Revista Observatório da Diversidade Cultural
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CIDADE
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A cidade e os efeitos da crise do espaço público:
Repensando os espaços da diversidade
Marina de Melo Marinho Brochado1
Resumo
“É preciso fazer das nossas cidades algo politicamente criativo e cultural e socialmente
sustentável”. Esta é a conclusão de Carlos Fortuna no texto “culturas urbanas e espaços
públicos: sobre as cidades e a emergência de um novo paradigma sociológico”. Para refletir
sobre a necessidade desse modelo proposto por Fortuna e avaliar em que medida nossa
cidade aproxima-se ou afasta-se dele, este artigo trata de algumas questões acerca da gestão e
intervenção no espaço público, em especial no Viaduto Santa Tereza, realizadas pela prefeitura
de Belo Horizonte e pelos movimentos sociais. Tendo em conta as considerações de Fortuna
sobre a “cidade e a não-cidade”, o “dentro e fora” criados a partir das intervenções no espaço,
relacionam-se os efeitos dessas intervenções e a violência urbana e analisa-se o modo como
as comunicações digitais dos movimentos sociais colocam o assunto - a ocupação do espaço na pauta pública e os resultados disso.
Palavras-Chave: gestão do espaço público, direito à cidade, direito à diferença
Abstract
“We need to make our cities something politically creative, culturally and socially sustainable”.
This is the conclusion of Carlos Fortuna in his essay “Urban cultures and public spaces: about
the cities and the emergence of a new sociological paradigm.” To reflect on this proposal and
evaluate how do we approach or move away from that, this read will bring some questions
about the management and intervention in public space, particularly in the Viaduct “Santa
Tereza”, held by the municipality of Belo Horizonte and the social movements. Considering
the terms “city and non-city,” the “in and out” created from the interventions in space, it will
make a relationship between the effects of these interventions and urban violence. Finally, it
will review how digital communications of social movements put it (space occupation) on the
public agenda and the results of that.
Keywords: management of public space, right to the city, right to difference
1 Graduada em Comunicação Social, pela PUC Minas e pós Graduada em Gestão Pública pela Fundação João Pinheiro. Esse
texto foi produzido, inicialmente, como trabalho final de uma disciplina, feita como isolada pela autora, no mestrado da
UFMG: Comunicação e Espaço Público.
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O VIADUTO – QUE CONJUGA A CIDADE COM A NÃO-CIDADE
Ei você aí, me enxergue por favor!
Agora que estou sofrendo você me abandona? Agora que me cortam, me remodelam, me limpam...
Você finge que não me vê?
Sou pedaço da cidade! Artéria pulsante que impulsiona...
Carros, bicicletas, pessoas, criatividade, obscenidade... Eh o Duelo, eh a praia, eh o fora, eh reunião, eh samba e explosão! Também tem os pixador que sobe em marquise mermão
Tem os que ficam,
Os que moram, os que trabalham, os que apenas passam...
To precisando de atenção! Parem de esperar! Parem de me olhar! Venham me ocupar!
O viaduto precisa da gente pra respirar!
#viadutoocupado
(Nath Orleans, 2014)
O Viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte, que liga os bairros Floresta e Santa Tereza ao
centro da cidade, foi construído em 1929. Na década de 1990, foi tombado como patrimônio
cultural do município. E, para muito além da engenharia, o viaduto foi apropriado por muitos
moradores como palco de importantes manifestações culturais, políticas e democráticas,
ganhando referência de lugar de encontro das diferenças.
Uma das manifestações culturais que mais atraiu pessoas para região foi o “Duelo de MCs”,
organizado pelo coletivo Família de Rua. Em uma entrevista para jornal “O Tempo”2, um dos
membros da Família de Rua, conhecido como “Monge”, conta que, no final de 2006, o grupo
começou a ocupar a área debaixo do viaduto. Ele relata que pararam ali, pela primeira vez, para
se esconderem da chuva. E, apesar da falta de iluminação e limpeza, acharam que o local era
interessante para continuar o Duelo de MC’s e ali seguiram realizando os Duelos por seis anos.
