O papel dos artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura (1961-1964)
na construção de uma nova sociedade
Carla Michele Ramos (Mestranda História/Unioeste)
[email protected]
Durante os anos de 1961 a 1964 o Centro Popular de Cultura atuou no Brasil como
movimento cultural que se caracterizou por uma forte ideologia política. Os artistas e
intelectuais que estiveram envolvidos nos diversos projetos da entidade cepecista
passaram a atuar politicamente no cenário brasileiro. A preocupação deste estudo é
tentar compreender a atuação do CPC no espaço político através de suas atividades
artísticas.
O objetivo desse trabalho é analisar o papel dos artistas e intelectuais cepecistas ao
construir um projeto nacional-popular que visava através das artes promover
conscientização e mobilização social. Na concepção dos membros do movimento, a
estrutura sócio-econômica do país só poderia ser modificada se a população, por meio da
desalienação, fosse capaz de aderir à luta revolucionária.
Em 1962 a diretoria da entidade redigiu seu Anteprojeto do Manifesto, um dos
poucos documentos da época que foram encontrados, pois com o golpe civil-militar a
sede da União Nacional de Estudantes localizada no Rio de Janeiro foi queimada e lá
estavam vários documentos do CPC que tinha um trabalho conjunto com o movimento
estudantil. Por meio deste texto é possível verificar questões acerca do modelo de arte
assumido pelos artistas, bem como a função dos mesmos no projeto político-cultural.
Depoimentos de ex-dirigentes e obras construídas por teóricos cepecistas revelam
também a possível militância desses artistas e intelectuais via arte, a comunicação de
caráter pedagógico e a luta na construção de um novo homem.
Atualmente existe uma intensa preocupação por parte da História Cultural com as
relações de poder e com a questão da identidade. Este estudo não privilegia somente a
atuação dos intelectuais e artistas do CPC no âmbito cultural, mas procura compreender
também como eles se colocaram diante da população ao estabelecer uma luta política
que visava a transformação radical na estrutura social do país.
Um dos pontos centrais nessa discussão, e que dá espaço para diferentes
abordagens, é a apropriação do discurso marxista-leninista de vanguarda pelos
cepecistas. Esse discurso será focalizado neste trabalho à luz do estudo de Antonio
Gramsci sobre os intelectuais orgânicos, não em contraposição, mas buscando identificar
se a atuação dos artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura pode ser identificada
com essas duas concepções.
O CPC no seu curto período de atividades realizou um trabalho que consistia ir em
busca do povo e instruí-lo, no que diz respeito à realidade brasileira. A entidade
acreditava que só através dessa nova consciência o homem poderia lutar por um outra
organização social. Assim o teatro, a música, a literatura e outros meios artísticos foram
utilizados para realizar essa mobilização popular. A arte não poderia romper diretamente
com a hegemonia das classes economicamente superiores, mas poderia provocar no ser
humano uma mentalidade revolucionária, rompendo assim toda e qualquer forma de
dominação.
O papel dos artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura
(1961-1964) na construção de uma nova sociedade
Carla Michele Ramos*
GT6: Estado, meios de comunicação e movimentos sociais
Resumo
Este estudo tem como finalidade compreender a atuação do Centro Popular de Cultura
(1961-1964) no espaço político brasileiro através de suas atividades artísticas. Analisar o
papel dos artistas e intelectuais cepecistas ao construir um projeto nacional-popular que
visava através das artes promover conscientização e mobilização social também é a
preocupação deste trabalho. Este estudo não privilegia somente a atuação dos intelectuais e
artistas desse movimento no âmbito cultural, mas procura verificar como eles se colocaram
diante da população ao estabelecer uma luta política que desejava a transformação da
estrutura social do país.
Introdução
A década de 1960 no Brasil foi um período de intensa radicalização
social e efervescência política. Talvez seja por esse fato que a produção científica
sobre esse momento ainda é um campo extremamente frutífero para análises
historiográficas. Esse passado marcou profundamente a nossa história, pois se por
um lado à sociedade brasileira naquela época vivenciou o início de um autoritarismo
exacerbado com o golpe civil-militar em 1964, por outro observou uma experiência
de engajamento político que deixaria seu legado às gerações futuras.
