I CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE E INTERSECÇÕES – ARQUITETURA: “LUZ E
METAFORA:UM OLHAR SOBRE ESPAÇO E SIGNIFICADOS
22 a 25 de outubro de 2002-Porto Alegre – RS – BRASIL
CASAS QUE MATAM, ONDE?
Arq. MSc. Marilice Costi
Mestre em Arquitetura, docente da PUCRS
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
e profissional atuante no mercado de trabalho.
Rua Santana, 666/ 504 – CEP 90040-371 – Porto Alegre
fone 0xx 51 32173761
e-mail: [email protected]
“O corpo está sempre em diálogo com
o meio ambiente: natural ou artificial.”
Okamoto
Que lugar pode matar? Como pensar a casa como o espaço do afeto e o lugar de matar? Matar ou
esconder os conflitos inerentes à vida em comum, matar ou esconder o afeto?
Neste trabalho busca-se demonstrar uma diversidade de olhares no significado de casa, seus moradores
e a arquitetura. Utilizaremos a palavra matar no sentido de morte da independência,da segurança, da
convivência. A arquitetura não mata por si mesma, mas quando ela interfere nas necessidades de
conforto do ser humano, ela mata aos pouquinhos sem que se perceba. Um ambiente físico NÃO é
determinante, mas pode desencadear outros processos no ser humano.
Desde o tempo das cavernas, o homem utiliza espaços para se proteger do clima, das intempéries, das
invasões de animais, dos inimigos... A casa (tenda, caverna, cabana) serve para proteger o indivíduo,
para lhe dar abrigo, espaço para sua sobrevivência e da sua família.
Gaston Bachelar descreve a casa como nosso canto do mundo, nosso primeiro universo, verdadeiro
cosmos: “A casa, como o fogo, como a água, nos permitirá evocar, (...) luzes fugidias de devaneio que
iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. São lembranças de infância, de proteção –
memória e imaginação: a casa protege o sonhador, permite sonhar a paz.” (1996, 25) Se Bachelar
afirma que a casa que “não mata” é um local de intimidade, proteção e calor, pode-se deduzir que não
havendo intimidade, nem conforto e habitabilidade, a casa pode matar?
A casa constitui-se num símbolo situado entre o micro-cosmos do corpo humano e o cosmos, sendo
“um meio termo do qual a configuração iconográfica (...), importante no diagnóstico psicológico e
psico-social”, e para o “simbolismo da identidade”. (DURAND apud DUARTE, 2000)
A importância da casa está também no poema “Aniversário” de Álvaro de Campos, homônimo de
Fernando Pessoa:
”Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.”
(...)
E mais adiante:
“O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
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Pondo grelado nas paredes...
O que sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim- mesmo como um fósforo frio...”
A casa é metáfora do próprio dono: abrigo, território, domínio, lar. Referencial se tem, ela poderá
matar se boas relações humanas e perceptivas com seus espaços não ocorrerem, pois barreiras
arquitetônicas, de transporte ou de comunicação geram sofrimento, criando espaços para não ver, não
encontrar, não viver.
Para Humberto Eco, a casa, denota uma forma do habitar, referindo-se à sua função. (1991, 198) A
casa carrega em si um significado e cada parte tem um significado. Uma janela tem a função de
abrir/fechar, ventilar, permitir visão para o exterior, possibilitar o acesso da luz. Uma janela que não
possui função pode existir, porque o homem se apropria de seu significado. Esta janela sem função
influencia no bem-estar das pessoas? Estudos comprovam que a visão para o exterior reduz o tempo de
permanência dos pacientes em hospitais. E as casas que não tem janelas funcionais? Pertenceriam a
um tipo de casa de matar?
Uma casa pode matar quando os corredores são longos, as escadas são muitas, a comunicação entre os
ambientes é precária. Percorrer longos caminhos no dia-a-dia, num período em que o tempo é
precioso, gera cansaço pelo esforço repetitivo, angústia e sensação de perda de tempo na vida. Muitas
vezes, o terreno obriga que se faça um projeto com vários pavimentos, porão, térreo e sótão, ideais
para completar nossos ícones. Mas ter casa exige cuidados e trabalhos que cansam. E o investimento
físico futuro? O usuário da casa sabe o que lhe reserva a vida adiante? Uma escada poderá ser barreira
a uma pessoa doente, quando o seu objetivo é dar acessibilidade. A casa com escadas poderá romper
relações com seu próprio dono.
