LEPRA: ENDEMIA DOS PAÍSES ECONOMICAMENTE
ATRASADOS
( C O N F E R Ê N C IA )
J. M. GOMES
Pergunta-se muita vez: "Por que razão os Estados Unidos não se tornaram país de lepra, como o Brasil?".
Como nós, na segunda metade do século XVIII receberam farto contingente de elementos africanos, muitos dos quais infectados, cabendo a
maior parcela aos Estados do Sul.
Por volta de 1775, já despontavam os primeiros casos de lepra.
Há um século, mais ou menos, imigrantes escandinavos reforçaram a
penetração da doença, e de tal modo, que, em 1874, a população leprosa
em 19 Estados andava em 315, concentrados, na maior parte, em Minnesota.
Hoje, Minnesota não tem lepra.
Teria recebido das autoridades sanitárias melhor combate específico?
Não. Há até a impressão que se extinguiu espontâneamente.
E' verdade que a região oferece condições excepcionalmente favoráveis.
A experiência já mostrou que o clima muito seco dá pouca margem à
malignidade da lepra, mas só esse fator não explica a erradicação de uma
doença que conta no seu passivo tantas causas desencadeantes.
Já nos Estados do Sul, na bacia meridional do Mississipi, clima diametralmente oposto, constituiram-se fócos de lepra.
A observação dêste fenômeno leva nosso espírito a conceder aos fatores
climáticos — calor e umidade — um papel que, de fato, eles não têm.
Mais ainda se reforçaria essa idéia, lendo algures André Siegfried, se
êle não tocasse, um pouco de resvalão, na causa fundamental dessa ocorrência.
"A atmosfera tropical e úmida, escreve êle, a coloração sombria do
Brasil não se encontram somente nas Antilhas, em Santiago de Cuba, mas
até na Luisiana e Geórgia.
"Nova Orleans, em sua cor verdadeira, só a pude compreender depois
de ter visitado os países Caraibas; é, no fundo, uma cidade "colonial" dos
trópicos, por várias razões, principalmente por seus problemas econômicos
e étnicos; o Sul algodoeiro dos Estados Unidos poderia ser classificado ao
par do Brasil subtropical".
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Voltando à lepra: os fócos da Califórnia, Flórida, Luisiana parecem
estacionários. No Texas houve ligeiro aumento.
Portanto, os fócos persistem, ainda que nem de leve se possa comparálos aos do Brasil.
Se o problema, nos Estados Unidos, tem sido atacado com abundância
de recursos, dentro das normas clássicas da profilaxia, e os fócos não se
apagaram é que há por detrás dêsses fenômenos um fator muito importante, que perdura, e vem sendo relegado a um plano secundário.
Segundo Caio Prado Junior, aos governos da Europa, ao tempo da
colonização, não ocorreu "povoar" a América. Apenas lhes interessava o
comércio, isto é, adquirir aquilo que lhes faltava e só nos trópicos era
abundante, mas deu-se nos Estados Unidos, muito mais acentuado nos
Estados do Norte, um acontecimento que teve como resultado alterar seu
ritmo de crescimento.
No século XVII foram dar às costas da Nova Inglaterra os refugiados do
"Mayflower", indivíduos de alto grau de civilização, naquele tempo, e que
abandonaram seu país por motivos religiosos, como reza a História, mas,
em verdade, porque se sentiam prejudicados com o rumo que tomava a
Grã-Bretanha, enveredando pela era industrial.
A necessidade cada vez maior de acumular matéria prima, foi
sistemàticamente transformando os campos de cultura em pastagens para
os rebanhos, cuja lã era utilizada na indústria florescente.
Foram êles os elementos predominantes na formação étnica dos Estados Unidos.
Abandonando sua terra, levaram êles consigo todos os cabedais de
uma fase mais avançada da civilização, e assim, iniciaram, em padrão superior, a vida no Novo Mundo.
A parte mais representativa da população timbrou em manter a mesma
pureza de princípios — frontespício de sua resolução heroica —, sem o
relaxamento de costumes, que foi a norma de outros colonizadores.
Por seus conhecimentos, suas aptidões, sua capacidade e energia, os
"quakers" deram um "sentido" alto à civilização, que iniciaram.
O Sul teve sorte diferente. Por circunstâncias peculiares aos trópicos,
falhou a pequena propriedade, e os colonizadores acharam mais fácil contornar a situação, explorando o braço escravo, mediante o qual imprimiram
à economia uma feição tipicamente colonial, com grandes latifúndios.
As consequências dêste estágio de civilização, agravado pela intolerância racial, até hoje se refletem na persistência dos fócos lepróticos da
zona do Golfo. Não se trata de raça. A lepra desconhece preferência racial.
Incide com mais intensidade nos povos virgens da infecção, e a êste
respeito, os africanos e seus descendentes gozam certa imunidade, de
modo que, se a lepra persiste nos Estados sulinos, deve-se mais ao nível de
civilização que desfrutam.