Em junho de 2010, no final da avenida Arãao Reis, bem próximo ao viaduto, foi inaugurada
uma casa de shows com propostas alternativas, “Nelson Bordelo”, que também favoreceu a
cena cultural da região. A casa se diferenciava pela decoração, opções gastronômicas e ofertas
musicais, dando espaço para bandas autorais da cidade.
O Nelson Bordello surge como um QG desses novos agitadores da vida noturna no
centro de Belo Horizonte, contribuindo para a propagação da cultura na região.
(KENNEDY, 2010).
2 http://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/magazine/o-sil%C3%AAncio-no-viaduto-do-rap-1.670316
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Também em 2010, no mês de outubro, o grupo de teatro Espanca inaugura sua sede naquela
região. Um grupo que se encontrou em 2004 e, desde então, se apresentam-se na cidade e se
coloca atento e aberto às coisas da cidade.
O espanca! é um grupo de pessoas a procura de uma arte que seja reflexo
do tempo em que vivemos. Até hoje, estivemos essencialmente envolvidos
em processos de criação de espetáculos de teatro. Estes espetáculos nos
ajudaram, e ajudam, a refletir sobre nossa condição de estar no mundo.
(ESPANCA, s/d)
Pra completar, em 2012, a região começa a receber apresentações do grupo Samba da Meia
Noite, manifestação cultural que celebra o candomblé e a umbanda. “É uma festa, que antes
só ocorria nos terreiros e, agora, ganhou as ruas. Democratiza o acesso a um bem patrimonial,
que é a cultura do samba de roda”, relatou a sambadeira Erika Rocha em entrevista à jornalista
Ana Clara Brant ao jornal (BRANT, 2014).
Ou seja, a região tinha uma movimentação de manifestações culturais diversificadas. Em 2013,
no período das grandes manifestações que ocorreram em junho (que inicialmente surgiram
para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público), a área situada embaixo do
viaduto, onde antes aconteciam os duelos, foi palco das assembleias horizontais populares,
durante as quais os cidadãos se encontravam para discutir as pautas das manifestações e
planejar algumas atuações. Dali saíram alguns grupos de trabalhos que atuavam em questões
de interesse coletivo, principalmente, com foco local (no município).
Ali muitos desejos se encontravam e, com criatividade, construía-se um jeito de estar na cidade.
Ali parecia possível fazer o que Carlos Fortuna chama de “ler sociologicamente a cidade do
avesso” e “reinventar o sentido do acto e do espaço público, participado e democrático” (2002,
p.129). É um lugar onde as pessoas insistem em conjugar a “cidade” e a “não cidade” e ousam
vivê-la, ou seja, é um local no centro da cidade onde o encontro com a periferia se faz possível.
“com o cultural turn dos anos 80 (Chaney, 1994), o velho grito de Lefebvre
sobre o “direito à cidade” está hoje assegurado. Mas é incompleto e é
preciso dar-lhe consistência e juntar-lhe o direito à diferença. É aceitar
que, em democracia, a cidade concede liberdade. Mas que é preciso juntarlhe criatividade. É defender que a política está presente na cidade, mas
que é preciso reinventá-la para a aproximar da velha e abstracta polis, da
participação cívica e da garantia dos direitos de cidadania. É admitir que,
além da sua forma, da sua estética, do seu uso e função, a arquitectura
deve também re-imaginar-se na sua relação com o espaço, o tempo, os
sentidos e as pulsões da cidade. É indispensável reconhecer que nem o
espaço é monolítico nem o tempo absoluto e linear. Por estas razões, ler
sociologicamente a cidade de “baixo para cima” e “das margens para o
centro” é, numa palavra, reinventar o sentido do acto e do espaço público,
participado e democrático. É imaginar a conjugação da cidade com a “não”cidade e ousar vivê-la. (FORTUNA, 2002 p.129)
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Mas, infelizmente, o poder público parece não conseguir considerar “os sentimentos e pulsões
da cidade”, e age de forma horizontal e burocrática, buscando invisibilizar o que ganhou uma
organização e força para acontecer, mas “ofende a frágil sensibilidade do olhar burguês” (Engel
apud Fortuna, 2002, p. 126).
