O Legado Arquitetônico Conventual
Franciscano no Brasil
Dra. Eleine Bourdette
Centro Universitário Plínio Leite/UNIPLI
Sob o céu profundo do Nordeste, moldado por belas formações de nuvens
sempre em movimento, esses conventos brancos, reluzindo ao sol, se destacam
[...] com seus frontispícios monumentais, seus claustros de galerias melodiosas
e suas igrejas [...] onde o ouro cintila na sombra, esses estabelecimentos dos
frades menores estão entre as obras mais poéticas que o espírito religioso inspirou na Colônia de Santa Cruz. Germain Bazin
Genealogia, Teologia e Trajetória da Ordem Franciscana
A partir de una atitude inspirada durante urna oração, o jovem italiano João
Batista Francês decidiu em 1208 fundar urna Ordem. Após a adesão de adeptos,
Francisco de Assis solicitou a aprovação da Regra que elaborara ao papa Inocêncio. Assim formou-se a Ordem dos Frades Menores cujos fundamentos se vinculavam à “experiência e saber, atividade e contemplação, doutrina filosófica [...] ao
lado da tradição científica [...] e reconhecido amor à realidade das coisas e dos
homens, como vestígios e imagens de Deus”.
Em 1214 foi fundado na Espanha o primeiro convento da Ordem. Em 1217 a
Ordem foi desmembrada em Províncias na França, Alemanha, Hungria, Inglaterra
e em Portugal.
Antes da sua morte, em 1228, Francisco de Assis demonstrou o máximo apreço pelos mestres em teologia tendo nomeado Antônio de Pádua o primeiro Leitor
da Ordem, que difundiu nos conventos portugueses a teologia agostiniana, tendo
MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os franciscanos e a formação do Brasil. Recife:
UFPE,1969, p.18.
ROWER, Frei Basílio. A Ordem Franciscana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1947, p. 15 a 20.
78 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
alcançado, posteriormente, renome em toda Península Ibérica pela sua capacidade
didática e pela sua erudição.
A doutrina ensinada nas escolas medievais denominou-se Escolástica. Essa
doutrina direcionou o pensamento teológico e filosófico europeu do século IX ao
século XV. Podemos dividi-la em três períodos: o pré-tomista (séculos IX ao XII),
com influência do pensamento agostiniano; o tomista, conhecido como o “triunfo
de Aristóteles” (século XIII) e, no mesmo século, o pós-tomista que assinala um
certo retomo aos postulados agostinianos.
As universidades de Paris e Oxford eram os mais importantes centros de estudos e seus principais professores pertenciam a duas Ordens religiosas fundadas no
século XIII - a dos Franciscanos e a dos Dominicanos - em que a pobreza coletiva
e individual e o respeito das obrigações conventuais possuíam certa liberdade em
prol do aperfeiçoamento do estudo e da pregação apostólica entre o povo.
Os dominicanos, cuja figura expoente foi São Tomás de Aquino, dedicaramse ao estudo inspirado no pensamento aristotélico, trazido ao mundo europeu
pelos árabes após a conquista do oriente helenista e traduzidos para o latim no
século XII, em Toledo na Espanha. Entretanto, as obras do estagirita foram traduzidas por Guilherme de Maerbeke diretamente do grego. Da filosofia platônica,
Aristóteles afastou o divino, excluiu as generalidades das Idéias, a fim de conduzir-nos às particularidades das sensações. A Idéia platônica perdeu o lugar para o
realismo empírico aristotélico, carregado de sensibilidade e emoção.
Ao construir uma crítica do pensamento platônico-agostiniano, Tomás de Aquino afirmou o início da filosofia no pensamento cristão, originando o pensamento
moderno. A filosofia tomista foi concebida enquanto construção autônoma e crítica
da razão humana ao separar a Razão da Fé e ao especificar o limite sensível do campo do conhecimento humano em que, acima do sentido, há no homem um intelecto
sem idéias inatas. O inteligível é uma forma abstraída pelo intelecto das coisas materiais sensíveis. A alma é incompleta sem o corpo, pois é a partir deste último que
ocorre a sensação. Com a primazia do intelecto sobre a vontade, o tomismo equacionou a transcendência racional dos princípios duvidosos da fé. “A demonstração da
não irracionalidade do mistério e da sua conveniência” é possível através de argumentos prováveis que garantem a “autenticidade divina da Revelação”.
