.1. Concessão do ex-mosteiro e construção do seminário
Em fins de 1904, o bispo do Funchal fez diligências junto do Ministério da Fazenda
para que lhe fosse cedido o edifício do mosteiro da Encarnação, para nele alojar o seminário.
“O reverendo bispo”, diz o chefe da Secção Central, Augusto Correia da Silva Melo,
“ponderando que o seminário está actualmente numa casa sem as necessárias condições (...),
solicita de Sua Majestade a concessão do velho convento, vago desde 1890”. Na opinião do
prelado, o local era “excelente, alto, bem arejado, com larga cerca, água suficiente (...) e
próximo da Sé Catedral, enquanto que o edifício do seminário é acanhado, situado em lugar
baixo, por isso húmido no inverno e calmoso no estio, sem jardim ou cerca aonde os alunos
possam recrear-se. Além disso, o povo que circula pelas ruas, os veículos e as oficinas
próximas perturbam o ambiente escolar e religioso, com grave prejuízo do estudo, da
disciplina e do recolhimento”766. Havia ainda a vantagem de salvar o edifício da ruína, pois
era bem visível a sua degradação.
O desejo de D. Manuel Agostinho Barreto remontava à supressão do mosteiro em 1890,
mas, não querendo obstar a que fosse destinado a outras causas também “justas e
humanitárias”, sempre abdicara da sua pretensão767. Porém, atendendo a que as Oficinas de
762
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso.
Era bem patente o interesse de muitos pelo edifício e cercas. A 3 de Dezembro de 1894 a Secretaria de Estado dos Negócios de
Obras Públicas, Comércio e Indústria, solicitou do respectivo ministro que mandasse “rescindir o arrendamento da cerca do mosteiro, feito a
um particular, para que a mesma fosse utilizada para o cultivo de chá e cacau, sob a orientação do Governo do distrito do Funchal”. (ANTT,
Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, , doc. avulso: Ofício de Artur Alberto de Campos Henriques,
Secretário de Estado dos Negócios de Obras Públicas Comércio e Indústria, para o ministro e secretário de estado dos Negócios da Fazenda,
de 3 de Dezembro de 1894.
765
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso.
766
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso: Carta do Bispo do Funchal para o ministro
e secretário dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, de 28 de Dezembro de 1904; e carta de 27 de Fevereiro de 1905 assinada por Augusto
Correia da Silva Mello, do Ministério da Fazenda.
767
Entre outras, conhecem-se as cartas do prelado dirigidas à direcção dos Negócios Eclesiásticos de 23 de Setembro de 1895 escrita em
Lisboa, e as de 3 de Março de 1896 e de 28 de Novembro de 1904, escritas no Funchal.
763
764
179
São José só ocupavam uma parte do edifício e que “estava posta de parte a ideia de aplicar o
edifício do mosteiro a recolhimento de raparigas abandonadas e a Hospital Civil, como em
tempos pretendera a Santa Casa da Misericórdia”768, solicitava agora a parte não ocupada. O
seminário poderia até prestar auxílio às crianças e jovens das Oficinas de São José.
A 5 de Maio de 1905, o governador civil do Funchal informava que “as Oficinas de São
José estavam em completa decadência e apenas sustentavam com dificuldade umas seis
crianças; que a cerca estava, se não inculta, pelo menos muito mal cultivada; que o edifício
ameaçava ruir, estando apenas em melhor estado a capela e a casa do capelão”769. A 15 de
Junho de 1905, em função das observações do governador civil, as autoridades superiores
foram de opinião que se concedesse “o edifício e cercas do suprimido Convento da
Encarnação para nele se estabelecer o seminário diocesano”770.
Depois de reiterados esforços por parte do prelado e séria análise feita pelas autoridades,
um decreto de 11 de Julho de 1905 concedeu o edifício, capela e as duas cercas do exmosteiro da Nossa Senhora da Encarnação, ao bispo da diocese do Funchal, para ali se
edificar uma casa destinada à instalação do seminário771. A 12 de Outubro o delegado do
Tesouro da Repartição da Fazenda do distrito do Funchal “fazia a entrega a D. Manuel
Agostinho Barreto, prelado diocesano, do edifício e cercas do extinto Convento de Nossa
Senhora da Encarnação, lavrando-se um termo com as formalidades legais”772.
O edifício era então “um velho e desmantelado casarão em adiantada ruína”773, como
atrás dissemos. Dado o seu estado de degradação foi necessário demoli-lo para que no mesmo
local se pudesse construir o seminário. À demolição foi poupada a capela, a sacristia, e a casa
em que, segundo o inventário de 14 de Abril de 1863 “reside o confessor, que é de sobrado
para o lado sul, e para oeste é térrea, tanto que a saída é no adro da igreja”774.
Foi autor do projecto o engenheiro João Florêncio da Costa, que também acompanhou
as obras. Iniciadas em 1906, avançaram rapidamente, estando em Julho de 1907 concluída a
ala ocidental. Assim, no dia 19 de Julho pôde realizar-se na cerca a festa do engalgamento da
ala ocidental do novo seminário, que se achava toda embandeirada e engalanada com flores.
D. Manuel Agostinho Barreto, acompanhado de alguns eclesiásticos, examinou as obras
deixando transparecer a sua satisfação pela boa direcção dos trabalhos. Depois “de ter
contemplado o magnífico panorama que se descortina de todas as direcções do andar superior,
dirigiu-se para a arcada do sul a fim de oferecer um copo de água aos oitenta mestres e
operários que andam na construção”775.
A construção continuou sob a direcção do mesmo engenheiro e da mesma equipa de
mestres e operários. Nesta obra empenhou D. Manuel Agostinho Barreto os seus próprios
bens, os da diocese e ainda os contributos de pessoas de boa vontade que quiseram colaborar
nesta importante obra da igreja local. Amplo, com salas suficientes e capela própria, da
invocação de Nossa Senhora do Bom Despacho, o seminário surgiu belo e funcional.
Em Outubro de 1909, embora com as obras ainda inacabadas, o seminário começou a
funcionar.
768
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25. Trata-se de um pequeno lapso. A casa era
residência do confessor do mosteiro e não do capelão.
770
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso: Ofício de Augusto Correia Mello de 15 de
Junho de 1905.
771
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso.; Elucidário Madeirense, II, p. 307, ; “ A
Igreja da Encarnação (Funchal ),” Boletim da DGEMN, 84 (1956) 41.
772
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso : Carta do delegado do tesouro da
repartição da Fazenda do distrito do Funchal para o conselheiro director geral da Estatística e dos Próprios Nacionais, de 12 de Outubro de
1905.
773
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso; “A Igreja da Encarnação (Funchal )”,
Boletim da DGEMN, 84 (1956) 41.
774
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa 2070, doc. 25, fol. 3.
775
“ Obras do novo seminário”, in Quinzena Religiosa, de 1 de Agosto de 1907, nº 156, p. 235.
769
180
Planta 3
Planta 4
3.2. Acontecimentos posteriores
A República de 1910, na sua política anti-religiosa, extinguiu o seminário por lei de 20
de Abril de 1911 e instalou no edifício uma escola de Utilidade e Belas Artes que começou a
funcionar em Fevereiro de 1914776. Ensinava-se ali desenho, pintura, música, geografia,
aritmética, línguas, lavores, culinária, jardinagem, horticultura e outras matérias777.
Em Setembro de 1919 foram instaladas no edifício as diversas repartições da Junta
Geral do distrito que para esse fim o obtivera por compra feita ao Estado778.
Com a Revolução de 28 de Maio de 1926 voltou o imóvel à posse da Igreja. O decreto
de 25 de Abril desse ano mandava que fosse entregue à Comissão Diocesana do Culto,
decisão a que a Junta Geral do distrito do Funchal fez uma tenaz oposição. A entrega só se
verificou em Outubro de 1933, depois de uma luta de seis anos. O edifício mandado construir
por D. Manuel Agostinho Barreto no local onde existira o mosteiro de Nossa Senhora da
Encarnação voltou de novo a funcionar como seminário diocesano.
Com o 25 de Abril de 1974, os estudantes do Funchal, passando por cima das mais
elementares regras de civismo, ocuparam o edifício e dele tomaram posse. Era o dia 31 de
Outubro de 1974. A Junta Geral do Funchal, logo que teve conhecimento do facto, apressouse a entrar em contacto com a autoridade eclesiástica para esclarecimento. A 2 de Novembro
do referido ano, sob a presidência do coronel José Afonso, governador militar interino, as
delegações do diocese do Funchal e da Junta Geral, em reunião conjunta, debruçaram-se
detalhadamente sobre o acontecido779.
776
Elucidário Madeirense, I, p. 307 e 398.
Elucidário Madeirense, I, p. 398.
Elucidário Madeirense, I, p. 307.
779
Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. avulso: Acta nº 2 da reunião de trabalho entre as delegações da diocese do Funchal e da
Junta Geral do distrito, com representantes da Comissão de Gestão do Liceu Nacional do Funchal e das Forças Armadas. A delegação da
777
778
181
Das sessões então havidas, resultou um contrato de arrendamento, seguidamente revisto
pelo prelado. Apontamos como cláusulas fundamentais: “A Diocese (...) cede à Junta Geral do
Funchal o prédio urbano conhecido por prédio da Calçada da Encarnação, onde esteve até
agora instalado o Seminário Menor da mesma Diocese, prédio que se situa na freguesia de
Santa Luzia, desta cidade, com exclusão da respectiva Capela e casa de habitação ( com os
solos e logradouros desta) e a parte do terreno que está agricultado e tem acesso independente.
A parte cedida destinar-se-á exclusivamente para funcionamento de um estabelecimento
escolar secundário oficial ou ciclo preparatório. A Junta Geral entregará à Diocese a
importância de 50.000.00 mensais (...)”780.
A entidade patronal permitia que a Junta Geral efectuasse “no edifício as obras
necessárias à máxima eficiência do fim a que o imóvel é destinado”, porém “sem afectar a
estrutura e os alçados do prédio, as quais ficarão integradas no mesmo e não serão
indemnizáveis finda que seja a situação decorrente deste contrato”781.
Desde aquela data, ali tem funcionado a Escola Básica Bartolomeu Perestrelo. A cerca,
confiada aos cuidados de alguns trabalhadores, reverte a favor do actual seminário.
diocese do Funchal era constituída pelo Cónego Dr. Agostinho Gonçalves Gomes, Dr. Paulo Gouveia e Silva e P. José Crespiano G.
de Medeiros; a delegação da Junta Geral, pelo Dr. António E. F. Loja, presidente, Dr. Gaudêncio, vice-presidente., Dr. Pontes Leça e Prof. D.
Teresa Pinheiro
780
Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. avulso: Carta de D. Francisco Antunes Santana , bispo do Funchal, de 9 de Novembro de
1974, nº 1, 2 e 3.
781
Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. avulso: Carta de D. Francisco (...), nº 7.
182
CAPÍTULO X
A CAPELA DE NOSSA SENHORA DA ENCARNAÇÃO, JÓIA
GÓTICO MANUELINA, QUE SUBSISTE
1. O restauro da capela
Entretanto, a capela do ex-mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação foi-se arruinando.
“ Os telhados que cobriam as abóbadas tinham desaparecido. Os rebocos exteriores caíam aos
pedaços. As cantarias estavam negras e em grande parte esbotonadas. Da cornija só havia
vestígios. No interior do venerável templo, o mesmo abandono, a mesma ruína, a mesma
desolação!...”782
Na década de quarenta783, a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacional,
querendo evitar a ruína total, procedeu a obras de restauro. Foi, para o efeito, despejada do
seu recheio artístico784.
Para conseguir a recuperação estrutural, os trabalhos começaram pelas obras de
consolidação e prosseguiram com os mais que se tornaram necessários, tendo-se realizado até
Novembro de 1948, entre outros de menor importância, os seguintes: consolidação das
abóbadas, restauro das fachadas, reconstituição dos remates em cornija, reconstituição do
óculo da fachada principal e limpeza geral das cantarias no exterior e interior, incluindo a
substituição de algumas785.
A 29 de Novembro de 1948, o arquitecto chefe da primeira secção da referida Direcção
notificava que estavam em curso obras de restauro da capela da Encarnação do Funchal mas
faltava ainda a cobertura do telhado, campanário, portas, vitrais e arranjo do adro, cujo
orçamento totaliza 215. 000$00, conforme o quadro:
Quadro nº.25 – Obras de restauro
s
Restauros
Construção da armação e cobertura do telhado em madeira de til.
Construção de um altar de cantaria, incluindo os degraus.
Construção e assentamento das portas, incluindo a pintura.
Construção do Campanário, incluindo os sinos e a escada de acesso.
Construção e assentamento de vitrais, armados em chumbo.
Arranjo do adro, com muro de suporte e escadaria.
Subtotal:
20% para imprevistos, fiscalização e administração.
Total:
Orçamento
60 000$00
30 000$00
35 000$00
40 000$00
10 000$00
40 000$00
215.000$00
43 000$00
258 000$00
Fonte: Ministério das Obras Públicas. Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais
Igrejas, Plano de Obras, Album de Obras da DGEMN, F 1-192, A- 24-2, A; “Igreja da Encarnação (
Funchal ), ” Boletim da DGEMN, 84 (1956) 46, porém, sem o orçamento.
Planta 5
782
“ Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 43.
Não na década de cinquenta, como se lê em alguns autores.
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 72.
785
“ Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 45 - 46.
783
784
183
Eram concedidos mais 43.000$00 para fiscalização, administração e emprevistos
aumentando o orçamento para 258.000$00.
Destas obras de restauro resultou a igreja que podemos ver na parte alta da cidade do
Funchal, ao lado do edifício que D. Manuel Agostinho Barreto mandou construir para
seminário nos anos 1907-1909, no local do mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação.
Entretanto, pelo decreto 30.762, de 26 de Setembro de 1940, a capela recebeu a
classificação de Monumento Nacional786. Bem pouco depois, pelo decreto 30. 838, de 1 de
Novembro do mesmo, como aconteceu com outros imóveis que eram propriedade particular,
perdeu aquela classificação. Oito anos mais tarde, o decreto 37. 077, de 29 de Setembro de
1948, retirou à capela gótica de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal a primitiva
classificação, para a incluir tão-somente entre os imóveis de interesse público.
2. A sacristia e a casa do confessor do mosteiro
Durante a fase de restauro da capela procedeu-se à demolição da sacristia, que era a
parte da construção que ligava a capela à casa do confessor, ficando dois imóveis distintos e
independentes, conforme a planta anexa.
Em 1933, esta casa foi ocupada por uma comunidade de religiosas franciscanas de
Nossa Senhora das Vitórias que, durante quatro décadas, prestaram ao seminário valiosos
serviços.
Aquando da entrada da comunidade, em 1933, procedeu-se à adaptação de uma sala a
capela, lugar necessário para a oração das religiosas. Podemos vê-la, assinalada com uma
cruz, na planta aqui inserta. Segundo informações colhidas, a talha dourada do altar e algumas
imagens muito antigas deste lugar de oração seriam provenientes da capela de Nossa Senhora
da Encarnação787.
No dia 25 de Abril de 1974, após a tomada do seminário pelos estudantes, como atrás
referimos, as religiosas retiraram e a casa teve novo destino: enquanto a cave foi cedida aos
escuteiros de Santa Luzia, o rés-do-chão e o primeiro andar foi ocupado por Francisco Faria e
sua família que, por incumbência do bispado, assumira o encargo do cultivo das cercas. Ali se
mantiveram até 1994, data em que a Câmara Municipal do Funchal, para proceder ao
rompimento da cota 40, obteve autorização para a demolir, com a obrigação, porém, de
posteriormente a reconstruir.
Presentemente (1999), o projecto de reconstrução da casa do confessor, confiado ao
arquitecto João da Cunha Paredes, está em bom andamento. Muito em breve a cidade do
Funchal poderá vê-la levantada ao lado da capela de Nossa Senhora da Encarnação.
Planta 6
786
Decreto de 29 de Setembro de 1948, Diário do Governo, nº 228, I série, do mesmo dia, mês e ano; Ilhas de Zargo, II, p. 692.
A Irmã Ismael Gomes, que foi membro da comunidade durante muitos anos, e o Cónego João Gouveia da Conceição, actual pároco da
igreja do Imaculado Coração de Maria do Funchal, que ali ia muitas vezes prestar serviço religioso, assim o testemunham.
787
184
3. A capela de Nossa Senhora da Encarnação, hoje
Despida de toda a talha dourada, do tríptico flamengo e demais recheio, a capela
mantém as linhas estruturais da arquitectura quinhentista, a beleza e elegância dos arcos
ogivais, que se evidenciam no branco das suas paredes.
Embora com sobriedade decorativa, a igreja da Encarnação, tal como subsiste, é um dos
melhores exemplares da arquitectura gótico-manuelina788. Resistindo às vicissitudes dos
tempos marca, ainda hoje, a presença de um passado, de uma história religiosa, social e
ideológica que nela se centrou.
28. Interior da capela de Nossa Encarnação. Totalmente
despida da talha dourada dos séculos passados, no branco das
suas paredes, evidenciam-se as linhas ogivais em grande
equilíbrio e elegância. É bela na sobriedade das suas linhas
estruturais. Fotografia de Rui Camacho, DRAC
Graciosa obra quinhentista, a igreja da Encarnação é “jóia preciosa”, exemplar
magnífico da capacidade arquitectónica e artística dos portugueses de antanho, que o Funchal
deve guardar com respeitosa veneração, como lembrança sagrada “dos nossos maiores”.
29. Capela de Nossa Senhora da Encarnação. A capela no seu estado actual. Restaurada pelos Monumentos Nacionais na
década de quarenta do século XX, mantém as linhas estruturais da arquitectura gótico-manuelina. É jóia quinhentista a
recordar o mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, de que fazia parte. Ao lado, bem conservada, pode ver-se a casa do
confessor do mosteiro. Fotografia de Rui Camacho, DRAC
788
Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 70.
185
III SECÇÃO
MOSTEIRO DE NOSSA SENHORA DAS MERCÊS
1667 - 1910
186
CAPÍTULO I
O RECOLHIMENTO DE NOSSA SENHORA DAS MERCÊS
1. Contexto histórico-religioso da Madeira no séc. XVII
A sociedade madeirense do século XVII, marcada pela actuação do poder político e
religioso, fazia questão de empenhar-se em causas patrióticas, bélicas, de beneficência e,
numa perspectiva místico-religiosa, de integrar-se em confrarias ou ligar-se a algum feito
memorável em favor da Igreja. A nobreza insular, ao longo de três séculos, para além das
lides militares em que sempre andou envolvida, encontrava nas dignidades eclesiásticas e
obras de natureza religiosa, um campo óptimo para conquistar honra e prestígio, para obter
“mercês” espirituais.
Por outro lado, logo a partir dos começos do século XVII, quando o açúcar brasileiro e
das Antilhas começou a fazer concorrência ao açúcar das ilhas atlânticas, e a Madeira
substituiu a cana pela cultura da vinha, que depressa se tornou fonte de largos rendimentos, o
Funchal passou a ser, mais do que antes, ponto de passagem de armadas para todo o mundo.
O comércio que, a partir de meados do século, se concentrou nas mãos dos ingleses, deu à
Ilha um tal incremento que, em poucos anos, se assistiu a um enriquecimento e consequente
aumento populacional. A nobreza insular conheceu então um surto considerável: Nestas
circunstâncias o mosteiro de Santa Clara tornou-se insuficiente para receber as filhas dos
nobres e gente afidalgada. Como resposta a esta problemática, e por razões já analisadas, na
metade do século XVII, a cidade do Funchal levantou mais uma casa religiosa feminina, o
mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, onde a nobreza insular encontrou lugar para
muitos membros das suas famílias.
Aconteceu também que o mesmo século viu nascer e desenvolver-se uma ânsia de vida
espiritual profunda, de retiro, de vivência das exigências evangélicas e prática das mais
excelsas virtudes. Na Madeira começava então a sentir-se o eco de alguns mosteiros da
Ordem de Santa Clara, como o de Jesus de Setúbal e da Madre de Deus de Lisboa que,
vivendo, não a regra de Urbano IV mas a de Santa Clara, eram lugares de oração, onde o
Espírito de Assis, feito de mansidão e de paz, de fraternidade, de amor e humildade, de
sentido profundo de Deus e de empenhamento ao serviço de todos, era vivência e
compromisso.
Só uma casa religiosa destas poderia oferecer uma vida conventual autêntica, toda
voltada para Deus. Só Ele seria a resposta aos anseios espirituais que na Pérola do Atlântico
se faziam sentir. O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês desabrochou neste contexto
histórico-religioso e ofereceu a possibilidade de concretização desta ânsia espiritual, de
vivência radical do Evangelho, de intimidade profunda com o Senhor. Deus, condutor da
história dos homens, encontrou num casal saído de duas das mais importantes famílias
madeirenses, os “Berenguer de Lemilhana e os “França”, os instrumentos para tão nobre
empreendimento789.
2. O capitão Gaspar Berenguer
No final do século XVI, Pedro Berenguer de Lemilhana, natural de Valencia, na
Espanha, doutor em medicina e fidalgo da casa real, estabeleceu-se na Calheta, no lombo por
cima da vila, ainda hoje chamado Lombo do Doutor, onde teve terras em abundância, que
789
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso; Alberto Artur Sarmento, “O fundador
do convento das Mercês”, in Das artes da história da Madeira, II, nº10, 1952, pp. 19-20.
187
estão na origem do morgadio do Lombo do Doutor. Os Berenguer de Lemilhana “gente
principal”, crentes sem disfarces, mas também astutos e ambiciosos, sempre estiveram ligados
às lides belicosas790.
Quando a companhia das Índias Ocidentais ameaçava a unidade do Brasil, vários
membros desta família partiram para lá a defender as terras de Vera Cruz. Entre os mais
valentes mencionamos o P. Agostinho César Berenguer Andrade, os seus irmãos Francisco
Berenguer de Andrade e D. Luísa Berenguer e ainda o sobrinho Gaspar Berenguer de
Andrade e outros. Francisco Berenguer de Andrade bateu-se com denodo em prol da defesa
das terras brasileiras. Seu sobrinho Gaspar Berenguer de Andrade pelejou com tal bravura e
tenacidade que obteve o foro de fidalgo del-rei e o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo791.
Regressando à Madeira coberto de honra e de glória, Gaspar Berenguer sucedeu na Calheta,
na casa dos seus avós, isto é, no morgadio do Lombo do Doutor, como filho de Heitor Nunes
Berenguer e D. Maria de Lira. Na família “França”, à qual os Berenguer estavam ligados por
interesses vários, entre os quais os económicos, encontrou o capitão a esposa que havia de
ajudá-lo, e até incentivá-lo, na realização de anelos profundos: construção da capela de Nossa
Senhora das Mercês, recolhimento e convento do mesmo nome792.
No testamento lavrado pela sua mão a 21 de Dezembro de 1686, detectamos o homem
recto, empreendedor, generoso, coerente com a crença que professa. Que prudência e firmeza
na dotação do mosteiro e circunstâncias de transmissão!...aquele mosteiro que ele, sua mulher
e filhos fizeram “para honra de Deus”793. Cavaleiro da Ordem de Cristo e membro da
irmandade da Santa Casa da Misericórdia, desejava deixar o seu nome ligado a uma obra
religiosa que lhe desse prestígio. D. Isabel de França, sua esposa que, por piedosíssima que
era, se dava muito a práticas religiosas, abriu-lhe horizontes. Decidiram-se, pois, pela
construção de uma capela dedicada a Nossa Senhora. Tudo o mais, o recolhimento e a sua
transformação em mosteiro professo, veio como consequência.
O capitão dedicava particular afeição à família franciscana, e nela tinha vários
membros da sua família. As duas filhas mais velhas, D. Maria de S. Filipe e D. Margarida de
São Tiago, professaram no mosteiro de Santa Clara, onde entraram antes da construção do
Mosteiro das Mercês794. Sua irmã mais nova, D. Inês, foi terceira franciscana no
recolhimento, vindo a professar no novo mosteiro. Também seu irmão, o Cónego Bartolomeu
César e seu filho mais velho, José Berenguer, foram membros professos da Terceira Ordem
Franciscana.
Visto por outra faceta, Gaspar Berenguer foi um político impetuoso e iracundo, sempre
pronto à acção. Magoado com o capitão general da Madeira, D. Francisco de Mascarenhas,
que fazia justiça sem reparar em quem tocava795, tomou parte activa na sedição de 1668, que
aproveitou para abrir as portas da prisão onde se encontravam alguns moços fidalgos, entre os
quais seu filho Manuel Berenguer de Andrade.
790
Henrique Henriques de Noronha, op. cit., p. 282; Rui Carita, op. cit., III, p. 342.
Fernando de Menezes Vaz, op. cit., I, p. 206.
792
P. Augusto da Silva, I, 1946, p. 180. Elucidário Madeirense, I, p. 308; Alberto Artur Sarmento, art. cit., in Das artes e da história da
Madeira, II, nº 10, pp. 19 - 20; Rui Carita, op. cit., III, p. 354, nota 864.
793
ARM, Conventos, Conv. Mercês, L 268, fol. 74: Testamento do fundador e padroeiro do Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, Gaspar
Berenguer de Andrade, de 21 de Dezembro de 1686; Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. Estando em curso a passagem dos
manuscritos do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do fundo documental Governo Civil, onde têm estado integrados, para Conventos, é
neste núcleo que os incluímos.
794
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, L 9, fol. 416v; citado por João José de Abreu de Sousa, op. cit.,
p. 46; Fernando de Menezes Vaz, op. cit., p. 201. Gaspar Berenguer de Andrade não optou pelo mosteiro de Santa Clara para as suas filhas
pelo facto de o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês “ser modesto”, como diz Rui Carita (III, op. cit., p. 345), mas simplesmente porque
ainda não estava construído.
795
O governador e capitão general da Madeira, D. Francisco de Mascarenhas, que tomou posse deste cargo a 28 de Novembro de 1665, tinha
contra si, por motivos ainda incógnitos, a má vontade do clero e principalmente da nobreza, do que resultou a grave sublevação popular que
se deu no Funchal a 18 de Setembro de 1668. Admite-se que D. Francisco de Mascarenhas teria abusado das faculdades que a lei lhe
conferia, sendo duro no trato e relações com fidalgos e alguns membros do clero (Elucidário Madeirense, II, pp. 400 e 401).
791
188
Embarcado D. Francisco de Mascarenhas para o Reino, foi Gaspar Berenguer o
encarregado de ir a Lisboa dar conhecimento do sucedido e de pedir a sua confirmação796. Ao
regressar à Madeira, “foi recebido com grandes demonstrações de regozijo; trazia a notícia de
que nas estações superiores se aprovara tudo quanto se fizera durante a revolução”797. Porém,
algum tempo depois apareceu na Madeira o desembargador João de Moura, encarregado de
proceder a rigorosa sindicância. Causou estranheza que, na devassa a que procedeu o
desembargador, nenhum membro do clero, nem sequer o deão Dr. Pedro Moreira que,
segundo Álvaro Rodrigues de Azevedo tomara parte activa na sedição, nem tão pouco os
nobres mais implicados, como o morgado Aires de Ornelas de Vasconcelos, “embora
processados, não tenham sofrido alguma pena”798.
3. Construção da capela de Nossa Senhora das Mercês
A capela dedicada a Nossa Senhora, que o casal Berenguer desejava construir, surgiu
“num terreno por ele arrematado numa zona ainda selva”, muito próximo do mosteiro de
Santa Clara e da Igreja de São Pedro. Que razões teriam Gaspar Berenguer e sua esposa para
que fosse da invocação das “Mercês”? Vejamos.
Em 711 árabes e berberes do norte de África entraram na Península Ibérica onde
permaneceram cerca de 800 anos e donde só saíram em 1492, quando os Reis Católicos,
Fernando de Aragão e Isabel de Castela, conseguiram conquistar Granada.
Ao longo dos séculos, muitos cristãos foram levados prisioneiros para o norte de África
onde, se não fossem resgatados, eram feitos escravos. A libertação destes cativos tornou-se
empenhamento na cristandade ocidental. Assim, em 1218, o francês Pedro Nolasco, auxiliado
por Raimundo de Penhaforte, seu confessor, e pelo rei Jaime I de Aragão, fundou a Ordem
das Mercês, também chamada da Misericórdia ou da Redenção dos Cativos, que conseguiu,
ao longo de muitos anos, o resgate de grande número de prisioneiros.
A Senhora das Mercês, cuja festa a Igreja fixou a 24 de Setembro, muito venerada na
Espanha e ilhas atlânticas, particularmente nos Açores e Madeira, era a Rainha, a Senhora, a
quem se recorria para libertação dos cativos e para agradecer obséquios e mercês, que, como
Rainha, podia conceder a quem A invocasse. À Senhora das Mercês se dedicavam capelas,
igrejas e até mosteiros. Era a Ela, como Senhora da Misericórdia, que se implorava o resgate
dos que iam caindo nas mãos dos maometanos.
30.Nossa Senhora das Mercês799. Esta expressiva
imagem, vestida de azul e branco, coroada de rainha e o
peito resguardado pelo escudo, é a Senhora das Mercês
ou da Misericórdia a quem se pedia o resgate e a
libertação dos cativos. Na mão esquerda segura a corrente
de ferro com que eram algemados e na outra o
escapulário, símbolo da protecção garantida aos seus
devotos.
796
Alberto Artur Sarmento, art. cit., in Das artes e da historia da Madeira, II, pp. 19 - 20; Elucidário Madeirense, II, pp. 400 - 401 e p. 343;
Rui Carita op. cit., p. 345.
797
Elucidário Madeirense, II, p. 401.
798
Elucidário Madeirense, II, p. 401.
799
À falta do retábulo da imagem de Nossa Senhora das Mercês, localizado na tribuna da capela-mor do mosteiro e da pintura em tela de 2,10 por
1, 44 metros, que existia no coro das religiosas, da mesma Senhora das Mercês, ambos desaparecidos, recorremos ao actual mosteiro de Nossa
Senhora das Mercês, nos Açores, pois, na capela daquela invocação que fazia parte do solar do casal Frazão, hoje integrado no mosteiro, existe uma
belíssima imagem daquela invocação. As Irmãs Clarissas, amavelmente nos fizeram a oferta da fotografia que aqui reproduzimos. Desta forma,
terão os leitores a possibilidade de tomar conhecimento da forma e simbologia da Virgem das Mercês. Nesta imagem podemos fazer a leitura duma
época histórica, inquietante, como foi o domínio na Península Ibérica. Segundo nos informou o senhor Dr. José Pereira da Costa, Presidente do
Centro de Estudos de História do Atlântico, na Madeira, na toponímia dos Açores, ainda hoje a Senhora das Mercês é uma referência com
significado e conteúdo, simultaneamente religioso e histórico.
189
É possível que o capitão Gaspar Berenguer, cuja família sempre andou ligada a feitos
bélicos na Espanha e mais recentemente no Brasil, se sentisse devedor àquela que gostava de
venerar com o título de Senhora das Mercês, pois dela julgava ter recebido, bem como a
família Berenguer de Lemilhana, muitos obséquios. Além disso é natural que Gaspar
Berenguer, ao regressar do Brasil cheio de glória, se sentisse movido a fazer na Ilha algo que
o destacasse entre os demais, algo que falasse aos vindouros do coroado esforço de alguns
patrióticos madeirenses”, que haviam pelejado com bravura em terras de Vera Cruz, os
“Berenguer “800.
A construção de uma igreja ou mosteiro seria empreendimento a concretizar.
4. Construção do recolhimento de Nossa Senhora das Mercês
Em data que desconhecemos, o capitão Gaspar Berenguer de Andrade e sua esposa
arremataram perto da igreja de São Pedro a extensão de terreno, como já referimos, com
intuito de “erigirem uma ermida nela, com certa pensão de missas a que ficava vinculada”801,
que depois, por devoção, transformaram em igreja e dedicaram a Nossa Senhora das Mercês.
Uma vez construída, logo o jesuíta João Ribeiro exortou o capitão e esposa, com quem
tinha as melhores relações, a que “erigissem ali um recolhimento de donzelas nobres e
virtuosas. D. Isabel de França, que ardia em desejos de agradar a Deus, tomou a resolução em
empreender a obra”802, certa de que viria a ser mosteiro professo. Ajudados “com algumas
esmolas particulares com que vários devotos quiseram ter parte no merecimento da obra, se
romperam os alicerces em 12 de Outubro de 1655 e a 20 do mesmo mês, com a assistência do
governador general, Pedro da Silva Cunha, o reitor do Colégio de São João Evangelista, P.
Manuel Fernandes, e de toda a nobreza da terra, se celebrou missa solene com sermão que
pregou o Cónego António Veloso Lira; e, benzida a primeira pedra com as cerimónias da
Igreja, a lançou o dito general, o qual mandou festejar este acto, com repetida artilharia da
fortaleza de São João do Pico”803.
Os fundadores tiveram de vencer dificuldades e resistências oferecidas pelo vigário
geral, Dr. Pedro Moreira, adverso à iniciativa do mosteiro, e pelo governador D. Francisco de
Mascarenhas que, segundo algumas fontes, teria mandado interromper as obras ou pelo menos
vontade de fazê-lo804. Além disso, surgiram também dificuldades financeiras de certo vulto805.
O edifício foi crescendo, acabando por ficar “com suficientes cómodos, com todas as
oficinas necessárias e alguma extensão da cerca interior, com uma levada de água
contínua”806.
800
Alberto Artur Sarmento, art. cit, in Das artes e da história da Madeira., II, p. 19.
Noronha, op. cit., p. 283.
802
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso; Noronha, op. cit., p. 283; Fernando da
Soledade, ofm, op. cit., III, p. 354. Lê-se num manuscrito do Padre Neto, confessor do Mosteiro das Mercês, uma interessante lenda que As
Saudades da Terra transcrevem e que tem interesse reproduzir. Diz a lenda que foi Nossa Senhora das Mercês, venerada na capela ali
construída, que solicitou de D. Isabel de França a tão meritória obra. Quando lhe foi dirigido o pedido, a nobre senhora encontrava-se em má
situação financeira, sem qualquer possibilidade de levar a cabo as obras. Mas, uma noite, teve um sonho em que a Senhora das Mercês lhe
pedia que empenhasse naquela obra todos os bens. D. Isabel assumiu o pedido e, pouco tempo depois, ela e seu marido deram começo às
obras, junto à dita capela “com tenção de ser de religiosas” (Álvaro Rodrigues de Azevedo, in Gaspar Frutuoso, As Saudades da Terra –
História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, manucristo do sec. XVI, anotado por Álvaro Rodrigues Azevedo,
Funchal, 1873, Livro Segundo, nota XXI, pp. 591- 592).
803
Noronha, op. cit., p. 283.
804
Álvaro Rodrigues de Azevedo, op. cit., p. 592-593.
805
Álvaro Rodrigues de Azevedo, op. cit., p. 592 e 593. O referido anotador, diz que se contava entre as religiosas, o que aliás era tradição
corrente, que, quando se debatia o problema da construção, “uma pessoa virtuosa deveria ter visto durante muitas noites, no local onde havia
de ficar o mosteiro, uma virgem rodeada de brilhante resplendor, contra a qual, falanges inumeráveis de entes frechavam enfurecidos” (op.
cit., nota XXI, p. 591). Houve quem interpretasse esta visão como sendo o espírito do mal a querer impedir a realização de obra tão piedosa.
Não faltou também quem desse a esta lenda sentido político, identificando aqueles terríveis seres com autoridades locais que se opunham à
construção. Pedro de Mascarenhas, nomeado governador em 1655, pretendeu dificultar o andamento das obras , pelo que D. Isabel,
incompreendida, “recolheu os operários em sua casa, para que não fossem presos (...) e, para que a sua obra fosse em aumento, trabalhavam
de noite às escondidas, servindo ela e suas moças, como serventes, quando eles faltavam” (op. cit., nota XXI p. 592).
806
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso; Noronha, op. cit., p. 284.
801
190
A capela, depois das necessárias adaptações, ficou um templo bem proporcionado. Na
capela-mor via-se “um vistoso Retábulo da Imagem da Nossa Senhora das Mercês, obra de
Martim Conrado, insigne pintor estrangeiro, orago da mesma casa”807. No corpo da igreja
havia dois altares laterais: o de Santa Maria Madalena e o de Santa Catarina mártir, além dos
quais tem o de Nossa Senhora da Conceição. Segundo informação do Padre Neto, recolhida
por Álvaro Rodrigues de Azevedo, “na Igreja do convento, que é da primitiva edificação
dele, lá está a meio do tecto um medalhão (...), representando a Virgem em sítio agreste,
assediada de um esquadrão de demónios disparando frechas para Ela”808.
A construção seguiu com morosidade, até porque as dificuldades económicas se fizeram
sentir. A coroar todos os esforços, o edifício surgiu belo e acolhedor, embora simples e
modesto, como convinha às religiosas que iriam observar e viver a pobreza e austeridades
inerentes à vida conventual quando, como era desejo dos fundadores, o recolhimento fosse
transformado em convento professo da Regra de Santa Clara de Assis.
5. O recolhimento de Nossa Senhora das Mercês – “lugar pio”
A obra que o casal Berenguer de Andrade assumira com entusiasmo foi continuando e,
“achando-se já o edifício em termos de habitação, entraram a tomar posse dele sete donzelas
de exemplar virtude, no dia de Corpus Christi, 15 de Junho de 1656”809. Eram elas: Isabel da
Cruz, Isabel de Jesus, Isabel de São Francisco, que depois passou para o recolhimento do
Bom Jesus da Ribeira, Madalena do Sacramento, Catarina da Paixão, Maria da Encarnação,
Inês de Jesus, a irmã mais nova do fundador, às quais posteriormente se foram juntando
outras810.
Nos primeiros anos o recolhimento funcionou sem qualquer compromisso religioso,
pois não tinha a complacência do deão e cabido da Sé. O P. João Ribeiro, jesuíta, foi o grande
impulsionador da obra e o mestre espiritual das recolhidas nos primeiros anos811. Segundo
Álvaro Rodrigues de Azevedo, o anotador de As saudades da Terra, “no princípio do
recolhimento o Dr. Pedro Moreira (...), tomou-lhe aversão, de forma que não lhe concedia
licença para ter sacrário (...)”812. Entretanto, algo mudou na vida do vigário geral, que o fez
olhar o recolhimento de Nossa Senhora das Mercês com benevolência813. Assim a 12 de
Fevereiro de 1658, aproveitando a visita que fez à igreja de São Pedro, em cuja paróquia
ficava o recolhimento, achou por bem visitá-lo.814 Bem impressionado com a vida das
recolhidas, assumiu todos os seus anseios e dos fundadores, permitiu a colocação do sacrário
e concedeu-lhes todas as graças e indultos que o direito dá aos lugares pios. Desta forma o
recolhimento das Mercês transformava-se em recolhimento religioso, ficando as senhoras ali
residentes a observar um estatuto semelhante às regras conventuais, a Regra da Terceira
Ordem de São Francisco815. Nessa data as recolhidas eram dezassete, e viviam unicamente das
esmolas dos fiéis e de três moios de trigo da renda que possuíam816.
807
Noronha, op. cit., p. 284.
Álvaro Rodrigues Azevedo, op. cit., nota XXI, p. 591.
809
Noronha, op. cit., p 283; Fernando da Soledade, op. cit., p. 355, para quem as donzelas eram nove; Fernando Augusto da Silva op. cit.,
p..l80.
810
Noronha, op. cit., p. 283; Fernando da Soledade, op. cit., III. p. 355.
811
Noronha, op. cit., p. 287; Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 354.
812
Álvaro Rodrigues de Azevedo, op. cit., p. 592.
813
“Aconteceu”, refere o anotador de As Saudades da Terra, “que, foi o dito Doutor desta Ilha para Porto Santo, a coisas do seu ofício:
virou-se o barco em que ia, ficando em perigo evidente de vida, e logo lhe ocorreu que era castigo de Deus pelo que estava fazendo às
recolhidas de Nossa Senhora das Mercês”. Implorou o auxílio da Senhora, “prometendo-lhe mudar de parecer; e livre de perigo, por milagre
da mesma Senhora, veio a pedir perdão, logo mandou pôr sacrário, aceitou o recolhimento em lugar pio e, daí por diante, foi o mais
empenhado na fundação deste convento” (op. cit., p. 592).
814
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L. 268, fol. 5v.
815
Quando a primeira e a segunda Ordem Franciscana já estavam fundadas, São Francisco viu a necessidade de uma ordem para seculares. O
santo, contudo, entendia que a secularidade possui os seus valores e, na impossibilidade de todos levarem vida conventual, o que interessava
sobremaneira era responder ao projecto de vida evangélica onde a cada um fosse dado viver. A Ordem Franciscana Secular, por ele fundada,
808
191
E o recolhimento cresceu. “A estas plantas do paraíso Seráfico”817, juntaram-se outras.
“Sendo pela profissão, terceiras seculares do Hábito de S. Francisco, em breve tempo se
fizeram directoras de uma particular observância, por tal modo que quando chegaram a ser
discípulas já eram Mestras, sem passarem pelo estado de principiantes”818. Era seu anseio
serem religiosas professas.
A comunidade organiza-se em moldes conventuais, passando a ser superintendida por
uma regente, auxiliada por uma vigária e uma escrivã819; os demais ofícios, sacristã, porteira e
outros, foram distribuídos pelas várias recolhidas. Tendo já “uma igreja competentemente
ornada da invocação de Nossa Senhora das Mercês, com capelão e confessor (...) com o
Santíssimo Sacramento em sacrário”, a sua vida de oração era intensa e estava bem
estruturada. E, como o vigário geral lhes prometeu tomá-las “por filhas e súbditas, em seu
próprio nome e dos futuros bispos da diocese do Funchal, desde que alcançassem licença de
Sua Majestade para erigir o mosteiro com regra aprovada por Sua Santidade e a Sé
apostólica”820, logo o capitão fundador tratou de alcançar a necessária autorização.
Entretanto a vida no recolhimento ganhou profundidade espiritual e, em 1660, “foi
estabelecida clausura, principiando aquelas senhoras, embora sem compromisso canónico, a
observar a Primeira Regra de Santa Clara. Depois de quatro anos de vida fervorosa, “com
reputação e clausura”821, aquelas senhoras “com suas virtudes e raro exemplo” eram motivo
de júbilo e de esperança para todos os moradores da cidade do Funchal: “estado eclesiástico,
nobreza e povo”822. A Ilha da Madeira começou a olhá-las “com grande devoção e a sustentálas com suas esmolas com grande piedade”823.
Começava a abrir-se caminho para a concretização do sonho dos fundadores: fazer ali
um mosteiro professo. De facto, Gaspar Berenguer e D. Isabel de França haviam-no
construído para nele “se recolherem e servirem a Deus, Nosso Senhor, nossas nobres e pobres
da Ilha (... ) com o intento de que viesse a ser convento de religiosas professas da Primeira
Regra de Santa Clara à imitação do Mosteiro da Madre de Deus desta Cidade (Lisboa), em
cuja conformidade se foram metendo e recolhendo nele algumas nossas nobres e pobres”824.
Havia, contudo, um longo caminho a percorrer.
Enquanto se aguardava a autorização régia, as recolhidas iam vivendo como se de
religiosas se tratasse.
reuniu, e continua a reunir, muitos milhares de membros. O recolhimento de Nossa Senhora das Mercês começou por observar a regra desta
Terceira Ordem Franciscana Secular.
816
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso.
817
Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 355.
818
Noronha, op. cit., p. 283.
819
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L. 268, fol. 7v: Instrumento de fundação de 1 de Julho de 1665.
820
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L. 268, fol. 5v.
821
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5: Petição de Gaspar Berenguer e das recolhidas ao vigário geral de 5 de Julho de 1664.
822
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5v: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663.
823
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5: Petição do capitão Gaspar Berenguer de Andrade (...) de 5 de Julho de 1664.
824
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5v: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663.
192
CAPÍTULO II
PASSAGEM DO RECOLHIMENTO A MOSTEIRO DE CLARISSAS
1. Autorização régia e eclesiástica
1.1. Autorização régia (1663)
Após a visita do vigário geral ao recolhimento, em 12 de Fevereiro de 1658, a que já
fizemos referência, logo uma petição do fundador, regente e recolhidas seguiu para o rei,
solicitando a passagem do recolhimento a mosteiro professo da Regra de Santa Clara. A
mesma mercê pediu a Sua Majestade o cabido da cidade do Funchal, a Câmara da Ilha e o
governador e provedor da Fazenda. A resposta de Sua Majestade não se fez esperar: “Hei por
bem, por ser obra tanto do serviço de Deus, nosso Senhor e pia devoção dos moradores da
Ilha, que o Recolhimento referido seja convento professo da Primeira Regra de Santa Clara,
assim como o é o Mosteiro da Madre de Deus desta cidade de Lisboa, e que fique Gaspar
Berenguer de Andrade como fundador do dito convento e padroeiro dele”825. O alvará
concedia ao fundador e seus sucessores no padroado “dois lugares de freiras para sempre, para
o que (o fundador) o tinha dotado por escrituras, com cento e trinta mil reis de renda em cada
ano”. Mais determinava: “o número de religiosas que terá o dito convento será vinte e um. (...)
as quais religiosas serão governadas pelos prelados do bispado da Madeira e na sua ausência
pelo Deão que ora é, e no adiante for e faltando este, a dignidade que se seguir a que darão
obediência”826.
Este alvará dado por Sua Majestade a 25 de Agosto de 1661, e confirmado a 19 de
Maio de 1662, só foi expedido de Lisboa a 20 de Dezembro de 1663, então, com ordem
expressa de que se cumprisse “como nele se contém”. Seguidamente, tratou o capitão de obter
autorização eclesiástica, conforme o preceituado pelo direito canónico.
1.2. Processo de erecção episcopal
A 5 de Julho de 1664, o capitão, a regente e demais recolhidas dirigiram-se ao deão,
solicitando “lhes queira fazer mercê de as tomar debaixo do seu patrocínio em seu nome, e de
todos os demais Prelados futuros, concedendo-lhes todos os favores que o direito dá”827. Ao
mesmo tempo, o capitão Gaspar Berenguer requereu da mesma autoridade a passagem do
recolhimento a mosteiro professo: “O qual Recolhimento está obrado com toda a perfeição, e
clausura e oficinas necessárias (...) e também o tem dotado com bastante dote, para poderem
viver as ditas Freiras, ajudadas com as esmolas dos fiéis cristãos deste Bispado”828.
31. Alvará régio
825
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5 v e 6: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663, AHDF, Conv. Mercês F., caixa. 26,
capilha 1, doc. avulso: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663. D. Isabel de França, sua esposa, falecera a 27 de Novembro de 1659
(Noronha, op cit., p. 285).
826
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 6: Alvará (...); AHDF, Conv. Mercês F., caixa. 26, capilha 1, doc. avulso: Alvará (... );
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso. Será necessário rectificar a firmação de
que o mosteiro das Mercês “foi instituído inicialmente para dezassete freiras professas” (Rui Carita, op. cit., IV, p. 320). O numerus clausus
estabelecido desde a origem foi de vinte e uma religiosas, embora no momento da passagem a mosteiro professo as recolhidas só fossem
dezassete.
827
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5: Petição do capitão (...).
828
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 6: Petição do capitão (...); ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv.
Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso.
193
As recolhidas, então em número de dezassete, eram governadas pela regente Maria dos
Prazeres, auxiliada pela vigária Isabel da Cruz e a escrivã Madalena do Sacramento.
Vivendo já à imitação das freiras capuchas da Madre de Deus de Lisboa, pretendiam
servir a Deus em pobreza, castidade e obediência.
Ouvidos o comissário do convento de S. Francisco do Funchal e o vigário da igreja de
São Pedro, como pároco das recolhidas, e não havendo nada que obstasse, o Dr. Pedro
Moreira entendeu que podia dar a licença solicitada, pois julgava a erecção do mosteiro um
serviço de Deus. Portanto, a 21 do mesmo mês de Julho, dirigiu-se ao recolhimento
acompanhado de Francisco da Fonseca, escrivão, “visitou a igreja de Nossa Senhora das
Mercês, titular do recolhimento, a qual achou mui ornada e decente para nela haver sacrário,
como há, por sua licença, aonde se encerra o Santíssimo Sacramento da Eucaristia; e visitou
mais o interior do dito recolhimento a saber: dormitórios, coro superior, locutórios, refeitório,
cozinha e cerca, e as mais partes altas, concernentes à clausura das religiosas que nele vivem,
e achou que tudo estava capaz de se poder erigir em Convento regular (...), somente julgou ser
necessário levantar o muro da cerca pela banda do caminho que vai para o Mosteiro de Santa
Clara, seis ou oito palmos (...) e o que vai correndo até às casas do capitão António de
Atouguia da Costa, oito a dez palmos”829. E, porque, quanto ao mais tudo lhe pareceu bem,
“aprovou este dito recolhimento para nele se poderem professar os quatro votos da
religião”830. À vistoria seguiu-se a dotação por parte do fundador.
De acordo com o concílio de Trento, nenhum mosteiro podia ser fundado sem que
estivesse garantida a sua sustentação com dotes e rendas ou esmolas certas. Do quantitativo
desta dotação dependia o numerus clausus com que o mosteiro poderia ser fundado, como
esclareceu o Ministro Geral Franciscano quando em 1720 teve de pronunciar-se sobre o
assunto: “O Sagrado Concílio Tridentino manda na sessão 25, cap. 3, que em cada um dos
conventos de religiosas se faça taxa e determine o número certo de freiras, o qual se possa
comodamente sustentar das rendas e esmolas do mesmo convento; e por Constituição
Apostólica do Senhor Papa Pio V está proibido receberem-se mais das que segundo o
sobredito decreto e número se podem sustentar”831.
Para satisfazer às exigências canónicas, Gaspar Berenguer procedeu à dotação do
mosteiro. A 1 de Julho de 1665, na presença das recolhidas e do deão, o fundador e seus três
filhos, P. Bartolomeu César Berenguer, José de França Berenguer e Gaspar Berenguer,
declaram que, quando o fizeram, já tinham a intenção de o transformar em mosteiro da
Primeira Regra de Santa Clara, segundo o teor de vida do mosteiro da Madre de Deus de
Lisboa e que, portanto, “eles, como padroeiros fundadores e administradores que são e hão-se
ser (...) de todos os bens deles, querem que nenhuma coisa falte a sua sustentação”832. Por
isso, aos três moios com que estava dotado o recolhimento, juntaram mais onze, ficando o
mosteiro dotado com catorze moios de trigo cada ano. Os onze moios referidos estavam
vinculados às propriedades da Calheta, Estreito da Calheta, Ponta do Sol e Porto Moniz, com
os quais se assegurava “a sustentação das religiosas, de um confessor, um capelão, feitor e de
um servente de fora”, caso “as esmolas dos fieis cristãos lhe faltarem para sua sustentação,
para que não padecessem necessidade”833, os quais moios “valem cada ano nesta Ilha da
829
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 7: Auto da vistoria de 21 de Julho de 1664.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 7: Auto da vistoria de 21 de Julho de 1664.
831
AHU, Madeira, doc. 623, Cópia do capítulo X da primeira patente que mandou Frei José da Conceição do Convento de Alferrara da
Santa Maria da Arrábida, de 30 de Junho de 1720.
832
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, , fols. 7v. e 8: Instrumento de fundação de 1 de Julho 1665, fol.. 9 v: Sentença de 1 de Julho
de 1665; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso.
833
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 8: Instrumento de fundação, (...).
830
194
Madeira duzentos e cinquenta e dois mil reis ou seja seiscentos e trinta cruzados”834. A
sustentação de cada freira ficaria anualmente por vinte e cinco cruzados, o confessor, capelão
e feitor por quarenta cada um e o servente de fora por vinte e cinco. Esta dotação foi garantida
não só pelo fundador mas também pelos três filhos, perante o Dr. Pedro Moreira, na qualidade
de deão, provisor e vigário geral da diocese do Funchal. O mosteiro ficava ainda dotado com
cento e trinta mil reis por ano, obrigação que ficava vinculada ao morgadio do Lombo do
Doutor, com a contrapartida de dois lugares para sempre, de que podiam dispor os
padroeiros835.
Havendo licença e consentimento de Sua Majestade, estando o edifício conforme as leis
de clausura e já dotado, o deão, a 3 de Julho de 1665, pôde proceder à erecção: “erijo (...) e
levanto este recolhimento em mosteiro para nele se professar a Primeira Regra da gloriosa
Virgem Santa Clara e aceito para dote de vinte e uma religiosas, que somente haverá nele, um
confessor, capelão, feitor e servente, os catorze moios de trigo no valor de seiscentos e trinta
cruzados”836 e “tomo as ditas recolhidas e as aceito em súbditas do futuro prelado e bispo e,
em sua ausência, do seu vigário episcopal (...) para por ele serem regidas, moderadas e
visitadas”837. O deão declarou também aceitar o capitão Gaspar Berenguer “como patrono
fundador e administrador e a seus herdeiros (...) e que as ditas freiras professavam a Primeira
Regra de pobreza de Santa Clara, como professam as do Mosteiro da Madre de Deus de
Lisboa, com seus estatutos”838. Finalmente, o Dr. Pedro Moreira prometeu pedir a Sua
Santidade que “confirme esta instituição e erecção do mosteiro, pelo grande serviço que faz a
nosso Senhor e consolação que os povos desta Ilha e Bispado recebem em terem pessoas tão
virtuosas em quem exercitem as obras de caridade e suas esmolas”839.
1.3. Licença papal - O breve de Alexandre VII
O breve impetrado por Gaspar Berenguer, que veio validar o alvará régio e confirmar a
erecção episcopal, foi dado em Roma a 17 de Agosto de 1665, que e, chegou ao Funchal em
fins de 1666. A sua execução foi confiada ao Dr. Pedro Moreira, na qualidade de juiz
apostólico executor do breve840.
A 20 de Dezembro daquele mesmo ano, o deão, convocou a regente, então Madre Inês
de Jesus e mais Irmãs, para lhes “apresentar o breve de Sua Santidade impetrado a instâncias
de Gaspar Berenguer de Andrade”. Depois, “como todo o acatamento e a reverência devida, o
tomou em suas mãos e beijou”841, garantindo assumir a responsabilidade da sua execução.
Seguiu-se, com visível satisfação de todos, a leitura textual do mesmo breve.
A 6 de Junho de 1667, acompanhado do escrivão Francisco da Fonseca, procede à
vistoria determinada pelo breve: visitou “a Igreja de Nossa Senhora das Mercês do
recolhimento e achou estar suficientemente ornada, com o sacrário do Santíssimo Sacramento
e mais coisas necessárias”,842 para guarda da clausura. E na presença da regente, Madre Inês
834
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 9v: Petição (...) do capitão Gaspar Berenguer de Andrade e seus filhos (...) e das
recolhidas do recolhimento de Nossa Senhora das Mercês de 1 de Julho de 1666.
835
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5v: Alvará (...); Noronha, op. cit., p. 284.
836
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol.. 11v : Auto da Petição das recolhidas do recolhimento de Nossa Senhora das Mercês e do
seu capitão de 3 de Julho de 1665; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso.
837
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 11v: Auto da Petição (...).
838
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 11v: Auto da Petição (...), e fol.. 5 v: Alvará (...); AHDF, Conv. Mercês F., caixa. 26,
capilha 1, doc. avulso.
839
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol.. 11v: Auto da Petição (...); ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv.
S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso.
840
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 12: Breve apostólico de Sua Santidade Alexandre VII, dado em Roma na igreja de Santa
Maria Maior a 17 de Agosto de 1665; AHDF, Conv. Mercês, Caixa 26, Capilha 1, doc. avulso: Breve apostólico (...)
841
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 12: Breve apostólico (...).
842
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 14: Auto de vistoria que o deão Pedro Moreira (...) mandou fazer, de 6 de Junho de 1667.
Nesta data já havia falecido a regente Prazeres de Jesus, bem como as recolhidas Maria da Madre de Deus e Luzia de São José (ARM,
Conventos, Conv. Mercês F., L. 270, Livro de Óbitos, fol. 1).
195
de Jesus, da vigária de coro, Catarina da Paixão, das irmãs porteiras, Isabel de Jesus e Isabel
da Cruz, da vigária da casa, Francisca do Espírito Santo, e restantes irmãs, num total de
dezassete, o vigário geral tomou conhecimento das disposições da comunidade843.
Feita a vistoria, em virtude da autoridade que lhe era conferida pelo breve, pôde o juiz
apostólico escolher “para ir plantar e fundar o dito mosteiro das capuchas a Reverenda Madre
D. Branca de Jesus, freira professa do Convento de Santa Clara desta cidade para instrutora,
mestra e abadessa trienal, na forma do Concílio Tridentino, por constar da sua vontade e
virtude”844.
A 13 de Junho de 1667, dia em que se celebrava a festa de Santo António, no pátio
exterior do mosteiro de Santa Clara junto à porta, estando a madre abadessa, D. Ana do
Evangelista, com muitas religiosas da parte de dentro, e, da parte de fora, o vigário geral, o
comissário do convento de São Francisco e do mosteiro de Santa Clara, Frei Domingos da
Assunção, desobrigada a Madre D. Branca de Jesus da submissão e dependência da sua
Madre, “foi levada (...) numa cadeira fechada (que são as carroças desta Ilha) para o Convento
de Nossa Senhora das Mercês, acompanhada de muitas donas fidalgas, virtuosas e exemplares
(...) com o estado eclesiástico, câmara e nobreza e povo dela (...) Chegados à porta do novo
mosteiro, aonde da parte de dentro a esperavam a Regente Madre Inês de Jesus com as demais
Irmãs (...), o Juiz Apostólico (...) entrou na clausura do Mosteiro notificando que ali lhes
entregava a sua prelada, eleita e confirmada por ele” 845. Após algumas exortações, o Juiz
Apostólico saiu e, fechada a porta da clausura, as religiosas “levaram a sua abadessa cantando
o hino Te Deum Laudamus, dando graças a nosso Senhor da grande mercê que lhes fez”846.
A Madre Dona Branca de Jesus ali ficava a “transformá-las de terceiras seculares em
freiras da mesma ordem, ensinando-lhes a observância da sua primeira regra, com tanto
exemplo, destreza e agilidade, como se a tivesse professado e aprendido ao longo de muitos
anos”847. Nas suas mãos professaram, ao longo de alguns anos, vinte e seis noviças.
“Deixando cultivado este jardim seráfico, com a primeira regra de Santa Clara, a mesma que
se guarda na Madre de Deus de Lisboa, donde lhes vieram as instruções para o seu governo,
com as quais se fizeram dignas religiosas”, regressou, alguns anos mais tarde, ao mosteiro
onde professara848.
1.4. Regra e Constituições ou Estatutos
Ao longo dos tempos, por factores de ordem diversa, particularmente por interferências
da corte e dos governantes, os mosteiros foram perdendo o fervor inicial e o melhor do seu
carisma. A Ordem de Santa Clara foi atingida por esta decadência.
Na primeira metade do século XV, uma clarissa francesa, Santa Coleta849, procedeu à
reforma da Ordem, reconduzindo-a ao genuíno espírito de Santa Clara de Assis. Esta reforma
coletina entrou em Portugal pelo Mosteiro de Jesus em Setúbal, fundado em 1490. Para o
“povoar”, foram pedidas sete clarissas ao mosteiro de Gandia, na Espanha, centro da reforma
843
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 14: Auto de vistoria (...).
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 14 v: D. Branca de Jesus era filha de João de Bettencourt de Freitas e de D. Isabel Moniz,
sua mulher. Professou em 1636 no convento de Nossa Senhora da Conceição do Funchal (Noronha, op. cit., p. 284). O breve previa que a
fundadora pudesse ser uma religiosa do mosteiro de Santa Clara ou de Nossa Senhora da Encarnação.
845
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 14 v. e ss. Auto da entrega que fazem o Reverendo P. Comissário dos Conventos de São
Francisco e de Santa Clara da Ilha da Madeira, Frei Domingos da Assunção e Madre abadessa dele, da Reverenda Madre Dona Branca de
Jesus, professa do Convento de Santa Clara, para ir fundar o novo mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, em virtude do Breve Apostólico.
846
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 15: Auto da entrega (...).
847
Fernando da Soledade, op. cit.,III, p. 355; Noronha , op. cit., p. 284.
848
Noronha, op. cit., p. 284.
849
Para a reforma de Santa Coleta vejam-se as páginas 27 e 28 desta obra : Movimentos reformadores.
844
196
coletina na Península Ibérica. Para ali viera um grupo de reformadoras de Lezignan, na
França850.
A 18 de Junho de 1509, o mosteiro de Setúbal enviou sete clarissas para “povoar” o
mosteiro da Madre de Deus, em Lisboa (Xabregas), a pedido da benemérita fundadora das
Misericórdias, a rainha D. Leonor, esposa de D. João II. A comunidade “guardava
fervorosamente a Primeira Regra de Santa Clara”, segundo o testemunho do cronista
franciscano, Fernando da Soledade. Deste mosteiro de Lisboa, partir a reforma, para
incrementar a observância no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês no Funchal, Ilha da
Madeira, que livremente quis assumir a Regra de Santa Clara e os Estatutos ou Constituições
de Santa Coleta851.
As Constituições, declarações, estatutos e ordenações sobre a Regra de Santa Clara,
recebidas do mosteiro da Madre de Deus de Lisboa, constam de quinze capítulos. Com esta
legislação pretendia Santa Coleta levar os mosteiros da Ordem à vivência do carisma próprio,
segundo o genuíno espírito de Santa Clara e de S. Francisco de Assis.
Os dois primeiros capítulos tratam das condições de entrada na Ordem e do hábito
religioso; os capítulos III e V dizem directamente respeito à vida espiritual, recitação do ofício
divino, confissão e comunhão, enquanto o IV e VI abordam aspectos ascéticos necessários
para a profundidade oracional, tais como o silêncio, a abstinência e o jejum. Da clausura,
necessária para uma melhor comunhão com Deus, falam os capítulos VI, IX e XIV. Da
eleição da abadessa, discretas e capítulo conventual, como expressão de responsabilidade
fraterna, tratam os capítulos IV, VII e XIII. À pobreza individual e colectiva, insistindo na
“não recepção de rendas nem possessão alguma”, à obrigação de trabalhar e aos cuidados
fraternos a ter com os doentes, consagram os Estatutos os capítulos X, XI e XII. E,
finalmente, o capítulo XV fala do visitador canónico.
O texto termina com uma exortação de Santa Coleta: a sua “religiosíssima observância
(...)” porque, diz a reformadora, “quanto mais vos esforçardes a dar fruto na guarda dos
vossos Estatutos, quanto mais gloriosos prémios alcançareis”. E, para que cada religiosa
conhecendo-os bem, melhor os pudesse observar, mandava: “seis vezes em cada ano, em
comunidade, ao tempo de comer, em lugar de outra lição, claramente sejam lidos”852.
O texto da Constituições ou Estatutos encontra-se assinado pelo punho da Madre
“Branca de Jesus, fundadora e abadessa do Convento de Nossa Senhora das Mercês”853, como
que a querer dizer que assumia a responsabilidade de os observar e fazer observar pela
comunidade.
As religiosas das Mercês eram geralmente designadas por capuchas e também
capuchinhas, diminutivo em que o bom povo madeirense, em atitude de apreço e carinho,
transformou aquele apelativo. Nessa época, em Portugal, atribuía-se o nome genérico de
capuchas às clarissas que seguem a Regra de Santa Clara em vez da Regra do Papa Urbano
IV, “por maior elogio da sua forma de vida mais estreita”854.