Em 2013, por uma dificuldade em conseguir apoio da prefeitura e fazer um acordo de ação
conjunta, que cuide dos desafios e contradições naturais do espaço urbano, o Duelo de MCs
suspendeu as apresentações, como relatado em matéria do jornal O Tempo.
“O problema real é o descaso das instâncias municipal e estadual. Foram
seis anos de muita dificuldade”, desabafa Monge. Falta de iluminação, de
segurança preventiva, de lixeiras e de banheiros químicos são alguns dos
itens enumerados por ele. “Apesar de todo o diálogo estabelecido, há uma
dificuldade muito grande do poder público em dar conta desse contexto,
da juventude ocupando o espaço público. Quando a gente foi percebendo
que os problemas iam se afunilando mais, avisamos a polícia, por exemplo.
Mas não havia condições para eles fazerem o policiamento de forma correta,
tanto em se estruturar contingencialmente, quanto de material. Ficamos
reféns disso”. (O SILÊNCIO..., 2013)
O proprietário do Nelson Bordelo também encontrou dificuldade em regularizar o uso do espaço
junto à prefeitura municipal, o que ocasionou o fechamento da casa em 2012, como relatado
em entrevista concedida à Júlia Boynard, da revista VEJA (2012). Com ajuda de artistas que se
apresentavam no ambiente, foi realizada uma festa para reabertura do local, o que, no entanto,
não foi suficiente para permanência do bar que, até o fim de 2014, encontrava-se fechado.
No final de 2013, o viaduto foi interditado para uma reforma, sem nenhum diálogo com os
movimentos sociais e grupos culturais da região. A prefeitura, junto ao governo do Estado, tem
uma proposta de criar um “corredor cultural”, que pretende associar a região do baixo centro
de Belo Horizonte (onde o viaduto está localizado) à Praça da Liberdade. Do que já se conhece
de equipamentos culturais da Praça da Liberdade, vê-se que a proposta é bastante diferenciada
do que se tem no baixo-centro. Em geral, são espaços geridos por grandes empresas, com
divulgação de trabalhos de artistas renomados.
Além disso, o público que frequenta esses locais (do entorno da Praça da Liberdade) são da classe
média e alta. Portanto, entende-se que a proposta do “corredor cultural” é de descaracterizar
o espaço atual e torná-lo elitista, deixando de ser referência para o público que ali se encontra
e aumentando, assim, as separações dos espaços da cidade.
Os grupos e membros da sociedade civil que faziam uso do espaço se organizaram e em
fevereiro de 2014 ocuparam a obra. Alguns levaram barracas e dormiram no local, outros
cuidavam das programações culturais para movimentar o local e de chamar atenção para a
falta de diálogo e transparência do poder público, além de uma organização para arrecadar
mantimentos e produtos para estadia das pessoas. Tudo isso era comunicado por meio das
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mídias sociais. Criou-se nessa ocasião o perfil do “viaduto ocupado” no facebook. Depois de
oito dias de ocupação contínua, quando já havia dado visibilidade à intervenção e iniciado uma
conversa com a prefeitura, que se comprometeu a definir junto ao movimento uma comissão
de acompanhamento da obra, foi acordada a desocupação do espaço.
Apenas em agosto de 2014 aconteceu a primeira reunião da comissão. A prefeitura tomou
providências em formalizar e receber a comissão só depois de uma audiência pública convocada
em maio, durante a qual a sociedade civil denunciou irregularidade da obra que se iniciou sem
aprovação do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA), já que o viaduto
é um patrimônio público, e exigiu que se cumprissem os encontros com a comissão. Ainda
assim, a prefeitura optou por abrir um chamamento público para criar a comissão, contrariando
acordo feito anteriormente, quando já se havia definido a comissão3.