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Mesmo a sífilis, doença eminentemente social, tem incidência mais pesada no Sul do que no Norte.
E no Brasil, como se desenrolou a colonização?
Encravado na ilharga da Espanha, nação já consolidada, após a expulsão dos árabes, Portugal procurou ampliar suas fronteiras para alémmar, e, país pequeno, dia chegou em que seu destino foi maior do que o
vulto de sua população. Em meados do século XVI já não havia homens
bastantes para o amanho da terra, que jazia abandonada.
Por outro lado, a vida aventurosa dos descobridores não permitiu que a
nação enveredasse pelos rumos que se impunham aos povos dominadores.
Portugal marcava passo na rotina agro-pecuária. Atravessava uma fase de
desenvolvimento de um povo ainda mergulhado em plena Idade Média.
Ao colonizar o Brasil, valeu-se de todos os elementos disponíveis, inclusive degredados. Não fôra o braço escravo, com auxílio do qual desenvolveu a economia tropical e subtropical, ter-se-ia quebrado a unidade
dêste monólito, que assim, inteiriço, veio ter às nossas mãos.
E quais foram, do ponto de vista de higiene, as consequências dêste
tipo de colonização, que se limitava, outrora, a fornecer à Europa açúcar,
tabaco, mais tarde minérios, e hoje algodão e café?
Aquelas que se vêem em todos os países que se acham nas condições
de fornecedores de matérias primas, e que vamos encontrar no conhecido
mapa de Rogers, quando buscou traçar a densidade da lepra no mundo.
Nas zonas tropical e subtropical vemos essa grande faixa escura assinalando os maiores fócos mundiais.
Para explicá-la, invocou o calor e umidade, esquecido que a Noruega
foi grande fóco leprótico, mesmo sem calor, e a França e Inglaterra (foi ele
quem nos ensinou) melhorando as condições da existência, libertaram-se
da endemia.
E' certo que a luz solar, por seu teor ultra-violeta e na ausência da
radiação infra-vermelha, tem a faculdade de dispersar os bacilos de Hansen e ampliar as lesões, mas sem o concurso de outros fatôres, é difícil que
a lepra chegue à condição de endemia; e esses fatôres acham-se condensados em duas palavras — miséria e ignorância.
Orestes Diniz e Afrânio R. da Cunha, continuando estudos sôbre a
situação do problema da lepra no Triângulo Mineiro, trazem as seguintes
relações, no que tange à posição social e econômica dos doentes:
Má ....................................................................... 82,6%
Sofrível ................................................................ 11,3%
Boa ...................................................................... 5,9%
Educação:
Boa ...................................................................... 14,2%
Má ....................................................................... 85,7%
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Habitação:
Boa ....................................................................... 14,6%
Má ........................................................................ 85,3%
Os fatôres — más condições de vida, má educação — aparecem aqui em
grande evidência, indicando claramente por onde se deve lutar na tentativa
de suprimir dentro de breves decênios, a grave e deprimente endemia
leprótica.
Quando se estuda a marcha da lepra através das idades, vê-se que as
idéias aqui apresentadas já eram conhecidas de muito tempo.
O Royal College of Physicians, em 1867, afirmava categoricamente: "A
experiência do passado parece afirmar, de modo inesquecível, que foi a
melhoria da dieta um dos principais fatôres do gradual declínio da lepra e
eventual cessação em todos os pontos da Europa".
Em 1893, uma Comissão designada para estudar a lepra, assim se
manifestou: "Na lepra, como na tuberculose é necessária uma especial disposição individual para adquirir a doença".
"Parecem ser certos fatôres ligados ao clima, à economia social, à
higiene que estabelecem a natureza endêmica desta afecção. Uma doença
pode sòmente ser endêmica em uma área onde tôdas as condições existem
para conduzir à sua aquisição".
"A lepra é uma doença infecciosa, mas, além do contágio vivo, é necessária certa disposição individual para produzir a doença".
"Portanto, ela pode sòmente ser endêmica em áreas onde, ao lado do
virus, êstes fatôres também existem e responsabilizam-se pela especial disposição do indivíduo".
Estes conhecimentos e suas conclusões são, por conseguinte, muito
antigos. Se não foram colocados em primeiro plano, é porque ao homem
não interessa o homem: interessa o, que êle produz, pouco importando as
condições em que êle o realiza.
As conclusões da Comissão de Lepra, em 1893, postas em prática, viriam talvez dar consciência ao povo e levantar problemas nada simpáticos
às classes dominantes. Melhor seria deixar as coisas como estavam, e pedir
simplesmente aos médicos que fornecessem planos de profilaxia e, como
tal, apresentaram eles em todo orbe, planos de alcance médico, com
segregação dos casos contagiantes, revolvimento dos fócos domésticos, etc.