2.O padroado dos Berenguer
2.1.Direitos e deveres dos padroeiros
Na petição dirigida a Sua Majestade, Gaspar Berenguer pedia “lhe fizesse mercê aceitar
o padroado e protecção do convento”. A rainha regente, D. Luísa de Gusmão, não só lhe
850
Omaechevarría, ofm, op. cit., pp. 89-103.
Sobre a Regra de Santa Clara, para evitar repetições, pode ver-se na Primeira Parte desta obra o capítulo III: Textos legislativos e
reformas.
852
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, Constituições (...), fol. 44.
853
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, Constituições (...), fol. 44v.
854
Apolinário da Conceição, ofm, op. cit., p. 126. As religiosas capuchas das Mercês nada têm a ver com a reforma capuchinha; nem tão
pouco, nessa data, havia Capuchinhos no Reino.
851
197
devolveu a dignidade que era o padroado, mas mandou que passasse também a seus
sucessores.
O capitão, que associara à fundação do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês os seus
três filhos, P. Bartolomeu César Berenguer, José de França Berenguer e Gaspar Berenguer,
vinculou-os então a si como fundadores e dotadores do novo mosteiro, pertencendo-lhes “o
direito de padroado, administração, honras, isenções e proeminências eclesiásticas de que
gozavam os padroeiros e fundadores”855. Todos gozariam dos direitos especificados no alvará
régio: sepultura na capela-mor do mosteiro, escolha de dois lugares perpétuos856, que podiam
dar a pessoas beneméritas da sua linhagem ou mesmo de outra, e ainda a nomeação do
confessor, capelão, feitor e um de servente de fora, que deviam apresentar à aprovação de
prelado857.
Sabemos que na capela-mor foram sepultados os fundadores, Gaspar de Berenguer de
Andrade, falecido em 1691 e sua mulher D. Isabel de França que, segundo Noronha, morrera
a 27 de Novembro de 1659858, bem como os dois filhos que tiveram o padroado: P.
Bartolomeu César Berenguer e José de França Berenguer859.
2.2. O padroado, sua constituição e rendas
Reportando-nos ao “Instrumento de Fundação do Convento de 1 de Julho de 1665”860 e
à “Cópia das fazendas do padroado de 8 de Abril de 1807”861, vemos que o padroado formado
pelo capitão Gaspar Berenguer com “a sua Terça”, a terceira parte da herança de que ele,
como testador, podia dispor livremente, era constituído por vinte e três propriedades rústicas,
e duas urbanas na rua das Mercês: “uma morada de casas com alto e baixo (...) e uma casinha
térrea de telha”, a que estava vinculado um serrado ali situado com boas condições para
árvores de fruto e hortaliças 862. Estes dois prédios urbanos, o serrado, seriam, segundo as
disposições testamentárias de Gaspar Berenguer, a morada dos padroeiros.
Quadro nº.26 - Propriedades rústicas do padroado
Calheta
No Lombo do Doutor-2
Na Levada de São José -3
Estreito da Calheta
No Lombo da Igreja - 4
No Lombo do Lameiro -4
No Lombo dos Reis -3
Na Serra do Lombo do Morgado -1
No Lombo dos Moinhos -1
No Lombo da Achada –1
Na Ribeira do Farrobo -1
Ponta do Sol
Canhas - 1
Chiqueiros -1
Porto Moniz
Fajã do Barro -1
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 8- 8v: Instrumento de fundação e Cópia das fazendas do
padroado, fols. 76- 81
.
Estas propriedades, estavam localizadas na Calheta, Estreito da Calheta, Ponta do Sol e
Porto Moniz. Todas estavam pois situadas no sul da Ilha, excepto a Fajã do Barro. Destas
fazendas vinculadas ao morgadio do Lombo do Doutor, aforadas a alqueires de trigo, dinheiro
e manteiga, ou entregues a meeiros pelo padroeiro, saíam onze moios de trigo em cada ano,
855
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 8v-9: Instrumento de fundação (...); ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das
Finanças, Conv. Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso.
856
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 5v- 6: Alvará; AHDF, Conv. Mercês F., caixa. 26, capilha 1, doc. avulso.
857
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 9: Instrumento de fundação (...).
858
Noronha op. cit., p. 285.
859
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 84: Testamento de José de França Berenguer, Noronha op. cit., p. 285.
860
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 7v -9: Instrumento de fundação (...).
861
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 76 - 81.
862
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, Instrumento de Fundação, fols. 8-8v e Cópia das fazendas do padroado, fols 76-81.
198
para a sustentação das religiosas, capelão, confessor, feitor e um servente de fora.863 A cada
uma estava vinculado um certo quantitativo anual de trigo conforme o estipulado pelo
fundador.
Quadro nº.27 - Trigo fornecido pelas propriedades do padroado
Propriedades
Estreito da Calheta (15 fazendas)
Porto Moniz (1 fazenda)
Calheta (5 fazendas)
Ponta do Sol (2 fazendas)
Descrição
Terras semeadas, vinha balseira e árvores
Terras de pão
Terras semeadas, vinha e árvores
Total:
Quantitativo
dois moios
Meio moio
seis moios e 44 alqueires
Um moio e 46 alqueires
onze moios
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, Instrumento de fundação, fols. 8- 8v e Cópia das fazendas do
padroado, fols. 76- 81
Os outros três moios com que Gaspar Berenguer e sua esposa D. Isabel de França,
haviam dotado o recolhimento, provinham de “boas propriedades”864 que não pudemos
localizar.
As propriedades que constituíam o padroado do Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês,
formado com “a Terça” do fundador, manter-se-iam indivisíveis e in perpetuum nas mãos dos
seus descendentes, que poderiam usufruir os seus rendimentos, pois as religiosas só gozariam
das rendas a ele vinculadas, quando as ofertas dos fiéis do bispado do Funchal não fossem
suficientes.
No testamento, Gaspar Berenguer, falando da terça com que dotara o mosteiro de Nossa
Senhora das Mercês, explicita: “nunca será vendida nem alienada” e passará aos descendentes
“como morgadio in perpetuum (...) na forma seguinte: enquanto (...) os meus dois filhos,
Padre Bartolomeu César e José de França forem vivos, comerão os seus rendimentos
uniformemente pois me ajudaram a fazer o dote do dito convento e, por morte de ambos,(...)
sucederá nela o filho mais velho de meu filho José de França Berenguer, e assim irá
ocorrendo perpetuamente de mais velho em mais velho, na forma da lei do reino e, em falta de
varão, sucederá a mulher mais velha(...); sempre andará anexa a dita terça, com o padroado e
administração do dito convento, em a pessoa que herdar o morgadio do Lombo do Doutor,
sito na Vila da Calheta que instituíram meus avós (...)”865. Se, porém, essa pessoa não fosse
cumpridora ou não morasse no aposento do fundador, junto ao mosteiro, para dele ter muito
cuidado e trazer a igreja com o asseio e o zelo necessário, “passará a dita terça e padroado ao
ilustríssimo Senhor Bispo e em sua falta ao deão e isto enquanto durar a vida do que for
negligente na sua administração”866. Após a morte do que não fosse cumpridor, voltava ao seu
herdeiro ou à pessoa que sucedesse no morgadio do Lombo, “porque”, diz o fundador, “o meu
intento não é tirá-lo da minha descendência, mas somente daquele que proceder mal na
administração”867.
2.3 Problemática posterior
Gaspar Berenguer manteve em suas mãos o padroado do Mosteiro de Nossa Senhora
das Mercês até à sua morte que ocorreu em 1691. Dele passou para o filho mais velho, P.
863
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 8 -9: Instrumento de fundação (...); ARM Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols.. 8082. O moio era uma medida de capacidade equivalente a sessenta alqueires. Estavam aforadas quatro propriedades: três no Estreito da
Calheta e uma no Paul do Mar.
864
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 8: Instrumento de fundação (...).
865
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 74v: Testamento do capitão Gaspar Berenguer de Andrade.
866
ARM, Convento, Conv. Mercês F., L 268, fol. 74v: Testamento do capitão Gaspar Berenguer de Andrade.
867
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 74v: Testamento do capitão Gaspar Berenguer de Andrade.
199
Bartolomeu César Berenguer” e seguidamente para José de França Berenguer, que o manteve
até 1720.
José de França Berenguer, cavaleiro da Ordem de Cristo,868 casara com D. Maria de
Castelo Branco, da qual tivera seis filhos869. Porém, quando morreu em 1720, já só viviam
três: Agostinho César Berenguer Atouguia, José de França Berenguer e D. Lourença de Sena,
religiosa no mosteiro das Mercês870.
Aconteceu que, no seu testamento constituiu herdeiro de todos os seus bens o filho
Agostinho César Berenguer e Atouguia, “a quem também nomeio na administração do
padroado no Convento de Nossa Senhora das Mercês”871, o que fez nascer um grave litígio
que se perpetuou por cerca de cem anos. É que, do casamento do seu filho mais velho, o
morgado João de Andrade Berenguer com D. Tomásia de França e Andrade, realizado na
Calheta em Novembro de 1695872, haviam nascido dois filhos: João de Andrade Berenguer, a
quem pertencia o padroado, e D. Antónia Josefa, que Fernanado Vaz de Meneses chama
Antónia Joaquina.
Ora, José de França Berenguer, sem atender aos direitos de Antónia Josefa, já então
casada com Jorge Correia Bettencourt, apelidado o Grande, a quem, por morte do irmão em
1716, pertencia o padroado, constituiu padroeiro Agostinho César Berenguer, seu segundo
filho. Quando em 1720, Agostinho César passou a administrar o padroado, exaltaram-se
ânimos e contestaram-se-lhe direitos e honras
Em 1725 D. Manuel Coutinho, o novo bispo do Funchal, deu-se conta de que a
confusão sobre a sucessão do padroado era muito grande. O prelado, pelos direitos que lhe
dava o testamento do fundador, decidiu assumir o padroado e resguardar os documentos
relativos à fundação: “Os autos de fundação e erecção do Convento de Nossa Senhora das
Mercês, que estavam no Convento, o Senhor Bispo, D. Frei Manuel Coutinho os levou com
os outros mais papéis e os guardou no cofre ou arquivo da Mitra”873. Em seguida foi levantada
uma causa judiciária contra Agostinho César, que o privou do padroado do mosteiro, “cujos
autos também se acham no arquivo ou cofre”874.
Algum tempo depois Gaspar Berenguer, filho de Agostinho César e seu sucessor no
padroado, fez chegar a Roma uma carta, simultaneamente, queixa e súplica. Dirigindo-se à
Congregação dos Bispos e Regulares, depois de referir os direitos dos padroeiros,
acrescentava que os bispos, a quem só fora concedido o governo espiritual, “se têm apoderado
do sobredito mosteiro, de tal modo que têm tomado (...) todo o governo e autoridade dos
Padroeiros, negando aos padroeiros os direitos que lhes pertencem.” Queixava-se também de
que, tendo o mosteiro sido fundado para vinte e uma religiosas, “hoje passam de trinta e
uma”. E suplicava: “Como as coisas vão de mal em pior, queiram ordenar que o Bispo largue
logo ao padroeiro do mosteiro e seus sucessores todas as escrituras (...) e que não se intrometa
no governo do Mosteiro” 875 O Núncio Apostólico de Lisboa, interpelado pela Congregação, a
30 de Novembro de 1754, dirigiu-se ao prelado da diocese do Funchal: “Como da Sagrada
Congregação dos Bispos e Regulares de Roma, me vem cometida a instância, que consta da
868
José de França Berenguer era também membro da Terceira Ordem de São Francisco, irmão de Nossa Senhora do Monte do Carmo e de
Nossa Senhora da Soledade, bem como de Nossa Senhora do Monte e da Santa Casa da Misericórdia. No seu testamento pediu para ser
amortalhado com o hábito “do meu seráfico pai São Francisco e as insígnias de cavaleiro da Ordem de Cristo” (ARM, Conventos, Conv.
Mercês F., L 268, fols. 84 -84v).
869
Fernando de Menezes Vaz, op. cit., p. 201.
870
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 84. O capitão teve duas filhas no mosteiro das Mercês, D. Maria e D. Isabel Francisca de
São José, que faleceu em 1716 (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol.1v; Noronha, op. cit., p..293.
871
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 84.
872
Fernando de Menezes Vaz, op. cit., p.201.
873
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso.
874
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso.
875
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso, doc. avulso: Súplica de Gaspar Berenguer à Congregação dos Bispos e
Regulares de Roma.
200
inclusa súplica, para que examine o que há nesta matéria, e sobre ela dê categórica resposta
(...), devo eu prevaler-me de V. S., para que queira ter a bondade de informar-me exactamente
32 Problemática na transmissão do padroado876
sobre o relatado na mencionada súplica, para meu regulamento.”877 Do estudo que o cabido
fez do assunto, resultou a carta de 14 de Abril de 1755, em que se diz que o padroeiro “se
servia do mosteiro como dum favo de abelhas para apanhar as esmolas que vinham (...), e que
as religiosas, por causa da sua pobreza, clamando foram socorridas pelo Bispo D. Frei Manuel
Coutinho, que obrigou judicialmente o padroeiro a dar razão da sua administração”878.
Desconhecemos qual tenha sido a resposta de Roma, mas em 1788 ainda D. José da
Costa Torres, em carta para o ministro Martinho de Mello e Castro, fazia referência a esta
situação litigiosa que, sem dúvida, afectava a vida das religiosas879.
Na segunda metade do século XVIII, agravaram-se as lutas judiciárias entre a linha
representada por D. Antónia Josefa, assumida por Jorge Correia Bettencourt de Atouguia
Neto e depois dele por Henrique Correia de Vilhena, e os descendentes de Agostinho César,
que foram Gaspar Berenguer e José Joaquim de Bettencourt Esmeraldo. Nelas veio a
envolver-se a autoridade eclesiástica880. O litígio ganhou volume, chegando os agravados a
apelar das sentenças lavradas para a Relação Patriarcal e depois para a Coroa881. Algum
tempo mais, e o padroado do mosteiro, depois de um desvio de oitenta e sete anos, passou
para os descendentes de D. Antónia Josefa Berenguer Correia Bettencourt, na pessoa de D.
Ana Cândida, por sentença de 19 de Abril de 1807882. De facto, sendo José Joaquim de
Bettencourt Esmeraldo, depois de contenciosa pleito judicial, convidado a largar a posse do
padroado, nele foi investida D. Ana Cândida Berenguer d’Atouguia Neto, casada com
Henrique Correia. A investidura teve lugar no Juízo da Correição a 19 de Abril de 1807883.
3. O imóvel
3.1. Localização urbana e estrutura material
O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, “um casario de aspecto grave, que se
ocultava por detrás de altas muralhas”884, ficava situado “à Rua das Mercês e Travessa das
Capuchinhas, freguesia de S. Pedro do Funchal”885. A Travessa das Capuchinhas ou das
876
AHDF, Conv. Mercês F., pasta 130, fol.1.
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Carta do Núncio Apostólico de Sua Santidade dirigida ao Reverendíssimo
Cabido, estando vacante este Bispado do Funchal, sobre a súplica de Gaspar Berenguer, de 30 de Novembro de 1754.
878
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Resposta do Cabido, dada no Funchal.
879
AHU, Madeira, doc. 842: Carta do bispo do Funchal, de 10 de Agosto de 1788, para Martinho de Mello e Castro.
880
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 88: Sentença que Jorge Correia Bettencourt de Atouguia Neto obteve contra o procurador
da Mitra, o Cónego Dr. António de Freitas Sousa, e Gaspar Berenguer, filho de Agostinho Berenguer, na reivindicação do padroado do
Convento de Nossa Senhora das Mercês, inserta em uns autos, em que foi autor Henrique Correia de Vilhena, como cabeça de sua mulher, D.
Ana Cândida Correia, e réu, o Coronel José Joaquim de Bettencourt Esmeraldo, existente no cartório do escrivão Jacinto Medina e
Vasconcelos, fols. 252-275, e confirmada por sentença da relação das folhas, fols. 284 e ss.
881
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 88v: Sentença que Jorge Correia Bettencourt de Atouguia Neto (...).
882
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 94.
883
AHDF, Conv. Mercês F., pasta 130, fol. 1, documento aqui reproduzido; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols.. 88 - 94:
Sentença que Jorge Correia Bettencourt de Atouguia Neto (...).
884
“O Convento das Mercês”, Correio da Madeira, 5 de Março de 1927.
885
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação do extinto
Convento de Nossa Senhora das Mercês, 20 Novembro de 1895, feita por Teodoro João Henriques, A. Augusto Leme e António Ferreira de
Freitas.
877
201
Mercês, então mais estreita do que hoje, por altura da capela das Almas, construída em 1781
por Roque José d’Araújo Viana886, flectia para sul, delimitando a cerca das religiosas.
O edifício e a sua cerca eram limitados a norte e oeste pela Travessa das Capuchinhas, a
sul pelo terreno dos herdeiros de João Francisco de Florença Pavão e a leste pela Rua das
Mercês e o prédio Power Drury e Companhia887. O imóvel integrava, além da parte
habitacional, a capela de Nossa Senhora das Mercês, uma pequena sacristia e adro que abria
para a Rua das Mercês888. Ao longo dos anos, sofreu remodelações e aumentos. As mais
importantes obras de restauro realizaram-se na igreja e na parte habitacional nos anos de
1746-1752889. Possivelmente foi nessa altura que o coro das religiosas foi enriquecido com
uma valiosa tela de Nossa Senhora das Mercês de consideráveis dimensões890, que deu ao
coro beleza e dignidade.
A construção, de rés-do-chão, primeiro e segundo andar, ocupando uma área que media
“com a Igreja, o adro e a sacristia, mil trezentos e trinta e cinco metros quadrados”891,
distribuía-se à volta do claustro de cento e oitenta metros quadrados, ocupado por dois
jardins.
A planta anexa, de 1895, permite-nos analisar pormenorizadamente a estrutura do
imóvel, e a finalidade das várias divisões, em função da vida comunitária. Assim, vemos que
no rés-do-chão, do lado da Rua das Mercês, se localizava a zona de relacionamento com o
exterior: a capela, a sacristia, o adro e a portaria, donde partia uma escada que levava à sala de
visitas situada no primeiro andar, as duas casas da roda e a torre. Transitava-se desta zona
para o interior do mosteiro pela casa de passagem, que abria para o claustro. Ao redor dele,
distribuía-se a zona de trabalho: casa das hóstias, cozinha, despensa, casa da farinha e várias
lojas, ou seja, as casas da giesta, da lenha, da cera e a tulha, onde se guardava o trigo892. Neste
pavimento térreo ficava ainda o refeitório da comunidade, o quarto da abadessa e a sala
capitular
No primeiro andar, situava-se a sala de noviciado, uma pequena cozinha para o serviço
da enfermaria, vinte e uma celas, o coro das religiosas e os locutórios, lugares de atendimento
das visitas. O segundo andar, que não acompanhava toda a construção, era ocupado pela
enfermaria, duas pequenas salas, rouparia e sala de convívio ou recreio.
PLANTA 7
886
Ângela Maria de Freitas Alves, Abel Gomes Fernandes, Julieta Maria R. do Vale Fernandes e Irene Rodrigues, op. cit., p. 156.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação (...).
888
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação (...).
889
Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 310.
890
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, fol.. 25: Inventário de Setembro de 1895. O ANTT
possui dois inventários do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, de 1895. Um assinado por Mons. João Luís Monteiro, como delegado da
autoridade eclesiástica, o P. António de Macedo, Alfredo Cirilo dos Santos, da repartição da Fazenda Distrital, Cândido Pereira e João
Rodrigues Rebelo, não datado. O outro, de Novembro do mesmo ano, assinado por Alfredo Cirilo dos Santos, Mons. João Luís Monteiro e
Francisco de Paula Prado. Dado que em 24 de Setembro de 1895, foi lavrado o termo da “Entrega ao Excelentíssimo e Reverendíssimo
Prelado de todas as imagens, alfaias e mais objectos de culto que pertenceram ao suprimido Convento da Senhora das Mercês” (ANTT,
Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. IV/B/49/12), o inventário será anterior àquela data,
possivelmente de princípios de Setembro, o que vamos admitir por facilidade de referência.Veja-se a nota 15, p. 310.
891
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso. Medição e avaliação (...).
892
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, Medição e avaliação (...). Planta do
extinto mosteiro de Nossa Senhora das Mercês de 11 de Setembro de 1895, levantada e desenhada por Joaquim António de Carvalho em
Setembro de 1895.
887
202
A cerca, de cento e setenta metros quadrados, era aproveitada como horta e jardim.
Contudo, quando em 1895 foi medida e avaliada estava “plantada d’árvores infrutíferas e com
uma capela de São Vicente Ferrer”893. Da levada dos Moinhos, que descia na cerca junto ao
muro, derivava a levada que servia o mosteiro e a cerca. Apesar de, à data, nada render,
acharam os avaliadores que valia quinhentos mil réis. Ao prédio, bastante deteriorado,
atribuíram um conto de réis894.
33. Santa Maria Madalena. O quadro de Santa Maria Madalena, pintura em
tela, ocupava um dos altares laterais da capela. Vem referido no inventário de
Setembro de 1895. Fotografia de Rui Camacho, DRAC.
3.2. Lugares de culto: a capela, o coro e a ermida da cerca
As obras de restauro que, como atrás ficou dito, se efectuaram em meados do séc.
XVIII, deixaram a capela bela e acolhedora, sem no entanto perder a sua sobriedade, como
diz Fernando Augusto da Silva: “na sua arquitectura, nas suas proporções e nas suas
decorações interiores, não passou duma pequena e modesta igreja, mas foi sempre um
cenáculo vivo de afervorada piedade, em que as religiosas capuchinhas deram o alto exemplo
das mais heróicas virtudes cristãs”895. Tinha, além do altar-mor, dois altares laterais: de S.
Lúcio e de Santo António. No altar-mor, a que presidia o belíssimo retábulo de Nossa
34. Santa Catarina mártir. O quadro de Santa Catarina, bela pintura a óleo,
vem mencionado no inventário de 1895. Ocupava, segundo Noronha, um dos
altares laterais da capela. Fotografia de Rui Camacho, DRAC.
Senhora das Mercês de Conrado Martim, encontravam-se as imagens de Santa Clara, de S.
Francisco, de S. João Baptista e de Santa Ifigénia. O sacrário, de madeira de pinho dourada,
ocupava posição central. A capela tinha, sem dúvida, o seu camarim.
35. Nossa Senhora da Conceição. Esta linda imagem de Nossa Senhora
da Conceição (de roca), do final do século XVII ou princípios do XVIII,
ocupava na capela o altar a que deu o nome. Pertencia-lhe, segundo o
inventário de Setembro de 1895, “uma coroa em prata lavrada de
setecentos e oito gramas”.
O altar de São Lúcio, que Noronha, por ter um valioso retábulo de Santa Catarina em
tela, denominou altar de Santa Catarina mártir, tinha, além das imagens de São Lúcio e de São
Bruno em madeira policromada dourada, um quadro do Sagrado Coração de Jesus com vidro
e moldura dourada. No altar de Santo António encontrava-se um retábulo de Santa Maria
893 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação (...).
894 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação (...)
895 Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 330.
203
Madalena, do mesmo estilo e, sem dúvida, do mesmo autor da tela de Santa Catarina. Havia
também, um quadro do Imaculado Coração de Maria com moldura dourada e um crucifixo
valioso. Junto ao púlpito, de pinho envernizado e com decoração dourada, ficava o altar de
Nossa Senhora da Conceição, bela imagem de roca. Nele se encontravam também as imagens
de São Joaquim e de Santa Ana em madeira, um quadro de Santa Filomena com moldura
dourada e um crucifixo de apreciável valor.
A capela-mor serviu de panteão aos padroeiros, D. Isabel de França e Gaspar
Berenguer, falecidos em 1659 e 1691 respectivamente896.
Na sacristia, que era relativamente pequena, havia um móvel de nogueira com dois
corpos, tendo o inferior a configuração de dois armários e o superior seis pequenas gavetas de
cipreste. Como símbolo religioso estava uma cruz ao centro.
36. Cristo crucificado. Trabalho de oficina portuguesa, do século
XVII ou XVIII, de 75 por 47 centímetros, em madeira. Tem cerca de
cem pedras preciosas em vermelho vivo transparente, rubis, encastoadas
no corpo de Cristo, e cravos e resplendor em prata dourada. Reprodução
de Carlos Fotógrafo.
No coro, situado no primeiro andar, decorria a oração das religiosas. Via-se ao fundo
um altar de 180 centímetros, acima do qual ficava um nicho embutido na parede, com uma
imagem de roca de Nossa Senhora da Natividade, de 60 centímetros de altura. Dentro estava
um outro pequeno nicho de madeira, pintado de azul e com portas de vidro, que encerrava
uma imagem de Nossa Senhora da Conceição de 34 centímetros. Havia ainda uma pequena
imagem do Menino Jesus sobre uma peanha e quinze pequenas estampas com molduras
diferentes a ornamentar o nicho de Nossa Senhora da Natividade. Possivelmente por cima da
grade que deixava ver o altar-mor da capela, ficava o retábulo de Nossa Senhora das Mercês
de 210 por 144 centímetros. A decorar as paredes, mas sobretudo a acentuar a tonalidade
religiosa daquele lugar de oração, havia vários quadros em tela: São José, Nossa Senhora da
Piedade, Nossa Senhora do Carmo, São Miguel e o Senhor da Cana Verde, com molduras
douradas897. Incorporando-se harmoniosamente neste conjunto, lá estavam algumas imagens,
belas e de diversas invocações. A de maior expressividade mística era a imagem do Senhor da
Paciência, de 76 centímetros de altura, valiosa peça do século XVIII, de madeira policromada
dourada. Por um manuscrito da Madre Virgínia sabemos que o Senhor da Paciência, que
havia sido oferecido à Madre Brites da Paixão por seu pai, o sexto morgado do Caniço,
presidia ao coro das religiosas898. Lá se encontravam, também, São Benedito, Santa Ana,
Nossa Senhora da Expectação, Nossa Senhora das Mercês, e o Menino Jesus. No coro havia
também uma estante de 35 centímetros em madeira de castanho com base torneada, que era
ocupada pela religiosa que, no ofício divino, exercia a função de leitora, bem como um
rabecão pequeno, ou seja, um violoncelo, para harmonizar a referida oração litúrgica899.
Na cerca havia também um lugar de oração que era a capela de São Vicente Ferrer,
oferta de uma educanda. Em 1756 encontrava-se no mosteiro D. Vicência Juliana, filha de
896
Noronha, op. cit., p. 285.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 25-26v: Inventário de Setembro de
1895.
898
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscrito da Madre Virgínia Brites da Paixão sobre a Madre
Brites da Paixão.
899
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 25-26v: Inventário de Setembro de
1895.
897
204
Francisco Aurélio da Câmara Leme e de sua esposa D. Antónia Maria de Menezes Sá e
Acciaiuoli, residentes no Funchal900.
Esta jovem tinha grande devoção a São Vicente Ferrer e, por isso, pensou em empenharse na construção de uma capela daquela invocação, na cerca do mosteiro. Seus pais, senhores
de considerável fortuna, dispuseram-se a concretizar o desejo da filha, desde que a abadessa e
a comunidade dessem o seu consentimento. D. Vicência Juliana dirigiu-se, portanto, à Madre
Angela Maria da Glória que, depois de consultado o capítulo conventual, permitiu, e com
muita satisfação, que a ermida fosse construída.
A 13 de Julho de 1756, o cabido da Sé do Funchal procedeu à apreciação do pedido de
autorização, que D. Vicência lhe dirigiu: construção “de uma ermida dedicada a São Vicente
Ferrer, na cerca do dito mosteiro, que serviria de oratório em que as religiosas façam os seus
exercícios espirituais”901. Para uma mais fácil anuência da autoridade eclesiástica, a carta da
educanda esclarecia que já tinha a aprovação da “Reverenda Madre Abadessa e sua
comunidade” e que tal obra não representaria despesa para o mosteiro, pois que “toda a que
for necessária se há-de fazer à custa do pai e parentes da suplicante”902. Segundo as
disposições recebidas do bispado, “a capela podia ter de comprimento vinte e quatro palmos e
doze de largo”903, pois, atendendo a que a cerca era pequena, não seria oportuno que ocupasse
maior espaço.
O inventário de Setembro de 1895 descreve o seu interior. Na parede oposta à entrada
ficava um altar de pinho em talha dourada, por cima do qual se via um quadro de São Vicente
Ferrer em tela, de 200 centímetros. de comprimento por 110 centímetros de largura. Nela se
podia ver um pequeno quadro de São Pedro, pintura sobre cobre e duas pequenas imagens
bastante deterioradas e também dois castiçais em madeira904. Esta pequena capela foi, ao
longo de quase duzentos anos, lugar de oração das religiosas que, quando o desejavam e o
podiam fazer, ali passavam longas horas de intimidade com o Senhor.
D. Vicência Juliana, jovem muito piedosa, cuidava da ermida com desvelo e nela
passava muito tempo em oração. Entretanto, sentiu nascer-lhe na alma o desejo de ser
religiosa professa. Quando em 1760 completou quinze anos, pediu para ser admitida ao
noviciado905.
3.3 A parte habitacional
Uma sala de particular importância e significado existe num mosteiro: a sala capitular,
onde têm lugar os mais importantes actos comunitários: reuniões capitulares, reuniões do
discretório ou conselho, votações, recepção de autoridades eclesiásticas e civis e outros mais.
No mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, a sala capitular ficava no rés-do-chão, ao
lado da capela. Ao fundo havia um altar e, acima dele, metido na parede, um nicho de pinho
pintado, com um crucifixo de 110 centímetros. Possivelmente por cima deste nicho, ficava a
tela da Anunciação que o inventário de Setembro de 1895 localiza na sala capitular. Nas
paredes, como que a evidenciar a presença de Cristo, via-se uma cruz de pinho, pintada de
preto, de 335 por 150 centímetros. Conjugavam-se com ela, de forma harmónica, algumas
pinturas em tela: São Francisco de Assis, Nossa Senhora do Rosário, o Encontro do Senhor, a
900
AHDF, Conv. Mercês, F., L. 25, Recepções, entradas e votos das noviças do Convento de Nossa Senhora das Mercês, 1751-1834, fol.
11v.
901
AHDF, Conv. Mercês, F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Provisão de 13 de Agosto de 1756.
902
AHDF, Conv. Mercês, F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Provisão (...).
903
AHDF, Conv. Mercês, F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Provisão (...).
904
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 31-31v: Inventário de Setembro de
1895.
905
AHDF, Conv. Mercês, F., L. 25, Recepções (...), fol. 11v: Acta da tomada de véu de Vicência Juliana de São Vicente Ferrer, aos cinco
dias do mês de Julho de 1760.
205
Santa Face e Nossa Senhora da Piedade. Lá estavam também dois quadros pintados sobre
madeira: Cristo, bela pintura seiscentista, e a Descida da Cruz. Não deixaremos de acrescentar
que, além do Claustro, também na sala capitular do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês,
eram sepultadas as religiosas, como acontecia em muitos outros daquele tempo. Alvo da
maior consideração, ali ficavam os restos mortais daquelas que partiam e que a comunidade
continuava a amar906.
Comunicando com a cozinha, por facilidade de serviço, ficava o refeitório. Ali estavam
seis mesas de pinho fixas, com 400 centímetros de comprimento por 50 de largura dispostas
em U. Além da cruz torneada em castanho, que ocupava posição central, decoravam o
refeitório dois quadros de valor: Nossa Senhora da Conceição e o Senhor em Casa de Simão,
pinturas a óleo sobre tela, com moldura dourada. Do tecto pendiam seis lamparinas de vidro
branco que alumiavam a sala às horas das refeições. Junto à parede estava um púlpito de
pinho, onde uma religiosa, no início da refeição, fazia uma leitura de carácter espiritual.
Procuravam, desta forma, alimentar o espírito, ao mesmo tempo que fortificavam o corpo907.
Ainda no rés-do-chão ficava a portaria. As visitas, depois de passarem pelo adro,
entravam na portaria, onde eram atendidas pela porteira-mor. Se fosse necessário subiam ao
locutório. A dar ambiente religioso à entrada, estava um pequeno nicho com um crucifixo
marchetado de madrepérola e uma pequena imagem de mármore branco, representando Nossa
Senhora com o Menino Jesus ao colo. Havia também dois quadros, um de Nossa Senhora, São
Joaquim, Menino Jesus e São João Baptista em tela, e o outro de Nossa Senhora da Piedade,
pintura em madeira. A dar graciosidade à portaria estava uma pequena mesa de pinho, um
banco de mogno polido e um jarrão de cobre, onde as plantas e flores seriam periodicamente
renovadas908.
No primeiro andar dois lugares nos merecem uma particular referência: a sala do
noviciado e de visitas.
A sala de noviciado, onde a mestra se ocupava da formação das noviças, era pequena e
simples. A decorá-la havia uma tela de Nossa Senhora e um nicho com portas de vidro, tendo
dentro duas pequenas imagens: Nossa Senhora e Santa Ana. Lá se encontravam alguns bancos
e uma estante de madeira do Brasil, que seria, sem dúvida, a biblioteca das noviças, e um
descanso para colocar o rabecão que para ali era levado, para que as noviças pudessem fazer a
aprendizagem da melodia do ofício divino909.
Na parte exterior da sala de visitas, havia uma mesa, um banco de pinho e seis cadeiras.
Do lado da clausura, quatro bancos e uma cadeira de nogueira, torneada de espaldar e braços,
com assento de palhinha. De um e de outro lado, dispostas com gosto e harmonia,
encontravam-se pinturas de temática religiosa: Nossa Senhora da Conceição, Santa Teresa e
São Francisco Xavier, Santo António, Nossa Senhora com o Menino Jesus, de Nossa Senhora
da Assunção e dois quadros de Pio IX e Leão XIII. Com funções simbólico-decorativas, havia
duas telas de 120 por 95 centímetros, representando uma delas uma parra com cachos de uvas
e a outra um molho de espigas de trigo910.
O segundo andar era ocupado pela enfermaria e sala de convívio, a que presidia um
nicho onde se encontrava Santa Ana, duas imagens de Nossas Senhora do Monte, São
906
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscrito da Madre Virgínia sobre a Madre Brites da Paixão.
O Padre Fernando Augusto da Silva diz que os restos mortais da Madre Brites da Paixão foram sepultados no claustro (Diocese do Funchal.
Sinopse Cronológica, Funchal, 1945, p. 84)
907
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 15 - 15v: Inventário de Setembro
de 1895.
908
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 9-9v: Inventário de Setembro de
1895.
909
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 22-23: Inventário de Setembro de
1895.
910
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fol. 8v e 24: Inventário de Setembro de
1895.
206
Jerónimo e uma pintura a óleo de São Pedro. Como mobiliário, havia dois armários de
madeira do Brasil e duas mesas, uma das quais também de pau-brasa911.
911
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 30v-31: Inventário de Setembro de
1895.
207
CAPÍTULO III
A COMUNIDADE CONVENTUAL
As religiosas do Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, observando a Primeira Regra
de Santa Clara e as Constituições ou Estatutos de Santa Coleta, segundo os costumes do
Mosteiro da Madre de Deus de Lisboa, não podiam ter rendas nem propriedades912, pois
deviam observar pobreza individual e colectiva913. Viveriam, portanto, do seu trabalho, das
ofertas dos fiéis e de alguns rendimentos que lhes vinham de dotações e doações feitas à
Sacristia do mosteiro e ainda dos legados deixados por pessoas amigas. Quando estes recursos
não fossem suficientes, deviam os padroeiros, conforme o estipulado pelo fundador, facultar
às religiosas, na sua totalidade ou em parte, as rendas vinculadas ao padroado. Aliás, o
Concílio de Trento havia aberto a possibilidade de qualquer mosteiro poder viver “de rendas”
ou “de esmolas”914. O Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês mergulhou as suas raízes nesta
última hipótese, pois que a Regra de Santa Clara, cujo espírito queriam viver, era clara: “não
possuam nem recebem qualquer domínio ou propriedade ou qualquer coisa que possa ser
considerada como tal”, salvo “a porção de terra que honestamente se ache necessária para o
recolhimento do mosteiro a qual será cultivada como horta para satisfazer às necessidades da
comunidade”915.
Instituído para vinte e uma religiosas professas916, bem cedo foi autorizado a ter vinte
e quatro. “Dizem as actuais freiras, por tradição das antigas, porque não aparece o título”,
escreveu o bispo do Funchal, em 10 de Agosto de 1788, “que obtiveram Breve para ter vinte e
quatro”917, podendo em certos casos, haver extranumerárias918. A comunidade era constituída
por religiosas professas, noviças e candidatas. Algumas pupilas aguardavam no mosteiro a
idade de poder entrar no noviciado. Excepcionalmente houve algumas educandas919. Não
havia criadas nem criados, salvo um servente de fora que o próprio alvará régio previa920.
O mosteiro era de jurisdição episcopal, pelo que era o bispo do Funchal, ou o seu
legítimo representante e substituto, a autoridade eclesiástica à qual as religiosas estavam
subordinadas. A teor da Regra e das Constituições ou Estatutos, e conforme o alvará régio, a
comunidade tinha assegurada a assistência espiritual por um confessor e um capelão, assistido
por um sacristão. Para coordenação e gerência e assuntos de natureza material, havia um
feitor921 e um procurador ou síndico, por vezes vários, formando um corpo administrativo.
912
ARM, Conventos, Conv. Mercês F , L 268, fol.5 : Petição do capitão Gaspar Berenguer de Andrade de 5 de Julho de 1664
e fol.5 v: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F ,
caixa 2076, doc. avulso
913
RCL,VI, 12 e 13, in FF II, p. 54.
914
AHU, Madeira, doc. 623, doc. avulso: Cópia do capítulo X da patente que mandou Frei José da Conceição do Convento
de Alferrara da Província de Santa Maria da Arrábida, de 30 de Junho de 1720.
915
RCL,VI, 14-15, in FF II, p. 54.
916
ARM, Conventos, Conv. Mercês F , L 268, fol. 5v-6: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663; AHDF, Conv. Mercês, F
, caixa 26, capilha 1, doc. avulso : Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das
Finanças, Conv. Mercês, F. , caixa 2076, doc. avulso
917
AHU, Madeira, doc.842 : Carta de D. José da Costa Torres, de 10 de Agosto de 1788, para Martinho de Mello e Castro e
doc 789: Petição de Antónia Clara do Sacramento, abadessa, e do seu conselho, sem data.
918
AHU, Madeira, doc. 261: Ofício do bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, acerca da ordem régia que
proibia a admissão de noviças nos mosteiros de religiosas, de 16 de Agosto de 1764, para Francisco Xavier de Mendonça
Furtado. Nessa data, o Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês tinha vinte e uma religiosas do número e sete extranumerárias.
919
AHU, Madeira, doc. 842: Relatório do bispo do Funchal, 10 de Agosto de 1788, para Martinho de Mello e Castro;
AHDF, Conv. Mercês, F , caixa 26, capilha 2, doc. avulso.
920
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 268, fol. 7v: Instrumento de fundação de 1 de Julho de 1660.
208
1. As candidatas ao noviciado
1.1. Exigências, naturalidade e ascendência social
Segundo o costume da época, algumas candidatas à vida religiosa eram admitidas nos
mosteiros ainda meninas, ficando a aguardar na clausura a idade canónica, ou seja os quinze
anos, para poderem ingressar no noviciado. Estas pupilas, enquanto esperavam, iam-se
inserindo na vida conventual. As religiosas aproveitavam esse período para prepará-las
cultural e tecnicamente para a vida a que desejavam consagrar-se, e, simultaneamente, para as
iniciar na vida de oração. Eram meninas que desde muito novas haviam sentido um grande
encanto pela vida de consagração religiosa e que, portanto, deviam ser acompanhadas com
especial atenção. Normalmente as candidatas que começavam o noviciado com quinze anos
haviam entrado no mosteiro antes da idade canónica. Outras entravam já jovens feitas e
mesmo senhoras maduras.
Quadro nº.28 - Candidatas recebidas sem idade canónica
Nome
D. Eusébia Atouguia Bettencourt de Freitas
D. Ana Vitória de Castelo Branco
D. Maria Rita do Sacramento
D. Jacinta Rosa Correia Henriques de Vasconcelos
D. Delfina Ifigénia de Ornelas Linhares Cabral
Matilde Martins de Barros
Maria Madalena das Mercês
Maria Margarida do Coração de Jesus
Maria José da Santíssima Trindade
Idade
12
14
13
13
Ano
1752
1755
1899
1803
1816
1886
1887
1891
1891
Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F. , caixa
2076, doc. IV/B/49/24; AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, docs avulsos.
Um princípio fundamental regia a admissão das candidatas ao noviciado: que se
sentissem chamadas “por inspiração divina”922. Na Madeira acontecia que as jovens, quando
se sentiam possuídas por um profundo desejo de servir a Deus e à humanidade, de viver em
oração, procuravam o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês que, como dizia a candidata D.
Perpétua Jacinta Cabral Machado, “lhes aparecia resplandecente em virtude e santidade”923.
Se alguma candidata entrasse sem vocação, as abadessas não descansavam enquanto não
regressassem à família. Conta Henrique Henriques de Noronha que logo nos primeiros anos,
sendo abadessa a Madre Inês de Jesus, sucedeu que entraram sem vocação “certas moças a
quem seus parentes quiseram dar aquele estado”924. A Madre, que sentia a agudeza do
problema, mesmo incorrendo no desagrado do prelado que facilitara a entrada das jovens,
procurou convencê-las a sair do mosteiro, “até que o deixaram por sua vontade”925. O bispo,
diz o referido historiador, acabou por pedir desculpa à abadessa926.
A entrada de qualquer candidata carecia de autorização episcopal e da comunidade927
e, em épocas de controlo político, do beneplácito régio. Para a entrada no noviciado exigia-se
a idade mínima de quinze anos.
921
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 8v: Instrumento de fundação de 1 de Julho de 1660.
RCL, II, 1, in FF II, p. 45.
923
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc avulso: Petição de D. Perpétua Jacinta Cabral Machado, deferida no
Palácio de Queluz a 26 de Setembro de 1794.
924
Noronha, op. cit., p. 287.
925
Noronha, op. cit., p. 287.
926
Noronha, op. cit., p. 287.
927
RCL, II, 1, in FF II, p. 45; AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, docs. avulsos.
922
209
Embora algumas meninas entrassem antes da idade legal, as religiosas preferiam
jovens com certa experiência e maturidade. Evitavam, no entanto, a recepção de pessoas de
idade avançada. Pudemos apurar a idade de cinquenta e quatro noviças. Como vemos a
maioria das candidatas entrou na idade juvenil, entre os dezasseis e vinte e dois anos. As
vocações mais tardias correspondiam, geralmente, às candidatas que, em períodos de
proibição régia, tiveram de aguardar ou porque o apelo do Senhor só tardiamente se fez sentir.
Quadro nº.29 - Admissões ao noviciado: idades
Idade
candidatas
Idade
candidatas
15
16
17
18
19
20
21
22
12
4
8
3
4
3
2
2
23
24
25
26
27
28
29
30
1
1
2
5
1
1
1
4
Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., L 25, Recepções (...), fols. 2 - 72v;
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês
F., caixa 2076, docs. avulso.
Por vezes eram os próprios pais que, reconhecendo a vocação de suas filhas, faziam as
diligências necessárias para o seu ingresso. Em 1829, o alferes Joaquim de Freitas, da
freguesia de São Martinho, em carta para o bispo do Funchal, dizia que sua filha Ana das
Mercês desejava com veemência entrar para o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês e que,
portanto, ele, como pai, queria fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para ajudá-la a
“procurar um estado tão santo”928.
Diante de autenticidade de vocação, os próprios bispos, quando os pais tinham
dificuldades económicas, assumiam o pagamento do dote necessário. Por exemplo, a filha de
Bonifácio Bernardo Vieira gozou desse benefício: no dia 2 de Outubro de 1831 “em memória
do Santíssimo Rosário da Bem-aventurada Virgem Maria, cuja festividade celebra hoje a
Santa Igreja, manda Sua Excelência Reverendíssima remeter a V. S. a quantia de quatrocentos
mil reis, para efeito de poder admitir no noviciado a filha” 929, lê-se em documento dirigido ao
pai da candidata. O escrivão, ao mesmo tempo que informava: “e findo o tempo de noviciado
se prepararam os outros quatrocentos mil reis, para o dote da mesma menina”, solicitava o seu
auxílio espiritual em favor do prelado, lembrando-lhe que devia “orar a Deus pela
conservação da preciosa vida de Sua Excelência Reverendíssima, seu benfeitor”930.
A maior parte das candidatas do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês eram oriundas
do Funchal e de Câmara de Lobos. Algumas, embora poucas, provinham de outras zonas:
Machico, Porto da Cruz, Calheta, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Porto Moniz, São Vicente e
até de Lisboa e Coimbra. Conseguimos apurar a naturalidade de cinquenta e quatro noviças,
entradas depois de 1751.
Em 1861, das dezassete religiosas que constituíam a comunidade, onze eram do Funchal
(freguesias de São Pedro, Santa Maria Maior e Santa Luzia), quatro de Câmara de Lobos e
duas de São Martinho.931
928
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Petição de Joaquina de Freitas ao prelado, em favor de sua filha
Ana das Mercês.
929
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta do paço episcopal para a abadessa do mosteiro, de 2 de
Outubro de 1831.
930
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta do paço episcopal (...) de 2 de Outubro de 1831.
931
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, docs. avulsos.
210
Quadro nº.30 - Procedência das noviças
Localidade
Funchal
Câmara de Lobos
Calheta
São Vicente
Machico
Porto da Cruz
Número
28
8
4
1
2
2
Localidade
Ribeira Brava
São Martinho
Ponta do Sol
Porto Moniz
Lisboa
Coimbra
Número
1
1
3
1
3
1
Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., L 25, Recepções (...), fols. 272v. e caixa 26, docs. avulsos; ANTT, Arquivo Histórico do
Ministério das Finanças, caixa 2076, docs. avulsos.
Sendo o mosteiro das Mercês modesto, e a vida da comunidade exigente e austera,
poderíamos pensar que não teria sido procurado por jovens madeirenses ricas ou de
ascendência nobre. Não aconteceu assim, contudo. Vemo-lo pretendido, ao longo de quase
duzentos e cinquenta anos, por filhas das melhores famílias da Ilha. Nele entraram, e nele
levaram vida fervorosa algumas filhas dos França, Bettencourt, Câmaras, Atouguias, Ornelas
e Vasconcelos, Esmeraldo, Meneses Sá e Acciaiuoli, Castelo Branco e de outras famílias
distintas.
Quadro nº.31 - Candidatas de ascendência nobre
Nome
Inês de Jesus Berenguer
D. Brites da Paixão
D. Maria e D. Isabel de França Berenguer
de Andrade e Castelo Branco
D. Mariana, D. Maria e D. Antónia de
Andrada e Castelo Branco
D. Ana Inácia Berenguer de Castelo
Branco
D. Eusébia Maria Bettencourt de Freitas
Atouguia
D. Vicência Juliana de Câmara Leme
Meneses Sá e Acciaiuoli
D. Maria Paula Bettencourt da Câmara
Esmeraldo
D. Ana Bárbara de Freitas Drummond e
Aragão de Brito Esmeraldo
D. Maria Luísa de Ornelas Bettencourt
Filiação
Morgado Heitor Nunes Berenguer e D. Maria Lira
Varela
Aires Ornelas e Vasconcelos, sexto morgado do
Caniço
Capitão José de França Berenguer de Andrade e D.
Maria de Castelo Branco
Provedor da fazenda real na Ilha da Madeira António
Vieira de Andrada e D. Violante Jacinta de C.
Branco
Morgado Agostinho César Berenguer de Andrade e
D. Helena Josefa Mariana Bettencourt
Capitão Nicolau Gerardo de Bettencourt de Freitas e
D. Isabel Juliana de Atouguia
Francisco Aurélio da Câmara Leme e D. Antónia
Maria de Meneses Sá e Acciaiuoli
António José de Atouguia e D. Francisca Antónia
Bettencourt da Câmara Esmeraldo
Capitão José Joaquim de Freitas Drummond e
Aragão e D. Mariana Luísa de Brito Esmeraldo
Morgado Pedro José de Ornelas e D. Ana Francisca
Bettencourt
Idade
Ano
-
1656 ?
-
1673 ?
-
1685 ?
-
17...?
16
1751
15
1752
13
1760
-
-
16
1795
20
1798
Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, docs. avulsos; AHDF,
Conv. Mercês F., L 25, Recepções (...), fols. 2-72 v.; Fernando Menezes Vaz, Famílias da Madeira e Porto Santo, I,
Funchal, 1964, pp. .94 e 200-202.
E a lista podia ser maior.
Ao lado das candidatas saídas da alta sociedade, outras havia procedentes de famílias
modestas. Acontecia, contudo, que, nobres ou pobres, tornadas Irmãs, viviam em fraterna
igualdade. Serem filhas de Deus e por ele chamadas àquela vida santa era a maior distinção e
o seu maior título. Jamais se fez, naquela casa religiosa, ostentação de brasões, porque todas
se sentiam iguais e irmãs em Jesus Cristo.
1.2. Admissão ao noviciado e recepção do hábito
Atingidos os quinze anos, se a comunidade estava convicta de que a candidata tinha
verdadeira vocação, a abadessa, obtida licença do prelado, punha a jovem a votos. O capítulo
conventual, em votação secreta, decidia em consciência. Era acto de suma responsabilidade
211
pois o resultado era deliberativo. Se a candidata tinha a seu favor a maioria dos votos, estava
admitida; caso contrário devia regressar à família932.
A jovem, que então ingressava canonicamente na Ordem, recebia o hábito religioso,
túnica parda, cordão e véu branco, junto à grade do comungatório, na presença da
comunidade, sendo então lavrada uma acta em livro próprio, guardado no arquivo do
mosteiro.
Cada candidata pagava à sacristia do mosteiro um dote no valor de 400 mil réis933, que
foi aumentando, chegando no final do século XVIII ou princípios do XIX a 800 mil reis934.
O noviciado, que então começava, durava um ano. A noviça devia empenhar-se na
prática de todas as virtudes, na vivência dos mistérios cristãos, certificar-se bem do apelo de
Deus à vida de consagração, isto é, da autenticidade da sua vocação. O noviciado era
igualmente o período em que a noviça devia inserir-se com perfeição na recitação do ofício
divino e em toda a vida espiritual da comunidade, bem como nos trabalhos do mosteiro:
tarefas domésticas e trabalhos manuais.
Para as noviças havia sempre uma mestra, uma religiosa exemplar, que, sendo
“prudente (...) as instrua diligentemente na vida comum e nos bons costumes”935. Importava
dar-lhes uma formação doutrinal profunda e prepará-las para as responsabilidades que iriam
assumir.
1.3. Profissão religiosa
A profissão religiosa era um acto de suma responsabilidade. Exigia a presença de
chamamento divino, de dons humanos e espirituais específicos, que permitissem a inserção
feliz na vida comunitária. O capítulo conventual era inflexível no critério de admissão. D.
José da Costa Torres, em carta para Sua Majestade, testemunhava em 1788 esta criteriosa
selecção: “do actual estado de observância deste mosteiro, e da fraternidade e santa paz que
nele reina, bem se pode inferir que os Prelados e a comunidade cuidaram sempre em admitir
ao noviciado e principalmente à Profissão, só aquelas pessoas que mostravam verdadeira
vocação”936. Se havia dúvidas sobre a vocação, as jovens regressavam à família. Por exemplo,
em 1819, a comunidade não vendo na noviça Úrsula Rita os requisitos necessários, optou pela
não admissão. Informado o prelado e a mãe, a senhora Caetano Rita Rodrigues, a jovem
regressou à casa paterna937.
Um mês antes do fim do noviciado de cada candidata, o prelado da diocese disso devia
ser informado. Se a noviça fosse recebida à profissão pela comunidade, o mesmo prelado
devia proceder ao exame canónico, por si próprio ou por um seu delegado, certificando-se da
autenticidade de vocação e da liberdade de opção938.
A candidata entregava-se de todo o coração à família religiosa onde juridicamente se
integrava, consagrando-se ao serviço de Deus, da Igreja e da humanidade em geral.
Renunciava a todos os seus bens “e toda nua e desbulhada das coisas terrenas se oferecia nas
932
Cf. RCL, II 1 , FF II, 1, p. 45; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, Constituições, (...), fols. 27-28.
AHDF, Conv. Mercês, F., Caixa 26, capilha 3, docs. avulsos: Informação da abadessa do Mosteiro para o prelado de 18 de
Agosto de 1829 e carta da Madre Clara Maria de São José, abadessa, para o bispo da diocese, D. Francisco José Rodrigues de
Andrade, de 30 de Agosto de 1829.
934
AHDF, Conv. Mercês, F., Caixa 26, capilha 1, docs. avulso: Carta do paço episcopal de 2 de Outubro de 1803 para a
abadessa do Mosteiro e informações da Abadessa de 29 de Março de 1814 e de 18 de Agosto de 1829, sobre a admissão de
noviças
935
RCL, II, 21 e 22, FF II, p. 47; AHDF, Conv. Mercês F., L 268, fols. 27-28: Constituições (...).
936
AHU, Madeira, 842: Relatório de D. José da Costa Torres para Martinho de Mello e Castro, de 10 de Agosto de 1788.
937
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso
938
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, doc. avulso
933
212
mãos do crucificado”.939 Comprometia-se livremente a seguir as pisadas de Cristo, segundo a
espiritualidade franciscana: “Eu... de minha própria vontade, prometo a Deus e à bemaventurada Virgem Maria, ao bem-aventurado São Francisco e a Santa Clara e a todos os
Santos e a vós, Madre, guardar todo o tempo da minha vida esta forma de vida das Irmãs
Pobres de Santa Clara, dada pelo mesmo bem-aventurado São Francisco à dita Santa Clara e
confirmada pelo Senhor Papa Inocêncio IV, vivendo em obediência, sem próprio em
castidade e guardando a clausura”940.
A profissão tinha lugar no coro em presença da comunidade, do prelado ou de um seu
representante e delegado, de duas testemunhas, dos familiares e pessoas amigas. A capela
tomava ar de festa e o júbilo tornava-se geral. Para aquele dia, de profundo significado, davase à capela a mais primorosa decoração. Os cânticos, cuidadosamente seleccionados para a
circunstância ocorrente, davam àquela cerimónia religiosa solenidade e expressividade
mística O dia comunitário revestia-se de alegria e felicidade, e de muito carinho e ternura para
com a professanda.
Deste compromisso fazia-se uma acta. Exemplificamos: “Aos onze dias de Outubro de
mil setecentos e setenta e oito, neste mosteiro de N. Senhora das Mercês da Ordem de Santa
Clara, da Primeira Regra, sendo abadessa a Madre (...), estando congregada a comunidade no
coro, apareceu a Irmã (...) e posta de joelhos diante da R. M. Abadessa, lhe pediu que por ter
cumprido o ano de noviciado e desejar muito ser admitida à Profissão Religiosa, lhe fizesse a
caridade de a admitir a fazer a sua Profissão”941. Finda a cerimónia, a acta era assinada pela
abadessa, vigária, mestra de noviças, duas conselheiras, a professanda e finalmente pela
escrivã.
No mosteiro de Nossa Senhora das Mercês houve casos de profissões feitas in articulo
mortis. A noviça Luísa de Jesus Maria, tendo adoecido gravemente durante o noviciado, pôde,
com autorização da abadessa, a Madre Ana Ifigénia, da comunidade e do prelado, D. Manuel
Martins Manso, emitir os votos a 27 de Agosto de 1857. Veio a falecer alguns dias depois, a 6
de Setembro seguinte942.
1.4. As educandas
Por vezes, ao lado das pupilas encontravam-se, em certas épocas, algumas meninas
que entravam, não por razões vocacionais, mas simplesmente como educandas.
Esmeravam-se as religiosas em prepará-las para a vida dando-lhes uma formação
feminina, humana e espiritual primorosas. Cuidavam a sua educação e cultivavam nelas
sentimentos delicados e as boas maneiras. O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, contudo,
não recebeu muitas educandas. Podemos mencionar entre outras: D. Isabel Berenguer Castelo
Branco, filha do padroeiro, José de França Berenguer e de sua mulher D. Maria Castelo
Branco943, que, em 1678, entrou no mosteiro com oito anos944; D. Vicência Juliana, filha de
Francisco Aurélio da Câmara Leme e a sua esposa D. Maria Menezes e Acciaiuoli, família
muito conceituada e rica, que, com nove anos apenas, em 1754 já se encontrava na
clausura945; D. Perpétua, e uma sua irmã, netas do fidalgo da casa del Rei, Vasco Martins
939
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 27v: Constituições (...).
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 28v: Constituições (...).
941
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 271, Profissões das noviças do Convento de N. S. das Mercês, 1752, fol.6: Acta da
profissão da Irmã Maria Paula do Rosário.
942
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol. 3 v.
943
Noronha, op. cit., p. 293, Fernando de Menezes Vaz, op.cit., p. 201.
944
Noronha, op. cit., p. 293.
945
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 25, Recepções, entradas, e votos das noviças do Convento de N. S. das Mercês,
1751 - 1834, fols.11v. e L 271, Profissões das noviças do Convento de N. S. das Mercês, fol. 40: Acta da profissão da Irmã
Vicência Juliana, 4v.
940
213
Moniz, que entraram “por Decreto especial del Rei D. Pedro II”946. D. Perpétua que não
aceitou com gosto, mas “com grande repugnância da sua vontade”947, bem depressa se sentiu
muito feliz; D. Maria de São José, filha do Dr. José Ferreira Pazes e natural de Coimbra, que
entrou em 1706, com doze anos948, mas não chegou a iniciar o noviciado por ter falecido a 8
de Janeiro de 1709949; no início do séc. XIX entrou D. Josefa Genoveva Pestana. Todas estas
educandas, com excepção da irmã de D. Perpétua, em contacto com as religiosas, bem
depressa sentiram encanto pela vida conventual e, por sua livre vontade, completados os
quinze anos pediram para serem admitidas ao noviciado. D. José da Costa Torres, bispo do
Funchal, quando em 1788, remeteu a Sua Majestade um relatório sobre os mosteiros da sua
diocese, referindo o bom ambiente da comunidade das Mercês, dizia com satisfação:
“educandas houve algumas que professaram”950.
Por uma provisão episcopal que, a 10 de Janeiro de 1804, foi enviada à Madre Antónia
Clara do Sacramento, abadessa do mosteiro, a respeito de D. Josefa Genoveva Pestana, filha
do capitão Manuel Ferreira Pestana Homem, sabemos que, em 1804, estavam no convento
algumas educandas: “Hey por bem participar a V. Reverência que a dita D. Josefa Genoveva
Pestana deve ser conservada nesse convento como educanda, observando-se para com ela (...)
o mesmo que se pratica com as outras que nesse convento ocupam o mesmo lugar de
educandas”951.
.
946
Noronha, op. cit., p. 297.
Noronha, op. cit., p. 297.
948
Noronha, op. cit., pp. 298-299.
949
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos das religiosas do Convento de N. S. das Mercês, 1667. Noronha
localiza o seu óbito a 24 de Janeiro.
950
AHU, Madeira, doc. 842.
951
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Provisão episcopal de 10 de Janeiro de 1804 para a abadessa do
mosteiro. O bispo havia recebido um aviso régio, resposta à petição que o capitão Manuel Ferreira Pestana Homem, enviara a
Sua Majestade, em que pedia a conservação da sua filha no mosteiro das Mercês como educanda.
947
214
2. Governo da comunidade
2.1. Órgãos de governo
A comunidade das Mercês, como acontecia em qualquer mosteiro da Ordem de Santa
Clara de Assis, era governada por uma abadessa, que deveria ser “serva e mãe”e eleita pela
comunidade sem qualquer interferência de pessoas estranhas à mesma952.
A abadessa era auxiliada pela vigária, colaboradora constante e conselheira em todos
os assuntos que diziam respeito ao bem espiritual e material da comunidade. Na ausência ou
impedimento da abadessa, a vigária presidia aos actos comunitários. Vagando o cargo de
abadessa durante o triénio, por morte ou renúncia aceite, era ela que assumia o governo da
comunidade até ao capítulo electivo que podia, com o consentimento do prelado, ser
antecipado.
Além da vigária havia o discretório, corpo das conselheiras ou discretas, escolhidas
por eleição, entre as religiosas mais idóneas, em número variável, conforme o total da
comunidade. A abadessa devia pedir-lhes conselho sempre que a gravidade dos assuntos o
952
RCL, IV, 2-6, in FF II, p.49; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 33v-35: Constituições (...).
215
exigisse953. As conselheiras deviam ser mulheres de fé, de oração, amigas da paz e cheias de
caridade fraterna954.
Com funções consultivas ou deliberativas, conforme os casos, funcionava o capítulo
conventual, constituído por todas as religiosas professas. O capítulo conventual actuava como
órgão de corresponsabilidade fraterna, representando uma verdadeira valorização da família
conventual. A abadessa devia convocá-lo pelo menos uma vez por semana, sendo então feita
uma revisão de vida com “discernimento e humildade”. Os assuntos respeitantes à vitalidade e
bem espiritual da comunidade deviam ser tratados em capítulo955.
Em certos casos, como por exemplo na admissão das candidatas ao noviciado e à
profissão, contracção de dívidas e outros mais, a abadessa carecia do consentimento do
capítulo conventual, que era dado em escrutínio secreto. Em casos de menor importância,
funcionava simplesmente como órgão consultivo, podendo a abadessa aceitar ou não a
opinião expressa pelas capitulares. Em qualquer circunstância esta assembleia aparecia como
a expressão de corresponsabilidade fraterna, assumindo ao lado da abadessa o evoluir da
comunidade956.
2.2. Eleições
Numa linha de corresponsabilidade fraterna, tão própria da família franciscana, o
cargo de abadessa e os demais eram conferidos por eleição. “Para se conservar a unidade do
amor mútuo e da paz, a eleição das responsáveis para os cargos comunitários, seja feita com o
comum acordo de todas as Irmãs”957. Todas as professas gozavam de voz activa e passiva e
deviam assumir criteriosamente esta responsabilidade. Deviam, em consciência, eleger uma
Irmã capaz “de se impor às outras, mais pela virtude e uma vida santa, do que pela autoridade
do cargo”958.
Cada abadessa, antes de cessar o seu triénio, informava o bispo da diocese da
obrigatoriedade da eleição de uma outra. À assembleia eleitoral presidia sempre o prelado ou,
se estivesse ausente ou impedido, um seu delegado, com designação expressa para aquele acto
eleitoral.
Segundo as Constituições ou Estatutos, a abadessa devia ter pelo menos “trinta anos de
idade, e cinco de profissão, ser exemplar e prudente (...), discreta, temente a Deus (...) e
madura”959, recta e boa, de forma que, como diz Santa Clara, “as Irmãs, motivadas pelo seu
exemplo, lhe obedeçam por amor”960.
Reunido o capítulo conventual e feitas as orações previstas pelos Estatutos e pelo
direito canónico, procedia-se à votação, finda a qual o secretário da eleição proclamava eleita
a religiosa que tivesse obtido a maioria absoluta ou, pelo menos, a maioria relativa: “Eu (...),
secretário desta eleição, em nome de todas as religiosas que em esta eleição comigo
consentiram, declaro e nomeio eleita em abadessa a R. M. da Ordem (...)”961. Para validade
canónica, a eleição devia ser confirmada pelo presidente.
