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O Deus menino
23/12/2013 - 05h00 |
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Quem primeiro percebe são os poetas. Isso se deve ao fato de que os seus olhos são diferentes.
Por isso eles veem as coisas ao revés. Poesia são as coisas vistas ao contrário. Não é coisa de
pensamento, é coisa da visão. Quando as pessoas, ao ouvir um poema, dizem que não
entenderam e pedem explicações, é porque elas puseram o poema no lugar errado, no lugar
onde moram os pensamentos. Mas um poema não é para ser pensado na cabeça. É para ser
visto com os olhos.
Os poetas, por terem olhos diferentes, veem também diferente. Veem o mundo ao contrário. A
verdade deles é o oposto à verdade dos adultos. Os adultos pensam assim: as crianças nada
sabem, quem sabe são os adultos; por isso as crianças aprendem e os adultos ensinam; infância
é ponto de partida; a condição adulta é o destino, ponto de chegada.
Os adultos querem andar para a frente. Progredir. Evoluir. Os poetas sabem que a alma não
deseja ir para frente. A alma é movida pela saudade. A saudade não deseja ir para a frente.
Ela deseja voltar.
Andar para frente pode ser um equívoco. Aforismo de Eliot: “Numa terra de fugitivos aquele
que anda na direção contrária parece estar fugindo”. Por vezes andar para frente é ficar cada
vez mais longe. Os adultos andam para frente. Os poetas parecem andar para trás. Os adultos
dizem que eles estão fugindo. Mas não. Como os salmões, que deixam o mar e voltam às
nascentes de águas cristalinas onde nasceram, os poetas desejam voltar às suas origens. É lá
que mora a verdade que os adultos esqueceram. Fogem da loucura da vida adulta. Buscam
reencontrar a simplicidade da infância. Acho que é isso que Eliot queria dizer quando ele
escreveu: “E, ao final de nossa longa exploração, chegaremos finalmente ao lugar de onde
partimos e o conheceremos então pela primeira vez”.
“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...” A Adélia Prado está
doente. Doente de ser grande. Ser grande é estar doente. E doença precisa ser tratada. Se não
for tratada vira loucura. Para se curar adultite é preciso tomar chá de infância, virar criança de
novo...
Para isso bom é ler a poesia do Manoel de Barros. Manoel de Barros é uma criança. Quem lê o
que ele escreve vira criança. Ele brinca com as palavras. “O que eu queria era fazer brinquedos
com as palavras. Fazer coisas desúteis. Eu queria avançar para o começo. Chegar ao
acriançamento das palavras.”
Em busca do lugar de onde se partiu... A poesia do Manoel de Barros anda para trás, para
longe da loucura do mundo adulto. Para isso ele não mede palavras: “Preciso de atrapalhar as
significâncias. O despropósito é mais saudável que o solene. Para limpar as palavras de
alguma solenidade — uso bosta. Nasci para administrar o à-toa, o em vão, o inútil. Prefiro as
máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de areia, de formiga e musgo — elas
podem um dia milagrar de flores. Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos
dentro — elas podem um duia milagrar violetas. Senhor, eu tenho orgulho do imprestável”.
Um homem como esse é um perigo em qualquer reunião de adultos sérios e responsáveis.
Bernardo Soares, uma das entidades-Fernando Pessoa, é explícito: os adultos são burros, as
crianças são inteligentes. “Sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a
inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por
um espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois, talvez com
pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado
que o nosso destino”. Discordo só num ponto: a inteligência astral não nos abandona em
decorrência de uma lei mais alta. Ela nos abandona por ser incompatível com a adultice. A
inteligência adulta é grave. Faz afundar. A inteligência infantil é leve. Faz levitar.
O Natal é um poema. Nele Deus se revela como criança. O Deus adulto é terrível: grave, sério,
não ri, não dorme, seus olhos estão sempre abertos e nem mesmo têm pálpebras, jamais
esquece, e registra tudo nos seus livros de contabilidade que serão abertos no Dia do Juízo
para o acerto final de contas. O Deus adulto dá medo. Nele não há amor. Isso nada tem a ver
com uma criança: criança é esquecimento, riso, brinquedo, um eterno começo... Não é por
acaso que o Menino Jesus tenha fugido do Deus adulto.
Prefiro o Deus criança. No colo de um Deus criança eu posso dormir tranquilo.
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O Deus menino - Loja Rubem Alves