No espaço político a renúncia do presidente Jânio Quadros e a
posse de João Goulart em 1961 provocaram uma postura de endurecimento dos
setores de direita1 que já vinham realizando tentativas de intervenção no sistema de
governo. Com uma propaganda que consistia em defender a democracia brasileira
* Mestranda do Curso de Pós-graduação em História da UNIOESTE – Campus de Marechal Cândido
Rondon, PR
1
Grupos sócio-econômicos que não desejavam profundas mudanças na estrutura política do país.
1
contra a crescente comunização2 do país, esses setores conseguiram limitar o poder
de Goulart por meio da emenda parlamentarista.
No meio social as ligas camponesas reivindicavam intensamente a
reforma agrária e nas cidades o proletariado estava amadurecendo politicamente
como classe3. Desde a segunda metade da década de 1950 vinha ocorrendo no
campo cultural algumas rupturas em relação à produção artística. Grupos
universitários de teatro como o Teatro Paulista de Estudantes e até profissionais
como o Teatro de Arena de São Paulo resolveram dramatizar temáticas nacionais e
valorizar em seus textos questões políticas, sociais e econômicas.
Toda essa agitação popular acabou de certa maneira influenciando o
engajamento político de alguns intelectuais e artistas da classe média em projetos
sociais. Não podemos esquecer também que nesse momento houve uma forte
crença dos grupos de esquerda, principalmente o Partido Comunista Brasileiro, na
luta revolucionária. A Revolução Cubana em 1959 representou a primeira
experiência socialista em terreno americano e isso serviu de estímulo a entidades
político-ideológicas que visavam romper com a hegemonia das classes mais
abastadas do país.
Para Ridenti os anos 1960 foram tempos revolucionários, pois:
Rebeldia contra a ordem e revolução social por uma nova ordem mantinha
diálogo tenso e criativo, interpenetrando-se em diferentes medidas na
prática dos movimentos sociais, expressa também nas manifestações
artísticas...
Naquele contexto, certos partidos e movimentos de esquerda, seus
intelectuais e artistas valorizavam a ação para mudar a história, para
construir o homem novo. (2003:135)
Sendo assim, podemos perceber que o estudo que privilegia os
objetos artísticos, não pode estar dissociado de uma análise referente ao campo
político e econômico, pois nota-se uma intensa afinidade de relações entre esses
diversos espaços de sociabilidade com o espaço cultural.
É a partir desses embates, políticos e culturais, que o presente
estudo se situa. O objetivo deste trabalho é tentar compreender as atividades que
foram realizadas pelo Centro Popular de Cultura (1961-1964), identificando os meios
2
Setores políticos e sociais conservadores temiam a expansão das idéias comunistas no país,
principalmente a consolidação de um regime socialista.
3
A propósito de uma discussão sobre o tema, ver BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Governo João
Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. Rio de Janeiro: Revan; Brasília, DF: Ed. UNB, 2001.
2
que seus militantes utilizaram para alcançar a pretensão de seu projeto
revolucionário. Essa discussão procura revelar também qual foi à relação entre os
intelectuais e artistas cepecistas e o público que eles desejavam atingir com sua
produção artística.
A atuação político-cultural do Centro Popular de Cultura
O Centro Popular de Cultura foi um movimento iniciado em 1961 por
um grupo de artistas e intelectuais e que teve como principais expoentes o
dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o cineasta Leon Hirszman e o sociólogo Carlos
Estevam Martins. A princípio eles se estabeleceram no Rio de Janeiro e resolveram
encenar uma peça teatral escrita por Vianinha intitulada A mais-valia vai acabar, seu
Edgar. Essa peça ao questionar o capitalismo procurou oferecer ao público uma
compreensão sobre a origem do lucro e o conceito da mais-valia. É possível
perceber através dessa dramaturgia a intenção de instruir os espectadores acerca
das questões econômicas. Para Damasceno (1994:92) a peça apresentava-se como
uma farsa musical inspirada nas idéias brechtianas, transformando-se num marco
cultural pois foi a partir de suas encenações, na Faculdade de Arquitetura do Rio de
Janeiro, que artistas e intelectuais foram se interagindo e discutindo a formação de
uma entidade capaz de realizar atividades de caráter político-pedagógicas.
