O presente texto é uma versão ligeiramente editada do Capítulo III da obra:
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos Fundamentais:
Uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria
dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
PEREIRA, Jane Reis.
Aspectos Gerais sobre as Restrições aos Direitos Fundamentais
Jane Reis Gonçalves Pereira
1. Generalidades; 2. Os termos do problema: alguns aspectos
conceituais e semânticos; 3. O debate sobre a possibilidade lógica
de restrição dos direitos: 3.1) A teoria interna (ou concepção
estrita) dos limites dos direitos fundamentais; 3.2) A teoria
externa (ou concepção ampla) dos limites dos direitos
fundamentais; 3.3) Algumas teses diferentes: 3.3.1) O aporte de
Häberle: a tese que concilia ponderação e direitos irrestringíveis;
3.3.2) A concepção de Vieira de Andrade: irrestringibilidade
abstrata e restringibilidade concreta; 3.4) As críticas postas às
teorias interna e externa; 3.5) Aprofundamento das diferenças
entre as duas teorias; 3.6) Análise crítica do tema. Razões
teóricas e jurídico-positivas em favor da teoria externa: 3.6.1) A
existência de um direito geral de liberdade; 3.6.2) As vantagens
da teoria externa no campo hermenêutico e argumentativo; 4.
Um debate correlato: A doutrina da imanência; 5. Conceito de
restrição: 5.1) Aspectos gerais quanto ao conceito de restrição;
5.2) Restrição e configuração; 6. Modalidades de restrições aos
direitos fundamentais: 6.1) Generalidades; 6.2) Restrição legal
(abstrata) e restrição aplicativa (concreta); 6.3) A classificação
de Robert Alexy: 6.3.1) Restrições diretamente constitucionais;
6.3.2) Restrições indiretamente constitucionais; 6.4) Uma
proposta complementar de classificação: 6.4.1) Restrições
expressamente estatuídas pela Constituição; 6.4.2) Restrições
expressamente autorizadas pela Constituição: 6.4.2.1) Reservas
legais simples; 6.4.2.2) Reservas legais qualificadas; 6.4.3) Restrições implicitamente autorizadas pela Constituição: 6.4.3.1)
Conceitos indeterminados e institutos jurídicos sujeitos à
regulação legal; 6.4.3.2) Conflitos entre direitos fundamentais e
bens constitucionalmente legítimos.
1. Generalidades
A assertiva de que os direitos fundamentais não são absolutos soa natural
e lógica.1 De fato, a ideia de que é preciso limitar as ações humanas para
viabilizar a coexistência das pessoas é tributária da própria noção de liberdade.2
Tal concepção, que remonta ao primeiro estágio de reconhecimento dos
direitos humanos,3 já estava expressa na máxima kantiana sobre o direito: “Atue
externamente de maneira que o uso livre do teu arbítrio possa estar de acordo
com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal.”4
No plano jurídico-positivo, é intuitivo que a ampla gama de direitos
consagrada nos textos constitucionais induz à necessidade de harmonizá-los
entre si e com outros valores ou bens protegidos pela ordem jurídica. Como
destaca Jean-François Renucci, “A limitação dos direitos do homem se impõe
em nome de um certo pragmatismo associado a uma preocupação com a
efetividade: o absolutismo dos direitos do homem conduziria certamente a uma
Cabe registrar, contudo, a existência de um amplo e denso debate sobre o caráter
incondicional de certos direitos humanos. O exemplo paradigmático é o direito a não ser
torturado. Confira-se a discussão sobre o tema em: FINNIS, John. Natural law and natural
rights. Oxford: Clarendon Law Series, 1999, p. 223 et seq.; GEWIRTH, Alan. Are there any
absolute rights? In: WALDRON, Jeremy (ed.). Theories of rights. Oxford: Oxford University
Press, 1990, p. 91-109 e, PERRY, Michael J. Are human rights absolute? In: The idea of
human rights: four inquiries. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 87-106.
2
A noção de que os direitos não são absolutos harmoniza-se com as duas concepções
filosóficas fundamentais sobre a liberdade: i) a que entende a liberdade como autonomia; e ii)
a que a concebe como heteronomia. O modelo de liberdade como autonomia tem por
paradigma fundamental o pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Para o filósofo genebrino, a
liberdade não se traduz em abstenções do Estado, mas decorre do fato de as pessoas
obedecerem a leis de cuja elaboração participaram. Trata-se de liberdade cívica, política, e
sua essência encontra-se mais na sua origem — a vontade geral —, do que na forma pela qual
é exercida. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril cultural, 1978. Já a
noção de liberdade como heteronomia é a defendida pelos jusnaturalistas liberais, como John
Locke. Tal noção tem por pressuposto a tese de que o poder do soberano deve ser limitado, de
modo que a liberdade seja exercida nos espaços vazios de poder. Numa palavra, a liberdade é
entendida como a ausência de obstáculos. O embate entre essas duas teses celebrizou-se a
partir da análise de Benjamim Constant, que identificou a tese de Rousseau com a noção de
liberdade dos antigos, em oposição à concepção liberal dos modernos. CONSTANT, Benjamin.
Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Filosofia Política, n. 2, 1985, p. 9-25.
Sobre a noção de liberdade como heteronomia e como autonomia veja-se: BOBBIO, Norberto.
Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: UNB, 1995. Sobre o tema da
liberdade confira-se ainda: BARROSO, Luís Roberto. Eficácia e efetividade do direito à
liberdade. In: Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 75-151 e
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1999, p. 357 et seq.
3
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, já enunciava em seu
artigo 29, parágrafo 2º que: “No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém
está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o
reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros a fim de satisfazer as justas
exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”.
4
Apud BOBBIO, Norberto. Direito e estado..., op. cit., p. 70.
1
ampla ineficácia”.5 De fato, há uma série de fatores que confluem para rechaçar
uma visão totalitária dos direitos fundamentais.
Em primeiro lugar, a universalidade6 dos direitos torna imperativa sua
limitação. Sendo os direitos fundamentais atribuídos a todas as pessoas, não há
como conceber sua fruição permanente e simultânea sem que haja uma
disciplina ordenadora a viabilizar que estes coexistam. Só é possível tornar
efetiva a titularidade universal dos direitos à medida que sejam harmonizados,
o que implica logicamente a imposição de limites.7
Em segundo lugar, os direitos fundamentais são constitucionalizados como
um conjunto, e não isoladamente. Nessa perspectiva, o reconhecimento dos
direitos traz ínsita a noção de que estes estão inseridos num ordenamento
complexo e plural, de modo que a determinação de sua esfera de incidência
impõe que sejam coordenados com outros direitos e bens protegidos pela
Constituição.8-9
Esses dois aspectos conjugados ligam-se à forte propensão dos direitos
fundamentais a chocarem-se. A necessidade de solucionar conflitos de direitos
implica, naturalmente, o estabelecimento de restrições recíprocas em sua
aplicação. Em situações nas quais certos direitos que seriam, a princípio,
aplicáveis, apresentam-se como antagônicos, torna-se necessário promover
uma acomodação hermenêutica, devendo um deles ceder, parcial ou
totalmente, em favor do outro. Dessa forma, a proteção dos direitos não pode
ser efetivada mediante a “prevalência absoluta ou incondicionada de alguns,
mas com a afirmação da vigência debilitada de todos”.10
Ademais, os direitos ostentam limites inerentes à sua própria natureza,
que defluem da identificação dos bens jurídicos protegidos e da correlata
determinação do âmbito de incidência das normas que os consagram. Numa
proposição, os direitos têm fronteiras. Desta feita, não há como cogitar que
contemplem todas “as situações, formas ou modos de exercício pensáveis”,11 ou
RENUCCI, Jean-François. Droit européen des droits de l`homme. Paris: L.G.D.J, 1999, p.
369.
6
Veja-se, sobre o tema, ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no estado constitucional
democrático: para a relação entre direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e
jurisdição constitucional. Revista de Direito Administrativo, n. 217, 1999, p. 60, para quem
a universalidade significa que os direitos humanos “são, fundamentalmente, direitos de todos
contra todos”.
7
ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozabal. Algunas cuestiones basicas de la teoria de los derechos
fundamentales. Revista de Estudios Políticos (Nueva Epoca), n. 71, 1991, p. 87-109.
8
GÓMEZ, Enriqueta Expósito. La libertad de Cátedra. Madrid: Tecnos, 1995, p. 181.
9 Essa constatação leva à formulação da teoria dos limites imanentes. Confira-se item 4 infra.
10
ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozabal. Algunas cuestiones basicas..., op. cit., p. 98, que
acrescenta: “A liberdade de alguns termina onde começa a dos outros, continua a ser uma
representação gráfica, ainda que elementar, dessa situação.”
11
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976. Coimbra: Almedina, 2001, p. 284-285.
5
que “cubram a esfera total de ação humana possível”.12 Frequentemente, o
próprio preceito que contempla o direito já estabelece condicionamentos ao
seu exercício, apontando de forma expressa os limites de proteção.13
Além disso, vários direitos são contemplados na Constituição de modo
sintético e aberto, o que torna imprescindível a densificação de seu conteúdo e
a regulação ou detalhamento das condições e formas de seu exercício.
Descortina-se, assim, a possibilidade de configuração legal dos direitos, que
conduz à ideia de estabelecimento de limites. Em alguns casos, a Lei maior
expressamente outorga ao legislador ordinário a possibilidade de (de)limitar os
direitos. Mas mesmo em relação aos direitos que não contêm previsão de
ingerência legislativa, será cabível a conformação normativa com o escopo de
concretizá-los, desenvolvê-los e conciliá-los com outros direitos e bens.14
A atuação do legislador, como é evidente, mostra-se densamente
condicionada pela Constituição. Os direitos fundamentais comandam a ação
legislativa em duas dimensões: i) constituem-se em obstáculos à atuação do
Estado, correspondendo a um catálogo de competências negativas do Poder
Público e ii) operam como guias da ação estatal, ordenando a realização de
tarefas e a consecução de objetivos pelo Poder Público. Nesse prisma, como
consigna Joaquín Rodríguez-Toubes Muñiz:
Os direitos fundamentais têm, portanto, um duplo aspecto:
condição ou requisito mínimo da atuação pública
constitucionalmente legítima, e ideal ou aspiração máxima da
atuação constitucionalmente preferida. São tanto regras sobre
direitos como princípios sobre deveres. Entre ambas indicações
resta um espaço bastante amplo para a intervenção
discricionária (aqui entendida no sentido de política) e legítima
dos poderes públicos.15
Idem, ibidem.
O exemplo de escola nesse caso é o direito de reunião, que deve ser exercido pacificamente
e sem armas.
14
As Constituições contêm diversos preceitos que conferem ao legislador ordinário o poder
de regular certos aspectos relativos aos direitos. Partindo-se de tal critério, os direitos
fundamentais podem ser classificados em dois grupos i) direitos sujeitos à reserva legal; ii)
direitos não sujeitos à reserva legal. Veja-se, nesse sentido: MENDES, Gilmar Ferreira. Âmbito
de proteção de direitos fundamentais e as possíveis limitações. In: MENDES, Gilmar Ferreira;
COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional
e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 210-240. Sobre esse tópico,
confira-se o item 6 do presente trabalho.
15
MUÑIZ, Joaquín Rodríguez-Toubes. Principios, fines y derechos fundamentales. Madrid:
Dykinson, 2000, p. 122.
12
13
De fato, se a razão de ser dos catálogos de direitos fundamentais é
assegurar a inviolabilidade de aspectos essenciais da dignidade humana, não há
como admitir que sua limitação venha a importar em desrespeito à
Constituição. Nessa perspectiva, a atividade de conformação dos direitos
fundamentais operada pelo legislador também está sujeita a limitações,16 que a
doutrina convencionou chamar de limites dos limites.17
É certo, portanto, que os direitos fundamentais são limitados e, ao mesmo
tempo, constituem limites à atividade estatal. Essas premissas, que decorrem
logicamente da natureza dos direitos e da ideia de Constituição rígida,
comportam uma série de dificuldades,18 gerando intensos debates sobre a
natureza, a extensão e a própria possibilidade teórica das limitações. Isso
ocorre porque há um inegável paradoxo na ideia de direitos fundamentais
como limite ao Estado e como objeto de limitações.19 Assim, as diversas disputas
teóricas inerentes à configuração e à restrição dos direitos situam-se
precisamente no âmbito dessa relação paradoxal.
2. Os termos do problema: alguns aspectos conceituais e semânticos
A despeito da aceitação genérica da tese de que os direitos não são
absolutos, os mecanismos normativos e hermenêuticos que evidenciam suas
limitações são bastante variados. Dessa forma, é preciso traçar uma breve
aproximação conceitual para esclarecer os diversos termos empregados com
referência ao problema dos limites dos direitos fundamentais.20
Como é o caso da reserva de lei geral, a proteção do conteúdo essencial e o imperativo de
proporcionalidade. Esses aspectos são abordados em PEREIRA, Jane Reis Gonçalves.
Interpretação constitucional e direitos Fundamentais: Uma contribuição ao estudo das
restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, Capítulo V.
17
A expressão, ao que parece, tem origem no constitucionalismo alemão (shrakenshranke). O
tema é tratado de forma mais aprofundada em PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação
constitucional…, op. cit., idem.
18
Como aponta CIANCIARDO, Juan, as duas principais dificuldades relativas à vinculação
negativa do legislador ordinário aos direitos fundamentais, surgidas no início do
constitucionalismo, encontram-se parcialmente superadas. A primeira diz respeito à visão da
lei como expressão da vontade geral, que conduz ao paradoxal conflito entre direitos
humanos e democracia. Outra dificuldade consistia na ausência de mecanismos para
assegurar a efetividade da Constituição, suplantada pelo advento do judicial review. El
conflictivismo en los derechos fundamentales. Navarra: EUNSA, 2000.
19
ASÍS, Rafael de. Las paradojas de los derechos fundamentales como límites al poder.
Madrid: Dykinson, 2000, p. 52.
20
Neste tópico, busca-se apenas precisar o sentido conferido a tais expressões neste trabalho,
a fim de uniformizar o discurso. As divergências de fundo relativas a tais categorias serão
abordadas nos tópicos pertinentes.
16
A existência de comandos e proibições condicionantes da conduta humana
é inerente ao próprio conceito de ordenamento jurídico. Com efeito, para além
dos preceitos permissivos, o sistema jurídico é composto, fundamentalmente,
de uma série de normas que de vários modos circunscrevem a liberdade das
pessoas.21 Assim, como assevera Sanchís, “talvez pela força expansiva e pelo
prestígio jurídico dos direitos fundamentais, existe uma certa tendência a
considerar tais comandos e proibições como um caso de limitação dos direitos,
sugerindo com isto que toda imposição normativa de uma conduta restringe a
liberdade individual, que precisamente encontra sua cristalização jurídica nos
direitos fundamentais”.22
Todavia, como já se enfatizou, as limitações aos direitos materializam-se
de várias formas. Há certas hipóteses em que a ausência de lastro jurídico a
legitimar determinadas ações humanas não decorre de intervenções
legislativas nos direitos, mas do seu próprio perfil traçado na Constituição.23 Em
outros casos, o legislador detém autorização constitucional para definir ou
modular os contornos do direito. E, quando o Judiciário emprega o método da
ponderação de interesses, a limitação ao direito opera-se in concreto, mediante
o afastamento de sua incidência numa hipótese específica.
Diante de todas essas possibilidades, torna-se evidente que a expressão
limites dos direitos fundamentais é dotada de ambiguidade. A própria palavra
limite comporta um duplo significado: de um lado, corresponde à ideia de
constrição; e, de outro, relaciona-se à noção de contorno ou alcance máximo de
alguma coisa. Por isso, no presente estudo, a palavra ‘limite’ é aplicada em
sentido amplo, a abranger as diversas situações que evidenciam o caráter não
absoluto dos direitos fundamentais.
No plano legislativo, os limites dos direitos manifestam-se de dois modos:
i) mediante constrições, exceções ou privações ao exercício do direito tal como
definido constitucionalmente;24 e ii) por meio de um detalhamento da definição
do direito fundamental e de suas formas de exercício. Quando se trata de
nomear essas duas modalidades de limites, não há uniformidade na doutrina.25
SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los derechos fundamentales y la norma de clausura
del sistema de libertades. In: Estudios sobre derechos fundamentales. Madrid: Debate,
1990, p. 153.
22
Idem, ibidem.
23
Admitir a existência de contornos máximos dos direitos não implica adotar a teoria interna,
nem tampouco negar que há restrições postas diretamente na Constituição. Sobre o tema
veja-se item 5.2 infra.
24
CAMPO, Javier Jiménez. Derechos fundamentales: concepto y garantías. Madrid: Trotta,
1999.
25
Veja-se, por exemplo, MUÑIZ, Joaquín Rodriguez-Toubes. Principios, fines y..., op. cit., pp.
141-142; GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y desarrollo legislativo:
la garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de
Bonn. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1994, p. 161 et seq. e pp. 203-207;
QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2002, pp. 201 e 210; ALEXY,
21
Fala-se em limite e delimitação, em restrição e configuração, bem como em
conformação e intervenção. Essa imprecisão conceitual é um reflexo das
inúmeras divergências teóricas relativas ao tema. Aponta-se, a seguir, de que
forma os referidos conceitos são manejados no presente trabalho.
A restrição — também chamada de limitação — corresponde a previsões
normativas e interpretações que operam uma diminuição da esfera máxima de
incidência do direito que, a princípio, pode ser extraída de sua definição
constitucional, mediante o estabelecimento de condições e obstáculos ao seu
exercício.26
Já a configuração — também intitulada conformação, delimitação ou
regulação —, é entendida como a densificação do conteúdo normativo do direito,
realizada por meio do detalhamento de seu conceito, da especificação de suas
formas de exercício e do estabelecimento de garantias processuais aptas a
salvaguardá-lo.27
Nem sempre é fácil distinguir os casos de restrição dos de configuração e
estabelecer um consenso acerca do conteúdo constitucional do direito, de modo
a permitir afirmar, com precisão, se determinada previsão legislativa constitui
redução ou mero detalhamento do conceito que se extrai da Constituição.
Assim, as configurações, na maior parte dos casos, haverão de ser entendidas
também como restrições.28 Acresça-se, ainda, que é possível empregar a
expressão intervenções legislativas, a abranger todas as hipóteses de atuação
normativa no campo temático dos direitos fundamentais.
Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 272 et seq. e, HÄBERLE, Peter. La garantía del contenido esencial
de los derechos fundamentales en la ley fundamental de bonn: una contribución a la
concepción institucional de los derechos fundamentales y a la teoría de la reserva de la ley.
Madrid: Dykinson, 2003, pp. 166-167 e 170.
26
Em sentido semelhante, MUÑIZ, Joaquín Rodriguez-Toubes, averba que “Por delimitação
dos direitos fundamentais entendo a identificação do âmbito protegido por eles e da natureza
dessa proteção. O que se delimita é o conteúdo do direito, e a delimitação consiste em definir
a linha que separa o que está protegido pelo direito do que não o está; consiste então em
estabelecer as fronteiras ou — neste sentido — os limites do direito fundamental. Por
limitação dos direitos fundamentais, diversamente, entendo a restrição — legítima ou
ilegítima, segundo os casos — que possa ser produzida no conteúdo ou no exercício dos
direitos. O que se limita é um direito ou, o que é igual, a delimitação prévia (ou potencial) do
mesmo. Pode-se dizer, então, que os direitos têm uns limites próprios ou internos que os
delimitam, e que por outra parte estão sujeitos a certos condicionantes alheios ou externos
que os restringem ou limitam.” Principios, fines y..., op. cit. Na mesma linha, QUEIROZ,
Cristina. Direitos fundamentais, op. cit., pp. 199-200 e ALEXY, Robert. Teoria de los
derechos..., op. cit., p. 276.
27
GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y..., op. cit., p. 179.
28
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 327-329; BOROWSKI, Martín. La
estructura de los derechos fundamentales. Colombia: Universidad Externado de Colombia,
2003, p. 95.. Essa questão é tratada no item 5.2 deste trabalho.
Os limites imanentes, de modo muito simplificado, costumam ser definidos
como os contornos dos direitos identificados mediante seu cotejo com os
demais direitos e valores constitucionalmente protegidos.29
Todos esses conceitos, aqui enunciados de forma singela, são objeto de
diversos desacordos teóricos e semânticos. Ademais, há uma relação
inextrincável entre as concepções dogmáticas acerca da questão da
restringibilidade dos direitos e a conceituação dos mecanismos hermenêuticos
e legislativos a ela relativos. A controvérsia fundamental sobre o tema diz
respeito à possibilidade lógica de restringir os direitos fundamentais.
3. O debate sobre a possibilidade lógica de restrição dos direitos
Embora haja concordância quanto ao caráter relativo dos direitos,30-31 a
noção do que sejam limites constitui um dos aspectos mais problemáticos da
teoria dos direitos fundamentais.32
Alguns sustentam a impossibilidade lógica de os direitos sofrerem
autênticas limitações, de modo que i) toda atividade legislativa reguladora dos
direitos só pode ser de “delimitação”, ou seja, de fixação de seus contornos (ou
limites internos), tendo em vista que o conteúdo constitucional dos direitos não
submetidos à reserva legal é irrestringível; e ii) a atividade judiciária de
interpretação não pode importar em restrições ou afastamento dos direitos,
devendo limitar-se a buscar o enquadramento da situação fática posta em juízo
na definição constitucional do direito. Outros, de forma diversa, advogam que
A discussão teórica relativa aos limites imanentes será tratada no item 4, infra.
Em sentido diverso, defendendo a existência de direitos absolutos no plano filosófico, vejase FINNIS, John. Natural law and..., op. cit. e GEWIRTH, Alan. Are there any..., op. cit. Para
uma defesa da existência de direitos absolutos no constitucionalismo espanhol, veja-se:
TORRES DEL MORAL, Antonio. Principios del derecho constitucional. Madrid: Universidad
Complutense, 1992, pp. 363-364; e BAUTISTA, J. A. Piqueras. El abuso en el ejercicio de los
derechos fundamentales. In: Introducción a los derechos fundamentales. Madrid:
Ministerio de Justicia, 1988, p. 871. Apud GÓMEZ, Enriqueta Expósito. La libertad de..., op.
cit., pp. 179-180.
31
Como adverte GÓMEZ, Enriqueta Expósito, a ideia de que os direitos fundamentais não são
absolutos “... vem a rechaçar a tradicional diferenciação que a doutrina alemã vinha
realizando quanto aos direitos como direitos absolutos e relativos.” Idem, ibidem, p. 179.
32
Neste sentido, veja-se MUÑIZ, Joaquín Rodríguez-Toubes, “Adotemos a perspectiva dos
limites ou a da delimitação, o que em qualquer caso é indiscutível é que os direitos
fundamentais não são absolutos no sentido de irrestritos. Por isso o debate teórico ao qual
me refiro não se coloca sobre que condutas estão amparadas pelos direitos (o que é objeto de
outro debate diferente), mas sim sobre como entendê-los e aplicá-los. Há acordo no sentido
de que o exercício legítimo dos direitos está sujeito a numerosos condicionantes, porém se
discute se tais condicionantes são partes da configuração do direito, e portanto dados em
princípio estáveis e previsíveis pelos cidadãos e os operadores jurídicos, ou se são pelo
contrário obstáculos exteriores cuja presença e força somente se comprova caso por caso,
sem possibilidade de generalização.” Principios, fines y..., op. cit., p.143.
29
30
delimitar o conteúdo do direito e restringi-lo são coisas diferentes, porquanto a
primeira diz respeito aos lindes do direito, e a segunda é orientada por uma
necessidade externa ao direito. Assim, a discussão cinge-se, essencialmente, “à
possibilidade lógica de restrição aos direitos fundamentais”.33
3.1) A teoria interna (ou concepção estrita) dos limites dos direitos
fundamentais
A teoria interna sobre os limites dos direitos fundamentais sustenta, em
síntese, que é inadmissível a ideia de restrições ou limitações externas aos
direitos fundamentais.
Essa vertente teórica – também denominada concepção estrita do conteúdo
dos direitos –,34 considera que os direitos fundamentais cuja restrição não é
expressamente autorizada pela Constituição não podem ser objeto de
autênticas limitações legislativas, mas apenas de delimitações, as quais devem
cingir-se a desvelar o conteúdo normativo constitucionalmente previsto. Assim,
na ausência de norma da Constituição autorizando o legislador, de forma
expressa, a restringir aos direitos, este poderá apenas explicitar os limites já
contidos na norma constitucional. Apenas nos casos em que o texto
constitucional prevê a possibilidade de interferência do Poder Legislativo, a
atuação deste consistirá em verdadeira e autorizada limitação ao direito
fundamental.35
No plano da interpretação judicial, a teoria interna refuta a existência de
conflitos entre os direitos e, consequentemente, a ponderação de bens. A tarefa
do operador jurídico ao interpretar o direito fundamental deve ater-se a
identificar seu conteúdo constitucionalmente estabelecido e a verificar sua
adequação à questão de fato apreciada, não lhe competindo estabelecer restrições recíprocas a direitos ou bens supostamente antagônicos.
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 267.
Essa terminologia é empregada por GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa
del legislador a los derechos fundamentales. Madrid: McGraw-Hill, 1996, passim e
BOROWSKI, Martín. La restricción de los derechos fundamentales. Revista Española de
Derecho Constitucional, n.59, 2000, p. 29-56.
35
Esse ponto é controvertido entre os autores que perfilham a teoria interna. No sentido do
texto, MÜLLER, Friedrich. Die positivität der grundrechte: fragen einer praktischen
grundrechtsdogmatik. Berlín: Duncker & Humblot, 1999, p. 87 et seq. Apud MARTÍNEZPUJALTE, Antonio-Luis. La garantía del contenido esencial de los derechos
fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 82; e OTTO Y PARDO,
Ignacio de. La regulación del exercício de los derechos y libertades: la garantia de su
contenido esencial en el articulo 53.1 de la constitucion. In: MARTÍN-RETORTILLO, Lorenzo;
OTTO Y PARDO, Ignacio de. Derechos fundamentales y constitución. Madrid: Civitas, 1992,
p. 151. De forma diversa, Martinez-Pujalte, Antonio-Luis, defende que “os limites fixados
diretamente pela Constituição ou que o legislador pode fixar em conformidade — expressa ou
tácita — com esta; é um limite interno”. Ibidem.
33
34
Nessa linha de princípio, para os adeptos da teoria interna, os limites dos
direitos fundamentais não configuram jamais recortes externos de seu âmbito
de incidência, mas sempre resultam da análise de seu conteúdo tal como
estatuído na Constituição. Como os direitos não são limitáveis, “o procedimento
de aplicação jurídica cumpre a tarefa de verificar se o conteúdo aparente do
direito é também seu conteúdo verdadeiro”.36
No que tange às intervenções legislativas em matéria de direitos
fundamentais, a teoria interna preconiza que as disposições legais não
restringem os direitos. A legislação reguladora dos direitos circunscreve-se a
concretizar e configurar os direitos internamente, detalhando suas formas de
exercício dentro do âmbito de seu conteúdo constitucionalmente previsto.