Quem é este usuário? idosos? Doentes? esquecidos? excluídos? deficientes físicos? O homem só? A
mulher solitária? a criança abandonada? o adolescente? o doente mental? o mendigo? No Brasil, 10%
da população é portadora de alguma deficiência; 70% da população tem visão residual. Em meados do
ano 2000, o número de idosos no mundo superou o número de crianças e adolescentes pela primeira
vez. No Brasil, isto deverá ocorrer em torno de 2050. Com o portador de deficiência visual é pior. Ele
se machuca nas lixeiras, nos orelhões, nos tapumes, nos camelôs, em casas desorganizadas.
As casas têm sido feitas para os saudáveis. Mas as pessoas carregam pacotes. Mulheres carregam seus
bebês, levam carrinhos. Sem questionar os moradores, sem estudar seus costumes, sem conhecer o ser
humano saber-se-á seus desejos, necessidades?
Casas que matam não tem conforto. Nelas, o ruído penetra impedindo o descanso, a luz urbana entra
pelas janelas atrapalhando o sono, o calor ou o frio penetra demasiado porque sua orientação solar foi
inadequada ou o material não tem inércia, não isola. Aronin (apud TEDESCHI, 1978) relata que os
japoneses davam muita importância à luz solar em suas casas e consideravam que a boa orientação
estava relacionada com a felicidade de seus habitantes.
Casas que matam impedem a convivência. Uma casa pode matar quando a sua estrela não é o
relacionamento entre as pessoas, mas a televisão. Criar espaços para o não-diálogo é criar espaços de
matar.
A dimensão dos espaços também é importante. Casas grandes demais podem isolar seus moradores.
Cria-se casas dentro de outras casas onde o encontro é eventual e o caminho a percorrer é longo. Na
busca pelo conforto máximo, a individualidade se impõe. Espaços muito grandes com baixíssima
densidade de indivíduos poderão gerar distanciamento e solidão. A casa mata porque é incomunicável.
A falta de privacidade e de território individual é causa de sofrimento. A cultura influi nas
necessidades de espaço, disse OKAMOTO (1997). Dependendo da cultura, casas pequenas podem ser
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promíscuas. Se o homem morar em aglomerações, onde o território é pequeno e a densidade é alta, a
perda de privacidade pode fazê-lo adoecer. As relações humanas são conflituosas em espaços
inadequados. A casa e sua ambiência podem matar.
A casa é um espaço que existe porque existe arquitetura? Forma e matéria, dentro e fora, luz e
escuridão? Ou porque existe o indivíduo e o espaço circundante, mas não existe domínio, nem
território próprio? Casas que são calçadas,bancos de praças, um lugar qualquer embaixo de uma
marquise ou de um viaduto? Casas ausentes.
Na pesquisa dos moradores de rua no RJ feita pelas arquitetas Ana Lúcia de Santos e Cristiane Duarte,
foi constatado que, quando mais estruturados, os indivíduos representam a casa concretamente, através
de barracos ou barricadas. Os menos estruturados, que perderam o contato com a realidade, não têm
mais referencial. Ao perderem a função primária de proteção, o indivíduo desumaniza-se, perdendo
também o contato com a realidade (2001, Anais). Sua casa “ausente” é o espaço urbano. Outra casa
que mata?
Na Idade Média, os primeiros hospitais eram chamados de enfermarias Eram casas de pedra de
paredes muito grossas, com alto pé-direito e totalmente insalubres, isoladas das cidades. Havia medo
pois acreditava-se que o ar contaminava por causa dos miasmas...Não havia antibióticos e a vida
humana chegava próximo dos 40 anos, quando chegava. Eram casas de matar, mesmo.(COSTI,1997)
Na Europa do séc. XIX, com aumento da densidade habitacional nas áreas urbanas, velhos bairros se
transformaram em áreas miseráveis,casas baratas se transformaram em cortiços. Era preciso morar
próximo dos centros de produção porque não havia transporte. As moradias não tinham luz nem
ventilação adequadas, em espaços abertos, as condições sanitárias eram péssimas: latrinas e
lavatórios (que eram externos e comuns) e despejos de lixo contíguos. Kenneth Frampton (2000, 14)
relata:
“Com um escoamento precário e uma manutenção inadequada, tais condições levavam à
acumulação de excrementos e lixo e a inundações, o que provocava naturalmente uma alta
incidência de doenças – primeiro a tuberculose,depois, ainda mais alarmante para as
autoridades, os surtos de cólera na Inglaterra e na Europa Continental, nas décadas de
1830 e 1840.”