A face social do problema, a mais importante, ficaria para as discussões
acadêmicas.
Entretanto, com um pouco de boa vontade e patriotismo, não é difícil
atacar esse problema. Basta elevar os salários a um nível compatível com
as dificuldades da vida e educar o povo.
Sem os recursos necessários, não é possível residência higiênica e sem
o conhecimento, embora rudimentar, da ciência da nutrição, o homem não,
se afaz a uma alimentação sadia.
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A rotina pesa muito na vida dos povos: E' preciso dar-lhe combate pela
educação. Grande número de vezes o homem não come acertadamente
porque não sabe o que lhe convém.
A influência da alimentação equilibrada é tão grande que determina,
como diz Dante Costa, "uma antropologia de ricos e pobres".
"As crianças das escolas públicas do Rio e de São Paulo, oriundas da
gente pobre, escreve ele, são, em média, 9 centímetros mais baixas e
Pesam 8 quilos menos que a média das crianças dos colégios particulares
cariocas e paulistas, frequentados por meninos e meninas da melhor situação econômica".
O brasileiro é um hiponutrido. Hiponutrido por falta de recursos e de
conhecimentos.
Êle apresenta-se inerme diante das infecções, e marcha para a desagregação física e mental com uma fatalidade de olhos vendados.
Debalde a Conferência Mundial da Saúde, realizada em Nova York, em
1945, põe como um princípio que "a posse de um melhor estado de saúde
constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, quaisquer
que sejam sua raça, religião, opiniões políticas, sua condição econômica e
social".
Os sanitaristas presentes, com todo o pêso oficial de 61 nações, pensam e agem dêsse jeito; os governos pensam, mas agem de modo diverso.
Raramente se vê, como em Hawaii, combater a lepra abrindo estradas.
Porque a abertura de estradas valorizou as terras, os latifúndios foram
divididos, o trabalho tomou caráter diferente, com a pequena propriedade,
houve melhor lucro e as residências se higienizaram, e a lepra, que por
mais de 70 anos apresentava incidência de 4 a 5:1000, caiu nos últimos
anos a 1,5:1000.
Não discuto as razões que ditaram essa solução do problema agrário; o
fato é que a higiene se beneficiou.
Quando se olha do alto para uma cidade, como São Paulo, fica-se
empolgado pelo frenesi que palpita nas centenas e centenas de fábricas,
que forçam nossa entrada no ciclo de uma civilização superior, e mal nos
damos conta que numa grande urbe a vida é uma colcha de retalhos.
E, ai de nós!, encontramo-nos no peristilo de uma fase superior de
civilização, sem que grande parte dos industriais se aperceba que o bom
rendimento depende da saúde e bem-estar dos trabalhadores. E o que vemos é encafuarem-se êles em porões imundos, na maior promiscuidade,
sem noção do que seja banho, procurando, assim, fazer face às
dificuldades da vida.
De tais ambientes nunca a lepra desertará.
Não é preciso insistir nesse ponto.
Todo o leprólogo o conhece de sobra, mas o problema é superior às
suas possibilidades.
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Na batalha cotidiana das campanhas de profilaxia o leprólogo realiza o
que está ao seu alcance: isola os casos infectantes, examina os contactos,
trata os doentes e já pensa na imunização dos fócos domésticos.
O resto não lhe cabe. Apenas, é de lastimar que os Governos acompanhem, estáticos, esta luta ingrata, deixando que se perpetue tempo a fora
a marcha hemiplégica da profilaxia: de um lado, os técnicos, dando tudo o
que é possível; de outro lado, a máquina estatal arrastadiça e pêrra.
E, dêste modo, o problema da lepra continua no cartaz, porque o fator
mais importante de sua solução — o fator econômico-social — longe está de
ser resolvido, e temos a impressão que mais se agrava.
Numa palestra subordinada ao título — "Verdadeiros rumos da profilaxia anti-leprótica" — procurou J. B. Risi investigar as razões porque
marcamos passo na erradição da lepra e, em abono do que afirma, traz o
coeficiente de sua prevalência nos anos de 1946 e 1950, em várias regiões do
país.
QUADRO
Se volvermos às marcas de 1940, comparando-as com as de 1946 e
1950, veremos que não houve estacionamento: houve progressão.
A lepra progride no Brasil, a despeito de tudo que se tem feito para sua
debelação.
Assiste, portanto, muita razão a Risi quando, em corajosa auto-crítica,
exclama: "Não fazemos coisa diferente de tentar combater as ervas nocivas,
podando-as ao redor do solo, sem revolver a terra, em busca das, raizes, que
se encontram na profundidade".
Apenas, acrescentamos nós, as raizes são mais profundas do que se
imagina e localizadas em regiões inacessíveis à ação do sanitarista. A solução do problema, nas condições atuais, depende da estrita colaboração de
todos os poderes do Estado com os elementos ativos da sociedade.
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