Em casos especiais, como os que se verificaram nos últimos anos do século XIX, em
que dentro do contexto político reinante a eleição se tornava difícil, ou quando a comunidade
não chegava a um consenso, o bispo podia fazer a nomeação ou recondução da abadessa. Na
vida do mosteiro houve de facto, quatro casos de nomeação: o primeiro em 28 de Julho de
953
RCL, IV, 22 e 23, in FF II, p. 51.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 33v-34: Constituições (...).
955
RCL, IV, 15-17, in FF II, p. 50; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 35v: Constituições (...).
956
RCL, IV, 15-23, in FF II, p. 49-51; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 35-35v: Constituições (...).
957
RCL, IV, 22, in FF II, p. 51.
958
RCL, IV, 10, in FF II, p..50.
959
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 34: Constituições (...).
960
RCL, IV, 9, in FF II, p. 50.
961
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 169, Eleições das Abadessas do Convento de N. S. das Mercês, 1756 : Actas de eleições.
954
216
1758, em que D. Gaspar da Costa Brandão, não tendo a comunidade chegado a acordo, teve
de recorrer à nomeação da Madre Francisca Teresa da Cruz para o triénio de 1758-1761962; o
segundo verificou-se em 1823, quando D. José Francisco Rodrigues de Andrade, depois de
três escrutínios infrutíferos, fez a nomeação da Madre Maria Paula do Rosário para o triénio
de 1823-1826963; em 1888 não sendo possível a eleição, D. Manuel Agostinho Barreto,
reconduziu a Madre Maria Querubina do Céu a um novo triénio, 1888-1891964; igualmente
em 1894 “não podendo proceder-se à eleição canónica”, o prelado optou pela nomeação da
Madre Emília Maria da Assunção para o triénio de1894-1897965.
Depois da eleição da abadessa, em reunião capítular, normalmente sobre a presidência
do confessor do mosteiro, procedia-se à eleição da vigária, das discretas e da escrivã, de
forma individualizada. Estas eleições careciam da aprovação do prelado.
Um dos primeiros actos do novo governo era proceder à eleição das religiosas que
deviam desempenhar os diversos ofícios: sacristãs, mestra de noviças, porteiras, provisora,
refeitoreira, enfermeira e outros mais. Feitas as eleições, a pauta dos ofícios era enviada ao
bispo da diocese para aprovação. Alguns dias depois era devolvida com a confirmação e a
indicação do dia e hora em que a autoridade eclesiástica, por ele designada, estaria no
mosteiro para dar conhecimento à comunidade da atribuição dos vários ofícios: “aprovamos
esta nomeação, a qual será publicada à respectiva comunidade, com as formalidades do estilo,
no dia 17 do corrente pelas nove horas da manhã”966.
2.3. Mobilidade dos cargos e ofícios, expressão de corresponsabilida fraterna
Nas Mercês, na distribuição dos ofícios não se atendia ao ascendente social das
religiosas mas tão somente à sua competência, à presença dos dons necessários. O discretório
procurava eleger as Irmãs mais aptas espiritual e culturalmente para que pudessem
desempenhar-se das suas funções com competência, como atestam os manuscritos.
Os cargos de governo – abadessa, vigárias e discretas ou conselheiras – eram trienais,
o que também acontecia com a escrivã. Nenhuma abadessa podia governar mais de três anos
seguidos. Conhecemos somente duas excepções: no início da clausura, a Madre D. Branca de
Jesus, religiosa professa do mosteiro de Santa Clara que, tendo passado para as Mercês para
iniciar a fundação com o grupo de senhoras que já se encontrava no recolhimento, governou
dois triénios consecutivos, 1667-1670 e 1670-1673, porque, como é óbvio, numa comunidade
nascente não podia haver religiosas que satisfizessem às exigências canónicas e
constitucionais para assumir cargos de governo. A outra verificou-se no final do século XIX,
Quadro nº.32 - Cargos trienais
Triénios
1752-55
1755-58
1758-61
1761-64
1764-67
1767-70
1770-73
1773-76
1776-78967
Abadessa
Mariana do Sacramento
Ângela Maria da Glória
Francisca Teresa da Cruz
Maria Madalena de Jesus
Antónia Maria da Cruz
Francisca Teresa de Jesus
Antónia Clara do Sacramento
Antónia Maria da Cruz
Teresa Rosa de Jesus
Vigária
Ângela Maria da Glória
Ângela de Fulgino
Isabel Maria de Jesus
Antónia Clara do Sacramento
Teresa Rosa de Jesus
Quitéria Rosa de Santa Maria
Francisca Coleta de Jesus
Escrivã
Teresa Rosa de Jesus
Francisca Teresa de Jesus
Teresa Rosa de Jesus
Mariana Quitéria do A.Divino
Ana Ifigénia da Trindade
Mariana Francisca de S. António
Ana Maria de Santo. António
Ana Ifigénia da Trindade
Mariana Francisca de S. António
962
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 169, Eleições (...), fols. 6-7.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 169, Eleições (...), fols..28v -- 29v.
964
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 169, Eleições (...), fol. 93.
965
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 169, Eleições (...), fol. 97.
966
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2 e 3, doc. avulso: Pauta das oficiais do convento de Nossa Senhora das Mercês que hão-de
servir este ano de 1845 até 1846. Normalmente o prelado fazia-se representar nesta missão pelo escrivão da Câmara Eclesiástica.
967
A Madre Teresa Rosa de Jesus faleceu em 27 de Agosto de 1777, se bem que, por lapso, no Livro de Óbitos a sua morte está referida em
1778 (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol.2. Tanto é assim que as contas do primeiro ano do seu triénio já não vêm
assinadas pela Madre, por ter falecido. Foi substituída pela vigária, Francisca Coleta de Jesus, até 31 de Agosto de 1778, altura em que foi
963
217
1778-81
1781-84
1784-88968
1788-91
1791-94
1794-97
1797-1800
1800-03
1803-05969
1805-08
1808-11
1811-14
1814-17
1817-20
1820-23
1823-26
1826-29
1829-32
1832-35
Antónia Clara do Sacramento
Antónia Maria da Cruz
Antónia Clara do Sacramento
Quitéria do Amor Divino
Antónia Maria da Cruz
Antónia Clara do Sacramento
Ana Margarida de São Joaquim
Mariana Francisca de S. António
Antónia Clara do Sacramento
Maria Paula do Rosário
Clara Maria de São José
Maria Paula do Rosário
Clara Maria de São José
Maria Paula do Rosário
Clara Maria de São José
Maria Paula do Rosário
Ana Maria do Coração de Jesus
Clara Maria de São José
Ana Maria da Conceição
Quitéria Rosa de Santa Maria
Maria Paula do Rosário
Ana Margarida de São Joaquim
Maria Caetano das Mercês
Ana Vitória de Jesus Maria
Maria Paula do Rosário
Maria Joaquina do Menino Jesus
Maria Joaquina do Menino Jesus
Ana Rosa do Coração de Jesus
Maria Joaquina do Menino Jesus
Francisca Eulália do Livramento
Perpétua Jacinta dos Serafins
Ana Maria de São Lúcio
Vicência Juliana de S. Vicente F.
Mariana Francisca de S. António
Ana Margarida de São Joaquim
Clara Maria de São José
Clara Maria de São José
Maria Paula do Rosário
Clara Maria de São José
Ana Joaquina de São José
Ana Joaquina de São José
Ana Maria do Coração de Jesus
Ana Joaquina de São José
Ana Maria do Coração de Jesus
Francisca Paula de Jesus
Jacinta Rosa do Socorro
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 271, Profissões ...); 272, Recebimento e despesa das esmolas certas e
incertas do Convento das Reverendas Madres Capuchas, 1725; L 273, Receita e despesa das esmolas certas e incertas do
Convento de N. S. das Mercês,1737; L 274, Receita e despesa (...), 1764; L 270, Óbitos (...); L 269, Eleições (...); AHDF,
Conv. Mercês F., L 25, Recepções(...).
com a morte da última religiosa professa à data do decreto de 28 de Maio de 1834. A situação
era grave e delicada. Era necessário agir com extrema prudência. D. Manuel Agostinho
Barreto, bispo do Funchal, achou ser conveniente que a Madre Maria Querubina do Céu
permanecesse à frente do mosteiro por três triénios consecutivos (1894 a 1903).
Quadro nº.33 - Ofícios trienais
Ano
Porteiras
1818
1819
1820
970
1823-24
1837-38
1839-40
1840-41
1842-42
1843-44
1845-46
Sacristãs
Enfermeira
Ana Luísa de São Pedro
Maria Eduarda
Maria de São José
Andreza Madalena de Santa Ana
Ana Teresa Lomelino
Luísa Raimunda
Clara Maria de São José
Ana da Piedade
Angélica Justina dos Serafins
Ana da Piedade
Hipólita Gualberta
Antónia Joana
Margarida Gertrudes
Francisca Paula
Marta de Jesus Cristo
Joaquina de Santa Rita
Andreza Madalena de Santa Ana
Jacinta Rosa do Socorro
Ana Maria do Coração de Jesus
Francisca Paula de Jesus
Andreza Madalena de Santa Ana
Antónia Angélica de Viterbo
Ana Bárbara da Piedade
Maria Marta de Jesus Cristo
Jacinta Rosa do Socorro
Maria Marta de Jesus Cristo
Maria Joana do Espírito Santo
Maria Teresa de Santo António
Delfina Ifigénia do Sacramento
Ana Bárbara da Piedade
Maria Jacinta da Encarnação
Ana Bárbara da Piedade
Maria Jacinta da Encarnação
Francisca Paula de Jesus
Delfina Ifigénia do Sacramento
Mestras de noviças
Maria Joaquina do M. Jesus
Ana Rosa do Coração de Jesus
Ana Ifigénia de Santo Elesbão
-
Maria Joana do Espírito Santo
Ana Teresa de Santo António
Maria Joana do Espírito Santo
Ana Teresa de Santo António
Jacinta Rosa do Socorro
Ana Teresa de Santo António
Provisoras
Eduarda do Triunfo
Maria Joana do Espírito Santo
Delfina Perpétua
Maria Joana do Espírito Santo
Maria Madalena do M. Carmo
Sancha Maria da SS. Trindade
Hipólita Gualberta do A.Divino
Maria. Madalena do Monte do
Carmo
Maria. Madalena do Monte do
Carmo
Antónia Angélica de Viterbo
Francisca Paula de Jesus
Francisca Paula de Jesus
Antónia Angélica
Antónia Angélica de Viterbo
Francisca Paula de Jesus
Refeitoreiras
Maria Jacinta da Encarnação
Vitória Maria
Ana Teresa de Santo António
Ana Teresa de Santo António
Maria Jacinta da Encarnação
eleita nova abadessa (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, Receita e despesa de todas as esmolas do Convento de N. S. das Mercês,
1764, fol. 115).
968
Neste caso e noutros análogos, as abadessas não governavam quatro anos: O que acontecia é que, por qualquer razão, no caso da Madre
Antónia Clara do Sacramento a ausência do prelado, a eleição era retardada por alguns meses (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269,
Eleições(...), fol. 12-13). Fora de casos como este o governo da abadessa era sempre trienal.
969
O governo foi trienal, pois que a eleição teve lugar em Janeiro de 1803 e terminou em Agosto de 1805 (ARM, Conventos, Conv. Mercês
F., L 269, Eleições(...), fol.19-20).
970
A partir de 1823, os ofícios anuais iam de Agosto a Agosto seguinte.
218
Ana Ifigénia de Santo Elesbão
Ana Ifigénia de Santo Elesbão
-
Hipólita Gualberta do A.Divino
Hipólita Gualberta do A.Divino
Maria Jacinta da Encarnação
Vitória Joaquina Piedade
Vitória Joaquina Piedade
Ana Joaquina das Merces
Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., L 25, Recepções (...); caixa 26, capilha 1, 2 e 3; ARM, Conventos, Conv. Mercês
F., L 271, Profissões (...).
À parte destes casos, jamais se permitiram dois triénios consecutivos. E, o que se
verificava com as abadessas, praticava-se normalmente com a vigária, a escrivã e os diversos
ofícios comunitários: sacristãs, porteiras, refeitoreiras, enfermeiras, mestras de noviças e
outros mais. Estes ofícios eram anuais sem carácter repetitivo, salvo quando uma razão grave
o justificasse. Todos os anos se nomeavam novas religiosas para assumir cada uma destas
responsabilidades. Os outros trabalhos, tais como, a confecção de hóstias, bordados, trabalhos
domésticos, eram distribuídos por todas com fraterna caridade.
Entre as religiosas das Mercês, que os manuscritos dos vários arquivos tantas vezes
designam humildes, virtuosas e santas, não se conheciam interesses pessoais. Cada uma
prezava o crescimento das demais e reconhecia com júbilo os dons com que o Senhor havia
enriquecido as suas Irmãs. Nestas circunstâncias as eleições processavam-se com rectidão e
uma total liberdade interior.
Esta mobilidade de cargos e ofícios exigia uma comunidade culta, bem preparada e bem
formada, para que as várias Irmãs pudessem assumir responsabilidades. A valorização
espiritual, técnica e cultural era, pois, preocupação de cada abadessa.
2.4. Evolução da comunidade
Erecto em 1667, ainda nesse século excedeu o número com que fora fundado, vinte e
uma professas, o que determinou o recurso à autoridade eclesiástica. Daí resultou um breve
que permitiu ao mosteiro a faculdade de ter vinte e quatro religiosas e receber
extranumerárias971.
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, o mosteiro teve sempre
religiosas
extranumerárias, isto é, mais do que o número estipulado, salvo aquando das leis pombalinas,
cujas consequências se sentiram entre 1777 e 1794. Vejamos o quadro:
Quadro nº.34 - Religiosas das Mercês (1752-1834)
Ref. /Dez. R. votantes T. de hábito
1752
1753
1754
1755
1756
1762
1764
1777
1778
1779
1793
1794
1795
1796
1797
1798
28
28
27
27
27
27
28
17
18
20
17
16
20
24
25
24
1
1
4
2
1
3
3
1
4
4
1
1
1
Profissões
1
1
2
2
2
4
5
4
1
1
Total972
29
30
32
31
29
28
28
20
23
25
21
21
24
29
27
26
971
AHU, Madeira, doc. 789: Petição da Madre Antónia Clara do Sacramento, Abadessa do mosteiro, sem data e doc. 842: Carta do Bispo do
Funchal de 10 de Agosto de 1788, para Martinho de Mello e Castro.
972
Neste total não estão incluídas as candidatas por insuficiência de documentação.
219
1799
1800
1802
1803
1804
1809
1810
1811
1812
1813
1814
1815
1816
1817
1823
1830
1831
1832
1833
Até 28 / 5 /
1834
25
25
24
23
26
20
21
21
23
23
24
24
25
25
24
23
22
23
23
23
2
1
4
1
2
1
1
1
1
1
1
1
1
3
1
1
2
1
4
1
2
1
1
1
1
1
1
1
2
2
28
27
25
28
30
21973
24
23
24
25
26
25
26
26
25
25
24
25
28
26
Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., L 25, Recepções (...); AHU, Madeira, doc. 261.
O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, com profunda vitalidade espiritual, não
conheceu crises vocacionais, nem tão pouco se deixou abater diante de leis desfavoráveis,
como foi a legislação pombalina no século XVII e as medidas anticongreganistas liberais no
século XIX.
É certo que a legislação pombalina de 1764974 as afectou um pouco. De facto, a partir
daquela data, o mosteiro deixou de receber noviças. Contudo, o afastamento do marquês de
Pombal e a subida ao trono de D. Maria na década de setenta, apareceu às religiosas como um
raiar da aurora. Assim, em 1777, a Madre Teresa Rosa de Jesus suplicou a Sua Majestade que
“fosse servida atender aos humildes rogos das suplicantes, permitindo-lhes a graça que
imploravam:”975 a entrada de noviças. A 20 de Agosto de 1777, a rainha autorizava a entrada
de seis noviças: “Foi a mesma soberana servida, conceder-lhes licença para aceitarem seis
noviças, no caso de se acharem seis lugares vagos, para completar o número (...) com que foi
instituído o dito convento”976, informava o ministro Martinho de Mello e Castro. Puderam,
pois, receber novas candidatas, já maduras, pois desde há alguns anos aguardavam licença de
entrada.
Quadro nº.35 - Admissões com autorização régia (1777-78)
Nome
Entrada
Idade
Procedência
D. Maria Paula Bettencourt Câmara Esmeraldo
Ana Júlia
D. Luísa Cabral da Encarnação
Ana Rosa
D. Clara Maria de Meneses
D. Maria Joaquina Bettencourt da Câmara
11/10/1777
Out./1777
6/12/1777
Fev./1778
2/9/1778
Dez./1778
26
22
27
Funchal
Câmara de Lobos
Funchal
Calheta
Porto da Cruz
Machico
Fontes: AHDF, Conv. Mercês, F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso; L 25, Recepções (...).
A comunidade rejuvenesceu. Porém, com a morte de mais alguns membros977, as
dificuldades de novo se fizeram sentir. Em 1786, a abadessa dirigiu-se uma vez mais à rainha,
explicando que no mosteiro “se acham quatro lugares vagos por falecimento de outras tantas e
as demais são todas velhas (...); seis se acham na enfermaria e as demais não podem acudir às
973
Esta descida resultou da situação político-social que a Madeira viveu de 1807 a 1814, aquando da ocupação da Ilha pelos ingleses.
AHU, Madeira, doc. 260: Ofício do bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, acerca da ordem régia que proibia a entrada
de noviças nos mosteiros de religiosas. Tem anexa a relação de todas as freiras existentes nos três mosteiros do bispado do Funchal.
975
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso.
976
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Ofício de Martinho de Mello e Castro para o Bispo do Funchal, do Palácio de
Nossa Senhora da Ajuda, de 20 de Agosto de 1777
977
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol. 2.
974
220
obrigações do convento, pelas suplicantes não terem servas e serem elas que fazem todo o
serviço do convento, de cozinhar e servir as enfermas e mais trabalhos por cuja razão só cinco
das suplicantes vão ao coro e algumas vezes menos”978. A abadessa pedia, pois, a Sua
Majestade que lhe concedesse a graça “de dar facilidade para poder encher os lugares
vagos”979. Pouco depois, com santa audácia, a Madre Antónia Clara do Sacramento suplicava:
que “daqui em diante, como for vagando algum lugar, se vá logo enchendo, de sorte que
esteja sempre completo o número das vinte e quatro”980.
D. José da Costa Torres, bispo do Funchal, encontrava-se em Lisboa, aonde fora
chamado para ser investido nas funções de conselheiro régio. Em 1787, recebeu um aviso da
rainha, pedindo-lhe que se dignasse “informar a petição da Abadessa do Convento de Nossa
Senhora das Mercês”981. O prelado sabendo aproveitar habilmente a circunstância da sua
investidura, com muita diplomacia, respondeu à soberana: “Sendo esta a primeira vez que
tenho a fortuna de exercitar o benefício (...) do conselho de Vossa Majestade, é para mim feliz
princípio começar por um negócio em que interessa o bem espiritual da minha Igreja, qual é a
conservação do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, porque ele é observantíssimo e de
singular exemplo de virtudes no meu Bispado, como atesta o público, testemunha sem
suspeita; e interessa muito que se perpetuem estes vivos exemplos de observância exacta da
Moral Cristã e perfeição Evangélica”982. E acrescentava: “faria injúria à sua bem estabelecida
reputação se não julgasse verdadeiro tudo quanto as religiosas representam a Sua Majestade”.
D. José da Costa Torres tranquilizava a rainha dizendo que nada havia a recear quanto à
sustentação do mosteiro, até porque a partir daquela data passava a estar-lhe subordinado.
Uma vez no Funchal, o prelado, depois de bem informado, em carta de 22 de Janeiro
de 1788, assim escreveu ao ministro: “Não me esquecendo do que Vossa Excelência me
recomendou a respeito da licença que a Abadessa e mais religiosas do Convento de Nossa
Senhora das Mercês desta cidade pediram a Sua Majestade, para poderem entrar nele as
freiras que faltavam ao número do mesmo Convento, fiz a averiguação necessária e achei que
têm rendimentos com que possam suficientemente sustentar-se, o que Vossa Excelência pode
assegurar a Sua Majestade, para que a mesma Senhora se digne conceder-me a liberdade de
prover os lugares vagos e os que vagarem, de sorte que o Convento tenha sempre completo o
número das freiras”983.
A julgar pelo livro de admissões ao noviciado, a resposta foi demorada, pois só em
1793 começaram a entrar novas candidatas. Em 1795 com a entrada de D. Bárbara Freitas
Esmeraldo, o mosteiro ficava com vinte e quatro religiosas, o número autorizado.
Quadro nº.36 – Admissões por autorização régia (1793-95)
Nome
Entrada
Idade
Procedência
Ana Vicência
Ana Maria de São Lúcio
Ana Jacinta Rosa Bettencourt
Andreza Madalena de Santa Ana Bettencourt
D. Perpétua Jacinta Cabral Machado
Ana Joaquina
Clara Joana
Rosa Eleutéria
D. Ana Bárbara de Freitas Esmeraldo
26/5/1793
26/5/1793
26/5/1793
26/5/1793
1795
19/2/1795
19/2/1795
27/6/1795
16/7/1795
29
28
30
21
30
23
16
Funchal
Funchal
Ponta do Sol
Ponta do Sol
Calheta
Funchal
Funchal
Funchal
Funchal
Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilla 1, docs. avulsos; L 25, Recepções (...).
978
AHU, Madeira, doc. 789.
AHU, Madeira, doc. 789.
980
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso. Como que a dar força à petição, o documento foi assinado pela abadessa, a
vigária, seis discretas e pela escrivã.
981
AHU, Madeira, doc. 788: Carta de 12 de Maio de 1787.
982
AHU, Madeira, doc. 788: Carta de 12 de Maio de 1787.
983
AHU, Madeira, doc. 803: Carta de D. José da Costa Torres para Martinho de Mello e Castro, de 22 de Janeiro de 1788.
979
221
A idade destas candidatas mostra claramente tratar-se de jovens que desde há
muito desejavam o seu ingresso na comunidade, mas que, em virtude da proibição régia,
tiveram de aguardar alguns anos. Com a facilidade concedida ao prelado da diocese do
Funchal, de prover os lugares vagos e os que vagassem, o mosteiro permaneceu sempre cheio.
Ao longo de mais de duzentos anos, não conheceu crises, não teve altos e baixos.
Quando em 1834, as leis liberais preanunciaram a morte dos mosteiros e conventos,
a comunidade era constituída por vinte e seis religiosas, das quais duas eram noviças. As
ideias do século XVIII não haviam feito nele os seus estragos. Uma comunidade estável, sem
anomalias, normalmente com as vinte e quatro religiosas que constituíam o número
autorizado e algumas extranumerárias. Era o fruto da fidelidade ao carisma próprio.
Para o período compreendido entre 1834 e 1910, escasseiam as fontes. Aquelas de que
dispomos permitem-nos detectar uma média de dezoito religiosas em cada ano, portanto, mais
de dois terços do que era habitual, às quais devemos juntar as candidatas ao noviciado.
222
CAPITULO IV
AO SERVIÇO DO MOSTEIRO
1. Serviço religioso
1.1. O capelão e o sacristão
Segundo a Regra de Santa Clara e as Constituições que as religiosas das Mercês
observavam, o capelão devia ser um homem de virtude e de santidade para que pudesse ser
auxílio espiritual eficaz.
Desde a fundação do mosteiro, a capelania esteve vinculada à colegiada da igreja
de S. Pedro, matriz da paróquia a que as religiosas pertenciam. Daí que os seus capelães
estivessem ligados e dependentes da referida colegiada.
Segundo o instrumento de fundação, o capelão, bem como o confessor, feitor e
servente, eram nomeados pelo padroeiro, embora carecessem da aprovação do prelado da
diocese984. Contudo, com os anos, o mosteiro, subtraindo-se à tutela dos padroeiros, foi
ganhando autonomia espiritual. Desta forma conseguiram as religiosas ter ao seu serviço
eclesiásticos competentes e virtuosos. Por alvará de 15 de Agosto de 1818 “o Senhor Dom
João 6º (...) ordenou que um dos beneficiados da Colegiada de São Pedro fosse Capelão das
religiosas”985. Segundo o mesmo alvará o beneficiado investido na capelania do mosteiro
ficaria jubilado, isto é, aposentado em todo o tempo que estivesse ao serviço do mosteiro.
Quando em 1834 o P. Filipe, por sobreposição de trabalhos, ficou impedido de
celebrar na capela de Nossa Senhora das Mercês, o cabido passou uma carta de capelão ao
beneficiado António Luiz Teixeira986, que logo começou a exercer as suas funções. A Madre
Ifigénia de Santo Elesbão apressou-se a impetrar do monarca em favor deste sacerdote,
“recomendável pelas suas cãs”,987 a concessão “de um benefício na colegiada de S. Pedro
(...)”988. Como consequência, a 11 de Abril de 1835, foi passado em favor do referido capelão
“um Provimento (...) na Colegiada de Machico”989, onde havia uma vaga por morte do P.
Nicolau João de Carvalho.
O capelão presidia a toda a liturgia, assumia a celebração das missas de obrigação,
como era a missa conventual, missas e ofícios pelos benfeitores e religiosas falecidas,
orientava as novenas, trezenas e outras devoções. A pedido da abadessa, podia entrar na
clausura para prestar assistência religiosa às doentes990 e, se para tanto estivesse autorizado
pelo prelado ou seu legítimo representante, podia assinar as contas anuais do mosteiro, como
se verificou com o P. Xavier de Noronha na primeira metade do século XVIII991.
Para auxiliar o capelão nas cerimónias religiosas e celebrações litúrgicas, havia sempre
um sacristão de nomeação episcopal. Era normalmente um seminarista com ordens menores
que, sendo pobre, encontrava no desempenho dessa função o auxílio material de que carecia.
Por esta razão, o prelado passava carta de sacristão a jovens seminaristas, como aconteceu na
984
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 9.
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Súplica da Madre Ana Ifigénia de Santo Elesbão para o governador do bispado
de 1835.
986
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Provisão do Cabido do Funchal, de 4 de Julho de 1834.
987
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Súplica da Madre Ana Ifigénia de Santo Elesbão para o governador do bispado
de 1835. O benefício, cargo eclesiástico na Sé, a que estava ligada uma pensão régia, de que gozava o P. António Luís Teixeira, havia sido
usurpado.
988
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Súplica da Madre Ana Ifigénia (...) de 1835.
989
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Provisão de 11 de abril de 1835.
990
RCL, XII, 10, in FF II, p. 62; AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, docs. avulso: Súplica da Madre Ana Efigénia de Santo
Elesbão de 1857 ou 1858, para o Núncio Apostólico em Lisboa e Carta do Núncio para o bispo do Funchal de 25 de Setembro de 1858.
991
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, Receita e despesa (...), fols. 12, 13, 16 e 17.
985
223
primeira metade do século XIX com Feliciano Augusto Gomes, Francisco de Assis Pimenta,
de 22 anos, natural da freguesia da Sé do Funchal, que em 1847 frequentava as aulas de
gramática e cantochão no seminário episcopal; com José Gonçalves d’Aguiar, Fernando
Augusto de Pontes em 1858 e Ricardo Augusto de Sequeira, António Pereira, João do
Espírito Santo, na segunda metade do mesmo século992.
O sacristão do mosteiro usufruía de uma pensão régia: “haverá por mantimento a
côngrua que Sua Majestade lhe concede”993, que na segunda metade do século XIX tinha o
valor de 30.600 réis anuais, com isenção “de selo e de direitos de mercê, em virtude da carta
de lei de 23 de Abril de 1866”994.
Ao prelado da diocese cabia o direito de passar a carta de sacristão, a quem fosse
julgado digno e tivesse necessidade desta mercê. A carta tinha a duração de um ano, podendo,
não obstante, ser renovada como acontecia geralmente.
1.2. O confessor
Para orientação espiritual de cada religiosa o mosteiro tinha os seus confessores.
O instrumento de fundação de 1665 dava aos padroeiros o direito de nomearem os
confessores das religiosas995. O capitão Gaspar Berenguer de Andrade pediu a aprovação
episcopal, como confessor do mosteiro, para seu irmão Agostinho César Berenguer que,
depois de alguns anos de trabalho no Brasil, regressara à Madeira. Em 1686, ano em que o
fundador redigiu o seu testamento, ainda o P. Agostinho César era confessor das religiosas.
Queria o fundador que sempre dessem importância aos seus conselhos “porque o meu irmão
(...) foi o que me ajudou a criar o dito Convento e foi sempre e é confessor das religiosas dele
enquanto for vivo”996.
Aconteceu, porém, que, as religiosas, após a morte do fundador em 1691, chamaram a
si o direito de escolha do confessor. A partir de então, cabia à abadessa, após consulta feita à
comunidade, o direito e a obrigação de apresentá-lo à aprovação da autoridade eclesiástica997.
Quando em 1816 faleceu o P. João Andrade, desde há muito confessor ordinário das
religiosas, a Madre Maria Clara de São José, então abadessa, dirigiu-se ao prelado, pedindo
que lhes desse “por confessor desta comunidade o Reverendo P. Matias Jorge Jardim”998.
Alegava como razão desta opção comunitária as suas extraordinárias qualidades, “a sua
estimável conduta e tudo o que é preciso e se requer para exercitar um ministério de tanta
consequência, porque confessa aqui neste convento há trinta e seis anos, e, por isso, estamos
bem cientes do seu procedimento”. O P. Matias Jorge Jardim que, embora não sendo
confessor ordinário, desde há muito confessava no mosteiro, era realmente pessoa virtuosa.
Daí a insistência da abadessa junto do bispo da diocese. Diante da resposta favorável, a
abadessa pediu a sua confirmação como confessor ordinário, que obteve a 31 do mesmo
mês999.
992
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, docs. avulsos: Súplica de Francisco de Assis Pimenta de 1847; carta de sacristão de
Fernando Augusto de Pontes, dada no Funchal a 14 de Outubro de 1859; carta de Ricardo Augusto de Sequeira de 15 de Outubro de 1861 e
outras.
993
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, docs. avulsos: Cartas de sacristão de 14 de Outubro de 1859, de 15 de Outubro de 1861, de
30 de Junho de 1868 e 3 de Julho de 1876.
994
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, docs. avulsos: Cartas de sacristão de 14 de Outubro de 1859, de 15 de Outubro de 1861, de
30 de Junho de 1868 e 3 de Julho de 1876.
995
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 9.
996
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268: fol. 9: Testamento de (...), feito a 21 de Dezembro de 1686; Noronha, op. cit., p.286.
997
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 31-32: Constituições (...); RCL, III, 12, in FF II, p. 49.
998
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Carta da Madre Clara Maria de São José, para o Vigário Apostólico de 28 de
Julho de 1816.
999
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Súplica da Madre Clara Maria de São José de 30 de Julho de 1816. Esta carta
contêm à margem a confirmação dada a 31 do mesmo mês.
224
Nas primeiras décadas do século XIX, período revolto de lutas civis entre os
partidários de D. Pedro e os de D. Miguel, o bispo do Funchal, D. Francisco José Rodrigues
de Andrade, porque não soube ou não pôde manter-se numa situação de imparcialidade, teve
de exilar-se em Génova.
Na Madeira, era então grande a tensão religiosa. O médico escocês Robert Kalley,
calvinista exaltado, dotado de grande capacidade dialéctica e fazendo uma pertinaz
propaganda, ocasionava lutas e desinteligências entre católicos e protestantes. Não foi, porém,
tão sugestiva e convincente a força da sua oratória que fizesse adeptos capazes de subtraí-lo à
ira e violência do povo que, sublevando-se por mais de uma vez, chegou a incendiar-lhe a
residência do Vale Formoso e a obrigá-lo, por fim, a embarcar clandestinamente, vestido de
mulher, fugindo à perseguição que lhe moviam1000.
A divergência de ideias, simultaneamente políticas e religiosas e a consequente
inquietação que se vivia na Ilha, teve os seus reflexos no interior das casas religiosas. Alguns
sacerdotes iam sendo apelidados de cismáticos. Era grande a confusão.
Em 1837 ou 1838, a Madre Ana Maria do Coração de Jesus, abadessa do mosteiro,
preocupada com o que acontecia, solicitou de Gregório XVI, por intermédio do Núncio
Apostólico em Lisboa, a graça de “terem um ou mais confessores ordinários e extraordinários
aprovados pelo seu bispo ou de quem legitimamente faça as suas vezes, pela sua vontade, pois
que detestam receber os sacramentos (...) com os cismáticos que hoje tanto afligem a Igreja
Lusitana”.1001 Na preocupação das religiosas, que pretendem “confirmar cada vez mais o seu
santo e firme propósito de viverem e morrerem na comunhão da Santa Igreja Católica (...) e
encontrar conforto (...) por tantas desgraças e escândalos que as circundam e atemorizam”1002,
pode ler-se a gravidade da situação.
O breve papal de 5 de Março de 18381003, deu ao prelado do Funchal, exilado em
Génova, como acima dissemos, as faculdades de providenciar ao que era solicitado pelas
religiosas das Mercês. A 30 desse mesmo mês, D. Francisco José Rodrigues de Andrade
solucionou o problema que lhe foi apresentado: “Usando das faculdades que pela Santa Sé
Apostólica nos foram concedidas no Breve junto e atendendo à súplica da Reverenda Madre
Abadessa e Religiosas do Convento de Nossa Senhora das Mercês do Bispado do Funchal,
sujeitas à nossa jurisdição, como legítimo Pastor que somos da mesma Diocese (...) e às
circunstâncias difíceis em que se acha a nossa Diocese, concedemos faculdade a todos os
Reverendos Sacerdotes que se achem por nós aprovados no tempo em que, pelas tristes
circunstâncias, fomos obrigados a deixar a residência do nosso Bispado, para que possam
confessar as Reverendas Religiosas (...), aos quais delegamos todas as faculdades necessárias
(...), enquanto durar o cisma”1004. Com esta resposta passaram as religiosas a fazer a escolha
dos confessores que, no entanto, carecia do assentimento e aprovação da abadessa.
Em circunstâncias normais, quando terminava o tempo da autorização do confessor, a
comunidade podia pedir ao prelado da diocese a sua reconfirmação, como aconteceu em 1839
com o P. Gregório Taumaturgo da Silva1005, ou solicitar outro.
O confessor, como aliás o capelão, podia entrar na enfermaria para dar o necessário
acompanhamento espiritual às religiosas doentes. Podia também, a convite do prelado, tomar
parte no Capítulo Electivo das abadessas, como testemunha e escrutinador. Por delegação do
mesmo, o confessor podia estar presente no capítulo em que a nova abadessa, “d’acordo com
1000
Ilhas de Zargo, II , p. 453.
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta da Abadessa e Freiras Capuchas do mosteiro de N. S. das Mercês da
Cidade do Funchal, da Ilha da Madeira, para Sua Santidade, o Papa Gregório XVI.
1002
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta da Abadessa e Freiras Capuchas (...) .
1003
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Breve de Sua Santidade de 5 de Março de 1838.
1004
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta do prelado do Funchal, dada em Génova a 30 de Março de 1838.
1005
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta da Madre Ana Ifigénia de Santo Elesbão para o vigário apostólico do
Funchal, de 30 de Setembro de 1839.
1001
225
(...) a vigária, fizesse a nomeação dos outros cargos do Convento”1006. No mosteiro de Nossa
Senhora das Mercês houve sempre o cuidado de ter confessores marcados pela santidade. O P.
António Gomes Neto, sacerdote culto, digno e austero, quando em 1847 foi nomeado
confessor do mosteiro, afirmou que as religiosas das Mercês nunca haviam precisado de
reforma, e dava como razão “que até àquela data tiveram as freiras capuchas sempre os
melhores eclesiásticos da Madeira por confessores, conhecidos pelas suas virtudes e
integridade de vida, distinguindo-se entre os demais o P. Matias Jorge Jardim, natural de São
Jorge, onde morreu com fama de santo, o cónego António José de Vasconcelos e o P.
Gregório Taumaturgo da Silva”1007.
Ao P. Neto, que por muitos anos foi confessor e síndico do mosteiro, sucedeu
Monsenhor Monteiro, “alma feita de bondade cativante e de lhaneza evangélica”1008.
2. Serviço administrativo – Os síndicos
Para zelar e defender os interesses de ordem material e económica, havia nas
comunidades religiosas um procurador ou síndico.
No mosteiro de Nossa Senhora das Mercês para o exercício destas funções, que
inicialmente eram assumidas somente por um membro, passou-se no século XVIII para uma
comissão de três ou mais membros, um dos quais era sempre clérigo. Deveriam ser dignos,
dedicados e honestos, capazes de defender os interesses do mosteiro com rectidão e zelo.
Competia-lhes receber as esmolas certas, sendo também portadores de algumas incertas, isto
é, feitas espontaneamente. Eram eles que apoiavam a comunidade nas suas
carências,1009deixando as religiosas disponíveis para a oração.
Em meados do século XVIII, o cónego Dr. António Mendes de Almeida, reitor do
colégio de S. João Evangelista, no Funchal, foi síndico muito zeloso e totalmente doado ao
bem da comunidade1010.
Como comissão administrativa que eram, os síndicos, na década de quarenta do século
XIX, puseram uma acção judiciária contra a padroeira D. Ana Cândida Correia Berenguer
Atouguia Neto, por falta de pagamento das pensões devidas ao mosteiro, “desde 1844 a 1847
e seguintes, obtiveram uma sentença favorável ao Convento”1011. A ré foi condenada “a pagar
20.000 réis mensais desde Maio de 1844 até esta parte”1012. A 8 de Agosto de 1849, os réus, a
padroeira e os herdeiros, apelaram da sentença para o Tribunal de Relação, de que resultou
um acórdão favorável às religiosas com a data de 2 de Julho de 18501013, a que já fizemos
referência ao tratar do padroado. “Depois de seguidos todos os termos do processo e de
seguir-se a execução nos bens dos réus fez-se a escritura da transacção entre os síndicos
administradores e Augusto Pinto de Morais Sarmento e seus filhos, como herdeiros legatários
de D. Ana Cândida Correia”1014.
Quadro nº.37- Comissão administrativa (1847-1859)
Provisão
episcopal
Nome dos síndicos
Motivo da
substituição
? - 1847
1006
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269, Eleições (...),fol. 53 e 53v: Acta da eleição da Madre Maria Querubina do Céu de25 de
Outubro de 1900.
“O Convento das Mercês,” Correio da Madeira, Funchal, 5 de Março de 1927.
1008
“O Convento das Mercês,” Correio da Madeira, Funchal, 5 de Março de 1927.
1009
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, Receitas e despesas (...), fols. 62, 145, 157, 160, 164, 189, 192, 204 e outros.
1010
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, Receitas e despesas (...), fol.50v.
1011
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 94: Sentença do Funchal de 28 de Julho de 1849, em que foi condenada D. Ana Cândida e
Augusto Pinto de Moraes Sarmento e seus filhos, como herdeiros legatários de D. Ana Correia.
1012
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 94 e 94v: Sentença do Funchal de 28 de Julho de 1849, (...).
1013
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 94v: Sentença do Funchal de 28 de Julho de 1849, (...).
1014
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 94v: Sentença do Funchal de 28 de Julho de 1849, (...).
1007
226
-
29/5/1847
18/5/1859
P. Joaquim Gonçalves de Andrade
Morgado Pedro Agostinho Teixeira Vasconcelos
Dr. José Julião de França Vasconcelos
1847 - 1858
P. António Gomes Neto
Tenente Coronel Luís Agostinho de Figueiroa
Dr. José Julião de França Vasconcelos
1859 - ?
P. António Gomes Neto
Tenente Coronel Luís Agostinho de Figueiroa
Roberto Leal
Ausência
Morte
Morte
Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilla 3, doc. avulso: Provisões
Episcopais de 29 de Maio de 1847 e de 18 de Maio de 1859.
A comissão administrativa do mosteiro, dada a importância das suas funções, não
era vitalícia, mas renovável sempre que necessário. Em 1847 era constituída pelo P. Joaquim
Gonçalves de Andrade, o morgado Pedro Agostinho Teixeira e o Dr. José França
Vasconcelos. Nesse ano, por provisão episcopal de 29 de Maio, fez-se uma nova
reestruturação da comissão, pois que faltavam dois membros: o morgado Pedro Agostinho
Teixeira de Vasconcelos, que havia falecido, e o P. Joaquim Gonçalves de Andrade que
estava ausente. Por isso, “atendendo às qualidades e merecimento do Tenente Coronel Luís
Agostinho de Figueiroa e do Reverendo P. António Gomes Neto, confessor do Convento,
havemos por bem nomeá-los (...) síndicos do Convento”1015. Associando estes dois novos
membros ao Dr. José Julião de França Vasconcelos, esperava o prelado “que tão beneméritos
cidadãos (exerceriam) este caridoso serviço com a melhor vontade a favor daquela casa”1016.
Por morte do Dr. José Julião de França Vasconcelos, D. Frei Patrício Xavier de
Moura, a 18 de Maio de 1859 solicitou a colaboração de Roberto Leal, negociante do
Funchal, que, pelas suas qualidades e muita honestidade, merecia a confiança do bispo da
diocese1017.
3. Pessoal trabalhador
3.1. O moço de fora
A comunidade do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, na sua opção pela pobreza
evangélica e segundo o carisma de Santa Clara, trabalhava. Contrariamente ao que era
habitual nas casas religiosas da época, jamais as religiosas tiveram criadas, como se lê em
manuscritos diversos1018.O trabalho era para elas uma graça, um dom, uma forma de
subsistência e, à luz da época, uma expressão de pobreza.
De facto, a comunidade apenas tinha ao seu serviço, de forma permanente, “um moço
ou servente de fora”1019, que lhe prestava valiosos serviços. Este moço era alvo de fraternas
atenções e cuidados por parte das religiosas, que o vestiam, calçavam e tratavam com delicada
caridade quando estava fraco ou doente. Possivelmente, o primeiro moço ao serviço das
religiosas foi Pedro Homem Baço, a quem o cónego Bartolomeu César Berenguer deu
alforria, “pela fidelidade com que sempre nos serviu e às Reverendas Capuchas”1020.
1015
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Provisão Episcopal de 1847.
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Provisão Episcopal de 1847.
1017
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Provisão Episcopal de 18 de Maio de 1859.
1018
AHU, Madeira, doc. 261: Ofício do bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Torres, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
de 26 de Agosto de 1764; e doc. 842 : Ofício de D. José da Costa Torres, bispo do Funchal, para o ministro Martinho de Mello e Castro, de
10 de Agosto de 1788; AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Petição da Madre Clara do Sacramento, Abadessa, para
Sua Majestade. Esta carta não está datada, mas será, sem dúvida, dos princípios de 1777.
1019
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 7v, 9, 10v, 11v e outros.
1020
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 82v: Testamento do Cónego Bartolomeu César Berenguer (...).
1016
227
Nos livros de receitas e despesas há muitas referências às compras de tudo o que era
necessário ao moço Roque, ao moço Manuel Caldeira e outros: chapéu, meias, sapatos e,
sobretudo, botas que eram consertadas com frequência1021. Para eles e alguns ajudantes,
comprava-se com frequência carne de vaca1022, faziam-se bolos e preparava-se cuscuz em
abundância.
3.2. Os assalariados
No século XVIII, particularmente na segunda metade, com a diminuição do número de
religiosas, como consequência das leis pombalinas, a comunidade teve necessidade de
recorrer temporariamente a assalariados.
Os livros de contas registam os serviços prestados por uma lavadeira e por vezes duas,
que cuidavam da roupa do moço e dos servos que o auxiliavam, e dos oficiais, que prestavam
serviços na horta, corte e arrumo da lenha e giesta necessárias à cozinha, fornos e ao fogareiro
das hóstias1023. Aquelas senhoras prestavam serviços ao mosteiro não de forma permanente,
mas em certas ocasiões em que havia legítima necessidade.
Em certas épocas do ano, em que o moço não era suficiente, recorria-se a pessoal
trabalhador, que os livros designam servos. A despesa que o mosteiro fazia com eles, pouco
significativa até meados do século XVIII, passou, na segunda metade do mesmo século, para
a ordem dos quarenta, sessenta e setenta mil réis, conforme podemos ver em Vida económica
do mosteiro, quadro 48.
Para reparações da bomba, da levada, dos fornos, dos telhados, do caldeirão e outras
mais, chamavam-se serventes competentes, geralmente certos1024. Para trabalhos mais
especializados recorria-se a pintores, pedreiros, carpinteiros e outros profissionais.
No mosteiro gastava-se muita lenha e giesta, que era necessário transportar da
montanha. Para estas tarefas, aliás muito frequentes, as religiosas recorriam a quem
dispusesse de tracção animal. A lenha e giesta, que vinha de diferentes lugares da serra1025,
consumia-se na cozinha da comunidade e da enfermaria, bem como no forno do pão. No
fogareiro de confecção de hóstias gastava-se sempre giesta1026. Para os carretos mais pesados
recorria-se a boieiros, que faziam chegar ao mosteiro carretos de trigo1027 e ofertas enviadas
de Lisboa1028.
CAPÍTULO V
ESPIRITUALIDADE E CULTURA
1. Espiritualidade
1.1. Encanto contemplativo, silêncio e ascese
1021
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols.157, 158, 160, 161v, 162, 163, 164, 164v, 165, 166, 167, 168v, 202v, 204v e outros.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 16, 41, 42, 43, 54, 58; L 274, fols. 157, 159, 160, 160v, 161, 161v, 162, 164, 164v, 165,
165v, 166v, 167, 168, 168v, 169 e muitos outros.
1023
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 113, 166v, 176v, 195, 224v; L 247, fols. 42, 157v, 158, 158v, 160, 164v, 165v, 169v e
outros mais.
1024
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 10; L 274, fols. 167, 191 e outros.
1025
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 10 e outros; L 273, fols. 14, 15, 16, 41, 42, 54 e outros; L 247, fols. 20v, 42v, 136, 156,
157, 160, 162, 162v, 164, 164v, 165, 166, 169 e muitos outros.
1026
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 20v, 42v, 136 e outros.
1027
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 157, 198v e outros.
1028
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 136, 203, 204v e outros.
1022
228
A experiência do encanto por Cristo, feita por Francisco e Clara de Assis, viviam-na as
religiosas das Mercês com amor e júbilo. Chamadas ao mosteiro por inspiração divina,
exultavam de felicidade e gratidão diante das mercês do Senhor e louvavam-no por todos os
homens e por todas as criaturas. Deste contacto íntimo com Deus brotava a alegria e a
felicidade que em todas transpareciam. Para as Irmãs das Mercês, a vida contemplativa, misto
de oração, de retiro, imolação e de trabalho, implicava o assumir as alegrias, êxitos,
preocupações, dores e esperanças da humanidade para delas falar a Deus. Naquele humilde
mosteiro rezava-se. Rezava-se por um mundo melhor, por uma sociedade nova, cheia de
amor, de paz e de esperança.
As religiosas das Mercês sabiam que a contemplação é uma oração silenciosa que se
faz no recolhimento do coração e na paz. Sabiam também que a clausura não gera
automaticamente a contemplação; simplesmente a ajuda, isto é, faculta um conjunto de
condições que a favorecem, uma das quais o silêncio. Porém, como o silêncio não era um fim
em si mesmo, mas simplesmente uma necessidade pedida pelo coração para estar a sós com
Deus, ele podia moderar-se sempre que o amor fraterno o exigisse. Assim, as religiosas das
Mercês, conforme o mandato da sua fundadora, “podiam sempre e em qualquer lugar
comunicar o que fosse necessário, porém, em voz baixa e em poucas palavras”1029. Na
enfermaria as religiosas podiam falar sempre, embora “de maneira discreta, para consolação e
serviço das irmãs enfermas”1030. Em certos lugares, igreja, coro, dormitório e durante a noite,
o silêncio devia ser maior para que todas pudessem orar ou descansar sem dificuldade, como
pedia a caridade fraterna1031. Algumas Irmãs tiveram particular apreço pelo silêncio. Segundo
Noronha, a Madre Inês de Jesus, uma das primeiras religiosas do mosteiro, como
consequência da sua grande intimidade com Deus, gostava de viver recolhida e silenciosa1032.
No século XIX, entre outras religiosas que prezaram o recolhimento com Deus, podemos
mencionar a Madre Ana Maria de Santo Elesbão, que tinha um verdadeiro culto pelo silêncio.
Sabemos que todo o ser humano é frágil e limitado. As religiosas das Mercês sentiam
em si essa realidade. Noronha ao falar das suas virtudes, refere também limitações e
temperamentos difíceis que exigiam vigilância. A Madre Catarina da Paixão, por exemplo,
tinha “um génio áspero” que, no entanto, procurava dominar. Contudo, as noviças sofriam um
pouco com a sua forma de ser1033. Também a Madre Isabel Francisca de São José era dotada
de “génio altivo” e, enquanto jovem, tinha uma grande tendência para se comprazer nos
próprios dons1034. De quanto esforço e atenção careciam estas religiosas para que o seu
relacionamento com as demais fosse marcado pela bondade e pela paz!?... Esta conversão de
cada dia exigia humildade, renúncia, espírito de sacrifício, consciência dos próprios limites.
Sem esta ascese jamais poderiam ser almas de oração e percorrer o caminho que leva à
contemplação de Deus.
As pequenas notícias biográficas, inseridas no Livro de Óbitos do mosteiro, falam-nos
da prática da paciência, obediência, caridade e outras virtudes. A mesma fonte, bem como
Noronha, referem o espírito de sacrifício, os jejuns, as abstinências e as mortificações
voluntárias, que o amor de cada uma lhes ditava. Podemos mencionar religiosas dotadas deste
espírito de renúncia e sacrifício: Isabel de Jesus, Catarina da Paixão, Joana de Santo António,
Brites da Paixão, Catarina de Sena, Jacinta Rosa do Socorro, Ana Ifigénia de Santo Elesbão,
Maria Jacinta da Encarnação, Jerónima Cândida do Coração Imaculado de Maria e muitas
outras1035.
1029
RCL, V, 4, in FF II, p. 51.
RCL, V, 3, in FF II, p. 51.
1031
RCL, V, 2, in FF II, p. 51.
1032
Noronha, op. cit., p. 285-286.
1033
Noronha, op. cit., p. 289.
1034
Noronha, op. cit., p. 293.
1035
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos, fols.3-9; Noronha, op. cit., pp. 288-298.
1030
229
A Regra de Santa Clara não prescrevia a abstinência mas somente o jejum, do qual a
abadessa podia dispensar “as mais jovens, doentes e fracas”1036, em atitude de fraterna
caridade. Segundo as Constituições, as religiosas faziam uma refeição principal, o almoço,
podendo ter mais duas refeições ligeiras: pequeno almoço e jantar. Porém, em virtude da
legislação da Igreja posterior à Regra, deviam “abster-se sempre de carne,”1037. No final do
século XVIII, tendo em conta a idade avançada de algumas religiosas e a falta de saúde de
outras, a Igreja, sempre atenta e benevolente, a 12 de Dezembro de 1794 permitiu que a
comunidade fosse dispensada da abstinência três vezes por semana1038. Houve religiosas que,
mesmo doentes, gostavam de manter-se dentro de um regime de austeridade. Conta-se que,
estando a Madre Brites da Paixão muito fraca e doente, houve ordem médica para que lhe
fosse servida carne. Diante da resistência da religiosa, o médico cedeu, mas deu instruções à
enfermeira para que no caldo de grão, que a Madre alegava surtir o mesmo efeito, deitasse
carne. A Madre melhorou. Assim, quando o médico voltou ao mosteiro, disse-lhe com graça:
“Então meu doutor não tenho passado bem sem a carne?... Sim, minha Madre, mas a verdade
Deus a sabe”1039, respondeu o médico.
1.2. Oração litúrgica e comunitária: missa e ofício divino
A ocupação, por excelência, das religiosas das Mercês era a oração, força geradora da
união com Deus, de paz e de alegria. A sua vida de comunhão com o Senhor centrava-se em
duas formas de oração eclesial e litúrgica: a missa e o ofício divino. Para presidir a estas
celebrações, o mosteiro tinha um capelão aprovado pelo prelado e sempre assistido por um
sacristão. Além da missa conventual, em que todas as religiosas tomavam parte, celebravamse missas cantadas ou rezadas pelos benfeitores defuntos e religiosas.
37. Breviarium Romano-Seraphicum. Era por breviários com este que as religiosas rezavam o ofício divino. Este
exemplar, que as Irmãs Clarissas do Mosteiro de Santo António guardam com apreço, pertenceu à Madre Virgínia
Brites da Paixão. Reprodução de Carlos Fotógrafo.
Nas grandes solenidades, Páscoa, Natal, Todos os Santos, Ano Novo, Epifania, festas
de Santa Clara e de São Francisco, Nossa Senhora da Assunção, das Mercês, Imaculada
Conceição e outras, a capela decorava-se com as mais belas flores, quase sempre oferecidas
por pessoas amigas. Os sacerdotes revestiam-se dos melhores paramentos. Tudo tomava ar
festivo. Nos cânticos, cuidadosamente seleccionados e preparados para a ocorrência, as
religiosas empenhavam todos os seus dons musicais e vibração interior. A população
circunvizinha gostava de participar nas liturgias da capela do mosteiro, pela grande devoção
que tinham a Nossa Senhora das Mercês e também pela consideração em que as religiosas
eram tidas. Na segunda metade do século XIX, quando as celebrações religiosas nos
mosteiros de Santa Clara e de Nossa Senhora da Encarnação, pela decadência em que se
encontravam, começaram a perder a solenidade costumada, a afluência à capela das Mercês
tornou-se maior.
A celebração eucarística era o centro da vida espiritual das religiosas. Noronha,
falando da comunidade, refere algumas Irmãs que assistiam à missa com visível devoção.
Entre elas a Madre Isabel Francisca de São José, filha do morgado e padroeiro José de França
1036
RCL, III,10 e 11, in FF II, p.48.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 30v: Constituições (...).
1038
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 1, doc. avulso: Permissão para as freiras poderem comer carne três vezes por
semana, da Congregação dos Bispos e Regulares, de 12 de Dezembro de 1794.
1039
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia sobre a Madre Brites da
Paixão.
1037
230
Berenguer de Andrade, que “assistia sempre ao sacrifício da missa com tão devota atenção,
que nela lhe comunicava o Senhor particulares favores”1040. Embora na época não fosse
permitida a comunhão quotidiana, as religiosas das Mercês, herdeiras do amor eucarístico tão
profundo em Santa Clara de Assis, comungavam com grande devoção todas as vezes que lhes
era permitido.
O ofício divino era assumido pelas religiosas em nome da Igreja como a expressão de
louvor a Deus e de intercessão pela humanidade. O ofício quotidiano, bem como o ofício dos
defuntos, sempre em latim, podia ser cantado ou rezado. As diversas horas canónicas estavam
distribuídas ao longo das vinte e quatro horas: Matinas à meia-noite, Laudes pelas seis horas,
Tércia, Sexta e Noa, às nove, doze e quinze horas, respectivamente, Vésperas às dezoito horas
e Completas, a oração de despedida, às vinte e uma horas. O ofício celebrava-se com
dignidade e a maior solenidade possível e sempre com a presença de toda a comunidade. As
Constituições exortavam as religiosas a prepararem-se para as horas canónicas, bem como
para a missa, “em silêncio e em paz”, e acentuavam que “com a excepção das enfermas (e
daquelas que) por ordenação da abadessa ou vigária, devam executar, naquela hora, um
serviço comunitário”1041, todas deviam estar presentes. E todas tinham esse cuidado. Noronha,
referindo a pontualidade e fervor da Madre Joana de Santo António diz: “jamais houve
ocupação, ainda que estando na cozinha, que a privasse de assistir aos ofícios divinos”1042.
Para solenizar esta oração eclesial, havia no coro um violoncelo, ou seja, “um rabecão
pequeno com a respectiva caixa e um descanso de madeira”1043. As Memórias Seculares e
Eclesiásticas referem a perfeição e o fervor que as religiosas punham nesta oração eclesial.
Entre as demais salientam as Madres Catarina da Paixão e Joana de Santo António
“perfeitíssimas e sempre pontuais”1044.
Diante das exigências que o ofício divino punha às religiosas – conhecimento do latim
e música sacra – no início da vida do mosteiro, nem todas as noviças faziam profissão como
coristas. Quando, um ano após o início da clausura, professaram as dezassete senhoras que se
encontravam desde há alguns anos no recolhimento de Nossa Senhora das Mercês, pelo
menos duas delas, já de certa idade, as Madres Inês de Jesus e Catarina do Monte Sinai, não
puderam professar como coristas, mas “para leigas, por não saberem ler”1045. Posteriormente,
esta situação teria cessado, pois que, quando em 1818 a comunidade não admitiu à profissão a
noviça Úrsula Rita por não ver nela autêntica vocação, salientava-se também outra razão:
“não saber ler, condição necessária para (...) o Ofício Divino”1046. Foi, pois, convidada a
regressar à casa paterna “por não haver naquela comunidade religiosas leigas em que possa
ser admitida”1047.
1.3. Culto eucarístico e adoração do Santíssimo Sacramento
Santa Clara de Assis, no seguimento do IV Concílio de Latrão e sob a orientação de
São Francisco de Assis, desenvolveu no mosteiro de São Damião, a espiritualidade
eucarística, sendo aquela comunidade pioneira na adoração eucarística. A comunidade das
Mercês herdou o amor à Eucaristia, o culto do Santíssimo Sacramento, dos seus fundadores.
O seu amor a Cristo na Eucaristia foi admirável. O Livro de Óbitos do mosteiro, bem como as
1040
Noronha, op. cit., p. 295.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 29v-30: Constituições (...).
1042
Noronha, op. cit., p. 291.
1043
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, docs. avulsos: Inventário do mosteiro de N. S. das Mercês, sem data e
Inventário do mosteiro de N. S. das Mercês de 6 de Novembro de 1895, cópia parcial do primeiro. Veja-se a nota 66, p. 268.
1044
Noronha, op. cit., pp. 289 e 291.
1045
Noronha, op. cit., pp. 286 e 292.
1046
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso.
1047
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso.
1041
231
Memórias Seculares e Eclesiásticas, referem o seu amor e reverência pela Eucaristia. Entre as
religiosas mais devotas do Santíssimo Sacramento, podemos mencionar as Madres: Catarina
de Sena, Jacinta Rosa do Socorro, Brites da Paixão, Ana Ifigénia, Maria Madalena do Monte
do Carmo, Jerónima Cândida do Imaculado Coração de Maria, Rosa do Sacramento, Antónia
Maria da Cruz e Virgínia Brites da Paixão1048.
Às quintas-feiras algumas religiosas gostavam de rezar, quando lhes era possível, o
ofício da festa de Corpus Christi. Até as pupilas iam assimilando esta devoção. Noronha
refere que a pupila Maria de São José, “devotíssima do Santíssimo Sacramento, sendo falta de
vista, todas as quintas-feiras rezava o ofício da festa de Corpus Christi e gastava noites
inteiras no coro em oração”1049.
Os dois inventários de 1895 mencionam “uma custódia de prata dourada, lavrada,
pesando 2524 gramas, no valor de 75.720 réis”1050, que servia para a exposição do Santíssimo
Sacramento, certamente ocupando lugar no camarim da capela1051.
1.4. Devoções
Para além da oração comunitária, as religiosas procuravam viver as devoções próprias
da sua Ordem, bem como outras que, ao longo dos tempos, a Igreja foi aconselhando. A viasacra, que permitia o aprofundamento da meditação do mistério da Redenção, uma devoção
caracteristicamente franciscana, foi prática espiritual que o mosteiro de Nossa Senhora das
Mercês conservou ao longo dos séculos. Houve religiosas particularmente sensíveis à Paixão
de Cristo, que concentraram a sua atenção na contemplação do mistério redentor. Entre outras
mencionamos: Catarina da Paixão, Catarina de Sena, Vitória Joaquina da Piedade, Brites da
Paixão, Jerónima Cândida, e Virgínia Brites da Paixão1052. Na enfermaria não faltava a viasacra, com quinze quadros,1053 representando o último, como vitória sobre a morte, a
ressurreição do Senhor. As doentinhas, se ainda o podiam, gostavam de percorrer a via-sacra,
meditando no grande amor de Jesus Cristo. No coro havia a imagem do Senhor da Paciência
que, na sua expressividade mística, mostrava Cristo sereno e paciente1054. As Madres Brites
da Paixão, no século XVII, e Virgínia Brites da Paixão, nos séculos XIX-XX, tiveram
particular devoção e veneração por esta imagem de Cristo.
O amor à Santíssima Virgem era entre as religiosas muito profundo e terno. Para as
grandes solenidades marianas, como eram a Imaculada Conceição, Nossa Senhora das
Mercês, a Assunção, Nossa Senhora do Monte e outras mais, preparavam-se espiritualmente;
geralmente fazia-se uma novena, com missa e pregação, a que assistia a comunidade e
também um grande público. Algumas religiosas tiveram particular devoção à Virgem sob os
títulos de Senhora do Socorro, da Visitação, da Encarnação ou Natividade, da Conceição, da
Piedade ou Soledade, do Carmo e do Monte, em que se recordava um aspecto particular da
1048
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol. 3-9; Noronha, op. cit. 285-299.
Noronha, op. cit., p..299.
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, doc. avulso: Inventário de 1895, fol. 5v e Inventário de 6 de
Novembro de 1895, não paginado.
1051
Embora o camarim não venha referido em nenhum manuscrito, pela estrutura da capela e pelo que então era habitual em templos como
este, estamos em crer que existiria. A custódia referida no texto, um pálio, turíbulos, cálices, âmbulas e castiçais, em prata lavrada,
constituíram, em 1910, aquando da extinção do mosteiro, o chamado “tesouro parcelar do Convento das Mercês” (Ilhas de Zargo, II, p.
.816). As peças referidas vêm descritas e avaliadas nos dois inventários citados. “Depois de arroladas estas alfaias, foram entregues à guarda
do Procurador da República da Comarca do Funchal, sendo mais tarde mandada depositar pelo Ministério da Justiça na filial da Caixa Geral
de Depósitos, Crédito e Previdência da Madeira. Entretanto a confraria do Santíssimo de Santa Luzia, do Funchal, diligenciou adquiri-las
junto da Comissão dos Bens Culturais. Conseguiu a cedência das mesmas pelo Ministério da Justiça, por avaliação oficial, que consta de um
processo arquivado no Tribunal da Comarca do Funchal e lhe atribuiu a importância de dezanove mil escudos. Não podendo a referida
confraria habilitar-se a este tesouro, interessou nele outras igrejas, entre as quais Santa Clara e S. Pedro, reservando para si apenas as varas
do pálio, dois castiçais pequenos, um turíbulo sem naveta, dois cálices e algumas coroas de imagens (Ilhas de Zargo, II, p. 816).
1052
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol. 3-9; Noronha, op. cit., pp. 290-298.
1053
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, doc. avulso, fol. 28v: Inventário de 1895.
1054
Arquivo do Mosteiro de N. S. da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia Brites da Paixão sobre a Madre Brites da
Paixão.
1049
1050
232
vida da Senhora.1055 A comunidade rezava diariamente, conforme a tradição da Ordem, a
coroa das sete alegrias, meditando os mistério mais profundos e mais jubilosos da Virgem
Maria.