No Brasil, em 1855, foi feito um relatório da cidade do Recife pelo engenheiro francês L.L. Vauthier.
Sob a influência de tal documento, higienistas pernambucanos criticam o sistema de edificação ainda
predominante na cidade e insistem na necessidade de uma reforma baseada em “luz solar” e
“ventilação”. Em colaboração com arquitetos e engenheiros, trataram dos despejos dos excrementos
das casas nas praias, das estrebarias de aluguel dispersas pela cidade sem esgotos para as urinas dos
cavalos. Desde 1854, havia ameaça do “colera-morbus” e ele realmente invadiu a cidade. (FREYRE,
1979) Era o tempo que a casa matava a cidade e conseqüentemente seus habitantes. Assim, velhos
bairros degradaram. casas que morriam e suas instalações matavam.
A chegada do vidro no período 1910-1925 trouxe leveza à arquitetura que rompeu o envelope rígido
de contenção das atividades e projetou o olhar do usuário tanto para o exterior e quanto para o interior.
“O vidro introduz à nova era”, ”O vidro colorido acaba com o ódio”. (FRAMPTON, op.cit., 139) A
visão do poeta Paul Scheerbart demonstra o fato pois vai influir na arquitetura de forma profunda.
Torres de vidro, peles de vidro que têm esse caráter da modernidade são utilizadas sem escrúpulos em
edifícios habitacionais, a funcionalidade das esquadrias enquanto protetora da radiação solar passou a
ser desconsiderada, a imagem e a visão passaram a ser mais importantes que a privacidade,
conseqüência do sol. Criou-se estufas que exigiram o ar-condicionado durante todo o século XX. Só
na sua última década, passou-se a reconhecer que o ar interno se encontrava mais contaminado que o
externo devido à falta de manutenção e cuidados dos equipamentos. No Brasil, tal problema se tornou
público só após à morte de um Ministro, vitimado pela contaminação aérea. Antes disso, diversos
estudos vinham sendo feitos demonstrando que os materiais utilizados nos interiores tais como: certos
tipos de cola, fenóis e revestimentos, causavam enxaquecas, rinites, fadiga entre outras doenças.
(SIQUEIRA,1996) Casas que matam.
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A casa é o resultado da sociedade ou do arquiteto que é o seu reflexo? As casas de Mies Van der Rohe,
planta livre, vidro e aço, nos remete ao seu gênio criador e marco na história da arquitetura. Sua
intenção foi revolucionária e a concretizou. Os primeiros donos de dois de seus pavilhões tiveram que
se mudar porque seu sentido de território se destruiu devido ao ruído do trânsito da rodovia próxima.
Apesar da integração homem-natureza através da visibilidade dos panos de vidro, a Casa Farnsworth
(1945-50) impedia que as aves reconhecessem o limite entre o exterior e o interior: elas se
machucavam contra a pele de vidro (SMITHSON, 2001). O automóvel matando a casa... E a casa
agredindo o homem e a vida animal no entorno.
Qualidade de vida implica em qualidade ambiental também. Não basta uma casa bela se ela não
oferece conforto: acústica, iluminação, temperatura, ventilação. Não adianta um bom atendimento
médico, se a casa está sobre um valão de esgoto. De que adianta ter o que comer, se quando chove há
desproteção? Nestes casos, o local de morar é causador de doenças, pode matar.
O arquiteto Le Corbusier, escreveu: “Se eliminarmos de nossos corações todos os conceitos mortos a
propósito das casas e examinarmos a questão a partir de um ponto de vista crítico e objetivo,
chegaremos à “Máquina de Morar”, a casa de produção em série, saudável (também moralmente) e
bela como são as ferramentas e os instrumentos de trabalho que acompanham nossa existência.” (Vers
une architecture in FRAMPTON, op.cit.) Mas para FREYRE (1979), a casa é mais que máquina de
morar, é local de convivência, todo um ethos, onde decorrem experiências habituais, influências
culturais de heranças familiares e o meio, em várias datas e em vários espaços.Lugar complexo a
partir de onde a existência se configura e expande.
