II DOMINGO DA QUARESMA
(Mc 9,2-12)
«Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os fez subir num lugar à parte, sobre uma alta
montanha, somente eles. E transfigurou-se diante deles. Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como
nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar. Apareceram-lhes Elias e Moisés, e estavam conversando com
Jesus. Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma
para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo.
Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado.
Escutai o que Ele diz!”. E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com
eles. Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho
do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. Eles observaram esta ordem, mas comentavam entre si o que queria
dizer “ressuscitar dos mortos”.»
Estamos hoje na segunda etapa do caminho quaresmal que, de algum modo, quer sintetizar o inteiro caminho da
vida que Deus oferece a todos nós em Cristo. O primeiro passo desta caminhada, como vimos na semana passada,
consiste na adesão a Deus, adesão que passa pelo deserto e aponta para o “crer” ao Evangelho. É o primeiro
momento da conversão. O texto que hoje meditamos precisa ser lido também nesta ótica; é um fato que nos
reconduz à situação existencial que Deus continuamente propõe às pessoas que conseguiram dar o primeiro passo.
Quando é narrado é muito complexo e, mais complexa ainda, é a leitura em seus detalhes, fato pelo qual me
permito apontar somente alguns aspectos que, espero, possam ajudar a receber com amor aquilo que Deus quer
sempre nos oferecer.
A leitura que é realizada em algumas Assembléias Litúrgicas, infelizmente omite uma parte do versículo 2, com o
qual começa a narração; é uma pena, porque esta maneira de ler não permite ao ouvinte entender o motivo, a razão
da Transfiguração de Jesus, reduzindo-o assim a um simples episódio espetacular que se encerra com uma
admoestação de tipo moralista. Evidentemente não era esta a intenção do Autor.
A nossa leitura começa assim: «Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João»; o episódio, então
se deu no sétimo dia; seis dias depois do quê? O que acontecera seis dias antes? Bem, o leitor do Evangelho de
Marcos sabe muito bem que toda a sua teologia gira em torno da profissão de fé de Pedro, isto é, daquele momento
em que Pedro reconhece em Jesus o Cristo esperado. Contudo, um momento tão rico e profundo espiritualmente,
ficou assombrado por uma profunda incompreensão de Pedro com respeito a Jesus: para Pedro o Senhor era um
Senhor vitorioso, triunfante, esquivo de todo ataque do mal. Em Pedro aconteceu (analogamente a Jesus que foi
conduzido no deserto para se defrontar com o demônio), que o próprio Satanás insinuava uma visão triunfalista, a
qual não condiz com a lógica de Deus. Assim, o momento de maior intimidade é, paradoxalmente, o momento de
maior distância entre os dois; é assim que age o Espírito quando gera aquela unidade que vai além das opiniões.
«Seis dias depois» indica um tempo no qual o homem ainda não entrou na lógica de Deus (como Pedro, como
muitos de nós); o sexto dia é, no simbolismo da Escritura que sempre tem como referência o texto da criação, o dia
em que existe o homem natural, feito por Deus em toda a sua grande riqueza e valor natural. Mas ao homem é
oferecida a possibilidade de apontar, junto com toda a criação, para o sétimo dia, para o “repouso” da alma que
procura encontrar aquele infinito que sente dentro de si. É, então, o “sétimo dia”, a proposta que Deus faz; proposta
que não exclui, mas leva a cumprimento o desejo infinito do homem, projetando-o naquela dimensão que eleva o
que de maravilhoso já existe por natureza: o projeta na divindade para a qual aponta o desejo do Criador. Deus
nunca tira o que já possuímos, bom por si mesmo, apenas oferece a possibilidade de sublimar o que já existe de
bom e, assim, receber como um dom o que nenhum homem com suas condições pode alcançar.