Era grande o amor e devoção a Santa Clara e São Francisco, seus fundadores. Todos
os anos estas festas franciscanas eram preparadas com uma novena feita com devoção e amor,
a que presidia o capelão e em que tomavam parte não só as religiosas mas também as pessoas
amigas da comunidade.
38. Novena de Santa Clara. É autor deste livro o cronista franciscano, Fernando da Soledade, tantas
vezes citado ao longo deste trabalho. Foi composto a pedido das religiosas do mosteiro da Madre de
Deus do Porto. Reprodução de Carlos Fotógrafo
Era igualmente grande a devoção a São José. A pupila Isabel Francisca de São José
teve por este Santo “ao qual jamais nomeou senão por Pai”1056, um amor muito particular.
Havia também grande devoção a São Caetano, fomentada pela Madre Brites da Paixão,1057
Santa Ana, São Lúcio e às Almas do Purgatório. A festa de Santa Ana costumava ser
antecedida de uma novena de missas, que em 1765 deu à comunidade a despesa de 2.000
réis1058. Para a decoração da sua imagem, que se encontrava no altar de Nossa Senhora da
Conceição, D. Isabel de Vasconcelos deixou o capital de 100.000 réis, que em 1764, rendeu
5.000 réis. Era responsável pelo seu pagamento António Francisco da Praia de São
Martinho1059.
Na época que estamos a considerar, as procissões religiosas, como manifestações de fé
e formas devocionais exteriorizadas, tinham no mosteiro o seu lugar. Por vezes, eram
simplesmente expressão de louvor e de reverência para com o Senhor, a Virgem Santíssima
ou um Santo da devoção da comunidade; noutras ocasiões visavam a obtenção de uma graça
espiritual ou material de que se carecia. Em 1711, a Madre Isabel Francisca de São José,
sensibilizada com as necessidades da população da Ilha, “que toda se abrasava por falta de
chuva (...),” conseguiu mover a comunidade a fazer “uma procissão de noite, com a imagem
da Mãe de Deus, do título da Graça, por nove dias”1060.
Das procissões que tinham lugar na cerca do mosteiro, apercebia-se a população
circunvizinha que, ouvindo os cânticos e a oração, “santamente curiosa, experimentava os
mais diversos meios de captar o que se passava”1061. Em 1782, a pedido da Madre e demais
religiosas, o governador do Funchal ordenou uma cuidadosa vistoria à cerca do mosteiro.1062
É que os muros eram devassados em vários sítios, chegando algumas pessoas a ter “a
temerária ousadia de abrir buracos e encostarem escadas e outros instrumentos aos muros (...)
para assim poderem ver as procissões e outros actos religiosos”1063.
As religiosas colaboravam também na organização de procissões de carácter público,
como acontecia com a procissão do Encontro, que no Funchal se fazia com muita solenidade.
Roque José d’Araújo Viana, conforme se lê no seu testamento, legou ao mosteiro das Mercês
1055
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fols. 4, 4v, 5, 5v e 8v.; Noronha, op. cit., p. 292.
Noronha, op. cit., p. 293.
1057
Arquivo do Mosteiro de N. S. da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia Brites da Paixão sobre a Madre Brites da
Paixão.
1058
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 20.
1059
AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos rendimentos dos bens pertencentes ao mosteiro das Capuchas de Nossa Senhora das Mercês da
cidade do Funchal, que se compõem de juros, à razão de 5% na forma da lei, que repartidamente se pagam pelos meses do ano .
1060
Noronha, op. cit., p. 295.
1061
ARM, Governo Civil, Conv. Mercês F., L 520, fol. 10-11: Relatório de João António Villavicêncio, Capitão Engenheiro, Mestre das
reais, de 5 de Janeiro de 1782.
1062
ARM, Governo Civil, Conv. Mercês F., L 520, fol. 10-11: Relatório (...), de 5 de Janeiro de 1782.
1063
ARM, Governo Civil, Conv. Mercês F., L 520, fol. 10-11: Relatório (...), de 5 de Janeiro de 1782.
1056
233
uma valiosa imagem de Nossa Senhora da Piedade1064: “Sou senhor de uma Imagem de Nossa
Senhora da Piedade, que serve no encontro da procissão do Senhor dos Passos do Colégio de
São João Evangelista, a qual, com todo o seu ornato de vestidos, andor, cortinados e jóias,
com o mais que lhe pertence e serve no dito encontro (...), por falecimento de minha mulher, a
deixo às religiosas Capuchas de Nossa Senhora das Mercês, com a obrigação de a armarem
bem e a mandarem ao dito encontro da referida procissão dos Passos, todos os anos, enquanto
durar o mundo”1065. Roque José d’Araújo Viana, para que esta devoção tivesse continuidade,
deixou a quantia de “vinte mil réis para venderem a juro de 5% para ajuda do gasto da cera
que há-de arder na saída e entrada da mesma Senhora”1066, por cuja pensão ficavam
responsáveis os seus herdeiros, segundo o testamento lavrado a 24 de Agosto de 17871067. O
andor da Senhora da Soledade, depois de armado pelas religiosas, passava pela igreja do
convento de São Francisco, como já se fazia no tempo do seu proprietário, seguia para a
procissão do Encontro, e, uma vez terminada, dava novamente entrada no mosteiro1068.
1.5. Festas natalícias no mosteiro das Mercês
Preparação e vivência do mistério da Encarnação
As religiosas das Mercês viviam com muita ternura as festividades natalícias e para
elas se preparavam cuidadosamente. Ao longo do Advento toda a sua atenção de dirigia para
o mistério da Encarnação. A própria liturgia as encaminhava para a sua contemplação. Eram
filhas de Santa Clara e de São Francisco, os grandes apaixonados pelo mistério de Belém e,
simultaneamente, eram filhas da Madeira, onde a encenação de Greccio (1223), o primeiro
presépio, com todo o potencial afectivo que comportou por parte de São Francisco e de seus
Irmãos, teve eco vibrante e duradoiro. Desde o início do povoamento, os franciscanos e os
capitães da Ilha, por sua influência, viveram e difundiram a espiritualidade do mistério da
Natividade do Senhor.
Ao longo do Advento, as religiosas empenhavam-se na confecção do enxoval do
Menino, não de peças de roupa, que também se faziam se fosse necessário, mas de práticas
espirituais e actos de virtude. Noronha fala de uma pupila que tinha grande amor a Jesus e “no
tempo do Advento, desde os Santos ao Natal, se preparava para receber o Menino Deus,
cosendo-lhe a roupinha, a qual fazia de exercícios espirituais para lhe oferecer na feliz noite
do seu nascimento”1069. Nos nove dias que precediam o Natal, a preparação era mais intensa.
Todos os anos tinham lugar na capela do mosteiro as tradicionais Missas do Parto e a novena
preparatória, geralmente orientada por um pregador. No livro Delícias do Coração Cathólico,
o Suavíssimo Menino Jesus, de 1757, que as Irmãs Clarissas do mosteiro de Nossa Senhora da
Piedade conservam com veneração, encontra-se o texto desta novena1070.
1064
Este benfeitor legou também ao mosteiro de Santa Clara a imagem do Senhor dos Passos.
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Testamento de Roque José d’Araújo Viana, de 24 de Agosto de 1787. Trata-se
de uma cópia pedida pelas religiosas das Mercês, feita por João Aires Viana, escrivão da Câmara do Funchal e seu termo, em 13 de Abril de
1833.
1066
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, capilha 1, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos do Convento, de
27 de Fevereiro de 1861. A generosidade e devoção de Roque José d’Araújo Viana foi mais longe: “À Confraria dos Santos Passos do
Colégio, por falecimento de minha mulher, se darão oitenta mil réis para venderem a cinco por cento para pagamento do sermão do
encontro,” determinava Roque José d' Araújo (AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Testamento de Roque José
d’Araújo Viana, de 24 de Agosto de 1787).
1067
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, capilha 1, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (…) de 27 de
Fevereiro de 1861.
1068
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Testamento de Roque José d’Araújo Viana, de 24 de Agosto de 1787.
1069
Noronha, op. cit., p. 293.
1070
O mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, continuador da comunidade das Mercês, conserva com grande veneração o livro referido no
texto. Em gesto de admiração, pelas suas Irmãs, a comunidade do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade ainda hoje costumam utilizar esta
novena, embora com algumas adaptações.
1065
234
Nos últimos dias da novena, armava-se a lapinha da capela, sempre bem original e
artística. Os fiéis que costumavam frequentar este templo, gostavam de contribuir para as
despesas da lapinha e celebrações natalícias. Por isso, ao longo do ano, iam depondo as suas
ofertas na caixa do Menino Jesus que ali se encontrava. O mosteiro ganhava ar festivo;
enchia-se das mais belas flores, de lapinhas (rochinha e escadinha)1071, feitas com muita arte.
Nunca faltava a lapinha pessoal na cela de cada religiosa, sempre bela e original. Junto ao
Menino de Belém aprendiam a arte de amar, de ser pequenas, de ser pobres, despojadas e
simples. Não podia faltar a Missa do Galo à meia-noite. Nesta celebração empenhavam-se, o
confessor e o sacristão, bem como as religiosas. Quantos nela participavam ficavam cheios de
alegria espiritual. Não estando prevista pelas normas canónicas a comunhão nesta missa, as
religiosas, pelo grande desejo de se unirem sacramentalmente a Jesus, cuja Encarnação se
celebrava, decidiram pedir essa graça a Pio VI. A 17 de agosto de 1792, por um rescrito do
mencionado Papa, obtiveram licença “de comungar na missa solene da meia-noite do Natal,
pelo tempo de sete anos”1072.
39. Delícias do Coração Cathólico, o Suavíssimo Menino Jesus. Este livro contém a
novena preparatória do Natal que se fazia nas Mercês. Em gesto de veneração pelas suas
Irmãs, a comunidade da Caldeira ainda agora usa este mesmo texto na novena que
antecede o Natal do Senhor. Reprodução de Carlos Fotógrafo.
Após a Missa do Galo havia a consoada, a que se seguiam as loas ao Menino Deus
junto à lapinha. O dia da festa, isto é, o dia de Natal, passava-se na intimidade e na alegria
comunitária, louvando o recém-nascido com amor e júbilo. À hora determinada, tinha lugar a
tradicional cerimónia da Vestição do Menino, parte integrante de uma encenação maior que
era o auto Pensar o Menino. À noite nunca faltava o Auto de Natal, cuidadosamente
preparado, que lembrava às religiosas a profundidade do mistério que celebravam. Nesta e
noutras representações, como a que tinha lugar no dia de Réis, a comunidade mostrava os seus
dons artísticos: criatividade, dons musicais, expressividade, sensibilidade estético.
Ao longo da oitava sucediam-se as visitas dos familiares e amigos que, em atitude
penitencial, sempre se suspendiam durante o Advento. Como manifestação de amizade e
gratidão, trocavam-se presentes e votos de boas festas. As religiosas brindavam com os seus
familiares, benfeitores e outras pessoas da sua intimidade, os apetitosos bolinhos por elas
confeccionados: rosquilhas, broas de mel, cavacas e outras variedades.
Tradições natalícias: a Vestição do Menino e Dormida
O auto do Natal, o Pensar o Menino, que sempre antecedia a missa da meia-noite,
misto de religioso e de profano, em algumas igrejas foi-se transformando em teatro de
pastorelas de sabor bucólico da Idade Média. Seguido da entrada dos pastores que iam adorar
1071
Na Madeira faziam-se lapinhas, designativo madeirense do presépio, essencialmente de dois tipos: a rochinha, criativa imitação de um
relevo em cuja base se abre uma pequena gruta, onde está representada a natividade do Menino; e a escadinha, constituída por três ou mais
degraus armados sobre uma mesa, encimada pela imagem do Menino Jesus. Ambas eram profusamente decoradas com pastores de barro,
com frutas diversas, canas de açúcar e outros motivos (Ilhas de Zargo, II, pp.508-513). A criatividade das lapinhas madeirenses suscitou até
uma oferta ao príncipe regente em 1811. Nesse ano foi enviada para o Brasil “uma lapinha, primorosamente executada por Manuel de Sousa,
Meirinho do Mar.
1072
Arquivo do Mosteiro de N. S. da Piedade, pasta 3, doc. avulso : Rescrito de Pio VI, de 17 de Agosto de 1792; Pio X, o Papa da
Eucaristia, abriu as portas à comunhão frequente: Pouco depois, o decreto de 15 de Setembro de 1906, da Congregação do Concílio,
explicava que a comunhão não era apenas recomendada aos mais velhos, mas também às crianças, para defesa da sua inocência e da sua
piedade (José Maria Javier, Pio X, Coimbra, 1959, pp. 273-274). O decreto de 7 de Dezembro, do mesmo ano, estabeleceu as condições do
jejum eucarístico para os doentes e um outro de 1910 permitiu a comunhão às crianças desde que tivessem o necessário esclarecimento e fé
(op. cit., pp. 275-276).
235
o Menino, o auto prolongava-se pela noite dentro entre descantes e bailados. Deste auto fazia
parte a Vestição do Menino que as religiosas das Mercês, mesmo depois da proibição do auto
por parte de D. Manuel Agostinho Barreto, para restrição de abusos1073, conservaram na
intimidade da comunidade ao longo dos anos. À hora prevista, reunidas as Irmãs, enquanto a
comunidade cantava alegremente, vestia-se ao Menino peça por peça. No livro S. Francisco
de Assis na Madeira podem ver-se as trinta e quatro quadras que a comunidade das Mercês
cantava durante a Vestição do Menino1074. No final da Vestição, trabalho que competia à
abadessa, o Menino, alvo da veneração e ternura das religiosas ao longo da quadra natalícia,
era reclinado num belíssimo berço de mogno, decorado com motivos florais1075. Finda esta
quadra festiva, retirado do bercinho e vestido de rei, retomava no mosteiro o seu habitual
lugar de honra. Tinha o seu enxoval e vestia ao longo do ano segundo as cores da liturgia.
Numa arca forrada a coiro lavrado, guardavam-se as suas roupinhas que as Irmãs clarissas
madeirenses ainda hoje conservam com apreço.
Cuidar do Menino Rei, ao longo do ano, vesti-lo e ornamentá-lo com as mais belas
flores, cabia à Rainha do Menino, cuja escolha se fazia no dia de Reis. Na cozinha
confeccionavam-se alguns bolinhos, tantos quantas as religiosas, tendo um deles uma fava.
Ao jantar, a rainha cessante distribuía-os às religiosas. Aquela que tivesse a fava seria a nova
rainha.
40. Menino Jesus. Escultura em
madeira policromada, de oficina
portuguesa, do século XVIII, com 23 x
12 cm. Pertenceu nas Mercês à Irmã
Maria Ângela. Reprodução de Carlos
Fotógrafo.
41. Menino Jesus. Escultura de
oficina portuguesa, do século XVIII,
de
23 x 13 cm, em madeira
policromada. Pertenceu nas Mercês à
Irmã Querubina. Reprodução de
Carlos Fotógrafo.
Além da Vestição, mantiveram as religiosas uma outra tradição curiosa.
O mosteiro tinha um Menino Jesus de cinquenta centímetros, de grande beleza que,
após o Natal, saia de visita às famílias abastadas da cidade, recolhendo ofertas para o seu
mosteiro. Passava uma noite em cada família e era tão disputada a sua visita que não chegava
o tempo para satisfazer a devoção a quantos o desejavam em sua casa. Por isso, ultrapassando
a quadra natalícia, as visitas do Menino prolongavam-se até ao Carnaval. Durante a noite da
Dormida, havia uma magna reunião de parentes e amigos, com honras de carácter religioso e
profano e peditório de obrigação. Regressava o Menino ao mosteiro acompanhado dos mais
variados presentes e de considerável soma em dinheiro para as primeiras necessidades da
comunidade.
Esta interessante tradição, com tudo o que tinha de oneroso para a cidade, manteve-se
até ao advento da República em 1910. Segundo as Ilhas de Zargo, este Menino das Mercês
conserva-se no recolhimento do Bom Jesus do Funchal1076.
1073
Ilhas de Zargo, II, p. 510.
José António Correia Pereira, São Francisco de Assis na Madeira, Braga, 1993, pp. 90-93.
1075
O berço do Menino Jesus e o Menino Rei das Mercês podem ver-se na página 332 .desta obra.
1076
Ilhas de Zargo, II, p. 513.
1074
236
1.6. Celebrações pascais
No seguimento dos passos de Francisco de Assis, o crucificado do Monte Alverne1077,
e de Santa Clara, as Irmãs do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês procuravam viver com
profundidade o mistério da Redenção. Daí que na Quaresma, o ambiente fosse de maior
exigência. Ao longo desse período procuravam abster-se de visitas, para maior recolhimento
interior, e fazer uma caminhada espiritual que as conduzisse à alegria e júbilo da Páscoa de
Jesus Cristo.
Com a necessária antecedência se diligenciava que as celebrações da Semana Santa se
fizessem com toda a dignidade Para isso, além do capelão e confessor, procuravam a
colaboração de outros sacerdotes. Em 1725 estas celebrações estiveram a cargo do confessor e
de dois clérigos solicitados pela abadessa1078. No segundo triénio da Madre Ana Maria do
Coração de Jesus (1835-38) esta colaboração foi dada pelo P. Dionísio que desde há muito
vinha prestando este serviço por caridade e amizade para com as religiosas1079.
No início da Semana Santa era armado o sepulcro necessário para a Sexta-feira
Santa. Os livros de despesas e receitas, todos os anos, nos meses de Março ou Abril, fazem
referência às despesas feitas com a compra de tábuas, pregos, trancas, consertos do
resplendor, pagamento a carpinteiros e armadores1080. A população que com assiduidade
frequentava a capela do mosteiro, em atitude de fraterna colaboração, não deixava de
contribuir para as despesas destas solenidades. Ao longo do ano, quem para tanto tinha
devoção contribuía para as despesas do sepulcro do Senhor com as suas ofertas que depunha
na caixa para isso existente na capela.
1.7. Encargos pios: missas e ofícios de obrigação
Por legados feitos ao mosteiro, a comunidade ficava devedora de sufrágios de natureza
espiritual, pois os legatários deixavam os seus bens com a imposição ou encargo perpétuo de
missas ou outras obras pias, a satisfazer com os seus rendimentos. Os legados maiores tinham
obrigação de missas quotidianas, também chamadas anuais e designadas por capelas. Os
legados mais reduzidos tinham também obrigações mais restritas: um certo número de missas
rezadas ou cantadas e ofícios de defuntos de nove lições1081.
Sabe-se que o morgado António José Spínola de Carvalho Valdavesso administrou
algumas capelas que totalizavam uma pensão anual de vinte e quatro mil réis, “paga às
religiosas capuchas desta cidade, as quais cantavam todos os anos um ofício de nove lições
com missa por alma e intenção de todos os instituidores das mencionadas capelas”1082. Era
responsável por esta pensão a Misericórdia de Santa Cruz.
Nos livros de contas todos os anos se fazia menção de sufrágios de missas e de ofícios
em favor dos benfeitores do mosteiro. Tratava-se de instituidores de legados e de outras
pessoas que espontaneamente lhe faziam as mais variadas mercês. A comunidade e os
revisores dos livros de contas davam a esse dever toda a importância. Era habitual, no início
de cada livro de contas, inserir-se uma pauta das missas e ofícios de obrigação, isto é, devidos
por legados pios. O prelado, ou o revisor por ele designado, tinha o cuidado de se certificar se
haviam sido cumpridos estes sufrágios . Em 1743, antes da aprovação das contas, escreveu-se:
1077
A montanha do Alverne ou La Verna, com 1269 metros de altitude, na Toscana, diocese de Arezzo, foi oferecida a São Francisco pelo
conde Orlando de Chiusi, em 1213. O prodígio dos estigmas ocorreu na proximidade na festa da Exaltação da Santa Cruz, em 1224 (São
Boaventura, “Legenda Maior”, XIII, 3, in FF I, pp. 700 -701).
1078
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso.
1079
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta da Madre Ana Maria do Coração de Jesus para o Governador do
Bispado, não datada.
1080
AHDF, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 42v, 130, 136 e outros mais.
1081
Dina Maria dos Ramos Jardim, A Santa Casa da Misericórdia do Funchal – Século XVIII, Funchal, 1996, p.67.
1082
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso : Pública-forma, de 15 de Janeiro de 1822.
237
“mostra-se, outrossim, ter-se satisfeito a obrigação anual das missas em todo o referido
tempo, na forma disposta e ordenada (...) no princípio do livro”1083.
O mosteiro tinha a responsabilidade de sufrágios espirituais por muitos benfeitores,
entre os quais: Luís de Moura e sua esposa, pelos quais, todos os anos, eram celebradas três
missas no Natal1084, o cónego António Lopes1085, D. Antónia Brandão1086, Dr. José Ferreira
Pazes1087, P. João Mendonça e Vasconcelos1088 e D. Isabel da Ascensão1089. Por estes
benfeitores e outros, cujos nomes não vêm especificados, o mosteiro mandava celebrar na sua
capela, com a participação das suas religiosas, missas cantadas ou rezadas, conforme a
vontade expressa pelos legatários. Além destes sufrágios em missas, a comunidade cantava ou
rezava o ofício dos defuntos de nove lições, quando os benfeitores o deixavam estipulado.
Das missas de obrigação, celebradas na capela de Nossa Senhora das Mercês, o
sacerdote passava um documento, quitação, certificando que o sufrágio foi cumprido. Em
1736, o P. Francisco Rodrigues, morador na freguesia de São Pedro do Funchal, passou uma
quitação correspondente a três missas cantadas no Natal na capela do mosteiro, “pela alma de
D. Antónia Brandoa,” pedidas pela Madre Maria Catarina da Purificação, então abadessa.
Mais diz a quitação: “e recebi de esmola quatrocentos réis: e por ser verdade (...) passei esta
quitação hoje, 13 de Janeiro de 1736”1090.
1.8. Mercês espirituais
O mosteiro foi muitas vezes agraciado com mercês de natureza espiritual, entre as
quais mencionamos as mais significativas.
Em 1725, o marquês Octaviano Acciaiuoli enviou-lhe da Itália uma relíquia “do
glorioso Mártir São Faustino, que consistia em uma canobla de um braço (...), que fora dada à
marquesa, sua esposa, pelo Pontífice Inocêncio XIII, seu tio”1091.
Em 1750, o Papa Bento XIV anunciou ao mundo um novo ano jubilar ao qual estavam
vinculadas graças espirituais a conceder aos cristãos. Às religiosas das Mercês, como aliás às
demais religiosas de clausura, foi concedido que pudessem ganhar a indulgência no seu
próprio mosteiro. Assim se lhes dirigiu o Pontífice Romano: “Às amadas filhas em Cristo (...),
chamadas capuchinhas da casa da Madeira (...), benção apostólica. Para aumentar a vossa
devoção e empenho pela salvação das almas (...), a todas e a cada uma que, verdadeiramente
arrependidas dos seus pecados, confessadas e alimentadas com a sagrada comunhão, tenham
subido piedosamente, de joelhos (...) a escada situada no claustro do vosso mosteiro (...)
concedemos (...) quatro vezes por ano as indulgências (...) que conseguiríeis se pessoalmente
tivésseis subido com devoção e de joelhos a Scala Sancta da Urbe”1092. O mesmo Papa Bento
XIV, a 14 de Fevereiro de 1751, enviou ao mosteiro um breve que concedia “ indulgência
plenária, por sete anos, aos fiéis cristãos que visitarem a Igreja de Nossa Senhora das Mercês
das religiosas capuchas, no dia da festa de São Joaquim”1093.
1083
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 82v.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v; L 274, fols. 20, 136, 145 e outros; AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos
rendimentos (...) que repartidamente se pagam pelos meses do ano.
1085
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 170v e 218; L 274, fols. 20, 136 e outros.
1086
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 170v e 218; L 274, fol. 20v.
1087
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v; L 274, fols. 12, 14, 62, 145, 182, 191 e outros; AHU, Madeira, doc. 264 : Mapa de
rendimentos (...)que repartidamente se pagam pelos meses do ano.
1088
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 144, 189 e outros; AHU, Madeira, doc. 264: Mapa de rendimentos (...)que
repartidamente se pagam pelos meses do ano.
1089
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 62, 145, e outros; AHU, Madeira, doc. 264: Mapa de rendimentos (...)que
repartidamente se pagam pelos meses do ano.
1090
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, doc. avulso: Encontra-se em capilha própria, inserida naquele livro.
1091
Noronha, op. cit,, p. 285.
1092
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc avulso: Breve do Papa Bento XIV, dado em Santa Maria Maior, Roma, no ano de
1750. Este breve foi traduzido do latim pelo P. Dr. Orlando de Freitas Morna, da diocese do Funchal.
1093
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Breve de indulgência de Bento XIV, de 14 de Fevereiro de 1754.
1084
238
Alguns anos mais tarde, Pio VI concedeu à comunidade outros importantes favores
espirituais. Por um breve de 7 de Setembro de 1787, favorecia-a com o privilégio de poder
ganhar no próprio mosteiro as “Indulgências da Scala Sancta de Roma, por quatro vezes ao
ano”, privilégio de que já em 1851 haviam gozado. A 15 de Setembro, por um novo rescrito,
estendia a mesma indulgência a mais duas vezes por ano1094; a 7 de Setembro do mesmo ano,
agraciou a comunidade com as “Indulgências dos sete altares de Roma,” sendo erectos para o
efeito, sete altares no mosteiro; a 4 de Abril de 1788, um breve do mesmo Papa concedia a
graça de “altar privilegiado perpétuo ao altar de Nossa Senhora das Mercês”, em favor das
almas das religiosas, benefício espiritual que, a 8 de Abril, um novo breve estendeu a “todas
as almas do purgatório”; nesse mesmo dia foi emitido o documento que concedia
“Indulgência plenária na visita à igreja durante a novena de Nossa Senhora das Mercês, cuja
festa se celebrava a 24 de Setembro”1095.
Em 1837, as religiosas, por intermédio do Núncio Apostólico, solicitaram do Santo
Padre a graça de puderem gozar “de todas as indulgências, privilégios e vantagens que
provenham da bula da Cruzada (...) concedida a Portugal e às suas colónias”1096. No ano
seguinte, D. Francisco José Rodrigues de Andrade, bispo do Funchal, exilado em Génova
desde 1834, como atrás ficou dito, concedeu às religiosas as graças solicitadas: “usando das
faculdades que pela Sede Apostólica nos foram concedidas no breve junto (...), como legítimo
Pastor que somos da Diocese”1097.
Em 1854, o Papa Pio IX, desejando beneficiar espiritualmente o mundo católico,
“criou e erigiu a sociedade pia da Imaculada Conceição da Virgem Maria, com o título de
Coroa Áurea”1098, à qual estavam anexados favores espirituais. D. Manuel Martins Manso,
prelado do Funchal, por carta de 4 de Setembro do referido ano dirigiu-se ao confessor do
mosteiro para que: “exortando as Senhoras Religiosas do Convento e demais pessoas que nele
vivem (...) trabalhe por associa-las, nesta pia sociedade em ordem a ganharem as indulgências
e graças que lhes são concedidas, cumprindo em congregação as obrigações, a que porventura
se ligarem”1099. Cada Coroa Áurea era constituída por trinta e uma pessoas que, reunidas
mensalmente num templo, dirigiam a Deus “as suas veementes e fervorosas orações pelas
actuais necessidades da Igreja católica e pela conversão dos pecadores, segundo a intenção do
Sumo Pontífice, ganhando, por isso, as graças e indulgências que lhe são concedidas e que se
acham declaradas”1100. Desconhecemos se as religiosas se constituíram em Coroa Áurea
conforme o apelo do prelado.
1.9. Testemunhos de santidade
Ao longo de dois séculos
O Livro de Óbitos do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, de 1667 a 1882, regista
cento e vinte e três óbitos. O livro encerra com a notícia biográfica da Irmã Ana Joaquina das
Mercês, a última religiosa professa à data do decreto de 28 de Maio de 1834. Ao longo de
1094
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 1, doc. avulso: Breve do Papa Pio VI, 7 de Setembro de 1787.
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 1, docs. avulso.
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, docs. avulsos: Carta da Abadessa a Sua Santidade, o Papa Gregório XVI, de 1837, e carta
de D. Francisco José Rodrigues de Andrade, de 30 de Março de 1838.
1097
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Carta de D. Francisco José Rodrigues de Andrade (...), de 30 de março de
1838.
1098
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular da Câmara Eclesiástica, de 4 de Setembro de 1854, para o
confessor ordinário do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês. Segundo a nota averbada à margem, tratava-se de uma circular para o jubileu
que foi enviada ao cabido, seminário, mosteiros, recolhimento e câmara municipal.
1099
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular (...).
1100
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular (...).
1095
1096
239
duzentos e quarenta e três anos faleceram nas Mercês umas cento e cinquenta religiosas, das
quais cem até l834, conforme o quadro.
Quadro nº.38 – Religiosas falecidas
Anos
Óbitos
Anos
Óbitos
1667-1700
1700-1710
1710-1720
1720-1730
1730-1740
1740-1750
1750-1760
1760-1770
1770-1780
1780-1790
1790-1800
18
12
5
6
8
2
10
4
9
4
5
1800-1810
1810-1820
1820-1830
1830-1834
1834- 1840
1840-1850
1850-1860
1860-1870
1870-1880
1880-1882
1882-1910
12
1
2
2
0
6
7
5
4
1
?
Fonte: ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 270, Livro
de Óbitos.
Mas a vida no mosteiro continuou. Em 1910, aquando da expulsão, a comunidade era
constituída por quinze religiosas.
Alguns escritores transmitem-nos a vida virtuosa e edificante da comunidade e de
alguns dos seus membros. Em 1722 Henrique Henriques de Noronha escreveu nas Memórias
Seculares e Eclesiásticas: “Floresceram sempre, nesta casa, desde o princípio, as virtudes com
o mesmo esplendor com que hoje se vêem brilhar”1101. E, com palpável satisfação, faz uma
pequena resenha da vida edificante de várias das suas religiosas. Como que decalcando o
cronista Frei Fernando da Soledade, que designou o recolhimento de Nossa Senhora das
Mercês “Paraíso Seráfico”1102, Noronha chamou ao mosteiro “cópia daquele paraíso
admirável que Deus plantou na terra para delícia e recriação das virtudes”1103.
O historiador começa por algumas das primeiras religiosas que professaram no
mosteiro, precisamente em 1668, um ano depois da erecção canónica, que desde há alguns
anos viviam no recolhimento de Nossa Senhora das Mercês muito virtuosamente. São elas:
Inês de Jesus, Isabel de Jesus e sua irmã, Margarida do Sacramento, Catarina da Paixão,
natural do Porto da Cruz, Isabel da Conceição, Joana de Santo António e Catarina do Monte
Sinai.
A Madre Inês de Jesus, irmã do fundador, era filha de Heitor Nunes Berenguer e de D.
Maria Lira, sua mulher. Alguns anos antes de entrar no recolhimento, sob a orientação do seu
confessor, o jesuíta João Ribeiro, havia recebido o hábito de Terceira do Carmo. Foi regente
no recolhimento e, quando transformado em mosteiro professo, “foi a primeira que professou
(...) no mês de Junho de 1668, não para o coro, por não saber ler o Ofício Divino”, então em
latim. Isto não a impediu, no entanto, de ser uma religiosa “exemplaríssima, com tanta
suavidade espiritual (...), sempre com brandura e alegria muito natural (...); na oração foi tão
contínua que, ainda nas ocasiões de doença, não se recolhia do coro menos das onze horas da
noite e, ainda na cama enferma a não deixava de ter continuada”. Era dotada de grande
espírito de sacrifício e capacidade de perdão de que deu provas aquando do assassinato do seu
sobrinho, o P. Gaspar Berenguer de Andrade. Movida pelo ideal cristão, procurou exercer
toda a influência ao seu alcance “para facilitar o perdão dos culpados”1104.
Naturais do Paul, filhas de João Rodrigues de Lessa e de sua mulher Isabel Cordeira, as
Madres Isabel de Jesus e Margarida do Sacramento eram muito conceituadas pelas suas
virtudes e, por isso, bastante procuradas pelas mais ilustres senhoras da terra, que gostavam de
1101
Noronha, op. cit., p. 285.
Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 355.
1103
Noronha, op. cit., p. 292.
1104
Noronha, op. cit., p. 286; Fernando de Menezes Vaz, op. cit., I, p. 201.
1102
240
lhes pedir conselhos espirituais. A Madre Isabel foi sempre paciente, humilde, dotada de
grande espírito de sacrifício e muito recta. Embora bondosa e delicada sabia ser forte e
decidida, se as circunstâncias o exigissem, como aconteceu quando entraram algumas jovens
sem vocação, pressionadas pelos familiares, como atrás referimos. Muito sensível diante dos
mistérios de Cristo, gostava de entregar-se à contemplação dos sofrimentos do Senhor. Era
alma de profunda oração e, embora tivesse passado os últimos anos da sua vida
completamente cega, a Madre Isabel continuou a sentir-se feliz, a ser alegre e cheia de ternura
para com todas. Teve vida “mui dilatada, porque excedeu alguns anos de um século; porém,
os cinco ou seis últimos entrevada”1105. Faleceu a 9 de Fevereiro de 17151106.
Quando o recolhimento dava os primeiros passos, querendo “ D. Isabel de França (...)
fabricar-lhe os melhores alicerces, empenhou-se na entrada de D. Catarina, senhora de nobre
linhagem e de comprovada santidade, natural do Porto da Cruz”. Diz Noronha que D.
Catarina, só podendo andar com o auxílio de muletas, resolveu pedir a sua cura a Santa
Catarina para poder ser recebida no recolhimento. De facto, entrando na capela de Nossa
Senhora das Mercês e “pondo-se de joelhos diante do altar de Santa Catarina, se encomendou
à santa com tanta fé que, largando ali as muletas, entrou sem elas e ficou desimpedida para os
exercícios do serviço da casa”1107. Em 1668 sendo o recolhimento já mosteiro professo,
Catarina da Paixão fez a sua profissão. Alma de oração, modesta e dotada de espírito de
abnegação, sabia dominar o seu génio áspero. Foi mestra de todas as que entraram no seu
tempo e “como era também grande música e de bela voz, dispôs todas as cerimónias de coro,
com particular acerto. Mais do que com palavras, procurava instruí-las com o exemplo de
uma vida virtuosa. Faleceu a 30 de Agosto de 1706, com mais de oitenta anos1108.
Em data que desconhecemos, Isabel da Conceição, filha de André Gonçalves Homem e
de sua mulher Maria de Teive, entrou no recolhimento, já muito adulta. Aplicou-se à prática
de todas as virtudes, nomeadamente da obediência, caridade, humildade e oração, donde “lhe
nascia a grande ternura, fervor e alegria com que sempre a viam”. Dotada de delicada
sensibilidade espiritual, a Madre Isabel da Conceição vibrava diante do mistério da
Encarnação e gostava de mostrar o seu amor ao Menino de Belém, em gestos de muita
ternura. Neste amor procurava sensibilizar as Irmãs mais novas que “se tinham por ditosas
quando se encontravam com ela no recreio. A uma pupila que se criava no mosteiro, a Madre
Isabel, já velhinha, costumava dizer que havia de substitui-la, o que veio a acontecer. Faleceu
em 1701, “com a mesma candura com que viveu cem anos (...), depois de confortada com os
sacramentos”1109.
As filhas de Jorge de Andrade Correia e de D. Joana de Menezes, “pessoas principais da
primeira nobreza desta Cidade”, costumavam ir ouvir missa à capela de Nossa Senhora das
Mercês. Foi ali que D. Joana se sentiu interpelada pelo Senhor a consagrar-lhe a vida. Obtida
a licença dos seus pais, as religiosas receberam-na com muita satisfação. Apesar da sua
ascendência e distinção, Joana de Santo António soube ser simples, humilde e viver
santamente. Refere Noronha que passava longas horas em adoração e que muitas vezes ficava
tão absorvida e “tão arrebatada que não dava conta de nada”. Muito metódica e pontual,
“jamais houve ocupação, ainda que fosse a cozinha, que a privasse de assistir aos ofícios
divinos (...). Sabia ocupar o tempo que lhe sobrava das suas obrigações na cela ou no coro,
com Deus”1110. Terá falecido, segundo Noronha, em 1680.
1105
Noronha, op. cit., p. 288.
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 270, Óbitos (...), fol. 1v; Noronha, op. cit., p. 288.
1107
Noronha, op. cit., p. 289.
1108
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fol. 1v; Noronha, op. cit., p. 290. Noronha considera-a falecida em 31 de Agosto
de 1707.
1109
Noronha, op. cit., p. 290.
1110
Noronha, op. cit., p. 291.
1106
241
Por meados do século XVII, vivia na Calheta o casal Vicente Osuna de Menezes e D.
Leonor de Andrade, pais de Catarina e um seu irmão. Como mais velha, pretenderam casá-la.
Outro era, contudo, o anseio da donzela: consagrar-se a Deus pela profissão religiosa.
Temendo que seus pais a obrigassem a aceitar o casamento, Catarina apressou-se a fazer voto
de castidade. Os pais, quando o souberam, não podendo obrigá-la a casar, permitiram a sua
entrada no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, onde veio a professar em 1668, mas não
como corista, por não saber ler. A Madre Catarina do Monte Sinai era muito alegre e jovial, o
que fez dela um anjo transmissor de paz, de bem estar e felicidade junto das religiosas,
particularmente das doentes que, durante muitos anos, estiveram confiadas aos seus cuidados
de enfermeira1111.
D. Isabel, filha do capitão José de França Berenguer de Andrade e de sua esposa D.
Maria de Castelo Branco, padroeiros do mosteiro, entrou com oito anos, ficando na clausura
como educanda. Noronha considera-a “duas vezes filha desta casa, porque (...) se criou nela
com o nome de capucha de que tanto se prezava”. Isabel tinha uma forte inclinação para a
vida conventual e “todo o seu cuidado era buscar, na comunicação com as mais perfeitas
religiosas, um modo de oração e de estar na presença de Deus”. Menina terna e boa, tinha
grande devoção ao Menino Jesus e, no Advento, entretinha-se a confeccionar-lhe o enxoval
que fazia “de exercícios espirituais para lhe oferecer na feliz noite do seu nascimento”.Era
muito devota de Nossa Senhora, para cujas festas se preparava com amor. A sua oração
mariana preferida era o rosário que sempre rezava de joelhos. Era igualmente devota de S.
José a quem sempre chamava pai. Desde menina, foi grande a sua caridade: “além de servir
com grande amor a todas as religiosas, esmerava-se, com particular cuidado, na assistência
das doentes”1112.
Isabel Francisca de São José também tinha defeitos. Altiva, com muito génio e,
envaidecendo-se das suas qualidades, foi-se afastando do seu primeiro fervor. Sua tia materna,
a Madre Angela da Glória, “lhe fazia algumas advertências, mas com pouco fruto”. Após a
profissão, algumas provações, uma grave doença e a “morte daquela tia a quem devia o amor
e a educação de mãe”, tornaram-na humilde e humana, deram-lhe maturidade e operaram nela
um recomeço espiritual. Para esta transformação contribuiu o jesuíta P. Miguel Vitus, seu
director espiritual. Isabel começou então uma caminhada de aproximação de Deus, vindo a
gozar de graças sobrenaturais e místicas que marcaram o seu viver. Sensível às necessidades
alheias, em 1711, sofrendo muito a Ilha, “que toda se abrasava por falta de chuva”, não só
implorou a misericórdia de Deus, como também procurou actuar junto do P. Luís Leitão,
também jesuíta, para que pregasse a emenda de vida e implorasse as bênçãos de Deus para a
Madeira. À própria comunidade pediu, como já referimos, que se fizesse uma “procissão de
noite, com a imagem da Mãe de Deus, do título da Graça, por nove dias, com algumas
penitências públicas”1113. Faleceu não a 19 de Maio de 1717 como refere Noronha, mas a 12
de Maio de 1716, com trinta e oito anos apenas1114.
No final do séc. XVII, entrou no mosteiro, como educanda, “por Decreto especial del
Rei Dom Pedro II”1115, D. Perpétua Moniz Correia, natural da vila de Santa Cruz. Era quarta
neta de Vasco Martins Moniz, fidalgo da casa del Rei, “o primeiro que deste apelido passou a
povoar esta Ilha”1116. A menina, que entrara “com tão grande repugnância da sua vontade, que
ainda na portaria do mosteiro, deu a entender a violência com que vinha”, sensibilizada com a
vida virtuosa das religiosas, bem depressa “se desfazia em afectos de vida religiosa,
1111
Noronha, op. cit., p. 292.
Noronha, op. cit., p. 293.
1113
Noronha, op. cit., p. 295.
1114
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 270, Óbitos (...), fol. 1v.; Noronha, op. cit., p. 296.
1115
Noronha, op. cit., p. 297.
1116
Noronha, op. cit., p. 297. Com D. Perpétua entrou uma outra sua irmã, cujo nome Noronha não refere.
1112
242
inclinando-se tanto a ela, com tais auxílios de Deus, que seguia todos os exercícios de boa
freira antes de ser noviça”1117.
D. Perpétua entregou-se à oração, a obras de caridade e começou a sentir-se bem e feliz.
Em 1703, com grande regozijo seu e da comunidade, iniciou o noviciado, recebendo então o
nome de Catarina de Sena. Dotada de um bom físico e de ânimo varonil, pôde entregar-se a
um regime de vida austera, chegando a passar dias inteiros a pão e água. No tempo que lhe
sobrava dos exercícios comunitários e trabalhos da sua obrigação, gostava de rezar, ler vidas
de santos e meditar. Com os pobres teve tal caridade que chegava a privar-se do seu jantar e
tudo o mais que podia, pedindo às porteiras que tudo distribuíssem por eles. Tentando as
Madres levá-la a uma certa moderação nas austeridades a que se entregava, a jovem noviça
ficou contrariada e pensou deixar o noviciado e, em gestos de humildade, “ir ser criada no
mosteiro da Encarnação”. A Madre Isabel Francisca de São José conseguiu dissuadi-la
fazendo-lhe compreender “que o ofício de criadas o exerciam como esposas de Cristo as
religiosas desta casa”. Catarina entendeu e cedeu. A 4 de Maio de 1704, teve a dita de fazer a
profissão. Entregou-se ao Senhor com grande entusiasmo. Passadas algumas semanas adoeceu
gravemente. Sabendo pelo médico que não havia qualquer esperança de melhorar, ficou
serena e feliz por sentir muito próximo o seu encontro com o Senhor. “Recebeu os
sacramentos com inexplicável devoção (...), pediu perdão (...) das suas faltas”1118 e a 18 de
Junho de 1704 partiu para o Senhor1119.
Em 1697, um casal de Coimbra, Dr. José Ferreira Pazes e D. Maria Coelho
transferiram-se para o Funchal, a pedido de seus tios, Dr. António Spínola e sua esposa D.
Francisca Pazes. Acompanhava-os uma filha, Maria de São José, de três anos, de “natural
dócil e singelo”, que aos doze anos entrou no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês como
educanda. Foi tão grande o encanto que a virtude das religiosas despertou no coração de
Maria de São José que bem depressa começou a sentir em si o desejo de, como elas, se
consagrar ao Senhor. E era tão grande o seu anseio que, mesmo antes de atingir a idade de
admissão ao noviciado, “começou a fazer todas as obrigações de uma boa freira e, com tanta
pontualidade, como se já o fora pela profissão e idade”. Gostava de ajudar na cozinha, na
enfermaria e em todos os outros serviços. Devotíssima do Santíssimo Sacramento, passava
longas horas em oração no coro e todas as quintas-feiras rezava o ofício de Corpus Christi.
No Advento empenhava-se, muito a sério, na confecção do enxoval do Menino Jesus, que
fazia com devoções e actos de virtude. “Assim vivia esta flor na terra, cultivada entre as
virtudes, quando, querendo-a o Senhor transplantar para o céu”1120, adoeceu gravemente.
Sendo ainda menina de 14 anos, somente lhe puderam permitir que in articulo mortis fizesse
profissão como Terceira Franciscana, o que a jovem aceitou com muita alegria. Faleceu a 18
de Janeiro de 17091121. Aqui termina o relato de Noronha.
A partir de 1853, com a morte da Irmã Maria do Coração de Jesus, filha do morgado
Jacinto de Faria e sua mulher D. Antónia, o Livro de Óbitos começa a apresentar uma
pequena notícia biográfica de cada religiosa falecida, fazendo menção dos dons pessoais, das
virtudes vividas, da vida de oração e devoções, das responsabilidades comunitárias assumidas.
São páginas de grande beleza, onde facilmente se detecta a grandeza de alma daquelas
religiosas, a sua vida de fé e de amor. Algumas alimentaram uma particular devoção as
Santíssimo Sacramento, outras a Nossa Senhora, a São José, a Santa Ana ou ao Menino Jesus.
São frequentes as referências à prática da caridade, delicadeza e dedicação fraterna,
particularmente para com as irmãs doentes. Da Madre Ana Ifigénia, falecida a 30 de Maio de
1117
Noronha, op. cit., p. 297.
Noronha, op. cit., p. 298.
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fol. 1v.; Noronha, op. cit. 298. Noronha refere o seu óbito em 14 de Junho.
1120
Noronha, op. cit., p. 299.
1121
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fol. 1v.; Noronha, op. cit. 299.
1118
1119
243
1864, se diz que deixou admiráveis exemplos de “caridade, prudência, (...). Era muito devota
de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento (...). Sofreu, com muita
paciência, (...) uma moléstia crónica, por muitos anos”1122.
Nestas notícias necrológicas sente-se o palpitar de corações que souberam amar a Deus
e à humanidade.
Dois casos específicos: Madre Brites da Paixão e Madre Virgínia Brites da Paixão
Em 1733 faleceu, no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, a Madre Brites da Paixão,
em odor de santidade. Esta religiosa estava ligada à família Ornelas Vasconcelos, por parte de
seu pai, Aires de Ornelas de Vasconcelos, sexto morgado do Caniço, que, por volta de 1672,
permitiu a sua entrada no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, dado que D. Brites desejava
consagrar-se a Deus pela profissão religiosa1123. D. Brites teria entrado já madura, com uns
trinta anos. Fez a sua profissão religiosa em 1674. Da sua santidade falam algumas fontes e
obras impressas. “Pela tradição conservada no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês e por
alguns manuscritos encontrados no seu arquivo, se constata o grau eminente de perfeição
espiritual que atingiu esta religiosa”1124. Nos vários cargos que exerceu, revelou-se sempre
competente. Como mestra de noviças a sua acção foi muito fecunda. Segundo o testemunho
de uma das suas educandas “a serva de Deus andava sempre abrasada em amor divino, que se
comunicava às suas noviças. Dotada de grande espírito de penitência, sempre se absteve de
carne e se entregou a rigorosos jejuns e outras práticas penitenciais”1125. Esclarece a mesma
testemunha que a Madre Brites costumava preparar-se, com um retiro de dez dias, para o
aniversário da sua profissão, que fizera na festividade de S. João Baptista.
Os seus familiares gostavam de presenteá-la com tudo aquilo que lhe desse prazer.
Deles recebeu a belíssima escultura do Senhor da Paciência, em madeira policromada que,
“por ser grande, não estava na sua cela, mas sim no coro”1126. Segundo a tradição conservada
entre as religiosas, o Senhor da Paciência falava com ela como se fosse um corpo animado.
Alma de oração e comunhão profunda com o Senhor, foi por Ele favorecida com o dom das
curas que já aconteciam em sua vida, mas se tornaram mais numerosas depois da sua
morte1127.
42. Senhor da Paciência. Escultura valiosa e muito expressiva,
em madeira policromada, com 76 x 33,7 x 33 cm, de oficina
portuguesa, do século XVIII. Pertenceu nas Mercês à Madre
Brites da Paixão, a quem foi oferecida pelos seus familiares. O
resplendor que coroa Jesus Cristo é um valioso trabalho em
prata. Reprodução de Carlos Fotógrafo.
Em face dos documentos que manuseámos, podemos referir, entre outras, a cura de uma
menina de nove anos que sofria de grave enfermidade, de uma religiosa do mosteiro, Ana
Bárbara da Piedade que, “sendo ainda nova se achava completamente paralítica e já
desenganada dos médicos” 1128, e ainda a graça de chuvas abundantes que se verificaram logo
1122
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fols. 5v-6.
Maria Fátima Araújo de Barros Ferreira, “Arquivo da Família Ornelas Vasconcelos. “Instrumentos descritivos”, in Arquivo Histórico da
Madeira, 21 (998) 18; Ilhas de Zargo, II, p. 483.
1124
Ilhas de Zargo, II, p. 483. O Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade conserva alguns importantes manuscritos, saídos das
mãos da Madre Virgínia, que referem a vida virtuosa e santa da filha do sexto morgado do Caniço.
1125
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia Brites sobre a Madre Brites da
Paixão.
1126
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia (... ).
1127
Ilhas de Zargo, II, p. 483.
1128
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia (...).
1123
244
após a sua morte, em resposta à súplica da população que sofria as graves consequências de
uma seca muito prolongada1129.
Após a sua morte, em 25 de Setembro de 1733, com uns cem anos1130, foi instaurado o
processo preparatório da beatificação, tendo o historiador insular P. Fernando Augusto da
Silva organizado um processo que continha a narração de muitos milagres feitos pela Madre
Brites da Paixão1131.
Nos manuscritos que vimos seguindo, a Madre Virgínia pretendia reconstituir, pelos
relatos contados pelas religiosas mais antigas, “as principais virtudes, milagres e outras graças
obtidas por ela, que são necessárias para a beatificação (...), que estavam na Câmara
Eclesiástica e foram destruídos por um incêndio”1132.
Os seus familiares detectavam a sua santidade e tinham por ela grande estima e
admiração. A Madre Brites da Paixão, lê-se nas Obras de D. Ayres d’Ornellas de
Vasconcellos, “morreu com fama de santa”1133, o que, aliás, foi sempre afirmado pelas
religiosas do mosteiro e pela população da Madeira que tantas vezes foi alvo da sua protecção
espiritual. Não admira, portanto, que na segunda metade do século XVIII D. Gaspar Afonso
da Costa Brandão, bispo do Funchal, tivesse autorizado, como diz o mesmo Agostinho
d’Ornellas de Vasconcellos, “um certo culto em sua honra”1134.
O segundo caso diz respeito à Madre Virgínia Brites da Paixão, natural do Lombo dos
Aguiares, que em 1883 professou no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, com vinte e três
anos de idade1135. Ali cresceu em virtude, se sentiu feliz e exerceu cargos de responsabilidade.
Era abadessa quando da implantação da República em 1910. Expulsa do mosteiro, como as
demais religiosas, passou os seus últimos 19 anos na casa paterna onde morreu em 1929 com
sessenta e nove anos.
Da santidade da Madre Virgínia Brites da Paixão, muito tem falado, desde há quase cem
anos, a população da Madeira, a imprensa, os seus emigrantes; do seu poder de intercessão,
falam-nos os ex-votos que no seu quarto, integrado no actual mosteiro de Santo António, se
vão acumulando. Nós, dado que falaremos dela mais adiante, ao tratar da fundação do
mosteiro de Santo António na sua própria casa, limitamo-nos, neste apartado, a transcrever,
quase na íntegra, o que, a 17 de Janeiro de 1941, se escreveu em O Jornal. “Faz hoje uma
dúzia de anos. No Lombo dos Aguiares, freguesia de Santo António do Funchal, expirava
essa filha da mesma paróquia, que em religião se chamou Madre Virgínia Brites da Paixão.
Sentindo-se atraída para a vida religiosa, ainda em plena flor da sua juventude, vestiu o hábito
religioso (...). No mosteiro de Nossa Senhora das Mercês desta cidade, deu edificantes
exemplos de virtude, de espírito de penitência e de amor a Deus. Foram essas qualidades da
sua alma que a elevaram ao cargo de superiora no extinto mosteiro das Capuchas.
Quando em 1910, o mosteiro foi extinto, era regida essa casa religiosa pela Madre
Virgínia. Retirando-se para modesta casa da sua família no Lombo dos Aguiares, aí viveu até
17 de Janeiro de 1929, continuando a observar as regras da Ordem e da casa donde fora
expulsa e de que sentia viva saudade. Ainda em vida julgou-se favorecida por revelações
divinas. Em virtude da obediência deixou alguns autógrafos que nos dão conta de algumas
dessas comunicações. Entre o povo, espalhou-se a fama da sua virtude invulgar, das suas
relações místicas. Por isso, após a sua morte, no cemitério onde repousa e na casa onde
1129
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia (...) . Estes e outros milagres
vêm descritos com muito realismo. A cura da Madre Ana Bárbara da Piedade também é referida na notícia biográfica desta religiosa (ARM,
Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fol. 4 v).
1130
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fol. 1v.
1131
Ilhas de Zargo, II, p. 483.
1132
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia (...).
:1133 Agostinho d’Ornellas de Vasconcellos, op. cit., p. 24; Arquivo Histórico da Madeira, 21(1998)18.
1134
Agostinho d’Ornellas de Vasconcellos, op. cit., p. 24; Arquivo Histórico da Madeira, 21(1998)18.
1135
Cónego Manuel Pombo Fernandes, Manuscritos sobre a vida da Madre Brites da Paixão, fol.13.
245
habitou, principiaram a aparecer manifestações de veneração que têm durado até aos nossos
dias. Nas cidades, nas freguesias suburbanas e rurais, narram-se graças obtidas por sua
intercessão”1136.
Terminaremos esta nossa referência à vida virtuosa da comunidade das Mercês
transcrevendo o testemunho deixado pelo escritor insular, P. Fernando Augusto da Silva. Nos
Subsídio para a história da diocese Funchal, onde fixou os acontecimentos mais relevantes
que ocorreram entre 1425-1800, este historiador tece à comunidade das Mercês os mais belos
elogios: “Embora não se possa duvidar que algumas casas religiosas nem sempre primaram
pela rigorosa observância da Regra do seu instituto, deve, contudo, afirmar-se que o convento
de Nossa Senhora das Mercês foi em todo o tempo um vivo e eloquente exemplo da prática de
todas as virtudes cristãs levadas até à mais heróica austeridade e à mais severa e continua
penitência. Era um verdadeiro cenáculo da oração, do recolhimento e do sacrifício, a que
voluntariamente se sujeitavam as pessoas que ali iam procurar, como em áspero e longínquo
deserto, o seu completo afastamento do mundo e de todos os seus apetecidos e encantadores
atractivos.
Desde a sua fundação por meados do século XVII, até 1910, em que as suas portas se
fecharam, manteve inalteravelmente essa elevada reputação, sem a mais pequena quebra no
exacto cumprimento de todos os preceitos impostos pela disciplina conventual. Fazer parte da
sua comunidade era o mesmo, pode dizer-se, que adquirir um título de alta e incontestada
virtude. E isso constituiu toda a história deste mosteiro” 1137.
2. Cultura
2.1. As letras, música sacra e artes menores
As religiosas das Mercês prezaram a sua cultura religiosa e intelectual. Recordamos que
as Constituições ou Estatutos recomendavam a existência de uma boa biblioteca que
fornecesse os meios para isso necessários.
A comunidade teve o cuidado de cultivar a música sacra, a escrita, a aritmética, a
caligrafia e as artes menores tais como o desenho, a pintura e a miniatura.
43. Berço do Menino Jesus. Trabalho em madeira de mogno gessada, policromada e dourada,
com motivos florais. Tem 39 x 25 cm. Foi, possivelmente, decorado pelas Irmãs das Mercês.
Reprodução de Carlos Fotógrafo.
Para o bom exercício das suas funções religiosas, não bastava o conhecimento da leitura
e escrita do português. Precisavam de conhecer o latim e, particularmente na sua leitura,
deviam ser perfeitas. Dada a frequência das missas cantadas e da solenidade que deviam
revestir as Horas Canónicas, as religiosas, além da aprendizagem, do latim cultivavam a
música sacra. Os capelães e outras pessoas competentes prestavam à comunidade um auxílio
precioso. Entre as religiosas houve algumas com particulares dons musicais. A Madre
Catarina da Paixão, falecida em 30 de Agosto de 17061138, “como era grande música e de bela
voz, dispôs todas as cerimónias de coro com particular acerto”1139. No coro havia “um
1136
O Jornal, 17 de Janeiro de 1941. Os manuscritos da Madre Virgínia, que o Paço Episcopal conserva cuidadosamente, enquanto aguarda a
possibilidade de iniciar o processo de beatificação, dão-nos o conteúdo místico e os aspectos mais profundos e pessoais da sua
espiritualidade.
1137
Fernando Augusto da Silva, op. cit., pp. 179-180.
1138
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol.1v. Noronha refere o óbito da Madre Catarina da Paixão a 31 de Agosto de
1707 (op. cit., p. 290).
1139
Noronha, op. cit., pp. 289.
246
rabecão pequeno com a respectiva caixa e um descanso de madeira”1140. Este rabecão
pequeno, nome vulgar do contrabaixo de corda, destinava-se a harmonizar o ofício divino.
Para aprendizagem das noviças e pupilas, era levado para a sala do noviciado com frequência.
Por este motivo lá se encontrava “ um descanso para o rabecão, de pinho pintado”1141.
As religiosas eram exímias em desenho e pintura. O Menino Rei, que aqui podemos ver,
desenho a tinta da china, colorido, do final do século XVII, é um exemplar feliz. Trabalho
harmonioso, feito com muita minúcia e gosto, apresenta-nos o Menino coroado de Rei
empunhando o ceptro. A sua autora conseguiu dar ao seu rosto uma expressão de ternura e
bondade e até mesmo, pôr no seu semblante um meigo sorriso. É um trabalho pequeno, de12
x 8,5 cm. que ainda hoje as
44. Menino Rei. Desenho e pintura do final do
século XVII, de 12 por 8,5 cm, em tinta da china,
colorido. Trata-se dum trabalho feito pelas religiosas
das Mercês. Reprodução de Carlos Fotógrafo.
Clarissas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade conservam no livro Delícias do Coração
Cathólico, o Suavísssimo Menino Jesus, e que colocam em lugar de relevo durante a novena
do Natal, em gesto de apreço pelas sãs tradições das suas Irmãs das Mercês. O bercinho onde
reclinavam o Menino na noite de Natal, de madeira de mogno gessada policromada e dourada
e decorado de motivos florais, é igualmente obra primorosa das religiosas.
Cremos que as religiosas das Mercês se dedicavam também à montagem de presépios.
A senhora D. Maria Carmen de Oliveira Lopes, de 95 anos e em perfeita lucidez, residente no
Funchal guarda consigo uma caixa octogonal em pau santo com embutidos de pau cetim
avermelhado, que pertencera às Mercês. Segundo testemunham a proprietária e seus
familiares, aquele presépio foi oferecido, em gesto de gratidão, à menina Maria Helena de
Oliveira, filha do capitão Ferrer de Oliveira que, à volta de 1780 era procurador do mosteiro.
A família Oliveira Lopes conserva-o como prenda valiosa, como se de uma relíquia se
tratasse.
45. Presépio de caixa octogonal. Além da natividade de Cristo nesta caixa octogonal vêem-se mais treze cenas da
vida de Jesus, incluídas a anunciação e o baptismo. Todo ele é trabalho minucioso e harmónico.
Esta caixa, de 150 cm. de largura por 70 de altura, quando aberto, encerra catorze
cenas da vida de Cristo, desde a anunciação ao baptismo de Jesus no Jordão. As figuras são
todas originais. A senhora D. Maria Carmen de Oliveira Lopes, bisneta de Maria Helena de
Oliveira, insiste em que eram as Irmãs que faziam estes presépios, que depois vendiam para
sua subsistência e também ofereciam a benfeitores. Seriam, além disso, também uma forma
de difundir o amor ao Menino de Belém, tão vincado na Madeira. Na opinião da Directora do
Museu de Arte Sacra do Funchal, Dr.ª Luíza Clode, as religiosas adquiririam as imagens e
procediam em seguida à montagem dos presépios que ficavam com a beleza e a harmonia do
exemplar aqui reproduzido1142.
1140
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fol. 26v: Inventário do mosteiro de
Nossa Senhora das Mercês de 1895.
1141
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fol. 22v: Inventário do mosteiro de
Nossa Senhora das Mercês de 1895.
1142
Cumpre-nos agradecer à Senhora Drª. Luíza Clode ter-nos dado conhecimento desta peça artística e à Senhora D. Lígia Lopes
Brazão, sobrinha da D. Maria Carmen de Oliveira Lopes, a gentileza de nos ter permitido a sua inserção nesta obra.
247
50.Fólio de livro de contas. Este fólio de um dos livros de contas do mosteiro de
Nossa Senhora das Mercês, que o Arquivo Regional da Madeira guarda, é uma
verdadeira perfeição caligráfica. Fotogafia de Rui Camacho, DRAC.
As contas, ou seja, a aritmética, também foram alvo da atenção pedagógica da
comunidade Os livros de receitas e despesas testemunham que as escrivãs eram competentes,
apresentavam as contas com clareza e sempre certas e tinham uma boa formação artística e
caligráfica
Fazendo um exame destes livros, verificamos que cada escrivã tinha o cuidado de ser
clara e metódica. Em geral estão bem ordenados, revelando uma boa cultura e dotes artísticos:
boa caligrafia e letras capitulares primorosamente desenhadas. No livro 274, a começar na
página 157, as contas correspondentes ao triénio da abadessa Antónia Clara do Sacramento (3
de Agosto de 1784 a 30 de
47. Carta para o escrivão da Câmara Eclesiástica. Esta pequena carta dirigida ao escrivão da
Câmara Eclesiástica, escrita pela abadessa, é um belo exemplar de perfeição caligráfica. Revela
um bom domínio do português e dons artísticos. É também um belo testemunho de apreço pelo
prelado diocesano. Reprodução de Carlos Fotógrafo.
Janeiro de 1788), ali lançadas pela escrivã Ana Margarida de São Joaquim, aparecem com tal
perfeição, beleza caligráfica e método, que aquelas páginas são uma verdadeira obra prima. A
Irmã Ana Margarida era de facto um talento artístico.
Também as cartas dirigidas a Sua Majestade, ao prelado da diocese, ao deão, ao
escrivão da Câmara Eclesiástica e a outras entidades têm boa apresentação e são reveladoras
de competência e formação artística.
2. Confecção de paramentos litúrgicos e bordados
As religiosas dedicavam-se também à confecção de paramentos e aos bordados.
Os paramentos podiam destinar-se ao mosteiro ou a capelas e igrejas. Nos bordados
devemos distinguir os trabalhos destinados ao culto e outras confecções para fins diversos. A
matéria prima para estes trabalhos era habitualmente a seda e o linho. Os livros de contas
fazem referência à compra e oferta de linho e de estopa e ao pagamento pelo trabalho de
teias1143. Da Fajã da Ovelha o mosteiro recebia todos os anos uma certa quantidade de linho
que era oferecido pelo vigário.
Quadro nº.39 - Consumo de linho e estopa
Ano
Quantidade
Forma de aquisição
1727
1728
1737
1773
1784
1785
1786
20 varas de pano de linho
10 varas de pano de linho
20 libras de linho
45 libras de linho
30 libras de linho
33 libras de linho
28 libras de linho
Comprado a 166 réis a vara
Comprado a 100 réis a vara
Oferta do vigário da Fajã da Ovelha
Oferta do vigário da Fajã da Ovelha
Oferta do vigário da Fajã da Ovelha
Oferta do vigário da Fajã da Ovelha
Oferta do vigário da Fajã da Ovelha
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 15 e 18v;L
273, fol. 7; L 274, fols. 63, 157, 160v, 164v, 169 e outros.