Os relatos feitos em reuniões e postados na página do viaduto ocupado por representantes
da comissão dizem de uma falta de consideração, diálogo e transparência com os mesmos:
houve recusa à discussão de pautas como o uso de tinta anti-pixo na parte interna do viaduto
- membros da comissão defendem o grafite como arte de rua e acreditam na importância
da cidade dar espaço a esse tipo de manifestação -; conversas muito técnicas e focadas no
projeto arquitetônico e de engenharia, desconsiderando-se, antes, o uso do espaço e não
se propondo a dialogar sobre a gestão do espaço pós-obra. Além disso, os prazos de entrega
da obra não eram bem esclarecidos. Alguns projetos como o Duelo Nacional e o encontro de
fotografia “Erro 99” foram planejados para serem realizados no local, considerando uma data
informada pela prefeitura em reunião da comissão. Mas a obra não havia sido concluída nas
datas dos eventos (ocorridos em 22 e 23 de novembro de 2014) e, mesmo parecendo faltar
pouco, a prefeitura alegou que a obra só poderia ser entregue em fevereiro de 2015. Por meio
da pressão dos movimentos sociais, a prefeitura liberou o espaço para a realização dos dois
eventos planejados e, na sequência, voltou a interditar o espaço para dar continuidade à obra.
Alguns membros da comissão consideravam as reuniões pouco efetivas para pensar o uso do
espaço e acreditavam que isso se dará na rua, com outros movimentos e não com prefeitura.
Esse é um histórico das atuações realizadas nesse espaço público no centro de Belo Horizonte e
as teorias de Carlos Fortuna nos ajudam a analisar para onde algumas intervenções sinalizam e
de que forma é possível resistir, ousando viver o que é público com diversidade de públicos.
A INTERVENÇÃO DO PODER PÚBLICO E A RETRAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO
A intervenção do poder público, sem diálogo, num espaço que estava sendo claramente
apropriado de forma espontânea por parte da população e com intenções de uma organização
3 Detalhes sobre essa audiência estão registrados em post da página do facebook do Viaduto Ocupado de 30 julho de 2014.
www.facebook.com/viadutoocupado
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política, interfere não só no espaço físico, mas no jeito de estar na cidade. A atuação do poder
público parece caminhar para o que Fortuna chama de “crise” do espaço público das cidades.
Ele sinaliza uma histórica disputa entre a cidade e a “não-cidade” que se refere, por sua vez, a
espaços de exclusão e/ou invisibilidade.
“O contraponto simbólico da “morte” do campo é a “morte” também simbólica de uma parte
da cidade – a dos mais frágeis, pobres e incultos – às mãos da outra parte – a dos mais ricos
e poderosos” (Fortuna, 2002 pág. 126). E, para compreender a “crise do espaço público” que
essas separações geram, o autor faz uma análise dos contornos de participação social, cívica e
cultural em Portugal pós-1974. Para isso, classifica alguns períodos em “ciclos de governação
política das cidades”, que são organizados em função da vitalidade da sociedade civil e da
capacidade de regulação estatal” (Fortuna 2002, p. 130).
Ele classificou três ciclos: o primeiro ciclo de governação das políticas da cidade é da
espontaneidade da sociedade civil. “Participar era a palavra de ordem mais mobilizadora, que
continha uma carga simbólica muito particular: a de estar na rua, em grupo, soltando gestos
e opiniões sobre a vida pública” (Fortuna 2012, p.30); Ou seja, um cenário muito próximo ao
que estava sendo vivenciado no viaduto Santa Tereza até 2014, antes do local ser interditado
para obras.
O segundo ciclo de governação é o da institucionalização da vida política. Nesse ciclo, observouse em Portugal que os termos da discussão política foram sendo canalizados para o domínio
do desenvolvimento socioeconômico e de infraestruturação do país e, assim, a esfera cultural
ficava retida a um segundo plano. Aqui, não diferente, o que o poder público propõe, a partir
da intervenção no viaduto, não passa pelo social ou cultural: “o viaduto será transformado
em circuito de esportes radicais, terá a estrutura e o revestimento original recuperados.”
(MOVIMENTO..., 2014).
O terceiro ciclo de governação é o da europeização. Fortuna chama atenção para os efeitos da
globalização, que acabam por provocar uma massificação e estetização dos consumos e a essa
mesma lógica de mercado são submetidos os planejamentos urbanos. É importante observar
que a proposta da PBH de criar um circuito cultural parece caminhar nesse sentido: excluir o
que se deseja invisibilizar e colocar algo que possa despertar desejo de consumo.