Um paradigma dessa concepção é Friederich Müller, para quem do
conteúdo dos direitos fundamentais resultam delimitações que “devem ser
descobertas dogmaticamente através da análise do âmbito e do programa
normativos”.37 A tarefa do intérprete consiste, pois, em identificar o âmbito de
proteção do direito, os seus contornos. Por via de consequência, as hipóteses de
colisões de direitos ou entre direitos e outros bens — para cuja solução é
necessário pressupor que um direito seja limitado para ceder espaço a outro
direito ou bem constitucionalmente protegido — afiguram-se falsas. Na sua
visão, trata-se de “pseudocolisões”, sendo desnecessário recorrer ao método da
ponderação de bens ou valores, pois “se trata unicamente de um problema
dogmático de interpretação do conteúdo do direito em questão”.38 Dessa forma,
os problemas interpretativos que envolvem direitos fundamentais não devem
ser resolvidos em duas etapas (delimitação do seu conteúdo e harmonização
com outros direitos ou bens), mas, ao contrário, “o conteúdo do direito é
decifrado de uma só vez, em um só ato dogmático de interpretação do âmbito
normativo, no qual ab initio os limites imanentes são projetados no interior do
mesmo, recortando-se assim, aprioristicamente, a genérica esfera de liberdade
que dá vida ao direito”.39
Na doutrina espanhola, essa tese foi defendida de forma veemente por
Ignácio de Otto y Pardo,40 que, criticando as sentenças do Tribunal
Constitucional — que recorrem ao método da ponderação de bens para
examinar a legitimidade constitucional de restrições aos direitos fundamentais
—, sustentou que “o verdadeiro fundamento do juízo acerca da
constitucionalidade ou inconstitucionalidade do limite encontra-se em sua
BOROWSKI, Martín. La estrutura…, . op. cit., p. 69.
MÜLLER, Friedrich. Die positivität der grundrechte. Berlin: Duncker & Humbolt, 1969.
Apud GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit., p. 55.
38
Idem, ibidem, p. 58.
39
Idem, ibidem.
40
Em seu trabalho, La regulación del exercício..., op. cit., p. 121 et seq. Esse texto é referência
obrigatória sobre o problema das limitações na doutrina espanhola, a qual vem cada vez mais
se ocupando do tema.
36
37
adequação ou inadequação ao bem oposto ao direito, não em relação entre
esses dois últimos, nem na ponderação de bens, por mais que se invoque esta”.41
Outro autor que defende a ideia de impossibilidade de autênticas restrições aos
direitos fundamentais é Martinez-Pujalte, que salienta que “para além dos
contornos que os delimitam não pode existir proteção constitucional do direito
fundamental e, de outro lado, dentro deles a proteção constitucional é
absoluta”.42
Como se vê, a partir dessa perspectiva, o problema crucial quanto à
interpretação dos direitos fundamentais não diz respeito aos limites das
restrições que possam ser estabelecidas, ou à necessidade de justificação dessas
restrições. Diversamente, o foco de análise é a determinação dos confins dos
direitos, ou seja, de sua esfera normativa ou âmbito de proteção, que decorre da
adequação do fato à norma. Assim, ao invés de afirmarem que a liberdade de
expressão é limitada pelo direito à honra e à imagem, ou que a ordem pública
limita o direito de manifestação, os adeptos dessa tese sustentarão que as
condutas humanas são ou não protegidas pelos direitos, ou seja, que estão ou
não incluídas em suas esferas de proteção. Nessa linha de raciocínio, Ignacio de
Otto apresenta uma série de exemplos que, na sua visão, ilustram a ideia por ele
defendida. Afirma o autor que “o problema de uma seita religiosa nudista não é
caso de liberdade religiosa”; que a garantia do matrimônio não compreende a
poligamia; que a propaganda comercial não se insere no direito à informação; e,
ainda, que “a sanção imposta a um funcionário que abandona seu trabalho para
assistir a uma missa não é, obviamente, limitação alguma aos correspondentes
direitos fundamentais”.43
Outro exemplo sempre lembrado para explanar a teoria interna é
fornecido por Friederich Müller. O autor germânico analisa a situação de um
artista que pretende pintar no cruzamento de duas ruas muito movimentadas.
A partir de sua avaliação, a atividade de pintar em tais circunstâncias não está
protegida pelo preceito da Constituição Alemã que consagra a liberdade
artística,44 de modo que uma lei que venha a proibir que se pinte em um
Idem, ibidem, p. 123.
MARTINEZ-PUJALTE, Antonio-Luis. La garantía del..., op. cit., p. 93. Este autor, ocupandose do problema da limitação legislativa dos direitos, defende que “os direitos fundamentais
apresentam limites, porém não admitem restrições.” Ibidem, p. 49.
43
OTTO Y PARDO, Ignacio de. La regulación del exercício..., op. cit., p. 139 e 142.
44
“Artigo 5º (Liberdade de expressão, informação e de imprensa; liberdade de criação
artística e científica) (1) Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente a sua opinião
pela palavra, pelo escrito e pela imagem, bem como o direito de se informar, sem
impedimentos, por meio de fontes acessíveis a todos. São garantidas a liberdade de imprensa
e a liberdade de informação por radiodifusão e filme. Não haverá censura. (2) Estes direitos
têm por limites os preceitos das leis gerais, as determinações legais para a protecção da
juventude e o direito à honra. (3) São livres a arte e a ciência, a investigação e o ensino. A
liberdade de ensino não dispensa da lealdade à Constituição”. ALEMANHA. Constituição
41
42
cruzamento não estará restringindo direito algum, porquanto não se está diante
de nenhuma “forma de ação especificamente protegida por um direito
fundamental”.45 Da mesma forma não haveria restrição a direito fundamental no
caso de proibir-se “expressar opiniões políticas naquele cruzamento”, nem
tampouco estaria tutelado pela Constituição um “músico que altas horas da
noite, na rua ou em uma casa com paredes finas, ensaiasse sua composição para
tambores.”46
Em coerência com essas noções, os diversos aportes doutrinários que
defendem a teoria interna contêm, de um modo geral47, uma severa crítica à
ponderação de interesses como método de interpretação constitucional,
sustentando a impossibilidade lógica de autênticos conflitos entre os direitos
fundamentais ou entre estes e outros bens constitucionais. Aliás, a preocupação
central no âmbito da teoria interna é expurgar do processo interpretativo o
subjetivismo e, desse modo, evitar o enfraquecimento dos direitos
fundamentais. O que orienta tais formulações é a premissa de que o processo de
identificação do conteúdo do direito confere maior segurança e previsibilidade
à atividade hermenêutica, bem como se mostra mais adequado à noção de
superioridade jurídica da Constituição e dos direitos fundamentais.48
Outro objetivo que norteia a teoria interna é o de evitar a proliferação de
falsos casos constitucionais, na medida em que as situações não amparadas
pelo direito não decorrem de restrições a este, mas simplesmente estão fora do
raio de incidência da Constituição.49 Evita-se, assim, uma inflação de direitos
fundamentais, que implicaria o enfraquecimento de sua força vinculante.50
Recentemente, essa teoria vem ganhando a adesão de diversos autores,
ainda que com matizações. Nesse sentido, Juan Cianciardo51 — embora
(1949). A lei fundamental da república federal da alemanha. Coimbra: Coimbra, 1996, p.
129.
45
Apud Alexy, Robert, que formula uma severa crítica a essa concepção. Teoria de los
derechos..., op. cit., p. 303.
46
Idem, ibidem.
47
São exceções: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., op. cit. e
HABERLE, Peter. La garantía del contenido..., op. cit. Confiram-se, a propósito, os itens 3.3.2
e 3.3.2 infra.
48
De fato, a teoria interna encontra-se associada a outras concepções que são analisadas no
curso do presente estudo, tais como a crítica à ponderação e o modelo de regras dos direitos
fundamentais. Tais debates correlatos serão aprofundados nos tópicos pertinentes.
49
CIANCIARDO, Juan. El conflictivismo en los..., op. cit., p. 245.
50
Idem, ibidem. No mesmo sentido, HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho
privado. Madrid: Civitas, 1995, p. 61.
51
O autor pretende propor uma teoria alternativa à teoria interna e à externa. Como crítica à
teoria interna, sustenta que: i) “de um lado, a amplitude semântica das normas
constitucionais parece desmentir categoricamente toda possibilidade de determinar
apoditicamente, mesmo fazendo um grande esforço hermenêutico, os perfis de cada um dos
direitos nelas reconhecidos.”; ii) “... a argumentação da teoria interna assenta-se sobre um
refutando a ideia de que é possível determinar de forma apodítica o significado
constitucional dos direitos, bem como admitindo a tese de que pode haver
conflitos entre “normas de direitos fundamentais” — sustenta que “os direitos
fundamentais são limitados, mas ilimitáveis”.52 Outro autor hispânico, Tomás de
Domingo, defende que “o exercício de um direito fundamental acha-se
internamente limitado pelas exigências do bem jurídico protegido”, razão por
que “não entra em colisão com interesses coletivos ou outros direitos
fundamentais”. Assevera, assim, que “não resulta adequado falar em direitos
ilimitados, porque cada direito não vai além do âmbito que exige a proteção do
bem jurídico”.53
Na doutrina argentina, há trabalhos que defendem a posição que nega os
conflitos entre direitos e, consequentemente, as limitações externas. Os
professores Pedro Serna e Fernando Toller advogam que “os direitos, ainda que
não sejam ilimitados — no sentido de que todo o coberto por seu âmbito
material seria por isso mesmo legítimo —, propriamente não são tampouco
limitados, isto é, não têm nem necessitam de limites externos, mas são
delimitáveis: através da tarefa legislativa e da decisão judicial é possível traçarlhes contornos precisos, um âmbito onde é justo exercê-los, de maneira que
transpor essa esfera de atuação regular implicará um exercício abusivo”.54
dogma comprovadamente falso, o da auto-suficiência do texto constitucional e das disposições jusfundamentais.” e iii) “... a teoria interna priva o litigante das garantias do princípio da
proporcionalidade e do conteúdo essencial naqueles casos em que se possa considerar que o
legislador não tenha limitado um direito fundamental, mas sim explicitado seu conteúdo, vale
dizer, em todos os casos de delimitação e não de limitação dos direitos fundamentais, que são
mais numerosos para esta teoria que para a teoria externa, porquanto as limitações
reduziriam-se neste caso às expressamente contidas no texto da Constituição.” Sem embargo,
a tese fundamental defendida por CIANCIARDO, Juan é a de que a) “o conteúdo das normas
jusfundamentais é limitado e regulável;” e b) “os direitos fundamentais são limitados porém
ilimitáveis.” Este autor, partindo da distinção entre direito fundamental e norma de direito
fundamental, sustenta que “...há conflitos de normas jusfundamentais, porém que nunca, em
caso algum, existem autênticos conflitos de direitos.” Deste modo, no que se refere ao
problema de fundo, a tese de CIANCIARDO aproxima-se muito mais da teoria interna do que
da externa. Ibidem, pp. 246-250.
52
Idem, ibidem.
53
PÉREZ, Tomás de Domingo. ¿Conflictos entre derechos fundamentales?: un análisis
desde las relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y los derechos al
honor y la intimidad. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, p. 353.
54
SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos
fundamentales: una alternativa a los conflictos de derechos. Buenos Aires: La Ley, 2000,
p.66. As ideias defendidas nesse livro já haviam sido esboçadas por SERNA, Pedro em seu
artigo: Derechos fundamentales: el mito de los conflictos. Reflexiones teóricas a partir de un
supuesto jurisprudencial sobre intimidad e información. Humana Iura. [S.l.]: n. 4, pp. 197234, 1994.
Nessa ordem de argumentos, defendem que a forma adequada de
interpretar os direitos em situações de aparente colisão é determinar, a partir
de uma leitura teleológica e sistemática, o conteúdo dos direitos.
Em resumo, a teoria interna i) nega a possibilidade de limitações externas
aos direitos; ii) afirma que a identificação dos casos em que o direito deve
incidir há de ser feita mediante a análise de seu conteúdo constitucionalmente
estabelecido e iii) recusa a hipótese de colisões de direitos.
3.2) A teoria externa55 (ou concepção ampla)56 dos limites dos direitos
fundamentais
A teoria externa acerca dos limites dos direitos fundamentais estabelece,
com clareza, a diferença entre delimitação de conteúdo e restrição dos direitos
fundamentais. Como assinala Alexy, a referida teoria pressupõe a existência de
duas categorias jurídicas: “primeiro, o direito em si, que não está restringido, e,
segundo, o que sobra quando se colocam as restrições, quer dizer, o direito
restringido”.57 E acrescenta:
A teoria externa pode, por certo, admitir que nos ordenamentos
jurídicos os direitos apresentam-se primordial ou
exclusivamente como direitos restringidos porém, tem que
insistir que também são concebíveis direitos sem restrições. Por
isso, segundo a teoria externa, não existe nenhuma relação
necessária entre conceito de direito e o de restrição. A relação é
criada tão somente através de uma necessidade externa ao
direito, de compatibilizar os direitos de diferentes indivíduos
como assim também os direitos individuais e os bens coletivos.58
De acordo com essa concepção, a tarefa de interpretação constitucional
visando a determinar as situações protegidas pelos direitos fundamentais
envolve duas etapas, que consistem em: i) identificar o conteúdo do direito (seus
contornos máximos, sua esfera de proteção),59 e ii) precisar os limites externos
que decorrem da necessidade de conciliá-lo com outros direitos e bens
constitucionalmente protegidos.60
Expressão utilizada por ALEXY, Robert, Teoria de los derechos..., op. cit., p. 268; e
CiancIardo, Juan. El conflictivismo en los..., op. cit., p. 222.
56
Expressão utilizada por GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit.
57
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit.
58
Idem, ibidem.
59
Que, na linguagem da teoria dos princípios, corresponde ao conteúdo prima facie dos
direitos. Ver, nesse sentido, BOROWSKI, Martín. La estrutura de los..., op. cit., p. 67.
60
Idem, ibidem.
55
Na primeira fase, o intérprete deve determinar, da forma mais ampla
possível, as diversas faculdades e posições jurídicas que decorrem do direito
fundamental em jogo. Trata-se de verificar, à luz do dispositivo que assegura o
direito, seu “conteúdo inicialmente protegido,”61 sem tomar-se em consideração
se outros direitos individuais ou interesses comunitários podem ser afetados
ou restringidos. A leitura da norma, nessa etapa, é a mais ampliativa possível.
Sem embargo, devem ser levadas em conta as limitações estabelecidas no
próprio preceito que outorga o direito (por exemplo, a esfera de proteção do
direito de associação só ampara a constituída para “fins lícitos”, vedando, ab
initio, as de caráter paramilitar).
No segundo momento, promove-se a harmonização do amplo “conteúdo
inicialmente protegido” do direito com os direitos e bens constitucionais que se
apresentem como contrapostos, a fim de identificar o “conteúdo definitivamente
protegido”. São traçados, assim, os limites definitivos do direito, os quais, para
essa concepção, são limites externos, já que resultam do “recorte” do conteúdo
inicialmente protegido do direito fundamental.62
A análise de exemplos é útil para demonstrar as diferenças entre as duas
concepções. No caso do artista que pretende pintar no cruzamento de duas vias
congestionadas, desde a ótica da teoria interna não haveria direito à liberdade
artística a ser tutelado, porquanto a referida ação não estaria inserida do
âmbito de proteção da norma de direito fundamental. Embora pintar seja uma
ação protegida pela liberdade artística, pintar naquelas condições não
corresponde a uma “possibilidade específica de ação” compreendida da esfera
normativa do direito.63 De forma diversa, apreciando-se o problema a partir das
premissas que informam da teoria externa, o resultado seria o mesmo — não há
direito a pintar no cruzamento movimentado — mas a trajetória hermenêutica
que conduz a essa conclusão seria distinta. Como pintar é uma ação artística,
haveria um direito prima facie de pintar no cruzamento. Todavia, a existência
de razões opostas — o direito dos outros e a ordem pública — justifica o
afastamento do direito naquela situação específica.64
A análise promovida feita por um adepto da teoria interna de uma decisão
da Suprema Corte do Canadá — que se amparou na ideia de limites — é
também ilustrativa das diferenças entre as duas visões.65
O julgamento em questão versou sobre os seguintes fatos: um professor de
estudos sociais no ensino médio ministrava teorias anti-semitas em suas aulas.
A expressão é de GUERRERO, Manuel Medina. Segundo o autor, nessa etapa, obtém-se, por
meio de uma “interpretação literal do direito, um amplo conteúdo constitucionalmente
protegido do mesmo.” La vinculación negativa...,op. cit., p. 62.
62
GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit..
63
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., pp. 303.
64
Nesse sentido, ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 304-306.
65
R. v. Keegstra, 1990. Suprema Corte do Canadá, 697.
61
Em virtude disso, veio a ser condenado por delito de “promoção consciente e
pública de ódio a determinados grupos”, tipificado no Código Penal Canadense.
A sentença foi objeto de recurso, tendo a Corte de Apelação desconstituído a
condenação por entender que o Código Penal violara o direito à liberdade de
expressão, estampado na Carta de Direitos. A Suprema Corte reformou tal
decisão por quatro votos a três. Os votos majoritários entenderam que a
propaganda do ódio está compreendida na esfera de proteção da liberdade de
expressão, cujo alcance constitucional é amplo. Nessa perspectiva, entendeu-se
que o Código Penal, em abstrato, restringiu a liberdade de expressão ao tipificar
o discurso do ódio (hate speech). Passou-se, numa segunda etapa, a verificar se
a referida restrição é justificável à luz do preceito da Carta que determina que
os direitos só podem estar sujeitos a limites razoáveis no âmbito de uma
sociedade democrática. Entendeu-se, então, que o discurso do ódio representa
uma grave ameaça aos grupos discriminados e à sociedade, de modo que o
requisito de razoabilidade restou atendido.66
Toller e Serna, adeptos da teoria interna, sustentam que a Corte Canadense
empregou fundamentos equivocados, tendo em vista que o discurso do ódio
contraria as regras da democracia, não estando abrangido pela garantia da
liberdade de expressão. Na visão desses autores, “não pode haver, de um lado,
um verdadeiro direito a expressar-se de determinada maneira e, por outro,
estar verdadeiramente justificada a limitação desse concreto exercício do
direito”.67
A tese de que os direitos fundamentais são restringíveis tem por principal
expoente Robert Alexy, sendo adotada por parte substancial da doutrina
contemporânea.68 No plano jurisprudencial, essa noção tem sido empregada, em
larga medida, pelas Cortes Constitucionais, e também pela Corte Européia de
Direitos Humanos.69
SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional..., op. cit., p. 147-148.
Idem, ibidem, p. 153.
68
Confira-se, por exemplo, GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit.;
SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., (1990), p. 153 et seq.; MIRANDA, Jorge.
Manual de direito constitucional: tomo IV, direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2000,
p. 336 e, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição.
Coimbra: Almedina, 1998, p. 411. Entre nós, aproxima-se dessa concepção: SARMENTO,
Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2000. Pode-se dizer que tal concepção é a majoritária, embora seja possível observar que a
teoria interna vem ganhando adeptos recentemente (veja-se tópico 3.1, supra).
69
Vejam-se alguns exemplos: Na jurisprudência espanhola, a teoria externa tem firme
aceitação, prevalecendo a tese de que os direitos fundamentais admitem restrições, desde
que estas sejam determinadas pela “estrita observância do princípio da proporcionalidade”
(STC 186/2000). Em decisão paradigmática, o Tribunal Constitucional Espanhol denegou o
recurso de amparo no qual se alegava a violação dos direitos à intimidade pessoal e a própria
imagem em razão da instalação de circuito fechado de televisão em local de trabalho. No caso,
as fitas de vídeo gravadas no circuito interno foram apresentadas pela empregadora como
66
67
prova de responsabilidade em processo de demissão do demandante. Segundo o Tribunal,
“[...] a instalação de um circuito fechado de televisão que controlava desde a zona onde o
demandante de amparo desempenhava sua atividade laboral era uma medida justificada (já
que existiam razoáveis suspeitas da ação irregular por parte do recorrente em seu posto de
trabalho); idônea para a finalidade pretendida pela empresa (verificar se o trabalhador
cometia efetivamente as irregularidades suspeitas e em tal caso adotar as medidas
disciplinares correspondentes); necessária (já que a gravação serviria de prova de tais
irregularidades); e equilibrada (pois a gravação de imagens limitou-se à zona da caixa
registradora e a uma duração temporal limitada, suficiente para comprovar que não se
tratava de um feito isolado ou de uma confusão, senão uma conduta ilícita reiterada), por que
deve ser descartado que se tenha produzido lesão ao direito a intimidade pessoal consagrado
no art. 18.1 CE”. No Tribunal Constitucional de Portugal também se encontram decisões das
quais se infere a adesão daquela Corte à teoria externa. No processo de n. 369/2001 (Acórdão
n 391/02), em que se discutia a constitucionalidade dos artigos 100º nº 2 e 108º do Código
dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, os quais determinam a
alienação forçada de participações sociais no âmbito de um processo especial de recuperação
de empresas, o Tribunal entendeu serem legítimas as restrições ao direito de propriedade
impostas por tais preceitos. Utilizando o juízo de proporcionalidade, concluiu o Tribunal que:
“em face destes factores de ponderação há que concluir pela não inconstitucionalidade da
norma em questão. Na verdade o sacrifício solicitado aos titulares das participações sociais
alienadas é adequadamente justificado no plano constitucional pela relevância dos valores
salvaguardados com a medida nomeadamente os inerentes à viabilização de um agente
económico à preservação de postos de trabalho e à manutenção de uma unidade produtiva no
mercado nacional”. Na Itália, a Corte Constitucional, na Sentença n. 141, de 1995, declarou a
inconstitucionalidade de preceito legal que estabelecia a impossibilidade de os condenados
por sentença penal, ainda que não definitiva, por algum delito relacionado a máfia, se
candidatarem nas eleições. O juízo de constitucionalidade foi feito à luz do direito eleitoral
passivo, aspecto essencial da participação do cidadão na vida democrática, que no
ordenamento constitucional italiano é um direito fundamental. Esta qualificação é
importante, pois, para a Corte a “restrição do conteúdo de um direito fundamental só é
admissível nos limites indispensáveis a tutela de outro interesse de matriz constitucional, e
com base na regra de necessidade e razoável proporcionalidade de tal limitação”. A análise do
dispositivo revelou que medida prevista é desporpocional com relação ao valor que se
pretende salvaguardar e, portanto, ilegítima à luz do princípio da razoabilidade. Entre as
inúmeras decisões da Corte Européia de Direitos Humanos, destaca-se o caso Open Door and
Dublin Well Woman v. Ireland, no qual a Corte reconheceu a violação ao direito à informação
previsto no art. 10 da Convenção. Open Door e Dublin Well Woman são organizações sem fins
lucrativos que oferecem serviços relativos à saúde da mulher, tratamentos de infertilidade,
inseminação artificial e orientação para mulheres grávidas. Entretanto, uma decisão da
Suprema Corte da Irlanda impediu as referidas organizações de prestar informações a
mulheres grávidas concernentes às facilidades do aborto fora da jurisdição da Irlanda.
Segundo Suprema Corte, tal atividade é ilegal frente ao art. 40.3.3 da Constituição que protege
o direito a vida do nascituro. As organizações recorreram a Corte Européia sob o fundamento
de que a decisão constituía uma interferência injustificada no direito a liberdade de
informação, previsto no art. 10 da Convenção. A Corte entendeu que apesar de a restrição
estar prescrita em lei e ter finalidades legítimas, a mesma não é necessária à sociedade
democrática. Segundo a Corte a restrição vai além dos limites da jurisdição irlandesa e é
desproporcional.
No Brasil, os autores que se ocuparam do tema, direta ou indiretamente,
vêm defendendo as premissas que integram a teoria externa.70 De outro lado, a
jurisprudência do STF tem encampado a ideia de conflitos e restrições
recíprocas entre direitos, o que indica uma inclinação em favor dos postulados
da teoria externa.71
A teoria externa é correlativa do modelo de ponderação e da teoria dos
princípios. Ampara-se na ideia de que há conflitos entre direitos fundamentais e
entre estes e outros bens constitucionais. Sendo os direitos fundamentais
concebidos como princípios — vale dizer, como comandos prima facie dirigidos
ao legislador —, é possível que sejam restringidos em decorrência de razões
antagônicas que, em determinadas situações, assumam maior peso. Dessa
forma, há duas normas válidas que entram em conflito: a norma que estatui o
Vejam-se, por todos, SARMENTO, Daniel. A ponderação de..., op. cit., p. 97 et seq. e
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da
proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
71
Tome-se como exemplo o rumoroso julgamento pelo Tribunal Pleno da Reclamação n.
2040, formulada por Gloria de Los Angeles Treviño Ruiz. A reclamante alegava que a coleta de
material biológico de sua placenta para realização de exame de DNA, com vistas a determinar
a paternidade do filho que concebera na prisão, violava seu direito à intimidade e o de seu
filho. Como a reclamante houvera afirmado ser a gravidez decorrente de violência sexual
sofrida na prisão, o STF entendeu haver um conflito entre o seu direito à intimidade e bens
jurídicos constitucionais como a “moralidade administrativa”, a “persecução penal” e a
“segurança pública”, estando em jogo, também, o direito à honra dos policiais federais
acusados de estupro nas dependências da Polícia Federal. A partir do juízo de ponderação
efetivado pela Corte, entendeu-se ser legítima a restrição ao direito à intimidade da
reclamante, permitindo, assim, a realização do exame de DNA com a utilização do material
biológico colhido de sua placenta. Este entendimento está explícito no voto do relator, Min.
Néri da Silveira, que consignou que: “a acusação, tornada pública, porque veiculada nos meios
de comunicação, com referência à “violação” sofrida, não só atingiu a honra e a dignidade dos
policiais federais, alguns referidos nominalmente na imprensa, como acabou por alcançar,
também, o Departamento de Polícia Federal, a instituição em si, notadamente, com as
repercussões no âmbito do noticiário internacional, ferindo, sem dúvida, a própria imagem do
País no exterior.” [...] “Esses bens e valores, por sua quantidade significativa, atingidos,
autorizam que se adote solução realmente consistente para o esclarecimento da verdade,
quanto a participação eventual dos servidores públicos em apreço no ato da alegada violência
sexual aludido pela reclamante, a quem não caberá, agora, escudar-se na só invocação do
direito à intimidade, para impedir se possam averiguar os fatos em sua plenitude, o que está a
exigir efetivamente se confronte o DNA do filho da reclamante com o `material biológico
sangue periférico' (fls. 113) dos policiais federais e outras pessoas, [...]”. Na parte final do voto
o Ministro concluiu: “[...] todos esses aspetos que se acrescem, como bens jurídicos da
comunidade — na expressão de Canotilho, referido às fls. 162 — ao direito fundamental à
honra (CF, art. 5º, X) já examinado, estão a autorizar se estabeleça restrição, no caso concreto,
ao invocado direito à intimidade da reclamante”. (Supremo Tribunal Federal. Reclamação n.