O pensamento tomista exerceu grande influência na Universidade de Paris.
Entretanto, na Universidade de Oxford, desenvolveu-se um outro ramo do pensa-
MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os Franciscanos e a formação do Brasil. Recife: UFPE,
1969, p. 39.
PADOVANI, Umberto & CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1984, p.2 a 224.
PADOVANI Umberto & CASTAGNOLA, Luís. História das Filosofias. São Paulo: 1986, p. 231.
BAYER, Raymond. História da Estética. Lisboa: Estampa, 1979, p. 53 a 56.
PADOVANI, Umberto & CASTAGNOLA, Luís. História das Filosofias. São Paulo: Melhoramentos, 1986, p. 224.
Eleine Bourdette - 79
mento escolástico fundamentado no sentido da experiência, em conformidade com
as tendências positivas e práticas do espírito anglo-saxônico. Duns Scotus foi o
mais expressivo defensor do pensamento pós-tomista. Para ele, a filosofia era um
instrumento para a compreensão da fé, e não como obra autônoma do espírito
como concebeu Tomás de Aquino. Duns Scotus postulou que “as criaturas não são
cópias da essência racional de Deus, mas livres produções de sua vontade”.
O salto qualitativo do pensamento do escolástico inglês em relação ao de
Santo Agostinho, vincula-se ao problema do empirismo, fatores negligenciados
pela escolástica clássica e, em oposição a São Tomás, Scotus postulou uma certa
independência da alma em relação ao corpo. Ela, por natureza, seria uma substância completa cuja tarefa é conhecer a essência divina.
A primazia da vontade, determinada pela livre vontade de Deus, liberta a alma
da escravidão do corpo. Ao conceber o primado da vontade sobre o intelecto,
Duns Scotus direcionou a sua concepção filosófico-teológica para a maior compreensão do mundo e do homem, ao considerar a sua história, contrariando assim,
toda e qualquer visão abstracionista dessa natureza. Scotus percorreu as universidades européias difundindo o seu pensamento voluntarista.10
Após a instalação em 1217 dos franciscanos em Portugal, estes mantinham em
seus conventos o ensino de Teologia e de Filosofia, visando a formação de monges
e leigos cultos com o objetivo final de fortalecer a cultura católica. Em 1290, na
gestão de D.Diniz foi fundada a Universidade de Lisboa formalizando definitivamente os Estudos Gerais. Em todos os conventos, escolas e nesta universidade eram
mestres os franciscanos formados em Paris e Oxford. Entre eles esteve o Frei Francisco de Coimbra que foi discípulo de Duns Scotus na Universidade de Paris e que
lecionou, em Portugal, a Cadeira da disciplina escotista.11 Entre vários outros, este
acontecimento nos atesta a presença e a influência franciscana na formação universitária portuguesa, desde os tempos das escolas episcopais, penetrando na
orientação do pensamento e do agir da vida portuguesa12, que foram consubstanciados na fundação da Escola de Sagres pelo Infante D. Henrique. Nela foram implementados os estudos da navegação, da cartografia, da astronomia, da matemática e da oceanografia, que deram origem à ciência e à técnica náutica moderna,
permitindo o lançamento da aventura portuguesa em mares nunca dantes navegados, ampliando assim os negócios lusitanos.13 Encontramos no próprio movimento
que preparou os descobrimentos marítimos, o pragmatismo franciscano que tão
profundamente marcou a cultura portuguesa.14
Ibidem, p. 243.
PADOVANI, Umberto. História das Filosofias. São Paulo: Melhoramentos, 1984, p. 243.
10
Ibidem, p. 29.
11
MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os Franciscanos e a formação do Brasil Recife:
UFPE, 1969, p. 41.
12
Ibidem, pp. 38 a 42.
13
Ibid, p.38.
14
Ibid, p.39.