A participação pública dos cidadãos, grupos e movimentos sociais surge
condicionada e, perante os efeitos sensíveis da globalização da economia,
da cultura e da comunicação, o espaço público das cidades surge pautado
pelos desígnios da massificação e da estetização dos consumos, do mesmo
modo que o planejamento urbano e mesmo numerosas imagens identitárias
e promocionais das cidades passam a sujeitar-se à lógica do mercado.
(FORTUNA, 2002, p. 131)
Quando o que é público é enquadrado na lógica de mercado, quem não tem capital fica
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cada vez mais sem espaço na cidade, reforçando os fragmentos do tecido social e cultural.
Portanto, Fortuna aponta que a cidade vista de “cima pra baixo” promove uma organização
também ao longo de um eixo horizontal “do centro e das margens”. E, no meio dessa disputa,
o que o movimento “viaduto ocupado” faz é se colocar conscientemente, resistente “ao lado”
ou “fora” do centro. E nesse caso, Fortuna apresenta o conceito de bell hooks, que diz que
“estar à margem é ocupar um lugar de criatividade a partir do qual se constrói um outro
sentido do mundo” (Hokks apud Fortuna, 2002, p.133). Isso é feito se opondo à estética do
desaparecimento e dando espaço às diferenças.
Este “outro sentido do mundo” revela, na verdade, uma cidadania disputada,
de resistência, oposta à “estética do desaparecimento” de que fala Paul Virilio
(1989). Mais do que um jogo de dualidades, este é um jogo de recombinações
de referências, estilos de vida e práticas sociais que conduz à experiência de
incoerência e diversidade culturais como condição urbana e, logo também,
como imperativo imposto a uma renovada análise sociológica. (FORTUNA,
2002, p.133)
Portanto, o que está colocado, tanto nas teorias e experiências apresentados por Fortuna,
quanto na dinâmica da cidade de Belo Horizonte, são as fragmentações históricas e que
parecem evoluir, dentro da cidade (da cidade com a “não cidade”). Diante disso, o desafio
que se tem colocado e que é alvo do movimento “viaduto ocupado” é de conjugar/unir esses
espaços e sujeitos segregados, de insistir no encontro das diferenças e na potencialidade das
construções que esse encontro pode promover.
A CIDADE E A CRIMINALIDADE
“O direito é primeiro e o crime lhe é relativo antes de sê-lo criminoso”.
Lacan
Até então, foi apresentado o desejo de um grupo de Belo Horizonte em manter os locais de
encontro na cidade e a forma como a prefeitura tem feito a gestão do espaço – que busca
reforçar as separações entre os espaços e as pessoas. Aqui serão analisados alguns impactos
desse tipo de gestão, como a sua relação com a criminalidade. Para tanto, iremos analisar
alguns registros feitos pela professora de psicanálise Andrea Guerra que, a partir da escuta de
jovens que apresentam algum envolvimento com a criminalidade4, desenvolve seus estudos.
Um dos seus textos tem como título “Defunto?! Defunto ele era antes de entrar pra guerra”,
frase de um jovem envolvido com o micro tráfico da comunidade onde mora. Nesse texto,
Guerra, Aranha e Rocha (2014) discorrem sobre o contexto de homicídios no Brasil. No decorrer
do texto, tratam da tentativa desses jovens em se inscrever na vida política, mas verifica-se
4 Refere-se a adolescentes que realizaram algum assalto, têm envolvimento com o tráfico e/ou cometeram homicídio.
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que essa consiste na exclusão e no abandono.
Segundo Agamben (2002, p.9), o homo sacer (homem sagrado) apresentaria
a figura originária através da qual se constitui a dimensão política. A
sacralidade da vida, que hoje se faria valer contra o poder soberano como
um direito humano, por exemplo, exprime, ao contrário e em sua origem, a
sujeição da vida a um poder de morte; uma relação, portanto, de abandono.
(apud GUERRA, 2014)
Dessa forma, vemos que a tentativa de invisibilizar parte da sociedade tem se concretizado. E
como resposta à invisibilidade, tudo vale para se tentar existir, até matar e morrer. As autoras
trazem, ainda na introdução do texto, a seguinte conclusão: “a epidemia homicida que assola
os jovens brasileiros exige uma tomada de posição ativa por parte da população.” (GUERRA,
et al, 2014).