Assim nasceu o Centro Popular de Cultura, que mais tarde ficaria
conhecido como CPC da UNE, por causa de sua estreita ligação com os projetos
criados pela entidade estudantil, na finalidade de politizar o público universitário
acerca dos problemas que atingiam a educação brasileira. Um movimento que ficou
caracterizado por sua atuação político-cultural e que inicialmente teve suas ações
marcadas pelo gênero agitprop – agitação e propaganda4. A primeira atividade
artística a ser transformada em arma cultural foi o teatro. Uma renovação na
concepção de arte que está presente no Anteprojeto do Manifesto, documento
redigido pela diretoria cepecista que defendeu uma arte popular engajada e
revolucionária, que se identificasse com a aspiração do povo brasileiro e
4
Essa forma teatral, também conhecida como agitprop, foi utilizada pelos revolucionários russos após
a vitória bolchevique em 1917, para difundir e propagar suas idéias sócio-políticas. No caso
específico do movimento cepecista a proposta era alcançar as massas populares em seus diferentes
3
comprometida com a luta política (MARTINS, 1962). A entidade cepecista ampliou
essa visão de arte para outros setores culturais como a música, a literatura, o
cinema e artes plásticas, intensificando assim a participação de artistas e
intelectuais nessa campanha de emancipação política.
Em vários depoimentos de militantes cepecistas, aparece a idéia de
que essa entidade apesar de um estreito vínculo com a União Nacional de
Estudantes não se via como seu órgão cultural, ou seja, limitada e subjugada pelas
suas determinações, apesar desse discurso estar registrado formalmente em vários
documentos5.
Com autonomia administrativa o CPC funcionou inicialmente como
uma empresa, sem verbas governamentais teve que criar estratégias para manter
uma folha de pagamento e ainda investir em diversos departamentos culturais.
Participou do projeto UNE-Volante, uma caravana que percorreu diversas capitais
brasileiras realizando espetáculos teatrais, debates políticos e shows musicais
durantes os anos de 1962 e 1963 visando politizar a massa estudantil acerca dos
problemas do ensino superior brasileiro. A união estudantil aproveitou da
capacitação artística do CPC para propagar a idéia da reforma universitária, pagou
por esse serviço e conseguiu mobilizar várias unidades regionais nessa campanha.
Uma influência muito importante à entidade cepecista foi o
Movimento de Cultura Popular de Recife, conhecido como MCP. Esse movimento foi
caracterizado por um programa pedagógico que visava elevar o nível cultural da
população pernambucana. Num documento, datado de 1964, ele é definido por sua
diretoria como:
É um órgão de caráter técnico, rigorosamente apolítico e pluralista, segundo
o modelo da UNESCO, porquanto não discrimina filosofia, credo ou
convicções ideológicas. É um lúcido esforço da comunidade inteira –
populares, estudantes, intelectuais, particulares e poderes públicos – para
acelerar a elevação do nível material e espiritual do povo, através da
educação e da cultura. (ALENCAR,1980:69)
Diferentemente do MCP, o movimento cepecista se auto definiu
como uma entidade de caráter político e daí surgiram por exemplo sua ligação com
a UNE, resultando num trabalho voltado para a politização das massas estudantis. O
espaços - associações, ruas, sindicatos - provocando através de denúncias e propaganda política
conscientização e posicionamento crítico do público.
5
Ver depoimentos de integrantes do CPC em BARCELOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de
paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
4
próprio Vianinha, quando ainda era membro do Teatro de Arena de São Paulo,
acreditava que a ligação entre entidades que desejavam intervir politicamente na
realidade brasileira e grupos culturais seria fecunda pois todos tinham como
pretensão realizar profundas reformas na estrutura do país (1960:78).
Ao analisar o Centro Popular de Cultura como entidade privada,
deve-se levar em consideração que sua participação em comícios, sindicatos e
aglomerações partidárias não aspirava o uso da arte para fins lucrativos. Seus
integrantes apesar de integrantes ou simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro
não trabalhavam para um determinado segmento político-partidário, ao contrário,
muitos foram os atritos entre intelectuais e artistas por causa da instrumentalização
da arte. Esses artistas e intelectuais ao construir um modelo artístico e colocá-lo em
prática não só revolucionaram nossa visão de arte como também deixaram
profundas marcas na concepção de luta política no país.
Embora o Teatro de Arena tivesse iniciado em fins dos anos 1950
experiências de uma dramaturgia de caráter nacional, enfatizando nos textos teatrais
questões acerca da nossa realidade sócio-econômica, o movimento cepecista
radicalizou a temática nacional-popular e procurou cumprir uma tarefa - que muitas
vezes acreditamos ser do Estado – educativa na tentativa de elevar o nível de
conscientização do povo brasileiro, e para que isso ocorresse seria fundamental nas
palavras de Vianna uma arte que enfrentasse os problemas mais fundos da
existência humana, que indagasse com mais vigor e mais audácia a origem dos
comportamentos e os porquês das circunstâncias que nos envolviam (1962:94).