Neste “sétimo dia” «Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João»; «somente eles», diz literalmente o texto. Tratase, então de uma escolha precisa de Jesus; de algum modo Ele oferecia aos três algo que não ofereceu a todos os
outros discípulos. Será possível encontrar uma motivação para esta escolha de Jesus? Creio que possamos
descobrir certa analogia através da convicção expressa em Atos dos Apóstolos quanto a Moisés, o qual também
subiu uma montanha, trazendo consigo três pessoas: Arão Nadab e Abiú (Cfr. Ex 24,1); assim diz o trecho: «É este
Moisés quem esteve na assembleia no deserto, com o anjo que lhe falava no monte Sinai e com os nossos pais; o
qual recebeu palavras vivas para no-las transmitir» (At 7,38). “Palavras vivas para serem transmitidas”; estamos no
caminho certo! Sim, Pedro não poderia anunciar sozinho a sua profunda intuição; também os três não poderiam
anunciar com autoridade, se este anúncio não passasse pelo crivo da participação, como um todo, ao mistério de
Jesus. Antes da Transfiguração os três tinham “assistido” (com o olhar de quem está de “fora”) ao milagre da cura
da filha de Jairo (Mc 5,37) agora serão “envolvidos” por Deus -imagem simbólica da nuvem- mas ainda não estarão
prontos para dizer “palavras vivas”; por isso Jesus lhes proibirá de falar antes de que tenham participado até o fim
da história. Mas os três compreenderão Jesus muito mais profundamente algum tempo depois, no Getsêmani,
quando também ficarão «somente eles» com Jesus (Mc 14,33). “Palavras vivas” que o próprio Jesus continuará
dizendo à humanidade (como um novo Moisés) por boca dos três, as «colunas da Igreja» (Gal 2,9) –como os
chamavam os primeiros cristãos. Suas palavras serão cheias de vida; não teorias ou sentimentalismos, nem
tampouco ideologias sobre Jesus. Será vida vivida até o fim.
Continua o texto: «os fez subir» (não: “os levou”, como se encontra em algumas traduções). Aparentemente o
sentido pode ser quase semelhante, se não fosse que o verbo usado por Marcos significa contemporaneamente
duas coisas: o ato de subir, isto é, um ato material, mas também o ato de oferecer, próprio do sacerdote que “sobe”
ao altar para oferecer em nome do povo de Israel. Será tão difícil ver neste ato de Jesus a antecipação de sua
oferta na cruz para a Ressurreição? Toda a narração do episódio está em função do mistério de morte e
ressurreição, somente após o qual será possível entender o significado pleno da “oferta” que Jesus faz ao Pai. Será
um forçar demais o texto se pudermos ver em Jesus uma semelhança com Abrão que oferece o filho, Jacó no
monte Moriah? Eis então que se nos apresenta em Pedro, Tiago e João a revelação de como Jesus entende a sua
comunidade, a sua Igreja, os seus “filhos”: uma oferta ao Pai, santificada pela presença da “nuvem” (símbolo da
presença, do Espírito, de Deus).
A nuvem até então havia envolvido Moisés quando recebeu a Lei nas tábuas de pedra; havia coberto a Arca da
Aliança que continha o sinal da Aliança; a nuvem entrou no Templo construído por Salomão mas também deixou o
Templo ao tempo de Ezequiel. Agora, mais uma vez a “nuvem da presença de Deus” fazia o seu ingresso na vida
de Israel, mas dessa vez nem uma pedra, nem uma arca, nem um templo seriam o lugar propício para o Encontro
com Deus. A pequena comunidade de fé, significada por Pedro Tiago e João se tornaria o lugar privilegiado do
encontro com Deus.
Contudo, a nuvem permite apenas “entrever” a realidade... é assim que acontecerá com a Igreja, o mistério que
ela traz consigo pode ser apenas “entrevisto”. Os três ainda estavam preocupados com Moisés e Elias, os símbolos
do caminho da Lei e do carisma para caminhar na fé. Sim, Jesus conversa, dialoga com a Lei e o carisma, mas
ambos vão desaparecer depois que a nuvem da presença de Deus envolve também os três discípulos, significando
a participação à relação que o próprio Jesus tem como Pai. A partir dessa experiência o Evangelista aponta qual
será a ótica que sempre dará vitalidade à comunidade de fé: «Eles não viram mais ninguém a não ser Jesus». Ele
se tornou o único ponto de referência, o centro de suas vidas.
Gostaria de oferecer à leitura uma oração de Thomas Merton, que se inspirou muito à “montanha” do encontro
com o Senhor.
Senhor Deus,
Não tenho a menor idéia de para onde estou indo,
Não enxergo o caminho à minha frente,
Não sei ao certo onde irá dar esse caminho.
Também não conheço verdadeiramente a mim mesmo,
E o fato de que penso que estou seguindo a Tua vontade
Não significa que realmente esteja seguindo a Tua vontade.
Mas acredito que o meu desejo de Te agradar
Realmente Te agrada.
E espero ter esse desejo em tudo o que fizer,
Espero nunca me afastar desse desejo.
Sei que, se assim o fizer,
Tu me guiarás pelo caminho correto
Embora eu possa nem saber que o estou trilhando.
Assim, confiarei sempre em Ti
Embora eu pareça estar perdido
E caminhando na sombra da morte.
E não temerei, porque Tu estás sempre comigo
E nunca deixarás que eu enfrente os perigos, sozinho.
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