A casa em série proposta por Le Corbusier, não se desenvolveu adequadamente para todos. Talvez
porque os conceitos estão mais arraigados do que ele pensava e a capacidade crítica e objetiva passou
a se tornar o alvo dos especuladores. Muitos edifícios já nasceram mortos pelo descaso de seus
construtores e pela falta de cultura para o uso de equipamentos até então desconhecidos. Vasos
sanitários foram arrancados e muitos viraram vasos de flores em condomínios habitacionais de baixa
renda. O que se constata é que a sociedade, apesar da tecnologia que tem, não tem considerado as
necessidades de seus usuários. Hoje a maioria dos novos apartamentos possui churrasqueira, mas os
usuários perguntam: “Cadê o espaço para os amigos?”
Muitos governos tentaram resolver o problema habitacional no Brasil, mas a violência urbana,
decorrente do crescente empobrecimento da população, assume caráter nacional a partir da expansão
incontrolável dos assentamentos metropolitanos, cujos governos não contam com recursos para
atender ao mínimo de infra- estrutura. (FINEP, 1985) Os terrenos distantes inviabilizam a qualidade
da casa, porque uma casa não é só metáfora:ela é também o seu entorno: a escola, a farmácia, o posto
de saúde, o esgoto, a água potável, o abastecimento, o transporte para o trabalho. Conjuntos
habitacionais da década de 60 e 70, demonstram a distância dos recursos e a falta de identidade, que é
o que vai ser estudado por muitos pesquisadores que verificam que os usuários, na sua busca de
identidade ou por falta de cultura, vão alterando a casa, mudando aqui ou acolá, juntando lixo,
marcando seu território.
Ainda são produzidas casas que distanciam física e mentalmente os indivíduos. A vida útil de uma
casa deve ser, no mínimo a de seu dono. Ninguém faz uma casa própria pensando que no ano seguinte
vai trocar de casa como quem troca de roupa a cada estação. Ao sonhar com a casa própria, o homem
omite sua velhice como se a juventude fosse permanente como a mídia propaga.
Hoje uma casa é uma prisão. Sues usuários se fecham a sete chaves. São alarmes, câmeras, guardas,
grades, cercas elétricas. Este “esconderijo” para si mesmo e de si mesmo não é saudável. Cada vez
mais o indivíduo, de medo, se fecha, prendendo-se, mata um pedaço de sua liberdade. Quer dizer,
destrói parte de si que precisa se expressar e sentir o exterior para viver. A arquitetura vem convivendo
com os problemas sócio-econômicos mas ainda não encontrou uma solução para impedir que o
homem seja prisioneiro de sua própria casa.
A agressividade que se encontra contida em penitenciárias, hospícios, favelas, é tanto assustadora
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quanto deprimente. Uma casa que segrega, que limita, que controla, que retira a individualidade pode
conter a agressão? Associar a agressividade, a miséria, a doença mental e a velhice a um tipo de
edificação? Poder-se-ia descrever muitos problemas sociais e descortinar atrás deles, um tipo de
arquitetura. Tentativas de agregação e sociabilidade em tais conjuntos vêm ocorrendo, historicamente,
mas a morte social, mental ou física é real. Mesmo que parte da sociedade venha tentando mudanças
para reintegrar o homem, ainda estamos muito longe de soluções definitivas.
A agressão ao planeta é ato desumano e passa pela arquitetura. É o que a televisão mostrou em 11 de
setembro de 2001. A arquitetura: objeto, símbolo, destruição. Tal tipo de arquitetura também pode
destruir o meio ambiente. As torres de vidro estão modificando microclimas: casas que parecem ter
conforto porque são climatizadas, podem estar destruindo um ecossistema. O uso inadequado de
materiais pode provocar alterações microclimáticas. Em São Paulo, existem ilhas de calor com
diferenças térmicas de 15 graus Celsius, devido à quase inexistente vegetação urbana, ao arcondicionado que joga para a área urbana o calor solar absorvido pelos edifícios.
Uma casa que pode matar é aquela onde existe risco de vida aos seus usuários e de seus vizinhos. Em
áreas urbanas, mantas aluminizadas vêm sendo colocadas em telhados sem critério, sem que o
município regulamente e controle. Jogam calor para as superfícies do entorno, impedindo que as
pessoas abram suas janelas, podendo prejudicar a visão e alterando flora e fauna. Mata-se a casa do
vizinho em benefício próprio. Havendo risco para os seus usuários, suas prováveis causas são:
deficiência no projeto, má construção, mau uso dos espaços concebidos e ausência ou manutenção
precária (ORNSTEIN,1992). Na Holanda, não se projeta mais sanitários com portas de 60 cm de
largura, pois verificou-se que as adaptações se tornam muito caras e dependendo do projeto, são
inviáveis. Acidentes ou o envelhecimento do ser humano não devem obrigam as pessoas a trocarem de
casa. Os desníveis que podem deixar os espaços bonitos, podem inviabilizar um futuro uso. O
arquiteto tem a responsabilidade ao projetar, possibilitando uma reformulação do espaço no futuro.