Quando falamos de tarefa educativa é importante ressaltar que esse
tipo de atividade que vinha sendo praticada nas regiões do Brasil, pois o CPC
incentivou a criação de vários centros populares de cultura nos estados brasileiros,
não estava condizente com o modelo educador que as classes dominantes
projetavam ao estado. Se pensarmos a partir da concepção gramsciana que revela
que todo Estado é ético sendo uma das suas funções elevar a grande massa da
população a um determinado nível cultural e moral, que corresponde à necessidade
de desenvolvimento das forças produtivas e dos interesses das classes dominantes
(DIAS,1996:77), entenderemos quais os motivos que levaram o acirramento da luta
entre essas classes e o governo de Goulart, que após o plebiscito de 1963
conseguiu a restauração do presidencialismo e uma crescente popularidade junto
aos setores de esquerda. Para os grupos dominantes o Estado já não estava mais
5
correspondendo aos seus interesses, pois ao defender as reformas de base6,
acreditavam que o então presidente dava espaço a futuras reivindicações populares
que poderiam romper com a hegemonia desses grupos no país e por isso era
necessário uma articulação política capaz de derrubar possíveis mobilizações de
cunho socialista.
Nesse contexto de intensos conflitos entre entidades sociais que
desejavam transformar a estrutura do país e grupos que se mobilizavam para
manter o status quo, o CPC realizou um trabalho de formação de consciência e de
crítica
social.
Para
isso
reformulou
o
conceito
de
cultura
popular
e
conseqüentemente a postura dos intelectuais diante dos problemas da nação. Na
concepção dos teóricos cepecistas como Carlos Estevam Martins e Ferreira Gullar,
a arte popular deveria se identificar com a vontade do povo, ou seja, uma arte
voltada para os interesses da população brasileira. Sendo assim essa arte teria que
se associar aos processos materiais e à realidade sócio-econômica nacional. Foi a
partir desse ideal artístico que a função da cultura passou a ser problematizada e
adaptada para fins de instrução política e mobilização social.
A arte popular revolucionária, defendida pelo grupo que redigiu o
Anteprojeto do Manifesto, passou a ser utilizada como um instrumento de
conscientização e de transformação. O teatro, a música e a poesia, por exemplo,
não modificaria diretamente a realidade brasileira, mas poderia agir nas pessoas em
forma de esclarecimento, e através dessa tomada de consciência elas seriam
capazes de realizar uma mobilização social para acabar com a distinção entre as
classes. O povo a ser alcançado era aquele que se encontrava oprimido pelo
sistema vigente e que poderia se unir coletivamente. Os camponeses, operários e
estudantes eram os mais visados no início das atividades cepecistas, a intenção de
criar um sentimento de pertencimento a um grupo tornou-se a principal meta desse
movimento. No período final de sua atuação, a equipe de redação do CPC ao fazer
um balanço de suas atividades relatou que teve grandes dificuldades de atuar junto
às massas e que as experiências mais bem-sucedidas foram com o público
estudantil (BARCELLOS,1994).
6
Dentre as reformas de base lançadas pelo presidente João Goulart (1961-1964), estavam contidas a
reforma agrária e a reforma universitária. Essas reformas teriam como objetivo provocar amplas
transformações na estrutura social do país, privilegiando as classes menos abastadas.
6
Para conquistar as massas populares os artistas e intelectuais
deveriam repensar sua prática e tomar conta de que aquele era o momento de
contribuir para a transformação da sociedade. Gullar destaca o papel desses
intelectuais nesse período:
O escritor, o cineasta, o pintor, o professor, o estudante, o profissional
liberal redescobrem-se como cidadãos diretamente responsáveis, como os
demais trabalhadores, pela sociedade que ajudam a construir diariamente,
e sobre cujo destino têm o direito e a obrigação de atuar. (1980:84).
A missão desses artistas e intelectuais que constituíram o CPC era
a militância via arte e para consolidação de tal projeto os meios de expressão teriam
que ser transformados em armas políticas. O trabalho consistia em instruir o povo
acerca dos problemas nacionais e também provocar uma condição de pertencimento
num grupo, ou seja, construir uma vontade coletiva.