80 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
Entre os tripulantes da esquadra cabralina, que aportou nas terras brasileiras
em 21 de abril de 1500, encontravam-se 8 missionários franciscanos15 cujo superior Frei Henrique Soares de Coimbra celebrou a 1ª Missa em 26 de abril, numa
atitude reveladora da verdadeira união político- espiritual entre Igreja e Estado,
imbuídos da empresa de expansão e da cristianização dos novos mundos.
Os relatos históricos16 acusam a presença de missionários franciscanos desde
os primórdios da terra de Vera Cruz até os tempos da monarquia dupla de Felipe II
com o intuito de auxiliarem na colonização tanto das terras brasileiras quanto das
terras espanholas.
Posteriormente a inúmeras tentativas de estabelecimento, os franciscanos instalaram-se definitivamente na Capitania de Pernambuco, em 1585. Para tal, EI Rey
enviou para Olinda sete religiosos chefiados por Frei Melquior de Santa Catarina
encarregado de fundar neste local, a Custódia de Santo Antônio do Brasil dependente da Província de Santo Antônio de Portugal.17
O grupo franciscano hospedou-se, provisoriamente, na casa de moradores locais
e algum tempo depois, instalou-se em umas casas próximas à Misericórdia dedicandose de imediato ao Hospital da Santa Casa.18 Finalmente, em setembro de 1585, Dona
Maria da Rosa, através de uma escritura lavrada, doou aos franciscanos a Igreja e a
Casa de Nossa Senhora das Neves onde residia com suas irmãs terceiras. Assim estava
fundado o 1º Convento Franciscano no Brasil, o de Nossa Senhora das Neves de Olinda e o seu primeiro Superior foi o ‘frei-arquiteto’ Francisco dos Santos.19
O primeiro custódio, Frei Melquior de Santa Catarina abriu o noviciado em Olinda em 1586 e fundou 5 outros conventos: o de Salvador, Convento de São Francisco
(1587); o de Igaraçu, Convento de Santo Antônio (1588); Convento de Santo Antônio
de João Pessoa (1589); e o Convento de São Francisco em Vitória (1591).20
Posteriormente, foram fundados os conventos de Santo Antônio no Rio de Janeiro (1606); de Santo Antônio de Recife (1606-1613); e de Santo Antônio de Ipojuca (1606-1608).
Em detrimento das difíceis relações diplomáticas entre Portugal e Espanha, por
ocasião da monarquia dupla de Felipe II e da conseqüente invasão holandesa no Nordeste brasileiro, as fundações conventuais foram suspensas durante 23 anos. Contudo,
os franciscanos continuaram a sua empresa fundando em 1624, o Convento de Santa
ROWER, Frei Basílio. A Ordem Franciscana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1947, p. 26 e 27.
O histórico detalhado do percurso dos franciscanos no Brasil, anterior à chegada oficial da
Ordem, pode ser encontrado na monografia original.
17
MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os franciscanos e a formação do Brasil. Recife:
UFPE, 1969, p. 77.
18
Ibidem, p. 78.
19
ROWER, Frei Basílio. A Ordem Franciscana do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1947. p. 51 a 53.
20
MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os franciscanos e a formação do Brasil. Recife:
UFPE, 1969, p. 79.
15
16
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Margarida em São Luís e em 1625, o Convento de Santo Antônio em Belém -ambos
pertencentes ao Comissariado do Pará-Maranhão.21
Suspensas as anteriores proibições metropolitanas, foram fundados os conventos de Santo Antônio em Sergipe (1629) e o de São Francisco em Serinhaém (1630),
cuja construção ficou interrompida até 1637, em detrimento da invasão holandesa
em Pernambuco.22 Em 1639 foram fundados os conventos de Santo Antônio em
Santos e o de São Francisco em São Paulo.23
Com a evidente expansão da Ordem no território brasileiro iniciou-se um trabalho junto à Província portuguesa visando-se independência da Custódia brasileira.24 Frei Pantaleão Batista foi enviado a Portugal como procurador da causa. Vencidas as resistências, o papa Inocêncio X e o Ministro Geral da Ordem aprovaram
a solicitação. O 1º Capítulo da Custódia de Santo Antônio do Brasil foi celebrado
na Casa Capitular da Bahia em 1649.