2040 — Distrito Federal. Julgamento: 21/02/2002. Tribunal Pleno. Rel. Min. Néri da Silveira,
DJ. 27.06.2003. Ementário n. 2116-1.)
70
direito prima facie e a norma que estabelece a restrição.72 O direito definitivo
será extraído depois de empregado o raciocínio ponderativo, tendo-se em conta
o imperativo de proporcionalidade. Por estas mesmas razões, a teoria externa é
incompatível com a noção de que as normas de direito fundamental
estabelecem apenas comandos definitivos (regras).73
Em síntese esquemática, a teoria externa preceitua que: i) os direitos
fundamentais são princípios, veiculando comandos prima facie; ii) os direitos
fundamentais são restringíveis; iii) as restrições aos direitos fundamentais são
motivadas pela existência de conflitos entre estes e outros direitos e bens
constitucionais; iv) a legitimidade constitucional da restrição é de ser
examinada mediante um juízo de ponderação, que irá sopesar os direitos e bens
em conflito, através da aplicação do princípio da proporcionalidade.
3.3) Algumas teses diferentes
3.3.1) O aporte de Peter Häberle: a tese que concilia ponderação e direitos
irrestringíveis
Como se viu, as teses no sentido de que os direitos fundamentais não são
passíveis de restrição usualmente estão associadas a severas críticas ao método
da ponderação de interesses. Não obstante, há certos segmentos da doutrina
que preconizam que o conteúdo de direitos não-restringíveis pode ser
determinado por meio da ponderação.74
Como assinala BOROWSKI, Martín, um aspecto que aparta a teoria interna da externa
consiste no fato de que aquela concebe o processo de interpretação dos direitos fundamentais
como uma tarefa de verificação da existência do direito, de modo que “o conteúdo aparente
do direito não compreende nenhuma posição normativa, mas apenas um fenômeno por
elucidar em termos de reconhecimento do juridicamente devido. Quem unicamente pode
invocar um direito aparente, atua sem direitos, e não com direitos reduzidos ou restringidos”.
La estrutura de los..., op. cit., p. 69-70.
73
Idem, ibidem, p. 66. Essa tese é acolhida por grande parte da doutrina espanhola. Vejam-se,
por exemplo: GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit.; SANCHÍS, Luis
Prieto. La limitación de los..., op. cit., (1990); CRUZ, Rafael Naranjo de la. Los límites de los
derechos fundamentales en las relaciones entre particulares: La buena fe. Madrid: Centro
de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000; CATOIRA, Ana Aba. La limitación de los
derechos en la jurisprudencia del Tribunal Constitucional Español. Valencia: Tirant lo
Blanch, 1999; ARNAU, Juan Andrés Muñoz. Los límites de los derechos fundamentales en
el derecho constitucional español. Pamplona: Aranzadi, 1998 e, PECES-BARBA MARTINEZ,
Gregorio. Curso de derechos fundamentales. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid,
1999. Entre nós, aproxima-se dessa concepção: SARMENTO, Daniel. A ponderação de..., op.
cit.
74
Um inventário dessas teorias na dogmática alemã pode ser encontrado em BOROWSKI,
Martin. Grundrechte als prinzipien. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1998, p. 111.
Apud BOROWSKI, Martín, La estrutura de los..., op. cit., p. 83.
72
Um conceituado defensor dessa noção é Peter Häberle, que defende o
recurso à ponderação para apurar o conteúdo juridicamente protegido de
direitos fundamentais irrestringíveis.
Häberle sustenta que os direitos fundamentais são, em sua essência,
ilimitáveis. Em sua ótica, a “essência” dos direitos fundamentais e seu conteúdo
constitucional identificam-se. Os marcos que delimitam o conteúdo essencial do
direito fundamental, que se afigura irrestringível, são dados pelos limites
imanentes. Tais limites não são identificados após um processo pelo qual os
direitos são restringidos por outros bens e valores constitucionais, mas estão
postos na Constituição “desde o princípio,” podendo ser extraídos diretamente
do texto constitucional e das leis gerais situadas na esfera temática dos direitos
fundamentais, que os concretizam.75 Portanto, em relação a esses aspectos, sua
obra coincide com os postulados fundamentais da teoria interna. As lições
contidas em seu conhecido trabalho sobre o conteúdo essencial dos direitos
fundamentais76 são bem claras nesse sentido:
O legislador, que concretiza no campo dos direitos fundamentais
os limites conforme a essência, regula limites que existem desde o
princípio. Só este “desde o princípio” ajusta-se à natureza destes
limites imanentes dos direitos fundamentais: não aparecem como
limites suplementares e que chegam aos direitos fundamentais
desde fora. Os direitos fundamentais são limitados desde o
princípio por aqueles bens jurídicos de igual ou superior
hierarquia que, assim como eles mesmos, encontraram
reconhecimento jurídico-constitucional. A concretização dos
limites, e isso vale também para as reservas especiais de lei, não é
um processo que afete os mencionados direitos “desde fora”. Os
direitos são garantidos desde o princípio dentro dos limites a eles
imanentes da generalidade material do sistema axiológico
jurídico constitucional. Este “desde o princípio” contrapõe-se em
Em relação a esse aspecto, cumpre observar que, para HÄBERLE, Peter, a legislação no
âmbito dos direitos fundamentais não impõe limites “desde fora”. Em suas palavras, a relação
entre lei e conteúdo do direito fundamental pode ser assim colocada: “qualquer limitação de
um direito fundamental é uma parte da determinação do conteúdo. A limitação e a
delimitação de conteúdo vão juntas.” La garantia del contenido..., op. cit., p. 167.
76
HÄBERLE, Peter. La garantía del contenido esencial…, op. cit.. Essa edição espanhola
consubstancia tradução integral da tese de doutorado de Häberle, originalmente publicada
como Die wesensgehaltgarantie des art. 19 abs. 2 grundgesetz: zugleich ein beitrag zum
institutionellen verstaendnis der grundrechte und zur lehre vom gesetzesvorbehalt.
Karlsruhe: Mueller, 1962. Há, também, as seguintes traduções parciais desse mesmo trabalho
no idioma italiano e em castelhano: Le libertà fondamentali nello stato costituziole. Roma:
Nuova Italia Scientifica, 1996 e La libertad fundamental en el estado constitucional.
Granada: Comares, 2003.
75
especial àquela interpretação que parte ab initio de uma
liberdade absoluta, ilimitada, que logo é corrigida através de
“constrições” no sentido de uma concessão ou de uma mera
“correção” para atender quaisquer exigências ou necessidades
externas. [...] Este “desde o princípio” expressa que os direitos
fundamentais só se estendem até onde não lesionem ou não
ponham em perigo bens jurídicos de igual ou superior hierarquia,
que com a concretização dos limites imanentes não se lhes priva
de nada que não lhes corresponda “per si”. Se faz claro que se
regulam limites internos da liberdade e o titular de direitos
fundamentais é remetido a limites que, em virtude da
Constituição, existiram “desde o começo”, desde o princípio.77
Assim, Häberle acredita que os limites imanentes dos direitos
fundamentais estão preestabelecidos na Constituição, de modo que a ação
legislativa, mesmo quando expressamente autorizada por reservas de lei, terá
sempre natureza concretizadora de limites que já existiam. Dito de outro modo,
ao legislador cabe, tão-somente, interpretar limites que defluem logicamente do
texto constitucional. Sem embargo, paralelamente a isso, Häberle não critica o
método da ponderação. Ao contrário, apregoa que na identificação do conteúdo
dos direitos fundamentais é indispensável uma ponderação que tenha em conta
os diversos direitos e bens constitucionais. Em suas palavras, “o princípio
através do qual cabe determinar o conteúdo e os limites dos direitos
fundamentais, e através do qual se solucionam os conflitos que surgem entre
bens jurídico-constitucionais é o princípio da ponderação de bens”.78
Cabe destacar que, para o autor germânico, “os bens jurídicoconstitucionais concorrentes não estão uns em relação aos outros numa relação
de supra ou subordinação no sentido de que possam ser utilizados uns contra
os outros”, mas, ao contrário “estão coordenados uns com os outros”.79 Nessa
linha de raciocínio, Häberle entende que os limites dos direitos fundamentais
devem ser percebidos a partir da totalidade da Constituição, só podendo ser
compreendidos em conexão com os diversos bens e direitos
constitucionalmente protegidos. Essa premissa, na sua visão, é fundamental
para obter um equilíbrio entre os direitos. E tal equilíbrio há de ser obtido
exatamente por meio da ponderação, através da qual “tem lugar a inserção dos
bens jurídico-constitucionais no conjunto da Constituição, ou, melhor dito, esta
inserção é simplesmente executada pois já resulta da Constituição”.80
HÄBERLE, Peter. La garantia del contenido..., op. cit., p. 57.
Idem, ibidem, p. 33.
79
Idem, ibidem, p. 39.
80
Idem, ibidem, p. 40.
77
78
O autor engendra, assim, uma formulação que acomoda as premissas
fundamentais da teoria interna sem abrir mão do método da ponderação de
interesses.
Essa concepção apresenta certos inconvenientes metodológicos. De um
lado, parece bastante contraditório afirmar que as leis solucionam conflitos de
bens para determinar limites que já estavam previamente estatuídos na
Constituição. É que a noção de que os limites dos direitos já existem no texto
constitucional “desde o começo” não se harmoniza com a tese de que os bens
protegidos podem entrar em conflito. Ademais, quando se entende que a
ponderação é um método para determinar o conteúdo do direito fundamental,
que já existiria “desde o início” na Constituição, acaba-se por igualar o objeto da
ponderação com o seu resultado. Equipara-se, assim, o sopesamento de bens a
uma descoberta. Não fica claro, desse modo, se há diferença entre o que é
ponderado e o que é protegido em definitivo.81
Deve-se ressaltar, também, que a tese segundo a qual o legislador, em
qualquer caso, concretiza os limites dos direitos que já existiam na Constituição
“desde o princípio”, acaba por conferir um peso excessivo ao conteúdo das leis
reguladoras, confundindo-as com a própria proteção constitucional do direito.
Essa construção, a pretexto de assegurar a supremacia da Constituição, implica
um controle menos severo da atividade legislativa, que é vista como meramente
interpretativa.
3.3.2) A concepção de Vieira de Andrade: irrestringibilidade abstrata e
restringibilidade concreta
Na doutrina portuguesa, José Carlos Viera de Andrade apresenta visão
singular, que associa elementos das teorias externa e interna, defendendo
simultaneamente que os direitos não-sujeitos à reserva legal são irrestringíveis
no plano abstrato e que é possível recorrer à ponderação para solucionar
conflitos de direitos no plano concreto.
O referido autor, sem negar a possibilidade lógica de conflitos entre
direitos fundamentais, sustenta que só é possível falar em restrições legislativas
aos direitos nos casos categoricamente permitidos pela Constituição. Assinala,
pois, que “a limitação legislativa de um direito em caso de colisão com outro
direito ou valor constitucional, fora dessas hipóteses [restrições autorizadas
pela Lei Maior], tem de ser outra coisa que não uma restrição, sob pena de se
defraudar a proibição de restrição fora dos casos previstos”.82
Vieira de Andrade procura distinguir as restrições legislativas – só
admitidas, na sua visão, quando expressamente autorizadas pela Carta –, dos
81
82
BOROWSKI, Martin. La estrutura de los..., op. cit., p.83-84.
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., op. cit., p. 281.
limites imanentes e dos conflitos de direitos e colisões entre direitos e bens. 83
Partindo das diferenças que vislumbra entre essas três categorias, o autor
apresenta duas soluções díspares conforme se trate de promover uma
resolução abstrata de conflitos, a ser efetivada pelo legislador, ou um solução
concreta de conflitos, a ser efetivada pelo Judiciário.
Em conformidade com sua tese de que as restrições legislativas só são
possíveis quando expressamente autorizadas pelo texto constitucional, Vieira
de Andrade sustenta que o legislador, para solucionar conflitos de direitos no
plano abstrato, só pode valer-se de “leis harmonizadoras, que, não estando
autorizadas a restringir direitos, visam justamente a apenas consagrar, de
forma geral e abstrata, soluções para resolução de conflitos”.84 No ponto de vista
do autor, “a limitação de direitos (ou de direitos e de valores comunitários)
numa situação abstrata de colisão [...] corresponde a uma mera interpretação”.85
Assim, a solução abstrata de conflitos é algo diverso das restrições legislativas:
[...] na restrição, como se visa assegurar um direito ou valor
comunitário que a Constituição considerou posto em risco por um
direito potencialmente agressivo, o legislador está autorizado a
operar predominantemente através de critérios de ponderação e
pode estabelecer preferências, enquanto na solução abstrata de
conflitos, o legislador tem de pautar-se obrigatoriamente por
critérios de mera harmonização e deve, em regra, utilizar
conceitos flexíveis, que permitam a consideração das
circunstâncias concretas nos casos em que as leis venham a
aplicar-se.86
Portanto, no plano abstrato, Vieira de Andrade só admite o recurso à
ponderação quando tratar-se de leis que disciplinem direitos fundamentais
sujeitos à reserva legal. Quanto aos direitos não submetidos à reserva, apenas
Para ANDRADE, José Carlos Vieira de, os limites imanentes são: “As fronteiras definidas pela
própria Constituição que os cria ou recria.” Ibidem, p. 282. Já as restrições, em sua ótica, são
apenas aquelas explicitamente autorizadas pela Constituição. Idem, ibidem, p. 292. As
colisões e conflitos, na visão do autor, ocorrem “sempre que se deva entender que a
Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição numa
determinada situação concreta (real ou hipotética). A esfera de protecção de um direito é
constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito ou de
colidir com uma outra norma ou princípio constitucional. O problema agora é o de saber
como vai resolver-se esta contradição relativa ao caso concreto, como é que se vai dar solução
ao conflito entre bens, quando ambos (todos) se apresentam efetivamente protegidos como
fundamentais.” Ibidem, p. 311.
84
Idem, ibidem, p. 311.
85
Idem, ibidem, p. 282.
86
Idem, ibidem, p. 281.
83
seria possível a harmonização legislativa dos direitos, visando a oferecer
critérios gerais para a resolução de conflitos concretos pelo Judiciário.
Já para solucionar conflitos que se apresentem no plano concreto, o autor
admite o recurso ao juízo de ponderação, que há de ser orientado pelo princípio
da concordância prática. Este princípio, segundo o autor, “executa-se [...]
através de um critério de proporcionalidade da distribuição dos custos do
conflito”. Nada obstante, “sempre que não seja possível graduar as soluções
concretas em termos correspondentes, ponto por ponto, às graduações de
protecção dos respectivos bens no caso concreto, torna-se necessário
estabelecer a preferência de um direito sobre o outro, em termos que poderão
mesmo equivaler, na prática, ao sacrifício total do direito preterido”.87
Daí se infere que, na percepção de Vieira de Andrade, a ponderação pode
ser empregada pelo legislador, quando se tratar de restringir direitos sujeitos à
reserva legal; e pelo juiz, quando se trata de solucionar conflitos concretos
entre direitos e bens constitucionais. Dessa forma, o autor engendra uma tese
que, em última análise, implica afirmar que os direitos são irrestringíveis no
plano abstrato, pelo legislador, mas são restringíveis no plano concreto, pela
atuação judicial.
Tal construção também apresenta problemas. De fato, é difícil imaginar o
conteúdo das leis puramente harmonizadoras a que se refere Vieira de
Andrade, as quais devem manter-se dentro das tênues fronteiras que separam o
mero estabelecimento de critérios orientadores da ponderação das restrições
aos direitos fundamentais.88 É que, no mais das vezes, não se afigura possível
harmonizar direitos e bens constitucionalmente protegidos sem estabelecer
restrições recíprocas.
Idem, ibidem, p. 316.
Nas palavras do autor: “Parece-nos, porém, que tem sentido, no que respeita à relação entre
a Constituição e o legislador — isto é, num plano geral e abstracto —, distinguir entre as leis
restritivas e as leis harmonizadoras, que solucionam problemas de colisão. A diferença, que é
relevante justamente para efeitos do grau ou do tipo de vinculação legislativa aos preceitos
constitucionais, estará, então, em que a lei restrictiva propriamente dita pressupõe o conflito
entre um direito (potencialmente) agressivo e um direito ou valor (potencialmente) vítima,
de modo que a restrição implica e visa sempre a diminuição do conteúdo protegido de um
direito (muitas vezes da liberdade ou de uma liberdade), em função da necessidade de
proteger um outro direito ou um valor comunitário que seria prejudicado pelo exercício não
limitado daquele. Por sua vez, as leis que solucionam problemas de colisão têm um objectivo
diferente, já que visam estabelecer critérios de harmonização, que limitam ambos os direitos
(ou valores), na proporção do respectivo peso normativo nas situações hipotizadas. Por outro
lado, enquanto as leis restritivas tendem a formular de forma precisa, em abstracto, as limitações introduzidas aos direitos restringidos, as leis harmonizadoras serão tendencialmente
mais abertas, definindo, em regra através de conceitos com um elevado grau de
indeterminação, critérios que vão permitir a ponderação dos direitos ou valores conflituantes
nos casos concretos”. Idem, ibidem, pp. 224-225.
87
88
De outro lado, não parece adequado afirmar que o legislador não tenha
competência para estabelecer normas contemplando restrições que, em
concreto, poderiam ser determinadas pelo juiz. Isso porque, desde a
perspectiva do caráter vinculativo dos direitos fundamentais, não se concebe
como possam os juízes ingressar em seara que estaria vedada ao legislador. E,
no quadro da divisão funcional do poder, não há razão alguma que justifique
negar ao Parlamento a possibilidade de normatizar uma determinada
interpretação da Constituição que pudesse, afinal, vir a ser estabelecida pelo
Judiciário. De forma bem diversa, o que se costuma defender é que o Poder
Judiciário deve, salvo nos casos de inequívoca inconstitucionalidade, acatar as
ponderações efetivadas pelo Parlamento.89
3.4) As críticas postas às teorias interna e externa
Cada uma das formulações teóricas abordadas atribui a outra,
reciprocamente, inúmeras críticas, o que decorre do fato de se erigirem sobre
pressupostos totalmente diversos.
Os opositores da teoria externa sustentam que esta, por admitir a
possibilidade de a esfera de proteção dos direitos vir a ser limitada por outros
direitos ou bens constitucionais, favorece a multiplicação desordenada de
conflitos entre os direitos fundamentais. A proliferação de colisões entre os
direitos fundamentais acarretaria, segundo essa visão, seu enfraquecimento,
porquanto não há critérios objetivos que permitam identificar quando certos
direitos devem prevalecer sobre outros. O princípio da ponderação de bens90 —
que se encontra intrinsecamente ligado aos conflitos de direitos fundamentais é
— também severamente criticado. Afirma-se que esta técnica, ao atribuir ao
Judiciário o papel de estabelecer uma solução que envolve, necessariamente,
juízos de valor subjetivos, compromete a garantia da segurança jurídica e
desqualifica a legitimidade democrática das decisões.91 O que os adeptos da
Veja-se, por todos, SARMENTO, Daniel. A ponderação de..., op. cit., p. 115-116. Uma análise
mais detalhada dessa ideia é feita nos itens 3.3.3 do capítulo IV e 3.2.3 do capítulo V de
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional…, op. cit.. Confira-se, ainda,
BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão, direito à informação e banimento da
publicidade de cigarro. In: Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001,
p. 243-273.
90
A qualificação da ponderação como princípio, empregada no constitucionalismo germânico,
foi trazida para o diálogo jurídico brasileiro por TORRES, Ricardo Lobo. Da ponderação de
interesses ao princípio da ponderação. In: ZILLES, Urbano (coord.). Miguel Reale: estudos em
homenagem a 90 anos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 643-651.
91
Para OTTO Y PARDO, Ignacio de, que adere à teoria interna: “A ponderação de bens ou é o
nome com que se designa o que em realidade é um exame da adequação da medida ao bem,
ou serve para resolver o problema prévio de se o bem está ou não constitucionalmente
protegido, o que supõe a dupla operação de determinar se o direito goza de reconhecimento
constitucional e, em segundo lugar, se sua constitucionalidade se traduz em resistência frente
89
teoria interna pretendem é exatamente eliminar o critério extratextual da
interpretação, buscando a solução para o problema dos limites dos direitos
diretamente no texto constitucional. Acredita-se que o raciocínio semântico,92
aliado aos métodos sistemático93 e teleológico,94 oferece mais certeza e
previsibilidade do que o juízo ponderativo.
Outra objeção deduzida contra a teoria externa afirma que esta subverte a
composição hierárquica do ordenamento jurídico. Nesse sentido, Friederich
Müller considera que o recurso ao método ponderativo acarreta a
supervalorização da lei e das normas infraconstitucionais, que são sopesadas
diretamente com as normas constitucionais.95
Há, ainda, uma censura de caráter pragmático que é feita à teoria externa:
afirma-se que esta, ao adotar uma visão excessivamente ampliativa dos direitos,
favorece o surgimento de falsos casos constitucionais, sobrecarregando as já
assoberbadas Cortes competentes para analisá-los.
ao direito fundamental, em oponibilidade frente a este.” La regulación del exercício..., op. cit.,
pp. 123-124.
92
MÜLLER, Friedrich averba que: “A teoria geral dos direitos fundamentais pode elaborar de
forma satisfatória, partindo da análise dos campos normativos e da dogmática regional
aplicada aos direitos fundamentais especiais, os fatores de concretização necessários a sua
delimitação e sua combinação com outras normas da ordem jurídica constitucional.”
Discours de la méthode juridique. Paris: Presses Universitaires de France, 1996, p. 93.
93
OTTO Y PARDO, Ignacio de, assinala que: “Se se delimita o alcance da proteção que presta o
direito fundamental, os problemas tratados como limitação para proteger outros bens
constitucionais mostram ser, em verdade, quando se trata verdadeiramente de bens dessa
índole, problemas de interpretação sistemática e unitária da Constituição nos quais não é
necessária ponderação alguma de bens e valores, nem por conseguinte hierarquização dessa
natureza, mas um exame pormenorizado do conteúdo de cada uma das normas. Não cabe
dizer, então que o direito ou liberdade devem “ceder” ante outros bens e direitos
constitucionalmente protegidos — por exemplo, a liberdade de consciência frente ao dever de
contribuir para o sustento dos gastos públicos — porque aquele tenha um maior peso ou um
grau inferior, mas que é a própria Constituição que delimitou com uma norma a extensão da
proteção jurídica dispensada pelo direito [...] Nada, portanto, de hierarquia de bens e valores,
mas exegese dos preceitos constitucionais presentes, determinação de seu objeto próprio e
do conteúdo de seu tratamento jurídico. Em definitivo interpretação unitária e sistemática da
Constituição”. La regulación del exercício...,op. cit., pp. 143-144.
94
SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando, asseveram que “o conteúdo essencial — que propomos
como pedra de toque da solução alternativa aos métodos que vimos criticando — não deve
estabelecer-se desde um conceito de cada direito puramente semântico ou formal, mas de
uma noção teleológica do mesmo, quer dizer, atendendo à finalidade para a qual tenha sido
formulado historicamente e a outras que tenham ido agregando-se com o passar do tempo.
Tal conteúdo vem dado não tanto pelo que significam as palavras cunhadas para referir-se ao
concreto direito de que se trate [...] quanto dos bens humanos de que se pretenda proteger
com a liberdade que se trata.” La interpretación constitucional...,op. cit., pp. 51-52.
95
Apud PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos
fundamentales: el principio de proporcionalidad como criterio para determinar el contenido
de los derechos fundamentales vinculante para el legislador. Madrid: Centro de Estudios
Políticos y Constitucionales, 2003, p. 444.
Ademais, os defensores da teoria interna, usualmente, destacam que a
ideia de limitações externas aos direitos fundamentais implica desconsiderar a
dimensão finalística destes, entendendo-os como “espaços de arbitrariedade
desprovidos de fins”.96 Afirma-se que a noção de conflitos e de limitações aos
direitos deflui de uma leitura individualista que concebe as pessoas como seres
isolados, sem tomar em conta sua inserção no contexto social e comunitário.
A teoria interna é também objeto de críticas contundentes e articuladas. A
crítica mais importante ampara-se na experiência. Sustenta-se que o alto grau
de abertura semântica das normas de direito fundamental, aliado à
complexidade dos problemas concretos que as envolvem, torna evidente a
dificuldade de precisar os contornos dos direitos de forma inequívoca,
mediante mero recurso à subsunção.
De outro lado, sublinha-se que, ainda que se admita que tal operação
hermenêutica é factível, desconsiderar o caráter restritivo das normas jurídicas
e das decisões judiciais importa, em última análise, em dispensar técnicas que
visam a controlar as limitações aos direitos (reserva de lei, proporcionalidade e
conteúdo essencial).97 Nessa linha de argumentos, Medina Guerrero,
comentando os efeitos nocivos da teoria interna, assevera que:
Tudo se confia, em suma, à operação dogmática de interpretar o
conteúdo do direito. E é aqui, precisamente, que residem os
perigos dessa tese. Pois parte da convicção de que é viável
encontrar nos direitos, com o pertinente esforço hermenêutico,
alguns limites imanentes dotados de uma dimensão certa e
inamovível, quando em verdade o reconhecimento de ditos limites
e a apreciação de seu alcance depende da perspectiva subjetiva do
intérprete. E, frente a esta decisão subjetiva, a tese em questão
não oferece nenhum instrumento de controle: as controvérsias
SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional..., op. cit., p. 53. Nesse
sentido, também, CANCIARDO, Juan. El conflictivismo en los..., op. cit., que imputa à teoria
externa uma visão de liberdades desteleogizadas.
97
GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit., p. 60. Sem embargo, como
se destacou no tópico precedente, há certos autores que, propugnando a irrestringibilidade
dos direitos, aceitam o recurso à ponderação e o manejo do princípio da proporcionalidade.
Nesse sentido, HÄBERLE, Peter. La garantia del contenido..., op. cit., passim. Há ainda
autores que, a despeito de sustentarem que os direitos são ilimitáveis e de refutarem a
ponderação como método, admitem a utilização do princípio da proporcionalidade. Nesse
sentido, CIANCIARDO, Juan. El conflictivismo en los..., op. cit. Na mesma linha de princípio,
SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando, afirmam que “como se trata de obter o modo mais
razoável de ajustar os direitos ou bens, não haverá inconveniente em aplicar também os
testes de razoabilidade e proporcionalidade, ainda que estes sejam usualmente empregados
no balancing test e no segundo nível de análise que leva aparelhada a teoria dos limites
externos. Ditos testes podem ser de grande interesse na hora de elucidar qual é o verdadeiro
direito no caso”. La interpretación constitucional..., op. cit., p. 143.
96
sobre direitos fundamentais são resolvidas mediante o espontâneo
expediente de declarar se a situação questionada forma ou não
parte do conteúdo do direito, sem ulterior argumentação. E, como
isso, corre-se o risco de que na resolução das controvérsias
incorra-se no puro decisionismo, que se apresenta, sem embargo,
envolto sob a aparência de subsunção jurídica.98
A principal objeção à teoria interna, portanto, é de que o caráter
aparentemente neutro e técnico da operação de delimitação do conteúdo
importa em escamotear as considerações de ordem moral subjacentes,
inviabilizando o controle das verdadeiras razões da decisão.