A mensagem política foi priorizada, pois o importante era transformar
o público, o leitor e o ouvinte num sujeito politizado. As peças teatrais, por exemplo,
dramatizavam questões como o imperialismo norte-americano, a elitização do
ensino superior e o subdesenvolvimento, enfatizando um discurso revolucionário de
engajamento político e de ação social. Peças curtas de caráter dramático no estilo
de crítica política foram encenadas nas ruas e nos sindicatos, elas ficaram
conhecidas como “autos” e tinham como gênero o agitprop, era um teatro de
agitação e propaganda voltado para denunciar fatos políticos e mobilizar os
espectadores. Desses o mais famoso foi Auto dos 99% uma sátira sobre os
problemas da universidade brasileira que interagiu humor e crítica na intenção de
politizar o público estudantil sobre a necessidade de uma reforma no ensino
superior, essa peça foi apresentada pela primeira vez em Curitiba durante o II
Seminário Nacional de Reforma Universitária.
No que diz respeito à arte literária, a entidade cepecista publicou
Cadernos do Povo Brasileiro, coleção que reuniu diversos volumes com temáticas
sociais que objetivou principalmente informar sobre os grandes problemas nacionais.
Violão de Rua fez parte dessa obra, como livro de poesia procurou através da
linguagem poética conscientizar o povo sobre a necessidade da luta contra os
imperialismos,
sobretudo
o
norte-americano
e
também
pela
emancipação
7
econômica, bem como esclarecer a incompatibilidade entre o regime capitalista e a
liberdade ou construção do homem (FÉLIX,1963:146).
Os artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura
É possível perceber que apesar dos artistas e intelectuais do Centro
Popular de Cultura não pertencer necessariamente aos quadros da classe
explorada, eles optaram por ser povo, “destacamentos de seu exército no front
cultural” (MARTINS,1962:127). Essa postura vanguardista da entidade cepecista
recebeu inúmeras críticas durante a década de 1980 por estudiosos como Marilena
Chauí, José Arrabal e Heloisa Buarque de Holanda. Na concepção marxista-leninista
que vigorava no pensamento de esquerda da época, a vanguarda só poderia ser
assumida por uma entidade capaz de utilizar a denúncia como um instrumento de
força política e através dela promover entre as massas populares lucidez e tomada
de poder. Em sua obra Que Fazer?, Lênin destaca o papel da vanguarda na luta
revolucionária:
só o partido que organize campanhas de denúncias realmente dirigidas a
todo o povo poderá tornar-se, nos nossos dias, vanguarda das forças
revolucionárias ... e para ser vanguarda é necessário, precisamente, atrair
outras classes. (1978: 102/103).
Como vanguarda caberia ao CPC levar ao povo informações que
destruíssem a alienação em que viviam. Esses artistas e intelectuais acreditavam
que por terem tido acesso a conhecimentos que são oferecidos somente a
determinadas classes, eram socialmente privilegiados e por isso possuíam o dever
de oferecer tais conhecimentos à população (MARTINS, 1980:82). Por meio de
expressões artísticas eles denunciaram a estrutura política e econômica do país,
radicalizaram o discurso revolucionário para provocar a mobilização das massas e
conseqüentemente a construção de uma nova sociedade. Virgínia Fontes ao
analisar a ampliação do Estado e a coerção no Brasil identifica as agitações sociais
que marcaram o século XX:
A atuação voltada para a contestação precisava educar, alfabetizar,
produzir conhecimento por todos os meios, da ciência à literatura, arte,
música, teatro, cinema...uma das primeiras preocupações desses
partidos...era exatamente a difusão não apenas de suas próprias palavras
8
de ordem ou visões de mundo, mas também de uma cultura mais ampla
para as camadas populares. Assim, setores partidários de “agit-prop” –
agitação e propaganda – constituíram-se em formas de aprendizado social
e de acesso à literatura, ao debate internacional, às discussões filosóficas
ou econômicas. (2005:183/184).