1143
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 18v.
248
As religiosas trabalhavam o linho com o qual confeccionavam alvas, roquetes e
toalhas de altar. Gastavam-no também na roupa da comunidade, particularmente nos
toucados1144. As peças litúrgicas de que fizemos menção, eram, depois de confeccionadas,
bordadas com gosto e arte. O actual mosteiro de Nossa Senhora da Piedade guarda, com
empenho, um roquete, não de linho mas de tule, com bordado da Madeira: bastido, cordão,
caseado, garanitos, pastinha e richelieu. Uma verdadeira maravilha. Segundo o testemunho de
religiosas antigas, este trabalho saiu das mãos habilidosas das suas Irmãs das Mercês, que
eram peritas na confecção de paramentos litúrgicos destinados às igrejas do Funchal e de
outras paróquias. Estes paramentos dos séculos XVII-XIX eram, geralmente, bordados a ouro
e a matiz sobre seda, linho e seda, gorgorão de seda, lã e ouro e lhana de ouro.
Pelo enxoval do Menino Rei das Mercês, que os mosteiros madeirenses de hoje,
guardam com a máxima estima, se vê o requinte com que bordavam a ouro e a matiz, a
harmonia das cores e do desenho, a beleza do conjunto. Consta o enxoval ainda existente de
seis vestidos das cores litúrgicas: branco, verde, vermelho, roxo e azul, uma faixa bege com
galão dourado, uma colcha de berço de damasco vermelho com galão, envolta de renda,
quatro camisinhas brancas com renda e “bordado madeira”.
Todos estes conhecimentos, que exigiam aprendizagem cuidadosa e metódica, tinham
as religiosas o cuidado de transmiti-los às candidatas, de quem esperavam futuras religiosas
competentes.
1144
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 157.
249
CAPÍTULO VI
VIDA QUOTIDIANA
1. O trabalho
1.1. O cuidado das doentes
Entendia São Francisco que para cuidar do Irmão doente, se fosse necessário, se
vendessem os vasos sagrados. Santa Clara de Assis, como São Francisco, teve pelas suas
Irmãs doentes um verdadeiro culto. Por isso, quer “que sejam tratadas com caridade e
misericórdia, que nada lhes falte, que todas as Irmãs cuidem delas e as sirvam como
desejariam ser servidas, caso se encontrassem na mesma situação”1145. Mais diz: “é bem que
(...) possam usar travesseiros de penas e, em caso de necessidade, possam usar pantufas e
meias de lã”1146.
As religiosas das Mercês assumiam com fraterno carinho as suas doentes e idosas, às
quais nada devia faltar. Pelos livros de contabilidade se detecta o amor e a solicitude de que
eram alvo. Em certos meses e até em certos anos, as despesas com as doentes eram
sensivelmente metade das havidas com a comunidade. Entre os anos 1764-1790, em que
houve muitas religiosas idosas e doentes, as despesas da enfermaria foram os maiores gastos.
Nos anos de 1765, 1766 e 1782 atingiu quase os dois terços.
Quadro nº.40 – Despesas com as doentes
Ano
Comunidade (réis)
Doentes (réis)
1727
382.300
136.400
1765
326.850
248.800
1766
294.000
158.000
1768
263.900
127.390
1774
266.715
112.760
1782
194.200
124.800
1784
252.850
109.400
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272,
273 e 274.
Para as doentes se adquiria sempre o necessário: leite, azeite doce, manteiga, carne de
vaca, frango, galinha, queijo, açúcar branco1147 e tudo o mais que fosse preciso para a sua
saúde. Para elas faziam-se doces especiais para que, nos dias de festas, também pudessem
apreciar as boas iguarias. Era a delicadeza, a caridade fraterna. Entre os benfeitores do
1145
Cf. RCL,VIII, 12-15, in FF II, p.56.
RCL, III, 17, in FF II, p. 56.
1147
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 274, fol. 157, 160, 164, 167.
1146
250
mosteiro, houve alguns que deixaram legados em favor da enfermaria. Podemos mencionar o
P. João Mendonça e o Dr. José Ferreira Pazes, que deixou uma pensão vitalícia à Madre
Ângela de Foligno1148.
O mosteiro tinha instalações próprias para as doentes, onde lhes era proporcionado o
conforto possível. A enfermaria, espaçosa e bem arejada, preparada para ter nove camas, abria
para o claustro, podendo as doentes desfrutar da beleza do jardim. Dispunha de cozinha
privativa, onde tudo se preparava em função das necessidades de cada doente, e de um
pequeno refeitório, onde as Irmãs não acamadas podiam tomar as suas refeições. Um armário
de castanho de 1,40m de altura e um outro mais pequeno, permitiam a arrecadação das roupas
necessárias às enfermas. Duas mesas, uma das quais de casquinha, e uma cadeira de braços,
onde as doentes podiam descansar, completavam o mobiliário.
Todos os anos era nomeada uma religiosa para cuidar das doentes. Ao manusear os
documentos, apalpa-se a ternura, a caridade e delicadeza de que eram alvo!...Até as pupilas
gostavam de ajudar na enfermaria e de prestar às religiosas doentes ou velhinhas os seus
ternos cuidados. Por exemplo, Isabel Berenguer, filha de José de França Berenguer de
Andrade, padroeiro do mosteiro, gostava de lhes prodigalizar as mais fraternas atenções1149.
A primeira religiosa encarregada da enfermaria foi a Madre Catarina do Monte Sinai,
uma das dezassete religiosas que professaram em 1668, aquando da passagem do
recolhimento a mosteiro professo. Como a Madre Catarina não pôde professar como corista,
por não saber ler, estava mais disponível para aquele serviço. No ofício de enfermeira “se
ocupou até ser de muita idade; mas com tão especial graça, amor e caridade, que servia de
grande alívio e consolação às doentes (...), por ser de natural singelo e sempre alegre”1150. “A
Madre Joana de Santo António, filha de Jorge Andrade Correia e de sua mulher D. Joana de
Menezes, pessoas principais da primeira nobreza desta cidade (...), na caridade de enfermeira
foi tão ávida que, por não faltar na assistência das doentes”1151, se deixou adoecer gravemente.
Morreu em 1680. Da Madre Sancha Maria da Santíssima Trindade, falecida em 1854, referiu
a escrivã Ana Joaquina das Mercês, no Livro de Óbitos: “sempre se exercitou gostosamente
em todos os trabalhos (...), e era de muita caridade especialmente com as enfermas”1152.
Para conforto espiritual das religiosas doentes, permitia a Regra de Santa Clara “que o
confessor entrasse para distribuir a comunhão, administrar a Santa Unção (...) e, por ocasião
das exéquias, no caso de uma celebração eucarística”1153. Em 1857 ou 1858, a Madre Ana
Ifigénia dirigiu-se ao Núncio Apostólico de Lisboa, solicitando mais uma graça para as suas
doentes: a celebração da Eucaristia na enfermaria nos domingos e festividades. Ouçamo-la:
“Algumas religiosas, por idade avançada e moléstias crónicas, não podem já vir ao coro a fim
de assistir ao Santo Sacrifício da Missa, privadas assim desta consolação nos domingos e
festas da Santa Igreja, com bastante mágoa, não somente das mesmas, mas ainda da própria
enfermeira, que lhes deve assistir”1154. A dar força ao seu pedido, referia a Madre que na
enfermaria havia “um altar com toda a decência que exige a celebração do Santo Sacrifício”,
sobre o qual estava um nicho com um crucifixo de marfim, uma imagem de Nossa Senhora do
Rosário e uma outra de São Lúcio. A autoridade eclesiástica acolheu o pedido e pouco tempo
depois o mosteiro foi autorizado a que o sacerdote e o acólito entrassem na clausura para as
1148
AHU, Madeira, doc. 264 : Mapa dos rendimentos (...),que repartidamente se pagam pelos meses do ano; ARM, Conventos, Conv. Mercês
F., L 273, fol.221v; L 274, fols. 12, 14, 62, 145, 182, 191 e outros mais.
1149
Noronha, op. cit., p. 299.
1150
Noronha, op. cit., p. 292.
1151
Noronha, op. cit., p. 291.
1152
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbito (...), fol. 3.
1153
RCL, XX, 12, in FF II, p. 62.
1154
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, docs. avulso: Carta da Abadessa Ana Ifigénia de Santo Elesbão, 1857 ou 1858 e Carta do
Núncio Apostólico para o Bispo do Funchal, de 25 de Setembro de 1858.
251
celebrações referidas. A autorização era válida para os “confessores do Convento (...) e
qualquer outro sacerdote da sua escolha”1155.
As Irmãs doentes eram um tesouro, a que a comunidade prestava a máxima atenção
como mandava a caridade cristã. Que grande consolação para aquelas Irmãs velhinhas ou
doentes, a veneração, o amor fraterno de que se sentiam alvo!...Que benfazejas eram as mãos
carinhosas da enfermeira desvelada e boa!...
1.2. Trabalhos domésticos
Como já tivemos ocasião de dizer, as religiosas das Mercês não tinham criadas ao seu
serviço. Elas próprias assumiam todos os trabalhos domésticos: limpezas, cozinha, cuidado do
refeitório, da capela, da portaria, da enfermaria, cozer o pão, cuidar da roupa da comunidade e
da capela e outros mais. O mosteiro devia estar sempre limpo, com a máxima ordem, e nisso
punham o maior empenho.
Viver do trabalho e do auxílio dos fiéis, não era habitual nos mosteiros da época. As
religiosas das Mercês, no entanto, haviam feito, voluntária e evangelicamente, essa opção.
Os trabalhos domésticos eram distribuídos por todas. Alguns, como o serviço da
cozinha, ia passando rotativamente pelas diversas religiosas. Habitualmente estavam duas em
cada semana, segundo informa Noronha nas Memórias Seculares Eclesiásticas. Este autor
refere o espírito de sacrifício da Madre Joana de Santo António “nas semanas em que estava
na cozinha (...)”1156. E, falando de Maria de São José, pupila que aguardava a idade de entrar
no noviciado, diz que “servia na cozinha e em todos os ofícios humildes, com particular
gosto, para o que rogava à vigária a pusesse muitas vezes nestas ocupações”1157. Certo dia,
conta Noronha, uma noviça, Catarina de Sena, “de natural robusto e ânimo varonil”, porque
fora convidada à moderação nas penitências a que queria entregar-se, preparava-se para deixar
o mosteiro, desejando, por humildade, ir oferecer-se, como criada no mosteiro da Encarnação.
Foi então que a Madre Isabel Francisca de São José a fez reflectir, dizendo-lhe “que o ofício
de criadas o exercitavam as religiosas desta casa”1158.
Com a excepção dos cuidados de limpeza, asseio e decoração em todo o mosteiro, a
zona de trabalho situava-se no rés-do-chão, em volta do pátio interior ou claustro. Ali se
encontrava o forno de cozer o pão, a cozinha, com “um fogão de ferro de um lume, forno e
caldeira, tendo 1 metro de comprimento, 0,70 metros de largura e 0,32 d’alto”1159, as lojas,
onde se guardava a lenha e a giesta, a casa da farinha, a despensa, com uma pequena cozinha,
onde se preparavam alguns alimentos ou sobremesas que não precisavam de fogão1160. Assim
se aliviava um pouco o trabalho das cozinheiras da semana.
Em comunicação com a cozinha ficava a casa das hóstias, com um fogareiro de
cantaria, que trabalhava a giesta1161. A sala tinha o mobiliário necessário para as confeccionar
e guardar enquanto não saíssem para as igrejas: dois armários, sendo um de madeira do Brasil,
com um metro de largo, e outro de pinho, com um metro e trinta; duas mesas de pinho, dois
bancos e alguns estrados de til; três prateleiras para arrumação de todos os materiais e
1155
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc avulso : Carta da Abadessa (...), de 25 de Setembro de 1858.
Noronha, op. cit., p. 291.
1157
Noronha, op. cit.,, p. 299.
1158
Noronha, op. cit., p. 298.
1159
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, capilha 1, doc. avulso : Inventário de Setembro de 1895.
1160
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, doc. avulso: Planta do extinto mosteiro, levantada por Joaquim
António de Carvalho, em Setembro de 1895.
1161
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 41, 42, 43, 58, 224 v, 225; L 247, fols.. 20 v, 42 v, 157 v, 158, 161 v, 169 e outras.
1156
252
objectos necessários àquele trabalho1162. As religiosas gastavam todos os anos dez alqueires
de trigo na confecção de hóstias1163.
Toda esta zona de trabalho abria para o claustro, onde dois jardins, com um tanque
circular ao centro de cada um, davam beleza àquele recanto.
Alguns trabalhos, como os da sacristia e capela, enfermaria, refeitório, arranjo da
roupa, serviço da portaria, confecção de hóstias e outros mais, eram distribuídos pelas
religiosas todos os anos, enquanto outros, como por exemplo o serviço da cozinha, passava
por todas rotativamente. Duas religiosas em cada semana assumiam esse trabalho fraterno.
Para além destas tarefas domésticas, dedicavam-se ao bordado, pintura, miniatura, de que
falámos ao tratar da Cultura, trabalhos especializados, que exigiam aprendizagem e dons
específicos.
2. A cozinha
2.1. A alimentação quotidiana
A alimentação era sóbria, embora houvesse a preocupação da conservação da saúde
das religiosas. Com as fracas, as doentes, as jovens ou as idosas, havia a máxima atenção.
A base da alimentação era o pão, amassado no mosteiro, no qual, se fosse necessário,
se misturava um pouco de cevada. Nos livros de contas aparecem referências à conservação e
arranjo dos fornos1164 e à compra de lenha e de giesta para cozedura do pão, para a cozinha da
comunidade e da enfermaria e a confecção de hóstias1165. Por vezes as escrivãs registam
alguns carretos gratuitos, ofertas feitas ao mosteiro.
Nos anos em que compravam trigo, se não na totalidade, pelo menos em grande parte,
a aquisição deste cereal representava a maior despesa nos gastos alimentares. O preço do
moio dependia das boas ou más colheitas e da época da compra. Por isso, a comunidade, que
habitualmente comprava um moio por mês, a partir de 1750 passou abastecer-se de maior
quantidade nos meses do verão, época em que era mais em conta. Os preços, que em 1737
oscilavam entre os 300 e 450 réis, passaram, em 1750 e anos seguintes, para a ordem dos 400
a 600 réis o alqueire.
Quadro n º.41 - Compra de trigo
Agosto/Ag. Quantidade/alq. Valor/réis
1737-1738
1739-1740
1745-1746
1746-1747
1747-1748
1749-1750
1750-1751
1751-1752
1752-1753
1753-1754
1754-1755
1755-1756
1756-1757
612
612
685
720
538
650
611
370
600
720
690
234.350
255.000
319.000
309.000
207.000
288.000
244.000
165.000
206.500
255.400
340.000
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 14
1162
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 16-17: Inventário de Setembro de
1895.
1163
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 1-44 v, 153-156, 163v, 168, 176, 182, 198v.
1164
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 10. Em Novembro de 1725 a comunidade pagou mil réis pelo conserto de um forno e em
Dezembro do mesmo ano, mil e duzentos réis (fol. 10).
1165
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fols.. 10, 11, 12 e outros; L 273, fols.. 14, 15, 16, 41, 42, 43, 58, 225 e outros; L 247, fols. 20,
20v, 36, 42v, 157, 160, 164, 167, 204 v e muitos outros.
253
- 44 e 111-115v.
Este trigo gastava-se no fabrico do pão, como vimos dizendo, na confecção de bolos e
doces de qualidades diversas, no cuscuz e também nas hóstias. O gasto médio anual rondava,
no século XVIII, pelos 600 a 700 alqueires.
O arroz aparece com muita frequência nos livros de contas da comunidade1166. Não
temos dificuldade em afirmar que, depois do trigo, o arroz foi o cereal básico na alimentação
das religiosas das Mercês. Era aquisição mensal e também oferta frequente dos benfeitores.
No mosteiro gastavam-se os mais variados produtos: legumes, hortaliças, açúcar
branco e mascavado, lacticínios, peixe, carne, frutas, cebolas, alhos, sal, vinagre, especiarias e
outros mais. As hortaliças não aparecem muito discriminadas nos livros. Apenas encontramos
referidas a couves, nabos, repolhos e abóboras, quer compradas quer oferecidas. Na pequena
cerca do mosteiro também se cultivavam hortaliças. Aparece algumas vezes averbada a
compra de semente de couves para a horta. Gastava-se também inhame e frutas de várias
qualidades. Entre os legumes aparecem com frequência os grãos pardos, grãos brancos, feijão,
ervilhas e lentilhas brancas, que normalmente se compravam aos alqueires para consumo ao
longo do ano1167.
O azeite, para consumo e para alumiar, era comprado1168 e muitas vezes oferecido1169.
Além do azeite vulgar, gasto na cozinha, comprava-se azeite doce, de melhor qualidade, para
as doentes, bem como azeite de peixe1170.
O leite comprava-se raríssimas vezes, e sempre destinado às doentes. Porém, o uso da
manteiga era frequente. Adquiria-se para as doentes e a comunidade. Os bolos e algumas
iguarias levavam a maior fatia dessa aquisição1171. O queijo adquiria-se sobretudo pelo
Natal1172.
Como acompanhamento consumia-se peixe, ovos e carne, cuja compra se fazia mais
ou menos mensalmente. No arquipélago da Madeira havia quatro centros piscatórios de
particular importância: Câmara de Lobos, Paul do Mar, Machico e Porto Santo. O mosteiro
consumia peixe de Câmara de Lobos, normalmente comprado na portaria e muitas vezes
oferecido. As escrivãs poucas vezes descriminam as variedades de peixe consumido pela
comunidade. Apenas encontramos mencionado o bacalhau1173, o salmão1174, o arenque1175 e o
cherne, que se pescava a noroeste do Porto Santo1176. Contudo, conhecendo-se as diversas
espécies de peixe então consumidas pela população e nos outros mosteiros do Funchal,
poderemos concluir que também gastariam pargo, chicharros, sardinha e atum fresco, fumado
e salgado, até porque as escrivãs fazem algumas vezes frequência a peixe de vários preços e
qualidades. O bacalhau era a espécie mais consumida pela comunidade. A sua aquisição era
constante, sendo também oferecido com frequência.
1166
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 14, 16, 54, 55, 195, 204, 224 e muitos outros; L 274 fols. 20, 42v, 157, 158, 159, 160v,
161, 162v, 163, 166v, 167v, 168, 169, 204v e muitos outros.
1167
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 10 e outros; L 273, fols. 12v, 14, 41, 43, 53 e outros; L 274, fols.. 157v, 160v, 166, 169 e
outros.
1168
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 159v, 162, 162v, 164v, 165, 165v, 166, 167, 168, 168v, 169 e muitos outros.
1169
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 7v, 8; L 274, fols.62, 160, 162v, 164, 191 e outros.
1170
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 14, 15, 41, 42, 224v, 225 e outros mais; L 274, fols. 157v, 159v, 161, 161v, 162, 163,
165, 166, 168, 168v, 169 e outros.
1171
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 14, 16, 41, 54; L 274, fols. 157, 157v, 159v, 160v, 162, 164, 164v, 165, 168v, 169 e
outros.
1172
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fols. 10, 14 e outras; L 273, fol. 42; L 274, fols. 169, 277 e outros mais.
1173
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 15, 16, 41, 53, 224v, 225 e muitos outros; L 247, fols.. 157, 158, 159v, 160, 161, 161v,
163, 165, 166, 167, 168, 169 e muitos outros.
1174
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 167.
1175
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 16; L 274, fol. 158.
1176
Ilhas de Zargo, II, p.84.
254
Os ovos abundavam na dieta conventual. Eram produto alimentar normalmente
comprado em cada mês1177 e muitas vezes oferecido. No Natal, Páscoa e outras festividades, o
gasto de ovos aumentava consideravelmente, o mesmo sucedendo com a farinha, açúcar e
manteiga, por causa da confecção dos bolos, doces, cuscuz e outras iguarias.
Na mesa das religiosas das Mercês a carne só aparecia em dias festivos. Compravamse essencialmente aves, de várias qualidades, predominando o frango e a galinha As compras
estavam um pouco dependentes das ofertas que habitualmente se faziam à comunidade. As
aves consumiam-se no Entrudo do Advento, Natal, Entrudo da Quaresma, Páscoa, festa de
Santa Clara, de São Francisco, de Nossa Senhora das Mercês, Imaculada Conceição1178. Na
merenda de São Pedro, que normalmente tinha lugar na cerca do mosteiro, gastavam-se, se os
houvesse, chouriços, paio ou presunto, que pessoas amigas costumavam oferecer. Em
Outubro de 1785, para a festa de São Francisco, a comunidade adquiriu trinta aves de diversos
preços e de qualidades1179 e em 1786, para a mesma festividade, o bispo da diocese ofereceu
três perus, três patos, três aves e um cordeiro1180.
Para as doentes e para as fracas comprava-se vaca fresca, mais ou menos todos os
meses, como referem os livros de contabilidade. Esta aquisição destinava-se também, e
sobretudo, ao moço, servos e trabalhadores1181.
Como especiarias, compradas ou oferecidas, em uso na cozinha e sobretudo em
doçaria, gastava-se noz-moscada, canela, pimenta, almíscar, cravinho, erva-doce e açafroa1182.
2. 2. Épocas festivas: doces e outros manjares
Apesar da austeridade quotidiana, nas festas ao esplendor das liturgias juntava-se a
melhoria das refeições. Os bolos e outras iguarias, que sempre apareciam no Natal, Reis,
Páscoa, Espírito Santo, festas de Nossa Senhora, Santa Clara, São Francisco, São José, São
Lúcio, São Caetano, São João e outras mais, preparavam-se com a devida antecedência.
Contudo, nas Mercês, não havia a profusão dos bolos confeccionados nos outros mosteiros do
Funchal. Havia moderação. Confeccionavam-se para a comunidade, para as visitas e também
para ofertas a pessoas amigas e benfeitores. Na sua confecção, além de farinha de trigo, muito
açúcar e ovos, gastava-se mel, melaço, leite, manteiga, especiarias, nozes, amêndoas, passas,
erva-doce e outros ingredientes.
Os livros de contas não são pródigos quanto à variedade de doces, bolos e outros
manjares confeccionados. Apenas fazem menção de sonhos1183, rosquilhas1184, arroz-doce e
cuscuz1185. Sabemos, no entanto, pela tradição que se conserva no mosteiro de Nossa Senhora
da Piedade, que também faziam broas de mel e cavacas.
As rosquilhas, cavacas e broas de mel, dado que eram feitas no forno do pão e se
conservavam por muito tempo, confeccionavam-se em grande quantidade. Nelas se gastavam,
de cada vez, alguns alqueires de trigo1186. Nas cavacas utilizava-se simplesmente farinha e
ovos. Uma vez saídas do forno, eram metidas em calda de açúcar que as tornava mais
apetitosas. Nas broas utilizava-se farinha, açúcar, ovos, manteiga, melaço, soda e raspa de
1177
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 20, 157, 159v, 162, 164, 164v, 165, 165v, 166, 167 e 168.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fols. 10, 13, 14v, 17v; L 273, fols. 4, 15, 42, 213, 213v, 214, 214v, 224v; L 274, fols.. 162,
164, 165, 167, 169 e outros.
1179
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 160.
1180
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 168v.
1181
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 157, 157v, 158, 159, 159v, 160, 160v, 161, 161v, 162, 162v, 164, 164v, 165, 165v, 166,
166v, 167, 168, 168v, 169 e muitos outros.
1182
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 12v, 41, 42, 155, 187v, 196, 204v; L 247, fols. 20, 160v, 162v, 157, 165, 167, 167v e
outros.
1183
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 157.
1184
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 182 e 198.
1185
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 169, 176v, 182, 198 e outras.
1186
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 182 e 198.
1178
255
limão. As rosquilhas, muito trabalhosas, levavam farinha, manteiga, açúcar, água, uma pitada
de sal e fermento de padeiro. Uma vez entradas no forno, o tempo da cozedura era calculado
pela reza do terço. Quando terminasse esta oração, as rosquilhas estavam cozidas e louras,
prontas a sair. Nos sonhos gastava-se farinha, açúcar, ovos, casca de limão e fermento.
Faziam-se para a comunidade, visitas e benfeitores.
Quadro nº.42- Consumo de trigo em bolos e outras iguarias(alqueires)
Variedades e sua finalidade
Anos (ref. Dezembro)
1764
1765
1766
1767
1785
1786
1788
Cuscuz (religiosas e moços)
12
14
Rosquilhas (religiosas, visitas e benfeitores)
32,5
20
Bolos (benfeitores)
Bolos e iguarias (Natal e mais festas)
42
47
40,5
82
80
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 1- 44v e 157-203.
12
35
1789
1790
12
20
18
37
6
16
15
1793
10
22
28
A cada época ou festividade estava ligada uma determinada especialidade. Assim, no
Entrudo do Advento, na Quaresma e na festa de Nossa Senhora da Conceição, não faltavam
os sonhos e no Natal sempre havia bolos de mel, carne de vinho e alhos. No domingo de
Ramos e festa de São João, estava preceituado o arroz doce e na Páscoa o chocolate. O cuscuz
era prato da festa de Nossa Senhora da Conceição e Espírito Santo. Fazia-se para a
comunidade e para os servos.
No dia de 15 de Janeiro, festa de Santo Amaro e fim das festividades natalícias,
acabavam as doçarias. Era “o dia de varrer os armários, impondo-se a obrigação de consumir
nessa data o que restava da Festa”1187. As religiosas das Mercês viveram esta curiosa tradição
que as suas Irmãs do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade ainda conservam, embora sem o
radicalismo outrora habitual.
3 . Convívio fraterno
3. 1. No seio da comunidade
As religiosas, que habitualmente viviam em silêncio, tinham necessidade de
momentos de descontracção. Por isso, em hora determinada, a comunidade reunia-se para
convívio fraterno. Era hora de expansão, de alegria, de comunhão familiar. Este convívio ou
recreio tinha lugar em sala própria, situada no segundo andar, muito perto da enfermaria. Nele
tomavam parte todas as religiosas, inclusive as doentes, se a sua saúde lho permitisse. As
Irmãs, que durante o dia viviam recolhidas, em união com o Senhor, expandiam-se agora à
vontade. A alegria franciscana, sã e espontânea, reinava naquele ambiente simples. Com os
cânticos, por vezes acompanhados de instrumentos musicais, misturavam-se as anedotas, as
histórias, as mais variadas formas de partilha. Por vezes entretinham-se com qualquer trabalho
manual: renda, bordado, confecção de flores e trabalhos em linho.
Quando as religiosas o queriam e o tempo o permitia, o recreio tinha lugar no claustro
ou na cerca e, então, era quem mais corria e se expandia. Por um relatório de 1782, do
engenheiro Villavicêncio, mestre das obras reais, se sabe que as pessoas chegavam a “abrir
buracos e encostar escadas (...) ao muro (...) para ver as religiosas quando fazem procissões e
divertimentos”1188. Donde se infere que, tanto as procissões que tinham lugar no jardim, como
1187
Ilhas de Zargo, II, p. 518. Na Madeira de outrora e em certas localidades ainda hoje, “no dia 14, à noite, o povo percorria as casas da
família e de conhecidos, onde a abastança ou parcimónia existissem como virtudes peculiares. Reuniam-se aos grupos, apetrechados com
uma vassoura e um espanador, símbolos da limpeza doméstica, e assaltavam despensas e adegas, refastelando-se até de manhã. A última das
casas visitada era a mais sacrificada, porque pagava com algumas galinhas a canja de despedida, sobre a madrugada” (p. 518).
1188
ARM, Governo Civil, L 520, fols. 10 -12 : Relatório do capitão engenheiro António Villavicêncio, mestre das obras reais, de 5 de Janeiro
de 1782.
256
os divertimentos a que as Irmãs se entregavam nas horas de convívio, se viviam com tal
alegria e entusiasmo, que chegavam a despertar a curiosidade dos vizinhos.
Em certas festividades de santos populares como São Pedro e São João, as religiosas
costumavam recrear-se na cerca onde algumas vezes merendavam. A festividade de São João
era também o aniversário da profissão da Madre Brites da Paixão, que a comunidade sempre
recordava e festejava com amor. Haviam passado uns cem anos. Por 1830 lá estavam na cerca
mais uma vez, lembrando com carinho aquela sua Irmã que tão virtuosa fora. A Irmã Ana
Bárbara da Piedade, ainda nova, mas já paralítica, bondosa e cheia de espírito fraterno,
sabendo que os momentos de lazer que a comunidade passava lá fora eram deveras agradáveis
“ permitiu à enfermeira que acompanhasse as outras irmãs no recreio. Foi então que,
encontrando-se sozinha, invocou com fé e confiança a Madre Brites da Paixão e o milagre
deu-se. Saltou da cama e depois de vestir o hábito, assomou à janela da enfermaria que dava
para a cerca. Rapidamente todas se juntaram ao pé dela escutando e fazendo perguntas1189.
Nesse ano, o dia de S. João foi vivência bem original.
3. 2. Relacionamento com o exterior
Com as visitas dos familiares, amigos e benfeitores, havia muita comunhão e
transparência e, certamente por isso, todos saíam felizes e cheios de gratidão. Estas visitas
tinham lugar no locutório e aconteciam especialmente nas épocas festivas: Natal, Páscoa,
Santa Clara e outras, pois durante a Quaresma e o Advento as religiosas privavam-se deste
convívio por espírito de penitência e para viverem em maior recolhimento. Nessas ocasiões o
carinho era grande e traduzia-se em gestos de delicadeza como era a oferta de bolinhos,
confeccionados pelas religiosas ou pequenos presentes, como sinal de gratidão por atenções
recebidas.
Com os benfeitores e autoridades religiosas havia muitas vezes comunicação epistolar
testemunhando amizade e gratidão e, sobretudo, prometendo oração.
Em carta para a abadessa, a senhora Ana Joaquina Rosa, recordava e agradecia “aquela
tarde em que tive o gosto de estar com Vossa Senhoria e juntamente com as mais senhoras.
(...) Agora vou agradecer o mimo que Vossa Senhoria nos ofereceu (...)”.E, cheia de gratidão,
acrescentava que ainda havia de chegar a ocasião “de mostrar quanto eu e o meu filho vos
somos devedores.” Terminava pedindo a oração das religiosas: que “aquele filho me venha a
salvamento, para que esta triste mãe possa ter alívio em seu coração”1190.
Algumas vezes este convívio com pessoas amigas e piedosas processava-se no interior
da clausura. Por costume da época, algumas senhoras, com autorização papal e régia,
entravam no mosteiro para nele passarem alguns dias em recolhimento, desfrutando da paz
que aí reinava. Se tal costume prejudicou gravemente a disciplina regular nos mosteiros de
Santa Clara e de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal, e nos de Santarém, Lisboa,
Coimbra e outros1191, tal não aconteceu no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês. Ali, não só
não sofreu qualquer dano a disciplina claustral mas até acontecia que as senhoras, que tinham
o privilégio de nele ficar algum tempo, saíam muito edificadas com a vida das religiosas.
Embora sendo escassas estas visitas, referiremos algumas: pelo beneplácito régio de 4
de Maio de 1791, sabemos que D. Isabel Jacinta de Vilhena, obteve uma bula para entrar no
mosteiro: “a Rainha, Nossa Senhora, há por bem acordar o seu Real Beneplácito ao breve
1189
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia Brites da Paixão sobre a Madre
Brites da Paixão.
1190
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, doc. avulso: Carta de Joana Joaquina Rosa, não datada. Encontra-se inserida, naquele livro,
em capilha própria.
1191
Manuel Taveira, ofm, “Bulas referentes à Ordem Franciscanas em Portugal, no Bulário Franciscano”, Itinerarium, 6 (1960) 290-291.
257
incluso, para a suplicante poder entrar nos conventos de que se trata”1192. Pouco depois, em
1796, D. Luísa Francisca Correia Henriques e D. Andreza Gertrudes Bettencourt Atouguia
obtiveram um breve de Pio VI, que lhes permitia “entrar no Convento das Mercês do Funchal,
com duas matronas a seu arbítrio, três vezes cada ano”1193. Conforme se lê na carta do
escrivão da Câmara eclesiástica, o prelado aceitou o breve “em reverência à Sé
Apostólica”1194. As referidas senhoras, pertencentes à melhor nobreza da Ilha, ficaram pois
autorizadas a “entrar acompanhadas de D. Maria Joaquina de Brito e D. Maria Luísa Correia
de Brito, em hábito honesto e decente, na forma declarada no Breve por tempo de dez
anos”1195. Estas entradas, como acima ficou dito, foram raras e jamais criaram problemas. É
que, nesta casa religiosa, tudo se processava metodicamente. O dia a dia decorria na oração e
no trabalho. O viver virtuoso de cada religiosa, a delicadeza, a cortesia, as boas maneiras, o
amor fraterno e a simplicidade imprimiam nas visitantes uma viva admiração.
Os pedidos de oração eram igualmente ocasião de relacionamento e convívio. O
mundo exterior associava as religiosas às suas alegrias e dores e com frequência solicitava a
sua oração de louvor e de intercessão. Quando em 1841, o Ministro dos Negócios
Estrangeiros e da Justiça. António Bernardo da Costa Cabral, comunicou ao bispo do Funchal,
em nome da rainha D. Maria II, a feliz notícia de que, depois de longas diligências, haviam
sido reatadas as relações diplomáticas entre Portugal e a Sé Apostólica1196, o mosteiro foi
convidado a cantar “um solene Te Deum (...), a render graças a Deus Nosso Senhor (...), a
pedir a conservação da vida da nossa augusta rainha e da sua real família”1197.
Em 1852, estando doente a princesa D. Maria Amélia, mandava o prelado do Funchal,
D. Manuel Martins Manso: “as religiosas, na igreja desse convento, façam preces por três
dias, por suas melhoras, rezando-se a oração pro infirmis, a qual terá lugar nas missas que aí
se celebrarem”1198. A 21 de Fevereiro de 1864, as religiosas eram convidadas a dar graças a
Deus “pelo solene reconhecimento do Príncipe Real, o Senhor Dom Carlos”1199 e, a 31 de
Outubro, “pelo aniversário natalício de Sua Majestade, El Rey, o Senhor Dom Luís
Primeiro”1200. Os prelados tinham o cuidado de mandar comunicar às religiosas o que de mais
importante se passava e convidá-las a estar em sintonia com cada situação eclesial, social ou
política.
As cartas de particulares, de familiares e pessoas amigas traziam às religiosas não só
pedidos de oração como também o agradecimento por favores recebidos. As religiosas eram
auxílio espiritual para a humanidade e em especial para os irmãos mais próximos e mais
necessitados.
1192
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Carta de José de Seabra da Silva, com o beneplácito régio, dado em Nossa
Senhora da Ajuda, a 4 de Maio de 1791. Esta senhora também estava autorizada a entrar nos outros mosteiros do Funchal.
1193
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Carta de José Seabra da Silva, com o beneplácito dado no Palácio de Queluz,
de 9 de Julho de 1796.
1194
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso.
1195
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Carta de João Venâncio de Vasconcelos, de 9 de Setembro de 1796.
1196
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, doc. avulso: Carta de António Bernardo da Costa Cabral, do Paço das
Necessidades, de 1 de Julho de 1841.
1197
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, doc. avulso: Carta do Paço Episcopal, de 25 de Junho de 1841, do P.
José Joaquim de Sá, oficial maior da Câmara Eclesiástica.
1198
AHDF, Conv. Mercês F., doc. avulso : Carta circular da Câmara Eclesiástica, de 7 de Dezembro de 1852.
1199
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular de 21 de Fevereiro de 1864. Por esta agradável notícia, na igreja
do mosteiro, como nas demais do Funchal, devia haver “repiques de sinos amanhã, pelo meio-dia e à noite, conformando-se com os sinos da
catedral”.
1200
AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular de Jacinto Joaquim Monteiro Cabral, escrivão da Câmara
Eclesiástica, de 30 de Outubro de 1864.
258
CAPÍTULO VII
VIDA ECONÓMICA DO MOSTEIRO
1. Fontes de receita
1.1. Dotações feitas à Sacristia
Dado que as religiosas das Mercês, em virtude da Regra que professavam, não podiam
receber rendas nem ter propriedades1201, qualquer oferta em bens imóveis ou em dinheiro,
assim como os dotes das candidatas, eram entregues directamente à Sacristia do mosteiro.
Em 1716, Inácia das Chagas e Isabel do Sacramento, membros da Ordem Terceira do
Carmo, por escritura de 17 de Julho, feita no tabelião Manuel Rodrigues Pedreira, entregaram
à Sacristia do mosteiro “terras semeadas nos sítios do Porão, do Lombo das Laranjeiras e da
Grota”1202 na freguesia da Calheta. Estas fazendas, entregues a setenta e um foreiros,
revertiam em favor da Sacristia do mosteiro, que recebia o respectivo foro em dinheiro ou em
géneros, conforme o estipulado1203.
Os quantitativos mais significativos, porém, eram provenientes da dotação que cada
religiosa, no acto da sua entrada, fazia à Sacristia. Este dote devia ser dado a juros de 5% ao
ano, sendo aplicado o seu rendimento para as despesas da Igreja e do culto divino, e o
excedente para as necessidades da comunidade1204. Destes bens fazia-se uma escritura no
tabelião. Encontram-se escrituras nos tabeliães José Joaquim de Nóbrega e Matos, Honorato
do Monte Falcão, José Joaquim da Silva, Cândido Leal e Lacerda, Matias Gomes de Sousa,
José António Pereira Viegas, Sérvulo Nicolau de Sousa Drummond, Jacinto Augusto Pestana,
Manuel Rodrigues Pedreira, Francisco Inácio Xavier e Luís d’Oliveira1205. Nestas escrituras
constava o valor do capital, o mês em que era vencido o juro e o responsável pela sua entrega.
Acontecia muitas vezes que os pais das candidatas não entregavam o dote estipulado e dele
ficavam a pagar juros, encargo que à sua morte passava aos herdeiros.
Em 1764 a Sacristia do mosteiro tinha cento e dezasseis contratos de juros, dos quais
setenta e um diziam respeito a foreiros que trabalhavam as propriedades legadas à Sacristia
pelas duas Irmãs Terceiras do Carmo, acima referidas. Segundo D. Gaspar Afonso da Costa
Brandão, os rendimentos de bens pertencentes à Sacristia do mosteiro de Nossa Senhora das
Mercês era constituído por “juros, à razão de cinco por cento, na forma da Ley, que
repartidamente se pagam pelos meses do ano”1206 que então totalizavam 5.309.400 réis.
Quadro nº.43- Rendimentos da Sacristia (1764)
Capital/réis
Vencimentoo
Juros anuais
Contratos
de juros
(réis)
1201
RCL, VI, 12 e 13, in FF II, p. 54
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, capilha 1,doc. 1V/B/49/14: Mapa dos rendimentos
do Convento de nossa Senhora das Mercês do Funchal, de 27 de Fevereiro de 1861.
1203
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, capilha 1, doc. 1V/B/49/14: Mapa dos rendimentos
(...) 27 de Fevereiro de 1861.
1204
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, capilha 1, doc. 1V/B/49/14: Mapa dos rendimentos
(...) 27 de Fevereiro de 1861; AHU, Madeira, doc. 264 : Mapa dos rendimentos dos bens pertencentes ao mosteiro das Capuchas de Nossa
Senhora das Mercês, da Cidade do Funchal, que se compõem de juros, à razão de 5% na forma da lei, que repartidamente se paga pelos
meses do ano.
1205
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, capilha 1, doc. IV/B/49/14. Mapa dos rendimentos
(...) 27 de Fevereiro de 1861.
1206
AHU, Madeira, doc. 264. Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano.
1202
259
100.500
37.900
25.180
64.950
71.700
82.000
165.200
38.100
19.390
62.050
42.500
56.000
19
4
6
11
12
11
13
10
6
10
10
4
765.470
116
Janeiro
Fevereiro
Março
Abril
Maio
Junho
Julho
Agosto
Setembro
Outubro
Novembro
Dezembro
503.600
1.299.000
1.434.000
1.640.000
3.304.000
762.000
387.800
1.241.000
850.000
1.120.000
15.309.400
Fontes: AHU, Madeira, doc. 264:Mapa dos rendimentos (...)que
repartidamente se paga pelos meses do ano.
Deste capital, contudo, o mosteiro não recebia a totalidade dos juros, 765.470 réis,
mas somente 549.900, pois que, conforme se lê no referido documento, alguns arrendatários,
num total de dezanove, “não pagavam há muitos anos por falidos,” outros, porque,
“morreram com falência de bens”, outros ainda porque simplesmente foram tomando a
liberdade de não pagar1207.
E o prelado conclui: “este é todo o rendimento que tem a Sacristia do mosteiro das
Capuchas de Nossa Senhora das Mercês, desta Cidade do Funchal, e com que se sustentam
suas religiosas e mais pessoas da sua obrigação, e com que se satisfazem todas as despesas e
gastos do dito convento, como religiosas capuchas da primeira Regra de Santa Clara, não
possuem nem herdam bens alguns”1208. D. Gaspar Afonso da Costa Brandão menciona ainda
os legados feitos por Luís de Moura, o Dr. José Ferreira Pazes, o P. João Mendonça
Vasconcelos e D. Isabel da Ascensão e alguns benefícios régios 1209.
Para meados do século XIX, temos um mapa de 27 de Fevereiro de 1861, minuciosa
descrição dos rendimentos pertencentes à Sacristia .
Quadro nº.44- Rendimentos da Sacristia (1861)
Capital
200.000
400.000
461.900
338.760
1.010.000
250.000
60.000
728.000
1207
Juros /réis
10.000
20.000
23.095
16.938
50.500
12.500
3.000
36.400
Proveniência
1 dotação das religiosas
1 dotação das religiosas
6 dotações das religiosas
2 dotações das religiosas
4 dotações das religiosas
2 dotações das religiosas
1 dotação das religiosas
4 dotações das religiosas
Mês
Janeiro
Fevereiro
Março
Abril
Maio
Junho
Julho
Agosto
AHU, Madeira, doc. 264 : Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano.
AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano.
1209
AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano.
1208
260
300.000
300.000
200.000
2 foros
2 foros
2 fazendas
4.248.660
15.000
15.000
10.000
(géneros)
800
6.900
1 dotação das religiosas
1 dotação das religiosas
1 dotações das religiosas
Doação de devotos
Doação de devotos
Doação de devotos
Outubro
Novembro
Dezembro
Agosto
Agosto
-
220.133
Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa
2076, capilla 1, doc. IV/B/49/14: Mapa de 27 de Fevereiro de 1861.
Segundo este mapa, esses rendimentos provinham de vinte e quatro dotações de
religiosas e de propriedades doadas por pessoas devotas1210. O mapa de 27 de Fevereiro de
1861 inclui também uma pensão anual por que eram responsáveis os herdeiros de Roque José
d’Araújo Viana, que rendia mil réis, e algumas mercês régias, no total de 157.096 réis,
concedidas às religiosas.
O vencimento destes juros fazia-se ao longo do ano, conforme o estipulado em cada
escritura. Segundo o referido mapa, em Março, Maio e Agosto as religiosas recebiam juros de
catorze dotações, em Abril e Junho de quatro e das seis restantes ao longo dos outros meses.
Daqui se conclui que os arrendatários procuravam entrar com os juros na primavera e verão,
quando tinham mais facilidade de venda de produtos agrícolas.
1.2. Legados pios
Certas pessoas de sensibilidade religiosa faziam legados pios a casas religiosas ou de
beneficência, costume muito generalizado nos séculos XV a XVIII. Essas casas contraíam
responsabilidades de ordem espiritual para com os legatários, como atrás ficou dito. Como o
mosteiro das Mercês “adoptou a estrita observância da pobreza, não tendo enveredado pela
acumulação de bens”1211, muitas pessoas se sentiam movidas a favorecer o mosteiro com estes
benefícios.
Entre os vários legados feitos em favor do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês,
pelos quais era responsável a Santa Casa da Misericórdia do Funchal, como detentora dos
bens dos legatários, podemos mencionar os legados do Dr. José Ferreira Pazes, de D. Isabel da
Ascensão, do P. João Mendonça Vasconcelos e de Luís de Moura.
O mosteiro já em 1764 usufruía destes legados, pois vêm mencionados no mapa de
rendimentos que o prelado do Funchal enviou naquela data a Sua Majestade. Deles falam
igualmente os livros de receitas e despesas do mosteiro.
O Dr. José Ferreira Pazes, que legou os seus bens à Santa Casa da Misericórdia,
instituiu um legado anual em favor das religiosas, que consistia em: “Sessenta canadas de
azeite para as duas lâmpadas de Santo António, tanto do coro como da igreja, e para o
dormitório; cera para arder quando se celebrassem as missas no altar do santo, na sua trezena e
festas de Natal e da Ascensão; trinta e seis arráteis de cera em pau, para as religiosas fazerem
rolos para as matinas da meia-noite; dois almudes e meio de vinho, para as missas da capela
que instituiu; cinco mil reis em dinheiro, para se despenderem no ornato do altar do mesmo
santo”1212. O mesmo médico deixou também 80.000 réis “à R. M. Ângela de Fulgino, em cada
ano, para suas necessidades de saúde e doença enquanto for viva”1213. Esta oferta foi recebida
até 1769, ano em que a Madre faleceu1214.
1210
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, capilha 1, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos
(...) 27 de Fevereiro de 1861.
1211
José Manuel Azevedo e Silva, A Madeira e a construção do mundo atlântico -- séculos XV-XVII, II, Funchal, 1995, p. 934.
1212
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v; L 274, fols. 12, 14, 62, 145, 182, 191 e outros; AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos
rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano.
1213
AHU, Madeira, doc.264: Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano.
1214
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol. 2.
261
D. Isabel da Ascensão fez um legado pio à comunidade, que muito a beneficiou.
Destinava-se à aquisição de túnicas das religiosas. O respectivo rendimento era entregue ao
mosteiro de três em três anos1215. Os livros de receitas e despesas referem muitas vezes este
legado que, por exemplo em 1756, rendeu 81.388 réis1216 e em 1770, apenas 78.838 réis1217.
Do legado do Dr. João Mendonça e Vasconcelos, conforme o estipulado pelo
legatário, 4.000 réis revertiam em favor da enfermaria e dois mil destinavam-se ao lava-pés do
domingo da Paixão1218.
Luís de Moura e a sua mulher deixaram o rendimento da sua “terça” para ajuda da
compra dos hábitos das religiosas, esmola recebida de três em três anos, que em Outubro de
1770, totalizou 46.875 réis1219. Deste valor foram retirados 1.650 réis para as nove missas que,
cada três anos, deviam ser celebradas por Luís de Moura e sua mulher1220.
1.3. Ofertas certas e incertas
Aos rendimentos referidos devemos acrescentar as ofertas certas, isto é, aquelas a que
alguns clérigos e leigos se comprometiam, e outras ocasionais, embora bastante frequentes,
feitas por voluntários.
As ofertas certas, normalmente entregues aos síndicos ou procuradores do mosteiro,
faziam-se
Quadro nº.45-Ofertas certas e incertas (1726-1784)
Agosto/Agosto Ofertas certas/réis
1726-27
1727-28
1728-29
1738-39
1739-40
1740-41
1744-45
1745-46
1746-47
1747-48
1748-49
1749-50
1750-51
1751-52
1752-53
1753-54
1754-55
1755-56
1756-57
1757-58
1758-59
1765-66
1768-69
1769-70
1773-74
1774-75
1775-76
1776-77
1777-78
1778-79
1779-80
1215
512.620
483.500
460.410
634.525
631.650
712.450
612.700
556.800
667.700
744.600
797.900
936.282
754.400
740.100
797.375
788.000
757.540
781.250
881.940
896.150
952.200
652.700
645.600
700.500
413.750
339.900
333.350
385.300
243.100
339.650
275.500
Ofertas incertas/réis
60.050
69.550
27.900
33.800
49.490
23.000
29.000
39.600
27.000
29.250
86.400
46.900
108.900
60.800
54.250
58.400
31.000
48.000
19.350
24.300
23.500
68.500
41.550
38.150
78.250
98.400
123.850
52.200
86.450
82.100
101.550
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 62, 136, 145, 167 e outros.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v.
1217
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 62.
1218
AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano. ; ARM, Conventos, Conv.
Mercês F., L 274, fol.. 144, 189 e outros mais.
1219
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v.
1220
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v; L 274, fols. 20, 136, 145 e outros.
1216
262
1780-81
1781-82
1782-83
1783-84
340.550
300.800
309.950
341.000
98.850
94.250
136.000
85.800
Fonte: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol.1-20 e ss, L
273, fols. 1-239 e L 274, fols.13-156v.
em dinheiro e em trigo, e as incertas igualmente em dinheiro e nos mais diversos géneros:
trigo, hortaliças, legumes, manteiga, bacalhau, arenque, carne de vaca, azeite, aves, carretos
de giesta e de lenha, cera para iluminação e o culto divino.
Até meados do século XVIII, as ofertas certas e incertas foram sempre em ritmo de
crescimento, atingindo o seu valor máximo na década de cinquenta, começando então a
declinar.
Dos 512.620 réis recebidos como ofertas certas de Agosto de 1726 a Agosto de 1727,
passou -se para 952.200 réis, recebidos em 1758-1759. No período de três décadas, o total
destas ofertas quase duplicou. O facto tem a ver com o aumento de proventos e a abundância
que caracterizou a primeira metade do século XVIII. A partir da década de sessenta, as ofertas
certas em dinheiro começaram a diminuir porque alguns dos benfeitores habituais passaram a
assumir o fornecimento de trigo. De facto, a partir daquela década, os livros deixaram de
apresentar a compra do trigo. As ofertas em dinheiro mantêm mais ou menos o mesmo ritmo,
ao longo de todo o século, como mostra o quadro 45.
Na época das colheitas havia o costume de se recolherem “nas eiras e lugares”
ofertas para o mosteiro. As pessoas encarregadas dessa recolha eram portadoras de um alvará
passado pelo prelado: “pelo presente alvará concedemos licença (...) para que pelas eiras e
lugares das freguesias deste Bispado e Porto Santo, se possam receber as esmolas que os fiéis
voluntariamente quiserem oferecer”1221. Para evitar qualquer abuso, era o pároco que
anunciava a presença dos encarregados e fazia a leitura do alvará.
Quadro nº.46- Ofertas em trigo (alqueires)
Ano
Ofertas
certas incertas
1765
1769
1770
1774
1775
1776
1777
1778
1779
1780
1781
1782
1783
1784
1785
1786
1790
1791
462
477
573
661
613
361
279
237
320
500
482
322,5
389
403
623
795
608
702
133
130
100
147
199
187
247
151
35
161
115
138
-
Despesas
Sobras
454
539
608
488
467
431
365
494
521,5
503
475,5
467
491
623
795
554
665
8
71
95
273
146
47
60
73
139,5
14
8
37
50
54
47
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 6 -193.
Quadro nº.47- Ofertas em géneros (não incluído o trigo)
Agosto/Ag
Oferente
Ofertas
.1221 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, doc. avulso: Alvará do Bispo do Funchal de 13 de Julho de 1800.
263
1737-381222
Reverendo Bispo
General da Ilha
Chantre da Sé
Provedor da Fazenda
Vigário de S. Roque
Dr. António Mendes de Almeida
Reitor do Colégio
Vários
1738-391223
Cura da Ponta do Sol
Reverendo Bispo
D. Teresa de Campos
Senhor Nicolau
Chantre da Sé
Dr. António Henriques
Francisco Luís de Vasconcelos
D. Guiomar
1785-861224
Excelências da Fortaleza
Tomé José
João Pestana
Do Síndico
1786-871225
D. Luísa Francisca Correia
D. Isabel Maria de Sá
José Faria
Paulo Malheiro
P. Francisco Plácido
Do Paul
D. Guiomar
José de Faria
Freguesia de N. S. da Graça
D. Joana Teresa de Sá
Do Síndico
Excelências da Fortaleza
D. Isabel Maria de Sá
D. Antónia Rosa
Governador da Ilha
João Pestana
Colégio
Tomé José
Peixe (várias vezes)
Dois cestos de peixe
Um cordeiro, pescadas e uma arroba de vaca
Um cherne
Dois barris de vinho para missa
Uma cordeira
Um carneiro, um queijo e seis línguas
Duas arrobas de vaca, dezoito abóboras, um alqueire de feijões, uma
perna de vaca, seis canadas de azeite, seis aves, duas dúzias de
coelhos e uma arroba de manteiga
Oito cabos de cebolas
Uma pescada e uma cordeira
Doze abóboras e dois cabos de cebolas
Uma arroba e meia de arroz
Uma perna de vaca e trinta peixes
Um alqueire de feijão e outro de grão
Um quintal de bacalhau
Uma arroba de açúcar e uma e meia de manteiga, um porco e um
saco de feijão
Peixe (várias vezes)
Treze sacos de milho, um saco de feijão e peixe
Peixe
Peixe, quatro canadas de azeite, vinte e cinco libras de bacalhau,
duas arrobas de arroz e meia de salmão
Um cordeiro
Cinco alqueires de favas e outros cinco de feijão
Peixe (várias vezes)
Cinco alqueires de milho
Vinte canadas de azeite
Três dúzias e meia de abóboras
Três dúzias de abóboras, um porco, dois sacos de favas e feijão
Vários peixes e uma quantidade de atum
Dezasseis aves, quinhentos ovos e oito galinhas
Dois barris de farinha e quatro arrobas de açúcar
Quatro arrobas de arroz e três da manteiga
Dois chernes e vários peixes
Quatro alqueires de feijão
Um alqueire de feijão
Um cherne
Peixe
Uma perna de vaca e um carneiro
Dois sacos de milho
Na segunda metade do século XVIII o gasto de trigo diminuiu, dado que, em
consequência das leis pombalinas, a comunidade foi decrescendo. De um gasto médio de 672
alqueires por ano, que o quadro 41 nos deixa ver, passou-se para um consumo médio de uns
562 alqueires, com a excepção para o final da década de oitenta em que foram levadas a cabo
importantes obras (quadro 46). Com operários e servos gastava-se muito trigo. Em 1785-1786
o consumo ascendeu a 795 alqueires.
As ofertas de trigo em grão e, por vezes em farinha, apresentadas ao mosteiro, eram
abundantes, pois habitualmente sobrava um certo quantitativo para o ano seguinte.
Além do trigo, entre muitos produtos oferecidos à comunidade aparece o arroz, a carne
de vaca fresca e seca, aves, peixe, particularmente o bacalhau e o cherne, coelhos, carne de
porco, manteiga, açúcar, hortaliças, legumes, especialmente o feijão, lentilhas, ervilhas, favas
e também cera e linho.
Os oferentes eram os mais diversos: o bispo, o vigário geral, o chantre da Sé, os
vigários paroquias, o reitor do colégio de S. João Evangelista, o deão, os síndicos do mosteiro,
as Excelências da Fortaleza, o governador da Ilha, o provedor da Fazenda Real e sua esposa, o
1222
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 7v-8.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 9-9v.
1224
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 160-162v.
1225
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 164-168.
1223
264
general da Ilha, o almoxarife, a condessa de Ega, enfim um grande número de pessoas
residentes na Ilha e até turistas ingleses.
O quadro 47 é uma pequena amostra do ritmo de ofertas feitas ao mosteiro de Nossa
Senhora das Mercês. Eram muitas as pessoas que gostavam de contribuir para a sustentação
daquela comunidade que a todos acompanhava com a sua oração.
1.4. Mercês régias
O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, ao longo dos anos, foi alvo da protecção da
Coroa.
Aquando da fundação, a rainha regente, D. Luísa Francisca de Gusmão, concedeu-lhe a
“ Esmola Anual de dezasseis mil réis, por Alvará Régio de 28 de Novembro de 1676, aplicado
para as necessidades das religiosas”1226.
D. João V deu ao mosteiro a “Esmola de quarenta mil réis concedida às Religiosas
capuchas do Convento de Nossa Senhora das Mercês, por Alvará Régio de 19 de Agosto de
1715, aplicada para o pagamento do ordenado do confessor do convento”1227.
Em Julho de 1746, por mandado do Conselho da Fazenda, o mosteiro foi agraciado
com oitocentos mil réis para obras e em Agosto de 1752 com mais quatrocentos mil para a
mesma finalidade1228. Por alvará régio de 3 de Janeiro de 1752, D. José fez à comunidade a
mercê anual “de uma arroba de cera (...), aplicada para a festividade de S. José”1229,
certamente obséquio para com o santo do seu nome.
Sua Majestade Fidelíssima agraciou o mosteiro com “ dezasseis mil réis, pagos pelos
seus almoxarifes”1230e, por provisão do Erário Régio de 7 de Junho de 1784, concedeu-lhe
“duas arrobas de cera (...) aplicadas para a festividade do Santíssimo Sacramento”1231. Seu
filho D. João VI, “por sua benignidade”, agraciou a comunidade com a “Esmola anual de tinta
e seis canadas de azeite, por Provisão do Erário Régio de 26 de Janeiro de 1803” 1232 e em
1819, “com a esmola anual de uma pipa de vinho e um moio de trigo, concedidos por Carta
Régia de 28 de Agosto de 1819 para pagamento do sacristão do convento”1233.
Pelos livros de receitas do mosteiro verificámos que os benefícios régios se cumpriam:
“da Alfândega se pagou neste ano (1782) a esmola de quinze mil oitocentos e cinquenta réis
mandada por Sua Majestade”1234; “declaro que neste ano (1791) se receberam da Alfândega
nove arrobas de cera que a Rainha Nossa Senhora dá de esmola, duas em cada ano, a esta
comunidade e uma para a festividade de S. José”1235. E as transcrições podiam ser mais.
2. Economia interna
2.1.Os livros de receitas e despesas
1226
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27
de Fevereiro de 1861.
1227
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27
de Fevereiro de 1861.
1228
Rui Carita, op. cit., IV, p. 395, nota 620.
1229
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27
de Fevereiro de 1861.
1230
AHU, Madeira, doc 264: Mapa do rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano.
1231
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27
de Fevereiro de 1861.
1232
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27
de Fevereiro de 1861; AHDF, Conv. Mercês, F. caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Carta da Junta da Fazenda da Ilha da Madeira para Sua
Alteza Real de 12 de Agosto de 1803.
1233
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27
de Fevereiro de 1861.
1234
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 274, fol. 145.
1235
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 274, fol. 187.
265
As contas eram lançadas em livros próprios. Na primeira página de cada livro
escrevia-se: “ Livro das contas de receitas e despesas, das esmolas certas e incertas, do
Convento de Nossa Senhora das Mercês, principiado a (...) sendo Abadessa a Madre (...) e sua
escrivã (...).” Como as religiosas das Mercês professavam a pobreza individual e colectiva,
não tinham propriedades1236. Viviam, portanto, do seu trabalho e das ofertas da população da
Madeira e Porto Santo. Assim instituído, o mosteiro estava entregue à providência de Deus e
à generosidade dos irmãos que jamais lhes faltaram com as suas ofertas em dinheiro ou
géneros.
Estes livros, no final de cada ano, e por vezes de cada triénio, eram enviados ao
prelado da diocese para verificação e aprovação das contas. Em 1738 as contas foram
aprovadas com “um louvor” e, em 1739, o visitador, que por ordem do prelado as verificou,
escreveu: “Aprovo estas contas com o louvor que merecem por sua clareza.” Também em
1740, o mesmo visitador, as aprovou “com louvor pela clareza e boa forma com que vão
lançadas neste livro”1237. Em 1743, o apreço do escrivão e secretário da Câmara Eclesiástica
pela perfeição detectada, é ainda maior: “E como às sobreditas contas, além de se acharem
com toda a clareza neste livro (...) lhes não descubro defeito ou imperfeição alguma, não
posso deixar de as aprovar (...) louvando a forma delas”1238. No primeiro ano de governo da
Madre Mariana do Sacramento, o louvor estendeu-se também ao conselho da abadessa1239.
Se a transparência das contas não fosse total ou qualquer erro se detectasse, o livro era
devolvido para revisão, como aconteceu no final do triénio da Madre Antónia Clara do
Sacramento, em que as contas apresentavam alguns equívocos. À chamada de atenção de D.
Gaspar Afonso da Costa Brandão, respondeu a escrivã, Ana Margarida de S. Joaquim, com a
respectiva rectificação e o pedido de desculpa. Já com as respectivas alterações, a 7 de Maio
de 1781, as contas receberam a aprovação e a assinatura do prelado da diocese1240.
2.2. Balanços anuais
Os livros de receitas e despesas dão-nos o esquema económico do mosteiro. O bispado
do Funchal, ou seja as Ilhas da Madeira e Porto Santo, assumiu no momento da fundação a
responsabilidade da sustentação das religiosas. Se as ofertas não fossem suficientes, as terras
do padroado forneceriam ao mosteiro o dote estipulado: 14 moios de trigo. O mosteiro
usufruía de ofertas certas e incertas, de legados pios1241, de benefícios régios1242 e dos juros da
dotação das candidata.
As despesas ordinárias incidiam na alimentação, carretos de lenha, conserto de
objectos domésticos, da bomba e da levada, reparações do edifício, particularmente os
telhados e fornos, compras para as doentes, despesa com a igreja, o moço de fora e alguns
serventes ocasionais.
Até à década sessenta do século XVIII iam aumentando as receitas do mosteiro como
nos mostra o quadro 49, mas também as despesas da comunidade cresciam progressivamente
dada a subida do custo de vida e o crescimento da comunidade.
1236
RCL,VI, 12-13, in FF II, p..54; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 48v.
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 82v.
1239
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 190.
1240
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 85.
1241
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, 273 e 274; AHU, Madeira, doc. 264.
1242
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, capilha 1, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...) de 27 de
Fevereiro de 1861.
1237
1238
266
O mesmo quadro mostra que havia dificuldade em conseguir um perfeito equilíbrio de
contas. Facilmente se compreende que a comunidade se imporia restrições a si própria e
viveria com muita
Quadro nº.48-Despesa da comunidade, doentes, igreja e servos
Ano (Agosto) Comunidade Irmãs doentes
1726-27
1727-28
1728-29
1738-39
1739-40
1740-41
1744-45
1745-46
1746-47
1747-48
1748-49
1749-50
1750-51
1751-52
1752-53
1753-54
1754-55
1755-56
1756-57
1757-58
1758-59
1764-65
1765-66
1766-67
1767-68
1768-69
1769-70
1773-74
1774-75
1775-76
1776-77
1777-78
1778-79
1779-80
1780-81
1781-82
1782-83
1783-84
468.790 (réis)
382.300
417.750
515.690
540.260
610.010
525.920
490.400
583.360
626.200
720.900
801.482
716.950
613.050
673.255
692.500
560.800
642.930
725.650
742.370
702.700
326.850
294.000
331.810
263.900
516.450
505.450
266.715
252.735
272.720
270.490
249.280
293.300
221.700
208.700
194.200
216.350
252.850
75.200 (réis)
136.400
45.720
98.690
93.550
77.500
61.960
75.750
69.440
111.300
119.400
145.150
100.800
123.500
107.050
104.400
114.200
113.120
109.700
119.440
180.400
248.800
158.000
70.450
127.390
97.050
128.800
112.760
95.490
86.060
71.140
47.420
45.400
47.550
67.200
124.800
85.350
109.400
Igreja
57.820 (réis)
81.958
75.250
61.630
51.980
90.450
62.300
36.050
44.370
50.450
50.750
37.280
58.350
63.950
82.170
54.000
118.740
66.350
74.350
57.700
86.650
39.800
49.000
27.000
28.650
11.800
15.450
83.500
5.400
51.650
36.850
7.100
54.850
36.550
84.650
65.000
67.450
15.500
Servos
950(réis)
3000
5.800
10.570
14.850
21.700
6.600
10.200
13.150
13.340
6.200
21.400
4.200
10.500
8.800
16.850
12.840
9.940
25.100
60.700
80.200
82.680
79.800
74.000
72.150
45.575
47.175
50.620
48.870
50.600
36.250
8.050
73.850
48.900
37.850
43.500
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fols. 10,....; L 273, fols. 1-90.
sobriedade, o que aliás fazia parte do carisma porque haviam optado. Contudo, o mosteiro
nunca conheceu desequilíbrios financeiros como sucedeu em tantos outros. As religiosas, com
a necessária moderação nos gastos, conseguiam ir equilibrando as despesas no quotidiano,
embora utilizando parte das esmolas da capela, que repunham logo que lhes era possível.