3.5) Aprofundamento das diferenças entre as duas teorias
A disputa estabelecida entre as teorias interna e externa tem por pano de
fundo três controvérsias fundamentais, que dizem respeito: i) à estrutura
normativa dos direitos fundamentais; ii) à leitura filosófica e constitucional do
princípio da liberdade; iii) ao papel que deve ser atribuído aos tribunais no
sistema democrático, refletido nos métodos de interpretação por eles
empregados.
No que tange à estrutura normativa dos direitos, a percepção das duas
teorias é substancialmente distinta. Da análise que se fez das teorias internas e
externas, constata-se que uma tendência das primeiras é conceber os direitos
fundamentais como regras ou comandos definitivos, enquanto as segundas
visualizam os direitos como princípios, entendidos estes como comandos de
otimização, que podem ser parcialmente cumpridos ou afastados em certas
circunstâncias sem comprometimento de sua validade jurídica.
Dessa divergência decorre outro elemento distintivo importante. A teoria
externa, ao compreender o conteúdo normativo dos direitos como comandos
prima facie, tenderá a definir o âmbito de proteção inicial do direito de modo
bastante amplo, inserindo, neste, todo o tipo de posições jurídicas e condutas
relacionadas com o comando normativo positivado na Constituição. Esse
conteúdo prima facie, fixado com base em critérios bem flexíveis, não poderá,
muitas vezes, ser efetivado em toda a sua extensão, porquanto tenderá a entrar
em conflito com os âmbitos de proteção prima facie de outros direitos, também
fixados de forma dilatada. Daí decorre a possibilidade de restrição dos direitos,
determinando-se, mediante um juízo ponderativo orientado pelo princípio da
proporcionalidade, o âmbito de proteção definitiva do direito. Já a teoria interna,
ao entender que a esfera de proteção definitiva do direito já está, desde o
princípio, fixada no texto constitucional, tenderá a empregar critérios mais
98
GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit.
estritos e rigorosos na fixação de seu conteúdo.99 Como nessa moldura teórica o
direito não é restringível, mas já traz consigo suas diversas limitações, a
interpretação de sua esfera de proteção constitucionalmente estabelecida será
feita de forma mais rigorosa, numa só operação hermenêutica que tenha em
conta aspectos semânticos, teleológicos e sistemáticos.
Daí resulta que, para a teoria externa, a tutela jurídica do direito é
decomposta em duas dimensões: sua esfera de proteção constitucional prima
facie e sua esfera de proteção definitiva. Já para a teoria interna, há apenas um
conteúdo constitucionalmente protegido, de modo definitivo e previamente
estatuído, não havendo que distinguir-se a esfera de proteção inicial, de sua
esfera de proteção final.
De outro lado, as duas concepções assentam-se em pressupostos políticofilosóficos distintos, sendo o ponto nodal dessa discrepância a compreensão do
‘liberdade’. A teoria interna prestigia a perspectiva comunitária do fenômeno
jurídico, entendendo que os direitos fundamentais devem ser entendidos como
faculdades conferidas a pessoas socialmente situadas. A teoria externa,
diversamente, tem acentuado matiz liberal, na medida em que pressupõe que a
liberdade é a regra, entendendo que as exigências postas pela vida em
comunidade e pelos direitos das outras pessoas podem, eventualmente,
legitimar a imposição de restrições à autonomia individual.
Essas duas formas de entender a posição do indivíduo no quadro do
Estado Democrático de Direito relacionam-se à leitura que estas teorias fazem
da liberdade como valor e como princípio constitucional. A teoria interna tem
por lastro filosófico a noção de liberdade positiva, dando ênfase, assim, à
dimensão comunitária dos direitos fundamentais. Nessa perspectiva, a
liberdade é conferida pelo Direito, que determina a priori quais são as condutas
admissíveis e legítimas na esfera social.
ALEXY, Robert, distingue, em relação a esse aspecto, a “teoria estreita” do suposto de fato e
“teoria ampla” do suposto de fato. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 300 et seq. A primeira
— que está associada a teoria interna — pretende determinar com precisão as formas de
exercício de cada direito fundamental, excluindo de seu “suposto de fato” certas condutas
que, por suas características, constituam exceções à esfera de incidência do direito, o que
implica ausência de proteção jusfundamental em definitivo. Um exemplo de teoria estreita do
suposto de fato é a de Friedrich Muller. Em seu célebre exemplo, pintar num cruzamento
movimentado não é uma ação tutelada pela norma que protege a liberdade artística. Já a
teoria ampla do suposto de fato, defendida por Robert Alexy, impõe uma interpretação ampla
dos enunciados que veiculam direitos fundamentais, de modo que toda ação humana que
apresente pelo menos uma propriedade subsumível ao suposto de fato deve ser entendida
como uma forma de exercício do direito fundamental, tutelada prima facie. Assim, no caso do
pintor no cruzamento, sua ação é tutelada pela liberdade artística porque é uma ação
artística, mas é também outra coisa, ou seja, uma perturbação ao trânsito. Essa segunda
característica implicará a exclusão dessa ação do âmbito de proteção definitivo do direito,
mas não significa que esteja excluída de seu âmbito de proteção prima facie.
99
Essa noção de liberdade foi explicada com maestria por Isaiah Berlin, em
sua afamada obra sobre o tema.100 O autor demonstra como paralelamente ao
conceito de liberdade negativa, entendida como a ausência de obstáculos
externos, veio a ser engendrada a ideia de liberdade positiva,101 que concebe a
autonomia das pessoas não como manifestação da individualidade, mas como
elemento de um projeto coletivo.102 De acordo com Berlin, a ideia de liberdade
positiva liga-se ao desejo do indivíduo de ser seu próprio amo e senhor, tendo
suas origens na reivindicação de autonomia individual.103 Contudo, esse conceito
foi transfigurado à medida que se passou a entender que a identidade das
pessoas é moldada pelos grupos em que estas se inserem, os quais passam a
desempenhar o papel de um verdadeiro “eu”. Torna-se justificável, nessa
perspectiva, que a comunidade determine certos modos de vida e condutas com
o escopo de viabilizar que as pessoas alcancem sua autêntica identidade.104
De fato, desde a perspectiva da noção de que os direitos são irrestringíveis,
a liberdade das pessoas não pode ser limitada a posteriori, pois seus contornos
já vêm preestabelecidos através dos direitos fundamentais outorgados pela
BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: UNB, 1981.
Como esclarece TORRES, Ricardo Lobo, a expressão liberdade positiva é ambígua, sendo
empregada pelos filósofos com diversos sentidos. A cidadania multidirecional na era dos
direitos. In: Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 257. Neste
trabalho, a referida locução é tratada com o sentido que lhe confere Isaiah Berlin, qual seja, a
liberdade entendida como realização da identidade comunitária.
102
Segundo o autor, a distinção entre as duas modalidades de liberdade pode ser entendida a
partir de duas perguntas. Nas palavras do autor: “A resposta à pergunta “Quem me governa?”,
do ponto de vista da lógica, é distinta da pergunta “Até que ponto o governo interfere
comigo?” É nesta diferença que consiste, no final, o grande contraste entre os conceitos de
liberdade positiva e liberdade negativa. Pois o sentido “positivo” de liberdade vem à luz se
tentarmos responder não à pergunta “Estou livre para fazer o quê ou para ser o quê?”, mas a
“Por quem sou governado?” ou “O que significa dizer o que sou e o que não sou, o que ser ou o
que fazer?” A relação entre democracia e liberdade individual é bem mais tênue do que
pareceu a muitos defensores de ambas. O desejo de ser governado por mim mesmo ou, pelo
menos, de participar do processo através do qual minha vida deve ser controlada, pode ser
um desejo tão profundo quanto o de uma área livre para ação, e talvez historicamente mais
antigo. Mas não é um desejo relativo à mesma coisa. Na realidade, é tão diferente, que levou,
em última instância, ao grande conflito de ideologias que domina nosso mundo. Pois é isto —
a concepção “positiva” de liberdade: não liberdade de, mas liberdade para — de levar uma
forma de vida prescrita — que os adeptos do conceito de liberdade “negativa” imaginam seja,
algumas vezes, nada mais do que um ilusório disfarce para a tirania brutal.” BERLIN, Isaiah.
Quatro ensaios..., op. cit., p. 142.
103
O autor observa que a noção de liberdade positiva, em sua origem, está ligada à ideia de
que o indivíduo quer ser seu próprio amo e senhor. Essa noção, que inicialmente não parece
antagônica à de liberdade negativa, acaba tornando-se a sua antítese: “A liberdade que
consiste em ser-se amo e senhor de si mesmo e a liberdade que consiste em não se ser
impedido por outros homens de escolher o que quero, pode, se a encararmos de frente,
parecer um conjunto de conceitos que não se acham muito separados um do outro...”. Ibidem.
104
Idem, ibidem, p. 143.
100
101
Constituição. Assim, nesse modelo, é a comunidade que — por meio do poder
constituinte originário — configura os fins, limites e meios de exercício da
liberdade pelas pessoas. Essa noção pode ser identificada na crítica de Häberle
à tese de que as liberdades são corrigidas mediante “constrições” para atender
exigências ou necessidades externas:
Esta interpretação desconhece que o indivíduo e a comunidade
possuem um valor intrínseco que se realiza de maneira ótima em
sua relação recíproca; ignora que o indivíduo está sempre na
comunidade e “no Direito”, que os necessita para seu
desenvolvimento e, ao contrário, a comunidade depende de que
sua personalidade desenvolva-se livremente.105
Diversamente, a teoria externa parte da premissa de que a liberdade,
entendida como poder de autodeterminação, é a regra geral, de modo que todas
as prescrições normativas que conformam a conduta das pessoas hão de ser
entendidas como restrições externas, que podem ser impostas com o escopo de
tutelar certos bens e valores coletivos e os direitos dos outros. Nesse modelo o
indivíduo tem, prima facie, um campo de ação amplo e indeterminado, podendo
escolher entre inúmeras formas de agir e expressar-se. O Direito pode vir a
conformar e restringir esse vasto acervo de opções iniciais, vedando certas
condutas ao fito de proteger direitos alheios e bens relevantes para a
comunidade. Entretanto, as limitações a serem impostas pelo Estado não
podem ir além do estritamente necessário para proteger os valores conflitantes.
Essa visão harmoniza-se com o ideal iluminista de liberdade, que concebe
os direitos do homem desde a perspectiva ex parte popoli,106 vale dizer, como
garantia dos indivíduos em face do poder público. Sem embargo, essa noção de
liberdade não se limita a concebê-la como mera garantia de não interferência
dos poderes públicos, mas é também compatível com a tutela dos direitos
sociais, entendidos como direitos individuais que visam a assegurar certas
condições materiais indispensáveis ao exercício efetivo da liberdade de ação.
Há, portanto, inegável identidade entre o conceito de liberdade adotado
pela teoria externa e os postulados basilares do liberalismo. No entanto, não se
trata de um modelo teórico radicalmente individualista e refratário às
demandas sociais. No modelo teórico externo, a autonomia das pessoas é tida
como valor fundamental, mas não ilimitado, já que pode ser restringida na
medida necessária à preservação das liberdades dos outros e de valores
HÄBERLE, Peter. La garantia del contenido..., op. cit., p. 57.
Sobre a perspectiva ex parte populi como elemento inerente à filosofia iluminista veja-se
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de
Hannah Arendt. São Paulo: Cia. das Letras, 1991, p. 125.
105
106
comunitários.107 Ademais, a concepção de liberdade que orienta a teoria externa
não desconsidera que seu exercício se dá no âmbito de certas realidades
constitucionais concretas, razão por que as limitações podem derivar não só
das exigências da vida em sociedade e da necessidade de proteger os direitos
dos outros, mas também de certos princípios comunitários positivados na
Constituição.
Todavia, cabe ter em conta que esse desacordo filosófico não pode ser
tratado à margem da ordem constitucional específica em que se trave a
discussão sobre o emprego da teoria interna ou externa. Em tese, as
Constituições com dimensão solidarística mais acentuada tenderão a incentivar
o emprego de técnicas hermenêuticas associadas à teoria interna, enquanto
Cartas com coloração liberal acomodarão com maior facilidade a abordagem da
teoria externa. Porém, o que normalmente acontece é o estabelecimento de
disputa sobre a presença, ou não, de um princípio geral de liberdade na própria
Constituição.108 Dessa forma, as lentes filosóficas utilizadas na leitura do texto
constitucional são determinantes para adotar, em qualquer sistema jurídico,
uma ou outra teoria.
Outra discordância subjacente à contenda teoria interna versus teoria
externa diz respeito ao papel atribuído aos Tribunais no quadro da separação de
Insta destacar que mesmo pensadores ultra-liberais — como John Locke — não concebem
a liberdade como algo ilimitado, mas admitem que os imperativos derivados da vida em
sociedade venham a limitá-la. No entanto, há na filosofia liberal o entendimento de que os
direitos individuais só podem ser restringidos por outros direitos individuais, nunca por
valores comunitários. Nesse sentido, RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática,
2000, p. 348, NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitucional. Buenos
Aires: Astrea, 1992, p. 481 e DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge,
Massachussets: Harvard University Press, 1978, p. 364 et seq; Rights as trumps. In:
WALDRON, Jeremy. Theories of rights. New York: Oxford University Press, 1990, pp. 153167.
108
No Constitucionalismo germânico, o Tribunal Constitucional reconhece a existência de um
direito geral de liberdade: BVerfGE (6,32) 1957. Nessa decisão, ficou consignado que: “a) A
Lei Fundamental quis significar com o `livre desenvolvimento da personalidade', não só o
desenvolvimento no interior de cada área da personalidade, que distingue a natureza do ser
humano como pessoa de costumes espirituais, já que não seria compreensível que o
desenvolvimento do interior desse âmbito pudesse ir contra os bons costumes, os direitos do
outro ou mesmo contra o ordenamento constitucional de uma democracia livre. Precisamente
esta restrição imposta ao indivíduo, como membro da sociedade, significa ao contrário que a
Lei Fundamental, no art. 2 inc. 1 LF, referiu-se à liberdade de atuar em sentido amplo. A
solene formulação do art. 2 inc. 1 LF foi certamente o motivo para analisá-lo à luz do art. 1 LF
e daí deriva que este teria por objeto caracterizar a imagem do ser humano contida na Lei
Fundamental. Sem embargo, com isso não se está dizendo nada mais do que o art. 1 LF
efetivamente pertence ao contemplado princípio da Constituição, que — como todas as
disposições da Lei Fundamental — rege o art. 2 inc. 1 da LF. Visto desde o ponto de vista legal,
tem o caráter de um direito fundamental, que garante a liberdade geral de ação humana” In:
SCHWABE, Jürgen. Cincuenta años de jurisprudencia del tribunal constitucional federal
alemán. Traducción de Marcela Anzola Gil. Colombia: Gustavo Ibáñez, 2003, pp. 20-22.
107
poderes. A crítica à ponderação formulada pela maior parte dos defensores da
teoria interna está relacionada à preocupação de impedir o decisionismo
judicial, mediante o estabelecimento de critérios hermenêuticos que se julga
possam tornar mais previsível e seguro o processo interpretativo. As teses
críticas da ponderação, normalmente, são coerentes com a noção de separação
de poderes que refuta a possibilidade de uma atuação criativa do Judiciário,
advogando o minimalismo como forma de neutralizar o déficit democrático
atribuído ao judicial review. Já a teoria externa, por estar atrelada à teoria dos
princípios, acaba por defender instrumentos hermenêuticos mais permeáveis a
considerações morais, aproximando-se de um modelo de justiça constitucional
que pressupõe um papel relevante e ativo do Judiciário no quadro da divisão
funcional do poder.
3.6) Análise crítica do tema. Razões teóricas e jurídico-positivas em
favor da teoria externa
O debate em torno da adoção da teoria interna ou da externa refere-se,
essencialmente, ao modo de fundamentar as decisões judiciais. Isso porque, na
maior parte das vezes, o resultado final a que se chega adotando um ou outro
modelo não é diferente.109 Nesse prisma, o que importa é saber qual é a
trajetória interpretativa a ser percorrida.110
Cabe então determinar que caminho hermenêutico é preferível para
solucionar problemas relativos a direitos fundamentais. E, para efetivar essa
escolha, é inevitável recorrer “a princípios externos à Constituição,”111 pois,
como adverte Michel Tropper, em se tratando de interpretar a Constituição,
Essa ideia é aceita tanto pelos adeptos da teoria externa quanto pelos defensores da teoria
interna. Vejam-se, por todos, SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación
constitucional..., op. cit., p. 18 e SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los derechos
fundamentales y la norma de clausura del sistema de libertades. Derechos y Libertades, n.8,
2000, p. 464.
110
Nesse sentido: OTTO Y PARDO, Ignacio de, assevera que sua crítica às decisões do Tribunal
Constitucional “quer questionar nas sentenças selecionadas não a solução dada aos casos,
mas o seu fundamento ou argumentação dogmática”. La regulación del exercício...,op. cit.,
p.147. Do mesmo modo, SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando, ao criticarem o emprego da
ponderação na sentença da Suprema Corte do Canadá no caso R. v. Keegstra, pontificam que “o
tribunal decidiu corretamente, mas seguindo um caminho incorreto.” Ibidem.
111
Expressão usada por SUNSTEIN, Cass. R. The partial constitution. Cambridge: Harvard
University Press, 1997, p. 93, que afirma: “Não há interpretação sem princípios
interpretativos, e estes não podem ser encontrados na Constituição. Isso não significa que
estamos no caos, ou diante de um abismo, ou que o Direito é simplesmente política. Isso
significa apenas que princípios externos devem ser identificados e defendidos.”
109
“não existe regra supraconstitucional prescrevendo o emprego de certos
métodos”.112
Assim, a opção por determinada forma de fundamentar decisões — ou de
explicar os problemas constitucionais — deve necessariamente passar pela
análise da adequação dos métodos empregados a certos objetivos políticoconstitucionais que se colima alcançar. Deveras, constitui communis opinio que
a objetividade, a controlabilidade, a transparência e a capacidade de persuasão
das decisões judiciais são desígnios a serem perseguidos. Partindo dessa
premissa, deve-se questionar em que medida cada um dos modelos explicativos
da interpretação dos limites dos direitos fundamentais (teoria interna e
externa) atende a esses objetivos. É de se indagar, também, qual delas é mais
adequada para explicar os problemas envolvendo direitos fundamentais que
surjam no quadro da Constituição de 1988, avaliada como ordem constitucional
concreta.
3.6.1) A existência de um direito geral de liberdade
Uma premissa fundamental na solução do problema da restringibilidade
dos direitos fundamentais diz respeito à existência (ou não) de um direito geral
de liberdade na Constituição. Trata-se de uma questão cujo deslinde é
fortemente condicionado pela orientação filosófica que se adote. Mas, ainda
assim, deve ser examinada à luz do ordenamento constitucional positivo, uma
vez que as Constituições, inequivocamente, veiculam preferências por
determinados valores e ideologias.113
Cuida-se de elucidar, como destaca Sanchís, se os direitos são “categorias
autônomas entre si ou especificações de um direito geral de liberdade”.114 Em
outros termos, cabe responder se o ordenamento consagra uma cláusula
genérica de acordo com a qual “tudo que não está constitucionalmente proibido
ou ordenado está permitido” ou, dito com outras palavras, “se tudo que não
pode ser proibido, ou comando com cobertura constitucional suficiente, deve
considerar-se permitido”.115 O fundamental não é tanto desvendar se os direitos
fundamentais têm relação direta com o princípio de liberdade, mas sim “se a
liberdade natural ou de fato conta no ordenamento jurídico com um respaldo
genérico, ou se, pelo contrário, só goza de reconhecimento na medida em que a
TROPPER, Michel. Pour une théorie juridique de l'état. Paris: Presses Universitaires de
France, 1994, p. 263.
113
Como assevera SANCHÍS, Luis Prieto, essa questão “não pode resolver-se em abstrato com
caráter geral, mas depende das determinações do Direito positivo e, em particular, da filosofia
política que está na base desse Direito positivo”. La limitación de los..., op. cit., p. 157.
114
Idem, ibidem.
115
Idem, ibidem.
112
conduta realizada pode ser incluída dentro do âmbito tutelado por um direito
subjetivo”.116
O dilema, portanto, diz respeito a saber se os diversos comandos e
proibições do ordenamento jurídico “encontram diante de si um direito geral
de liberdade ou o simples vazio jurídico”.117 Essa questão é altamente
controvertida. Como se destacou antes, o problema de saber se há um direito
geral de liberdade é fortemente condicionado pelo próprio conceito filosófico
de liberdade do qual se parta.
As repercussões hermenêuticas da aceitação, ou não, de um direito geral
de liberdade na ordem constitucional são muito abrangentes. Uma vez que se
identifique no ordenamento um direito à liberdade geral de agir, estar-se-á, em
palavras de Alexy, reconhecendo duas consequências jurídicas: “de um lado, a
cada qual está permitido prima facie — quer dizer, desde de que não
intervenham restrições — a fazer e omitir o que queira (norma permissiva).
Por outro, cada qual tem prima facie, quer dizer, na medida em que não
intervenham restrições, um direito, frente ao Estado, a que este não impeça
suas ações e omissões, quer dizer, não intervenha nelas (norma de direitos)”.118
Isso implica uma ampla cobertura jurídica a autorizar as diversas ações
humanas. E daí decorre, necessariamente, o entendimento das várias formas de
conformação legislativa da liberdade como restrições, que deverão, por isso
mesmo, estar justificadas constitucionalmente. De fato, um conceito tão
dilatado de liberdade jurídica é necessariamente correlativo de um conceito
amplo de restrição.
Assim sendo, há uma consequência prática muito relevante que advém do
reconhecimento de um direito geral de liberdade, que é precisamente “elevar a
critério hermenêutico fundamental que toda norma que imponha comandos ou
proibições, limitando assim a liberdade natural, há de ser concebida e tratada
como uma norma que limita direitos fundamentais”.119
É preciso, antes de tudo, determinar se há fundamento constitucional para
invocar o direito geral à liberdade. No sistema jurídico alemão, por exemplo,
Robert Alexy sustenta a existência desse direito com fulcro no art. 2.1 da Lei
Fundamental, que consagra o direito ao livre desenvolvimento da
personalidade.120 Já no ordenamento espanhol, Luis Prieto Sanchís extrai o
direito geral de liberdade do art. 16.1 da Constituição, que estabelece o direito à
liberdade religiosa e ideológica. Segundo este autor, a liberdade de consciência
Idem, ibidem, p. 158.
Idem, ibidem.
118
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 333.
119
SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., (2000), p. 434.
120
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 331 et seq.
116
117
contida no referido preceito deve necessariamente ter projeção prática,
abarcando a liberdade de agir segundo suas preferências e crenças.121
Na Constituição brasileira de 1988, é bastante fácil encontrar lastro para o
direito geral de liberdade.122 O art. 5º, caput, é explícito em consagrar o direito à
liberdade, ao lado do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade.
De outro lado, o art. 5º, II, que consagra o princípio da legalidade, determina
que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei”, veiculando, a contrario sensu, o princípio geral de autonomia.
Também o direito à liberdade consciência, positivado no art. 5º, VI, pode ser
apontado como fundamento para um direito à liberdade genérica.
Todavia, a identificação de preceitos constitucionais que possam
constituir-se em fundamento jurídico para o direito geral de liberdade é algo
essencial, mas não suficiente para o deslinde do problema. É que, como foi dito
antes, reconhecer ou não um direito geral de liberdade na Constituição depende
também da forma como as liberdades fundamentais são compreendidas. Caso
se pense que a liberdade jurídica é a institucionalização da liberdade natural,
toda interferência na liberdade natural será também uma limitação à liberdade
jurídica,123 impondo-se, assim, o atendimento às exigências constitucionais para
restrições aos direitos fundamentais. Caso, diversamente, pense-se que a
liberdade natural não é equivalente à liberdade jurídica – uma vez que esta
protege apenas algumas formas de agir –, será forçoso concluir que nem todos
os regramentos da conduta humana limitam a liberdade.124 Dessa forma, aqueles
condicionamentos situados fora do âmbito de incidência da liberdade jurídica
não constituem restrições.
O suporte filosófico dessa polêmica são as já referidas abordagens liberal e
comunitária do direito de liberdade. Trata-se, em última análise, de saber se a
liberdade existe à medida que não seja vedada ou restringida pelos direitos
alheios – e, no quadro de Constituições concretas, por valores comunitários
positivados –, ou se, diversamente, a liberdade só existe caso seja reconhecida
pelo Estado.
Os críticos do enfoque que reconhece o direito geral de liberdade
costumam objetar que este se mostra excessivamente individualista, porquanto
implicaria conferir valor preponderante à liberdade negativa, desprestigiando
SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., (1990), p. 161 et seq.
Sobre o tema, veja-se o excelente estudo de BARROSO, Luís Roberto, que enumera as
diversas dimensões da liberdade positivadas na Constituição de 1988. Eficácia e efetividade
do direito à liberdade. In: Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001,
p. 75-151
123
Idem, ibidem, p.158.
124
Idem, ibidem.
121
122
outros valores como a solidariedade e a igualdade, bem como desconsiderando
os direitos prestacionais.125
Essa crítica seria pertinente se fosse verdadeira a premissa em que se
assenta, ou seja, caso o reconhecimento de um direito geral de liberdade
implicasse atribuir ao valor liberdade um prestígio superior ao dos outros
valores e bens constitucionalmente tutelados. Como destaca Sanchís, tais
críticas assentam-se “numa defeituosa compreensão do que significa o direito
geral de liberdade”.126
De fato, o reconhecimento de um direito geral de liberdade não significa
atribuir primazia à liberdade jurídica, mas apenas determinar que sempre que
esta for limitada deve haver uma ponderação a fim de verificar se a tutela de
outros bens e valores constitucionais justifica a restrição. Assim, a existência de
tal direito não desconsidera os valores subjacentes ao Estado Social de Direito,
mas tão-somente acarreta que estes devem ser sopesados com a liberdade
individual. Esse imperativo de ponderação implicará que toda ação está
permitida, salvo se uma lei formal e materialmente constitucional proibi-la. A
necessidade de que as leis restritivas sejam materialmente constitucionais
traduz precisamente a necessidade de conciliar a liberdade com outros valores,
ou seja, o fundamento material da lei será dado pela necessidade de restringir a
liberdade para salvaguardar a eficácia de outros preceitos constitucionais. 127
Também improcede a objeção de que o reconhecimento de um direito
geral de liberdade implica desapreço aos direitos sociais prestacionais. Mais
uma vez recorrendo aos dizeres de Sanchís, se os direitos prestacionais e as
exigências do Estado social “estão maltratados não é precisamente por culpa da
liberdade”.128 De mais a mais, como já foi dito, reconhecer o direito geral de
liberdade não é o mesmo que atribuir-lhe primazia sobre outros valores
constitucionais. Nesse sentido, é também esclarecedora a lição de Alexy:
Pode-se sustentar a concepção de um direito geral de liberdade e,
sem embargo, conferir maior relevância, em geral, a princípios
que apontam a bens coletivos de forma tal que, ao final, a
liberdade negativa seja muito reduzida. Isto mostra o alto grau de
neutralidade do direito geral de liberdade frente às teorias
concretas sobre a relevância relativa dos direitos individuais e os
interesses coletivos. Todavia, a neutralidade do direito geral de
liberdade conclui em um ponto decisivo. As intervenções na
liberdade negativa seguem sendo o que são, quer dizer, intervenMartinez-Pujalte, Antonio-Luis. La garantía del..., op. cit., p. 57 e PECES-BARBA
MARTINEZ, Gregorio. Curso de derechos..., op. cit., p. 365.