Para a autora a luta contra o capitalismo deveria ocorrer em todos os
setores: econômico, político, social e cultural. Nesse sentido os grupos que
realizaram esse tipo de campanha tiveram um importante papel na luta pela
emancipação política. Era preciso convencer o povo da necessidade de uma ruptura
no sistema, talvez seja por isso que o CPC se aproximou do gênero agitprop pois
denunciar a estrutura vigente permitiria ao povo tomar lucidez da origem dos
problemas em que vivia e essa atitude seria o princípio do comprometimento do
mesmo com a transformação social. Através dessa visão, pode-se perceber que
Virgínia Fontes aproxima da concepção gramsciana que revela que uma “reforma
intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma
econômica” (GRAMSCI,2002:19). Por isso é importante ressaltar a função da
entidade cepecista em não promover somente a elevação intelectual das massas
mas também uma postura de crítica e de ação revolucionária.
Uma das questões que mais oferece divergências nos estudos
realizados sobre o Centro Popular de Cultura é a posição dos artistas e intelectuais
em relação às massas populares. Dois pontos devem ser considerados como
essenciais nesta análise. Primeiro a origem social dos militantes cepecistas e em
segundo a atuação contestadora e a luta por uma nova hegemonia.
Em seu manifesto os artistas e intelectuais cepecistas aparecem
como aqueles que devem falar diretamente e revolucionariamente ao povo
brasileiro, “ao povo como entidade coletiva que precisa escapar como um todo ao
cerco de miséria de que é vítima e que encontra na atuação política organizada,
unificada, seu único caminho de redenção” (MARTINS, 1962:132). A ligação entre
cepecistas e massa é o de transmissão e recepção de conhecimento. Os artistas e
intelectuais não são oriundos dessa massa, eles fazem parte de uma classe
economicamente privilegiada que teve acesso à instrução intelectual. A partir dessa
posição eles acreditavam que possuíam o dever de transmitir tal conhecimento
àqueles que não tiveram a mesma oportunidade e que o trabalho que realizavam era
de extrema importância ao curso da história.
9
Assim a postura política do CPC pode ser compreendida à luz da
teoria marxista-leninista sobre a organização das massas. Lênin afirmava que os
operários eram capazes de ter apenas consciência dos problemas econômicos que
atingiam a sua classe, sendo assim havia a necessidade de levar a consciência
política a eles, e essa só poderia ser dada a partir do exterior, ou seja, de fora da
esfera das relações entre operários e patrões (1978:92). Através dessas colocações,
podemos perceber uma clara separação entre teoria (desenvolvida pelos
intelectuais) e a prática (dos trabalhadores).
Essa posição burguesa dos intelectuais e artistas cepecistas
legitimava a responsabilidade de educar e conduzir as massas à emancipação
política e para Lênin esses destacamentos deveriam “ir a todas as classes da
população como teóricos, como propagandistas, como agitadores e como
organizadores” (1978:95). Sendo assim a ação e a atitude de romper com a
hegemonia predominante ficaria a cargo do povo oprimido e não dos intelectuais. No
Relatório do Centro Popular de Cultura aparece os objetivos da entidade no cenário
brasileiro:
A tomada de consciência, por parte de artistas e intelectuais, da
necessidade de se organizarem para atuar mais eficaz e
conseqüentemente na luta ideológica que se trava no seio da sociedade
brasileira levou-os a criar o Centro Popular de Cultura.Partindo dessa
tomada de consciência, o CPC se propõe, desde o seu nascimento, a levar
arte e cultura ao povo, lançando mão das formas de comunicação de
comprovada acessibilidade à grande massa, e aprofundar nos demais
níveis da arte e da cultura o conhecimento e a expressão da realidade
brasileira. Não é propósito do CPC popularizar a cultura vigente, mas sim,
através da arte e da informação, despertar a consciência política do povo.
(EQUIPE DE REDAÇÃO DO CPC, s/d: 441/442).
Apesar do posicionamento burguês da intelectualidade cepecista
sua função seria se aproximar do povo e conhecer suas aspirações, criando um
projeto capaz de atender as necessidades das diversas classes sociais. É
importante ressaltar que os artistas e intelectuais que se engajaram nesse projeto já
possuíam uma atuação política, é o caso por exemplo de Oduvaldo Vianna Filho que
além de dramaturgo era também um militante da esquerda e de Carlos Estevam
Martins que realizava um trabalho na área de pesquisa no ISEB7.
Funcionando
7
Instituto Superior de Estudos Brasileiros, vinculado ao Ministério da Educação, formado por
sociólogos, cientistas políticos, economistas e filósofos. Agência de pesquisas, financiadas por fundos
1
como um movimento que tinha como perspectiva a formação de uma vontade
coletiva nacional-popular, podemos deduzir que o CPC atuou como uma
organização partidária pois suas atividades de pedagogia política visavam educar as
massas para a tomada de poder.