Em outro texto, Guerra (2011) observa que o capital é o “mestre contemporâneo”. Os adolescentes
dizem com clareza como o dinheiro é determinante, inclusive, para se fazer (in)justiça. E assim,
eles entendem o que está colocado: para estar na cidade é preciso dinheiro, de outra forma,
ficarão apenas na não cidade e ainda apanhando, literalmente, por não ter dinheiro.
M: Também a diferença que tem da gente que mora na favela e os de classe
média é, tipo assim, por causa dos rico. Rico, tipo assim, vai preso ali agora
armado, fumando, nem algemado eles não é não. Nós não, se nois for preso
com um baseadinho...
Co: Ele entra ali, sai pela outra porta e vai embora. Tem dinheiro né? Pega um
de nós com um fino de bagulho e uma bala de calibre 22. Eles vão querer o
revólver pra começar. Aí vai bater muito...
M: O rico não.
A: Então tem essa diferença?
Co: É lógico que tem. Brasil, quem tem dinheiro vive, quem não tem corre. Se
pegar e você não tem dinheiro, aí é couro. (sic) (GUERRA, 2011 p.1)
Considerando-se que a proposta de “europeização” diz de um modelo que busca adequar-se à
lógica do capital, diante disso, o desejo das pessoas em relação aos espaços e o envolvimento
delas na construção dos mesmos acabam não tendo lugar. Diminuir as possibilidades de uma
construção coletiva interfere nas possibilidades de construção das identidades e relações dos
sujeitos. Principalmente na adolescência, se o desejo se resume ao consumo e/ou não ganha
possibilidade de construção nas várias relações (na relação com o pai, na relação sexual e,
como estamos vendo, na relação com a cidade), corre-se o risco do crime apresentar-se como
única possibilidade de relação.
No momento em que há o estancamento pelo Outro social da dialética que
permitiria a extração de uma identificação resolutiva na adolescência, podese formular como resposta a construção de objeto criminogênico, assinalado
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um impasse sem superação no confronto com a angústia de castração na
puberdade, somado ao fracasso da função paterna em transmitir forma de
gozo e orientação ao desejo. Assim, fixa-se fórmula e lugar para o sujeito.
(Guerra, 2012 p.1)
Ou seja, vimos que a construção de um sentido coletivo é algo disputado e, no caso de Belo
Horizonte, o poder público esforça-se na tentativa de “europeização” dos espaços, reforçando
a exclusão de alguns. É interessante notar aqui que o discurso dos adolescentes envolvidos
com a criminalidade tem relação com a forma de fazer do poder público, de quem entende
que o espaço público é para alguns, para os que têm condições de consumi-lo. E, nessa busca,
alguns que não têm isso dado arriscam-se. A sociedade reclama da violência, mas parece não
ter consciência do que a promove. Portanto, não é possível tratar a violência sem repensar a
cidade e o que esta oferece de possibilidades de construção de sentido para a vida.
A COMUNICAÇÃO E AS POSSIBILIDADES DE RESSIGNIFICAÇÃO DO ESPAÇO
Na tentativa de ressignificar o espaço público, Fortuna defende não ser possível limitar o
entendimento da vida urbana no tempo e no espaço. Para buscar essa compreensão que
considere a plasticidade da sociedade, ele analisa as “zonas de intermediação cultural”, que
consideram a complexidade dos contatos que se confluem e se contaminam mutuamente
no espaço urbano. Ele identifica a existência de quatro zonas de intermediação urbanas:
Terceiras culturas; Relações sociais de estranhamento e tolerância; Domesticidade e práticas
socioculturais; Espaços sociais de proximidade relacional. Aqui ficaremos apenas com a
primeira zona de intermediação, referente às terceiras culturas, que permite refletir sobre as
possibilidades oferecidas pelas novas mídias para repensar esses lugares.