Porém, diante de gastos extraordinários, como eram as obras, sentindo-se impotentes para lhes
fazer face, recorriam à coroa, que muitas vezes as auxiliou.
O edifício primitivo era uma construção modesta e sempre se conservou simples e
sóbria na sua arquitectura. Havia, no entanto, que reparar estragos e fazer melhoramentos,
quando necessário. Em 1746, sendo abadessa a Madre Mariana do Sacramento, deu-se
começo a obras de restauro na igreja e na parte habitacional, de que, no dizer de Fernando
Augusto da Silva, “muito necessitava todo o edifício.”1243 As obras continuaram ao longo dos
triénios das Madres Maria Teresa da Assunção (1747-49) e Maria de São Francisco (175052). Fizeram-se importantes melhoramentos na igreja, no coro das religiosas, na zona de
noviciado e dormitório. Foi também reparado o muro da cerca, como podemos intuir do
1243
Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 181.
267
mandado do Conselho da Fazenda de 20 de Julho de 1746, em que se concederam ao mosteiro
“oitocentos mil réis por uma só vez (...) para conserto dos muros da cerca, do dormitório, casa
de noviciado e coro da igreja (...)” e em 9 de Agosto de 1752 “mais quatrocentos mil réis,
sobre os já concedidos oitocentos (...), para completar o muro ”1244. Contribuiu, pois, o Erário
Régio com um milhão e duzentos mil réis para estas obras1245.
Na segunda metade do século XVIII, com as leis pombalinas, os mosteiros viram os
seus rendimentos diminuídos, suprimidos todos os privilégios e, o que era muito mais grave,
impedidos de receber noviças1246. Além disso os rendimentos das dotações, legados pios e
outros benefícios em favor do mosteiro, que eram constituídos por juros à razão de 5%,
sofriam irregularidades, pois os responsáveis por eles nem sempre agiam conscienciosamente
e, outras vezes, como informam os documentos, entravam em falência. Acrescia que, andando
o padroado em litígio, as religiosas se viam privadas do trigo que deviam receber das terras
que constituíam o padroado. Também as esmolas certas, foram descendo gradualmente,
passando da média dos 700 mil réis em meados do século, para os 600, 500 e 400 mil, vindo a
estabilizar, a partir de 1776, nos 300 mil réis (quadro 45). As esmolas incertas eram muito
oscilantes. Por outro lado, não entrando candidatas, dada a proibição régia de 1764, as
religiosas foram adoecendo umas e envelhecendo outras, ficando a comunidade reduzida a
uma média de dezassete a vinte membros, desde aquela data a 1795, ano em que o bispo do
Funchal foi autorizado a prover os lugares que fossem vagando1247.
Ao longo destas três décadas as despesas da enfermaria aumentaram
consideravelmente, chegando, em certos anos, como sucedeu em 1765, 1766 e 1782, a
exceder metade da despesa feita com a comunidade (quadros 40 e 48). E, porque as religiosas
eram poucas e com a saúde debilitada, viram-se na necessidade de recorrer a trabalhadores
para a cerca e até a ter uma e por vezes duas lavadeiras, o que aumentou substancialmente as
despesas de cada mês. Na década de oitenta, houve
Quadro nº.49- Balanços anuais
Agosto/Ag. Receita / réis Despesa / réis
1737-38
1738-39
1739-40
1740-41
1741-42
1742-43
1743-44
1744-45
1745-46
1746-47
1747-48
1748-49
1749-50
1750-51
1751-52
1752-53
1753-54
1754-55
1755-56
1756-57
1757-581248
1244
686.765
700.640
749.660
702.350
735.800
736.617
656.780
612.400
710.320
794.950
894.050
997.182
882.300
821.900
869.675
861.400
802.540
839.250
921.700
929.450
999.850
686.765
700.640
749.660
702.350
735.800
736.617
656.780
612.400
710.320
794.950
894.050
997.182
882.300
821.900
869.675
861.400
802.540
839.250
921.700
929.450
999.850
Saldo / réis
-50.000
-17.460
-20.000
-16.920
-15.080
-16.000
-15.620
-21.100
12.750
-14.000
-19.000
-20.000
-98.000
-15.000
-14.000
-10.000
-20.490
-19.000
-19.150
Citado por Rui Carita, op. cit., IV, p. 395, nota 620.
Elucidário Madeirense, II, p.308.
1246
AHU, Madeira, doc. 260: Ofício do bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, para Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, de 16 de Agosto de 1764.
1247
AHU, Madeira, docs. 788 e 789 e 803.
1248
No livro 273, contrariamente ao que sucedia com o 274, a escrivã, servindo-se do dinheiro da caixa das esmolas do sepulcro do Senhor
ou do Menino Jesus, igualava as despesas e as receitas. Era uma questão de método , pois o saldo continuava negativo.
1245
268
1764-65
1765-66
1766-67
1767-68
1768-69
1769-70
1770-71
1771-72
1772-73
1773-74
1774-75
1775-76
1776-77
1777-78
1778-79
1779-80
1780-81
1781-82
1782-83
1783-84
1784-85
1785-86
1786-87
1788-89
665.100
652.700
531.900
505.340
687.150
738.650
584.250
595.665
630.950
492.000
438.300
457.200
437.500
329.550
421.750
377.050
439.400
395.050
487.900
426.800
480.350
681.500
1.045.423
965.343
675.550
627.900
511.950
499.740
699.300
721.850
557.660
613.875
620.140
507.550
416.350
461.050
427.350
329.400
429.800
362.750
434.400
432.900
471.550
421.250
531.000
681.500
1.045.423
955.743
-10.450
14.350
19.050
5.600
-12.150
16.800
26.590
-18.210
22.600
-15.550
21.950
-3.850
10.150
150
-8.050
14.300
5000
-37.850
16.350
5.550
-50.650
11.000
9600
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L. 273, fols.1-293,
L 274, fols.1v-182.
também necessidade de obras, primeiro no muro pois que estava devassado em vários
pontos1249e depois na parte habitacional. Como consequência, apesar do auxílio da Coroa, o
primeiro ano do triénio da Madre Antónia Maria da Cruz termina com uma divida de 37.850
réis que é saldada no ano seguinte (quadro 49).
No triénio 1784-1787, a Madre Antónia do Sacramento levou a cabo importantes
obras, que naturalmente desequilibraram as contas do primeiro ano. Os gastos com os
pedreiros e serventes, compra de cal, areia e outros materiais, foram consideráveis. Em 1787 o
edifício estava todo caiado, belo e harmonioso. Estas obras foram possíveis graças à
moderação nos gastos habituais e à generosidade de quantos contribuíram para elas1250.
Para conseguir o equilíbrio das contas as religiosas, com conhecimento e autorização
do prelado diocesano, recorriam às esmolas da caixa do sepulcro do Senhor ou do Menino
Jesus, onde os fiéis lançavam o seu contributo para a armação do sepulcro da Sexta-feira
Santa e das festas natalícias. Havia, porém, obrigação e o cuidado de repor sem demora o
valor retirado e, sobre isso, incidiam as recomendações da autoridade eclesiástica. Em 1740 o
visitador, quando aprovou as contas, “recomendou à abadessa Maria Teresa da Assunção e
sua escrivã, Ângela Maria da Glória que, os cinquenta mil réis que haviam, sido retirados das
esmolas do sepulcro do Senhor para equilíbrio de contas, se repusessem “o mais depressa
possível”1251. Na primeira metade do século XVIII recorreu-se normalmente à caixa de
esmolas do sepulcro do Senhor e na segunda metade à caixa do Menino Jesus1252.
As religiosas tiveram, então, de entrar num regime de austeridade, reduzindo os gastos
ao mínimo possível para que uma crise económica, como a que se verificava nos outros
mosteiros do Funchal, não acontecesse. Não obstante tão agudas dificuldades, as abadessa
foram conseguindo equilibrar as contas de cada ano,. Podemos mesmo afirmar que, ao longo
de duzentos e quarenta e três anos, o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês não conheceu
crises económicas.
1249
ARM, Governo Civil, L 520, fols. 10-11 : Relatório do capitão engenheiro João António Villavicêncio, mestre das obras reais, feito no
Funchal a 5 de Janeiro de 1782.
ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 274, fols. 160-171.
1251
ARM, Conventos, Conv. Mercês F. , L 273, fols 48v.
1252
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 45v, 58, 66v, 73, 79, 93v, 101, 126, 144, 150v, 156, 159 e 176.
1250
269
CAPÍTULO VIII
PATRIMÓNIO ARTÍSTICO
O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, embora modesto, tinha um património
artístico de apreciável valor, na sua maioria oferta de amigos e de familiares das religiosas.
Aquando da proclamação da República, uma boa parte deste património passou para a
Igreja de São Pedro, matriz da paróquia a que o mosteiro pertencia. Sabe-se que, quando em
Janeiro de 1911 o imóvel foi cedido à Câmara Municipal para nele instalar a cadeia, os
objectos de culto da capela de Nossa Senhora das Mercês foram armazenados em Santa Clara.
Em 1914 a confraria do Santíssimo Sacramento da referida paróquia pediu a cedência de
alguns desses bens para o serviço de culto1253, pelo que uma boa parte dos objectos religiosos
que lá se encontravam passaram para a igreja de São Pedro. Além disso, algumas pessoas
procuravam adquirir artigos religiosos das Mercês, que uns conservavam devotamente em
suas casas, e outros ofereciam à igreja de São Pedro.
1253
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Carta do inspector das Finanças do
Funchal para o director geral da Fazenda Pública de 7 de Novembro de 1914.
270
1. Paramentos e pratas
Começaremos por fazer referência a alguns paramentos de valor que a capela possuía,
alguns dos quais oferecidos pela Coroa. Sabe-se que, em 1803, as religiosas solicitaram a Sua
Alteza, entre outras peças, um par de dalmáticas brancas, pretas, encarnadas, roxas, duas
capas de asperges, uma roxa e a outra preta, e um dossel branco1254.
Quadro nº.50 - Alguns paramentos
Descrição
Valor/réis
3 capas de asperges de damasco branco
3 véus de ombro de damasco branco
12 casulas de damasco de cores diversas
1 casula de damasco encarnada bordada a ouro
1 par de dalmáticas de damasco encarnado
1 par de dalmáticas de damasco roxo
1 par de dalmáticas de damasco branco, bordadas a retrós
12 alvas de linho guarnecidas com rendas
12 frontais de damasco do altar mor
10.000
3.000
12.000
5.000
10.000
3.000
20.000
17.000
20.000
Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças,
Conv. Mercês, F., caixa 2076, fols.4 -5: Inventário de Setembro de
1895 e Inventário de 6 de Novembro de 1895.
Sabemos que os objectos de prata, pertencentes à capela, totalizavam trinta e oito peças,
cujo peso somava 38.653 gramas. Esta prata, avaliada à razão de 30 réis o grama, em virtude
do uso que os objectos tinham, atingiu o valor de 709.290 réis1255. Fora da capela, a
comunidade não possuía qualquer objecto de prata.
Quadro nº.51 - Objectos em prata
Descrição
Peso / grama Valor / réis
1 cruz e respectiva haste
1 custódia em prata dourada, lavrada
1 lâmpada em prata dourada, lavrada
1 lâmpada em prata dourada, lavrada
1 lâmpada em prata dourada, lavrada
1 coroa de prata dourada, lavrada,1256
9 resplendores de vários tamanhos e feitios
1 turíbulo em prata dourada, lavrada
1 naveta e uma colherinha
1 haste e um pendão
1 caixa redonda da chave do sacrário
1 prato para galhetas
1 coroa pequena
1 píxide
1 píxide
1 cálice, patena e colher
1 cálice, patena e colher
4 guarnições do sacrário e sacras
1 purificador
1 bandeja
Total:
2.735
2.524
5.637
2.780
3.165
708
690
600
332
60
180
178
23
628
679
720
520
1.226
136
122
23.653
82.050
75.720
169.110
83.400
94.950
21.240
20.700
18.000
9.960
1.800
5.400
5.340
6.090
18.840
20.370
21.600
15.600
36.780
4.080
3.660
709.290
Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv.
Mercês, F., caixa 2076, fols.5v-7: Inventário de Setembro de 1895 e
Inventário de 6 de Novembro de 1895, não paginado.
1254
AHDF, Conv. Mercês, F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Petição da Madre Antónia Clara do Sacramento, para sua Alteza D. João VI,
de 30 de Abril de 1803.
1255
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Inventário de Setembro de 1895, fol.
7; Inventário de 6 de Novembro de 1895, não paginado.
1256
Esta coroa pertencia à imagem de Nossa Senhora da Conceição da capela.
271
Segundo as Ilhas de Zargo, a prata ao serviço do mosteiro das Mercês teve fim estranho.
O tesouro parcelar, constituído por um pálio, turíbulos, cálices, âmbulas, castiçais e uma
custódia, depois de arrolado, foi confiado ao Procurador da República, sendo mais tarde
depositado na Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência da Madeira por ordem do
Ministério das Finanças. Entretanto, a confraria do Santíssimo Sacramento de Santa Luzia
desejou adquirir as referidas peças em prata. Contudo, a 20 de Agosto de 1926, era informada
de que o pedido dirigido ao Ministro da Justiça, em que se solicitava a cedência “das alfaias e
mais pertenças da extinta capela de Nossa Senhora das Mercês” fora indeferido “por ser
vedado por lei entregar quaisquer objectos congreganistas, cuja alienação só pode realizar-se
por meio de venda em hasta pública”1257. Três anos depois, a Comissão Jurisdicional dos Bens
Cultuais comunicava: O Ministro da Justiça, por seu despacho de ontem, autorizou a cedência,
pelo preço da avaliação feita a 25 de Junho de 1926 – 19.853$50 –, a essa Confraria, de todos
os objectos que pertenceram ao Convento das Mercês dessa cidade e se encontram
depositados na Filial da Caixa Geral de Depósitos, ficando assim deferido o requerimento de
V. Ex.cia de 15 de Abril do corrente ano”1258. A confraria, não podendo habilitar-se à
totalidade deste tesouro, interessou nele outras igrejas, entre as quais a de São Pedro e a de
Santa Clara, reservando para si um turíbulo sem naveta, dois cálices e algumas coroas de
imagens1259.
Pinturas a óleo e litografias
48. Busto de Cristo. Pintura a óleo sobre madeira
de til de 45 x 34 cm, a única peça seiscentista que
figurou na exposição centenária; é de escola
portuguesa. Conserva-a o Museu de Arte Sacra do
Funchal. Fotografia de Rui Camacho, DRAC.
Das pinturas que os inventários referem, apenas incluímos nestes quadros as telas e
pinturas sobre madeira. Algumas delas são de apreciável valor. A ajuizar pelos dois retábulos
ainda existentes e identificados como pertencentes ao mosteiro de Nossa Senhora das Mercês,
que são as pinturas de Santa Catarina mártir e de Santa Maria Madalena, que se encontram
actualmente na sacristia maior da igreja de São Pedro (Funchal) e o Busto de Cristo, que o
Museu de Arte Sacra do Funchal conserva, o mosteiro possuía um recheio pictórico
considerável e valioso.
Quadro nº.52 – Pinturas em madeira e tela
Designação
Em madeira
Nossa Senhora da Piedade
Descida da cruz
Busto de Cristo
Nossa Senhora
Santo António
Nossa Senhora e o M. Jesus
Em tela
Nossa Senhora das Mercês
Nossa Senhora das Mercês
Localização
Dimensões/cm
Valor/réis
Portaria
Sala capitular
Sala capitular
Quarto da abadessa
Locutório
Locutório
60 x 50
85 x 55
50 x 33
26 x 20
47 x 37
30 x 24
15.000
25.000
100.000
200
5.000
1.000
Capela
Coro
210 x 144
30.000
-
1257
Arquivo da confraria do Santíssimo Sacramento da igreja de Santa Luzia, doc. avulso: Carta do presidente da Comissão Jurisdicional
dos bens das extintas Congregações Religiosas, de 20 de Agosto de 1926, para o reitor da confraria do Santíssimo Sacramento da freguesia
de Santa Luzia da cidade do Funchal.
1258
Arquivo da confraria do Santíssimo Sacramento da igreja de Santa Luzia, doc. avulso: Carta da Comissão Jurisdicional dos bens das
extintas Congregações Religiosas, de 20 de Julho de 1929, para o reitor da confraria do Santíssimo Sacramento da freguesia de Santa Luzia
da cidade do Funchal.
1259
Ilhas de Zargo, II, p. 816.
272
Santa Catarina mártir
Santa Madalena
Nossa Senhora., São Joaquim,
M. Jesus e São João Baptista
São Francisco de Assis
São Caetano
Nossa Senhora da Conceição
Nossa Senhora da Conceição
Nossa Senhora da Piedade
Nossa Senhora
Nossa Senhora do Rosário
Coroação de Nossa Senhora
Nossa Senhora do Carmo
Nossa Senhora
Encontro do Senhor
Anunciação
Santa Face
Nossa Senhora e o M. Jesus
O Senhor em casa de Simão
São Francisco Xavier
Santa Teresa
São José
São Miguel
Capela
Capela
174,5x120
174,5x120
100.000
100.000
Portaria
Sala capitular
Sala capitular
Sala De Profundis
Locutório
Coro
Sala do Noviciado
Sala capitular
Coro
Coro
Enfermaria
Sala capitular
Sala capitular
Sala capitular
Sala de passagem
Refeitório
Locutório
Locutório
Coro
Coro
50 x 20
100 x 70
150 x 100
80 x 55
35 x 27
70 x 50
100 x 80
95 x 88
91x 68
80 x 65
150 x 160
60 x 50
60 x 60
110 x 80
27 x 22
45 x 35
45 x 35
95 x 71
15.000
1.000
1.000
200
1.000
10.000
1.000
1.000
-
Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, fols. 131v: Inventário de Setembro de 1895.
Além da pintura a óleo em tela ou madeira, os inventários referem outras pinturas, sem
fazer menção do material que lhes serviu de fundo. É o caso do quadro de Nossa Senhora da
Piedade, localizado na sacristia, de Nossa Senhora da Conceição, avaliado em vinte mil réis e
o de São Pedro que se encontrava na sala de convívio das religiosas. Na capela de São
Vicente Ferrer, na cerca do mosteiro, havia também um pequeno quadro de São Pedro de 15
por 12 centímetros., pintura em cobre, que em 1895 foi avaliado em mil réis1260.
Segundo os mesmos inventários o mosteiro tinha algumas litografias de temática
religiosa, quatro das quais ocupavam a tribuna, mas todas elas pequenas e de pouco valor.
Quadro nº.53 – Litografias
Descrição
Ceia do Senhor
Descida Espírito Santo
Ascensão Senhor
Nossa Senhora
Assunção de Nossa Senhora
Assunção de Nossa Senhora
Localização
Dimensões/cm
Valor/réis
Tribuna
Tribuna
Tribuna
Quarto abadessa
Locutório
Tribuna
25x20
25x20
25x20
35x25
58x28
25x20
1.000
300
300
200
500
300
Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F.,
caixa 2076, fols. 11v-25: Inventário de Setembro de 1895.
3.Imaginária
Os inventários de 1895 dão-nos conhecimento de que, na capela de Nossa Senhora das
Mercês, se encontravam algumas imagens de valor. A considerar pela de Santa Ifigénia e São
Bruno1261, do séc. XVII, em madeira policromada dourada, que a igreja de São Pedro do
Funchal guarda com empenho e pelo valor atribuído a outras imagens pelos inventariadores,
poderá admitir-se que as imagens da capela do mosteiro fossem todas de madeira policromada
1260
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, fol. 31v: Inventário de Setembro de 1895.
A localização destas imagens tem algo de curioso: quando, em Novembro de 1997, se procedia à organização da exposição do espólio
artístico das Mercês, a Irmã Maria Clarisse Xavier, com 90 anos, insistia em que na igreja de São Pedro havia duas imagens das Mercês.
Explicava que, quando era menina, e ia à catequese à igreja, havia lá um santo com uma caveira na mão, e uma santa preta que também
segurava uma igreja envolvida em chamas, que ela tinha conseguido evitar que ardesse, e que todas as pessoas diziam que aquelas imagens
eram das Mercês. Tal simbologia deveria ter impressionado a criança, pois jamais esqueceu aqueles santos. De facto, as imagens lá estavam,
mas hoje em depósito, numa pequena sala da igreja.
1261
273
dourada. Aliás, era habitual numa capela do séc. XVII. As imagens de roca, misto de barro e
de madeira, que os inventários referem, vestiam conforme a época. Podemos ainda referir
algumas pequenas imagens de barro, marfim, mármore e gesso, aliás muito poucas e
pequenas.
O mosteiro, segundo o inventário de 1895, possuía quinze crucifixos, alguns dos quais
de
49. S. Bruno. Escultura em madeira
policromada e dourada, de 51x24
centímetros, de escola portuguesa, do
século XVII. Esta imagem, segundo o
inventário de Setembro de 1895,
encontrava-se no altar de Santa Catarina.
Reprodução de Carlos Fotógrafo.
50. Santa Ifigénia. Trabalho de escola portuguesa, do
século XVII, de 54,5 x 17 centímetros, em madeira
policromada e dourada. Encontrava-se no altar-mor da
capela do mosteiro. Segura na mão esquerda uma
igreja que, segundo é tradição, salvou das chamas.
Reprodução de Carlos Fotógrafo.
51. Menino Jesus. Imagem de oficina portuguesa, do século XVIII, de
27 x 14 centímetros, em madeira policromada com repintes. Pertenceu
à Madre Virgínia.
Reprodução de Carlos Fotógrafo.
assento. Entre eles havia dois com Cristo em marfim, um com madrepérola embutida e três
com pedras preciosas em vermelho transparente, engastadas no corpo do Senhor. O maior
destes crucifixos, que podemos ver na página 276, de 145 centímetros, que o mosteiro de
Nossa Senhora da Piedade guarda, além de mais de cem rubis, tem os cravos e o resplendor
em prata dourada. Num outro, página376, valiosa peça de arte do século XVII, vê-se Cristo
pintado sobre a própria cruz. O Senhor apresenta-se cheio de beleza e serenidade. Todos estes
crucifixos são de oficina portuguesa, dos séculos XVII ao XIX.
Alguns destes crucifixos encontravam-se no interior de nichos conjugando-se
harmoniosamente, com pequenas imagens.
Quadro nº.54 - Imagens de madeira e roca
Designação
Em madeira
São Francisco de Assis
Santa Clara
São João Baptista
Santa Ifigénia
São Lúcio
São Bruno
São Joaquim
274
Localização
Capela
Capela
Capela
Capela
Capela
Capela
Capela
Altura / cm Valor / réis
54,5
51
-
5000
5000
5000
5000
2000
1000
10000
Santa Ana
Senhor da Paciência1262
Nossa Senhora da Conceição
São Lourenço
Menino Jesus
Santa Quitéria
De roca
Nossa Senhora da Conceição
Nossa Senhora do Monte
Nossa Senhora do Monte
Nossa Senhora do Monte
Nossa Senhora da Expectação
Nossa Senhora da Natividade
Nossa Senhora do Rosário
Capela
Coro
Coro
Coro
Coro
Enfermaria
37
76
34
35
38
27
10000
500
-
Capela
Sala de recreio
Sala de recreio
Coro
Coro
Coro
Enfermaria
110
25
46
35
65
60
46
5000
1000
200
-
Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv.
Mercês, F., caixa 2076, fols.11v - 25: Inventário de Setembro de 1895 e
Inventário de 6 de Novembro de 1895, não paginado
Quadro nº.55 - Nichos
Descrição
Localização
Valor (réis)
Cristo crucificado marchetado de madrepérola e Nossa
Senhora com o menino Jesus ao colo, em mármore branco.
Nossa Senhora e Santa Ana, em pinho, com portas de vidro.
Portaria
2 000
Noviciado
800
Coro
5 000
Coro
2 000
Coro
-
Coro
-
Enfermaria
10 000
Sala de recreio
3 000
Coro
500
Nossa das Mercês (35 cm), em pinho, com portas de vidro, de
48x 28 cm.
De vinhático polido, com portas de vidro de 60x 30 cm ( sem
qualquer imagem).
Nossa Senhora da Conceição com o Menino Jesus, de 50x28
cm.
Nossa Senhora da Natividade, de roca (60cm), metido na
parede, com 15 pequenos quadros, tendo dentro o nicho de
Nossa Senhora da Conceição .
Cristo crucificado (115 cm), Nossa Senhora do Rosário
(46cm), Santa Quitéria (27cm), S. Lúcio (46cm) e 14 quadros
de diferentes dimensões, com molduras e vidro, que
guarneciam o interior do nicho, colocado sobre o altar.
Santa Ana (37 cm), Nossa Senhora do Monte (duas imagens
de 25 e 46 cm), S. Jerónimo (10 cm), São João Nepomuceno
e um quadro de S. Pedro, pintado a óleo, colocado sobre um
altar.
Menino Jesus (28cm) sobre uma peanha de madeira dourada,
com 6 pequenos quadros
Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv Mercês, F., caixa
2076, fols. 8-30 : Inventário de Setembro de 1895 e Inventário de 6 de Novembro de
1895, não paginado.
Estes nichos, alguns de grande beleza, estavam metidos na parede, outros colocados
sobre peanhas ou sobre mesas.
O mosteiro de Nossa Senhora da Piedade conserva um oratório, de oficina portuguesa
do século XIX, com 144 por 121 centímetros, em madeira dourada marmoreada com símbolos
da Paixão de Cristo, que, embora não se encontre no inventario, pertenceu ao mosteiro de
Nossa Senhora das
52. Oratório. Trabalho de oficina portuguesa, do século XIX, de 144 x 121 centímetros, em madeira dourada e
marmoreada. Quatro anjos seguram os símbolos da paixão. O crucifixo em madeira policromada que ocupa o centro
do oratório, rico em rubis, pertence hoje à igreja de São Martinho do Funchal. Reprodução de Carlos Fotógrafo.
1262
O Senhor da Paciência, existente no coro das religiosas das Mercês não aparece no inventário. Possivelmente teria sido subtraído à
inventariação.
275
Mercês. Continha um crucifixo em madeira policromada, de 95 por 41 centímetros, com
algumas dezenas de rubis, que actualmente se encontra na igreja de São Martinho.
CAPÍTULO IX
O MOSTEIRO DAS MERCÊS
DO LIBERALISMO À REPUBLICA DE 1910
1. As leis liberais anticongreganistas
A conduta do Governo liberal que mais sequelas deixou no corpo da Igreja foi, sem
dúvida, a que atingiu o clero regular. Embora alguns sectores mais radicais do Liberalismo
acusassem D. Pedro de ter sido demasiado brando nas condições impostas em ÉvoraMonte1263, certo é que foi duro e intransigente para com as ordens regulares masculinas. O
decreto datado de 28 de Maio, mas só publicado no dia 30, mais da responsabilidade de D.
Pedro do que do ministro da Justiça, Joaquim António de Aguiar, o qual, no entanto, não
deixou de ser apelidado de Mata-frades1264, visava a extinção de todas as casas religiosas
masculinas em Portugal e no Ultramar.
Para os institutos femininos o programa anticongreganista foi diferente. Começou a ser
executado nos Açores em 1832, quando D. Pedro IV dominava apenas esta parcela do
território nacional. Quando a 24 de Julho de 1833 as tropas liberais conquistaram Lisboa e o
governo de D. Pedro se transferiu para a capital, a actuação anticongreganista continuou. Por
decreto de 5 de Agosto daquele ano, os institutos religiosos foram proibidos de receber
noviços e emitir votos religiosos. Os institutos religiosos femininos ficaram submetidos à
legislação deste decreto. As religiosas podiam continuar nos seus mosteiros até à morte da
última professa, mas não podiam ter noviciado nem emitir profissões. Era uma supressão por
morte lenta, feita silenciosamente. Aguardava-se que a extinção dos noviciados levasse ao
encerramento quando falecesse a última professa1265.
As autoridades civis não esperavam normalmente pelo último óbito para ocupar os
mosteiros. Em alguns deles, quando o número descia para quatro, as religiosas eram
convidadas a ocuparem um sector da casa e as restantes partes do edifício começavam a ser
1263
Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., VIII, pp. 201 e 202.
Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., VIII, p. 202.
1265
A.H. de Oliveira Marques, op. cit., III, p. 115.
1264
276
usadas para outros fins1266. Não aconteceu assim nos mosteiros da Madeira. Aguardou-se o
último falecimento e, no caso do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, as religiosas
ocuparam o edifício até 13 de Outubro de 1910.
Mesmo depois dos decretos anticongreganistas, alguns mosteiros da Ordem de Santa
Clara continuaram a receber candidatas, sob a designação de pupilas. Observavam a clausura,
seguiam horário conventual, assumiam a vida da comunidade, mas não emitiam votos por
proibição da lei civil. Com o mosteiro das Mercês tudo se processou de forma diferente. as
candidatas recebiam o hábito da Ordem, emitiam votos e comprometiam-se totalmente com o
carisma da Ordem. Isto, assim o cremos, pela força espiritual que lhes assistia e pela
benevolência das autoridades locais.
2. A comunidade das Mercês diante da legislação liberal
Diante da legislação liberal as Irmãs Clarissas das Mercês não se desorientaram nem
intimidaram. Cheias de confiança no Senhor e certas também de que as autoridades
madeirenses, religiosas e civis, e a população em geral continuariam a ter por elas o apreço e a
solicitude que lhes eram habituais, continuaram a sua vida fervorosa e em muita paz. A
entrada de candidatas, as profissões, as eleições das abadessas e para os demais cargos
continuaram a processar-se. Tudo fazia prever que, até à morte da última professa à data do
decreto de 28 de Maio de 1834, a vida da comunidade seguiria o seu ritmo normal, sem
qualquer interposição exterior que perturbasse as religiosas. De facto, dentro da clausura a
vida continuou com a costumada regularidade.
Na oração fervorosa a Jesus Cristo, encontravam as religiosas a força espiritual de que
necessitavam.
53. Cristo na Cruz. Pintura sobre madeira, de
117x75 centímetros, de escola portuguesa, do
século XVII. Pode ver-se na Câmara
Eclesiástica do Funchal. Fotografia de Carlos
Fotógrafo.
Quadro nº.56 –Candidatas recebidas após o dec. de 28/5/1834
Candidatas
Nome civil
1266
Nome Religioso
Entrada
Procedência
António Montes Moreira, op. cit., p. 226
277
Rosa Maria de Barros
Virginia da Silva1267
Vitorina Mª. da Encarnação Freitas
Cecília Teresa Pereira
Augusta Policarpo Pinto Abreu
Matilde Martins de Barros
Silvina Matilde de Barros
Matilde Augusta de Freitas
Elisa Malaquias Sardinha1268
Rosa Dias1269
Maria Correia Rodrigues
Mª. Natividade de Barros
Conceição
Maria Querubina do Céu
Ana Augusta da Pureza1270
Luísa de Jesus Maria José1271
Júlia Clara de S José1272
Emília Maria da Assunção
Rosa Maria do Monte do Carmo
Maria Clara do Coração de Jesus
Virgínia Brites da Paixão
Vitorina Maria da Encarnação
Antónia Angelina da Cruz
Augusta Maria do S.S. Sacramento
Ana Maria de S José
Maria Teresa da Apresentação
Maria Francisca da Piedade
Maria Matilde da Circuncisão
Clara Maria de S. José
Maria Madalena das Mercês
Maria Joana do Espírito Santo
Maria José da Santíssima Trindade
Maria Marta de Jesus Cristo
Maria Silvina da Natividade
Maria Margarida do C. de Jesus
Antónia Maria Dantas
Maria Ângela de Santo António
Maria Pacífica
Maria Querubina de Santa Rosa
Maria Natividade do Amor Divino
Conceição
1844
29/08/1846
06/03/1848
20/05/1849
1863
1870
1870
1876
1879
1880
1883
1883
1883
1886
1886
1886
1887
1890
1891
1891
1891
1891
1900
13/6/1905
12/8/1908
19..?
19..?
19..?
S Martinho
Funchal
Funchal
Funchal
Câmara de Lobos
Funchal
Estreito C. Lobos
Funchal
Funchal
Câmara de Lobos
Câmara de Lobos
Câmara de Lobos
S. Martinho
Estreito C. Lobos
Câmara de Lobos
Câmara de Lobos
Funchal
Porto Moniz
Calheta
Câmara de Lobos
Lisboa
Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, caixa 2076, docs.
avulso: Petição das religiosas de 1 de Abril de 1895 e de 2 de Fevereiro de 1896; AHDF, Conv.
Mercês, capilha 3, docs. avulso; Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de
Óbitos, pp. 6v e 7; Cónego Manuel Pombo Fernandes, Manuscritos sobre a Madre Virgínia Brites
da Paixão, fol.13-16; Abel Soares Fernandes, Alguns apontamentos sobre a vida da Madre Virgínia
(trabalho dactilografado), Funchal ,l998,2-7.
Contudo, seria olhar o problema com ingenuidade, se não nos déssemos conta de que a
comunidade, apesar da simpatia em que era tida, começou, a partir de então, a percorrer uma
etapa difícil e de sacrifício, mas também rica em experiências: a confiança e o abandono nas
mãos de Deus, o aprofundamento da fé. Tinham, evidentemente, diante de si um futuro
interpelante e incerto.
Quadro nº.57 – Alguns dados estatísticos1273
Ano
1834
1844
18461274
1847
18481275
18491276
1861
1870
1879
Candidatas Noviças Profissões
1
1
1
1
1
2
1
1
1
-
11278
11279
-
Professas Total
17
-
17
-
1267
Cónego Manuel Pombo Fernandes, Manuscritos sobre a Madre Virgínia Brites da Paixão, fol. 10; Abel Soares Fernandes, Alguns
apontamentos sobre a vida da Madre Virgínia (trabalho dactilografado), 1978, Funchal, p. 2.
1268
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos, p. 6v.
1269
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos, p .7
1270
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076,doc. avulso: Mapa do pessoal do convento das
Mercês, de 27 de Fevereiro de 1861. Lê-se no documento: “Entrou a 29 de Agosto de 1846 por ordem do Prelado da mesma data”. Tratavase de D.José Xavier Cerveira e Sousa, bispo da diocese do Funchal.
1271
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076,doc. avulso: Mapa do pessoal (...) de 27 de
Fevereiro de 1861. “Entrou a 6 de Março de 1848 por ordem do mesmo Prelado”, lê-se no referido documento.
1272
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076,doc. avulso: Mapa do pessoal (...) de 27 de
Fevereiro de 1861 “Entrou a 20 de Maio de 1849 por ordem do mesmo Prelado”, lê-se no referido documento.
1273
O quadro inclui somente os poucos dados detectados em fontes manuscritas.
278
1880
1881
1883
1886
1891
1895
1896
1905
1907
1908
1909
1910
1
1
3
3
4
1
1
-
11277
1
1
1
1
1
1
1
1280
11281
-
20
19
18
14
20
19
19
15
Lentamente as entradas foram rareando e, como as mais velhas iam falecendo, a
comunidade foi diminuindo, reduzindo-se a dois terços do que era habitualmente e finalmente
a pouco mais de metade. Em 1910 era constituída por quinze religiosas, das quais catorze
eram professas e uma ainda noviça. Como os livros onde eram registadas as admissões ao
noviciado, as profissões, os óbitos e outras ocorrências, a partir de 1834, não mais foram
preenchidos, temos muita dificuldade em reconstituir a vida da comunidade a partir daquela
data. Alguns dados esporádicos permitem-nos, se bem que com lacunas e algumas dúvidas,
tentar a sua reconstituição.
Nos quadros 56 e 57 apresentamos algumas candidatas que entraram no mosteiro ao
longo deste período, bem como alguns dados estatísticos sobre a comunidade até à
implantação da Republica.
3. O mosteiro após a morte da última professa à data do decreto de 28 de Maio
3.1. Diligências em favor da comunidade
A 26 de Março de 1895, com 83 anos, faleceu no mosteiro de Nossa Senhora das
Mercês a Madre Ana Joaquina das Mercês, a última das religiosas professas à data do decreto
de 28 de Maio de 18341282.
Vários documentos saídos das mãos das autoridades civis do Funchal comunicaram para
Lisboa a morte da religiosa. Naquela data o mosteiro, em função do decreto de 28 de Maio de
1274
Trata-se de Ana Augusta da Pureza, que entrou em 29 de Agosto de 1846 (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv.
Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Mapa do pessoal (...), de 27 de Fevereiro de 1861.
Trata-se de Luísa de Jesus Maria José, que entrou em 6 de Março de 1848 (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv.
Mercês F., caixa 2076,doc. avulso: Mapa do pessoal (...), de 27 de Fevereiro de 1861).
1276
Trata-se de Júlia Clara de São José, que entrou em 20 de Maio de 1849 (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv.
Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Mapa do pessoal (...), de 27 de Fevereiro de 1861).
1277
Cónego Manuel Pombo Fernandes, Manuscritos sobre a Madre Virgínia Brites da Paixão, fol. 11; Abel Soares Fernandes, Alguns
apontamentos sobre a vida da Madre Virgínia (trabalho dactilografado), 1978, Funchal, p.3: Tomada de hábito religioso de Virgínia da
Silva, a 26 de Fevereiro de 1881.Recebeu então o nome de Virgínia Brites da Paixão.
1278
Profissão de votos simples da Irmã Jerónima Cândida do Coração de Maria, realizada nas Mercês depois do dec. de 28 de Maio de l834
(ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Mapa do pessoal (...), de 27 de Fevereiro
de 1861).
1279
Profissão da Irmã Maria Querubina do Céu feita nas Mercês em 1847 (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv.
Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Mapa do pessoal (...), de 27de Fevereiro de 1861).
1280
Profissão da Irmã Virgínia Brites da Paixão, feita nas Mercês a 1 de Novembro de 1883 (Cónego Manuel Pombo Fernandes,
Manuscritos sobre a Madre Virgínia Brites da Paixão, fol. 13 ; Abel Soares Fernandes, Alguns apontamentos sobre a vida da Madre
Virgínia (trabalho dactilografado), 1978, Funchal, p. 3).
1281
Profissão da Irmã Maria Ângela de Santo António feita nas Mercês em 13 de Junho de 1907 (Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da
Piedade, Livro de Óbitos, p. 6v).
1282
A Madre Ana Joaquina das Mercês, natural de São Martinho, filha do alferes Joaquim de Freitas e de sua mulher Ana Joaquina, nasceu
em 1812. Movida pelo desejo de abraçar a vida de consagração ao Senhor, pediu a sua admissão no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês
do Funchal, onde entrou em 1830. A 17 de Outubro do mesmo ano foi admitida ao noviciado, findo o qual fez a sua profissão religiosa. A
esta cerimónia, em que estiveram presentes os pais e outros familiares e amigos, presidiu D. Francisco José Rodrigues de Andrade ( AHDF,
Conv. Mercês F., L 25, Recepções, entradas e votos das noviças (...): Acta da tomada de hábito da Irmã Ana Joaquina das Mercês, fol.4;
ARM; Conventos, Conv. Mercês F., L 271, Livro das Profissões, fol. 5: Acta da profissão da Irmã Ana Joaquina das Mercês).
1275
279
1834 e das instruções de 31 de Janeiro de 1862, caiu na posse do Estado1283. Acontecia,
porém, que a Madre Ana Joaquina das Mercês não era a última professa do mosteiro, pois
que as religiosas, apesar das leis do Estado, continuaram a receber candidatas e a emitir
profissões. À data da morte daquela religiosa ficavam dezanove professas que, cheias de
confiança no Senhor, se decidiram a fazer todos os esforços possíveis para conseguirem
autorização de permanecer no mosteiro. De facto, em 1895 começara um novo período para
aquela comunidade que, apesar da consideração em que era tida pelas autoridades religiosas e
civis bem como pelo bom povo madeirense, arrastou consigo dificuldades de vária ordem.
Contudo, as religiosas permaneceram serenas e confiantes, e bem depressa deram começo às
necessárias diligências para poderem conservar-se no seu mosteiro.
A 1 de Abril dirigiram-se a Sua Majestade, o rei D. Carlos: “As pupilas do convento de
Nossa Senhora das Mercês da cidade do Funchal, tendo perdido há pouco a sua respeitável
superiora, a Madre Ana Joaquina das Mercês, falecida a 26 de Março último, vêm humildes
implorar da caridade de Vossa Majestade a graça de lhes permitir a residência n’esta mesma
casa, onde vivem desde a sua juventude e onde desejariam morrer”1284. Como que a justificar
o seu pedido e a dar-lhe força, acrescentavam: “Consta-lhes que algumas recolhidas d’outros
conventos têm sido conservadas depois da extinção dos mesmos e até favorecidas com algum
subsídio caridoso. As suplicantes têm fundada esperança de que Vossa Majestade será servido
de ter para com elas a mesma benignidade, prometendo continuar suas fervorosas preces ao
Altíssimo – como sempre têm feito - , para que conserve por dilatados anos os dias de Vossa
Majestade e de toda a Real família”1285.
O pedido foi reforçado pelo prelado da diocese, D. Manuel Agostinho Barreto, que,
referindo-se às religiosas, que trata por pupilas, escreve: “como o seu mais vivo desejo é
continuar a viver ali, junto os meus rogos aos d’elas, para que isso lhes seja concedido”1286. E
continua o prelado: “mais do que ninguém são dignas de tal favor, pois que são pobríssimas
(...). E tem sido tão observante e piedoso o seu viver que ninguém há nesta cidade que as não
respeite e venere, sendo certamente de geral agrado a sua conservação”1287.
A petição das religiosas mereceu a consideração do Governador Civil António Augusto
de Sousa e Silva: “Tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.ª o incluso requerimento que as
pupilas do extinto convento de Nossa Senhora das Mercês, desta cidade, dirigem a Sua
Majestade, El-Rei, impetrando a graça de lhes ser permitido continuarem a residir no edifício
do referido convento (...). Informando esta petição, cumpre-me dizer a V. Ex.ª que é exacto
tudo o que as requerentes alegam, sendo além disso certo que elas, pela sua conduta moral e
religiosa se tornam dignas da graça que imploram”1288.
Também Jerónimo Pereira B. de Bastos, da Secretaria de Estado de Negócios
Eclesiásticos e de Justiça, em carta de 23 de Abril para o ministro e secretário de Estado dos
Negócios da Fazenda, reforçou a súplica de D. Manuel Agostinho Barreto: “e porque se me
afiguram atendíveis as solicitações do Rev.º Bispo do Funchal, rogo também a V. Ex.ª se
1283
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de 27 de Março de 1895 para o
conselheiro director geral dos Próprios Nacionais.
1284
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Petição das pupilas do convento de
Nossa Senhora das Mercês dirigida a Sua Majestade, de 1 de Abril de 1895. O manuscrito é assinado pela Madre Maria Querubina do Céu,
como abadessa, e pelas outras dezoito religiosas que então constituíam a comunidade
1285
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Petição das pupilas do convento de
Nossa Senhora das Mercês dirigida a Sua Majestade de 1 de Abril de 1895.
1286
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de 2 de Abril de 1895, de D.
Manuel Agostinho Barreto, para o ministério dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça.
1287
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de 2 de Abril de 1895, de D.
Manuel Agostinho Barreto, para o ministério dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça.
1288
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc.IV/B/49/23: Carta de António de Augusto de
Sousa e Silva, de 19 de Abril de 1895, para o ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda.
280
digne tomá-las na consideração que merecem dando-me notícias do que a tal respeito for
resolvido, para ser oportunamente transmitido àquele prelado”1289.
Passou um ano. A 2 de Fevereiro de 1896, as religiosas temendo ser convidadas a deixar
o mosteiro, dirigiram-se de novo ao rei: “considerando sua maior ventura” continuar no
mosteiro e nele morrer, “pedem por isso encarecidamente a Vossa Majestade esta graça,
permitindo-lhes ao mesmo tempo o uso dos seus poucos móveis, das alfaias e paramentos da
igreja”1290. Mulheres fortes que, com delicadeza e humildade, sabiam chegar onde queriam!...
Pouco depois, cheias de confiança ousaram solicitar do monarca nada menos que a
permanência definitiva. Assim, a 24 do mesmo mês de Fevereiro, o delegado do Tesouro do
Funchal, Luís do Rego Barreto, juntamente com outros documentos e processos, remeteu para
Lisboa o pedido das religiosas um requerimento das recolhidas do convento em que pedem se
torne definitiva a sua permanência no: edifício do convento e o uso dos móveis, alfaias e
paramentos da igreja”1291.
A 2 de Junho, o mesmo delegado enviou a relação das dezanove pupilas das Mercês em
que constava o nome, a idade e o tempo de residência no mosteiro. Por ela podemos verificar
que todas estas religiosas haviam entrado já depois do triunfo do Liberalismo. A mais antiga
ingressara em 1844 e as três mais novas na primeira década do século XX1292.
3.2. Dificuldades
Todos olhavam o futuro com inquietação.
Também para as religiosas da Ordem de Santa Clara que viviam no mosteiro de Nossa
Senhora das Mercês do Funchal, embora organizadas em Associação, como veremos, o futuro
era incerto e interrogante. Está fora de dúvida que, quando à morte da Madre Ana Joaquina
das Mercês foi feito o inventário dos bens imóveis, levantada a planta e feita a medição e
avaliação do imóvel, o Estado pretendia tomar posse do edifício e dar-lhe novo destino.
Já na década de oitenta, o prelado e as próprias religiosas haviam começado a sentir a
agudeza da situação. Por isso, quando em 1888 a Madre Querubina do Céu terminou o triénio,
o prelado, pela prudência que o momento requeria, achou por bem reconduzi-la a um novo
triénio por provisão de 18 de Outubro de 18881293. Passados três anos, o mesmo prelado,
achando que “por razões ponderosas se não podia proceder à eleição canónica, nomeou como
Abadessa a Madre Emília Maria da Assunção, assistida pela Madre Maria Querubina do Céu
como vigária”1294.
Em 1894, prevendo-se para breve a morte da última religiosa professa à data do decreto
de 28 de Maio de 1834, a Madre Ana Joaquina das Mercês, retomou o governo a Madre Maria
Querubina do Céu em eleição canónica que teve lugar em 25 de Outubro de 1894 sob a
presidência do prelado da diocese1295.
Com a morte da Madre Ana Joaquina das Mercês de 1895, como atrás ficou dito, a
situação tornou-se particularmente delicada. Exigia-se a máxima prudência no contacto com
as autoridades e muita sabedoria na condução da comunidade. Assim, pela primeira vez na
história do mosteiro, vemos a Abadessa governar vários triénios consecutivos. No curto
1289
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso : Carta de Jerónimo Pereira da Silva B.
de Bastos para o ministro e secretário do Estado dos Negócios da Fazenda, de 23 de Abril de 1895. Este documento informa também que a
25 de Outubro de 1861 haviam sido enviados àquela secretaria de Estado “dois cadernos, contendo o inventário dos prédios urbanos e
rústicos pertencentes ao mosteiro”.
1290
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta da comunidade do mosteiro de
Nossa Senhora das Mercês de 2 de Fevereiro de 1896, para Sua Majestade. O documento é assinado pelas dezanove religiosas.
1291
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Ofício 144 de 24 de Fevereiro de 1896
do delegado do Tesouro e.IV/B/49/6.
1292
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc.IV/B/49/24.
1293
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269, fol. 47-47v: Provisão de D. Manuel Agostinho Barreto de 18 de Outubro de 1888.
1294
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269, fol.59 -59v: Provisão de D. Manuel Agostinho Barreto(....) de 21 de Outubro de 1894.
1295
ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269, fol. 61- 61v: Acta da eleição da Madre Querubina do Céu de 25 de Outubro de 1894.
281
espaço de dezoito anos a Madre Maria Querubina do Céu fez cinco triénios. O prelado passou
também, contra o que era habitual, a fazer a eleição da vigária e da escrivã na mesma sessão
electiva e sob a sua presidência.
O quadro junto mostra-nos que neste final da vida do mosteiro os cargos de governo
passaram a ter carácter repetitivo porque assim o exigiam as circunstâncias.
Quadro nº.58 - Cargos trienais (1856 a 1910)
Triénios
Abadessas
1856 – 1859
1859 – 1862
1862 – 1865
1865 – 1868
1868 – 1870
1870 – 1873
1873 – 1876
1876 – 1879
1879 – 1882
1882 – 1885
1885 – 1888
1888 – 1891
1891 – 1894
1894 – 1897
1897 – 1900
1900 – 1903
1903 – 1906
1906 – 1909
1909 –
Ana Ifigénia de Santo Elesbão
Maria Madalena do Monte do Carmo
Antónia Angelina de Viterbo
Ana Teresa de Santo António
Antónia Angelina de Viterbo 1296
Ana Teresa de Santo António
Ana Joaquina das Mercês
Ana Teresa de Santo António
Jerónima Cândida do C. de Maria
Ana Joaquina das Mercês
Maria Querubina do Céu
Maria Querubina do Céu
Emília Maria da Assunção
Maria Querubina do Céu
Maria Querubina do Céu
Maria Querubina do Céu
Rosa Maria do Monte do Carmo
Rosa Maria do Monte do Carmo
Maria Virgínia Brites da Paixão
Vigárias
Mariana Francisca de S. António
Ana Margarida de Santo António
Maria Querubina do Céu
Rosa Maria do Monte do Carmo
Virgínia Brites da Paixão
Rosa Maria do Monte do Carmo
Maria Querubina do Céu
Maria Teresa da Apresentação
Rosa Maria do Monte do Carmo
Escrivãs
Ana Teresa de Santo António
Ana Joaquina das Mercês
Ana Teresa de Santo António
Ana Joaquina das Mercês
Jerónima Cândida C. de Maria
Jerónima Cândida C. de Maria
Emília Maria da Assunção
Antónia Angelina da Cruz
Antónia Angelina da Cruz
Antónia Angelina da Cruz
Virgínia Brites da Paixão
Virgínia Brites da Paixão
Maria Matilde da Circuncisão
Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269; AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capila 3, docs. avulso
A comunidade, embora cheia de confiança no Senhor e certa do zelo do prelado do
Funchal, D. Manuel Agostinho Barreto, estava consciente de que a nova ideologia e a
próxima mutação política, tão previsível, iriam exigir delas duros sacrifícios.
3.3. Protegidas pela lei civil: a Associação de Nossa Senhora das Mercês do Funchal
As autoridades religiosas e civis, bem como a população em geral, haviam-se habituado
a amar aquele mosteiro, onde sempre encontraram acolhimento fraterno e amigo. Aquela
comunidade não podia extinguir-se. De facto, o grande público gostava de confiar-lhe as suas
preocupações e olhava-as com o máximo respeito.
Quando em 1901, na sequência da carta de lei de D. Carlos de 11 de Abril daquele
ano1297, o Governo legalizou os institutos religiosos de Portugal sob a forma de “associações”,
as Irmãs do mosteiro das Mercês da cidade do Funchal também beneficiaram deste Estatuto.
A comunidade, sob o título de Associação de Nossa Senhora das Mercês1298, teve a
possibilidade de continuar organizada e de permanecer no mosteiro, agora sede da Associação
em que, por força do decreto de 18 de Abril de 1901, se havia legalmente transformado. Os
1296
Faleceu a 2 de Abril de 1870 (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 6v).
Colecção Oficial de Legislação Portugueza, ano 1901, Lisboa, 1902, fol.97-102: Constituição de sociedades por cotas de
responsabilidade limitada. Segundo a mesma Colecção (...), a Carta de lei de 11 de Abril de 1901, foi publicada no Diário do Governo nº 81,
de 13 de Abril de 1901 (Colecção Oficial de Legislação Portugueza, fol.102)
1298
As Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, congregação fundada na Madeira por Mary Jane Wilson, que tanta dedicação teve
pela população madeirense, conseguiram igualmente um estatuto que as constituiu Associação de Nossa Senhora das Vitórias, aprovada pelo
mesmo decreto de 18 de Abril de 1901. Era-lhes permitido: “ensinar os ignorantes da doutrina cristã, quando para isso forem chamadas pelos
párocos das freguesias onde residem, visitar os pobres e os doentes nos seus domicílios, ensinar as primeiras letras a crianças pobres nas
escolas paroquiais, particularmente nas freguesias remotas, tratar doentes nos hospitais rurais e orfanatos de crianças, quando para isso forem
chamadas pela autoridade competente. As associadas que para esse fim forem habilitadas podem ensinar os idiomas estrangeiros, obras de
mãos, etc., a quem as procurar para isso” (Diário do Governo, 294, Iª. série, de 28 de Dezembro de 1901, pp. 3661 e 3662).
1297
282
respectivos Estatutos, levados ao conhecimento de D. Carlos, mereceram a sua aprovação:
“Sua Majestade, El-Rei, a quem foram presentes os estatutos por que deve reger-se, para os
efeitos do decreto de 18 de Abril último, a Associação de Nossa Senhora das Mercês da
cidade do Funchal (...) há por bem conceder-lhes a sua aprovação”1299. Seguidamente, a
portaria de 26 de Dezembro do referido ano, de Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro, igualmente
os aprovava.
Com muita subtileza, o teor de vida espiritual e comunitária das religiosas foi
transformado em regulamento da Associação. Assim começam os seus Estatutos: “As pupilas
do extinto convento de Nossa Senhora das Mercês da cidade do Funchal, e nele recolhidas
com autorização do governo e as demais pessoas abaixo assinadas, constituem-se pelos
presentes estatutos em Associação de carácter religioso, em conformidade com as leis do país
com a designação de Associação de Nossa Senhora das Mercês”1300.
A Associação tinha por fim “manter, observar e propagar a Religião Católica (...),
procurando praticar as virtudes que ela ensina (...), render culto público à Santíssima Virgem
das Mercês, a quem toma por Padroeira e a distribuir esmolas aos pobres do sexo feminino
dentro dos limites das receitas que alcançar”. No que respeitava ao espiritual, a Associação
ficava sujeita “à autoridade do prelado diocesano”, e no temporal “ à inspecção do Estado,
tudo nos termos das leis do país”1301.
Os membros da Associação dividiam-se em activos, benfeitores e beneméritos. As
sócias activas - forma discreta de designar as religiosas -, deviam residir na sede da
Associação, isto é, no mosteiro. Competia-lhes a gerência da Associação, a admissão de novas
sócias, a orgânica do quotidiano e a eleição dos órgãos de governo.
Para poderem continuar a receber candidatas, com as necessárias qualidades,
determinavam os artigos oitavo e nono: “As menores só poderão ser admitidas como sócias
com autorização escrita dos seus pais ou de seus legítimos superiores (...). A mesa da direcção
poderá exigir, quando lhe parecer, que as pretendentes a sócias apresentem atestado de bom
comportamento civil passado pelo administrador do concelho e atestado de bom
comportamento moral e religioso passado pelo pároco respectivo”1302. Estavam previstas
reuniões mensais para análise da vida da Associação e anuais para fins electivos1303.
É evidente que, com esta hábil permuta da legislação do mosteiro de Nossa Senhora das
Mercês em regulamento da Associação, a comunidade pôde permanecer no imóvel organizada
e com segurança legal, mas não subtrair-se às leis republicanas anticongreganistas e antireligiosas de 1910.
4. O mosteiro no advento da República em 1910
No final do século XIX a situação tornou-se inquietante. A sociedade portuguesa,
sobretudo uma pequena facção política onde cresciam e se debatiam novas ideias, estava
eivada de vícios. Vivia-se em alta tensão, em atmosfera cheia de dúvidas e perplexidades. A
maçonaria havia penetrado nos mais diversos sectores e tornara-se uma força, embora
circunscrevendo-se a um limitado círculo de adeptos. A degradação política fazia-se sentir.
Claro que a força destruidora vinha detrás, da fraqueza de certos responsáveis, das
intrigas partidárias e das manobras políticas. Nem a liderança de Ernesto Rodolfo Hintze
Ribeiro, nem a tentativa ditatorial de João Franco, que acabou em dissidência, pôde deter os
factos. Portugal não era republicano pelo sentimento e jamais poderemos chamar ao 5 de
1299
Diário do Governo, 294, I série, de 28 de Dezembro de 1901, p. 3662: Portaria de 26 de Dezembro de1901
Diário do Governo, 294, I série, de 28 de Dezembro de 1901, p. 3662, artº. 2º.
Diário do Governo, 294, I série, de 28 de Dezembro de 1901, p. 3662: artº. 1, 2 e 3
1302
Diário do Governo, 294, I série, de 28 de Dezembro de 1901, p. 3662: artº. 8 e 9.
1303
Diário do Governo, 294, I série, de 28 de Dezembro de 1901, p. 3662: artº. 21 e 26.
1300
1301
283
Outubro de 1910 uma revolução popular. Na opinião de Franco Nogueira a revolução foi de
certo modo “um acto burocrático”1304, escreveu Joaquim Veríssimo Serrão.
Com a implantação da Republica a 5 de Outubro de 1910, Portugal começou a percorrer
um caminho anticongreganista e anti-religioso. Mais duros que os liberais, os republicanos
ordenaram de imediato o encerramento de todas as casas religiosas e a expulsão de todos os
seus membros. Alguns dias depois as religiosas do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do
Funchal receberam ordem de retirada, que se cumpriu a 13 desse mesmo mês.
A 14 de Outubro de 1910, o Diário de Notícias do Funchal noticiava: “ Ontem à noite,
depois de observadas todas as formalidades legais, o senhor administrador do concelho fez
transportar em carros fechados para o palácio de São Lourenço as quinze recolhidas do
convento de Nossa Senhora das Mercês, que haviam professado na respectiva Ordem
religiosa. Todas as religiosas recolhidas naquele palácio ficaram convenientemente instaladas
no rés-do-chão, até que sejam reclamadas por suas famílias”1305.
Expulsas do seu mosteiro, as religiosas foram acolhidas pelos familiares que, com amor
e solicitude, acorreram à fortaleza de São Lourenço para de lá retirar as filhas que muito
estimavam. Momentos dolorosos, para os quais foi preciso alma forte e ânimo viril.
5. Destino do imóvel
Enquanto as religiosas tentavam organizar-se em casa particular, na Torre e na Caldeira, para aí
continuarem a sua caminhada de ascensão para Deus, na esperança da construção de um novo
mosteiro, as autoridades políticas e civis requeriam o edifício para fins diversos.
Em Novembro de 1910, Afonso Vieira d’Andrade, presidente da Câmara do Funchal, desejando
transferir a cadeia da comarca do velho edifício em que se encontrava para outro local, mandou
examinar o imóvel e, achando que podia satisfazer a essa finalidade1306, dirigiu-se ao governador civil
pedindo o seu assentimento e a sua intervenção junto das autoridades centrais: “Espera a comissão que
Vª Exª acederá ao seu pedido e obterá, pela sua valiosa influência junto do Governo Provisório da
República, a cedência do edifício que se deseja, prestando assim Vª Exª (...) assinalado serviço a esta
cidade”1307.
A 18 de Janeiro do ano seguinte, já o ministro das Finanças dava resposta satisfatória: “Hei por
bem (...) conceder à Câmara Municipal do Concelho do Funchal o edifício do suprimido convento das
Mercês, da mesma cidade, para nele ser instalada a cadeia civil da comarca, com a cláusula de
reversão para a Fazenda Nacional, se lhe não for dado o destino para que é concedido”1308.
Para dar cumprimento ao determinado, o bispo do Funchal foi convidado a fazer a entrega da
capela de Nossa Senhora das Mercês e respectivos objectos de culto,1309 que foram armazenados numa
dependência do extinto mosteiro de Santa Clara1310. No dia 23 de Fevereiro teve lugar o acto oficial da
entrega do imóvel: “Hoje, finalmente, dei à Câmara Municipal do concelho do Funchal, a posse do
suprimido convento das Mercês, para nele ser instalada a cadeia civil desta cidade”1311.
1304
Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., X, pp. 161-164.
Diário de Notícias do Funchal de 14 de Outubro de 1910. Quando chegaram à fortaleza já lá estava prisioneira a Irmã Wilson, fundadora
das Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, com outras religiosas. A notícia foi benevolente para não desagradar ao novo governo e não
ferir o público, referiu a imprensa.
1306
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Ofício de Afonso Vieira d’Andrade
para o Governador Civil, de 11 de Novembro de 1910.
1307
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Ofício de Afonso Vieira d’Andrade (...)
de 11 de Novembro de 1910.
1308
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Decreto do ministro das Finanças, dado
nos paços do Governo da República a 18 de Janeiro de 1911.
1309
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de Augusto Leme de 23 de
Fevereiro de 1911.
1310
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de Augusto Leme de 23 de
Fevereiro de 1911.
1311
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de Augusto Leme de 23 de
Fevereiro de 1911.
1305
284
Entretanto desistiu-se de alojar a cadeia no imóvel que “só com avultada despesa se poderá
adaptar ao fim que se deseja, atendendo a que uma prisão deve obedecer a condições especiais de
segurança”1312. Desta forma pôde o governador civil do Funchal, Manuel Augusto Martins, solicitá-lo
para “a instalação de quaisquer outros ramos de serviço municipal”1313. Como consequência, em Maio
de 1911, a Câmara Municipal obteve autorização de poder utilizar o edifício em causa para “Escola
Modelo, Biblioteca Popular ou Museu Municipal”1314.
Sabe-se, contudo, que já em carta de 11 de Novembro de 1910 o presidente da Câmara
Municipal sugerira ao governador civil a demolição do edifício para “o alargamento da Travessa das
Mercês, melhoramento que há muitos anos se impõe como uma necessidade e um grande
melhoramento público”1315.
Segundo o historiador insular, P. Fernando Augusto da Silva, em 1911, foi, de facto, demolida a
“ igreja e a casa conventual”1316. Desta demolição, que atingiu a capela, a sacristia, o adro e a parte do
edifício que acompanhava a Travessa das Capuchinhas ou das Mercês, resultou, o alargamento das
duas vias de comunicação.
Passados quase quatro anos, ainda o restante edifício permanecia “abandonado e em ruínas”1317,
pelo que, a 15 de Março de 1915, a direcção do instituto de beneficência Auxílio Maternal o solicitou
“para ali instalar uma dependência do mesmo instituto, alargando assim a creche que actualmente
funciona anexa ao mesmo, caso Vª Exª não dê ao Convento aplicação diversa e que mais benefícios
possa trazer à humanidade pobre e desprotegida d’este distrito”1318. Este requerimento, a enviar ao
Ministério das Finanças, mereceu ao governador civil, José Vicente de Freitas, a seguinte nota:
“parece-me justo o deferimento do pedido”1319. Além disso, “o Auxílio Maternal da cidade do Funchal
enviou às Finanças um requerimento solicitando o terreno onde se acha parte do extinto convento das
Mercês – outra parte foi demolida para alargamento da rua – para instalação ou melhor edificação
destinada ao mesmo auxílio”1320.