Após estas resoluções seguiram-se as fundações de novos conventos: o de
Santo Antônio em Paraguaçu (1649); o de Santo Antônio em Cairu (1650); o de
Bom Jesus da Glória em Sergipe (1657); o de Nossa Senhora dos Anjos em Penedo
(1660); e o de Santa Maria Madalena em Alagoas (1660). No Sul as fundações também prosseguiram com os conventos de São Boaventura em Itaboraí (1649); Nossa
Senhora da Penha no Espírito Santo (1649); São Bernardino em Angra dos Reis
(1650); Nossa Senhora da Conceição em Itanhaém (1653); e o de Nossa Senhora
do Amparo em São Sebastião (1658).25
Frente às dificuldades de um só Prelado atender às solicitações das casas situadas em distâncias tão longas, a Custódia brasileira alcançou a elevação à Província, formando-se assim uma outra Custódia, a da Imaculada Conceição, responsável pelos conventos localizados ao sul do Espírito Santo.26
Logo após, a Província de Santo Antônio fundou a Casa de Nossa Senhora da
Boa Viagem na Bahia (1712) e a Custódia da Imaculada Conceição e o Convento
de Santa Clara em Taubaté em 1674.27
Por intermédio do Breve do papa Clemente X de 1775, a Custódia da Imaculada Conceição foi elevada à Província e fundou os últimos conventos: o de Nossa
Senhora dos Anjos em Cabo Frio (1684); o de São Luiz em ltú (1691); e o de Bom
Jesus da Ilha na Baía de Guanabara (1705).28
ROWER, Frei Basílio. A Ordem Franciscana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1947. p. 60.
ROWER, Frei Basílio. A ordem Franciscana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1947, p.60.
23
MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os franciscanos e a formação do Brasil. Recife:
UFPE, 1969, p. 81.
24
Informações mais detalhadas sobre este processo na monografia original.
25
MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os franciscanos e a formação do Brasil. Recife:
UFPE, 1969, p. 83.
26
Ibidem, p. 83.
27
Ibid, p. 84.
28
Ibid., p. 84 e 85.
21
22
82 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
Análise da Arquitetura dos Conventos Franciscanos
A escola franciscana do Nordeste é uma evidência no esforço de construção
que resultou em soluções inéditas desenvolvidas ao longo dos séculos XVI e XVIII
cujo ponto de partida decisivo, os tipos formados na segunda metade do século
XVII, pressupõem “uma verdadeira escola de construtores pertencentes à Ordem”,29
que revelam nas suas criações arquitetônicas “as tradições de uma Ordem monástica, vivendo isolada numa colônia longínqua, puderam reproduzir condições semelhantes às da Idade Média”.30
Frei Jaboatão, um dos primeiros historiadores do Brasil, atribui as primeiras
traças dos conventos de Olinda e de João Pessoa ao Frei Francisco dos Santos31,
que viveu até uma idade avançada e que por isso chegou a dar consultoria nas
fundações dos conventos de São Paulo, do Rio de Janeiro e no de Paraguaçu. Embora nenhuma dessas construções seiscentistas tenha perdurado, constatamos a
sua influência categórica na criação do espaço-tipo dos conventos franciscanos.32
O material construtivo em que foram edificados os conventos foi basicamente:
o tijolo cozido, pedra e cal. Inclusive, em muitos casos, a pedra33 utilizada era retirada do próprio sítio conventual e, posteriormente, submetida a uma seleção qualitativa, responsável por uma fatura reveladora de particularidades das modenaturas, que resultaram numa arquitetura que manifesta características locais.
A traça destes conventos apresenta similitudes. Contudo, indicam algumas variações decorrentes de uma obra que percorreu 200 anos. Todo conjunto conventual distribui-se ao redor de um claustro e concentra-se de um dos lados da igreja.
Esta, comumente, situa-se à esquerda como em Olinda, Igaraçu e Serinhaém, mas
às vezes, como em Ipojuca, situa-se à direita.
Os cômodos conventuais distribuem-se em dois pavimentos. Geralmente no
primeiro, reúnem-se em volta do claustro as salas de estudo, capitular, o refeitório
(perpendicular ou paralelo ao claustro), a cozinha e a portaria. No pavimento superior, implantavam a biblioteca (sem posição fixa) e as celas individuais servidas
por circulações abertas para o pátio do claustro, que encimam as circulações inferiores do mesmo.