Nos países desenvolvidos, existe a procura de um desenho universal, enquanto no Brasil ainda estamos
preocupados com rampas, corrimões, pisos irregulares e nem conseguimos fazer cumprir a NBR 9050,
de 1985 que trata da Adequação das edificações e do mobiliário urbano à pessoa ‘deficiente’.
A casa deverá ser universal e cuidadora do ser humano. Portas que abram para fora dos ambientes tais
como sanitários e quartos, larguras das portas que permitam passagem de cadeiras de rodas, níveis
diferenciados com barreiras de proteção, móveis ergonométricos adaptados às individualidades de
cada um, corrimãos, peitoris, alarmes, campainhas, materiais fáceis de manter e de movimentar, que
permitam adaptações simples e baratas. Colocar rampa para acesso de carrinho com compras é uma
solução singela e adequada. Mas o que encontramos são degraus muito altos que exigem um esforço
para serem vencidos, vagas de estacionamento estreitas, zonas de embarque distante dos acessos,
desníveis inadequados, falta de proteção pluvial, falta de sinalização táctil ou sonora, rampas com
declividade acima do permitido ou a ausência de rampas. A casa que mata é inflexível, pois não
acompanha as modificações pelas quais passarão os seus usuários.
O arquiteto Adolf Loos, filho de um pedreiro, nascido em 1870, escreveu “A história de um pobre
homem rico”. Conta que, certa vez o cliente, “estava comemorando seu aniversário. A mulher e os
filhos haviam lhe dado muitos presentes. Ele apreciou muito a escolha deles e estava desfrutando-os
ao máximo. Logo, porém, chegou o arquiteto para pôr as coisas em seu lugar e tomar todas as decisões
sobre os problemas mais difíceis. Entrou na sala. O proprietário recebeu-o com grande prazer, pois
tinha a cabeça cheia de idéias, mas o arquiteto nem pareceu tomar conhecimento dessa alegria. Tinha
descoberto algo muito diferente e ficou lívido. “Que chinelos são esses que você está usando?”,
perguntou, como se a dúvida o enchesse de dor. O dono da casa olhou para seus chinelos bordados,
mas em seguida respirou aliviado. Desta vez, sentiu-se sem culpa alguma. Os chinelos haviam sido
confeccionados segundo a concepção original do arquiteto. Ele então respondeu, assumindo ares
superiores: “Ora, senhor Arquiteto! Já se esqueceu de que foi o senhor mesmo quem os desenhou?”
“Claro que não me esqueci”, trovejou o arquiteto, “só que foram feitos para serem usados no quarto!
Aqui, não dá para perceber que essas duas manchas impossíveis de cor acabam completamente com a
harmonia da sala?” ” (FRAMPTON, op.cit., 103)
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A responsabilidade do arquiteto tem sido cada vez maior: abrigar pessoas que perderam parte de suas
capacidades motoras e dar-lhes vida digna em suas casas e em sua casa maior: a cidade será sempre
um desafio. A casa deverá prolongar a vida porque será feita para impedir acidentes, possibilitará
independência e os equipamentos serão facilitadores de trânsito, haverá apoios nas atividades, barras,
luzes para iluminar os caminhos, espaços mobilizadores de convivência social, locais seguros,
acessibilidade.
Defrontamo-nos então com a necessidade que o arquiteto tem de conhecer a sociedade que vive, com
suas diferenças e necessidades psicológicas e sócio-econômicas e culturais, com um olhar realista e
empático.
Woods, em 1968, na Trienal de Milão afirmou: “nossas armas estão cada vez mais sofisticadas e
nossas casas brutalizam-se cada vez mais. Será este o balancete da mais rica civilização desde o início
dos tempos?”