Assim, a 17 de Julho de 1915, uma vez que a Câmara Municipal do Funchal não dera ao imóvel
o destino previsto pelo decreto de 18 de Janeiro de 1911, o ministro das Finanças, a 23 de Julho de
1915, pôde concedê-lo à referida instituição. “Hei por bem, revogando o mencionado decreto de 18 de
Janeiro de 1911, conceder à direcção do instituto de Beneficência Auxílio Maternal do Funchal, o
edifício do suprimido convento das Mercês da cidade do Funchal, para nele instalar uma dependência
do mesmo instituto”1321.
Totalmente demolida a parte ainda existente,1322 ali se levantou o edifício destinado à associação
de beneficência Auxílio Maternal, onde actualmente (1999) estão instalados outros serviços: Secretaria
Regional do Turismo e Cultura, e o Centro Cívico de Animação e Cultura Cabral do Nascimento.
1312
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta do presidente da Comissão
Administrativa da Câmara do Funchal, Manuel Jorge Pinto, de 26 de Abril de 1911, para o ministro das Finanças.
1313
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta para o ministro das Finanças de
26 de Abril de 1911.
1314
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. 1V/B/49/3: Despacho do ministro das
Finanças, dos Paços do Governo da República, de Maio de 1911.
1315
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta do presidente da Câmara para o
governador civil, de 11 de Novembro de 1910.
1316
Elucidário Madeirense, I, p. 308 e Subsídios para a História da Diocese do Funchal, I, p. 182.
1317
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Ofício da comissão directiva do
Instituto de Beneficência Auxílio Maternal do Funchal, para o ministro das Finanças de 15 de Março de 1915. O documento está assinado
pelos membros da direcção: Henrique Augusto Rodrigues, João de Castro, José Justiniano da Câmara Lomelino, Francisco João Fernandes,
Francisco Figueira Ferraz, João Anacleto Rodrigues e Maximiano de Sousa Rodrigues. As assinaturas foram reconhecidas, no Funchal, pelo
notário João Valentim Pires, a 16 de Março de 1915.
1318
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Ofício da comissão directiva (...) de 15
de Março de 1915.
1319
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês. F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de José Vicente de Freitas, para
o ministro das Finanças, de 18 de Março de 1915.
1320
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso, não datado.
1321
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. 1V/B/49/4: Dado nos Paços do Governo da
República, de 17 de Julho de 1915. Foi publicado no Diário do Governo, 143, de 23 de Julho de 1915.
1322
A Madre Virgínia Brites da Paixão, em carta de 25 de Setembro de 1926 para a Irmã Ângela, lamentava-se de que do mosteiro de Nossa
Senhora das Mercês não tivesse ficado” pedra sobre pedra, nem sequer sinal desse convento” (Arquivo privado do Paço Episcopal do
Funchal, manuscritos da Madre Virgínia, pasta 3, doc. avulso: Carta da Madre Virgínia para a Irmã Ângela, de 25 de Setembro de 1926
285
Do lado leste, a ligar o Auxílio Maternal à Rua das Mercês, ficou o prédio Power Drury &
Companhia1323 que, quando demolido em 1996 para dar lugar à Cota 40, funcionava como “Casa de
bordados” e “Armazéns de vinhos”1324.
O local do mosteiro está agora assinalado com um monumento a Santa Clara, que a cidade do
Funchal, em gesto de apreço por aquela casa religiosa, quis erguer, aquando das celebrações
centenárias dos quinhentos anos da chegada das primeiras Irmãs Clarissas à Ilha da Madeira , como
veremos na crónica do centenário apresentada no Apêndice desta obra.
CAPÍTULO X.
A COMUNIDADE DAS MERCÊS
NO PÓS - REPÚBLICA
1. A comunidade à data da expulsão
Quando, a 13 de Outubro de 1910, as religiosas do mosteiro de Nossa Senhora das
Mercês receberam ordem de saída, a comunidade era constituída por catorze Irmãs professas e
uma noviça.
Reportando-nos a uma relação enviada pelo mosteiro de Nossa Senhora das Mercês à
Repartição da Fazenda a 2 de Junho de 1896, ao Livro de Óbitos do actual mosteiro de Nossa
Senhora da Piedade em Câmara de Lobos (Caldeira) e ainda a depoimentos de pessoas por
nós contactadas, podemos dar a lista nominal da comunidade nessa data.
Quadro nº.59 – A comunidade em Outubro de 1910
Nome Religioso
Nome Civil
Idade
Rosa Maria do Monte do Carmo
Vitorina Maria da Encarnação
Maria Francisca da Piedade
Antónia Angelina da Cruz
Maria Teresa da Apresentação
Rosa Maria de Barros
Vitorina Mª da Encarnação Freitas
Augusta Policarpo Pinto Abreu
Cecília Teresa Pereira
66
58
42
52
53
Virgínia Brites da Paixão
Virgínia da Silva
49
Clara Maria de S. José
Maria Marta de Jesus Cristo
Silvina Matilde de Barros
Matilde Augusta de Freitas
47
44
Maria Matilde da Circuncisão
Matilde Martins de Barros
42
Maria Pacífica (noviça)
Margarida do Coração de Jesus
Rosa Dias
24
32
Maria Angela de Santo António
Maria Querubina de Santa Rosa
Maria Natividade do Amor Divino
Conceição
Elisa Malaquias Sardinha
Maria Correia Rodrigues
Maria Natividade de Barros
Conceição
-
21
31
41
-
Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês
F., caixa 2076, doc. IV/B/49/24; Arquivo de Nossa Senhora da Piedade,
Livro de Óbitos, p. 1– 6 v, Arquivo paróquia de São Sebastião, Câmara de
Lobos, Livros de Óbitos.
2. Tentando fixar-se
1323
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação do extinto
convento de Nossa Senhora das Mercês, de 20 de Novembro de 1895.
Estes prédios, contrariamente à ideia que se tem vindo a sustentar, nada tinham o ver com o mosteiro das Mercês, que, de facto, foi
totalmente demolido na segunda década do século XX, para tornar possível o alargamento da Rua das Mercês e Travessa das Capuchinhas ,
bem como a construção do Auxílio Maternal.
1324
286
Em breve, porém, movidas pelo desejo de poderem viver em comunidade, ajudandose mutuamente no seguimento de Cristo segundo o carisma franciscano, estas quinze
religiosas formaram dois grupos bem unidos, localizados em Câmara de Lobos. Vejamos o
quadro:
Quadro nº.60 - Morada após a expulsão
Local
Religiosas
Câmara de Lobos
Caldeira
Palmeira
Na casa paterna
Funchal (Santo António)
Câmara de Lobos
Porto Moniz
Total:
3
7
1
3
1
15
Fonte:
ANTT, Arquivo Histórico do
Ministério das Finanças, Conv. Mercês F.,
Caixa 2076, doc. IV/B/49/24, Arquivo de
Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos,
p. 1– 6 v.
O grupo mais numeroso, um grupo de sete religiosas, às quais se juntavam com
frequência as mais próximas, estabeleceu-se na Palmeira, na casa que fora dos pais da
Matilde Martins de Barros (Irmã Maria Matilde da Circuncisão), então habitada por uma filha
solteira, Constantina Martins de Barros, de quarenta e nove anos de idade. Esta senhora, boa e
generosa, quando soube da expulsão, imediatamente pôs a sua casa à disposição, não só da
sua irmã Maria Matilde e da tia Rosa Maria de Barros (Irmã Rosa Maria do Monte do
Carmo), professas do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, mas também de todas aquelas
que quisessem acompanhá-las. Ali se fixaram, além destas duas, mais cinco religiosas: Maria
Margarida do Coração de Jesus, Maria Querubina de Santa Rosa, Maria Ângela de Santo
António, Conceição e Antónia Angelina da Cruz1325.
Um outro grupo fixou-se na Caldeira junto da capelinha de Nossa Senhora da Piedade,
numa casa pertencente aos pais da Irmã Maria Francisca da Piedade. Foi ali que viveram as
Irmãs: Maria Francisca da Piedade, Maria Teresa da Apresentação, Vitorina Maria da
Encarnação e a candidata Maria Júlia de Barros1326. A Madre Virgínia Brites da Paixão e as
Irmãs Clara Maria de São José, Maria Marta de Jesus Cristo, Maria Natividade do Amor
Divino e Maria Pacífica regressaram à casa paterna.
3. Reorganizadas em Câmara de Lobos.
3.1. A casa da Palmeira, “um pequeno mosteiro”
Como já foi afirmado, estas religiosas tinham uma profundidade espiritual invulgar, uma
vida de intimidade com Deus fortificada na oração e no sacrifício, tão rica, que lhes permitiu
1325
ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças Conv. Mercês F., caixa 2076,doc IV/B/ 49/24: relação nominal das religiosas do
mosteiro das Mercês da Repartição da Fazenda do Distrito do Funchal de 2 de Junho de 1896 e Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da
Piedade, Livro de Óbitos, 2 e 5v.
1326
A Maria Júlia de Barros aparece na Caldeira vivendo com as religiosas e seguindo em tudo o seu programa de vida. Porém, quando
morreu a 7 de Julho de 1927, não era religiosa professa. Seria, portanto, uma candidata que havia entrado no Mosteiro das Mercês ou, mais
provavelmente, se associara ao grupo de religiosas da Caldeira, onde aguardava a possibilidade de professar quando um novo mosteiro
existisse (Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livros de Registos de Óbitos, ano de 1927, registo nº 93, fol. 24: Registo
de Óbito de Maria Júlia de Barros).
287
permanecerem fiéis ao seu ideal contemplativo e carisma franciscano, diante das maiores
provações e dificuldades1327.
Na Palmeira, em casa da família Barros, então habitada pela menina Constantininha,
assim a designam ainda hoje os seus familiares, estabeleceram-se, como dissemos, sete
religiosas, às quais, com muita frequência se juntavam, por longas temporadas, a Madre
Virgínia, residente no Lobo dos Aguiares, e as três religiosas que vivam com a família, na
Torre, Preces e Serrado d’Adega: Clara Maria de São José, Marta de Jesus Cristo e Maria da
Natividade do Amor Divino. Era uma casa rectangular, com sótão, a pequena distância de
uma outra casa do mesmo aglomerado familiar. Foi nesta família, de nobilíssimos
sentimentos, que as religiosas encontraram acolhimento e muita amizade.
Cheias de confiança no Senhor, logo procuraram ajustar-se à nova situação,
organizando a sua vida como se em mosteiro vivessem. Com horário organizado, as irmãs
rezavam e trabalhavam, certas de que, também ali, podiam amar e louvar o Senhor, ser ajuda
espiritual para o género humano. Nem o hábito da Ordem depuseram, antes o conservaram
com amor e muita alegria, como sinal de consagração e pertença exclusiva ao Senhor. As
pessoas admiravam a sua decisão e coragem1328.
A uma pequena distância, no “sítio da Torre”, ficava a capela da Boa Hora, edificada
pelo morgado António Corrêa Bettencourt Berenguer na segunda metade do séc. XVII1329,
possivelmente em memória da restauração da independência de Portugal, a julgar pela data de
1640 que lemos na cantaria da porta principal1330. Bela e acolhedora, ostenta, ainda hoje, uma
pintura bem conservada de apreciável valor histórico pela sua temática e técnica pictórica, de
que é autor Martim Conrado, pintor protobarroco do século XVII, já referido. Nela podemos
ver, além de Nossa Senhora da Boa Hora, dois membros da ilustre família de Torre Bela.
A capela, que fora, ao longo dos séculos, o lugar expressivo da religiosidade dos
viscondes e condes da família senhorial de Torre Bela1331, era agora o pequeno templo posto à
disposição daquele pequeno grupo de filhas de Santa Clara. De facto, este pequeno templo
favorável ao recolhimento, que a Senhora Condessa D. Filomena Gabriela Corrêa Brandão
Henriques Noronha, falecida a 9 de Agosto de 1925, se honrava de facultar às religiosas,
oferecia-lhes a possibilidade de uma vivência litúrgica. Como à data já não gozava de capelão
privativo, costumava ir lá celebrar a Eucaristia, duas ou três vezes por semana. um sacerdote
de Câmara de Lobos. Nos outros dias, as religiosas desciam ao Convento de São Bernardino
e, em certas festividades, à vila de Câmara de Lobos.
Em casa toda a vida de oração estava organizada: ofício divino, meditação, terço, coroa
seráfica das sete alegrias de Nossa Senhora. Era na oração que hauriam a força para serem
fiéis ao Senhor, para serem felizes. À oração comunitária juntavam a oração pessoal, leitura
espiritual e algumas devoções.
De quando em quando, ali estava a Madre Virgínia, ajudando-as espiritualmente e
também nos trabalhos que iam assumindo, mas, sobretudo, encorajando-as e mantendo no
coração de cada uma, sempre bem acesa, a chama do amor e da esperança. Estavam certas de
que os ventos revolucionários iriam passar. Ainda viriam a ter o seu mosteiro, onde
1327
Foram as senhoras D. Ester de Barros e sua prima D. Hermínia de Barros, sobrinhas netas da Irmã Maria Matilde, que nos forneceram
informações minuciosas sobre a vida das irmãs das Mercês que habitaram na casa da Palmeira, propriedade da família Barros. Pudemos, in
loco, ver o imóvel, em bom estado, com o seu poço ao lado e rodeado das mais variadas flores. Hoje, é propriedade da senhora D. Filomena
Vieira Pita.
1328
Referiu-nos a senhora D. Ester de Barros que o pai lhe contava que, quando era pequenino, gostava muito de brincar com o cordão
branco que as religiosas usavam, pormenor que comprova o uso do hábito.
1329
Elucidário Madeirense, II, p. 450 e III, p. 365.
1330
Maria de Fátima Sousa Henriques, “ A Casa Torre Bela”, in Girão, 3 (1989) 99.
1331
Actualmente encontra-se a superintender as propriedades do ex-condado de Torre Bela, D. Susan Gale Bolger Seldon, residente em
Londres, que reparte o seu tempo, como já o fazia em vida do marido, John Seldon, entre a Madeira e a Inglaterra (Maria de Fátima Sousa
Henriques, “A Casa Torre Bela,” in Girão 3 (1989) 99-100). A capela está confiada aos cuidados de D. Lucília Martinha de Sousa que zela a
sua conservação, a abre aos turistas e a mantém preparada para o culto religioso, conforme a própria nos referiu.
288
retomariam a sua vida contemplativa em clausura. Também o Senhor D. António Manuel
Pereira Ribeiro, bispo da diocese do Funchal, as acompanhava com o seu zelo de pastor e pai.
A comunidade tinha os seus confessores certos e de nomeação episcopal. A 9 de Dezembro de
1915, o prelado nomeou confessor extraordinário não só das Irmãs que viviam na Palmeira,
mas de todas as “Irmãs Franciscanas das Mercês o P. João Joaquim de Carvalho, vigário de
Câmara de Lobos desde 19011332”. Este sacerdote, membro da Terceira Ordem Franciscana
Secular1333, foi muito dedicado às Irmãs Clarissas.
Com esta vida de oração conjugavam algumas actividades apostólicas e o trabalho.
Bem cedo assumiram a formação catequética das crianças da localidade que, na sua
própria casa, preparavam para a primeira comunhão. Continuavam depois a prestar-lhes a
necessária assistência religiosa e tudo faziam para que nelas ganhasse raízes a vida espiritual.
Este pequenino mosteiro das Irmãs Clarissas tornou-se amado por todos e particularmente
pelas crianças que ali iam receber das religiosas a formação humana e catequética
54. O pequeno mosteiro da Palmeira. Foi nesta casa dos pais
da Irmã Maria Matilde da Circuncisão (Matilde Martins de
Barros), situada na Palmeira, que viveram sete religiosas saídas
do Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal,
enquanto aguardavam a possibilidade de construção dum novo
mosteiro. Fotografia de Daniel A .S. Teixeira, ofm.
.
Com a oração e a catequese associavam o trabalho que, graças ao Senhor, não lhes
faltou desde a primeira hora. Como já acontecia no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês,
também ali confeccionavam hóstias para muitas paróquias, bordavam para igrejas e até para
particulares que, em atitude de fraterna solidariedade e ajuda, solicitavam os seus serviços.
Uma delas, porque bastante culta, a Irmã Conceição, cujos pais viviam em Lisboa, exerceu o
professorado. Não havendo escola na Palmeira, a população acolheu a iniciativa das
religiosas com grande júbilo e tudo prepararam com entusiasmo. Por D. Ester de Barros e pela
Irmã Josefina, clarissa de setenta e quatro anos, membro da comunidade do Mosteiro de
Nossa Senhora da Piedade, cuja mãe foi aluna durante alguns anos da “menina
Conceiçãozinha de Lisboa”, como era designada, sabemos que a Irmã Conceição era uma
alma de profunda espiritualidade e de muita delicadeza, o que a fazia amada de todos.
Excelente educadora e muito dedicada aos alunos, a Irmã Conceição, para além daquilo que
era matéria escolar, empenhava-se na formação catequética, moral e educativa daquelas
crianças boas e meigas.
O conceito em que eram tidas as capuchinhas das Mercês havia-se transplantado para
o pequenino mosteiro da Palmeira. Em gesto de fraterno amor e colaboração, não faltavam a
estas heróicas religiosas as mais variadas ofertas dos familiares e pessoas amigas. Do seu
espírito de sacrifício, sabia a menina Constantininha que, santamente curiosa, se dava ao
trabalho de ir observando atentamente as Irmãs, procurando descobrir o seu espírito de
renúncia.
Os anos iam passando e as irmãs partindo ao encontro do Pai. A 19 de Outubro de 1913,
faleceu a Irmã Rosa Maria do Monte do Carmo (Rosa Maria de Barros)1334, a 11 de Outubro
1332
AHDF, L 5 de Serviços Paroquiais, p. 48.
No Arquivo da Terceira Ordem Franciscana de Câmara de Lobos há um documento de 7 de Maio de 1942, em que o padre João Joaquim
de Carvalho, por se encontrar “fisicamente impossibilitado”, pede a transferência das suas funções para o novo tesoureiro, Manuel Gonçalves
de Sousa. Além disso nos registos de óbito das Irmãs Rosa Maria de Barros e Matilde Martins de Barros, este sacerdote escreveu: “(...)
religiosa professa da Segunda Ordem de nosso Pai São Francisco” (Livro de registo de Óbitos da Paróquia de São Sebastião, Câmara de
Lobos, ano de 1913, registo n.º 144 e ano 1916, registo n.º 119). Esta forma de expressar-se contém em si a afirmação de ser membro da
família franciscana.
1334
Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registo de Óbitos, ano de 1913, registo n.º 144: Registo de óbito de
Rosa Maria de Barros.
1333
289
de 1916, com quarenta e oito anos apenas, a Irmã Maria Matilde da Circuncisão (Matilde
Martins de Barros) 1335 e, em data que não nos foi possível apurar, faleceu a Irmã Antónia
Angelina da Cruz.
A Irmã Conceição, depois de alguns anos de vida na Palmeira, a instâncias dos pais e
porque parecia não querer raiar a aurora que permitisse a construção do tão desejado mosteiro,
seguiu para Lisboa, vindo a falecer santamente, alguns anos depois, na casa de seus pais1336.
Dez anos mais tarde, exactamente a 14 de Dezembro de 1926, morreu Constantina Martins de
Barros, com sessenta e cinco anos1337, vítima de apoplexia cerebral, passando a casa aos
herdeiros.
Adiantamos a hipótese, embora com algumas dúvidas, de que teria sido após a morte da
proprietária da casa, que as Irmãs Maria Querubina de Santa Rosa e Maria de Santo António,
teriam saído da Palmeira para a Torre, para a companhia da Irmã Clara Maria de São José1338.
3.2. O grupo da Caldeira
No sítio da Caldeira, construíra o P. Manuel Gonçalves Henriques, no final do século
XVIII, junto à sua residência, uma pequena capela dedicada a Nossa Senhora da Piedade, que
dotara segundo as leis canónicas, por escritura pública de 3 de Abril de 1800. Aquando da
implantação da República, era seu proprietário o P. António Rodrigues Dinis Henriques1339.
Foi ali, sob o meigo olhar de Nossa Senhora da Piedade, que a Irmã Maria Francisca da
Piedade, natural do “sítio”, se acolheu, acompanhada das Irmãs Maria Teresa da
Apresentação, do Funchal, Vitorina Maria da Encarnação, da freguesia do Estreito. Bem
depressa se lhes juntou, como candidata, Maria Júlia de Barros. Estas religiosas alojaram-se
numa casinha pertencente aos pais da Ir. Maria Francisca da Piedade, onde procuraram
organizar a sua vida de oração e trabalho, aguardando, assim lho dizia a confiança que em
Deus depositavam, a construção de um novo mosteiro. Confeccionavam hóstias para algumas
paróquias, dedicavam-se aos bordados e faziam todo o bem espiritual que podiam à população
da Caldeira, que à data era muito pouca.
Na capela encontravam o espaço para a oração comunitária e pessoal e no P. António
Dinis, quando cansado e debilitado pelo peso dos anos, deixou a paróquia da Quinta Grande e
passou à sua residência da Caldeira, o mestre espiritual que procurava ajudá-las no caminho
de ascensão para Deus. A Ir. Francisca da Piedade foi a enfermeira cuidadosa e dedicada que
o tratou solicitamente até à morte, prestando-lhe todos os serviços necessários.
Algumas vezes recebiam a visita da Madre Virgínia, que com elas tinha longos tempos
de oração. Deixava-as a Madre cheias de coragem e de esperança. A Irmã Teresa da
Apresentação, quando a Madre Virgínia, nos últimos anos da sua vida, adoeceu gravemente,
deslocou-se para a sua companhia, prestando-lhe todos os cuidados e dando-lhe o melhor do
seu amor e carinho.
1335
Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registo de Óbitos, ano de 1916, registo n.º 119: Registo de óbito de de
Matilde Martins de Barros.
Segundo informação de D. Ester de Barros, os pais da Irmã Conceição, mesmo depois da sua morte, mantiveram contacto epistolar com a
família Barros, falando da sua Conceiçãozinha com viva satisfação, pois sempre a viram empenhada na prática do bem, cheia de amor,
delicadeza e bondade.
1337
Arquivo do Registo Civil, Câmara de Lobos, Livro de Registos de Óbitos, ano de 1926, registo n.º 370: Registo de óbito de Constantina
Martins de Barros; Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registos de Óbitos, ano de 1926, registo n.º 169:
Registo de óbito de Constantina Martins de Barros.
1338
Apesar das diligências feitas, não conseguimos detectar onde teriam passado os seus últimos dias algumas Irmãs deste núcleo;
possivelmente, os familiares tê-las-iam levado consigo, quando em estado de doença grave ou idade avançada.
1339
Elucidário Madeirense, II, p. 464.
1336
290
A 6 de Janeiro de 1922, faleceu, na sua residência anexa à capela, o P. António
Rodrigues Dinis Henriques, com oitenta e nove anos1340. As religiosas sentiram a morte de tão
bom sacerdote, pois ficavam sem a sua ajuda espiritual; porém, uma luz começava a
despontar. A capela e propriedades envolventes, segundo disposições testamentárias, não
haviam passado para os herdeiros, mas sim para o vigário de Câmara de Lobos, para dar
oportunidade a que o desejo que sempre acalentara - levantar ali mesmo um mosteiro para as
Irmãs Clarissas, - se pudesse concretizar. Havia, no entanto, que aguardar um ambiente
político-social mais favorável.
No dia 27 de Setembro do mesmo ano, depois de uma vida virtuosa, o Senhor chamou
a Si a Irmã Vitorina Maria da Encarnação. No Livro de Óbitos da paróquia de Câmara de
Lobos de 1922 pode ler-se: “faleceu (...) na sua morada, depois de ter recebido os sacramentos
pelo Reverendo Cura António Pinto da Silva (...) Vitorina Maria da Encarnação, de sessenta e
um anos (...) religiosa capucha do extinto Convento de Nossa Senhora das Mercês da cidade
do Funchal (...)”.1341 Cinco anos mais tarde faleceu a Maria Júlia de Barros1342, ficando o
pequeno grupo reduzido a dois membros apenas. Quando se reuniam com a Madre Virgínia e
as outras Irmãs animavam-se mutuamente, certas de que a hora de Deus começava a raiar.
55. Transformada num pequenino mosteiro. Nesta casa, situada na Caldeira, pertencente aos pais da Ir.
Maria Francisca da Piedade (Augusta Policarpo Pinto Abreu) viveram três religiosas do mosteiro de Nossa
Senhora das Mercês do Funchal e uma candidata no longo período que antecedeu a construção do novo
mosteiro. Fotografia de Daniel A. S. Teixeira ofm.
3.3.No seio dos familiares
A Madre Virgínia Brites da Paixão e quatro religiosas regressaram à casa paterna onde
permaneceram modestamente e empenhadas em obras apostólicas.
Aquando da expulsão, a Madre Virgínia recolheu-se à sua casa paterna em Santo
António no Lombo dos Aguiares, situada ao lado da residência dos sobrinhos: Luísa, Júlia,
Virgínia e João. Não seria prudente que ela, como abadessa do extinto mosteiro, vivesse com
as outras religiosas, pois isso despertaria a atenção nas autoridades
Quadro nº.61 – Na casa paterna
Nome das Religiosas
Madre Virgínia Brites da Paixão
Clara Maria de São José
Maria Marta de Jesus Cristo
Maria Natividade do Amor Divino
Maria Pacífica
Local
Funchal (Lombo dos Aguiares)
Câmara de Lobos (Torre)
Câmara de Lobos (Preces)
Câmara de Lobos (Serrado d’Adega)
Porto Moniz
Fonte: Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de
Óbitos 2-7v.
. A Madre Virgínia estabeleceu, pois, residência em Santo António, donde descia muitas
vezes a visitar as suas Irmãs nos sítios da Palmeira e da Caldeira. Infundia nelas o alento,
estimulava-as na prática de todas as virtudes e na fidelidade ao seu carisma contemplativo,
1340
AHDF, Livro 5 de Serviços Paroquiais, fol. 9; Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registos de Óbitos do
ano de 1922, registo n.º 3: Registo de óbito do Reverendo P. António Rodrigues Dinis Henriques.
1341
Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registo de Óbito, ano de 1922, registo n.º 140: Registo de óbito de
Vitorina Maria da Encarnação.
1342
Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registo de Óbitos, ano de 1927, registo nº. 93, fol.24: Registo de
Maria Júlia de Barros.
291
certa de que um novo mosteiro as iria reunir.Com as Irmãs da Palmeira a Madre ficava
temporadas longas, como já foi dito, ajudando-as e dinamizando a sua vida espiritual, como
superiora que era. Ali se vinham juntar as mais próximas, sempre que podiam. A Madre
Virgínia sentia-se mãe entre suas filhas1343.
Na modesta casa de seus pais no Lombo dos Aguiares, onde viveu de fins de 1910 a 17
de Janeiro de 19291344, ou na Palmeira e Caldeira com suas Irmãs, continuou a Madre Virgínia
a observar as regras da sua Ordem. Alma de revelações místicas, era admirada não só pelas
suas Irmãs, como também pelo povo em geral. Todos a olhavam com estima porque nela viam
muita virtude. A Madre foi, podemos afirmá-lo, o elo de ligação entre suas irmãs, luz que
apontava o caminho certo, fogo que ateava a chama do amor e da esperança, liame forte e
firme que conseguiu manter aquela comunidade dispersa, tão unida e fervorosa .
A Irmã Clara Maria de São José estabeleceu-se na Torre, na casa de seus pais. A partir,
possivelmente, de 1926 juntaram-se-lhe as Irmãs Maria Ângela de Santo António e Maria
Querubina de Santa Rosa. Assumiram a confecção de hóstias a que anteriormente se dedicava
o grupo da Palmeira.1345 Viviam com muito espírito fraterno e muita amizade, oravam e
trabalhavam. Os seus dias iam deslizando mais ou menos iguais. Algo, porém, era sempre
diferente, porque sempre maior e mais profundo: o amor que as ligava a Deus e à
humanidade.
A Irmã Maria Marta de Jesus Cristo, natural das Preces, Câmara de Lobos, embora
vivendo em casa de seus pais até à construção do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade,
esteve sempre em união com suas Irmãs.
A Irmã Maria da Natividade do Amor Divino durante a estadia na família no Serrado
d’Adega inseriu-se numa peregrinação a Roma e à Terra Santa, que lhe proporcionou
momentos de grande alegria e enriquecimento espiritual.
A Irmã Pacifica, natural da pitoresca e bela freguesia de Porto Moniz, que entrara nas
Mercês em 1908, era noviça à data da expulsão. Regressando à sua casa aí viveu vinte anos,
acalentando sempre o desejo e a esperança de consagrar-se ao Senhor. Com sua irmã Maria
Nazaré, um pouco mais velha, dedicou-se a obras de apostolado na sua paróquia,
catequizando crianças e adultos1346.
4. Unidas e reorganizadas
Concluiremos dizendo que as Irmãs das Mercês do Funchal souberam viver bem unidas
ao Senhor, em caridade e oração, e prestando nas suas paróquias importantes serviços
apostólicos e catequéticos, enquanto aguardavam condições que permitissem a construção de
um novo mosteiro,. Nenhuma estava isolada ou independente, mas sempre em comunicação
com as demais e, sobretudo, com a Madre Virgínia, com quem mantinham contacto epistolar
e com quem se reuniam sempre que possível.
A conduta exemplar destas religiosas não passou despercebidas às autoridades nem ao
grande público. Em 1946 escreveu o P. Fernando Augusto da Silva: “ Embora com a mais
recatada prudência e sem uma sanção legal que a isso abertamente as autorizasse,
1343
Foi numa destas estadias que se passou um caso que a senhora D. Ester Ramos nos contou. Certo dia, o Rufininho, sobrinho da Irmã
Maria Matilde da Circuncisão, cujos pais moravam ao lado das religiosas, caiu ao poço. Aos gritos da mãe, acudiu a Madre Virgínia
tranquilizando a senhora e pedindo-lhe que não se afligisse, porque o menino não morreria. Quando a senhora se abeirou do poço encontrou
a criança viva e satisfeita à superfície da água. “Este menino,” acrescentou a senhora D. Ester, “foi o meu pai”. Quantas coisas belas conta
esta senhora das Irmãs que ali viveram!...
1344
Arquivo do Registo Civil do Funchal, Livro de Registos de Óbitos, ano de 1929, registo n.º 74: Registo de óbito de Madre Maria Virgínia
Brites da Paixão; Abel Soares Fernandes, Alguns apontamentos sobre a vida Madre Virgínia Brites da Paixão (trabalho dactilografado),
Funchal, 1998, p. 7 e 8.
1345
Pudemos contactar com a senhora D. Lucília Martinha de Sousa, residente na Torre junto à capela da Boa Hora, que ainda se lembra de ir
com outras crianças pedir aparas das hóstias às Irmãs.
1346
Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos, p. 7 e ss.
292
mantiveram-se sempre observando com rigor os preceitos das suas regras, conforme podiam
permitir as circunstâncias da ocasião. Foi talvez um caso único ocorrido no nosso país”1347.
Assim, à excepção das que foram partindo para o Senhor, a 16 de Abril de 1931, todas
entraram no novo remanso de amor e paz - o Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade da
Caldeira em Câmara de Lobos, como vamos ver na Terceira Parte desta obra
TERCEIRA PARTE
MOSTEIROS DA MADEIRA NO PRESENTE
I Secção - Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade
(Caldeira - Câmara de Lobos)
II Secção - Mosteiro de Santo António
(Lombo dos Aguiares - Funchal)
1347
Fernando Augusto da Silva, op. cit., I, p. 181 e 182.
293
I SECÇÃO
MOSTEIRO DE NOSSA SENHORA DA PIEDADE
294
(fotografia)
56. Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade. Ao fundo do pequeno vale da Caldeira, encostado às altas
montanhas que o envolvem, fica o branco mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, lugar de oração e de paz,
que a população circunvizinha olha com amor.
CAPÍTULO I
295
A CONSTRUÇÃO DA CAPELA DE NOSSA SENHORA DA PIEDADE
E SUA TRANSMISSÃO ÀS IRMÃS CLARISSAS
1. A capela de Nossa Senhora da Piedade, iniciativa do P. Manuel Gonçalves Henriques
1.1. A construção
O P. Manuel Gonçalves Henriques, filho de Pedro Gonçalves e Guiomar Henriques,
naturais de Câmara de Lobos, ordenado sacerdote em 17681348, foi dotado por seus pais com
uma propriedade na Caldeira1349, onde veio a construir uma residência. Foi ali que passou os
últimos anos da sua vida quando, com a saúde abalada, já não podia exercer o múnus
sacerdotal como vigário.
Vendo-se impossibilitado de celebrar missa diariamente, pois não podia percorrer os
caminhos, umas difíceis veredas, que conduziam a Câmara de Lobos, decidiu o P. Manuel
Gonçalves Henriques edificar à sua custa, junto à sua residência “uma capela com tribuna, a
qual quer invocar como título de Nossa Senhora da Piedade”1350.
Terminada a construção, que se efectuou nos últimos anos do século XVIII1351, tratou o
P. Manuel Gonçalves Henriques de apetrechá-la com paramentos litúrgicos e vasos sagrados.
No início do ano de 1800, recorreu ao prelado da diocese, para obter licença de nela poder
celebrar missa, “para que, facultando-lhe aquela graça, mande proceder à vistoria da mesma
capela”1352.
O alvará de D. Luís Rodrigues Vilares, de 9 de Abril de 1800, concedia a licença
solicitada: “pelo presente Alvará concedemos licença de que se façam as diligências
necessárias de Património, que tem dotado o R. Suplicante Manuel Gonçalves Henriques, para
a conservação e reparo da capela da Nossa Senhora da Piedade, sita na freguesia de Câmara
de Lobos para a erecção da qual temos concedido a licença pedida”1353.
1.2. A dotação
A 3 de Março de 1800, o P. Gonçalves Henriques solicitou dois avaliadores à Câmara do
Funchal, José Ferreira da Silva e Manuel Francisco do Souto, para “dividir, avaliar e
demarcar” a fazenda que iria constituir o dote da capela de Nossa Senhora da Piedade
“declarando também, debaixo de juramento, os seus rendimentos anuais”1354.
1348
AHDF, caixa 100, maço 200, n.º 1683, fol. 1 e ss. Veja-se a nota de rodapé página IX.
AHDF, caixa 100, maço 200, n.º 1683, fol. 2 e ss.
1350
AHDF, caixa 16 , doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade, erecta na freguesia de Câmara de Lobos, pelo P.
Manuel Gonçalves Henriques, fol. 1 e 2.
1351
A construção da capela teve lugar na última década do século XVIII, e não em 1800, como se lê no Elucidário Madeirense, II, p. 464. De
facto, em princípios de Março de 1800, já terminada a sua construção e apetrechada com paramentos litúrgicos e vasos sagrados, entrou em
curso o processo de dotação canónica, a pedido do P. Manuel Gonçalves Henriques.
1352
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade,(..), fol. 2, comissão de D. Luís Rodrigues Vilares para
o vigário de Câmara de Lobos de 24 de Novembro de 1800.
1353
AHDF, caixa 16 , doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 2v, alvará de D. Luís Rodrigues Vilares, dado
no Funchal a 9 de Abril de 1800.
1354
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 6-8: Auto de avaliação de 3 de Março de
1800.
1349
296
57. Residência do P. Manuel Gonçalves Henriques.
Esta porta, mostrando na padieira a data da construção do
edifício, 1771, era a porta de entrada da residência.
Tratava-se de uma propriedade plantada com vinha que confrontava a norte com
Sebastiana Maria Rosa, viúva de Inácio Nunes Pereira; a sul com José Ferreira e com os
herdeiros de António Gonçalves Henriques; a leste com os ditos herdeiros de António
Gonçalves Henriques; a oeste com a Levada de Heréos, que ia para o Rancho.1355 Acharam
os avaliadores que “com todas as benfeitorias que tem que são paredes, latadas e vinha (...) e a
parte da água que lhe pertence (...) vale 850. 000 réis”1356.
Avaliada a fazenda, foi lavrado o instrumento público de dotação, acto que teve lugar a
“3 de Abril do referido ano, nesta freguesia de Câmara de Lobos, no sítio da Caldeira, em
casa do Reverendo Manuel Gonçalves Henriques (...) perante testemunhas”. Disse o dotador
que tinha feito ali a capela de Nossa Senhora da Piedade para nela dizer Missa e que “a dotava
com um bocado de terra coberta de vinha”1357, com as confrontações já demarcadas pelos
avaliadores. Ficava a referida propriedade vinculada à capela “por todo o tempo do
mundo”1358.
A 8 de Agosto o Cónego Jacinto Manuel Borges de Bettencourt, na qualidade de vigário
geral da diocese e em nome do prelado, mandou que o cura de Câmara de Lobos designasse
“dois avaliadores de boa consciência e com juramento feito nos Santos Evangelhos (...) para
dividir, avaliar, demarcar e confrontar a fazenda doada, declarando também debaixo do
mesmo juramento os seus rendimentos anuais”1359, devendo enviar à Câmara Eclesiástica os
respectivos autos.
Em obediência a esta determinação, o cura de Câmara de Lobos, Domingos de Sá Pinto,
na qualidade de inquiridor comissário, a 13 de Agosto nomeou os avaliadores Mateus de Faria
e Manuel Martins, que juraram sobre os Evangelhos proceder com toda a rectidão1360. A
propriedade com que estava dotada a capela de Nossa Senhora da Piedade, foi então avaliada
em 875.000 réis, valor que excedia em 25.000 réis a avaliação anteriormente feita, e o seu
rendimento anual foi fixado em 50 mil réis1361.
A 31 de Agosto foi dado conhecimento da construção da capela e respectiva dotação na
missa dominical em Câmara de Lobos, ficando o respectivo documento afixado na porta da
igreja pelo espaço de três dias, a pedido do Vigário Geral da diocese, para que pudesse
pronunciar-se quem fosse conhecedor de algum dos impedimentos seguintes: se a capela está
de posse da propriedade dotada, sem contradição de pessoa alguma; se vale menos de 875.000
réis; se é livre e desembargada; se é de morgado, prazo ou capela; se a fazenda dotada é do
dotador e por que título lhe pertence e se, sem prejuízo seu ou de terceiros, pode fazer este
dote1362.
A 14 de Setembro do referido ano o cura Domingos da Silva Pinto comunicava ao
vigário geral: “Foi publicado (...) no dia 31 de Agosto (...). Não houve impedimento algum
1355
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 6: Auto de avaliação (...) e fols. 7- 8 : Auto de
demarcação de 3 de Abril.
1356
AHDF, caixa 16,doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 6: Auto de avaliação (...), fol. 6.
1357
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fols. 3 – 4: Instrumento público de Dotação de 3
de Abril de 1800.
1358
AHDF caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fols. 10 -11v: Auto de Avaliação (...).
1359
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fols. 9– 9v: Provisão de Jacinto Manuel Borges de
Bettencourt, dada no Funchal a 8 de Agosto de 1800.
1360
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol.10: Testemunho do cura de Câmara de Lobos,
Domingos da Silva Pinto.
1361
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 13: Carta do provisor Jacinto (...) de 2 8 de
Agosto de 1800.
1362
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 13: Carta do provisor Jacinto (...) de 28 de
Agosto de 1800
297
nem denúncia”1363. Assim sendo, a fazenda com que o P. Manuel Gonçalves Henriques “por
sua livre vontade e muito gosto (...)” dotava a capela de Nossa Senhora da Piedade, “fazenda
herdada de seus pais e parte comprada aos herdeiros”1364, ficava vinculada como património
perpétuo à capela de Nossa Senhora da Piedade de Câmara de Lobos, sítio da Caldeira. A
referida fazenda gozava “de todas as prerrogativas, privilégios e isenções”, não podendo ser
objecto de qualquer “alienação, convenção ou transacção que possa, directa ou
indirectamente, prejudicar a mesma capela”1365. Ficava, pois, “para a conservação decente da
capela, situada no lugar denominado da Caldeira, na freguesia de Câmara de Lobos, para que
fiquem os seus rendimentos in perpetuum, servindo para os reparos e paramentos necessários
da sobredita capela”1366.
58. Frontispício da capela de Nossa Senhora da
Piedade. A capela de Nossa Senhora da Piedade evoca
a figura do P. Manuel Gonçalves Henriques que a
mandou construir junto à sua residência. A porta de
entrada apresenta toda a beleza e originalidade da
arquitectura da época.
A 24 de Novembro do mesmo ano, o bispo do Funchal, encarregava o vigário de
Câmara de Lobos da vistoria da capela construída e dotada pelo P. Manuel Gonçalves
Henriques “para que não fiquem seus desejos frustrados e para sua consolação”1367.
Em obediência ao mandato de D. Luís Rodrigues Vilares, a 26 de Novembro do mesmo
ano o vigário de Câmara de Lobos, José de Freitas Spínola, procedeu à vistoria da capela “que
se acha decentemente asseada, o altar em tudo pronto e os paramentos não só necessários para
celebrar o santo sacrifício da missa com decência em uma capela particular mas ainda em
qualquer igreja paroquial pelos ter de todas as cores de que usa a Igreja nas suas diferentes
festividades; além disso está a mesma capela provida de cálice, patena, missal e caderno de
defuntos, com tudo o mais que é necessário para o mencionado fim”1368.
1.3. A benção da capela
Uma vez vistoriada e aprovada para o culto religioso, o fundador suplicou ao prelado
da diocese se dignasse “conferir a necessária jurisdição ao Reverendo Pároco que fez a
vistoria (...)” para a benzer, assim como os paramentos e as imagens, a fim de que se pudesse
“celebrar nela o Santo Sacrifício da Missa”1369. Respondendo a esta legítima súplica, o bispo,
por provisão de 28 de Novembro de 1800, concedeu ao pároco da freguesia de Câmara de
Lobos a licença solicitada: “ Havemos por bem conceder licença ao Reverendo vigário da dita
freguesia para que na forma do ritual de Paulo V, possa benzer a dita capela, assim como
também as imagens nela colocadas e os mesmos ornamentos; e permitimos se diga missa
nela, ficando sujeita à nossa jurisdição para ser visitada e para tudo o mais que
1363
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 13 v.
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fols. 18–18v: Auto do cura Domingos de Sá Pinto,
inquiridor comissário, de 4 de Setembro de 1800.
1365
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 19.
1366
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 19v: Sentença de 9 de Setembro de 1800.
1367
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fols. 21- 21v: Comissão dirigida ao vigário de
Câmara de Lobos, dada no Funchal a 24 de Novembro de 1800.
1368
AHDF, caixa 16, Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 22: Auto da vistoria feito pelo escrivão eleito, João
António de Abreu Almeida, de 22 de Novembro de 1800.
1369
AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...): Súplica do P. Manuel Gonçalves Henriques ao
Prelado da Diocese. Este documento, certamente por lapso, não está inserido no processo. Encontra-se escrito numa folha de papel de igual
qualidade, mas dobrado e colocado no final do processo.
1364
298
determinarmos; com cláusula de não poder impedir aos fiéis que nela quiserem ouvir missa,
nem aos sacerdotes que tiverem devoção de celebrar na mesma capela”1370.
Concedida a licença para a benção, o P. José de Freitas Spínola, vigário de Câmara de
Lobos, deu cumprimento à provisão episcopal benzendo a capela de Nossa Senhora da
Piedade, a 30 de Novembro de 1800. Tal como determinava a referida provisão, elaborou e
enviou à Câmara Eclesiástica a respectiva certidão: “Eu José de Freitas Espínola, vigário
nesta Colegiada de Câmara de Lobos, em virtude da Provisão supra, fui ao sítio da Caldeira,
onde se acha a capela de Nossa senhora da Piedade (...) e a benzi na forma do Ritual
determinado de Paulo quinto, como também as imagens e paramentos”1371.
Chegava-se ao final do processo canónico, ficando o fundador a gozar dos direitos
vinculados à sua capela.
2. Transmissão da capela e seu património por testamento do P. Manuel Gonçalves
Henriques
Acabado pelos anos, a 24 de Dezembro de 1831, no sítio da Caldeira da freguesia de
São Sebastião de Câmara de Lobos, confortado com todos os sacramentos, faleceu o P.
Manuel Gonçalves Henriques.
Deixou exarado no seu testamento que o seu corpo fosse “revestido das vestes
sacerdotais, sepultado na sua capela da Nossa Senhora da Piedade (...) que na mesma capela
fosse depositado o seu corpo e se lhe fizesse um ofício de corpo presente com a assistência do
seu pároco e clérigos desta freguesia e da do Estreito, do cura da capela de Nossa Senhora dos
Remédios e dos religiosos do mosteiro de São Bernardino e que neste acto funerário
assistissem os pobres que quisessem, dando-se a cada um de esmola cinquenta mil réis”1372.
Como seu universal herdeiro e testamenteiro designou “seu sobrinho António Gonçalves
Henriques Correia, Capitão de Milícias”. Transitava, pois, para ele não só a capela como
também a residência e propriedades.
Por uma declaração de quitação lavrada pelo notário Manuel de Sousa Drummond, em
18 de Maio de 1868, sabe-se que estas propriedades, incluindo a residência e a capela, foram
hipotecadas em vida do capitão em virtude de uma divida contraída a uma casa comercial1373.
Após a sua morte, que ocorreu a 4 de Abril de 1866, com oitenta e oito anos, os seus filhos,
Ana Júlia de Freitas Henriques, Tibúrcio Justino Henriques, António Gonçalves Henriques,
casados, e Luís Agostinho Henriques, na altura solteiro, decidiram sanar aquela situação.
Assim, por escritura de 23 de setembro de 1867, feita no tabelião de notas Cândido Leal
Lacerda, saldaram a divida e receberam as propriedades hipotecadas que, segundo a referida
declaração de quitação, passaram a pertencer a todos os irmãos1374.
3. O P. António Rodrigues Dinis Henriques, proprietário da capela de Nossa Senhora da
Piedade, e seu património
3.1 . Compra e transmissão
1370
ARM, Câmara Municipal do Funchal, Livro 4º do Tombo da Câmara. fols. 223 v - 224v, em microfilme; AHDF, L 77, fols. 223v - 224;
Manuel Pedro Freitas “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II - Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 27 de Setembro de
1998, p. 13.
1371
ARM, Câmara Municipal do Funchal, Livro 4º do Tombo da Câmara. fols. 223 v -224v, em microfilme; AHDF, L 77, fols. 223v-224;
Manuel Pedro Freitas, “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II- Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 27 de Setembro de
1998, p. 12.
1372
ARM, Paroquiais, L 325, fols. 13 8 v-139 : Registo de Óbito do P. Manuel Gonçalves Henriques. Tem incluso o testamento.
1373
ARM, Notariais, L 13 do Tabelião Manuel Sousa Drummond, da Câmara Municipal do Funchal, fol. 48.
1374
Manuel Pedro Freitas, “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II- Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 4 de Outubro de
1998, p. 12.
299
O P. António Rodrigues Dinis Henriques nasceu a 2 de Setembro de 1833, sendo
ordenado presbítero a 23 de Julho de 18651375. Era filho de Manuel Rodrigues Dinis e de D.
Maria Correia Henriques, proprietários, naturais da freguesia de Câmara de Lobos1376. No dia
18 de Agosto de 1864, seus pais, moradores no sítio da Caldeira, para cumprimento das leis
canónicas, dotaram-no, antes da ordenação sacerdotal, com uma “ terra e benfeitorias (...) que
tem a medição superficial de quarenta e cinco ares e trezentos e setenta e cinco centiares
quadrados, que (...) confronta a norte com o prédio de João Pinto da Silva e Francisco
Figueira, a sul com João Gonçalves Henriques e António Pinto, a leste com o ribeiro da
Caldeira e a oeste com João Gonçalves Henriques, e foi avaliada com as benfeitorias que tem,
em 435.500 réis”1377. Pelo instrumento público, lavrado no Funchal diante do tabelião, José
Joaquim de Nóbrega e Matos, António Rodrigues Dinis Henriques ficava dotado da “referida
“propriedade e suas benfeitorias, com suas entradas e regalias anexas, direitos e acções, para
lhe servir de património enquanto for vivo, contanto que lhe sejam concedidas as últimas
Ordens Eclesiásticas e que chegue a dizer Missa”1378.
A 30 de Junho de 1866 já o P. António Rodrigues Dinis Henriques estava na Quinta
Grande como vice-vigário e a 15 de Abril de 1879, por portaria régia, foi nomeado vigário
colado da mesma freguesia1379.
Pouco depois da morte do capitão António Gonçalves Henriques, o P. Dinis e seu
irmão Manuel Rodrigues Dinis, solteiro, residente na Caldeira, por escritura de 18 de Maio de
1868, feita pelo notário Manuel de Sousa Drummond, compraram por 700.000 réis três
propriedades no sítio da Caldeira aos filhos do capitão, onde estava incluída a capela, ficando
o P. Dinis com dois terços da compra e seu irmão com um terço1380.
Com esta aquisição o P. António Rodrigues Dinis Henriques sucedeu ao capitão
António Gonçalves Henriques e aos seus herdeiros na posse da capela de Nossa Senhora da
Piedade, tendo, possivelmente, partilhado a residência com o seu irmão. A parte anexa à
capela teria ficado pertença sua e a outra de seu irmão.
Ignoramos a data em que o vigário da Quinta Grande teria passado a residir na
Caldeira, na casa anexa à capela de Nossa Senhora da Piedade, mas sabemos que já ali se
encontrava a 8 de Janeiro de 1914, data da redacção do seu testamento, lavrado “no sítio da
Caldeira, actual residência do Padre António Rodrigues Dinis Henriques1381.
Pelo conteúdo de uma inscrição em tempos existente no pavimento da capela, podemos
concluir que, em 1894, nela se realizaram obras à responsabilidade do P. António Dinis
Rodrigues, sem, contudo, adulterar a sua arquitectura original1382. Também nos finais de
1914, segundo o Diário da Madeira de 7 de Outubro desse ano, se teria procedido a trabalhos
de pintura e decoração da capela sob a responsabilidade do pintor José Zeferino Nunes1383.
Em 1914, sentindo-se já bastante doente, mas “em perfeito juízo e livre de coacção,
(...) fez o seu testamento perante o notário Cândido Eduardo de Freitas e cinco testemunhas
1375
AHDF, Livro 5 de Serviços Paroquiais, p. 9.
AHDF, caixa 168, maço 336, nº 2749, fol. 6.
AHDF, caixa 168, maço 336, nº 2749, fol. 6 e 6 v.
1378
AHDF caixa 168, maço 336, nº 2749, fol. 6 v.
1379
AHDF, Livro 5 de Serviços Paroquiais, p. 9.
1380
Manuel Pedro Freitas. “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II- Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 4 de Outubro de
1998, p. 12.
1381
ARM, Notariais, L 3 857, Livro de Testamentos, Cartório Notarial de Câmara de Lobos, fol. 7
1382
ARM, Câmara Municipal do Funchal, Livro 4º do Tombo da Câmara. fols. 223 v - 224v, em microfilme; AHDF, L 77, fols. 223v - 224;
Manuel Pedro Freitas, “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II- Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 4 de Outubro de 1998,
p 13. No Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade encontra-se a referida inscrição manuscrita por um operário quando,
posteriormente, sendo já propriedade das religiosas, se procedia à remodelação do pavimento.
1383
Manuel Pedro Freitas, “ Capela de Nossa Senhora da Piedade, Parte I - Construção e Benção”, in Jornal da Madeira de 4 de Outubro de
1998, p. 13. Outras obras, ampliações e melhoramentos que a capela sofreu mais tarde, foram da iniciativa das Irmãs Clarissas que, a partir
de 1931, se tornaram suas proprietárias.
1376
1377
300
idóneas”1384. Verificamos que, enquanto lega bens imóveis situados na Caldeira e na Eira do
Lombo a vários sobrinhos, transmite, com todas as formalidades legais, ao P. João Joaquim de
Carvalho, vigário da freguesia de Câmara de Lobos e, na sua falta, ao P. Manuel Joaquim de
Paiva, da freguesia de São Pedro, no Funchal, os prédios seguintes: “ Uma porção de terra, no
sítio da Caldeira, freguesia de Câmara de Lobos, com vinha e árvores de fruto e uma casa
coberta de colmo, a confinar a norte e a leste com António da Silva e Augusto Policarpo, a sul
com o mesmo António da Silva e a oeste com a Levada de Heréos, (...) e um prédio rústico e
urbano, contendo árvores de fruto, um palheiro, uma casa de habitação, onde actualmente
reside o testador, loja e cozinha e uma capela contígua, sob a invocação de Nossa Senhora
Piedade(...)” Era desejo do testador e assim o pedia ao respectivo legatário que “ na sua
capela continue sempre a celebrar-se o culto católico”1385.
3.2. Cumprimento de uma vontade: a construção dum mosteiro de Clarissas
A transmissão da capela e propriedade a ela vinculada ao vigário de Câmara de Lobos
obedecia a um plano preconcebido: o P. Dinis desejava que ali fosse construído um mosteiro
da Ordem de Santa Clara de Assis, onde se congregassem as religiosas das Mercês que ainda
viviam., Disso era sabedor D. António Manuel Pereira Ribeiro, bispo do Funchal e, com essa
finalidade, foram os referidos bens imóveis transmitidos ao vigário de Câmara de Lobos1386.
De facto, na impossibilidade de passarem aqueles bens à diocese do Funchal, em
virtude das leis do Estado pós-republicanas, que não reconheciam à Igreja o direito de
propriedade, a transmissão da capela e seu património ao P. João Joaquim de Carvalho,
membro da Terceira Ordem Franciscana, grande admirador das religiosas e da total confiança
do testador e do prelado, era, tão somente, uma forma de reserva dos referidos bens, para a
finalidade em vista.
Segundo algumas religiosas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, que nele
viveram dezenas de anos com suas Irmãs vindas das Mercês, a construção do mosteiro na
propriedade pertencente à capela, e a inclusão desta no novo edifício, era aspiração profunda
da alma bondosa do P. António Dinis1387. Em 1927-1928 começaram a fazer-se diligências
para a construção do almejado mosteiro, com grande júbilo do P. João Joaquim de Carvalho,
que via chegada a hora de se concretizarem os objectivos que haviam determinado a
passagem daqueles bens para as suas mãos. A confirmar o sobredito, está o facto de, em 1928,
o P. João Joaquim de Carvalho ter autorizado as Irmãs Clarissas a construir nos terrenos em
questão, sem qualquer venda, ainda que fictícia e, em 1938, ter encontrado um meio de lhes
transmitir os imóveis. Com efeito, por escritura de 5 de Janeiro daquele ano, a capela e as
1384
ARM, Notariais, L 3857, Livro de Testamentos, Cartório Notarial de Câmara de Lobos, fol. 6 v.
ARM, Notariais, L 3857, Livro de Testamentos, Cartório Notarial de Câmara de Lobos, fol. 8. Do manuseamento de todos os seus bens,
direitos e acções, o testador instituiu herdeiro universal o P. João Joaquim de Carvalho e, na sua falta, o P. Manuel Joaquim de Paiva, os
quais nomeou também testamenteiros, pedindo-lhes que se encarregassem do seu funeral e bem da sua alma ( fol. 8). O P. João Joaquim de
Carvalho, filho de Manuel José de Carvalho e de Maria Antónia Leça de Carvalho, era natural da freguesia da Sé do Funchal, onde nasceu a
14 de Abril de 1865. Foi ordenado presbítero a 13 de Junho de 1889 (AHDF, caixa 172, maço 343, nº 1886; Livro 5 de Serviços Paroquiais,
p. 12 ). A sua actividade, como sacerdote e pároco, foi muito meritória. Com a sua acção caracteristicamente religiosa associou uma notável
actuação sócio- pedagógica que visou essencialmente a classe piscatória de Câmara de Lobos. De todos os padres que no decurso deste
século XX passaram por esta cidade, o P. João Joaquim de Carvalho terá sido a figura mais importante e distinta. (Manuel Pedro Freitas,
Jornal da Madeira, 20 de Setembro de 1998, p. 11). A sua dedicação por todos, mas principalmente pelos mais carenciados, a sua abertura e
bondade nasciam-lhe da sua alma franciscana, boa e plena de amor. Este sacerdote, nomeado Cónego da Sé Catedral por provisão de 24 de
Outubro de 1936, foi até à sua morte, ocorrida a 15 de Dezembro de 1942 (AHDF, Livro 5 de Serviços Paroquiais, p. 12), um grande amigo
e benfeitor do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade.
1386
O senhor João Quirino da Silva e algumas Irmãs idosas que vivem no mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, e que tiveram contacto com
o referido prelado e o P. João Joaquim de Carvalho, assim o testemunham.
1387
A Irmã Maria Clarisse Xavier, à data (1999) com noventa anos feitos, em plena posse das suas faculdades mentais, fala, com vivacidade
e muita clareza, deste desejo do P. António Dinis. O senhor João Quirino da Silva, que vive ao lado do mosteiro e conviveu, bem de perto,
com o P. António Dinis e as Irmãs Clarissas, confirma esta informação.
1385
301
respectivas propriedades passaram daquele sacerdote a um grupo de Irmãs Clarissas1388,
constituídas dois dias antes em Sociedade, sob a denominação de Associação Protectora das
Senhoras Pobres1389. Uma vez mais a sua posse é protegida, por forma a não correr o risco de
passar para o Estado. Com efeito, não só a transferência foi feita para a referida Associação e
não directamente à Ordem, como não se fez a título gracioso. Naturalmente, pelo que nos é
dado saber, os valores envolvidos nesta transacção foram puramente convencionais1390. As
religiosas de mais idade e algumas pessoas que conheceram e privaram de perto com o P.
Carvalho e o P. Dinis assim o atestam.
CAPÍTULO II
O NOVO MOSTEIRO
1. O despontar da aurora
1388
ARM, Notariais, L 139 do notário de Câmara de Lobos, Manuel Pontes de Gouveia, fol.29v e ss. : Venda do P. João Joaquim de
Carvalho à Associação Protectora das Senhoras Pobres; Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 1, doc. avulso: Fundação
da capela e mosteiro. Foram outorgantes da Associação Protectora das Senhoras Pobres: Firmínia Ferraz (leiga), Silvina Matilde de Barros
(Ir. Clara Maria de São José), Augusta Policarpo Abreu (Ir. Maria Francisca da Piedade), Mónica Teresa de Ornelas (Ir. Maria Mónica dos
Santos) e Maria Matilde Martins (Ir. Maria Bernardete do Sagrado Coração). Tratava-se, evidentemente, de uma solução jurídica que visava
a transmissão daqueles bens imóveis às Irmãs Clarissas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade.
1389
ARM, Notariais, L 139 do notário Alberto de Sousa Drummond Borges, fol.28 e ss: Escritura de Sociedade por Cotas, lavrada a 3 de
Janeiro de 1938, 28 e ss. ; Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 1, doc. avulso: Fundação da capela e mosteiro. No
Instituto Português de Cartografia e Cadastro da Madeira, a associação aparece, por equívoco, com a designação de Associação das Senhoras
Pobres.
1390
Manuel Pedro Freitas, “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II - Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 4 de Outubro de
1998, p. 13.
302
Com a Revolução de 28 de Maio de 1926, novos horizontes se abriram. O novo
regime começou a respeitar a liberdade da Igreja, contrariada e ofendida pela Republica de
1910. Caminhava-se para a formação do Estado Novo, a que a Constituição Política de 1933,
veio dar estabilidade.
A partir desta data, pôde D. António Manuel Pereira Ribeiro, bispo do Funchal,
concretizar na sua diocese uma profunda renovação: vemo-lo a dinamizar a juventude, a dar
expansão às confrarias de São Vicente de Paulo, a diligenciar a introdução das Ordens
Regulares pelas quais tinha particular apreço, como sejam os Franciscanos, Carmelitas e
Salesianos; a solicitar a presença de Congregações Religiosas femininas: à Congregação das
Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, fundada na Madeira, juntaram-se, as
Franciscanas Missionárias de Maria, as religiosas de São José de Cluny, da Apresentação de
Maria e outras mais. Para com a Ordem de Santa Clara que, com valentia e dignidade soube
permanecer na Madeira, foi pai desvelado, desde a primeira hora do seu episcopado.
A 17 de Janeiro de 1929, partiu para Deus a Madre Virgínia Brites da Paixão, alma
mística que, com entranhas de mãe, soubera acalentar a esperança das suas Irmãs e incentiválas na fidelidade ao carisma. Bem depressa, D. António Manuel Pereira Ribeiro e o P. João
Joaquim de Carvalho entregaram a capela de Nossa Senhora da Piedade de Câmara de Lobos
e propriedades anexas às Irmãs Clarissas, estimulando-as à construção do tão desejado
mosteiro. Segundo depoimento do senhor João Quirino da Silva, um outro factor pesava nesta
decisão. O P. João Joaquim de Carvalho, simples intermediário na transmissão dos bens do P.
Dinis para às Irmãs Clarissas1391, desejava ver construído o mosteiro o mais depressa possível,
pois para isso recebera aquele património. Era para ele um dever de consciência.
2. A construção, obra de muitos
Que júbilo o das Irmãs Clarissas! Ei-las, mais felizes que os passarinhos do espaço,
diligenciando à aquisição de meios que lhes permitissem a construção do tão desejado
mosteiro. Que mais admirar? O zelo paternal do prelado, a alegria das religiosas ou a
disponibilidade e acolhimento generoso e amável das autoridades e do povo madeirense?
Tudo se conjugava para a consecução de tão importante empreendimento, como era um
mosteiro de religiosas contemplativas, onde as jovens da Pérola do Atlântico, chamadas por
Deus ao silêncio do claustro, fariam nascer na sua terra, pela oração fervorosa, um espírito
novo, cheio de amor e de esperança.
Na Caldeira todos ajudavam oferecendo ou transportando materiais, dando dias
gratuitos, manifestando a sua amizade grande e sincera1392.
Com o sacrifício e dedicação de muitos, o pequenino mosteiro, simples e pobre, mas
belo e acolhedor, tornou-se, muito em breve, uma realidade. Levantado ao lado da capelinha
de Nossa Senhora da Piedade, que nele ficou integrada, não poderia ter outro nome senão o de
mosteiro de Nossa Senhora da Piedade. E, não fora sob o olhar maternal da Senhora da
Piedade que, durante vinte e um anos, algumas das Irmãs tinham vivido, sofrido e esperado?...
3. A entrada das religiosas
1391
O senhor João Quirino da Silva, afilhado do P. João Joaquim de Carvalho, refere o receio que havia de que, morrendo este sacerdote
antes da construção do mosteiro, os herdeiros pudessem dificultar o cumprimento do desejo do P. Dinis.
1392
Nas visitas que, talvez umas duas mil pessoas, fizeram à exposição do espólio do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, organizada
numa das salas do actual mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, no período das Celebrações Centenárias dos 500 Anos, pudemos ouvir
testemunhos emocionantes. Como não lembrar aquele casal madeirense, já de cabelos brancos, radicado na Venezuela?!... Com muita
vivacidade dizia o senhor: “Era eu então um rapazinho de dez anos. Como me lembro bem de ver chegar os burrinhos carregados de cimento
e outros materiais que, por pobres veredas, subiam de Câmara de Lobos até aqui!... “O meu pai”, dizia, “deu às Irmãs muitos dias de trabalho
por amizade e toda a gente do sítio, ajudava com muita caridade”. É assim. As obras de Deus fazem-se com o contributo de todos aqueles
que compreendem que a solidariedade, por amor, dignifica e enobrece.