Cada cela possui uma janela que, externamente apresenta dois cachorros destinados ao apoio de tábuas de madeira, onde os monges colocavam flores. O acesso do claustro realiza-se através da portaria, invariavelmente localizada próxima à
29
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1986,
p. 137.
30
Ibidem, p. 156.
31
Ibidem, p. 137 e 138.
32
Ibid, p.137.
33
ZANINI, Walter (org.). História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira
Salles, 1983, p. 149.
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igreja.34 Por vezes, como em Olinda e Igaraçu existe um mirante35, onde os monges
contemplavam a natureza. Em Olinda existe a mais, um terraço do qual se avista
um panorama inebriante do mar azul...
A construção do conjunto conventual iniciava pela parte destinada à moradia
e pelo corpo de edificações que margeavam o claustro. Em seguida, construíam a
capela-mor da igreja e, por último, a nave. A preocupação final era na construção
do frontispício, fato constatado nas diferentes estilísticas que indicam uma evolução deste elemento.
Obedientes a Roma, os franciscanos adotaram o partido da Contra-Reforma
nas suas igrejas de nave única. A não utilização da cúpula36 nos projetos e a supressão das capelas laterais, que foram substituídas por arcos de descarga, configuram
o “partido jesuítico”, possibilitando no Brasil uma adequação maior às técnicas
construtivas locais.
Os altares-mores, ladeados por 2 altares encontrados em Igaraçu, Serinhaém,
Recife e Olinda, reportam-nos à solução do arco-triunfal romano, verificado na
igreja portuguesa de São Pedro de Leiria do século XII. Esta evidência, nos leva a
constatar que “o peso das tradições românicas na arte portuguesa”37 seguiu com os
franciscanos para o Brasil.
Obedecendo à tradição do culto da Paixão difundido pela Ordem, as capelasmores das igrejas de Recife e Olinda são ladeadas por dois corredores que levam o
nome de Via Sacra pois contêm em ambos os andares, via-crúcis38.
Em todos os conventos pernambucanos as sacristias localizam- se transversalmente e atrás da igreja, com exceção de Recife, cuja sacristia situa-se fora da construção. Na direção oposta encontramos o coro que se apóia parcialmente sobre um
pórtico ou galilé.
Uma das características das igrejas franciscanas é a existência de um campanário recuado do frontispício, semelhante ao da Gesú de Roma, igreja jesuíta projetada por Vignola em 1567.
Supõe-se que o aparecimento da Ordem Terceira em Pernambuco é pioneiro no
Brasil.39 De fato as Ordens Terceiras no Brasil tiveram um impulso no século XVIII, laicizando a religião, evidência que demonstra o poder da Igreja sobre uma incipiente
burguesia cuja autonomia só pode ser exercida ao lado desta instituição secular.
Em decorrência deste processo, a presença da Ordem Terceira acarretou no Con-
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Record,
1986. p. 141 e 142.
35
Elemento remanescente da torre de ménage medieval.
36
Em Portugal a tipologia da Contra-Reforma admitiu a planta com ou sem cúpula. No Brasil, somente a igreja do convento de Recife seguiu este padrão.
37
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 363.
38
ROWER, Frei Basílio. A Ordem Franciscana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1947, p. 24.
39
Ibidem, p. 5.
34
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vento de Recife, num grande desenvolvimento de construções importantes, semelhantes a um outro’ convento’.
O único local do conjunto conventual desvinculado de funções definidas, -o
claustro- é constituído por uma galeria com arcadas, geralmente de ordem toscana.