Fortuna classifica as terceiras culturas como sendo o “território transnacional de negociação
de problemas e conflitos decorrentes do contacto intercultural” (Fortuna, 2002 p. 135 apud
Featherstone, 1997). Ele aponta que os protagonistas das terceiras culturas atuam na retradução
e acomodação dos sentidos e significados da cultura local e global, podendo agregar várias
referências. Podemos dizer que no território transnacional amplia-se a disputa de sentidos, ao
mesmo tempo em que se estendem as possibilidades de interferências, dando assim um lugar
para as diferenças. Essas trocas podem se refletir no relacionamento entre as pessoas e os
lugares. Para isso, Fortuna chama atenção para a necessidade do uso de linguagens e discursos
que convoquem uma atuação solidarista que considere a diversidade cultural e a alteridade.
Ao potenciar a aproximação entre entidades distantes e opostas, as terceiras
culturas e o possível ethos em emergência podem converter-se em agentes da
revitalização dos espaços e dos encontros públicos das cidades. O requisito de
base para que a hipótese frutifique é que o encontro de posições, discursos e
narrativas dissonantes accione códigos alternativos e linguagens solidaristas
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que capacitem os sujeitos para o diálogo com a diversidade cultural e a
alteridade. (FORTUNA, 2002 p.135)
Esse parece ser o esforço das comunicações realizadas pelo movimento “viaduto ocupado”, que
se depara com os que querem o espaço para realizar o duelo, outros que buscam condições de
praticar esportes radicais, os que têm a região como abrigo (pessoas com trajetória de rua), os
que pretendem manter a referência do local como espaço para articulações políticas e, ainda,
os que pretendem colocar o espaço num circuito cultural. O movimento não tem um líder e
não se escolhem os membros, estes se encontram no desejo de manter o espaço como “algo
politicamente criativo e cultural e socialmente sustentável”. Ao invés de se propor a delimitar
o uso do espaço, o convite é para somar esforços e negociar essa ocupação, reconfigurando a
proposta elitista e segregadora executada pela prefeitura, cada um com seu desejo e juntos.
É interessante notar que a internet possibilita que as pessoas, em um primeiro momento, não
muito próximas ao espaço, interessem-se pela discussão e propostas colocadas “na nuvem” (no
caso do “viaduto ocupado”, principalmente o facebook) e, a partir disso, passem a contribuir e
a se envolver em novas formas de se relacionar com a cidade. Esse é, portanto, um importante
canal de articulações e coordenação de ações.
CONCLUSÃO
A partir do que foi discutido, fica posto que, ou repensamos a forma como os espaços públicos
estão sendo planejados e executados, ou continuaremos criando cidades e “não cidades”,
reforçando a lógica do “dentro e fora” e, assim, quem está fora, na não cidade, disputará com
quem tem e com quem não tem o “seu” espaço.
Os que têm criatividade poderão resistir com ela! E como estamos vendo, no caso do viaduto Santa
Tereza, esse tipo de resistência consegue alguns efeitos. Não fosse isso, provavelmente a região
já teria outra cara e outra ocupação. E o que parece que o movimento entendeu e a prefeitura
ainda não é que a arquitetura importa menos, diante do desejo de continuar reforçando aquele
espaço enquanto lugar de encontro de diferentes públicos e manifestações culturais.
Certamente, as novas mídias possibilitam muitas trocas e contribuem para que as pessoas
se organizem e atuem no espaço público, na rua. No caso do “viaduto ocupado”, o facebook
é onde as pessoas articulam as reuniões presenciais e compartilham os desejos e esforços
de uma ocupação onde a diferença tenha lugar. Se não fosse essa plataforma, certamente,
esses compartilhamentos seriam mais difíceis ou, talvez, não aconteceriam. O que parece
necessário é ampliar o convite para que a cidade seja pensada, desejada e ocupada por todos.
Precisamos querer e insistir que a política se proponha a isso, ou viveremos apenas vidas
privadas e limitadas.
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ESPANCA. Quem Somos. s/d. Disponível em: http://espanca.com/c/quem-somos/
FORTUNA, Carlos. Culturas urbanas e espaços públicos: Sobre as cidades e a emergência de
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A CIDADE E OS EFEITOS DA CRISE DO ESPAÇO PÚBLICO