Para Gramsci a vontade coletiva age “como consciência operosa da
necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo”
(2002:17). Portanto essa vontade seria a expressão das massas, ou seja, a
necessidade do povo que ao ser elevada à consciência poderia ser convertida em
ação transformadora. Para construir essa unidade coletiva, os artistas e intelectuais
da entidade cepecista utilizaram as expressões artísticas para politizar o povo e
proporcionar uma compreensão acerca de seu papel histórico e social. É importante
destacar que como grupo contra-hegemônico o CPC buscou não só elevar o nível
cultural da população brasileira mas também promover uma formação política, capaz
de criar uma nova concepção de mundo e romper com os abusos das classes
dominantes.
Durante a década de 1980 o Centro Popular de Cultura recebeu
várias críticas por parte da historiografia brasileira. Criticando a postura vanguardista
dos intelectuais e artistas dessa entidade Holanda destaca:
ao reivindicar para o intelectual um lugar ao lado do povo, não apenas se
faz paternalista, mas termina por escamotear as diferenças de classes,
homogeneizando conceitualmente uma multiplicidade de contradições e
interesses. A necessidade de uma laborioso esforço de adestramento à
sintaxe das massas deixa patente às diferenças de classe e de linguagem
que separam intelectual e povo. (1981: 19).
Para a autora essa posição dos integrantes do CPC em relação à
massa ocorreu de maneira paternalista, a linguagem que os separavam
demonstrava a superioridade intelectual e a legitimação de uma vanguarda.
Representante também dessa corrente historiográfica, Marilena Chauí (2000:61) ao
analisar a questão da cultura popular identifica na ação cepecista uma atitude
inconscientemente autoritária e uma certa concepção instrumentalizada da cultura e
do povo. A maioria das críticas foram dirigidas ao Anteprojeto do Manifesto,
documento este que não refletia a postura de todos os seus militantes, mas sim de
federais e profissionais progressistas, que oferecia cursos, publicava livros e desenvolvia teses. Foi
fechado em 1964 com o golpe militar.
1
um grupo coordenado pelo sociólogo e primeiro presidente da entidade Carlos
Estevam Martins. A postura de arte popular revolucionária defendida por esse grupo
provocou várias discussões no interior do movimento, principalmente por artistas
que desejavam um maior aprofundamento nas questões estéticas.
Num depoimento, Martins (1980:81) procurou se defender dessas
acusações que estavam surgindo sobre a atuação política do CPC. Ele relata que
cada geração opera dentro de um horizonte e de um tempo histórico e que era
preciso entender que o CPC estava atuando nesse limite. Portanto esse movimento
não deveria
ser questionado
pelas
posições
que
tomou em
relação a
instrumentalização da arte e sua pedagogia política. Naquele período houve uma
intensa agitação dos setores de esquerda que acreditavam viver um momento de
profundas reformas, essa efervescência provocou um engajamento da classe média
em questões políticas e sociais. Martins ao se posicionar contra aqueles que
definiram a ação cepecista de paternalista destaca o papel do CPC:
A participação popular era o objetivo, a finalidade, a razão de ser do CPC.
Evidentemente, nós levávamos ao público determinadas idéias e
informações. Se isso é ser paternalista, então todos os autores que li e que
abriram a minha cabeça também foram paternalistas comigo e eu muito lhes
agradeço. Qualquer pessoa que tenha alguma coisa a dizer aos outros não
faz mais do que a sua obrigação quando tenta se comunicar. Não vejo como
chamar isso de paternalismo.(1980:80)
As informações que os artistas e intelectuais cepecistas ofereciam
ao povo através das diversas expressões artísticas refletiam a difícil realidade
brasileira. Eles criaram peças teatrais que dramatizavam questões como o
imperialismo, economia nacional, universidade brasileira8. Para os artistas as
mensagens contidas nessas peças deveriam iluminar o público, tirando-o da
alienação e provocando uma revolta que o levaria a engajar-se numa luta coletiva
para modificar o sistema. A música, a literatura e a arte plástica também foram
didatizadas para alcançar o mesmo objetivo, a mensagem política foi priorizada e
temas como subdesenvolvimento, analfabetismo, concentração latifundiária se
tornaram alvos de ataques. A pretensão era denunciar e mobilizar, ou seja,
despertar as camadas populares e unir as mesmas em torno de um projeto de
8
Ver dramaturgia do Centro Popular de Cultura em PEIXOTO, Fernando. O melhor do teatro do CPC
da UNE. São Paulo: Global, 1989
1
transformação. A cultura popular difundida pela entidade cepecista deveria dar conta
de tais objetivos, pois na visão de Gullar:
A cultura popular é, em suma, a tomada de consciência da realidade
brasileira. Cultura popular é compreender que o problema do analfabetismo,
como o da deficiência de vagas nas Universidades, não está desligado da
condição de miséria do camponês, nem da dominação imperialista sobre a
economia do país...É compreender, em suma, que todos esses problemas
só encontrarão solução se realizarem profundas transformações na
estrutura sócio-econômica e, conseqüentemente, no sistema de poder.