303
59. A comunidade das Mercês, no mosteiro de Nossa Senhora da
Piedade. Grupo das religiosas que constituíram a comunidade inicial do
mosteiro de Nossa Senhora da Piedade. No primeiro plano, da esquerda
para a direita: Maria Natividade do Amor Divino, Clara Maria de São José
e Maria Francisca da Piedade. Em cima, Maria Ângela de Santo António,
Maria Querubina de Santa Rosa e Maria Pacífica. À esquerda a Ir. Maria
Teresa da Apresentação1393.
Em Abril de 1931, já só viviam oito Irmãs, pois que, ao longo deste tempo de espera,
sete delas haviam partido para o Céu.
Aquele pequeno resto de Irmãs Clarissas, com a ajuda de Deus, vencera! Que alegria
imensa ao verem concluído o seu novo remanso de paz e amor! Ditoso aquele dia 16 de Abril
de 1931, em que a comunidade do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal,
reduzida a oito sobreviventes e acompanhada de duas candidatas, via realizado o sonho
acalentado durante vinte e um anos. Tudo era paz, alegria e serenidade no novo mosteiro.
No dia 25 do mesmo mês, no meio de festa e com grande solenidade, fez-se a
transladação do Santíssimo Sacramento para a pequena, mas linda capela. Neste percurso
processional, saído de Câmara de Lobos, integraram-se autoridades religiosas e civis,
membros do clero, organismos religiosos e muito povo da vila e da Caldeira que, rezando e
cantando, iam subindo o pequeno vale até à encosta, onde sobressaía o pequeno mosteiro
branco. Nem faltou a banda musical, homenageando o Santíssimo Sacramento e dando à
procissão brilho e dignidade. Jesus Eucaristia ficava, a partir daquele momento, entre as
religiosas como Senhor e Rei das suas vidas.
4. Primeiros passos da comunidade
Nada nem ninguém conseguira vencer o ânimo e a esperança das religiosas das
Mercês. Mais fortes que as circunstâncias político-sociais que as envolveram, elas ali estavam
a testemunhar que Deus é o Senhor e o condutor da história dos homens e que o seu amor
triunfa contra todos os obstáculos. Caso ímpar, único na história de Santa Clara em Portugal.
Estas religiosas foram os pilares bem fortes que sustentaram a Ordem de Santa Clara em
Terra Lusa.
Sete religiosas professas, uma noviça e duas candidatas eram o grupo pequeno mas
boa
Quadro nº.62 - A comunidade do mosteiro nascente
Nome civil
Nome Religioso
Cecília Teresa Pereira
Matilde Augusta de Freitas
Maria Natividade de Barros
Augusta Policarpo Pinto Abreu
Silvina Matilde de Barros
Maria Correia Rodrigues
Elisa Malaquias Sardinha
Rosa Dias (noviça)
Maria Baptista Martins (candidata)
Maria Nazaré Dias (candidata)
Maria Teresa da Apresentação
Maria Marta de Jesus Cristo
Maria Natividade do Amor Divino
Maria Francisca da Piedade
Clara Maria de São José
Maria Querubina de Santa Rosa
Maria Ângela de Santo António
Maria Pacífica (noviça)
-
Idade
74
65
62
61
63
68
52
45
14
?
Fonte: Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Registos.
semente, que em breve iria crescer e se tornaria árvore frondosa.
1393
A fotografia da Irmã Maria Teresa da Apresentação foi-nos oferecida por uma sobrinha neta, a senhora D. Maria do Monte, residente no
Funchal. No grupo, falta a Irmã Marta de Jesus Cristo de quem não conseguimos qualquer fotografia.
304
No Céu, o grupo das sete que haviam partido, comungava da alegria das suas Irmãs.
A 12 de Junho seguinte, solenidade do Sagrado Coração de Jesus, fez-se a inauguração
do novo mosteiro sob a presidência do bispo do Funchal, que tanta estima consagrava às
religiosas. Presentes a este significativo acto estavam, entre outros sacerdotes, o P. José
Porfírio Rodrigues Figueira, secretário de Sua Excelência Reverendíssima, o Cónego João
Joaquim de Carvalho, vigário de Câmara de Lobos, zeloso pelos interesses das Irmãs
Clarissas, que via, finalmente, concretizado o objectivo do P. António Gonçalves Dinis
Henriques e ainda religiosas e pessoas amigas em grande número. O mosteiro de Nossa
Senhora da Piedade era uma consoladora realidade!
Para dirigir a comunidade até ao primeiro capítulo electivo, cuja data seria marcada
oportunamente, o prelado nomeou a Madre Maria Teresa da Apresentação1394.
A comunidade teve, desde a primeira hora, capelão privativo, o P. Jacob Sardinha,
irmão de uma das religiosas, a Irmã Ângela de Santo António. Este dedicado sacerdote,
capelão do mosteiro até à sua morte, residia na casa onde haviam vivido as clarissas vindas
das Mercês. A ele se seguiram, entre outros, os padres Alfredo Camacho e Manuel Júlio
Inocêncio de Castro.
Entretanto, as vocações foram afluindo, bênçãos de Deus, manifestas provas da sua
bondade e do seu infinito amor. Para a comunidade, estas jovens eram alegria e esperança,
frutos maduros, nascidos de tantos sacrifícios vividos com amor ao longo de vinte e um anos!
Em breve já eram cinco.
A 13 de Novembro, sob a presidência de Frei Leonardo de Castro, franciscano,
delegado do prelado do Funchal para o efeito, acompanhado pelo Cónego João Joaquim de
Carvalho, teve lugar o capítulo electivo, segundo as normas do Código do Direito Canónico
vigente1395. Ficou a presidir aos destinos da comunidade a Madre Clara Maria de São José,
auxiliada pela Madre Maria Teresa da Apresentação como vigária e mestra de noviças1396.
Neste mesmo dia, receberam o hábito da Ordem cinco candidatas, ficando a comunidade
muito enriquecida. Cinco noviças!... Eram elas: Maria Bernardete do Sagrado Coração, Maria
Virgínia Brites da Paixão, Maria Isabel do Cenáculo, Maria Nazaré de S. Francisco e Maria
Pacífica. Que augúrios de bom futuro!...Outras aguardavam a idade canónica.
A comunidade tinha uma boa assistência espiritual. Além do capelão, o bispo
empenhou-se em que sacerdotes zelosos e de reconhecida virtude a assistissem e orientassem.
Destacamos entre eles os Cónegos Francisco Fulgêncio de Andrade, João Joaquim de
Carvalho e Manuel Pombo Fernandes, bem como o P. Manuel José Teotónio Gonçalves .
A oração comunitária e leitura espiritual garantiam à comunidade não só a vivência
profunda do seu ideal franciscano e contemplativo como também lhes abriam o coração à
comunhão com a humanidade, cujas alegrias e preocupações procuravam apresentar ao
Senhor. As tomadas de hábito e as profissões sucediam-se, o que era motivo de júbilo para a
Ordem, para a diocese do Funchal e para o Povo de Deus.
1394
A Ordem de Santa Clara em Portugal, p. 222.
A ninguém ocorreu ao longo da caminhada feita pela comunidade das Mercês, nem tão pouco quando as religiosas se reorganizaram no
novo mosteiro da Caldeira, solicitar de Roma um documento de “não extinção” do mosteiro das Mercês do Funchal, que segundo os
canonistas seria a medida exacta. Mais tarde, para apagar qualquer dúvida, D. Fernando Cento, o Núncio Apostólico em Portugal, mandatado
pela Congregação dos Religiosos e Institutos Seculares, por decreto de l8 de Julho de 1958, concedeu a erecção canónica, sanando qualquer
lacuna ou irregularidade que porventura pudesse ter havido em tomadas de hábito ou profissões.
1396
A Ordem de Santa Clara em Portugal, p. 223.
1395
305
CAPÍTULO III
A AMPLIAÇÃO DO IMÓVEL EM 1954. O INCÊNDIO DE 1959.
A RECONSTRUÇÃO
1. Ampliação do imóvel
1.1. As obras de 1954
As vocações para a vida contemplativa surgiam de todos os recantos da Ilha, qual
chuva de bênçãos caindo sobre o mosteiro e sobre a Pérola do Atlântico, que sempre soube
apreciar e ajudar as filhas de Santa Clara. A população sabia ler na opção das jovens
madeirenses pela vida contemplativa em clausura a prioridade absoluta de Deus.
A vida contemplativa, misto de oração, de retiro e de trabalho, é sinal da primazia de
Deus, sinal da necessidade que se impõe ao coração humano de se concentrar na pessoa de
Cristo, na certeza de que n’Ele se encontra a plenitude do amor. As jovens madeirenses
306
compreendiam que a vida contemplativa é reflexo da alegria que está em Deus e que d’Ele
dimana; compreendiam que é profecia de felicidade e paz sem fim. Por isso, atraídas pelo
Senhor, acorriam ao mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, onde desejam viver louvando e
amando o autor de todo o bem.
Em breve o mosteiro tornou-se pequeno para receber todas as jovens que desejavam
seguir esta forma de vida. De facto, começando com oito religiosas e duas candidatas em
1931, no final dos anos quarenta, a comunidade já tinha dezassete religiosas e algumas jovens
vocacionadas. Em pouco mais de duas décadas o número de Irmãs duplicou. De uma
comunidade inicial de dez membros, foi passando para dezasseis, dezassete e mais,
chegando ao início da década de cinquenta com vinte e um membros. Impunha-se, portanto, a
sua ampliação.
Depois de sério e consciencioso estudo do problema, viu o responsável pelas obras a
possibilidade de conseguir o aproveitamento do sótão de forma bastante económica. Diante da
precária situação financeira do mosteiro, o P. Abel Ferreira, coadjutor na paróquia de Câmara
de Lobos, grande impulsionador da Terceira Ordem Franciscana de que era membro, desde há
muitos anos dedicadíssimo às Irmãs Clarissas e à data seu procurador, assumiu a
responsabilidade das obras.
Feito e aprovado o projecto, o P. Abel encontrou no prelado o apoio necessário. D.
António Manuel Pereira Ribeiro sempre mostrara pela Ordem de Santa Clara viva estima e
apreço. Fora ele o pastor solícito que, na hora da prova, soubera estimular e encorajar as
religiosas e que, no momento exacto, apoiara e abençoara a construção do mosteiro; foi ainda
ele que, nesta hora feliz, soube assumir aquele empreendimento. D. António Ribeiro fez ao
mosteiro o empréstimo necessário para levar a cabo as obras de ampliação, empréstimo esse
que a comunidade iria amortizando, a longo prazo, conforme as suas possibilidades.
Na primavera de 1954 os trabalhos estavam em curso. Levantado o telhado, foi
possível um excelente aproveitamento das águas furtadas, onde surgiu a rouparia, a sala de
lavores, a enfermaria e a secção reservada ao Noviciado – sala e quartos. A Madre Maria
Bernardete do Sagrado Coração, então abadessa, acompanhou as obras com zelo, procurando
que tudo ficasse bem e funcional. Concluídas no final de 1954, ofereceram à comunidade
novas e melhores condições de trabalho e um pouco mais de conforto.
A comunidade, viveiro de vocações, não parava de crescer e, bem depressa, todos os
quartos estavam ocupados. Jamais faltaram jovens que, movidas por um grande amor ao
Senhor, desejavam consagrar-se ao seu serviço. O mosteiro, espaço de oração silenciosa, de
paz e de amor, ia dizendo a todos que Deus basta, que Ele é plenitude da felicidade e que vale
a pena dar a Deus o primeiro lugar.
1.2. A bênção das novas instalações pelo Núncio Apostólico
Em 1954, D. Fernando Cento teve de visitar a Madeira por razões apostólicas. Quando
soube da existência de filhas de Santa Clara na Ilha, logo manifestou desejo de visitá-las. D.
Fernando Cento era admirador das Clarissas, de quem falava sempre com grande estima1397.
Ao prelado do Funchal agradou aquele desejo, pois lhe proporcionava uma alegria: o Núncio
Apostólico iria benzer a parte acabada de construir.
O acesso à Caldeira era difícil, pois que, acima da vila de Câmara de Lobos não havia
estradas, mas simplesmente algumas veredas. Esta dificuldade, porém, não foi obstáculo.
Assim, a 6 de Dezembro, uma ilustre comitiva saiu do Funchal em direcção ao Cabo Girão.
Dali para o mosteiro, o Núncio Apostólico e o bispo foram levados em rede1398, seguindo os
1397
1398
A Ordem de Santa Clara em Portugal, p. 225.
Meio de transporte então habitual na Ilha, em lugares de difícil acesso.
307
restantes visitantes a pé. Eram eles: Cónego António Félix de Freitas; P. João Evangelista
Lopes, pároco de S. Pedro, no Funchal; P. António Rodrigues, secretário do prelado; P. Abel
Ferreira, procurador do mosteiro; Dr. Vasco Réis Gonçalves, médico da comunidade e
Presidente da Câmara Municipal de Câmara de Lobos. Seguia-os muito povo das zonas mais
próximas.
Junto do mosteiro foram saudados pelo capelão, P. Manuel Júlio Inocêncio de Castro,
e uma multidão de pessoas da região, que expressou a sua alegria com salvas de palmas e de
morteiros, acompanhadas do repicar festivo do sino da capela de Nossa Senhora da Piedade.
Alguns momentos mais e ei-los na clausura. Após as saudações de boas-vindas, presidiu o
Núncio à bênção da parte nova do mosteiro. Finda esta cerimónia, dirigiu a palavra às
religiosas, salientando a sublimidade da sua vocação, a beleza da vida contemplativa, o
encanto do carisma franciscano. Depois de um convívio, onde eram visíveis os sinais da
pobreza1399 e o calor da amizade expressa com tanta simplicidade, estes ilustres visitantes
regressaram ao Funchal.
A noite começava a cair sobre o pequeno vale da Caldeira... No coração silencioso das
religiosas ficara impresso, o júbilo a alegria, a paz e a ternura do “Altíssimo, Omnipotente e
bom Senhor”.
2. Uma dura prova: O incêndio de 1959
2.1. O deflagrar do incêndio
Reinava a alegria e a felicidade naquele modesto mas encantador conventinho da
Caldeira. O número de religiosas aumentava sempre mais, como se o Senhor quisesse
recompensar todo o sofrimento que, desde 1910, havia atingido aquelas boas religiosas. No
final de 1958, a comunidade, apesar de terem falecido alguns dos seus membros, era
constituída por vinte uma religiosas professas, três noviças e três postulantes. Que lindo
número!
Era à tardinha...Ninguém podia imaginar que, naquele 24 de Abril de 1959, o mosteiro
de Nossa Senhora da Piedade, marcando com a sua brancura o sopé das altas montanhas da
Cruz da Caldeira, beijadas pelo estreito vale, ia ser palco de uma grande tragédia. Um
pequeno descuido com um ferro de engomar foi suficiente para que na sala de costura
começasse a deflagrar um incêndio.
Ao toque aflitivo do sino da capela do mosteiro, acorreram muitas pessoas que,
lutando contra o fogo por todos os meios possíveis, enquanto se aguardava a chegada dos
bombeiros, conseguiram evitar a perda de vidas e salvar uma pequena parte do recheio do
mosteiro.
As obras, há bem pouco concluídas, quase totalmente em madeira, e as pinturas feitas
posteriormente, ainda frescas, favoreceram o alastrar das chamas. Não havendo telefone, o
pedido de socorro à Corporação dos Bombeiros Voluntários da vila de Câmara de Lobos
levou o seu tempo e a falta de estrada dificultou e retardou a sua chegada. Uma vez ali, a sua
actuação contra as chamas, sob a orientação do seu comandante e adjunto, os senhores
António Avelino de Abreu e Aníbal Cristóvão de Jesus, foi imediata, mas difícil, pois que o
incêndio havia já atingido grandes proporções. Além disso, a falta de estrada não permitia o
acesso de veículos. Nestas circunstâncias, o seu esforço centrou-se na capela e zona anexa,
tentando salvar aquele lugar sagrado. Foram verdadeiramente heróicos não só eles mas
também o bom povo da Caldeira. Depois de oito horas de luta corajosa, a capela de Nossa
1399
Dizem as Irmãs que o Núncio Apostólico, não aceitando a cadeira que lhe estava destinada, com muita singeleza se sentou num
banquinho. Admirável gesto de simplicidade!..
308
Senhora da Piedade estava fora de perigo1400. Os Bombeiros Voluntários de Câmara de Lobos
tiveram uma actuação meritória, digna dos maiores louvores.
Foi uma dura prova para as Irmãs Clarissas. Contudo, cumpre-nos salientar que, no
meio de tanto sacrifício, muitas foram as provas de solidariedade, de dedicação
desinteressada, de amizade profunda e sincera que receberam.
2.2. Solidariedade fraterna
As Franciscanas Missionárias de Maria bem depressa acorrem ao local, oferecendo às
Irmãs Clarissas os seus préstimos e convidando-as a acompanhá-las para o mosteiro de Santa
Clara do Funchal, onde trabalhavam. “Em nossa casa”, disse a Madre Reparadora, “ temos
lugar para todas”. Também as Irmãs da Apresentação de Maria apareceram na Caldeira a
oferecer a sua casa. Para não dividir a comunidade, o que seria mais um sacrifício, as Irmãs
Clarissas foram todas para o mosteiro de Santa Clara, onde as Missionárias de Maria lhes
dispensaram as mais delicadas atenções. Jamais se pouparam a qualquer sacrifício.
Passados alguns meses o Governador do distrito, João Inocêncio Camacho de Freitas,
conseguiu uma casa na rua das Mercês, nº. 45. Depois de sofrer algumas adaptações, passou a
ser a residência das Irmãs. Como homem de nobres sentimentos que era, ofereceu-se para
pagar a renda enquanto não houvesse um mosteiro. Após o regresso das religiosas à Caldeira,
desejando auxiliá-las no seguimento das obras, continuou a enviar-lhes o respectivo valor
monetário. Só depois da sua morte, que ocorreu em 1969, as religiosas vieram a saber que o
benefício que ao longo de dez anos haviam recebido do Governador do distrito, era pessoal e
não do Governo, como se supunha.
Nesta casa provisória, que as Irmãs ocuparam durante dois anos, organizou-se a vida
conventual: estabeleceu-se um horário que orientava o quotidiano da vida comunitária,
organizou-se a adoração ao Santíssimo Sacramento, receberam-se candidatas e emitiram-se
profissões.
Mesmo depois da mudança, continuaram as Irmãs Missionárias de Maria a interessarse pelas suas Irmãs Clarissas. Para o dia 12 de Agosto, então festa de Santa Clara, prepararam
uma agradável surpresa - uma festinha com muitas e variadas ofertas: um sacrário, um cálice,
uma custódia em prata, paramentos e várias alfaias destinadas ao culto religioso.
A confraternização, a que as mesmas providenciaram, revestiu-se de tanta delicadeza e
amor fraterno que a emoção foi geral. Eram lágrimas de reconhecimento pela inexcedível
caridade das religiosas, que descobriam mil maneiras de prodigalizar amizade e carinho às
filhas de Santa Clara.
Ao apoio que recebiam das religiosas Missionárias de Maria juntava-se a bondade e
generosidade de muitas pessoas amigas, que acorriam à rua das Mercês com as mais variadas
ofertas. O Pai, que sustenta as aves do céu e veste os lírios do campo1401, velava por aquelas
filhas que nele confiavam.
3. Reconstrução do mosteiro e regresso da comunidade
Para a reconstrução do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade contribuiu o Ministério
das Obras Públicas com um donativo no valor de quarenta contos, à data valor considerável, a
pedido do Governador do distrito do Funchal, João Inocêncio Camacho de Freitas, bem como
a população madeirense. Foram muitos os benfeitores não só do Funchal mas também de toda
a Ilha da Madeira e até emigrantes.
1400
1401
“Acção dos Bombeiros Voluntários de Câmara de Lobos”, in Jornal da Madeira, 25 de Abril de 1959.
Mt. 6, 28; Lc, 12, 27.
309
A 30 de Setembro de 1961, as Irmãs Clarissas puderam regressar ao seu mosteiro
reconstruído no mesmo local. Foi nesta altura que se procedeu à ampliação da capela. O altar
recuou e o coro das religiosas ganhou posição lateral, conforme se encontra actualmente, o
que permitiu fazer voltar o coro alto à forma que tivera inicialmente. O sino voltou a tocar e a
capelinha de novo se animou com a oração das religiosas e do povo da Caldeira.
Porém, os últimos acabamentos estavam por fazer: não havia portas, nem sequer
exteriores, mas as Irmãs não tinham receio dos ladrões, pois o seu tesouro era todo e só o
Senhor. Houve, porém, que fazer muita penitência, pois, estando os quartos e todo o mosteiro
só em cimento, sentiram todo o frio do Inverno, que nesse ano foi bem rigoroso. Contudo, a
alegria que sentiam por se encontrarem de novo na sua casa era imensa e chegava bem para
superar todas as dificuldades.
Ao regressarem do Funchal, as Irmãs tiveram a alegria de ver entrar no mosteiro de
Nossa Senhora da Piedade dez candidatas. As bênçãos de Deus vinham coroar tantos
sacrifícios1402.
A partir de então, foram as próprias religiosas que dirigiram os trabalhos. Como era
belo vê-las pintando portas e caiando paredes, a tudo dando ar de asseio e de festa! Que
alegres e felizes!... A seguir, remodelaram a casa do capelão, muito deteriorada. E, quem
diria?!... Quando as obras do mosteiro chegaram ao fim, não havia dívidas. Nem as religiosas
sabiam explicar o que aconteceu. Milagre da providência de Deus, do grande amor do Pai!
CAPÍTULO IV
PERFIL DA COMUNIDADE
1. Vida de oração e trabalho
1.1. A vida diária de oração das Irmãs
O mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, continuador da comunidade das Mercês do
Funchal, como todos os mosteiros de Portugal, segue a Regra de Santa Clara e as
Constituições Gerais, elaboradas segundo o espírito do Concílio Vaticano II e o novo Direito
Canónico, aprovadas a 13 de Maio de 1988 por decreto do cardeal Hamer, prefeito da
Congregação dos Religiosos e Institutos Seculares.
Sendo a oração a vocação específica das Irmãs Clarissas, as religiosas do mosteiro de
Nossa Senhora da Piedade a ela se consagram ao longo das vinte e quatro horas do dia. É seu
dever a celebração das horas canónicas, para as quais devem preparar-se no silêncio e no
recolhimento. A celebração da Liturgia das Horas, segundo o calendário franciscano, e a
1402
Se toda a Ilha da Madeira colaborou com generosidade na reconstrução do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, que dizer da
população da Caldeira?.... Pessoas simples, boas e amigas, que ofereceram dias de trabalho, transportaram materiais e encorajaram as Irmãs.
Que alegria a sua ao vê-las de novo no mosteiro que, de certo modo, consideram seu!...Nas visitas feitas à exposição do espólio do mosteiro
das Mercês, a que já aludimos, não faltou quem recordasse este acontecimento com emoção!... E que belos testemunhos! Uma senhora dizia
com carinho: “ Eu própria trouxe à cabeça muitos sacos de cimento, lá de cima da Cruz da Caldeira e meu pai trabalhou na reconstrução sem
levar nenhum dinheiro. Toda a gente, de uma maneira ou de outra, colaborou na reconstrução do nosso conventinho”. Solidariedade amiga!
Sensibilidade humana e cristã! Cumpre-nos ainda mencionar o nome do senhor João Quirino da Silva, vizinho do mosteiro que, no momento
do incêndio, acolheu as religiosas em sua casa e depois se dedicou à reconstrução como bom amigo.
310
Eucaristia, constituem o cerne e o cume de toda a vida de fraternidade. A Liturgia das Horas,
que celebram integralmente, santifica as vinte e quatro horas de cada dia. Consta de: Ofício de
Leituras, que as Clarissas da Caldeira rezam às sete horas, Laudes às sete horas e meia, Tércia
às nove menos um quarto, Sexta ao meio-dia, Noa às quinze horas, Vésperas às dezoito e meia
e Completas às vinte e uma e meia. Esta oração litúrgica, para maior vivência, deve ser
cantada, pelo menos as horas mais importantes: Laudes e Vésperas. Entre as religiosas do
mosteiro da Caldeira á habitual cantar-se com acompanhamento de órgão estas duas horas
canónicas e algumas partes das outras horas, como seja o hino, antífonas ou qualquer salmo.
Quadro nº.63 - Horário de oração comunitária
Hora
7h00
7h30
7h40
8h15
12h00
15h00
18h30
19h00
19h30
21h30
Celebrações
Ofício de leituras
Laudes (cantadas) e Tércia
Meditação
Celebração Eucarística
Sexta, coroa das sete alegrias de Nossa Senhora e oração pelos sacerdotes
Noa e via-sacra às sextas feiras
Vésperas (cantadas)
Terço e ladaínha de Nossa Senhora
Meditação
Oração a Santa Clara, a São Francisco de Assis e a São José. Completas
A celebração eucarística, habitualmente às oito e um quarto, é sempre vivenciada com
cânticos acompanhados a órgão, a que fervorosamente se associam algumas pessoas da área
circunvizinha, também presentes. As Irmãs organistas, Cândida Teresa de Gouveia e Adelaide
Maria da Cruz, têm o cuidado de estarem sempre actualizadas na música sacra e de darem à
comunidade a necessária preparação.
60. Em adoração eucarística. Na capela do mosteiro de
Nossa Senhora da Piedade, conforme a tradição da Ordem, o
Santíssimo Sacramento permanece solenemente exposto ao
longo do dia. Nesta oração silenciosa encontram as religiosas
a alegria e a paz na sua caminhada de ascensão para o Senhor.
As religiosa herdeiras do amor à Eucaristia, tão específico em Clara de Assis, mantêm o
Santíssimo Sacramento solenemente exposto ao longo do dia, assumindo cada religiosa meia
hora de adoração diariamente. São momentos de particular intimidade com o Senhor. Todos
os dias devem dedicar uma hora e meia à oração mental para que, no silêncio e na paz,
cresçam no aprofundamento dos mistérios cristãos e na sua vivência. O carisma da Ordem
deixa um largo espaço à devoção mariana. As Constituições Gerais recomendam a devoção
para com a Mãe de Deus e insistem em que se mantenham as sãs tradições da Ordem. A
comunidade das Irmãs Clarissas da Caldeira reza todos os ias, além do terço, a coroa das sete
alegrias de Nossa Senhora, sem jamais esquecer a consagração à Virgem Santíssima.
As grandes solenidades são normalmente precedidas por uma novena ou pelo menos de
um tríduo como acontece pelo Natal, Imaculada Conceição, festa de Santa Clara e de São
Francisco. Todos os meses as Irmãs consagram um dia a retiro espiritual e cada ano uma
semana, procurando nessas ocasiões o auxílio de sacerdotes idóneos e competentes. Para além
da oração comunitária, em que todas devem tomar parte, cada religiosa pode, conforme o seu
anseio e dons de piedade, desenvolver outras devoções.
A comunidade deseja a presença da população da Caldeira nas suas celebrações
religiosas. A partir do momento em que as Religiosas das Mercês, depois de vinte e um anos
de espera, puderam reestruturar a sua vida comunitária em novo mosteiro, agora na Caldeira,
sempre estiveram disponíveis para partilhar com a população circunvizinha o seu património
311
espiritual. Além da oração na qual, em atitude eclesial, a todos procuravam ter presentes, não
deixaram de contribuir, pela forma que lhes era possível, para o desenvolvimento da
população e o seu crescimento na fé. Quando em 19601403 se criou a paróquia do Carmo, o
mosteiro passou a ter, com grande regozijo das religiosas, a sua capela aberta ao culto e
disponível para os serviços paroquiais.
Em breve, a população da Caldeira começou a tomar parte na oração das religiosas:
Liturgia das Horas, particularmente Laudes antes da Eucaristia e Vésperas à tarde, via-sacra,
terço e outros encontros de oração, especialmente no Advento e na Quaresma. A celebração
eucarística quotidiana, em que participam sempre algumas pessoas, tornou-se muito
frequentada aos domingos e sábados, em que se celebra Missa vespertina. Actualmente a
presença da população da Caldeira na capela do mosteiro em dias de semana já não é tão
significativa. As Irmãs Clarissas, como partilha do seu carisma contemplativo, têm
incentivado no povo de Deus a vivência das celebrações litúrgicas, levando-as a assumir
responsabilidades. Assim, alternando com as religiosas, as jovens e senhoras da zona,
assumem diariamente as leituras da Missa, bem como a organização do cortejo de oferendas e
o serviço eclesial dos ministros da comunhão nas missas dominicais.
A população, boa e amiga, traz à comunidade as suas mais belas flores para
ornamentar a capela de Nossa Senhora da Piedade. E com que amor e devoção as fazem
chegar às mãos das religiosas, através das crianças que acorrem alegremente ao mosteiro
todos os sábados e nas grandes solenidades!
1.2. Festas natalícias
São Francisco viveu o encanto e o deslumbramento dos mistérios relativos ao Menino
de Belém, encanto que partilhava com sua irmã espiritual Santa Clara de Assis. O Pobrezinho
chamava ao Natal a Festas das Festas e celebrava-o com inefável alegria: queria que nesse dia
os ricos dessem aos pobres alimentação abundante e que até os animais tivessem ração
dobrada. Francisco de Assis quis mesmo reproduzir ao vivo o acontecimento histórico de
Belém. Santa Clara acompanhava em contemplação, com indizível ternura, a Senhora
Pobrezinha que, naquela noite de Belém, envolveu o seu Menino em pobres paninhos e O
deitou numa manjedoura. Franciscanos e Clarissas sempre viveram o mistério do Natal com
encanto e profundidade. Na Ilha da Madeira foram estes filhos e filhas de São Francisco que
infundiram na população o culto do presépio. Daí, a devoção tão grande e terna dos
madeirenses ao Deus Menino. Não admira que, ainda hoje, o Natal seja, para a população da
Ilha, uma Festa única, sempre cheia de calor, alegria e encanto.
O mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, como é óbvio, também partilha e vive
intensamente as celebrações natalícias. As Irmãs Clarissas da Caldeira são as fiéis
continuadoras das belas tradições do mosteiro das Mercês.
A anteceder o dia do nascimento do Menino de Belém e como preparação para ele,
decorre a novena das tradicionais Missas do Parto, com seus cânticos próprios, de sabor
arcaico, verdadeira riqueza histórica, literária e musical, que nos faz remontar aos séculos
passados. Património religioso de apreciável valor de que os madeirenses se prezam e de que
se orgulham de ser depositários.
A imagem do Menino Jesus, venerada pela comunidade na quadra natalícia, ocupa um
lugar privilegiado nas celebrações comunitárias. Todas as Irmãs fazem um pequeno presépio
no seu quarto. No dia da Festa à noite a comunidade, ao som de instrumentos regionais e
cânticos natalícios, vai de quarto em quarto apreciar as surpresas, algumas belíssimas e
originais. Perante a criatividade de cada uma, onde nunca falta a lapinha madeirense, surgem
1403
A paróquia do Carmo, criada por decreto de 8 de Dezembro de 1960, começou a funcionar a 1 de Janeiro do ano seguinte.
312
espontâneas manifestações de alegria e de sincero apreço. O cortejo finaliza junto do presépio
da capela com novos louvores ao Deus Menino. Na noite de consoada não falta o Auto de
Natal, que em todas desperta o encanto pelo Menino de Belém e sua Mãe Pobrezinha.
As Irmãs Clarissas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade mantêm viva a
encantadora cerimónia da Vestição do Menino, antiquíssima entre a população da Ilha da
Madeira, a qual fazia parte da encenação Pensar o Menino. Uma vez vestido, o Menino, alvo
do carinho da comunidade, fica no seu lindo bercinho, ao longo de toda a quadra natalícia. No
fim do tempo festivo do Natal, Jesus é retirado do bercinho e, como se fazia no mosteiro de
Nossa Senhora das Mercês, depois de vestido de Menino Rei, é colocado em lugar de destaque
onde todas o podem venerar. Ao longo do ano, o Menino Rei veste com as cores da liturgia,
cuidado que pertence à religiosa eleita “rainha do Menino” que é substituída anualmente.
No dia de Reis, uma encenação relativa à adoração dos Magos, designada A Estrela,
lembra e interioriza no coração de cada religiosa a paz e o amor que o Menino Deus vem
oferecer a todos os povos1404.
1.3. A festa de Nossa Senhora da Piedade
Remonta a quase dois séculos a devoção da população da Caldeira e arredores, a
Nossa Senhora da Piedade, isto é, à data da construção da capela, no final do século XVIII.
61. Nossa Senhora da Piedade, venerada na capela do
mosteiro. Remonta a duzentos anos a veneração da
população da Caldeira por Nossa Senhora da Piedade.
Foi sob o Seu olhar e protecção que se acolheu um
pequeno grupo de clarissas, em 1910.
Todos os anos, no segundo domingo de Julho, esta festa se reveste de novo brilho. As
religiosas esmeram-se na decoração da capela, onde aparecem as mais belas flores da
localidade, e no arranjo do andor da Senhora que, entre gestos de amor e de fé, é levada
processionalmente pelas estradas da Caldeira, engalanadas com flores e luzes. Os festeiros
têm o cuidado de convidar uma das bandas musicais de Câmara de Lobos, para abrilhantar a
festa da Virgem Maria. Tradicionalmente prepara-se um lindo arraial, onde nunca falta o
bazar, os conjuntos musicais e os morteiros. A esta festa associam-se as populações vizinhas.
É, de facto, grande a devoção a Nossa Senhora da Piedade quer dos residentes quer dos
emigrantes e a ela se recorre habitualmente e, muito especialmente, nos momentos mais
difíceis da vida. Não falta quem, em atitude de súplica ou de gratidão, lhe ofereça as suas
mais belas jóias. A muitos noivos apraz-lhes assumir os seus compromissos matrimoniais aos
pés de Nossa Senhora da Piedade. Alguns casais também gostam de celebrar as Bodas de
Prata ou as Bodas de Ouro de vida matrimonial nesta capelinha. A Senhora da Piedade é a
Mãe terna e vigilante a quem todos recordam e acorrem filialmente para agradecer os favores
recebidos.
2. Vida de trabalho como base de sustento económico
1404
Este apartado, reflectindo tanto encanto pelo Menino de Belém, foi redigido pela Irmã Adelaide Maria da Cruz, membro da comunidade.
O mosteiro tem a dita de ainda possuir a pequena arca do mosteiro das Mercês do Funchal, em madeira forrada de couro lavrado, onde eram
guardadas as roupas do Menino, bem como o lindo berço que recebia o Divino Infante depois da cerimónia da Vestição. É de referir que o
bercinho das Mercês e as roupas guardadas na dita arca são relíquias preciosas herdadas do mosteiro das Mercês, em que não se toca. Para
uso actual, confeccionou-se outro berço e outro enxoval, com requinte e bom gosto; também o Menino é outro, pois que o do mosteiro de
Nossa Senhora das Mercês ardeu aquando do incêndio de 1959.
313
Fora do horário da oração, a comunidade ocupa-se em trabalhos que se coadunam com
a vida contemplativa. Para Santa Clara o trabalho era expressão de pobreza evangélica, por
isso escreveu na Regra: “as Irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar, ocupem-se fiel e
devotamente num trabalho honesto e de comum utilidade”1405. As religiosas deste mosteiro
trabalham: dedicam-se à
Quadro nº.64 – Horário comunitário
Horas
6h30
7h00
9h00
9h30
12h00
12h45
14h00
15h00
15h15
17h00
18h30
20h00
21h00
21h30
22h00
Ocupações
Levantar
Oração
Pequeno almoço e trabalhos domésticos
Período de trabalho
Oração
Almoço e trabalhos domésticos
Tempo livre
Oração
Período de trabalho
Lanche (facultativo)
Oração
Jantar e trabalhos domésticos
Convívio fraterno
Oração
Descanso
confecção de hóstias, seu principal meio de subsistência, assumem o tratamento da roupa da
Sé do Funchal e a confecção de paramentos litúrgicos. Algumas Irmãs dedicam-se aos
bordados. E que maravilhosas obras de arte saem das suas mãos!...
Pormenorizando: As Irmãs Clarissas têm o seu tempo programado segundo o horário
conventual. O seu tempo está dividido entre a oração o trabalho e o descanso, e deve viver-se
na presença de Deus.
Desde a origem do mosteiro e numa linha de continuidade com o passado, que tem a
raiz no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal e depois na casa da Palmeira, as
Irmãs Clarissas da Caldeira têm como trabalho fundamental a confecção de hóstias
praticamente para toda a diocese do Funchal, isto é, Madeira e Porto Santo.
62.Confecção de hóstias. A confecção de hóstias passa por etapas.
A Irmã Maria Cecília está a cortar as hóstias pequenas, que em
seguida são peneiradas para ficarem limpas de possíveis
fragmentos. Depois de metidas em sacos plásticos, estão prontas
para seguir para as paróquias.
O trabalho das hóstias não é fácil. Exige competência e paciência, pois muitos são os
factores que afectam a sua confecção: qualidade da farinha, intensidade da corrente eléctrica,
condições climatéricas, etc. É, no entanto, um trabalho que fica bem às religiosas
contemplativas, pois representa uma colaboração com a Igreja local, por ser um serviço
prestado às paróquias e às casas religiosas. Para além deste aspecto eclesial, confecção de
hóstias, trabalho sempre certo, é o melhor contributo para o sustento da comunidade. Nesta
ocupação têm-se dedicado ao longo dos anos muitas religiosas: Irmã Maria de Jesus Nazaré,
já falecida, Maria Salomé do Rosário, Inês de Cristo Rei, Maria Cecília, Catarina de
Vasconcelos Berenguer, Ariana Maria Gomes, Inês Freitas de Sousa e outras mais.
Colaborando com os párocos, entregues a múltiplas ocupações, todas as quartas feiras, o
1405
RCL, in F.F. II, p. 54.
314
mosteiro tem o cuidado de colocar na Sé do Funchal as encomendas habituais. Aí as vão
buscar com mais facilidade os sacerdotes e as diversas comunidades religiosas.
Ainda numa linha de colaboração com a Igreja local, a comunidade assumiu, na
década de sessenta, o cuidado da roupa da igreja de São Pedro e Santa Luzia e desde 1970 da
roupa da Sé do Funchal. Todas as semanas é enviada à Caldeira uma quantidade de vestes
litúrgicas e toalhas de altar que, na semana seguinte, depois de lavada e engomada, é
devolvida à Sé. Nesta trabalho eclesial têm-se ocupado ao longo dos anos, além de outras, as
Irmãs Teresa Laurita Gonçalves de Brito, Cândida Teresa de Gouveia, Rosa Maria da Paz,
Maria José Réis Gonçalves, Maria de Fátima Moniz Baptista, Maria Salete Rodrigues e
outras.
As religiosas dedicam-se também ao “bordado madeira”, bordado em matiz e ouro e
picotagem em pergaminho. Embora dando preferência aos trabalhos litúrgicos - paramentos,
alvas, toalhas, estolas e outros -, também aceitam, quando possível, trabalhos de outro género.
Nestes últimos anos têm se dedicado aos bordados as Irmãs Maria Clarisse Xavier, Teresa do
Santíssimo Sacramento, presentemente no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês nos
Açores, Maria Natália de Jesus Infante, Maria de Fátima Moniz Baptista, Teresa Laurita
Gonçalves de Brito, Maria Isabel de Sousa. Além do “bordado madeira” confeccionam
trabalhos em matiz e ouro.
Lavores especializados e de grande beleza são os enxovais do Menino Jesus em que é
mestra a Irmã Cândida Teresa de Gouveia. Para cada imagem, além das roupinhas interiores,
arranjadas com minúcia, confecciona-se um vestidinho e sandálias em cetim, seda natural ou
linho. Tudo é decorado com galões dourados e artístico bordado em canutilho, pérolas, fio de
ouro e missanga dourada ou prateada. Para as imagens maiores, quando as pessoas o desejam,
os meninos são também revestidos de um manto de veludo vermelho, trabalhado a ouro, que
lhes dá dignidade e beleza.
Algumas Irmãs são artistas na picotagem em pergaminho. São elas: Jacinta Maria do
Carmo, Adelaide Maria da Cruz, Maria Angélica do Menino Jesus, Maria de Fátima Moniz
Baptista e Ariana Maria Gomes. Das suas mãos saem, quando necessário, verdadeiros
rendilhados em pergaminho que,
63. Bordados em ouro. Neste vestido de seda natural, bordados a fio
de ouro, canutilho, lantejoulas e missanga dourada, podemos admirar
a perfeição, a harmonia e a beleza. É um exemplar entre muitos
outros trabalhos saídos das mãos da Irmã Cândida Teresa de Gouveia.
quando a Irmã Adelaide Maria da Cruz lhes associa uma pintura ou uma mensagem em letra
gótica, ficam ainda mais belos.
As Irmãs entregam-se também ao cultivo da fazenda onde crescem boas saladas,
hortaliças e legumes, árvores de fruto, vinha, batata-doce, milho e inhame. Várias Irmãs, entre
as quais a Irmã Maria Cecília, Maria Henriques de Viveiros Leal, Ariana Maria Gomes e
Catarina de Vasconcelos Berenguer têm feito frutificar a fazenda em favor da comunidade.
O mosteiro possui também uma fazenda fora da zona da clausura, ocupada com vinha
e bananeiras, onde se encontra a casa que de 1910 a 1931 foi habitada por algumas religiosas
saídas das Mercês e mais tarde pelo capelão do mosteiro. Ocupa-se na sua exploração um
casal vizinho, em regime de assalariado, revertendo para a comunidade a respectiva produção.
Não podia deixar de salientar-se o cultivo de flores, quase paixão entre madeirenses. Cada
Irmã gosta de ter as suas flores, os seus vasos, onde crescem as mais variadas espécies. Além
315
de serem fonte de alegria, decoram belamente a capela e o mosteiro, quando distribuídos com
arte pela parte habitacional.
A criação de animais merece também a atenção das religiosas: galinhas, perus e
coelhos que fornecem à mesa das religiosas carne e ovos, trabalho a que no passado se
dedicaram as Irmãs Maria Beatriz de São José, actualmente no mosteiro de Nossa Senhora das
Mercês nos Açores, e Maria Fernanda Baptista Teixeira Lopes, hoje no mosteiro de Santa
Clara no Brasil e outras. Presentemente , esse trabalho, muito importante para a economia do
mosteiro, está a cargo das Irmãs Maria Henriques de Viveiros Leal e Catarina de Vasconcelos
Berenguer.
Para além destes trabalhos há as tarefas domésticas: lavandaria, costura, arranjo e
limpeza da capela, cozinha, refeitório, atendimento na portaria, limpeza e asseio da casa,
trabalhos que são fraternalmente distribuídos por todas e alguns, como o trabalho da cozinha,
feito rotativamente às semanas.
O cuidado das doentes, que tanto carinho merecem à comunidade, é também um
trabalho importante. Às Irmãs velhinhas e doentes se prestam as atenções e os cuidados
necessários, pois que, segundo a Regra de Santa Clara, as doentes devem ser tratadas “com
caridade e misericórdia” e a abadessa deve tomar previdências para que “nada lhes falte”1406.
Todos os anos costuma nomear-se uma enfermeira que assume esta fraterna responsabilidade.
Nos primeiros anos da vida do mosteiro foi enfermeira desvelada a Irmã Maria Teresa da
Apresentação e mais recentemente têm-se dedicado às doentes duas religiosas enfermeiras:
Maria das Neves Gouveia Berenguer, presentemente na fundação feita no Brasil (Nova
Iguaçu), e a Irmã Madalena do Divino Mestre, que cuida com muito carinho das suas Irmãs
doentes.
3 . O governo da comunidade
3.1. A abadessa
Na Ordem de Santa Clara os mosteiros são autónomos, ainda que constituindo uma
família cujo liame é a fraternidade.
A teor da Regra de Santa Clara e das Constituições Gerais, cada mosteiro é governado
pela abadessa com o auxílio do discretório e do capítulo conventual. A abadessa deve exercer
o seu ofício “com espírito de fé, caridade fraterna e humilde serviço, a exemplo de Cristo”1407.
Não pode tomar para si toda a responsabilidade, mas deve tratar com as suas Irmãs, reunidas
em capítulo, o que deve ser feito para bem e utilidade do mosteiro. Segundo as Constituições
Gerais “para o ofício de abadessa deve ser eleita uma irmã de votos solenes, que já tenha
completado trinta anos, tenha ao menos cinco de profissão solene na Ordem de Santa Clara e
possua os (necessários) requisitos e qualidades (...): espírito de fé e contemplação, sentido
eclesial, verdadeira caridade para com todas as irmãs, ciência e conhecimento do tempo
presente, carências espirituais da sociedade humana hodierna, prudência e maturidade
religiosa”1408. “A abadessa é eleita para um triénio; terminado este, poderá ser eleita para
outro, sem entreposta vagatura”1409. Pode, a teor do direito, ser postulada para um terceiro e
quarto triénio, desde que obtenha dois terços dos votos. Porém, a postulação é excepção e,
segundo o carisma franciscano, que tanto valoriza a responsabilidade fraterna, não deve
tornar-se habitual. A cada abadessa assiste o dever e a obrigação de incrementar o
crescimento espiritual, humano e cultural da comunidade, para que a atribuição de cargos e
1406
RCL, VIII, 12 e 13, in FF II p. 56.
Constituições Gerais da Ordem das Irmãs Pobres de Santa Clara, Roma, 1988, IX, artº. 217, p. 167: Estrutura do Governo.
1408
Constituições Gerais, IX, artº. 233, p. 174.
1409
Constituições Gerais, IX, artº. 234, § 1, p. 174.
1407
316
ofícios possa ter mobilidade. Tal mobilidade, além de ser dignificante para a comunidade, é
sinal de liberdade individual e será, sem dúvida, fonte de enriquecimento comunitário.
A abadessa é auxiliada pela vigária, igualmente eleita, que é simultaneamente a
primeira conselheira ou discreta. Cumpre-lhe ajudar a abadessa em todos os assuntos que
respeitem ao bem espiritual e material do mosteiro. É ela que preside à comunidade todas as
vezes que a abadessa estiver ausente ou impedida. Quando o ofício da abadessa, por morte ou
renúncia, vagar, a vigária assume imediatamente o governo do mosteiro até ao próximo
capítulo electivo.
Nas funções formativas é auxiliada pela mestra de noviças, a quem compete a
formação das candidatas à profissão. Se for necessário, pode ser nomeada uma sub-mestra,
que fica na dependência da mestra de noviças, em tudo o que diz respeito ao noviciado.
Normalmente as postulantes que aguardam no mosteiro o começo do noviciado, são confiadas
aos cuidados da mestra de noviças. No mosteiro de Nossa Senhora da Piedade há
presentemente (1999) uma noviça, a Irmã Olívia de Freitas Candelária, cuja mestra é a Irmã
Adelaide Maria da Cruz.
A teor da Regra, a abadessa, em funções de governo, para a validade dos seus actos,
deve pedir o consentimento ou o parecer do discretório e do capítulo conventual, conforme os
casos. Segundo as Constituições Gerais, “se se exigir o consentimento, é inválido o acto da
abadessa que não solicitou o consentimento dessas pessoas ou que precede contra o voto das
mesmas”1410. Esta norma constitucional valoriza o discretório e a assembleia capitular, como
iremos dizer.
3.2. O discretório
O discretório ou conselho é formado pela abadessa, a vigária e as discretas ou
conselheiras. O seu número é variável. Depende da totalidade de professas de cada mosteiro.
Serão duas se o número de Irmãs não exceder dez professa solenes, quatro para os que não
excedem trinta e seis para os que têm mais que este número. Os valores apontados incluem a
vigária.
As discretas são eleitas por um triénio, podendo ser reeleitas imediatamente para
outros triénios, tendo, porém, o cuidado de que em cada triénio seja eleito pelo menos um
membro novo. Devem ser religiosas dotadas de “espírito de fé e de oração, amor à paz e
caridade fraternas, prudência e bom senso, sentido de responsabilidade e cooperação, cultura
humana e religiosa”1411.
Ao discretório pertence ajudar a abadessa no governo do mosteiro com o seu parecer
ou com o seu voto. Tem pois funções consultivas ou deliberativas, conforme os casos
previstos pelo direito próprio, que são as Constituições Gerais.
Após a eleição da abadessa compete ao discretório escolher por votos secretos, entre
as candidatas por ela propostas, depois de prévia consulta à comunidade, a mestra de noviças,
secretária, ecónoma, porteiras e sacristãs. Para outros ofícios basta que a abadessa peça o
parecer do discretório e das Irmãs.
Quadro nº.65 - Ofícios trienais
Triénio
1931 – 1935
1935 – 1938
1938 – 1941
1941 –1943
Abadessa
Maria Clara de São José
Maria Clara de São José
Maria Clara de São José
Maria Mónica dos Santos
Vigária
Mestra de noviças
Maria Teresa da Apresentação
Maria Teresa da Apresentação
Maria Teresa da Apresentação
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Teresa da Apresentação
Maria Teresa da Apresentação
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Bernardete do S. Coração
1410
Constituições Gerais, IX, artº. 245, § 2, nº.1, p. 179: Discretório.
Constituições Gerais, IX, artº. 240, p. 177: Discretório.
1412
A Madre Maria Bernardete do Sagrado Coração faleceu a 8 de Outubro de 1978.
1411
317
1943 – 1947
1947 – 1950
1950 – 1954
1954 – 1957
1957 – 1960
1960 – 1963
1963 – 1966
1966 – 1969
1969 – 1971
1971 – 1974
1974 – 1977
1977 - 19781412
1978 – 1981
1981 – 1984
1984 – 1987
1987 – 1990
1990 – 1993
1993 – 1996
1996 –1999
1999 – 2002
Maria Mónica dos Santos
Maria Mónica dos Santos
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Isabel do Cenáculo
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Gertrudes do Crucifixo
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Angélica do M. Jesus
Maria Angélica do M. Jesus
Maria Angélica do M. Jesus
Maria Josefina de S. Rafael
Maria Angélica do M. Jesus
Maria Angélica do M. Jesus
Madalena do Divino Mestre
Maria Angélica do M. Jesus
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Clara da Esperança
Maria Clara da Esperança
Maria Clara da Esperança
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Clara do Espírito Santo
Maria Clara do Espírito Santo
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Isabel do Cenáculo
Maria Isabel do Cenáculo
Maria Isabel do Cenáculo
Maria Isabel do Cenáculo
Cândida Teresa da Eucaristia
Maria da Imaculada Conceição
Maria Angélica do M. Jesus
Maria Josefina de S. Rafael
Cândida Teresa da Eucaristia
Maria Angélica do M. Jesus
Adelaide Maria da Cruz
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Bernardete do S. Coração
Maria Gertrudes do Crucifixo
Maria Gertrudes do Crucifixo
Maria Gertrudes do Crucifixo
Maria Gertrudes do Crucifixo
Maria Gertrudes do Crucifixo
Maria Gertrudes do Crucifixo
Maria Gertrudes do Crucifixo
Maria Gertrudes do Crucifixo
Maria da Imaculada
Maria da Imaculada
Maria da Imaculada
Cândida Teresa da Eucaristia
Maria Angélica do M. Jesus
Maria Angélica do M. Jesus
Maria Angélica do M. Jesus
Adelaide Maria da Cruz
Adelaide Maria da Cruz
Adelaide Maria da Cruz
Fontes: Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Eleições e Visitas Canónicas, fols. 1-18
A abadessa tem a obrigação de reunir o discretório ao menos quatro vezes por ano e
todas as vezes que for necessário e oportuno. Com ele deve tratar “da vida espiritual e
actividades das irmãs, dos assuntos mais graves, da administração económica, dos trabalhos a
empreender e das despesas extraordinárias”1413.
Neste momento o discretório do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade tem a
seguinte constituição:
Quadro nº.66 - Discretório para 1999-2002
Nome civil
Nome religioso
Cargo
Maria de Freitas Leal
Adelaide Encarnação de Sousa
Cândida Teresa de Gouveia
Agostinha de Vasconcelos
Arlete Fátima de Sousa
Maria Angélica do Menino Jesus
Adelaide Maria da Cruz
Cândida Teresa da Eucaristia
Maria Madalena do Divino Mestre
Maria Natália de Jesus Infante
Abadessa
Vigária
Discreta
Discreta
Discreta
Fontes : Arquivo do Mosteiro da Piedade, Livro de Registos, fols. 11-34 v.
3.3. O capítulo conventual
Para promover o bem de toda a comunidade, o mosteiro tem o capítulo conventual que
é constituído por todas as Irmãs solene ou perpetuamente professas. O seu voto é deliberativo
ou consultivo, conforme os casos previstos nas Constituições Gerais.
O capítulo conventual deve ser convocado pela abadessa ao menos quatro vezes no
ano e todas as vezes que devem ser tratados assuntos que são da sua competência. Antes das
reuniões capitulares, a não ser que se trate de assunto muito urgente, todos os temas a tratar
devem ser comunicados às capitulares com tempo suficiente, para que possam estudá-los. É a
abadessa que preside ao capítulo ou, no seu impedimento, a vigária.
O capítulo conventual tem poderes electivos. Só ele pode eleger a abadessa, a vigária e
as discretas. O seu voto é deliberativo em todos os assuntos que dizem respeito à admissão de
candidatas ao noviciado ou à profissão, à guarda da clausura, transição de religiosas para
outro mosteiro, assuntos económicos de maior relevo, dispensa da observância das leis
disciplinares das Constituições Gerais, aprovação dos Estatutos particulares. Compete ao
capítulo conventual dar conselho sobre a admissão de candidatas, a forma de rezar o ofício
divino, sobre os trabalhos manuais a aceitar, etc. Tem direito de ser informado sobre a
1413
Constituições Gerais, IX, artº. 246, p. 179 : Estrutura do Governo.
318
orgânica do horário conventual, de tomar conhecimento das contas da comunidade e, enfim,
de todos os assuntos de maior importância para a vida das Irmãs1414.
No momento presente o capítulo conventual do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade
é constituído por vinte religiosas das quais a mais antiga tem noventa e um anos, a Irmã Maria
Clarisse Xavier, e a mais nova, a Irmã Ariana Maria, trinta e dois.
4. Inserção do mosteiro na Federação do Imaculado Coração de Maria
No seguimento da Constituição Apostólica Sponsa Christi de Pio XII de 21 de Novembro de 1950, e por decreto
da Sagrada Congregação dos Religiosos de 22 de Agosto de 1967, os mosteiros foram exortados a constituir-se
em Federação, para maior auxílio fraterno. Cada Federação deve elaborar Estatutos próprios, que
submeterá à aprovação da Sé Apostólica. Os Estatutos, no entanto, não poderão afectar ou
prejudicar a autonomia de cada mosteiro.
Como no conselho federal então organizado, todas as conselheiras eram dos mosteiros
do Continente, o Assistente da Federação, Frei José do Nascimento Barreira bem depressa viu
a conveniência de que houvesse uma conselheira dos mosteiros das Ilhas. Foi eleita para o
efeito a Madre Maria Bernardete de Sagrado Coração, então abadessa do mosteiro de Nossa
Senhora da Piedade, a qual permaneceu no conselho até à sua morte, que ocorreu a 8 de
Outubro de 1978. Seguidamente foi eleita a Madre Maria Angélica do Menino Jesus que fez
três sexénios consecutivos, 1979-1985, 1985-1991 e 1991-1997, sendo nestes dois últimos
conselheira e vigária. Em 1997 foi a mesma eleita Presidente da Federação. Também a Irmã
Adelaide Maria da Cruz, do mesmo mosteiro de Nossa Senhora da Piedade da Caldeira, tem
vindo a exercer responsabilidades na Federação. Foi conselheira de 1991 a 1997,
encontrando-se agora a fazer um segundo sexénio (1997-2003) e a desempenhar
simultaneamente o cargo de secretária federal.
5. Apoio recebido da família franciscana
Lembram as Constituições Gerais das Irmãs Clarissas que entre a Ordem de Santa
Clara e a Primeira Ordem franciscana deve haver um relacionamento “bastante familiar e
íntimo, tanto nas coisas espirituais como nas jurídicas e materiais”1415. O mesmo texto
legislativo exorta as irmãs a “solicitar o auxílio espiritual dos Frades Menores e preferi-los
como seus capelães, pregadores de exercício espirituais, confessores e encarregados da sua
formação permanente”1416. É que as duas Ordens foram não só resposta a um mesmo apelo de
Cristo a S. Francisco, como também obra dos mesmos fundadores e resposta às necessidades
da Igreja do século XIII. Santa Clara, no seu Testamento, depois de lembrar que São
Francisco, como irmão zeloso e amigo, se empenhou na formação espiritual das suas irmãs
“com as suas palavras e exemplos”, diz com decisão: “(...) recomendo e entrego as minhas
irmãs, presentes e futuras, ao sucessor do nosso bem aventurado Pai Francisco e a toda a
Ordem, para que nos ajudem a progredir cada vez mais no serviço de Deus”.1417
Sendo a ligação das Irmãs Clarissas com os seus irmão da Primeira Ordem vontade
expressa dos fundadores e garantia de crescimento espiritual, a comunidade do mosteiro de
Nossa Senhora da Piedade procurou ter, desde a origem, as melhores relações com os seus
irmãos. Neles têm encontrado os pregadores de retiros e conferencistas, entre os quais Frei
José do Nascimento Barreira, Manuel Torres Monteiro Branco, Joaquim Carreira Marcelino
das Neves, Alexandre Henriques Jorge, Mário de Jesus Pereira da Silva, José da Costa Santos,
1414
Constituições Gerais, IX, art. 249-250, pp. 182-185: Capítulo conventual.
Constituições Gerais, VI, artº. 121, § 1, p.119.
1416
Constituições Gerais, VI, artº. 121, § 5, p. 120.
1417
TCL, 48, in FF II, p. 73.
1415
319
Manuel Marques Novo, David de Azevedo, José António Correia Pereira, Álvaro Cruz Santos
da Silva, Daniel António Silveira Teixeira e outros. Nos Franciscanos residentes na
fraternidade da Penha de França, no Funchal, têm encontrado os seus confessores. Entre
outros, Frei Francisco Dias Correia Portela, Albino Fernandes Portela, António Gonçalves
Janeiro, Manuel Luís de Sousa, Acindino Dias Borges Pacheco, Armando de São José Novais
Pacheco, José Manuel de Araújo Morais, Sebastião Sabino Crisóstomo, Jorge Chaves e, mais
recentemente, Alexandre Henriques Jorge e Francisco Rodrigues Macedo. Em Frei Acindino
Dias Borges Pacheco, falecido a 30 de Março de 1999, encontraram as Irmãs Clarissas, ao
longo de vinte anos, não só o confessor sábio e prudente mas também o irmão amigo e
dedicado. Para além do auxilio espiritual que vêm prestando ao mosteiro, os Franciscanos
têm dado às suas Irmãs todo o apoio possível em momentos especialmente significativos
como por exemplo o oitavo centenário do nascimento de Santa Clara em 1993-1994, em que
Frei Jorge Chaves muito se dedicou, e as celebrações dos quinhentos anos da chegada das
Irmãs Clarissas à Madeira, que tiveram lugar em 1997, efeméride que mereceu a Frei Daniel
António Silveira Teixeira uma admirável doação.
Dos Ministros Gerais, a quem compete visitar fraternalmente os mosteiros, por si ou
por um Irmão por ele designado, exortar as suas irmãs, estimulá-las à fidelidade à própria
vocação e a guardar o património espiritual da Ordem, a comunidade tem recebido cartas
fraternas e de aprofundamento espiritual, que mantêm acesa a chama de ligação entre as duas
Ordens.
Os Ministros Provinciais, nas suas viagens à Madeira, sempre procuram visitar as
irmãs do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade bem como as do mosteiro de Santo António.
Registamos as visitas destas últimas décadas: Frei David de Azevedo, Manuel Marques Novo,
Mário de Jesus Pereira da Silva, António Montes Moreira e José Pereira das Neves, actual
Provincial. Nas suas visitas dirigiram às religiosas palavras amigas e fraternas, exortando-as a
viver em profundidade o carisma franciscano.
Também os Franciscanos Capuchinhos têm apoiado fraternalmente esta comunidade.
Não lhes têm faltado com suas visitas amigas, retiros e os cursos bíblicos orientados por Frei
Miguel de Negreiros e Acílio Mendes. As músicas litúrgicas de Frei Acílio, como as de Frei
Mário de Jesus Pereira da Silva, chegam frequentemente e são um valioso apoio na música
sacra.
As religiosas franciscanas da Ilha, Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa
Senhora das Vitórias e as Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, têm com as suas Irmãs
Clarissas dedicação e carinho e gostam de visitá-las quando lhes é possível. Delas têm
recebido inegáveis provas de amor e estima, como aconteceu em 1959, aquando do incêndio e
em muitas outras circunstâncias.
Os membros da Terceira Ordem Franciscana, quer a nível nacional quer regional,
nunca esquecem as suas Irmãs. No oitavo centenário do nascimento de Santa Clara, a TOF
ofereceu a todos os mosteiros de Portugal uma lápide em mármore onde se lê: “O Senhor
esteja convosco e faça que estejais sempre com Ele. A TOF a suas Irmãs”. A que coube a esta
comunidade pode ver-se no átrio da portaria. A fraternidade da Ordem Terceira de Câmara de
Lobos e as de outras zonas da Madeira gostam de se tornar presentes nas grandes festividades
e nas efemérides mais relevantes como foi o oitavo centenário de Nascimento de Santa Clara
e a celebração dos quinhentos anos da chegada das primeiras Clarissas à Ilha da Madeira.
As religiosas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade dão a este apoio todo o valor
e, por sua vez, procuram acolher os seus Irmãos e Irmãs da família franciscana, como todas as
pessoas que visitam o mosteiro, com cortesia e amor. Há sempre algo a partilhar, um gesto de
carinho ou atenção a ter.
320
6. Evolução da comunidade
A comunidade começou pequena: sete religiosas professas, uma noviça e duas
postulantes em 16 de Abril de 1931, como atrás ficou dito. Era, porém, boa semente que bem
cedo cresceu e deu frutos. No final daquele ano a comunidade contava doze membros: seis
professas solenes, duas professas simples e quatro noviças. E o ritmo de crescimento
continuou, como nos é dado ver no quadro que aqui inserimos. Ao longo das décadas de
quarenta e cinquenta o número de religiosas foi sempre aumentando, o que justificou as obras
de ampliação feitas em 1954.
Após o regresso das Irmãs da cidade do Funchal em 1961, onde estiveram dois anos e
meio por causa do incêndio de 1959, a comunidade teve um crescimento muito rápido. De lá
veio enriquecida com dez candidatas que iniciaram o seu noviciado em 1962 e fizeram a
profissão religiosa em 1963. São elas: Maria Assumpta de São João Baptista, Jacinta Maria do
Carmo, Rosa Maria Reparadora do Divino Redentor, Margarida Maria Amada de Jesus e
Francisca Maria Assis de Jesus Hóstia, que receberam o hábito da Ordem a 19 de Março de
19621418, festa de São José, e emitiram votos a 25 de Março de 19631419, festa da Anunciação
do Senhor; e Maria Madalena do Divino Mestre, Maria Celina do Divino Coração, Maria
Benigna do Amor Divino, Maria Angélica do Menino Jesus e Maria Clara de Jesus Cristo,
que iniciaram o noviciado a 12 de Agosto de 19621420, festa de Santa Clara de As
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as clarissas na madeira - Secretaria Regional Educação Recursos