O claustro é um espaço de meditação - “quadrado, coordenado com os quatro
pontos cardeais e com os quatro elementos da matéria criada, o claustro arranca
um lanço do cosmos ao desregramento que naturalmente o afeta”.40 A importância
deste elemento levou Bazin a traçar conjeturas sobre os nossos exemplares. Ao
considera-los semelhantes aos “graciosos cortilli” do Convento de San Marco em
Florença, que suscitam a idéia de leveza e harmonia, próprias dos templos de Toscana e de Pernambuco, o eminente historiador da arte terminou por relacionar a
arte portuguesa à arquitetura desta região italiana.41
Ainda que o emprego da pedra local tenha feito dos claustros pernambucanos
uma composição singular, de caráter autóctone, o espírito clássico inspirado na
primeira Renascença manifestado em Portugal no século XVI ressurgiu na arquitetura franciscana, na qual a disposição das galerias é semelhante às do claustro da
casa dos Irmãos Terceiros de Arrabidos de Santarém.42
Segundo o andamento das obras, os claustros pernambucanos apresentam ora
uma tipologia seiscentista, meio arcaizante como em Igaraçu e Ipojuca, ora elementos relativos ao 1º quartel do século XVIII, como em Olinda e Serinhaém. Já o claustro
de Recife recebeu um tratamento que revela um enriquecimento de formas.
O frontispício das igrejas concentrou toda a criatividade franciscana confinada
na composição arquitetônica caracterizada, sobretudo, pelo seu pórtico. Este elemento, característico das igrejas franciscanas, aponta a longevidade da Ordem que
no Brasil se adequou tanto ao clima quanto aos desígnios missionários. Isto porque,
os pórticos “não falam latim; têm a missão de vulgarizar a ciência dos doutores”.43
E pelas suas portas, a catedral assume a sua função pastoral. O emprego da galilé44
ou pórtico em Portugal remonta ao século XVII, na região do Alentejo. Quando este
elemento passou a ser empregado junto com o campanário recuado, como em Espírito Santo de Portalegre ou no Convento de Santo Antônio de Sousel, em Portugal, temos já os dados gerais do tipo pernambucano.45
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1986,
p. 144.
41
Ibidem, p. 145
42
Ibidem, p. 145
43
DUBY, George. O tempo das catedrais. Lisboa: Estampa, 1979, p. 287 e 288.
44
Galilé é o termo preferido pelos franciscanos.
45
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1986.
p. 144.
40
Eleine Bourdette - 85
O tipo franciscano mais corrente é o da galilé com 3 arcadas iguais como em
Olinda, Igaraçu, Ipojuca. Contudo, um outro tipo de fachada franciscana menos
utilizado é aquele composto por cinco arcadas, como em Recife.46
Geralmente, as igrejas franciscanas são precedidas por um amplo espaço delimitado denominado adro -um pátio para acomodar grandes multidões reunidas.47
Com a vida moderna, alguns adros, como o de Recife, foram atravessados por ruas
ou até mesmo transformados em praças.
Os arquitetos franciscanos dedicaram as suas melhores idéias ao elemento
principal do projeto, o frontispício. Dois tipos foram criados no século XVII: o primeiro evidencia-se no conjunto de Ipojuca com uma fachada de aspecto maneirista, coroada por um frontão triangular. Com exceção das volutas acrescentadas no
século XVIII, este tipo remonta os idos de 1660.
O aspecto geral do frontispício de Serinhaém escapa da tipologia usual das fachadas franciscanas por não apresentar galilé, nenhum tipo de voluta, evidenciando um
tratamento eminentemente maneirista.48
Do tipo Ipojuca deriva o frontispício de Olinda, cujo gosto pela escultura cultivado no Nordeste devido à fartura do material calcário, vem transformar em barroca,
pela aplicação postiça de volutas e contra-volutas, a estrutura clássica original. A esta
solução dá-se o nome de “fachada-tela”, uma criação pernambucana.49
A composição da igreja conventual de Igaraçu apresenta um desenvolvimento
autóctone do tipo Ipojuca, mas com um tratamento de volutas próximo ao de Olinda. Este tipo é intermediário entre o de Ipojuca e o de Recife.50
Santo Antônio de Recife deriva de um outro tipo de frontispício, o da família
baiana -tipo Cairu, cuja particularidade consiste na ênfase dada aos ornatos, introduzida em Pernambuco no 2º quartel do século XVIII. Porém, o resultado final da
composição de Recife, do tipo “fachada-tela é menos harmonioso e prenuncia uma
sutil’ decadência barroca”.51
Segundo a tradição portuguesa de sóbrias modenaturas, do partido clássico
linear das plantas das igrejas e no arranjo dos frontispícios de cunho maneirista, o
barroco pernambucano encontrou a sua maior expressão nos “frontões-telas”, na
arte da talha decorativa das naves52 e das capelas-mores que revelam o despoja-
Partido verificado na igreja portuguesa de São Francisco de Évora.
A construção deste convento sofreu alterações significativas desde a sua fundação, contemporânea à invasão holandesa.
48
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1986,
p. 149.
49
Ibidem, p. 149.
50
Ibid., p. 149 e 150.
51
A arte da torêutica foi responsável pela transformação do espaço maneirista das igrejas em
espaços barrocos.
52
DUBY, Georges. O tempo das catedrais. Lisboa: Estampa, 1979, p. 208.
46
47
86 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
mento do gênio luso-brasileiro da austeridade maneirista, herdeira de um espírito
clássico por excelência.
Considerações finais
A via que encontramos para formular os nexos da questão proposta nos reporta a tempos longínquos -tempos que são o berço do pensamento moderno. Na
busca de compreensão do seu mundo, o homem medieval criou as Universidades
e as Catedrais Góticas -a maior obra humana de inspiração divina, fruto de um
trabalho coletivo que transformou a pedra, uma matéria inerte, em elemento plástico, que apesar de sólido, se desmaterializa diante de um olhar hermeneuta. Estas
catedrais revelam na fluidez de suas linhas a dinâmica construída pelo pensamento
teológico e filosófico capazes de responderem às indagações mais profundas acerca do Ser53. Neste âmbito, encontramos o esforço de religiosos, ‘profissionais do
pensamento sacro’, influindo na esfera universitária européia.
Ao assumir a vanguarda nas investigações teológicas nas universidades do
século XIV, a Ordem Franciscana a partir dos postulados de Duns Scotus comprometeu as proposições tomistas ao enunciar que, “só um número restrito de verdades dogmáticas podia ser fundamentado pela razão, que não devia procurar demonstrar as outras, mas simplesmente acreditar-se nelas”.54 Scotus advertiu que o
entendimento do mundo, nas suas mais obscuras membranas, através de um ato de
fé, seria imprescindível para a harmonia do homem em face do segredo da criação.
Nesta idéia verificamos os fundamentos da Ordem Franciscana que desde a sua
instalação em Portugal foi propagada pelos seus membros nas entidades de ensino.
Portanto, é categórica a ascendência do escotismo na formação da ‘índole portuguesa,’ a qual, juntamente com a contribuição da cultura árabe e judaica, são responsáveis pela formação de um espírito prático e de tradição científica -vocação
confirmada na fundação da Escola de Sagres, cujo legado descortinou para o homem renascentista um cenário inusitado, levando-os a repensar todas as suas certezas. Este caráter prático, de natureza empírica, deriva de um ato de vontade
correspondente ao pensamento do escolástico inglês. Nisto, fica patente o traço
comum entre a filosofia franciscana e a práxis portuguesa.
Dotados desse espírito voluntarista e de um caráter panteísta, os franciscanos
aqui chegados, em 1585, com o objetivo de dar prosseguimento ao projeto civilizador colonial, aliaram a sua erudição às premências físicas (tal a versatilidade
com que trataram a pedra local) e espirituais da nova terra, legando-nos uma obra
arquitetônica singular - refinada ao longo de dois séculos sem, no entanto, perder
o sentido de UNIDADE -síntese do lirismo português, do experimentalismo e da
concretização de uma filosofia que considerava toda matéria uma livre criação de
53
54
Ibidem, p. 208.
Ibidem, p. 208.
Eleine Bourdette - 87
Deus, cabendo ao homem transformá-la segundo as suas necessidades, respeitando os seus atributos e o seu devir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAYER, Raymond. História da Estética. Lisboa: Estampa, 1979.
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record,
1986.
DUBY, Georges. O tempo das catedrais. Lisboa: Estampa, 1979.
MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os franciscanos e a formação no Brasil.
Recife: UFPE, 1969.
PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos,1986.
ROWER, Frei Basílio. A Ordem Franciscana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1947.
ZANINI, Walter (org.). História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter
Moreira Salles, 1983.
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