As casas precisam de equilíbrio, assim compreendido por Lisistzky (1923): “O equilíbrio que procuro
obter nesse espaço deve ser elementar e capaz de mudar para que não possa ser perturbado por um
telefone ou uma peça de mobiliário padrão. O espaço está ali para o ser humano- e não o ser humano
para o espaço.” (FRAMPTON, op.cit., 159)
Este tema foi retomado por De Carlo que criticou ao revisar as conseqüências da declaração de CIAM,
(Congresso Internacional de Arquitetura Moderna,1928). Disse ele: “Temos o direito de perguntar
“por que”a moradia deve ser o mais barata possível, e não por exemplo, relativamente cara, “por que”,
em vez de fazer todo esforço possível para reduzi-la a níveis mínimos de superfície, de espessura, de
materiais, não deveríamos torná-la espaçosa, protegida, isolada, confortável, bem equipada, rica em
oportunidades de privacidade, comunicação, intercâmbio, criatividade pessoal. Ninguém, na verdade,
pode dar-se por satisfeito (...) quando todos sabemos o quanto se gasta nas guerras, na construção de
mísseis e de sistemas antibalísticos, nos projetos de exploração à Lua, (...) na persuasão secreta, na
invenção de necessidades artificiais, etc.”
O “regionalismo crítico” (década de 60) propõe uma arquitetura que busca sua identidade cultural,
dando ênfase aos valores específicos do lugar: topografia, luz que incidirá e seu valor tectônico,
respondendo de forma articulada às condições climáticas, opondo-se à tendência da “civilização
universal” de privilegiar o ar-condicionado em detrimento da arquitetura bioclimática, tratando as
aberturas como zonas de transição com capacidade de reagir às condições específicas do lugar, pelo
clima e pela luz. Ele refere-se à percepção do ambiente, não só relativo à visual, mas de forma
holística pois o ser humano é sensível às variações de iluminação, de calor e frio, umidade e
deslocamento de ar, bem como à diversidade de aromas e sons produzidos por materiais de diferentes
volumes (...), acabamentos de pisos que exigem mudanças no modo de andar. Afirma que é necessário
opor-se à “tendência, numa época dominada pelos meios de comunicação, a substituir a experiência
pela informação.” (FRAMPTON, op. cit., cap.5)
Tais metas posicionam projetos, mas não informam sobre as necessidades individuais de cada ser
humano. Uma casa que pode ser adequada a um indivíduo, poderá não ser adequada para outro.
Portanto, há que ouvir os usuários, entender suas necessidades e criar para eles.
Ninguém deseja uma casa que mata. Mas ao construí-la, esquece-se que a velhice é um fato concreto e
o futuro de todos, esperado pelo menos. É preciso que haja a possibilidade de a usufruir sem o
sofrimento da dependência. Autonomia é vida.
A casa futura, um grande desafio, poderá ser mais “da vida”, a que permitirá e estimulará o homem em
qualquer momento ou idade, para que se possa afirmar, como no folclore português:
“A minha casa
A minha casinha
Não há casa
Como a minha.”
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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COSTI, Marilice. A Sala de morrer e a máquina de curar - a enfermaria gótica e o hospital
renascentista. Monografia. Porto Alegre: Faculdade de Arquitetura . Programa de Pós-Graduação
em Arquitetura. UFRGS, 1997.
ECO, Umberto. A Estrutura Ausente. São Paulo: Perspectiva, 1991. 7 e.
FINEP – GAP. Habitação Popular: Inventário da ação governamental. Rio de Janeiro, 1983.
FREYRE, Gilberto. Oh de casa! Rio de Janeiro: Artenova, 1979.
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
OKAMOTO, Jun. Percepção ambiental e comportamento. São Paulo: IPSIS, 1996.
ORNSTEIN, Sheila. Avaliação Pós-Ocupação do Ambiente Construído. São Paulo: Studio Nobel,
EDUSP, 1992.
SIQUEIRA, Luiz Fernando. Arquitetura e bem-estar dos pacientes: palestra. In CONGRESSO DE
OFTALMOLOGIA, 1º CONGRESSO INTERNACIONAL DE CATARATA E CIRURGIA
REFRATIVA, 27 a 30 abr. 1996. TV MED vídeo, São Paulo. Fita de vídeo. n. 00291/64.
SMITHSON, Alison y Peter. Cambiando el arte de habitar. Barcelona: Gustavo Gilli, 2001.
DUARTE, Cristiane Rose; SANTOS:Ana Lúcia Vieira dos.(2000) Usos, percepção e transformações
no espaço urbano por populações de rua: um estudo de caso no Rio de Janeiro. In : SEMINÁRIO
INTERNACIONAL DE PSICOLOGIA E PROJETO DO AMBIENTE CONSTRUÍDO. Rio de
Janeiro. Anais. UFRJ. Cd rom.
TEDESCHI, Enrico. Teoría de la arquitectura. Buenos Aires: Nueva Visión, 1978.
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