126
SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., p. 466.
127
Idem, ibidem., p. 467.
128
Idem, ibidem.
125
ções em um determinado tipo de liberdade. Isto significa que,
enquanto tais, têm que ser justificáveis.129
Assim sendo, a existência de um direito geral de liberdade não torna
legítima toda e qualquer ação humana, nem tampouco significa que o Estado
não possa promover o bem-estar da comunidade mediante constrições à
liberdade. Significa apenas que as restrições à liberdade das pessoas devem ser
amparadas em um juízo ponderativo que tenha em conta todos os direitos e
valores em jogo, inclusive a liberdade restringida.130 De fato, tanto a liberdade
negativa como os outros direitos fundamentais são exigências da dignidade
humana, que devem ser considerados conjuntamente nas diversas manifestações do poder estatal. Isso vale também para os casos em que estejam em
questão ações e pretensões humanas aparentemente insignificantes, pois não
há como admitir que em relação a coisas pequenas o Estado possa restringir a
liberdade de forma arbitrária e ilimitada. Por exemplo, há quem tenha afirmado
que falar num direito fundamental a alimentar pássaros seria uma abordagem
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 366.
A propósito, cabe registrar que o influente filósofo, DWORKIN, Ronald, recusa a tese de que
há um direito geral de liberdade. Como exemplo para demonstrar os efeitos nocivos de tal
direito, o autor menciona uma proposta de emenda à Constituição dos Estados Unidos que
visa a garantir aos estudantes o direito de matricular-se em “escola vizinha”, a fim de que
deixe de ser necessário recorrer aos ônibus integrados. Segundo o autor, o fundamento dessa
proposta é a ideia — aceitável para muitos norte-americanos — de que ser obrigado a viajar
em ônibus integrados consubstancia uma violação tão grave da liberdade quanto a
segregação escolar representava para a igualdade. Em outra passagem, Dworkin assevera que
o direito à liberdade não significa muito, caso seja invocado para coisas banais. Para ele, não
há um direito a conduzir-se nos dois sentidos de uma via pública, se ela foi regulada como via
de mão única. O governo não precisa de uma justificativa especial, mas apenas de uma
justificativa, para determinar o sentido das ruas. Assim, a liberdade, em sua ótica, não resiste
a direitos fortes, como o direito de igualdade. O filósofo conclui que “em qualquer sentido
forte da palavra direito, que pudesse competir com o direito a igualdade, não existe, de modo
algum, um direito geral à liberdade”. Essa visão não se mostra adequada aos sistemas
constitucionais democráticos. Com efeito, tal linha de raciocínio induz à absurda conclusão
que a liberdade sairia sempre perdendo quando contraposta a outros direitos, de modo que
equivale a estabelecer uma regra de preferência abstrata em desfavor da liberdade. Nesse
prisma, trata-se de uma concepção incompatível com documentos constitucionais pluralistas,
e especialmente com a Constituição americana, a qual ostenta inequívoco matiz liberal.
Ademais, o referido exemplo da proposta de emenda é particularmente infeliz. De fato, o que
os defensores da emenda pretendem é exigir prestações positivas do Estado para, a pretexto
de fazer valer o direito de liberdade, tornar sem efeito prático a cláusula da igualdade. Isso, de
forma alguma, demonstra que não deve existir direito de liberdade, mas apenas prova que há
quem pretenda atribuir a tal direito caráter absoluto, desvinculando-o de outros valores
constitucionais. Taking rights seriously. Cambridge, Massachusetts: Harvard University,
1978, p. 376.
129
130
ridícula e absurda do direito geral de liberdade.131 Curiosamente, anos mais
tarde, o Tribunal Constitucional Alemão veio a decidir que o direito de
alimentar pombos está prima facie protegido pela Lei Fundamental.132 Nesse
sentido, Robert Alexy, explicando a necessidade de reconhecer um direito
prima facie mesmo nesses casos, coloca que:
Basta pensar o que significaria se não fosse necessária nenhuma
razão suficiente para as restrições à liberdade quando elas são
insignificantes. Significaria que nesses casos seriam possíveis
restrições arbitrárias. Nas coisas pequenas, o indivíduo estaria
exposto a chicanas carentes de todo fundamento. Todavia, ser
restringido arbitrariamente na liberdade contradiz a dignidade
da pessoa, também quando se trata de miudezas, prescindindo do
fato de que as opiniões divergem significativamente quando se
trata de determinar o que é o pequeno ou o insignificante. Por
isso, o princípio da liberdade negativa pode apoiar-se em toda sua
amplitude no princípio da dignidade da pessoa humana.133
Assim sendo, a aceitação de um direito geral de liberdade não implica
menosprezo algum aos valores sociais, nem tampouco sugere uma
“supervalorização acrítica da liberdade individual”, mas “ao contrário, vem a
equilibrar a balança que de outro modo ficaria truncada em favor da
autoridade”.134 Ademais, trata-se de um direito que pode ser identificado com
muita clareza no sistema constitucional brasileiro. Essa forma de entender a
liberdade amolda-se perfeitamente ao caráter dialético da Constituição de
1988, uma vez que absorve postulados liberais sem eliminar a consideração de
valores comunitários, sendo compatível com as garantias do Estado social.
Viabiliza, assim, uma acomodação dos valores liberais individualistas com as
conquistas sociais e as exigências do bem comum.
É o que sustentaram os autores germânicos Ehmke e Schmmitt, como informa ALEXY,
Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 347.
132
BVerfGE (54,143). Apud ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit. Como assinala
este autor “Tem razão o Tribunal Constitucional Federal. Certamente, não é plausível
considerar a alimentação de pombos algo especialmente digno de proteção. Mas isso não
justifica que se considere como algo que não merece proteção alguma. Pode haver pessoas
para quem este tipo atividade seja muito importante; mais importante, quem sabe, que as ações religiosas. Sem dúvida, da importância subjetiva não decorre automaticamente a
importância desde o ponto-de-vista da Constituição; todavia, a importância subjetiva é
relevante para a Constituição na medida em que o respeito que ela impõe de decisões e forma
de vida dos indivíduos exige que não se intervenha sem razão suficiente”.
133
Idem, ibidem, p. 347.
134
SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., p. 468.
131
3.6.2) As vantagens da teoria externa no campo hermenêutico e
argumentativo
Na ótica da teoria interna, os direitos irrestringíveis devem ser
interpretados numa única operação hermenêutica, que consiste em determinar
seu âmbito de proteção definitivo contido no texto constitucional. Nesse modo
de ver as coisas, compete ao operador jurídico apontar que condutas estão
compreendidas na “delimitação conceitual do conteúdo mesmo do direito,”135 já
que cada direito “ampara o que ampara e nada mais”.136
A ideia de que os direitos não são ilimitados, mas vêm já delimitados na
Constituição, não podendo ser restringidos, é lógica e absolutamente coerente
com as noções de rigidez constitucional e de vinculação do legislador aos
direitos fundamentais. Todavia, a indeterminação das normas constitucionais,
assim como a complexidade de grande parte dos casos que envolvem direitos
fundamentais, desvanecem a aparente inequivocidade da afirmativa de que
estes podem ter seu conteúdo determinado de modo preciso por operações
hermenêuticas que visem, pura e simplesmente, a identificar seu alcance
conceitual. Como assinala Sanchís, a clareza desse aporte “é mais aparente que
real”, já que “revela um certo otimismo sobre a possibilidade de ‘recortar’ com
suficiente precisão aquilo que representa um ‘limite vedado’ ao legislador e
aquele outro que pode ser objeto de sua livre decisão”.137 Nessa ordem de ideias,
o enfoque que vislumbra os direitos como grandezas ilimitáveis “oferece uma
estratégia simplificadora dos problemas que tradicionalmente vem colocando a
limitação dos direitos”.138
Aliás, não é por acaso que grande parte dos autores que perfilham a teoria
interna buscam justificar suas teses com exemplos em que a prevalência de um
ou outro direito fundamental revela-se bastante óbvia. Dificilmente alguém
afirmaria que pintar num cruzamento movimentado, incitar o racismo ou matar
um ator no palco são ações legitimadas pelos direitos fundamentais. Entretanto,
nem sempre é possível, tal como nesses exemplos, gizar com nitidez o âmbito
de proteção definitiva dos direitos. Isso pode ser evidenciado pelo fato de que
mesmo algumas hipóteses que partidários da teoria interna apresentam como
inequívocas determinações do conteúdo de direitos, não são objeto de
consenso. Com efeito, não é absolutamente insuscetível de questionamento a
assertiva de que a propaganda comercial não esteja tutelada pela liberdade de
OTTO y PARDO, Ignacio de. La regulación del exercício..., op. cit., p. 137.
Idem, ibidem, p. 151.
137
SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., p. 432.
138
Idem, ibidem, p. 433.
135
136
informação,139 ou que a união entre pessoas do mesmo sexo não esteja tutelada
pela garantia do matrimônio.140
OTTO Y PARDO, Ignacio de. La regulación del exercício..., op. cit., p. 142. A propósito do
caráter polêmico do tema, veja-se a posição de BARROSO, Luís Roberto, que, em parecer
sobre a legitimidade a da proposta de proibição da propaganda comercial de cigarros por
meio do rádio, televisão e da imprensa — para permiti-la apenas em pôsteres, painéis e
cartazes fixados na parte interna dos locais de venda (art. 3º do Substitutivo ao Projeto de Lei
n. 3310/97) — manifestou-se no sentido de que a propaganda constituiu um dos aspectos do
direito à informação, pois é o principal meio pelo qual o consumidor toma conhecimento das
características de um determinado produto. Na percepção do autor, a garantia de veicular
propaganda ao grande público também tem por objetivo preservar outros princípios
constitucionais como a livre iniciativa, a livre concorrência e a liberdade de imprensa.
Liberdade de expressão, direito à informação e banimento da publicidade de cigarro. In:
Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 243 - 273. De outro
lado, na Alemanha, um polêmico anúncio da marca de roupas Benetton — no qual se exibiam
nádegas nuas estampadas com a frase “HIV Positive” —, ensejou uma controvérsia entre as
duas cortes mais importantes do país: a Corte Federal de Justiça (BGH — Bundesgerichtshof) e
a Corte Federal Constitucional (BVerfG — Bundesverfassungsgericht). Por duas vezes, a Corte
Federal de Justiça entendeu que o anúncio violava a dignidade humana. Entretanto, as duas
decisões foram reformadas pela Corte Constitucional. A decisão mais recente, de 11 de março
de 2003, sustentou que o Art. 1 da Lei Fundamental não justifica que a imprensa seja proibida
de distribuir anúncio que descreva um sofrimento humano, mesmo que a proposta desta
descrição seja apenas a de gerar lucros. Nesta decisão, a Corte Constitucional reiterou o
entendimento de que a publicidade está inserida no âmbito da liberdade de imprensa
protegida pelo art. 5 da Lei Fundamental. Para o Tribunal Constitucional, a Corte Federal de
Justiça equivocou-se ao utilizar o propósito do anúncio para estabelecer a violação da
dignidade humana. Esta utilização revela uma interpretação errônea do escopo da limitação
na liberdade de expressão criada pela proteção a dignidade humana. A Corte Constitucional
também rejeitou o fundamento adicional da Corte de Justiça de que a proibição do anúncio
estaria protegendo as pessoas contra o ódio. As informações foram colhidas em: SMITH,
Craig. More Disagreement Over Human Dignity: Federal Constitutional Court's Most Recent
Benetton Advertising Decision. German Law Journal. Public Law. n. 6. 1 de junho de 2003.
Disponível em: http://www.germanlawjournal.com/article.php?id=278. Acesso em: 1 de
agosto de 2003. Também no direito americano, entende-se que a propaganda (comercial
speech), tem proteção da primeira emenda, embora passível de maior limitação do que outras
formas de expressão. Veja-se, sobre o tema: NOWAK, John E., ROTUNDA, Ronald D.
Constitutional Law. St. Paul: West Group, 2000, p. 1143 et seq. Sobre o assunto, veja-se,
também, a nota de rodapé nº 50, do Capítulo IV de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves.
Interpretação constitucional…, op. cit..
140
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., op. cit., p. 285, por exemplo,
questiona se seria possível que alguém invocasse o direito ao casamento para contrair
matrimônio com pessoa do mesmo sexo, com o escopo de frisar que em certos casos a esfera
de delimitação dos direitos constitucionais pode ser determinada de forma inequívoca e
consensual. No entanto, se é certo que a configuração legal do direito ao matrimônio, em
diversos ordenamentos, exclui essa possibilidade, é preciso ter em conta que, quando se
coloca o problema no plano constitucional, a matéria não é pacífica. Tanto é assim que, nos
Estados Unidos, o reconhecimento do casamento homossexual (gay-marriage) em algumas
localidades deflagrou o debate sobre a edição de uma emenda constitucional explicitando que
o casamento envolve apenas pessoas de sexos opostos. Confira-se, sobre o tema: SILVA,
139
Mas ainda em casos fáceis, nos quais é praticamente certo estabelecer-se
acordo no sentido de que certas situações não se inserem no campo de tutela
definitiva dos direitos fundamentais, o abandono à ideia de restrição não
parece justificável. Tome-se como exemplo a liberdade religiosa. De acordo com
Vieira de Andrade, a liberdade de religião não permite efetuar sacrifícios
humanos nem justifica a poligamia. Segundo o autor, a proibição de tais
condutas não consubstancia restrição à liberdade religiosa, mas é a
Constituição que, ao tutelar esse direito, “exclui do respectivo programa
normativo a proteção a esse tipo de situação”.141 É estreme de dúvida que tais
modalidades de ação não estão tuteladas, em definitivo, pela Constituição. No
entanto, não é preciso, por isso, considerar que as leis penais que criminalizam
o homicídio e a poligamia não constituem restrições à liberdade religiosa. Tais
práticas, efetivamente, são tidas como intoleráveis na cultura ocidental
contemporânea. Mas isso não exclui o fato de que muitas religiões já as
defenderam como ações admitidas ou mesmo desejadas por Deus. A ausência
de lastro jurídico a legitimar essas condutas decorre da necessidade de tutelar
outros bens jurídicos, e não de estarem elas excluídas do conceito de religião.
Trata-se de ações proibidas, e a proibição decorre da necessidade de proteger o
direito à vida, no primeiro caso, e a segurança jurídica e a ordem pública, no
segundo caso. Assim, são restrições à liberdade religiosa justificadas pela tutela
de outros bens jurídicos. A justificação aqui é tão óbvia que dispensa maiores
esforços argumentativos. Contudo, não é porque a justificação é bastante
evidente, que “deixa de ser uma justificação”.142
Há de se considerar, ainda, que mesmo em determinados casos nos quais a
prevalência de determinada norma é clara — como, v.g, nas hipóteses em que
se pretende invocar a liberdade de expressão para apoiar grupos políticos que
empregam a violência — a renúncia pura e simples ao raciocínio ponderativo
não parece a melhor opção. Nesse sentido, um exemplo haurido da
jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol mostra-se esclarecedor.
Uma organização política legítima cedeu espaço de propaganda ao grupo
separatista basco (ETA), tendo os responsáveis sido processados penalmente
pelo delito de colaboração com grupo armado. O Tribunal entendeu que a
cessão de espaços de propaganda eleitoral ao ETA efetivamente configurava o
crime de colaboração com grupo armado, e que, não obstante tal conduta
consistisse em comunicação de ideias e opiniões, não se tratava de uma forma
de exercício lícita do direito de expressão ou da liberdade política. No entanto, o
Tribunal entendeu que, por ser o comportamento em questão uma forma de
Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Uma questão de direito: a homossexualidade e o universo
jurídico. Rio de Janeiro, 2003. Tese de Doutorado — Departamento de Direito, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
141
ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit..
142
SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., (2000), p. 435.
expressar ideias — ainda que ilegal —, poderia ser empregado um juízo de
ponderação que sopesasse a gravidade da pena imposta com a gravidade da
conduta. Admitiu-se, assim, que se tratava de um direito em conflito com uma
limitação penal, sendo possível, portanto, ponderar as razões que jogam a favor
do direito com aquelas que militam a favor da restrição.143
Uma objeção usual a essa forma de interpretar os direitos fundamentais é
a de que se trata de uma visão excessivamente ampliativa. Diz-se que se trata
uma concepção “newtoniana” que atribui aos direitos uma inércia que só pode
ser bloqueada pela colisão com outros direitos fundamentais,144 levando a
entender todas as questões jurídicas como conflitos normativos
jusfundamentais. Ademais, argumenta-se que haveria o risco de uma ampliação
excessiva da competência das Cortes Constitucionais.
Todavia, entender uma situação como inicialmente protegida pelos
direitos fundamentais implica apenas reconhecer a necessidade de justificação
das restrições, o que, em última análise, torna o processo hermenêutico mais
racional e controlável. Isso não quer dizer, como é evidente, que o âmbito de
proteção definitiva do direito venha a ser mais vasto do que o que resulta da
interpretação pautada pela teoria interna. Como se disse, na maior parte das
vezes, o resultado a que se chega empregando as duas teorias é o mesmo.
Ademais, estabelecer uma interpretação ampliativa dos direitos (que é
correlata do conceito dilargado de restrição) não significa necessariamente que
todos os problemas jurídicos serão transformados em complexos conflitos de
direitos fundamentais.145 O que efetivamente ocorre é que, empregando-se a
teoria externa, um número maior de casos poderá ser entendido como conflitos
de direitos e resolvido por meio do método da ponderação. Porém, como
adverte Alexy, o que importa saber é se essa circunstância deve se encarada
como algo contraproducente.146 Esse autor afirma, com razão, que tal crítica
pode ser afastada por meio da diferenciação entre casos reais e casos potenciais
de direitos fundamentais.
Um caso é potencial se é possível argumentar com recurso aos direitos
fundamentais, mas, todavia, isso se revela dispensável porquanto não há
dúvidas quanto à “correção jusfundamental da solução jurídica ordinária”. 147 Já
os casos reais são aqueles em que há uma fundada dúvida sobre a proteção
jusfundamental da situação em análise, que torna imperativo empregar uma
argumentação pautada por um juízo de ponderação que tenha em conta os
Apud SANCHÍS, Luis Prieto.La limitación de los derechos fundamentales y la norma de
clausura del sistema de libertades. In: Justicia constitucional y derechos fundamentales.
Madrid: Trotta, 2003, p. 248.
144
MARMOR, Andrei. On the limits of rights. Law and Philosophy, v. 16, n. 1, 1997, p. 7.
145
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 316.
146
Idem, ibidem.
147
Idem, ibidem.
143
direitos fundamentais. É bem verdade que essa distinção constituiria um
argumento a mais em favor da teoria interna se fosse viável determinar com
clareza quando estamos diante de um caso real ou potencial de direitos
fundamentais. Porém, há uma ampla zona de incerteza que separa os casos cuja
solução é absolutamente duvidosa daqueles em que há uma total segurança
quanto à decisão correta. Como diz Alexy, há uma escala que envolve os
“diferentes graus de certeza/incerteza” e, ademais, “diferentes pessoas
atribuem a casos diferentes postos diferentes na escala de certeza/incerteza”. 148
Nesse contexto, o imperativo de efetivar ponderações mantém o seu significado
e utilidade.
O fato é que os direitos fundamentais não estão tutelados por normas com
significado inequívoco, mas contém uma “zona de penumbra”,149 no âmbito da
qual não há como determinar de modo apodítico se certas condutas estão ou
não compreendidas em sua esfera de proteção, ou, em outros termos, se a
exclusão da tutela jurídica dessa conduta representa ou não uma restrição a seu
conteúdo. Dessa forma, a eliminação do raciocínio ponderativo nessas situações
implica abrir mão de uma argumentação dialética na qual são sopesadas razões
que jogam em favor do direito com as que militem a favor de sua restrição. É
certo que nas situações em que o peso de determinado bem é inequivocamente
maior, a utilidade da ponderação é bastante mitigada. Todavia, nos casos
duvidosos, o sopesamento de razões será fundamental para conferir
controlabilidade e transparência às fundamentações.
Em razão disso, costuma-se atribuir à teoria interna um “déficit de
fundamentação”150 no processo interpretativo de direitos fundamentais,
afirmando-se que esta dá azo ao emprego de “pseudofundamentações”.151 Os
exemplos acima referidos bem demonstram isso. Nos casos difíceis, o emprego
da teoria interna pode levar a soluções que simplifiquem questões muito
complexas, pois “o que desde o ponto de vista de um participante da prática
jurídica pode estar dentro do âmbito normativo do direito, desde a ótica de
outro participante pode estar fora”.152
Ademais, os adeptos da teoria interna parecem crer que, apenas por
recorrerem à ideia de “delimitação” legislativa, resta preservada a
superioridade jurídica e a intangibilidade dos direitos fundamentais. Em
relação a isso, como bem destaca Carlos Bernal Pulido: “pelo mero fato de falarse em delimitação, não se suprime o risco de que as intervenções legislativas
Idem, ibidem.
SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., p. 455.
150
ECKHOFF, R. Der grundrechtseingriff. Colonia-Berlín-Munich-Bonn: Carl Heymanns,
1961, p. 18. Apud PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad..., op. cit., p. 471.
151
BOROWSKI, Martin. Grundrechte als..., op. cit., p. 47. Apud PULIDO, Carlos Bernal, idem,
ibidem, p. 471.
152
PULIDO, Carlos Bernal, idem, ibidem, p. 472.
148
149
possam vulnerar o conteúdo dos direitos fundamentais [...] Chame-se de
delimitação ou de restrição, o importante é ter claro que o legislador intervem
nos direitos fundamentais e que toda intervenção legislativa deve estar sujeita
a controle”.153 Nesse sentido, é descabida a tese de que a noção de que os
direitos são restringíveis deve ser abandonada por subverter a ordenação
hierárquica do ordenamento. Sendo a Constituição composta por normas
dotadas de alto grau de indeterminação, os riscos de abuso na densificação de
seu sentido não são menores do que aqueles que advém do emprego da
metódica ponderativa.
A noção de que é viável discernir com clareza o conteúdo dos direitos
fundamentais – distinguindo-se, assim, os casos de delimitação dos de restrição
–, assenta-se na crença de que é sempre possível determinar de forma objetiva
e precisa os contornos dos direitos fundamentais. Isso acaba implicando uma
interpretação “monotônica” que, em última análise, confere uma
discricionariedade substancialmente maior ao Judiciário.154
Além disso, as fundamentações assentadas em aspectos puramente
conceituais podem obnubilar certas considerações de ordem moral que, no
raciocínio ponderativo, emergem com muito mais clareza.155 Dessa forma, a
Idem, ibidem, p. 473.
Idem, ibidem, p. 475. O autor pondera que: “Enquanto a teoria interna implica uma
argumentação monotônica, em que para decisão só conta o que se derive do direito
fundamental intervindo, a teoria externa pressupõe uma argumentação não monotônica, na
qual, para a sentença não só contam as razões derivadas do direito intervindo, mas todas
aquelas que se desprendam de outros direitos e bens relevantes desde a perspectiva do
problema jurídico do caso concreto”.
155
Não se está, com isso, negando que as decisões que empregam a ponderação não possam,
também, em certos casos, apresentar-se mal fundamentadas. O vício de fundamentação pode
surgir independentemente da técnica que venha a ser utilizada. Nesse sentido, por exemplo,
SERNA, Pedro, aponta um “déficit de fundamentação” em uma decisão da Suprema Corte
Argentina que empregou o raciocínio ponderativo. Derechos fundamentales: el mito de los
conflictos. Reflexiones teóricas a partir de un supuesto jurisprudencial sobre intimidad e
información. Humana Iura, n.4, 1994, pp. 197-234. O que aqui se defende é que a teoria
interna viabiliza decisões mal fundamentadas sem que isso transpareça, na medida em que as
considerações de ordem substantiva inerentes à decisão podem restar opacadas pela
atividade de conceituação do direito. No caso das ponderações, a ausência ou deficiência de
fundamentação, se acontecer, aparecerá com muita clareza, pois a apresentação detalhada
das razões que justificam a aplicação de um direito em detrimento de outro é elemento
essencial para o emprego do método ponderativo. Como destacou BARROSO, Luís Roberto
“Ainda que se possam admitir motivações concisas em muitos casos, certamente isso não é
possível quando se trate de decidir adotando a técnica de ponderação. Nessas hipóteses, é
absolutamente indispensável que o julgador exponha analítica e expressamente o raciocínio e
a argumentação que o conduziram a uma determinada conclusão, permitindo assim que as
partes possam controlá-la”. BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da
história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In:
BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos
fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 354.
153
154
ideia de que todos os problemas interpretativos relativos a direitos
fundamentais podem ser resolvidos com fundamento exclusivo no texto
constitucional, que seria autossuficiente, presta-se, em verdade, a transferir os
aspectos subjetivos que subjazem à ponderação para a operação de delimitação
de conteúdo, sem os correspondentes critérios de controle da decisão (teste de
proporcionalidade). E isso tem uma consequência grave: o elemento
extratextual, que é inexpugnável, passa a ser camuflado no processo
interpretativo.
Desta forma, a pretexto de dotar a interpretação constitucional de
objetividade e segurança, a operação proposta pela teoria interna expele da
argumentação jurídica – mas não da decisão em si mesma –, o aspecto
valorativo. Nesse prisma, o processo de decisão constitucional, a pretexto de
tornar-se mais objetivo, perde em controlabilidade e transparência.
Há, ainda, um último aspecto que evidencia ser a teoria externa mais
profícua e adequada do que a teoria interna. Pelo fato de aquela operar com um
raciocínio de duas etapas — que compreendem i) a identificação do âmbito de
proteção inicial do direito com base em critérios flexíveis, e ii) a posterior
determinação do âmbito de proteção definitivo a partir do sopesamento do
direito com as restrições impostas pela necessidade de tutelar outros direitos e
bens — são estabelecidas diferentes “cargas de argumentação” conforme o grau
de intervenção operado no direito fundamental.
Essas cargas de argumentação defluem da combinação dialética do
princípio da presunção de constitucionalidade das leis – que é apanágio do
princípio democrático –, com a noção de supremacia dos direitos fundamentais.
Quanto mais intensa a intervenção legislativa nos direitos fundamentais, maior
será o ônus de argumentação imposto ao legislador para justificar a
constitucionalidade da lei. É que quanto mais intensa a restrição ao direito,
mais fortes hão de ser as razões em favor dos bens e direitos que amparam a
restrição (princípio da proporcionalidade). Assim, nos casos de intervenções
severas em que não seja possível identificar com segurança motivos que as
justifiquem, há de prevalecer o direito, com a declaração de
inconstitucionalidade da lei restritiva. Diversamente, nos casos das intervenções leves nos direitos, entra em jogo o princípio da presunção de
constitucionalidade, impondo-se, assim, cargas de argumentação menos
severas para a imposição de restrições aos direitos.156
Do que foi dito, conclui-se que a teoria externa, além de comportar mais
recursos de hermenêutica do que a teoria interna — pois que não exclui a
subsunção, mas apenas aponta sua insuficiência para resolver conflitos
Este ponto, aqui apenas sinteticamente esboçado, é objeto de análise mais detalhada no
capítulo VI de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional…, op. cit, o qual se
ocupa da aplicação do princípio da proporcionalidade como limite às restrições a direitos
fundamentais.
156
envolvendo direitos fundamentais — implica uma maior vinculação do
Judiciário, que fica obrigado a sopesar todos os bens jurídicos em jogo,
orientado pela máxima da proporcionalidade.
4. Um debate correlato: A doutrina da imanência
A doutrina da imanência busca justificar dogmaticamente o
reconhecimento de limites não expressamente previstos no texto da
Constituição, tendo sido elaborada com base em duas premissas genericamente
aceitas no pensamento jurídico: i) a ideia de que os direitos fundamentais não
são absolutos nem podem ser invocados em todas as situações; e, ii) a noção de
que os direitos das pessoas devem ser harmonizados entre si.
Cuida-se de formulação que surgiu no constitucionalismo germânico para
explicar as limitações dos direitos não submetidos à reserva legal, destacando a
ideia de que há limites que defluem da sua própria natureza e da necessidade
de conciliação destes com outros direitos e valores protegidos
constitucionalmente.157
A palavra imanente expressa a qualidade do que é intrínseco, natural e
indispensável. Nessa perspectiva, “imanentes seriam todas aquelas
Como informa GAVARA DE CARA, Juan Carlos, os limites imanentes, em princípio, não
deveriam ser conceituados como equivalentes exatos dos limites internos dos direitos
fundamentais. Os limites internos dos direitos “estão expressos formalmente no texto
constitucional, não podendo ser considerados nas hipóteses de limitação aos direitos
fundamentais em sentido estrito, já que equivalem a posições de não-direito que formariam
parte do pressuposto de fato da norma, que estabelece o direito fundamental”. Todavia, logo
no limiar da vigência e interpretação da Lei Fundamental, os limites internos — “no sentido
de inerentes aos direitos fundamentais” —, vieram a ser identificados com os limites
imanentes. “Este fato possibilitava a existência de limites internos aos direitos fundamentais
sem que estivessem estabelecidos direta e expressamente pela Constituição. Deste modo
permitia-se que a existência de limites internos que também equivaliam a posições de nãodireito, mas que não eram identificáveis a partir dos pressupostos de fato das normas
constitucionais que estabeleciam direitos fundamentais”. Essa formulação, como informa o
referido autor, é tributária dos aportes de dois juristas da Escola de Kiel: LARENZ, Karl e,
principalmente, SIEBERT, Wolfgang. Este último engendrou um conceito de direito subjetivo
alternativo à visão clássica que o considera um poder atribuído à vontade. Para o pensamento
tradicional, o direito subjetivo e o dever jurídico são duas categorias autônomas e separadas.
Siebert, de modo diverso da lição convencional, sustenta que direito e dever devem ser
pensados como uma só posição jurídica: o status. O status é uma posição jurídica ativa quando
gera direitos, e passiva quando é fonte de deveres. Siebert defendeu, ainda, que o direito
guarda relação com a função social que desempenha o indivíduo, a qual determina seus
limites de exercício. Nessa linha de princípio, Siebert critica a teoria externa, propugnando
que os limites são elementos internos aos direitos, cujo “conteúdo deveria ser determinado a
partir do ordenamento concreto”, de modo que “o direito em sentido subjetivo é relativo, seu
conteúdo dependerá das circunstâncias do caso concreto, sendo determinado através de uma
atividade interpretativa e de decisões judiciais”. GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos
fundamentales y..., op. cit., pp. 171-172.
157
características que estão vinculadas inseparavelmente com a propriedade
específica de um objeto, de tal modo que não supera, não sobressai ou infringe
seus limites”.158
Como assinala Gavara de Cara, a ideia de imanência “parte do fato de que
cada direito fundamental comporta em si mesmo determinados limites”, de
modo que “para exercer direitos fundamentais seria necessária a configuração
jurídica das relações sociais que garantem os direitos fundamentais”.159 Como
desdobramento dessa proposição, passou-se a distinguir duas modalidades de
limites dos direitos fundamentais: os imanentes e os “exmanentes”.160 Estes
últimos seriam os limites explicitados no texto constitucional ou nas leis
reguladoras, enquanto os limites imanentes são limites não escritos, que
dimanam da própria essência dos direitos fundamentais, estando
compreendidos em sua estrutura interna.
Para além dessa caracterização simplificada, há diversas construções
dogmáticas e pretorianas visando a explanar e a justificar os limites imanentes.
Passa-se a analisar, a seguir, algumas da mais importantes.
A jurisprudência germânica veio a empregar a noção de limites imanentes
poucos anos após a entrada em vigor da Lei Fundamental. O Tribunal Superior
Administrativo, no limiar da década de cinquenta, engendrou a tese da
“cláusula da comunidade”, que se traduzia no pressuposto de que os direitos
fundamentais não poderiam ser invocados quando seu exercício colocasse em
risco bens jurídicos relevantes para a comunidade. Entendeu-se que tais bens
comunitários eram imanentes aos direitos fundamentais, integrando sua
estrutura interna.161
Essa visão foi objeto de severas críticas no plano dogmático, destacando-se
que a noção de cláusula da comunidade promove uma inversão da ordem
constitucional, porquanto acarreta que os interesses individuais sejam
tutelados apenas de forma posterior e condicionada à proteção dos interesses
comunitários.162 Ademais, salientou-se que a referida cláusula, dada sua
abertura e indeterminação, viabiliza o decisionismo e a arbitrariedade,
implicando um grave risco para a segurança jurídica.163 Nessa linha de princípio,
sustentou-se que a cláusula da comunidade amplia de modo indeterminado as
competências do legislador e coloca os direitos fundamentais à mercê dos
poderes públicos, tendo em vista que o controle de constitucionalidade deixa de
ser parâmetro normativo, ficando dependente apenas da identificação dos
Idem, ibidem, p. 273.
Idem, ibidem.
160
Idem, ibidem, p. 274.
161
Idem, ibidem.
162
Idem, ibidem.
163
Idem, ibidem.
158
159
supostos interesses comunitários.164 Além disso, conforme destaca Gavara de
Cara, o que mais fragiliza a tese da cláusula da comunidade é a carência de base
constitucional a ampará-la, pois que na Lei Fundamental não há norma que
justifique a utilização desses fundamentos para o fim de limitar os direitos
fundamentais.165
Progressivamente, o Tribunal Administrativo foi-se afastando da
concepção da cláusula da comunidade como parâmetro de determinação dos
limites imanentes. Ainda na década de cinquenta, o Tribunal entendeu que os
direitos ostentavam limites imanentes derivados dos direitos de terceiros, da
ordem constitucional e da lei moral (que constituem a cláusula restritiva do art.
2, par. 1, da Lei Fundamental).166 Na década de sessenta, uma outra decisão
sobre liberdade artística veio a demonstrar que a noção de limites imanentes,
nessa etapa, ainda não tinha um perfil claro, pois se entendeu que os direitos
fundamentais não sujeitos à reserva legal podiam ser limitados visando à defesa
de outros direitos e bens necessários para a comunidade estatal.167 Em 1975,
firmou-se no Tribunal Administrativo tese convergente com a adotada pelo
Tribunal Constitucional, tendo-se entendido que os direitos fundamentais
podiam ser limitados com base na unidade da Constituição e na ordem de
valores por ela estabelecida.168
O Tribunal Constitucional alemão também veio a recorrer ao conceito de
limites imanentes para explicar as intervenções legislativas à margem de
Essas críticas são enumeradas por GAVARA DE Cara, Juan Carlos, ibidem, p. 173.
Como informa o autor, um ponto nodal no debate acerca dos limites imanentes na
dogmática germânica consiste em determinar se estes podem ser extraídos da Constituição. A
tese majoritária afirma que os limites imanentes podem ser associados aos três critérios
limitadores enunciados no parágrafo 1º do art. 2 da Lei Fundamental, que dispõe “Todos têm
o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que não violem os direitos de
outrem e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral”. Esta cláusula ficou
conhecida como cláusula medida (soweit-klause). A propósito do referido dispositivo,
formaram-se duas interpretações: Uma primeira tese — defendida, entre outros, por Friedrich
Klein — advoga que tal cláusula limitadora é aplicável a todos os direitos fundamentais, à
medida que o art. 2º deve ser entendido como um princípio geral de liberdade, do qual
defluem todos os direitos fundamentais. Uma vez que todos os direitos são desdobramentos
desse direito geral e básico ao livre desenvolvimento da personalidade, os limites a serem
aplicados a todos são os mesmos; a segunda tese — defendida por Günther Dürig — apregoa
que os limites enunciados no art. 2 devem ser aplicados aos outros direitos fundamentais
indiretamente. Para Dürig, o referido preceito teria dupla função. De um lado, servir como
cláusula de abertura para direitos não enumerados e, de outro, ser empregado como regra de
interpretação jurídico-objetiva aplicável aos limites imanentes dos direitos fundamentais em
geral, nas hipóteses em que seu exercício se revelasse arbitrário. Ibidem, p. 174 et seq.
166
Sentença de 5 de dezembro de 1958 (BVerwGE 7, 358 (361)). Apud GAVARA DE CARA,
Juan Carlos, ibidem, p. 173.
167
Sentença de 7 de dezembro de 1966. Apud GAVARA DE CARA, Juan Carlos, ibidem.
168
Sentença de 7 de outubro de 1975 (BVerwGE, 49, 202). Apud GAVARA DE CARA, Juan
Carlos, ibidem.
164
165
habilitações constitucionais expressas, mas, desde o início, adotou postulados
diversos, refutando a possibilidade de valores não estipulados
constitucionalmente limitarem os direitos fundamentais.
Nessa matéria, o precedente basilar foi o caso Mephisto.169 No afamado
julgamento, o Tribunal entendeu que o direito à liberdade de expressão
artística – em relação ao qual a Lei Fundamental não contempla cláusula de
reserva –, não poderia ser relativizado com fundamento em parâmetros
destituídos de fundamento constitucional.170 Recusou-se, assim, a formulação
dos limites imanentes determinados pelos interesses comunitários, que
houvera prevalecido no Tribunal Administrativo.
Não obstante isso, naquela mesma decisão, restou assentada a premissa de
que a ordem constitucional não contempla direitos ilimitados, de modo que
mesmo os direitos fundamentais não submetidos à reserva de lei ostentam
limites. Em outra sentença, o Tribunal Constitucional reafirmou a orientação:
A garantia da liberdade do art. 4.1 da LF deriva, como todos os
direitos fundamentais, da imagem (bild) do homem estabelecida
na Lei Fundamental; isto é, com homem como responsabilidade
auto-responsável que se desenvolve livremente dentro da
comunidade
social.
Esta vinculação do indivíduo, à comunidade, reconhecida pela Lei
Fundamental, faz aplicáveis também, aos direitos reconhecidos
sem reservas, certas limitações externas.171
Essa visão, contudo, não significava atribuir aos interesses comunitários
um valor prevalente em relação aos individuais. O cerne da construção
articulada na jurisprudência do Tribunal Constitucional é a noção de que os
direitos fundamentais não submetidos à reserva legal somente podem ser
limitados para tutelar outros bens e valores de estatura constitucional. Em
outros termos, as limitações impostas pelo legislador apenas poderiam ser
entendidas como “configuração de uma delimitação estabelecida pela própria
Constituição”.172 Nesse sentido, o Tribunal consignou que:
Só os direitos fundamentais de terceiros que entrem em colisão e
outros valores jurídicos de grau constitucional, tendo em vista a
unidade da Constituição e a ordem de valores por ela protegida,
Uma descrição mais detalhada do teor dessa decisão pode ser encontrada em PEREIRA,
Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional…, op. cit, Capítulo IV.
170
GAVARA DE Cara, Juan Carlos. Derechos fundamentales y..., op. cit., p. 282.
171
BVerfGE, 32, 98, 108. Apud GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op.
cit., pp. 48-49.
172
BVerfGE, 44, 37, 49. Apud Guerrero, Manuel Medina, ibidem.
169
são suscetíveis de limitar também, em determinadas relações, os
direitos fundamentais reconhecidos como ilimitáveis.173
Nessa perspectiva, a teoria da imanência tal como concebida pelo Tribunal
Constitucional pressupõe que, havendo conflito entre direitos e bens
constitucionais, deve ser afastado o que possui menor peso, o que há de ser
determinado com recurso ao método da ponderação, observando-se o
imperativo de proporcionalidade.174
No plano dogmático, algumas teorias sobre os limites imanentes
destacam-se por sua singularidade.
Peter Häberle, como se viu anteriormente, busca conciliar o método da
ponderação de interesses com a noção de que os direitos são irrestringíveis.
Dessa forma, o autor concebe os limites imanentes dos direitos fundamentais
como limites identificados a partir de um processo de interpretação que tenha
em conta a complexidade da Constituição, considerando sua conexão com todos
os bens e valores por ela protegidos.
Na visão de Häberle, os limites imanentes demarcam o conteúdo essencial
dos direitos fundamentais. Dessa junção dos conceitos de conteúdo essencial e
limites imanentes deflui a categoria por ele denominada de “limites dos direitos
fundamentais conforme à essência”.175 Em última análise, isso implica que “todo
o direito fundamental seja conteúdo essencial”,176 de modo que a determinação
dos limites imanentes não é realizada a partir de uma perspectiva exterior ao
direito, mas sim mediante uma interpretação que tenha em conta a totalidade
da Constituição. Por isso, as leis que regulam os direitos fundamentais não têm
natureza constitutiva, limitando-se a interpretar o conteúdo do direito
estabelecido na Constituição. Assim, o legislador, ao identificar os limites aos
direitos, demarca seu próprio conteúdo.
BVerfGE, 28, 243, 261. Apud Guerrero, Manuel Medina, ibidem.
Como informa BACIGALUPO, Mariano, o TC entende que a fixação de limites imanentes
está sujeita à reserva de lei: “Com efeito, após um momento inicial de sua jurisprudência, em
que se afirmou que os ‘imites imanentes’ delimitavam o âmbito de proteção do direito
fundamental, o Tribunal Constitucional Federal vem já há bastante tempo sustentando que,
em qualquer caso, ditos limites estão submetidos à reserva de lei genérica, ainda que sem
especificar se isso é assim em virtude de os conceber como uma limitação em sentido estrito
ou, ainda, concebendo-os como uma mera delimitação do campo de garantia do direito, em
virtude da teoria da essencialidade”. La aplicación de la doctrina de los “límites inmanentes” a
los derechos fundamentales sometidos a reserva de limitación legal: a propósito de la
sentencia del tribunal administrativo federal alemán de 18 de octubre de 1990. Revista
Española de Derecho Constitucional, n.38, 1993, p. 304.
175
HÄBERLE, Peter. La garantía del contenido..., op. cit., p. 51 et seq.
176
CRUZ, Rafael Naranjo de la. Los límites de los..., op. cit., p. 92.
173
174
Outro autor germânico, Hans-Ulrich Gallwas, emprega a noção de abuso de
direito na determinação dos limites imanentes dos direitos fundamentais.177-178 O
abuso de direito, que se caracteriza pelo exercício de um direito visando à
finalidade diversa daquela que orienta sua proteção jurídica, significa que
certas ações que aparentemente consistiriam em formas de exercício de direitos
não estejam amparadas pelo ordenamento. Gallwas defende que há abuso de
direitos fundamentais sempre que estes são exercidos de modo lesivo a certos
interesses alheios dignos de proteção.179 Esses interesses alheios podem ser,
segundo o autor, i) de outro titular de direitos, ii) da comunidade ou iii) do
Estado. É a identificação do que constitui violação desses interesses alheios que
permite determinar os limites dos direitos, mediante a qualificação das ações
que, por caracterizarem-se como abuso de direito, são destituídas de proteção
constitucional.
Na doutrina portuguesa, José Carlos Vieira de Andrade apresenta uma
lição acerca dos limites imanentes que, por sua especificidade e influência na
doutrina brasileira,180 merece ser mencionada. O autor recusa a ideia de que os
limites imanentes seriam “limites de não perturbação”, determinados pela
coexistência de diversos direitos, sob o argumento de que essa leitura não
permite distinguir de forma adequada o fenômeno das colisões dos limites
imanentes. Não aceita, tampouco, a possibilidade de aplicar-se a “cláusula de
comunidade”, uma vez que a indeterminação e vagueza dessa fórmula não
conduz a uma interpretação racional e controlável da Constituição. Vieira de
Andrade ilide, ainda, a ideia de que os limites dos direitos fundamentais podem
ser traçados pelas “leis gerais” – como defende Häberle –, afirmando que essa
tese promove uma inversão da hierarquia das normas e coloca os direitos
fundamentais à disposição do legislador.181 Sustenta, nessa perspectiva, que a
determinação dos limites imanentes é:
Um problema de interpretação dos direitos constitucionais que
prevêem cada um dos direitos fundamentais. O que se pergunta
em cada caso é se o programa normativo do preceito em causa
inclui ou não um certo aspecto ou modo de exercício, isto é, até
GALLWAS, Hans-Ulrich. Der Missbrauch von grundrechten. Berlin: Duncker & Humblot,
1967. Apud GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y..., op. cit., p. 278 et
seq.
178
Uma visão abrangente da temática do abuso de direitos fundamentais pode ser encontrada
em VIÑAS, Antoni Rovira. El abuso de los derechos fundamentales. Barcelona: Península,
1983.
179
CRUZ, Rafael Naranjo de la. Los límites de los..., op. cit., p. 88 et seq.
180
SARMENTO, Daniel. A ponderação de..., op. cit., pp. 100-102; BARROS, Suzana de Toledo.
O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis
restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 166 et seq.
181
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., op. cit., pp. 287-286.
177
onde vai o domínio de proteção (a hipótese da norma). Se num
caso hipotético ou concreto se põe em causa o conteúdo essencial
de outro direito, se se atingem intoleravelmente valores
comunitários básicos ou princípios fundamentais da ordem
constitucional, deverá resultar para o intérprete a convicção de
que a proteção constitucional não quer ir tão longe.182
Assim, na visão de Vieira de Andrade, os limites imanentes são
determinados a partir daquelas situações em que inequivocamente não se pode
cogitar da aplicação do direito fundamental. Consoante seu raciocínio, nesses
casos o problema das colisões não deve considerado. Pode-se inferir portanto,
que, para o autor, os limites imanentes são o mesmo que o âmbito máximo de
proteção do direito.
A partir da análise das concepções aqui inventariadas, é possível constatar
que o conceito de limites imanentes, de um modo geral, é condicionado pela
visão que se adote sobre o problema da restringibilidade dos direitos
fundamentais. De fato, a imprecisão conceitual que cerca os limites imanentes
nada mais é do que um reflexo da discussão teórica, de fundo, relativa à
possibilidade lógica de restringir os direitos fundamentais sem reserva legal.
Assim, não é por acaso que um dos problemas capitais que se coloca em
relação aos limites imanentes é precisamente o de saber se são autênticos
limites ou se, diversamente, traduzem apenas as fronteiras do direito. Esta
questão nada mais é do que a transposição da contenda teoria externa/interna
para o plano mais específico do esforço explicativo dos limites imanentes.
Para os que defendem a impossibilidade lógica de se restringirem direitos
fundamentais não sujeitos a reserva legal, a tendência será afirmar que os
limites imanentes são limites internos, que se confundem, em última análise,
com a esfera de proteção do direito que pode ser extraída da Constituição. É
certo que os mecanismos explicativos do exercício hermenêutico que conduz à
fixação dessas fronteiras não são objeto de consenso, mas há certa
convergência entre os adeptos da teoria interna no sentido de identificar os
O autor fala em limites imanentes implícitos dos direitos, que existem “...sempre que (e
apenas quando) se possa afirmar, com segurança e em termos absolutos, que não é pensável
em caso algum que a Constituição, ao proteger especificamente um certo bem através da
concessão e garantia de um direito, possa estar a dar cobertura a determinadas situações ou
formas do seu exercício; sempre que, pelo contrário, deva concluir-se que a Constituição as
exclui sem condições nem reservas”. ANDRADE, José Carlos Vieira de, idem, ibidem, p. 286. E
em limites imanentes expressos, para referir aos limites previstos expressamente no texto
constitucional, “...como acontece, por exemplo, no caso do dever de pagar impostos em
relação ao direito de propriedade”. Idem, ibidem, p. 284. É interessante observar que a
expressão “limites imanentes expressos” vai de encontro à tendência da doutrina majoritária,
que concebe os limites imanentes como limites não escritos.
182
limites imanentes como marcos que balizam o conteúdo do direito desde seu
interior.
Para aqueles que, diversamente, se posicionam no sentido de serem os
direitos restringíveis, os limites imanentes são entendidos como limites
externos, estranhos ao conteúdo do direito. Essa é, por exemplo, a visão de
Medina Guerrero, que sustenta que os limites imanentes “se concebem como
um elemento alheio, estranho ao conteúdo do direito, com o qual deve ser
confrontado e sopesado”, de modo que não podem ser considerados “elementos
integrantes do conteúdo do direito”.183 Essa também é a visão de Canotilho, para
quem “limites imanentes são o resultado de uma ponderação de princípios
constitucionais conducente ao afastamento definitivo, num caso concreto, de
uma dimensão que, prima facie, cabia no âmbito prospectivo do direito,
liberdade e garantia”.184 De acordo com esse raciocínio, os limites imanentes
seriam determinados após o processo de ponderação, quando se identifica a
esfera de proteção definitiva do direito.
Todavia, cabe sublinhar que certos autores representativos da teoria
externa, como Alexy e Borowski,185 não chegam nem mesmo a abordar o
problema dos limites imanentes. Isso pode ser explicado, em parte, pelo fato de
que a ideia de limites imanentes como resultado de restrições, ou como
resultado da ponderação, soa um pouco contraditória. É que, se os limites
imanentes são intrínsecos ou inerentes, entreabrem-se duas alternativas para
explicar tal conceito de forma coerente: i) ou se adota a teoria interna,
entendendo-se que tais limites estão preestabelecidos na Constituição, e então
são mesmo intrínsecos e inerentes, ii) ou se entende que os direitos são
restringíveis, estando sujeitos a ponderações e limitações, e, então, os limites
que resultam das restrições já não podem ser chamados de imanentes,
precisamente porque são apurados a posteriori.
É lícito supor que essa é a razão por que – analisando a doutrina –,
identifica-se uma maior inclinação dos adeptos da teoria interna em manejar tal
conceito. De fato, a ideia de limites intrínsecos ou naturais encontra-se no cerne
da concepção que recusa a restringibilidade dos direitos não submetidos à
reserva legal. É que, como destaca Naranjo de la Cruz, o recurso à teoria da
GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit., p. 53. “O legislador, como
reconhece expressamente o TCF, ao harmonizar os direitos e bens jurídicos que colidem,
dispõe de uma apreciável margem de manobra, sempre que sua decisão não resulte
desproporcionada.” [...] “Pois, certamente, a técnica da ponderação pressupõe, de um lado,
uma determinada posição jurídica que se encontra já, prima facie, no conteúdo do direito
objeto da limitação...”.
184
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e..., op. cit., p. 1148.
185
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 267 et seq.; BOROWSKI, Martin. La
estrutura de los..., op. cit., p. 65 et seq. Também PULIDO, Carlos Bernal. El principio de
proporcionalidad..., op. cit., p. 458 et seq., em densa obra que analisa o princípio da
proporcionalidade.
183
imanência “conduz a que a diferença entre âmbito de delimitação do direito
fundamental e de seus limites desvaneça-se notavelmente, fundindo-se numa
única categoria: a dos limites imanentes”.186
Se há algum consenso nas diversas abordagens doutrinárias, é o de que os
limites imanentes correspondem aos contornos da esfera de proteção definitiva
do direito. O que se discute é como identificar essa esfera definitiva, pois, no
modelo teórico interno, esta já é preestabelecida no texto constitucional e, no
externo, será o resultado da ponderação.
Sem embargo, é lícito entender que, desde a perspectiva da teoria externa,
não há como lidar com a ideia de limites imanentes como a esfera de proteção
definitiva que resulta da ponderação de modo coerente. Como foi dito, é ilógico
afirmar que os limites intrínsecos do direito são determinados “desde o
exterior”. Se são limites externos, não podem ser imanentes, pois são resultado
da interação dialética entre o direito e outros valores constitucionais em
circunstâncias determinadas, e não de algo que já é inerente ao direito desde o
princípio. De fato, a expressão limites imanentes externos enuncia uma
contradição em termos.
A única forma de compatibilizar a noção de limites imanentes com a teoria
externa é recusando a ideia de que estes limites correspondem à esfera de
proteção definitiva do direito.187 De modo diverso, cabe entender os limites
imanentes como o conteúdo inicial de proteção do direito, como seus limites
máximos, ou seja, como a esfera de proteção prima facie do direito, tal como
identificada antes das restrições.
Empregando-se o conceito com esse sentido, poder-se-ia afirmar que os
limites imanentes do direito à intimidade não compreendem o sigilo de
movimentações bancárias de verbas públicas em contas de entes públicos.188 Da
CRUZ, Rafael Naranjo de la. Los límites de los..., op. cit., p. 86.
Outra alternativa é — como fazem ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., e
BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., — não recorrer a essa categoria
dogmática.
188
Essa foi a orientação adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mandado
de Segurança n. 21.729-4/DF, impetrado pelo Banco do Brasil contra ato do órgão do
Ministério Público Federal, que, diante de notícia publicada pelo jornal “Folha de São Paulo”,
exigiu informações sobre empréstimos concedidos a empresas no setor sucroalcooleiro. Após
um longo julgamento em sessão Plenária, o Tribunal indeferiu o pleito, entendendo que o
Banco do Brasil não poderia negar ao Ministério Público Federal informações sobre os
beneficiários dos empréstimos concedidos pela instituição, com recursos subsidiados pelo
Governo Federal, sob invocação do sigilo bancário. Essa linha de argumentação foi
desenvolvida no voto do Min. Octávio Gallotti: “No caso, Sr. Presidente, o Banco do Brasil não
está simplesmente atuando como banco comercial. Verifica-se, do parecer, que as operações,
que se pretende investigar, residem no empréstimo a empresas do setor sucroalcooleiro de
cerca de um bilhão e cem milhões de dólares americanos bancados pelo Governo Federal ou
seja, entrega subsidiada pelos cofres públicos”. [...]”Penso, Sr. Presidente, que essa é uma
operação na qual o Banco do Brasil não age como banco comercial. Não se pretende devassar
186
187
mesma forma, os limites imanentes da inviolabilidade domiciliar não
compreendem o ingresso de fiscais em estabelecimentos empresariais abertos
ao público, que não podem ser entendidos como domicílio.189
É certo que os limites imanentes, assim entendidos, perdem parte de sua
utilidade metodológica como categoria dogmática autônoma, que é justificar o
estabelecimento pelo legislador de limitações aos direitos não sujeitos à reserva
legal, com o escopo de proteger outros bens e direitos. Essa, contudo, é a leitura
que mais se harmoniza com a concepção dos direitos fundamentais como
direitos restringíveis, defendida nesse estudo.
5. Conceito de restrição
5.1) Aspectos gerais quanto ao conceito de restrição
conta de particulares, mantida em depósito no Banco do Brasil. Está, ele, neste caso
desempenhando a função de agente delegado do Governo Federal, e, por isso, não se acha em
causa, propriamente, a quebra de um sigilo. Deste se acha imune por sua natureza, a operação
realizada em dinheiros públicos, cujo dispêndio, ao revés, está sujeito, pelo art. 37 da
Constituição, para não dizer o princípio da moralidade, pelo menos, em dúvida alguma, ao
princípio da publicidade”. No mesmo sentido, o voto do Min. Néri da Silveira: “Em primeiro
lugar, se se trata de operação em que há dinheiro público, a publicidade deve ser nota
característica dessa operação. Não há razão, portanto, para o Banco não dizer quem são os
beneficiados por esses empréstimos. Se o Governo Federal está atuando, por intermédio do
Banco do Brasil na execução de um plano de amparo a um setor de produção, compreendo que,
acerca dessas operações do Banco, com recursos do Tesouro Nacional, não pode lograr
procedência a negativa de informações, com a invocação do sigilo bancário”. [...] “Com efeito, o
sigilo bancário não pode englobar esse tipo de informação, em se cuidando de aplicação de
recursos públicos. Pretender o Ministério Público Federal saber se já houve contratos, quem
são os contratantes, a data de sua celebração, a edição do Diário Oficial em que estão
publicados esses contratos, tudo isso não há de ficar, sob o manto do sigilo bancário, se se
cogita de transações subsidiadas com recursos do erário”. (Supremo Tribunal Federal.
Mandado de Segurança n. 21.729-4/DF. Tribunal Pleno. Data do julgamento: 05 de outubro de
1995. Diário de Justiça: 19.10.2001. Relator: Min. Marco Aurélio. Relator para o acórdão: Min.
Néri da Silveira).
189
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a garantia da inviolabilidade domiciliar
compreende tão-somente os estabelecimentos empresariais que constituam ambientes
fechados ou de acesso restrito ao público. A contrario sensu, não podem ser entendidos como
domicílio os espaços que não são ocupados com exclusividade. Este posicionamento está
explícito no julgamento das preliminares da Ação Penal n. 307-DF, relativa a
inadmissibilidade como prova de registros contidos na memória de microcomputador obtido
em busca realizada em escritório profissional, sem mandado judicial. Segundo relator, Min.
Ilmar Galvão: “[...] não há como negar que o ato promovido pelo Fisco resultou em restrição à
garantia da inviolabilidade do domicílio que, numa extensão conceitual mais larga, abrange
até mesmo o local onde se exerce a profissão ou a atividade, desde que constitua um ambiente
fechado ou de acesso restrito ao público [...] como é o caso típico dos escritórios profissionais”
(p. 40 — sem grifos no original). Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 307 — Distrito
Federal. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Relator: Min. Ilmar Galvão. Julgamento: 13.12.1994.
Publicação: 13.10.1995. Revista Trimestral de Jurisprudência. n. 162. vol. 1.
Analisada a questão relativa à possibilidade lógica de restrições aos
direitos fundamentais, cumpre aprofundar tal conceito, abordando as diversas
formas pelas quais estas se apresentam na ordem constitucional. Cabe, também,
clarificar as relações e diferenças entre o conceito de restrição e certas
categorias análogas, agora à luz das premissas teóricas firmadas no tópico
anterior.
As restrições de direitos fundamentais são normas que estabelecem privações ou supressões de certas formas de exercício dos direitos que, partindo-se
de uma interpretação ampliativa, estariam compreendidas no âmbito de
proteção dos preceitos constitucionais que os consagram.
Ao afirmar-se que as restrições são normas, cabe consignar que, como
destaca Robert Alexy, “uma norma pode ser uma restrição de direito
fundamental só se é constitucional”. Dessa forma, as restrições – para serem
entendidas como tais – hão de mostrar-se constitucionalmente legítimas.190
Ainda segundo Alexy, é imperioso distinguir as normas legais que
estabelecem as restrições – dirigidas aos cidadãos –, das normas que conferem
competência ao legislador para estatuir restrições aos direitos fundamentais:
“Através delas, o legislador fica autorizado a impor restrições a direitos
fundamentais. À competência do legislador corresponde a sujeição do titular de
direito fundamental”.191 Nessa perspectiva, as reservas legais apostas a certos
direitos fundamentais não são restrições, mas apenas estabelecem e
fundamentam “a possibilidade jurídica de restrições”, que afinal serão
estabelecidas pelos “sujeitos constitucionais”192 competentes. Embora seja certo
que, a partir da perspectiva do titular do direito, as reservas legais “têm algo de
restringente”, essa natureza restringente é apenas “potencial e mediata”.193
A restrição poderá ser versada em lei geral ou ser produto da
interpretação jurídica levada a efeito pelo Judiciário. Ou seja, ela pode surgir
não apenas em abstrato, no ato legislativo, mas pode também aparecer no
momento aplicativo.194 No plano hermenêutico, a restrição será toda
interpretação e aplicação do direito “que conduza a uma exclusão da proteção
jusfundamental”.195
Ainda em palavras de ALEXY, Robert. “Se não é (constitucional), sua imposição pode, por
certo, ter o caráter de uma intervenção, mas não de uma restrição”. Teoria de los derechos...,
op. cit., p. 272.
191
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., ibidem, p. 273.
192
A expressão é de CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e..., op. cit., p.
767.
193
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 292.
194
PECES-BARBA MARTINEZ, Gregorio. Curso de derechos..., op. cit., p. 590; BACIGALUPO,
Mariano. La aplicación de la doctrina..., op. cit., p.300.
195
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 292. No mesmo sentido, QUEIROZ,
Cristina. Direitos fundamentais, op. cit., p. 199.
190
Vê-se, assim, que o conceito de restrição liga-se à dimensão negativa da
norma de direito fundamental.196 O aspecto positivo do direito corresponde a
seu “âmbito de proteção”, que há de ser identificado mediante interpretação
extensiva. O âmbito de proteção compreende a parcela da realidade correlativa
aos bens tutelados pelos direitos fundamentais, ou, em outras palavras, é o
conjunto condutas, estados de coisas197 e posições jurídicas que, por serem
necessárias para tutela dos bens jurídicos inerentes aos direitos fundamentais,
hão de ser cobertas pelos efeitos da norma jurídica que o consagra.198
5.2) Restrição e configuração;
É usual em doutrina traçar diferenças entre a restrição e a configuração199
dos direitos fundamentais. Com referência a tais conceitos, busca-se estremar a
atividade de mera regulamentação — ou concretização — dos direitos (não
restritiva) da sua autêntica limitação. Esta última teria efeito constritivo e
supressivo das faculdades e posições jurídicas abrangidas pelos direitos
fundamentais, enquanto aquela teria por escopo apenas desenvolvê-los e
densificá-los.200
Essa distinção encontra-se estreitamente ligada à ideia, já referida, de que
o legislador está duplamente vinculado aos direitos fundamentais: de um lado
deve respeitá-los, abstendo-se de promover constrições indevidas; de outro,
deve promovê-los, reforçando sua proteção. Nesse prisma, “lei e direitos
fundamentais são mutuamente vinculantes e vinculados”.201
De fato, é possível constatar que a Constituição, certas vezes, é clara no
sentido da possibilidade de a lei restringir os direitos e, em outras, contempla a
intervenção legislativa primordialmente como um instrumento para
desenvolver e configurar os direitos. Alguns exemplos são úteis para ilustrar
essa distinção.
A Constituição de 1988 prevê de forma expressa a possibilidade de a lei
restringir a inviolabilidade do sigilo telefônico (art. 5º, XII), bem como de
limitar a liberdade de profissão mediante o estabelecimento de requisitos de
qualificação (art. 5º, XIII). Essas são hipóteses em que a mera disciplina legal do
direito tem caráter preponderantemente restritivo.
De outro lado, há preceitos em que a previsão de intervenção legislativa no
âmbito temático dos direitos fundamentais parece estar mais ligada ao
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 292.
Sobre o conceito de estados de coisas (state of affairs) veja-se: ÁVILA, Humberto. Teoria
dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003.
198
BOROWSKI, Martin. La estrutura de los..., op. cit., p. 121.
199
Diversas ordens constitucionais contêm preceitos que explicitamente falam em
configuração e restrição.
200
Veja-se, por todos, RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000, p. 349.
201
GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit., p. 24.
196
197
propósito de viabilizar sua tutela efetiva do que de autorizar restrições. É o
caso, verbi gratia, do art. 5º, XXVI da Lei Maior, que estatui que “a pequena
propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não
será objeto de penhora para pagamentos de débitos decorrentes de sua
atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu
desenvolvimento”, bem como do art. 5º, inciso XXXII, que prevê que “o Estado
promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Em tais casos, de forma
diversa dos antes mencionados, a existência de lei reguladora não tem o escopo
de comprimir os direitos. Ao contrário, a ação legislativa assume a condição de
pressuposto fundamental para uma proteção adequada e eficaz do direito.
São também exemplos arquetípicos de normas que conferem ao
Legislativo competência de configuração aquelas que veiculam garantias
institucionais.202 Assim é que garantias fundamentais como a propriedade, o
direito de herança, o matrimônio etc. têm seus perfis delineados por normas de
direito civil.203
Nesse sentido, a doutrina alemã, ao tratar dessas hipóteses, refere-se a
direitos com âmbito de proteção estrita ou marcadamente normativo.204 Tais
direitos são precisamente aqueles cujos mecanismos de proteção são traçados
pelo legislador ordinário, uma vez que a abertura e a indeterminação das
normas constitucionais — bem como a própria natureza do direito — não
permitem haurir exclusivamente da Constituição seu conteúdo normativo.
Como explica Gilmar Ferreira Mendes:
A vida, a possibilidade de ir e vir, a manifestação de opinião e a
possibilidade de reunião preexistem a qualquer disciplina jurídica.
Ao contrário, é a ordem jurídica que converte o simples Ter em
propriedade, institui o direito de herança e transforma a
coabitação entre homem e mulher em casamento. Tal como
referido, a proteção constitucional do direito de propriedade e do
direito de herança não teria, assim, qualquer sentido sem as
normas legais relativas ao direito de propriedade e ao direito de
sucessão. Como essa categoria de direito fundamental confia ao
legislador, primordialmente, o mister de definir, em essência, o
próprio conteúdo do direito regulado, fala-se, nesses casos, de
regulação ou de conformação (Regelung oder Ausgestaltung) em
Sobre o conceito de garantias institucionais, veja-se a nota nº 43 do Capítulo II de
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional…., op. cit..
203
Exemplos de normas de competência configuradoras são que enunciam instituições de
Direito Civil. De fato, garantias jusfundamentais tais como o matrimônio, a propriedade e o
direito sucessório pressupõem normas de direito civil. ALEXY, Robert. Teoria de los
derechos..., op. cit., p. 325.
204
Como informa MENDES, Gilmar Ferreira. Âmbito de proteção..., op. cit., p. 215.
202
lugar de restrição (Beschrankung). É que as normas legais
relativas a esses institutos não se destinam, precipuamente, a
estabelecer restrições. Elas cumprem antes relevante e
indispensável função como normas de concretização ou de
conformação desses direitos.205
Também se fala em configuração ou conformação legislativa para referir,
de um modo geral, ao tema dos direitos submetidos à reserva legal, que são
aqueles cuja disciplina a Constituição remete à lei. Na dogmática hispânica,
emprega-se a expressão direitos de configuração legal206 para designar os
direitos que, “dotados — como fundamentais — de um conteúdo constitucional
indisponível, exercem-se nas condições fixadas discricionariamente — mas com
respeito àquele conteúdo pelo legislador [...]”.207
De qualquer modo, é certo que a competência para conformar os direitos
fundamentais não confere ao legislador total liberdade para determinar seu
conteúdo, tendo em vista o caráter supremo e vinculante das normas
constitucionais. Por isso mesmo, tais direitos e garantias são os arquétipos da
dupla vinculação do legislador ordinário, a quem cabe, de um lado, o “dever de
preservar” o direito regulado e, de outro, “um dever de legislar, isto é, um dever
de conferir conteúdo e efetividade”208 a este.
Fixadas essas premissas, questiona-se até que ponto as leis configuradoras
podem, também, ser restritivas dos direitos fundamentais. Como se viu, o
estabelecimento da distinção conceitual entre restrição e configuração
legislativa decorre da ideia de que nem todas as normas que disciplinam o
exercício de direitos fundamentais ostentam natureza restritiva. Contudo,
interroga-se se é possível inferir daí que a configuração de direitos seja sempre
algo diverso de sua restrição, isto é, se é cabível separar as leis configuradoras
das leis restritivas.
Esse ponto é relevante uma vez que no quadro da teoria externa as restrições a direitos fundamentais só são válidas se atenderem aos imperativos de
proporcionalidade e respeito ao núcleo essencial. Já em relação às configurações, a necessidade de justificação da intervenção legislativa emerge à medida
Idem, ibidem.
Confira-se, por todos, PAGÉS, J. L. Requejo. Derechos de configuración legal. In: REYES,
Manuel Aragón (coord.). Temas básicos de derecho constitucional: Tomo III — Tribunal
constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Civitas, 2001, p. 136.
207
Idem, ibidem, p. 135. “Entre os direitos fundamentais de configuração legal estabelecidos
na Constituição figuram, por exemplo, o direito de acesso às funções e cargos públicos (art.
23.2 CE; STC 185/1999, de 11 de outubro), o direito à tutela judicial efetiva (art. 24.1 CE; STC
24/1990, de 15 de fevereiro) ou o direito à objeção de consciência (art. 30.2 CE).”
208
MENDES, Gilmar Ferreira. Âmbito de proteção..., op. cit., pp. 211-222
205
206
que se entenda que há hipóteses nas quais estas implicam, além de uma
configuração, uma restrição ao direito fundamental.209
Entender ou não que a configuração de direitos é algo sempre diverso da
restrição depende do conceito de configuração que se adote. Como salienta
Martin Borowski,210 há duas formas de interpretar o conceito de configuração: i)
de um lado, pode-se entender que o objeto da configuração é o próprio direito
fundamental, ou seja, que o perfil do direito fundamental é determinado pela
ação legislativa; ii) numa outra perspectiva, pode-se pensar que o objeto da
configuração não é o direito fundamental em si, mas o direito de índole legal, o
qual se insere no âmbito temático do direito fundamental.211
Ao partir-se da primeira ideia — de que a configuração determina o
próprio conteúdo do direito fundamental —, descortinam-se duas
possibilidades: i) ou se entende que o legislador, ao configurar o direito, não
está vinculado ao seu conteúdo constitucional, tendo total liberdade para
configurá-lo; ii) ou se entende que o legislador, ao configurar o direito
fundamental, está vinculado à Constituição, por meio do dever de respeito ao
postulado da proporcionalidade.212
A primeira tese não é compatível com a ideia de Constituição rígida e de
vinculação do legislador aos direitos fundamentais, uma vez que permite que,
pela ação legislativa, opere-se o total esvaziamento dos direitos.213 Quanto à
segunda tese — de que o legislador configura os direitos, mas está vinculado à
Constituição pelo princípio da proporcionalidade — incorre em uma evidente
incongruência: “só se pode configurar o que se pode modificar. Só se pode
modificar objetos aos quais não se está vinculado”.214-215
A segunda forma de interpretar as configurações concebe que estas têm
por objeto não o próprio direito fundamental, “mas o direito
infraconstitucional, particularmente o direito legal, estabelecido no âmbito
temático do direito fundamental correspondente”.216 Nesse caso, também não há
como entender, no quadro de uma Constituição rígida, que o legislador vá atuar
BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 94.
Idem, ibidem, p. 87.
211
Idem, ibidem, pp. 86-87.
212
Idem, ibidem, pp. 87-91.
213
Idem, ibidem, p. 89.
214
Idem, ibidem, p. 91.
215
Incoerência dessa espécie pode ser identificada na tese de MARTINEZ-PUJALTE, AntonioLuis. La garantía del..., op. cit., p. 80, que afirma: “...a configuração legislativa do direito
fundamental comporta a fixação de seus limites; que, desde a posição que se vem sustentando
nestas páginas, só podem ser limites internos, derivados do próprio conteúdo do direito.
Agora bem, convém matizar que tratá-los como limites internos não significa
necessariamente afirmar que sejam limites preexistentes à regulação legislativa, e que
existiriam igualmente se tal regulação não houvesse produzindo-se”.
216
BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 91.
209
210
sem vinculação ao conteúdo dos direitos. E, admitindo-se haver vinculação à
Constituição, esta se materializará de forma diferente conforme os direitos
fundamentais sejam entendidos i) como regras; ou ii) como princípios.217 A
conceber-se os direitos como regras, a atividade do legislador não poderia,
“nem mesmo metaforicamente,”218 ser entendida como configuração. É que, se
os direitos são vistos como comandos definitivos, não resta ao legislador
nenhuma margem de discricionariedade, cabendo a este apenas executar a
norma constitucional. E, quando se executa algo que já está dado de antemão,
não se configura nada. A atividade legislativa, assim, limitar-se-ia a interpretar
o conteúdo constitucional dos direitos.
Cabe, então, analisar de que forma deve ser entendida a configuração no
modelo de direitos fundamentais como princípios. Com efeito, sendo os direitos
pensados como comandos de otimização e não como comandos definitivos,
abre-se uma esfera de apreciação ao legislador em sua atividade
regulamentadora. As intervenções legislativas irão, nessa perspectiva,
estabelecer regras que limitam o exercício do direito mediante a fixação de
condições e proibições. Nada obstante, as condições que o legislador venha a
estabelecer para o exercício do direito não decorrem diretamente do princípio
constitucional, mas de sua regulação infraconstitucional. Por isso, o objeto da
configuração não é o direito fundamental propriamente dito, mas o direito
legal. Exemplificando: a norma do art. 5º, XV, da Constituição (É livre a
locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos
termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens), consagra o
princípio da liberdade de ir e vir, que, nos termos do referido preceito, é um
direito de configuração legal. O Estatuto do Estrangeiro é uma das leis regulam
o exercício dessa liberdade, determinando, em seu artigo art. 22, que “a entrada
no território nacional far-se-á somente pelos locais onde houver fiscalização
dos órgãos competentes dos Ministérios da Saúde, da Justiça e da Fazenda”. 219 A
norma mencionada, ao regular o ingresso em território nacional, estabelece
uma restrição ao direito prima facie de ingressar livremente no país. Tal
restrição visa a tutelar a segurança nacional, os interesses fazendários e a saúde
pública. É possível afirmar, num juízo ponderativo simplificado, que a norma
restritiva em questão atende ao postulado da proporcionalidade em suas três
dimensões — adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito
—, mostrando-se, pois, constitucionalmente legítima. Desse modo, nos casos em
que alguém pretenda ingressar no território nacional em locais onde não haja
fiscalização dos referidos órgãos estatais, caberá aplicar a regra
Idem, ibidem, pp. 92-93.
Idem, ibidem, p. 92.
219
A ordem de análise e a conclusão aqui colocadas estão baseadas nas lições de BOROWSKI,
Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 94 et seq. No entanto, o autor desenvolve tais
argumentos utilizando um exemplo um pouco diferente do aqui empregado.
217
218
infraconstitucional que estabelece a vedação, e não o princípio constitucional
que tutela prima facie a liberdade ambulatorial.220 Como averba Borowski,
quando a configuração é compatível com a Constituição, “então a lei é a norma
que deve aplicar-se nos casos concretos, ainda que não tenha validade
hierárquica superior, mas sim uma prevalência de aplicação em relação ao
direito constitucional”.221
Imagine-se, todavia, que o referido Estatuto contivesse preceito
determinando que todas as pessoas que ingressam no país devem aqui
permanecer por um ano. Haveria, por evidente, violação ao postulado da
proibição de excesso, caracterizando-se, destarte, uma violação ao princípio da
liberdade de ir e vir, que deveria ser aplicado em lugar da regra
inconstitucional. Assim, no modelo de princípios, há uma “vinculação flexível”
do legislador aos direitos fundamentais, determinada pelo imperativo de
proporcionalidade. Desse modo, cabe falar “metaforicamente,”222 de
configuração do direito fundamental.
Com base nesse conceito de configuração, que se mostra compatível com o
modelo de princípios, retoma-se a pergunta: são as configurações sempre algo
diverso das restrições, ou podem assumir caráter restritivo?
É certo que nem todas as normas infraconstitucionais que disciplinam
bens tutelados como direitos fundamentais constituem restrições. Por exemplo,
quando o Código Civil estatui que “aberta a sucessão, o domínio e a posse da
herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros necessários”, não restringe
nenhum direito fundamental.223 Mas cabe dizer o mesmo em relação a norma
infraconstitucional que determina que o direito de impetrar mandado de
segurança deve ser exercido até 120 dias após a ciência do ato impugnado? E
quanto à norma que estipula que o direito de impetrar habeas data está
condicionado à negativa ou ao silêncio quanto a pedido administrativo de
informações ou retificação de dados? 224-225
A restrição transforma um direito prima facie em um não-direito definitivo.
BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 93.
222
Idem, ibidem.
223
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 321.
224
A Lei n. 9.507, de 12 de novembro de 1997 — que regula procedimento do habeas data —
estabelece, em seus artigos 8º e 10, como condição para o cabimento da referida garantia
processual, a necessidade de configurar-se a recusa ou a omissão administrativa em fornecer
as informações disponíveis ou em fazer-se a retificação ou anotação no cadastro do
interessado. A ausência dessa condição acarreta a carência de ação por falta de interesse de
agir. Tal previsão normativa positivou o entendimento que, logo após o advento da Carta de
1988, fora adotado pelo STJ (Súmula 2: Não cabe o habeas data (CF, art. 5., LXXII, letra “a”) se
não houve recusa de informações por parte da autoridade administrativa) e pelo STF
(Recurso Ordinário em Habeas Data n. 22-8 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Relator: Min.
Celso de Mello. Data do Julgamento: 19.09.1991. D.J. 01.09.95 Ementário n.º 1798-01).
225
É interessante mencionar a análise feita por TOLEDO, Suzana de Barros do referido
preceito. A autora, formulando uma severa crítica a posições doutrinárias e jurisprudenciais
220
221
Nesses casos, a visualização de caráter restritivo ou configurador na
norma reguladora depende da perspectiva de análise que se adote. Como
assinala Borowski em articulada explanação, as configurações e as restrições
são:
Duas formas diferentes de descrever exatamente o mesmo
fenômeno. Na restrição de direitos fundamentais, o princípio de
direito fundamental limita-se mediante a expedição de uma lei. O
destaque aqui está em que um dever prima facie de um princípio
converte-se em um não dever definitivo. Mediante a expedição da
lei se produz igualmente uma configuração do direito
infraconstitucional. Se fala, de outro modo, de uma “configuração
de direito fundamental”, se se coloca ênfase na formação do
direito infraconstitucional no âmbito do direito fundamental. Sem
embargo, os princípios fundamentais que vinculam materialmente
ao legislador no processo de configuração restringem-se, por sua
vez, pela legislação. Quem põe ênfase no direito fundamental, fala
de uma restrição; quem enfatiza o direito infraconstitucional, fala
de uma configuração [...].226
que sustentam a inconstitucionalidade (rectius: não recepção) do prazo de 120 dias previsto,
à época, na Lei nº 1.533/51 e reproduzido, hoje, na Lei nº 12.016/09, por restringir
arbitrariamente o direito a valer-se do mandado de segurança, defende que a hipótese é de
mera configuração. Consoante seu raciocínio, “uma lei não há de ser considerada restritiva se,
objetivando aclarar o âmbito de proteção de um direito, venha expurgar uma conduta que a
própria Constituição, por meio de uma interpretação sistemática, repele”. TOLEDO, Suzana de
Barros. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis
restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 145 et seq. Com
efeito, se não parece adequado falar em inconstitucionalidade do referido preceito — apenas
por atribuir-se natureza restritiva àquela norma —, também não se mostra correto concebêla como mera configuração, afastando, assim, qualquer discussão sobre a necessidade de
ponderar o direito a valer-se do referido remédio — que se ancora na necessidade de garantir
um mecanismo célere de impugnação contra coações administrativas —, com os princípios
do contraditório e da ampla defesa, que são indiscutivelmente mitigados em desfavor do
Poder Público no procedimento do mandado de segurança. Assim, é possível sustentar a
constitucionalidade do dispositivo sem recusar sua natureza restritiva, a partir de um juízo
ponderativo que sopese o fundamento da garantia processual — rapidez e agilidade contra
coações ilegais — com os princípios do contraditório e da ampla defesa, que hão de
prevalecer sempre que o lesado não optar pela via do mandado de segurança no prazo
estipulado. A propósito, o STF adota a tese de que o referido prazo é constitucional, tendo tal
entendimento sido consolidado no enunciado nº 632 de sua Súmula de Jurisprudência, que
tem o seguinte teor: “É constitucional lei que fixa o prazo de decadência para a impetração de
mandado de segurança.”
226
BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 95.
Assim, todas as intervenções legislativas que possam constituir obstáculos
ao exercício de direito fundamental devem ser entendidas como restrições,
ainda que sejam, ao mesmo tempo, configurações.
Nesse sentido, averba Alexy que “quando algo é restritivo desde algum
ponto de vista, segue sendo restritivo, ainda quando desde algum outro ponto
de vista seja configuração”.227
A distinção entre configuração e restrição, nestes termos, não assume
contornos dicotômicos e excludentes. Trata-se de duas dimensões de um
mesmo fenômeno. De qualquer modo, caberá estremar configuração e restrição
naqueles casos em que a disciplina legal não afete nenhum direito, sendo
“neutra em relação a todos os direitos fundamentais”.228
Adota-se, dessa forma, uma concepção ampla de restrição e uma estreita
de configuração.229 Isso não significa, no entanto, que — como afirma Borowski
— seja “quase inconcebível que existam configurações não restritivas”.230 Há
uma série de normas infraconstitucionais que, ao invés de restringir, otimizam
e reforçam a proteção dos direitos fundamentais. Os exemplos mais claros são
as normas que estabelecem proteção dos indivíduos em face do Estado,231
especificando obrigações por parte deste que, a princípio, não poderiam ser
hauridas do preceito constitucional que contempla o direito. No direito
brasileiro, um exemplo de norma configuradora é a Lei 9.784, de 29 de janeiro
de 1999, que disciplina o processo administrativo no âmbito da Administração
Federal direta e indireta. A finalidade desta norma é essencialmente
estabelecer uma proteção mais eficiente do administrado, não se vislumbrando,
em grande parte de seus preceitos, prescrições de caráter restritivo.
Em vista disso, a adoção de um conceito amplo de restrição e de um
conceito estrito de configuração não significa que inexistam normas de
natureza exclusivamente configuradora.
6. Modalidades de restrições aos direitos fundamentais
6.1) Generalidades
Tendo-se adotado, no presente estudo, a teoria externa quanto à
restringibilidade dos direitos fundamentais, as classificações aqui enunciadas
partem da premissa de que mesmo os direitos fundamentais não sujeitos à
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 323.
BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 96.
229
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 321 et seq. BOROWSKI, Martin. La
estructura de los..., idem, ibidem.
230
BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., ibidem, p. 97.
231
Isso ocorre, com maior frequência, no âmbito do direito administrativo. É que, quanto às
normas de direito privado, o incremento na proteção do direito de alguns, normalmente,
resulta numa restrição dos direitos de outros particulares.
227
228
reserva legal podem ser objeto de intervenções legislativas de caráter
restritivo, as quais deverão mostrar-se compatíveis com a Constituição. Adotase, também, a tese de que os direitos fundamentais tendem a colidir com outros
direitos e bens constitucionalmente protegidos, o que poderá justificar
restrições recíprocas operadas in concreto, pela via interpretativa.
Nessa perspectiva, como já se destacou anteriormente, os direitos
fundamentais podem ser restringidos em decorrência da atuação interpretativa
do Judiciário ou por meio da ação legislativa. Além disso, em certos casos, o
Executivo, ao aplicar lei e a Constituição, restringe os direitos fundamentais no
plano concreto. Assim, tendo em vista os “sujeitos constitucionais” 232
competentes para promover restrições aos direitos fundamentais, estas podem
ser: i) legislativas ii) judiciais e iii) administrativas.233 Fala-se, de modo
semelhante, em restrições: i) no momento legislativo e ii) no momento
aplicativo.234
Em virtude da supremacia hierárquica e do caráter vinculante dos direitos
fundamentais, as restrições a estes opostas haverão sempre de ter fundamento
nas normas constitucionais, mesmo quando forem estabelecidas por normas
infraconstitucionais. Desde esse ponto de vista, é adequada a classificação
adotada por Alexy, que decompõe as restrições em dois tipos: i) restrições
diretamente constitucionais e ii) restrições indiretamente constitucionais.
6.2) Restrição legal (abstrata) e restrição aplicativa (concreta)
As restrições aos direitos fundamentais podem ser efetivadas: i) no plano
legislativo ou ii) no plano aplicativo.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e..., op. cit., p. 767.
No plano dogmático, não costuma ser aceita a ideia de que o Executivo pode promover
restrições aos direitos fundamentais, tendo em vista a incidência do princípio da reserva legal
nesse domínio. No entanto, é certo que há situações em que o Poder Executivo restringe
direitos individuais ao promover a aplicação direta da Constituição. Isso ocorre, por exemplo,
no caso do art. 5º, inciso XVI, da Carta Brasileira, que versa sobre o direito de reunião (Todos
podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente
de autorização, desde que não frustem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo
local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente). Embora o referido
preceito faça referência apenas à necessidade de comunicação prévia à autoridade
competente, a Administração poderá, em certos casos, intervir a fim de evitar a realização de
duas reuniões no mesmo horário e local. Ademais, há hipóteses em que a própria lei confere
certa margem de ação ao Executivo para atuar. Um exemplo claro desse caso é o exercício do
poder de polícia, que corriqueiramente repercute sobre os direitos individuais. Esse ponto,
contudo, remete à complexa discussão em torno do conceito convencional de vinculação do
administrador à lei, o qual tem sido objeto de amplo questionamento, e que não cabe aqui
aprofundar. Veja-se, a propósito, o item 2 do Capítulo V de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves.
Interpretação constitucional…, op. cit..
234
BACIGALUPO, Mariano. La aplicación de la doctrina..., op. cit., p. 300.
232
233
As restrições legislativas operam no plano abstrato e geral, de modo que
implicam alterações no conteúdo objetivo dos direitos fundamentais. O recorte
operado pelas leis restritivas determina o âmbito de proteção legal vigente do
direito, transformando seu conteúdo constitucional prima facie em conteúdo
legal definitivo.
Já as restrições aplicativas operam no plano concreto e individual,
repercutindo na dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, sem afetar seu
conteúdo objetivo enunciado na Constituição e nas leis restritivas.235
Exemplificando, as normas legais que regulam a interceptação telefônica
restringem o sigilo de comunicações na dimensão abstrata, enquanto a decisão
judicial que determina tal providência restritiva opera uma restrição in
concreto no direito subjetivo ao sigilo. Em sentido semelhante, o preceito do
Estatuto da Criança e do Adolescente que veda a divulgação de nome ou
fotografia de menor a que se atribua a prática de ato infracional restringe o
direito à liberdade de expressão e à informação no plano abstrato,236 sendo que
decisão judicial que determine a apreensão de publicação que tenha infringido
tal preceito operará uma restrição concreta nos direitos fundamentais em
questão.
6.3) A classificação de Robert Alexy
6.3.1) Restrições diretamente constitucionais
Para Robert Alexy, as restrições diretamente constitucionais são aquelas
que derivam de forma imediata de normas com hierarquia constitucional. Tais
Em sentido semelhante, NOVAIS, Jorge Reis, distingue essas duas modalidades de restrição
aos direitos fundamentais, denominando as restrições abstratas de restrições em sentido
estrito e as concretas de intervenções restritivas. As restrições aos direitos fundamentais
não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 192 et seq.
236
Art. 247 — “Divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de
comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial
relativo a criança ou adolescente a que se atribua ato infracional: Pena — multa de três a
vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência. § 1° — Incorre na
mesma pena quem exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente
envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos
que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente. § 2°
— Se o fato for praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da
pena prevista neste artigo, a autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da
publicação ou a suspensão da programação da emissora até por dois dias, bem como da
publicação do periódico até por dois números”. A parte final do § 2º, que autoriza a suspensão
judicial da programação e publicação que veiculem a imagem do menor, teve sua
inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN nº 869-2.
235
restrições emanam de cláusulas restritivas237 constitucionais, que podem ser
expressas ou tácitas.
O exemplo acadêmico tradicional de cláusula restritiva expressa encontrase no preceito que consagra o direito de reunir-se, o qual, nas diversas
constituições democráticas, vem acrescido da expressão “pacificamente e sem
armas”.238
Sem embargo, o entendimento de que a referida fórmula exprime uma
restrição ao direito de reunião não é uníssono. Discute-se se cláusulas como a
mencionada podem ser tratadas como efetivas restrições, ou se, de forma
diversa, são “descrições diretamente constitucionais” do conteúdo do direito —
ou “limites imanentes expressos”—, 239 que estabeleceriam o seu perímetro de
proteção.
A visão que nega o caráter restritivo desses preceitos, atribuindo-lhe
função meramente prescritiva e delimitadora do direito, é tributária da teoria
interna. Considera, assim, que as condições estabelecidas no próprio texto
constitucional demarcam o conteúdo máximo da norma protetora, traçando
“uma linha entre o direito e o não-direito”.240 A partir dessa perspectiva, não
existem “restrições constitucionais”, mas apenas delineamento dos contornos
do direito.
É importante destacar que tratar essas fórmulas como restrições ou como
delimitações tem consequências hermenêuticas importantes. De acordo com
Robert Alexy, a tese que concebe a cláusula “pacificamente e sem armas” como
mero elemento da definição do direito de reunir-se “não é necessária por
razões conceituais e suas consequências tampouco são desejáveis”.241 Isso
porque, a entender-se que se trata de limites internos, caberá apenas definir, a
cada caso, se as reuniões são ou não pacíficas, sem ter-se em conta nessa
interpretação o confronto dialético entre o princípio da liberdade de reunião e
os princípios que amparam a cláusula restritiva. Isso se manifesta de forma
particularmente clara nos casos duvidosos. Na explicação do autor:
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit, p. 279.
Veja-se: Art. 8º (1) da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha: “Todos os
alemães têm o direito de reunir-se, pacificamente e sem armas, sem anúncio nem autorização
prévias”. Art. 5º, XVI, da Constituição da República Federativa do Brasil: “todos podem reunirse pacificamente, sem armas, ...”. Art. 21, 1 da Constitución Española: “Se reconoce el derecho
de reunión pacífica y sin armas. El ejercicio de este derecho no necesitará autorización
previa”; e o Art. 45, 1 da Constituição da República Portuguesa: “Os cidadãos têm o direito de
se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade
de qualquer autorização”.
239
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., op. cit., p. 284.
240
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais..., op. cit., p. 30.
241
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 278.
237
238
(...) nos casos duvidosos, para constatar que uma reunião não é
pacífica, se recorre ao conceito de “não pacífico”. Dentro do marco
dessa interpretação, é também sempre necessário sopesar o
princípio jusfundamental da liberdade de reunião, entre outros,
com os princípios contrapostos que impulsionaram o legislador
constitucional a ditar a cláusula restritiva definitiva diretamente
constitucional. Isto mostra que a cláusula nada mais é que uma
decisão do legislador constitucional em favor de determinadas
razões contrárias a proteção jusfundamental. Mas, as razões
contra a proteção jusfundamental, qualquer que seja sua
formulação, pertencem ao âmbito das restrições. Se se
renunciasse a essa adscrição, existiria o perigo de que o jogo de
razões a favor e contra fosse substituído por intervenções mais ou
menos intuitivas.242
De fato, nos casos duvidosos resta evidenciado o teor restritivo da
expressão “pacificamente e sem armas”, à medida que uma interpretação
ampliativa ou não de seu significado terá repercussão direta na determinação
da esfera de incidência do direito de reunião. Por isso, a solução que confere
maior grau de proteção ao direito fundamental é justamente entender cláusulas
dessa natureza como restrições. Tal visão, nas hipóteses controvertidas, levará
ao raciocínio ponderativo, e permitirá sopesar a dimensão positiva da norma
(todos tem direito a reunir-se), com seu aspecto negativo (pacificamente e sem
armas).
As cláusulas restritivas implícitas são aquelas que defluem da necessidade
de conciliar os direitos entre si e com outros bens constitucionalmente
protegidos. Nesse sentido, Robert Alexy aponta como exemplo de cláusula
restritiva implícita a formulação da Corte Constitucional segundo a qual “tendo
em conta a unidade da Constituição e a totalidade de valores protegidos por ela,
[...] os direitos fundamentais de terceiros que entram em colisão e outros
valores jurídicos de hierarquia constitucional podem excepcionalmente limitar,
em casos particulares, também direitos fundamentais irrestringíveis”.243
6.3.2) Restrições indiretamente constitucionais;
As restrições indiretamente constitucionais “são aquelas cuja imposição
está autorizada pela Constituição”,244 sendo estabelecidas por normas de status
infraconstitucional. Essa autorização pode constar de uma cláusula expressa ou
decorrer implicitamente do sistema constitucional. No caso das reservas legais,
Idem, ibidem.
Idem, ibidem, p. 281.
244
Idem, ibidem, p. 282.
242
243
as autorizações ao legislador para intervir nos direitos fundamentais podem ser
simples ou qualificadas. Nas primeiras, a Constituição confere ao legislador uma
competência genérica e não detalhada para disciplinar o direito, mediante
fórmulas do tipo: “na forma da lei”, “nos termos da lei”, “lei regulará” etc. Nas
segundas, a autorização para que o legislador limite o direito vem
acompanhada de diretivas que condicionam a atividade legislativa. Em nossa
Constituição, um exemplo desse tipo de autorização é a reserva de lei
limitadora da liberdade de exercício de profissão, que deflui da expressão
“atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” (art. 5º, XIII).
A classificação elaborada por Robert Alexy tem o mérito de pôr em
evidência o fundamento constitucional de toda e qualquer restrição a direitos.
Entretanto, a referida categorização dicotômica, embora assentada em
pressupostos teóricos corretos, apresenta o inconveniente de abarcar em uma
única classe situações tão diversas como as restrições que advêm dos conflitos
de direitos e as estatuídas de forma explícita no texto constitucional.
No presente estudo, emprega-se uma classificação alternativa que, sem
discrepar, na essência, da de Alexy, decompõe as restrições em três categorias,
tendo em consideração dois aspectos: i) se a restrição é diretamente estatuída
pela Constituição ou se é apenas autorizada por esta; ii) se a restrição (ou
possibilidade de restrição) é prevista de modo expresso ou está implícita no
texto constitucional.
Combinando tais critérios, extraem-se, da ordem constitucional, três
modalidades de restrições: a) Restrições expressamente estatuídas pela
Constituição; b) Restrições expressamente autorizadas pela Constituição; c)
Restrições implicitamente autorizadas pela Constituição.
6.4) Uma proposta complementar de classificação
6.4.1) Restrições expressamente estatuídas pela Constituição
As restrições expressamente estatuídas pela Constituição são aquelas
dispostas por meio de cláusulas restritivas explícitas. Na Constituição de 1988,
colhe-se o tradicional exemplo do direito de reunião, que vem restringido pelas
expressões “pacificamente” e “sem armas” (art. 5º, XVI). São também exemplos
de restrições expressas a vedação ao anonimato estampada no art. 5º, IV, que
consagra a liberdade de expressão; o estabelecimento da liberdade de ir e vir
em tempo de paz, previsto no art. 5º, XV; a vedação de associações de caráter
paramilitar contida no art. 5º, XVII, que enuncia a liberdade associativa; e a
possibilidade de instituir-se pena de morte em caso de guerra declarada, como
previsto no art. 5º XLVI.245
Há, ainda, outros preceitos que contêm restrições expressas: v. art. 5º XI, XIV, XXI, XXIII,
XLV, LI .
245
Tais restrições são normas hauridas de dispositivos constitucionais
construídos de forma dialética, vale dizer, mediante a enunciação do direito
protegido e, simultaneamente, de uma exceção.
6.4.2) Restrições expressamente autorizadas pela Constituição
As restrições expressamente autorizadas pela Constituição são as
estabelecidas por atos infraconstitucionais com fundamento em competências
conferidas de forma explícita no texto constitucional. Nesse caso, o constituinte
não restringe o direito: apenas prevê a possibilidade de restrição, atribuindo
aos órgãos de poder a competência para intervir nos direitos em certas
circunstâncias e sob determinada forma jurídica.
Além disso, em determinados casos, a Constituição confere a possibilidade
de o Judiciário restringir os direitos, mediante decisões constritivas de posições
jurídicas individuais constitucionalmente protegidas. É um exemplo dessa
modalidade de autorização o art. 5º inciso XI da Constituição de 1988, que
prevê a inviolabilidade domiciliar “salvo em flagrante delito ou desastre, ou
para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
Outra modalidade de restrições autorizadas constitucionalmente são as
relacionadas aos mecanismos de estabilização da ordem constitucional
inerentes ao regime excepcional de estado de necessidade (Estado de Defesa e
Estado de Sítio). No caso do Estado de Defesa, a Constituição confere ao
Presidente da República o poder de institui-lo por meio de decreto — a ser
apreciado pelo Congresso —,246 o qual poderá impor restrições aos direitos de
reunião e ao sigilo de correspondência, de comunicação telegráfica e telefônica
(art. 136, § 1º). Quanto ao Estado de Sítio, só pode ser decretado após prévia
autorização do Congresso Nacional, mas as restrições a direitos autorizadas são
ainda mais abrangentes, compreendendo a liberdade de locomoção, o direito de
reunião, a liberdade de expressão e comunicação, a inviolabilidade domiciliar e
o direito de propriedade (art. 139).
Por fim, há as restrições legislativas constitucionalmente autorizadas.
Diversos direitos fundamentais são positivados por meio de preceitos que
veiculam autorizações expressas ao legislador para interferir em seu âmbito de
proteção. Tais cláusulas, que conferem competências ao legislador para intervir
nos direitos, são denominadas reservas legais. Essas reservas são, basicamente,
de dois tipos: simples e qualificadas.
Art. 136, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil. “O Presidente da
República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar
estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e
determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade
institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.”
246
Fala-se em reserva legal simples quando o preceito constitucional limita-se
a prever a intervenção legislativa sem determinar qual será o objeto ou a
finalidade da lei, por meios de fórmulas genéricas do tipo: na forma da lei, nos
termos da lei etc. Diversamente, tem-se a reserva legal qualificada nos casos em
que o constituinte, além de prever a possibilidade de ação legislativa, determina
previamente qual deverá ser o objeto e a finalidade da lei reguladora.247
6.4.2.1) Reservas legais simples
As reservas legais simples são caracterizadas pelo fato de traduzirem a
exigência formal de que as restrições aos direitos sejam estatuídas por meio de
lei.248 Na Carta de 1988, encontram-se diversos exemplos desse tipo de reserva.
Pode-se mencionar, verbi gratia, o inciso XV do artigo 5º que consagra a
liberdade de locomoção nos termos da lei; bem como o inciso XVIII do artigo 5º,
segundo o qual “a criação de associações e, na forma da lei, de cooperativas
independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu
funcionamento”; e, ainda, o inciso LVIII, do mesmo artigo, que estabelece que “o
civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas
hipóteses previstas em lei”.
São também entendidas como reservas legais simples as cláusulas pelas
quais a Constituição determina que a lei venha a concretizar certos conceitos e
institutos jurídicos que reclamam densificação. É esse o caso do preceito que
estipula “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o
terrorismo e os definidos como crimes hediondos [...]” (art. 5º, XLIII). Nessa
hipótese, como destaca Gilmar Ferreira Mendes, “a Constituição conferiu ao
legislador ampla liberdade, o que permite quase a conversão da reserva legal
em um caso de interpretação da Constituição segundo a lei. Os crimes
hediondos passam a ter um tratamento agravado pela simples decisão
legislativa”.249
6.4.2.2) Reservas legais qualificadas
Na doutrina italiana fala-se em reserva absoluta e reserva reforçada. No primeiro caso, “o
legislador ordinário tem (obrigatoriamente) competência plena e exclusiva na matéria”, e a
Constituição não restringe sua “relativa discricionariedade substancial”. No caso da reserva
reforçada, “a intervenção do legislador deve ser especificamente e unicamente direcionada à
busca dos escopos e objetivos exatamente indicados na Constituição”. LILLO, Pasquale. Diritti
fondamentali e libertà della persona. Torino: G. Giappichelli, 2001, p. 142.
248
É claro que a lei há de ser, também, materialmente constitucional, observando a exigência
de proporcionalidade.
249
MENDES, Gilmar Ferreira. Âmbito de proteção..., op. cit., p. 234.
247
As reservas legais qualificadas não se limitam a enunciar o requisito formal
de que a intervenção seja efetivada por lei, mas também estipulam, de antemão,
o objeto, a finalidade ou o âmbito temático da lei reguladora. Um preceito que
consagra tal espécie de reserva é o inciso XIII, do artigo 5º, da Constituição de
1988, segundo o qual “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou
profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Outro
exemplo encontra-se no inciso XII, que contempla a inviolabilidade do sigilo das
comunicações telefônicas, salvo “por ordem judicial, nas hipóteses e na forma
que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual
penal”. Pode-se mencionar, ainda, o inciso LX, que enuncia: “a lei só poderá
restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou
o interesse social o exigirem”.
6.4.3) Restrições implicitamente autorizadas pela Constituição
Como se viu, as intervenções legislativas em direitos fundamentais não se
resumem àquelas explicitamente previstas, cabendo admiti-las sempre que a
indeterminação dos preceitos constitucionais ou a necessidade de preservação
da unidade da Lei Maior torne imperativa a regulamentação infraconstitucional
dos direitos.
Há, basicamente, duas categorias de intervenções legais implicitamente
autorizadas. De um lado, reconhece-se a competência do Parlamento para
promover a harmonização dos diversos — e, por vezes, antagônicos — bens e
valores constitucionais, o que poderá implicar, em certos casos, a compressão
de uns em detrimento de outros. Noutro giro, há hipóteses em que a
Constituição, sem prever de modo explícito a reserva legal, indica restrições aos
direitos que hão de ser concretizadas pela via legislativa, tendo em vista sua
abertura semântica ou, ainda, o fato de serem mencionados institutos jurídicos
que demandam regulamentação infraconstitucional.
6.4.3.1) Conceitos indeterminados e institutos jurídicos sujeitos à
regulação legal
Nesses casos, a Constituição não faz menção explícita à possibilidade de o
legislador determinar o conteúdo de certos conceitos e institutos — como
ocorre, v.g., no caso da definição de crimes hediondos (art. 5º, XLIII). O que
ocorre é que a mera previsão no texto constitucional do conceito
indeterminado250 ou de instituto jurídico abre as portas para a intervenção
Como leciona MOREIRA, José Carlos Barbosa: “Nem sempre convém, e às vezes é
impossível, que a lei delimite com traço de absoluta nitidez o campo de incidência de uma
regra jurídica, isto é, que descreva em termos pormenorizados e exaustivos todas as situações
fáticas a que há de ligar-se este ou aquele efeito no mundo jurídico. Recorre então o legislador
250
legislativa, precisamente porque estes, por sua própria natureza, demandam
tratamento em lei. Um paradigma dessa espécie de preceito é o art. 5º LXVII,
que prevê que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do
depositário infiel”.
Com efeito, o conceito de depositário infiel tem por pressuposto a
configuração legal do contrato de depósito. Todavia, a legislação nessa matéria
terá sempre caráter restritivo pois, quanto mais abrangente for a definição legal
dessa modalidade de ajuste, menor será o âmbito de proteção vigente do direito
fundamental a não ser o indivíduo submetido à prisão civil. Caberá, assim,
questionar até que ponto o legislador tem liberdade para adotar definições
amplas de contrato de depósito.251
ao expediente de fornecer simples indicações de ordem genérica, dizendo o bastante para
tornar claro o que lhe parece essencial, e deixando ao aplicador da norma, no momento da
subsunção — quer dizer, quando lhe caiba determinar se o fato singular e concreto com que
se defronta corresponde ou não ao modelo abstrato, o cuidado de “preencher os claros”, de
cobrir os “espaços em branco”. A doutrina costuma falar, ao propósito, em “conceitos
juridicamente indeterminados” (unbestimmte Rechtsbegriffe).” Regras de experiência e
conceitos juridicamente indeterminados. In: Temas de direito processual. São Paulo:
Saraiva, 1980, p. 64, 2ª série.
251
O STF conferiu interpretação extensiva ao conceito de contrato de depósito, entendendo
como constitucionais normas que equiparam certas modalidades de ajuste ao depósito,
viabilizando, assim, a prisão civil nesses casos. No julgamento do Habeas Corpus nº
75.904/SP, a Primeira Turma considerou admissível a prisão civil em caso de penhor rural,
sob a modalidade de penhor agrícola, indeferindo a ordem por maioria. Em voto-vista, o
Ministro Moreira Alves consignou que o penhor rural é constituído sob propriedade do
devedor que permanece na posse direta dela, na qualidade de depositário, assinalando que:
“[...] as coisas dadas em penhor rural — no caso, sob a modalidade de penhor agrícola —,
ainda que objetivamente possam ser fungíveis por suas qualidades intrínsecas (coisas que se
medem, se contam ou se pesam, e que, em determinada relação jurídica, são consideradas
tendo em vista sua específica individualidade), tanto assim que ela exige que sejam
especificadas de molde a individualizá-las, com a caracterização do imóvel onde ficarão
depositadas, não podendo o proprietário-depositário dispor delas, senão sob consentimento
escrito do credor, caso em que a garantia se reduz ao remanescente”. (Habeas Corpus nº
75.904-4/SP — Relator: Ministro Moreira Alves. Julgamento: 23/06/1998. DJ: 25/06/1999).
A Corte também decidiu pela admissibilidade da prisão civil do depositário infiel em caso de
penhor mercantil. No julgamento do Habeas Corpus nº 75.900-9/MG, o relator, Ministro Ilmar
Galvão, aduziu: “As mercadorias dadas em penhor mercantil ao banco foram transferidas por
este para a posse do paciente, como fiel depositário, com as responsabilidades inerentes a
essa condição e com a expressa recomendação de não dispor dos referidos bens a qualquer
título, até que sejam integralmente cumpridas todas as obrigações assumidas. Ora, como fiel
depositário da coisa recebida, o paciente estava sujeito a todas as obrigações e
responsabilidades declaradas no título, sob pena de se proceder contra ele como depositário
infiel.” (Habeas Corpus nº 75.900-9/MG — Relator: Ministro Ilmar Galvão. Julgamento:
23/06/1998. DJ: 21/08/1998). Hoje, todavia, a possibilidade de prisão do depositário infiel
foi afastada, em qualquer modalidade de contrato, por força da Súmula Vinculante nº 25,
editada, inclusive, em razão da assinatura do Pacto de São José da Costa Rica, pelo Brasil.
Outro exemplo de restrição legislativa implicitamente autorizada por meio
de recurso a conceitos jurídicos encontra-se no art. 5 º, XI, que contempla a
inviolabilidade do domicílio “salvo em caso de flagrante delito”. O conceito de
flagrância é dado pela legislação infraconstitucional, sendo que uma formulação
mais ampla ou mais estrita deste terá repercussões na identificação do âmbito
vigente de proteção da inviolabilidade domiciliar.
Tais hipóteses demonstram, de forma derradeira, como, por meio da
configuração legislativa, é possível promover restrições aos direitos
fundamentais. Mas essa modalidade de restrição assume alguns contornos
peculiares. Sua constitucionalidade não dependerá apenas da observância do
postulado de proporcionalidade, mas, antes de tudo, o legislador deverá, ao
concretizar o conceito indeterminado, abster-se de transformá-lo em algo
completamente diverso do que é. Em outras palavras, a presença de tais
conceitos não confere ao legislador o poder de, pela manipulação de seu
conteúdo normativo, comprimir excessivamente ou esvaziar a garantia
constitucional. Efetivamente, a indeterminação do conceito confere certa
margem de manobra ao legislador, mas isso não significa que seja possível, pela
atuação legislativa, desfigurar-lhe o sentido.
6.4.3.2) Conflitos entre direitos fundamentais e bens constitucionalmente
legítimos
A tutela dos direitos fundamentais como um conjunto implica,
necessariamente, que estes se restrinjam reciprocamente. A positivação
simultânea de diversos direitos fundamentais e fins constitucionais, que podem
revelar-se conflitantes, opera como uma autorização implícita ao legislador e ao
Judiciário para restringi-los, respectivamente, no momento legislativo e no
momento aplicativo. O fundamento dessa interpretação é o princípio da
unidade da Constituição.
Isso não significa, como é evidente, que os “sujeitos constitucionais”
tenham liberdade para intervir nos direitos fundamentais de forma indefinida,
na medida em que toda e qualquer restrição deverá observar os requisitos
formais e materiais que se impõem à atividade limitadora dos direitos. Do
ponto de vista formal, as restrições só poderão ser estabelecidas em lei, e, no
caso da limitação hermenêutica, o órgão judiciário há de ser competente. No
que se refere aos limites materiais, tanto os órgãos legislativos como os
judiciários deverão observar o imperativo de proporcionalidade, engendrando
uma interpretação coerente com o princípio da dignidade da pessoa humana. O
método adequado para solucionar as situações que envolvam conflitos entre os
direitos é a ponderação de princípios.
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Aspectos Gerais sobre as Restrições aos Direitos Fundamentais