Número 9 - 2ª série
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CRÓNICA *
Ano 2 - Fevereiro / Março 2014
Adolfo Maria
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MESO MA MESO
(OLHOS NOS OLHOS)
Intelectuais: Anjos, Demónios Ou…?
A
intelectualidade de um país - pela variedade e graus de saber que possui –
tem poderosa capacidade interventora
no processo social. Daí as expectativas e o escrutínio das diversas forças sociais e políticas
sobre o seu desempenho.
Dos intelectuais, umas forças esperam que
eles sejam a vanguarda nas ideias e participem nas acções de progresso, enquanto que
os poderes instalados desejam ou exigem dos
intelectuais que sejam seus porta-vozes ou
elementos associados às suas engrenagens e
práticas.
É evidente que qualquer poder instalado
olha de soslaio para os intelectuais que procuram e defendem um pensamento próprio,
pois a lógica existente é a utilização dos saberes ao serviço da projecção do poder. Esta
é uma condicionante universal que se torna
mais poderosa em países de débil democracia e que é absoluta em regimes ditatoriais.
Os intelectuais sabem isso, como sabem que
qualquer poder usa as mais diversas formas
de aliciamento para a ele os fazer aderirem ou
os porem ao seu serviço. Por outro lado, forças sociais e políticas, as mais diversas, procuram instrumentalizar os intelectuais para o
conseguimento de vários dos seus particulares objectivos.
Podemos também verificar que, em cada
época, aparecem intelectuais como solitárias vozes de contestação que, muitas vezes
incorrendo em perigos vários, até de vida,
conseguem que a contestação se generalize,
à medida que as ideias se vão difundindo na
população. Por outro lado, muitos desses intelectuais portadores de contestação transformam-se depois em coro de louvores e
servidões a novos poderes instalados que esmagam vozes contestatárias.
Assim sucedeu em Angola. Nos primórdios
da luta pela independência - quando esta se
desenvolvia no campo das ideias e da cultura, em geral - eram muito raros os intelectuais
angolanos que tinham o arrojo de desafiar as
concepções dominantes do colonial-fascismo
português e as suas medidas repressivas. Pouco a pouco o trabalho desenvolvido por esses
intelectuais deu frutos, cresceu o número de
vozes contestatárias da ordem estabelecida
que se fundiram nas aspirações populares de
liberdade, resultando na formação de grupos
políticos que partiram para a luta contra a
dominação colonial. Fechadas as saídas políticas para a causa angolana, devido à feroz repressão da PIDE (polícia política portuguesa),
o campo nacionalista recorreu à luta armada.
Para essa necessária e extrema forma de luta
não só contribuíram intelectuais como nela
participaram generosamente.
Mas nenhum percurso histórico é linear.
Por isso, nem todos os intelectuais de convicção nacionalista, entraram nesse combate
(não deixando de ser patriotas, é minha opinião). Também, nesse combate, pudemos ver
intelectuais servidores acríticos das chefias
dos movimentos nacionalistas e intelectuais
contestatários de estratégias, práticas e métodos das chefias.
Depois, na Angola tornada independente,
muitos intelectuais (ou quase todos?...) tornaram-se activos servidores do ditatorial poder que governou Angola durante anos. Ora,
bastantes desses intelectuais tinham sido vozes contestatárias contra o regime colonial,
foram depois participantes na luta armada
(alguns deles até contestando métodos das
chefias nacionalistas). Agora, no novo estado,
nada contestavam e, pior que isso, eram cúmplices e actuantes membros de um regime que
perseguia contestatários até às últimas consequências. Por fim, alguns desses intelectuais
começaram a distanciar-se paulatinamente
da acção política e até procuraram alcandorar-se à posição de reservas morais do colectivo nacional!...
Contudo, em todo o nosso processo de luta
de libertação nacional e no pós-independência – felizmente para o País (ao fim e ao cabo,
para todos nós) - havia intelectuais que se
mantiveram contestatários, lutando pela liberdade e dignidade humanas. Essa coerência foi um contributo importante para a preservação das referências éticas necessárias à
construção de uma plena cidadania.
Evoco tudo isto apenas para nos situarmos
e, com a experiência do passado, procurarmos
entender o papel dos intelectuais, as condicionantes do seu posicionamento e o exercício da cidadania, seja qual for a individual
posição na sociedade (ou talvez por isso) no
actual momento do País, o qual exige espírito
de abertura, convivência nacional, patriotismo.
Considero que uma reflexão se impõe nestes tempos em que a tomada de consciência
dos nossos problemas é transversal a toda
a sociedade (em graus diferentes, é claro).
Sendo certo que há ainda muitas barreiras e
reflexos defensivos para um grande diálogo
nacional, também é verdade que já existem
as condições necessárias para que ele se inicie e se desenvolva. Todos - a nível das forças
do poder e das outras forças políticas, ou da
sociedade civil - sairão beneficiados com a
instauração de um vasto e profundo diálogo
nacional. E nele terão relevante papel os intelectuais, seja qual for a sua pertença política.
Perante as solicitações ou pressões contraditórias a que qualquer intelectualidade está
submetida, resta ao intelectual saber situar-se
como indivíduo e como membro da sociedade donde emergiu e à qual pertence. Em geral,
e muito particularmente no caso de Angola,
parece-me que, para o intelectual se situar,
o ponto de partida e o de chegada será o seu
questionamento sobre a cidadania. Equacionada e resolvida esta questão, o intelectual
terá bem menos «problemas de consciência»
e melhores ferramentas para enfrentar pressões, coacções e aliciamentos, dedicar-se à
sua actividade intelectual, pugnar pela liberdade de pensamento, procurar as vias de progresso do país e nele participar, e, com os seus
pares, contribuir para o avanço do pensamento humano.
Portanto, na minha opinião, o intelectual
não é anjo nem demónio (às vezes é isso tudo,
conforme a sua prática e o ponto de vista de
quem o avalia). Acima de tudo, o intelectual
é - ou devia ser - cidadão, no mais vasto e profundo significado do termo.
Homenageando
No número anterior de O CHÁ já não pôde
ser inserida a minha referência ao falecimento
de Maria do Carmo Medina e Agostinho Mendes de Carvalho (Uanhenga Xitu). Associo-me
ao pesar colectivo e quero lembrar que Mendes de Carvalho, que foi valoroso combatente
pela independência, procurou depois pontes
e convivências políticas durante os primeiros
anos do regime implantado, o mais intolerante
período da história da Angola independente. A
minha homenagem e as condolências às famílias das duas personalidades desaparecidas.
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Intelectuais - Associação Cultural e Recreativa CHÁ DE CAXINDE