Cultura popular é, portanto, antes de mais nada, consciência revolucionária.
(1980:84)
É possível perceber que quando Gullar define a cultura popular
como consciência revolucionária, ele aponta o papel dos artistas e intelectuais na
construção de uma nova sociedade. Para se construir uma nova ordem social era
necessário desmontar o homem velho e criar em seu lugar um novo tipo de ser
humano. Caberia então ao CPC oferecer sua criação artística e seu conhecimento
intelectual para realizar esse projeto. Se por um lado à instrução se dava de cima
para baixo, ou seja, da classe média para as camadas populares, a luta para
modificar a estrutura política, econômica e social do país aconteceria de baixo para
cima, eram as massas populares que por meio da tomada de consciência lutariam
para conquistar o poder.
Considerações Finais
O Centro Popular de Cultura durante os anos de 1961 a 1964
realizou um trabalho educativo, objetivando elevar o nível intelectual das massas
populares, e para isso utilizou os meios artísticos para alcançar o povo. Foi às ruas e
aos sindicatos, participou de comícios e de assembléias políticas, funcionou ora
como empresa, ora como colaboradora de entidades sociais. Desejou alcançar os
diversos grupos sociais que acreditava estarem vivendo subjugados ao sistema
vigente, mas só conseguiu atuar com bastante sucesso junto ao público estudantil.
Renovou a concepção de cultura nacional-popular e mesmo depois
de sua extinção, com o golpe civil-militar em 1964, questões como engajamento
político dos artistas e intelectuais e a função social da arte podem ser vistas em
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diversas lutas que se travaram contra o governo militar até o AI-59. Pode-se concluir
que o CPC deu um novo sentido ao que se entendia por arte engajada. Reflexões
sobre arte, política e cultura popular no período de atuação cepecista só poderão ser
revistas a partir de seu momento histórico, pois se tentarmos analisar esses temos
com noções fora desse tempo acabaríamos comprometendo a historiografia
brasileira com visões superficiais e anacrônicas.
Os cepecistas fizeram parte de um projeto contra-hegemônico, não
ao lado de um determinado segmento político-partidário mas como eles mesmos
afirmaram “ao lado do povo” (MARTINS,1962). Embora sendo de classes distintas,
acredito que ao realizar esse trabalho o movimento demonstrou o importante papel
de artistas e intelectuais no comprometimento com os problemas vivenciados pela
sociedade brasileira. Temáticas nacionais e realidade brasileira foram colocadas nas
letras das músicas e das poesias, nas encenações teatrais, na linguagem
cinematográfica e nas exposições artísticas. O Brasil se transformou na fonte
inspiradora da arte e aí a importância não só de compreender o trabalho desses
artistas e intelectuais no que se refere ao campo político, mas também de analisar
um momento de intensa inspiração da cultura brasileira.
Hoje mais do que nunca precisamos repensar a atuação dos
membros do Centro
Popular
de
Cultura. Num país repleto de tensões e de
diferenças sociais é necessário buscar meios para acabar com os abusos das
classes hegemônicas. Não digo repetir a prática dessa entidade, pois o contexto
atual exige novas ações, mas guiar-se pelo ideal que impulsionou aquela
experiência, o ideal de responsabilidade, de compromisso e de engajamento.
Oferecermos a esse projeto de transformação social o que possuímos de melhor,
para tentarmos modificar a estrutura que nos oprime e que nos distancia de um
sistema mais justo e igualitário.
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Ato Institucional número cinco que instalou um regime de repressão e censura aos meios de
comunicação, impedindo assim a liberdade de expressão e comunicação.
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O papel dos artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura