Apresentação
Um dia, quando as coisas melhorarem... quando o Brasil for um país decente, quando não
houver mais trabalho escravo, quando os preconceitos forem superados, quando não existir mais
vestibular, quando vocês entenderem que literatura não se decora, pois é coisa de sentir... eu vou me
deitar em alguma praia deserta, à noite, com a lua me namorando... nesse dia... eu vou morrer de
achar graça.
Prof. Vicente Jr. ( Doutorando em Literatura Brasileira pela UFPB )
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ÍNDICE
1- Inocência
2 – D. Guidinha do poço
3 – Os bruzundangas
4 – Contos da Montanha
5 – Rosa, vegetal de sangue
6 - Agosto
7 – Dizem que os cães vêem coisas...
8 – A Casa
9 – A palavra e a palavra
10 - Palimpsesto
11 – Luneta Mágica
12 - Helena
13 - Lucíola
14 – Os sertões
15 – Balé do pato
16 – Beira-sol
17 - Desafio
18 – Dora - Doralina
19 – Memórias de um sargento de milícias
20 – Laços de Família
21 – Os verdes abutres da colina
22 - Estorvo
23 – O sertanejo
24 – Esaú e Jacó
25 – A Bagaceira
26 – Memórias de um sargento de milícias.
27 – A Normalista
28 – Fogo Morto
29 – Seara Vermelha
30 – O sorriso do lagarto
31 – O cabeleira
32 – O cortiço
33 – O ateneu
34 – Luzia-Homem
35 – Capitães da Areia
36 – O Quinze
37 – O Guarani
38 – Aves de Arribação
39 – Poesias Incompletas
40 – A casa
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41 – Cordéis e outro poemas
42 – Entre a boca da noite e a madrugada
43 – Três peças escolhidas
44 – O mundo de Flora
45 – Dias e Dias
46 – Dos valores do inimigo
47 – O Gaúcho
48 – Moça com flor na boca
49 – A vinha dos esquecidos
50 – São Bernardo
51 – Primeiras estórias
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TEORIA LITERÁRIA
Para um melhor aprendizado dos elementos que compõem uma obra narrativa (contos,
romances, crônicas etc), segue uma lista deles com um pequeno, mas adequado
esclarecimento.
a) Quanto ao Foco Narrativo : pode ser em 1a ou 3 a pessoa. Em 1a pessoa quando
temos um narrador-personagem, e em 3a pessoa quando o
narrador, via de regra, conta o que se passa com outra pessoa.
O narrador ainda pode ser Onisciente ( quando interfere na
narrativa ) ou Observador ( quando apenas relata o que vê ).
b) Quanto ao Tempo: o tempo em literatura pode ser Cronológico (quando há
indícios e predominância de marcação temporal como hora,
dia, mês, ano, estações do ano etc) ou Psicológico (quando não
há registro de tempo físico, apenas a “angústia” da personagem
manifestada em digressões temporais como por exemplo em
analepses vulgarmente conhecidas como flash-back.
c) Quanto ao Espaço: o espaço no qual se passa a narrativa pode ser amplo ou
reduzido, de segurança ou angústia. Veja as situações:
1. Você foi para os E. U. A a trabalho, mas não fala nada em inglês.
Espaço: amplo, de angústia.
2. Você volta de uma guerra e é recebido, em seu país, como herói.
Espaço: amplo, de segurança.
3. Você está preso, numa cela, por um crime que não cometeu.
Espaço: reduzido, de angústia.
4. Você perde a chave do quarto, fica trancado lá dentro, mas com a
pessoa que você mais gosta ( namorado ou namorada ). Espaço:
reduzido, de segurança.
d) Quanto às Personagens: são divididas em protagonista (principal personagem)
antagonista (opõe-se às vontades do protagonista) e secundários ( sem
relevância).
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Podem ser: Planas ou estáticas – quando não se modificam no decorrer da
narrativa, são lineares.
Esféricas ou dinâmicas – quando se modificam, ou sofrem com as
diversas situações
1 - Inocência – Visconde de Taunay
"Pensando por vezes e sempre com saudades daquela época, quer parecer-me que essa ingênua índia
foi das mulheres a quem mais amei." Visconde de Taunay, sobre a jovem interiorana que,
possivelmente, motivou a escritura do romance.
Autor e Obra
Nascido Alfredo d`Éstragnolle Taunay, em 1843, não apenas provinha de origem francesa como
foi criado em ambiente de refinada educação artística, , filho do pintor Antoine Taunay, tendo sua
formação balizada pelo francesismo que tomava conta do mundo na época. Dono de um nacionalismo
sincero, o autor não se contentava com a vida comum da cidade. Embrenhou-se em sítios e fazendas,
pois fez-se mais soldado que bacharel. Ainda assim, cursou Belas Artes, Ciências Físicas e
Matemáticas na Escola Militar, seguindo depois para o Mato Grosso no começo da Guerra do
Paraguai, o que lhe deu matéria suficiente para fazer o texto A Retirada da Laguna (1871). Na volta,
foi deputado, senador e presidente da província de Santa Catarina. Faleceu no Rio de Janeiro em 1899.
Tinha como pseudônimo Silvio Dinarte. Deixou obra vária e irregular. Romance: A mocidade de
Trajano(1872); Lágrimas do coração (1873); Inocência(1872); Ouro sobre azul(1878); O
Encilhamento e No declínio. Narrativas: A retirada da laguna; Cenas de viagem (1868); Narrativas
militares; Histórias brasileiras(1874);Ao entardecer,(1901). Teatro: Amélia Smith; Da mão à boca se
perde a sopa; Crítica: Estudos Críticos; Reminiscências(1907) e Memórias ( 1948).
Momento
Em 1836, com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, o Romantismo instala-se no
Brasil. Isso fez com que houvesse uma divisão de nossa escola romântica em obras de Prosa e Poesia,
havendo posteriormente, o englobamento do gênero Dramático, o teatro de Martins Pena. O
Romantismo, porém, dividia-se em vertentes: Indianista ( Iracema e Ubirajara ); Histórica ( Guerra
dos Mascates ); Urbana ( Senhora e Lucíola ) e Sertanista ( O sertanejo, O cabeleira e Inocência).
Visconde de Taunay pertence ao momento final do nosso romantismo, quando a escola já se
encontrava em declínio, principalmente porque já havia indicações de outras estéticas se manifestando
ao longo da narrativa. No caso de Inocência, encontramos até um certo toque naturalista.
Resumo
Sempre iniciando os capítulos com uma citação de proveito, moralizante, o narrador começa com
uma descrição do espaço onde se desenvolverá a narrativa, a confluência entre o sertão de Goiás,
Minas e Mato Grosso, numa região de capões, cerrados altos, seca e queimadas, mas que a chuva
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transforma tudo ao redor em paraíso verdejante. Assim, faz descrições da fauna e da flora falando de
buritis, gaviões e araraúnas. Abrem os capítulos excertos inteiros de grandes romances ou peças
teatrais de Menandro, Shakespeare, Goethe, Chausser, Scott, Hugo, Hoffman e Cervantes, além de
pensadores como Russeau e Saint-Pierre dentre outros.
No capítulo intitulado “O viajante”, é apresentado Cirino, jovem bonito, que encontra na estrada
o sr. Martinho dos Santos Pereira. Cirino se identifica como curador de maleitas e feridas brabas.
Pereira fala que foi “sopa no mel”, pois está precisando de seus conhecimentos e bruxarias. Tem uma
filha que adoeceu de maleita. Disse que até o vizinho, o Coelho, está doente, pode dar-lhe um bom
dinheiro se for curado. Cirino confessa ter uma dívida ( 300 mil réis ) que precisa pagar urgentemente.
Continuam caminhando em direção ao rancho de Pereira.
No capítulo “o doutor”, temos a descrição e a história de Cirino, paulista, filho de boticário, que
foi enviado a Ouro Preto para morar com um tio. O tio morreu e não deixou nada para ninguém.
Cirino foi expulso do colégio. Virou boticário e começou a estudar farmacologia. O diploma não
vinha. Resolveu ganhar “experiência”. Saiu viajando pelo sertão e graças aos livros que tinha passou a
receber o tratamento de “doutor”. ( curandeiro, simples curandeiro, enfatiza o narrador onisciente).
Bom rapaz, bom coração, mas no caminho do charlatanismo ( facilitado por ser orgulhoso ) Um
médico é um tipo de “messias”, principalmente no sertão necessitado e crente.
Ao chegarem ao rancho de Pereira, temos a descrição da casa e dos costumes da gente do sertão,
principalmente dos mineiros. Descansam e depois comem. Cirino deseja ver a filha de Pereira
urgentemente. O rosto do velho fica sombrio. Cirino se prepara para conhecer Inocência que se
encontra enferma.
O quinto capítulo inicia-se com uma frase de Menandro ( Onde há mulheres, aí se congregam
todos os males a um só tempo ). Nesse capítulo Pereira conduz Cirino ao quarto de Inocência, sempre
advertindo sobre os modos do boticário, zelando por sua filha, comparando-a com as mulheres em
geral que, na sua opinião, têm algo a ver com o demônio. Cirino rebate dizendo que não concorda, que
não pensa assim sobre as mulheres, que são tão boas ou mais quanto os homens. O que acontecia era
um tipo de “aviso prévio” por parte do pai.
No capítulo “Inocência”, Cirino tem seu primeiro contato com a doente, jovem débil e abatida
que repousa numa cama de couro. Entre os dois já surge um tipo de compreensão. Inocência é alva e
linda. Cirino conhece também Tonico, ou Tico, um anão ( um tipo de Quasímodo ), capaz de qualquer
coisa para proteger a moça. Cirino receita os remédios, frutas e banhos, e diz que Inocência ficará boa
em 3 dias. No meio da mata, surge outro viajante, um alemão naturalista de nome Guilherme Meyer.
Cirino é apresentado como “doutor”. O alemão, zoólogo e botânico, olha esquisito.
Cirino toma o pulso e medica novamente Inocência. Não consegue mais resistir e sente-se
apaixonado. Pelos olhares, os gestos e outras impressões o leitor percebe que o boticário é
correspondido em sua paixão. Em certos momentos, o texto ganha um tom naturalista pela
bestialidade de Tico e pelo uso de certas expressões científicas. Cirino e Pereira conversam com o
alemão. O alemão entrega a Pereira uma carta de seu irmão ( Chico ). Preparando-se para o almoço,
Meyer e Cirino conversam sobre a vida, sobre ciência e sobre Inocência.
Nos capítulos XII e XIII, Meyer é apresentado a Inocência. Sem conhecer os instintos de
defesa de Pereira, e nem a rusticidade dos costumes sertanejos, o alemão faz rasgados elogios à jovem
que ruboriza. Pereira fica furioso e diz a Cirino que ficará sempre de olho no “alamão”. Diz que
Manecão, o noivo, não deixará barata aquela afronta, Cirino o apóia. Meyer confidencia a José, seu
ajudante, a beleza de Inocência. Pereira continua de cara fechada. À medida que a desconfiança em
Meyer se generaliza, a confiança em Cirino aumenta, Pereira o tem como um amigo. O narrador,
novamente onisciente, discute sobre isso. Pereira e os pesquisadores saem. Cirino alegra-se pensando
em ficar só com Inocência.
Cirino, finalmente, tem uma chance de conversar com Inocência. Na hora em que vai
ministrar-lhe o remédio ( mezinha ), o anão Tico, aparece e faz cara feia. Entre o médico e a doente
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surge uma certa cumplicidade. Inocência, que não costumava ver homem sempre, agora estava
confusa, e encantada, com os carinhos do doutor.
Horas depois, o alemão chega cheio de calombos, fora atacado por formigas. Em seguida,
todos riem das aventuras e desventuras do pesquisador que, às vezes, sofre em busca de seus insetos.
Pereira passa a dormir na sala, perto do quarto da filha, para vigiar o alemão.
Chega à casa do Pereira o sr. Coelho, fazendeiro, homem de muita posses. Pereira diz a Cirino
que o homem tem um tipo de doença que se for curada o mesmo pagará muito bem., Coelho entra e
Cirino dá-lhe logo um diagnóstico. Coelho fica abismado com a precisão do doutor. Cirino receita
ervas a Coelho e lhe cobra cem mil réis em duas prestações. Coelho, depois de relutar sobre o preço,
diz que vai fazer tudo que o médico mandar, pois tudo o que quer é ficar curado da maldita doença.
No capítulo “O morfético”, um dos mais tristes da narrativa, chega à fazenda um certo senhor
Garcia, acometido de lepra, o que o fazia detestado por todos do local, inclusive o Pereira, que é o
primeiro a mostrar cara de nojo. Cirino sai, conversa com o homem e diz-lhe que seu mal não tem
cura. Garcia diz que vai desaparecer para São Paulo, atrás de gente lazarenta igual a ele. Todos
entristecem com a despedida.
Os dias passavam sem nenhuma novidade. Inocência se restabelecia e Cirino só tinha olhos
para ela. A cabeça pensava em Manecão, o noivo desgraçado que estava sempre por chegar. Uma
noite, sem conseguir dormir por causa do sofrimento que o amor, às vezes, traz, Cirino encostou-se à
janela da jovem, onde vira seu vulto, e começou a chamar baixinho por ela. Inocência demorou, mas
acabaram conversando madrugada a dentro. Falam de amor, do que sentem, vivendo um verdadeiro
idílio amoroso até o momento em que um barulho estranho assusta o casal. Em seguida vem uma
pedrada e o casal se esconde. Um assobio fino ecoa ao redor. Cirino investiga o terreno, mas não
encontra nada. Assombração?
No capítulo “Cálculos e Esperanças “ Inocência e Cirino trocam confidências. Ela lhe conta
como passou a ver a vida melhor depois de conhecê-lo. Ele fala de sua extrema felicidade por ter
encontrado o amor. Conversam sobre seu futuro juntos.
Os capítulos XX e XXI são dedicados ao alemão Meyer, na desconfiança que Pereira tem de
seu carinho por Inocência, o que favorecia em muito a proximidade de Cirino com a paciente, e
principalmente a descoberta de um exemplar raríssimo de borboleta à qual o alemão, muito
polidamente, resolveu dar o nome de Papilio Innocentia, num tipo de homenagem à beleza sem igual
da filha de Pereira. O fazendeiro ficou injuriado. Meyer resolve continuar sua viagem para depois
voltar para a Alemanha e registrar seu grande feito. Pereira ficou mais aliviado.
Depois da partida de Meyer, as atenções de Pereira voltam-se para Cirino. Pereira passa a
achar que talvez tenha sido duro demais com o alemão. Cirino arma uma última entrevista com
Inocência, pois percebe que precisa acabar com o noivado de sua amada com Manecão. Precisa falar
com o pai da jovem sobre o seu amor, mas não tem coragem.
Por outro lado, sabe que a honra daquele sertanejo, manifestada em sua “palavra”, dificilmente
seria quebrada ( pátrio poder ). Inocência é quem lhe dá uma idéia, bastando-lhes pedir a ajuda do
padrinho, Antônio Cesário, a quem o pai devia favores. Cirino resolve viajar o quanto antes.
Na Vila de Santana, depois de escapar ao falatório e às perguntas da gente da região, Cirino tem
seu primeiro encontro com Manecão, embora não se conheçam. Falam-se rapidamente, e por
intermédio dos outros que passam a avaliar os dois dizendo: “Aí tem dente de coelho!”. Durante a
viagem, entrando no sertão dos Gerais, Cirino imagina como Inocência precisaria lutar pela felicidade
ao lado dele. Avalia como Manecão é grande. “Valei-me, nossa Senhora da Cana Verde!” . No quarto
dia de viagem, Cirino encontra Antônio Cesário. Do outro lado, chegava Manecão à casa do futuro
sogro.
Na chegada, Manecão é recebido com muita alegria pelo Pereira. Inocência não estava em casa,
foi ao riacho e sua demora deixou o pai mais impaciente que o noivo. Conversam sobre o casamento e
a festa descomunal que haveria de acontecer. Entram e esperam a moça.
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No capítulo “Cenas Intimas”, Inocência chega em casa e encontra Manecão. Imediatamente,
abate-se sobre ela um tremor, um nervosismo fora do comum que a impele para o quarto sem querer
nem olhar para o noivo. O pai fica aflito, pensa que é uma recaída da doença. Pereira e Manecão
passam dias na esperança de melhora da jovem. Um dia, quando o pai entra no quarto da moça ela lhe
diz que teve um sonho, sonhou que sua mãe, já falecida, descia do céu toda de azul e dizia que ela não
se casasse, pois a desgraça tomaria conta daquela casa. O pai estava quase acreditando quando
lembrou-se de que a esposa morrera cedo, e a filha nunca lhe vira o rosto. Inocência arrepende-se da
mentira e pede desculpas. O pai diz que ou ela aceita o noivo ou morre. Inocência pensa na idéia da
morte e silencia.
Depois de ter chegado à casa de Cesário, padrinho de Inocência, Cirino tenta cativar sua
simpatia. Curou escravos, animais, fez remédios e tudo mais, mas o fazendeiro não lhe dava confiança.
Desesperado, o boticário pede-lhe um momento em particular. Marcam em um lugar ermo. ( Nesse
momento, a natureza reflete o ânimo da personagem ficando também sombria.)
Cesário chega e Cirino conta-lhe toda a história. O padrinho percebe a verdade nas palavras do
boticário, mas relembra-lhe que ninguém pode contornar a palavra empenhada ( honra sertaneja e
romântica ). Cirino revela que a própria Inocência mandou-lhe ali porque só o padrinho, que muito a
amava, poderia salvá-la. O padrinho se sensibiliza e, depois de fazer Cirino jurar pela própria vida,
pede que aguarde dois dias enquanto pensa na questão. Cirino concorda.
No capítulo XXIX, Inocência, com forças dadas pelo próprio amor, sentada à mesa, diz ao pai e
ao noivo que prefere morrer a ter que casar com semelhante criatura. O pai fica possesso; o noivo tem
ódio no olhar. Pereira empurra a filha que bate a cabeça na parede e fica prostrada no chão. Tico a
socorre. Pereira desabafa com Manecão dizendo que o culpado de tudo era um estrangeiro, um alemão
chamado Meyer... Inocência vai para o quarto, mas Tico volta e, através de gestos simiescos, faz
Pereira entender que estava enganado. O verdadeiro culpado era Cirino, o “doutor” que, traindo-lhe a
confiança, seduzira-lhe a filha. Manecão traça um plano e os dois já idealizam a morte de Cirino.
Manecão sai a cavalo.
Depois de espreitar Cirino por dois dias, prazo que Cirino esperava por Antônio Cesário,
Manecão encontra-se com o boticário no local marcado pelo padrinho. Cirino não o reconhece
imediatamente, mas Manecão, chamando-o de cachorro e ladrão, aviva-lhe a memória. Insultado pelo
vaqueiro, Cirino mostra a arma que traz no coldre. Manecão não teme e, num relance, saca a garruncha
e atira à queima roupa.
Cirino cai no chão e, em vez de maldizer sua hora, perdoa o homem que o atacou. Manecão se
descontrola, pois não esperava aquilo. As palavras de Cirino doem-lhe na alma. Cirino implora por
água, mas o vaqueiro foge com a chegada de outro cavaleiro. O padrinho de Inocência chega para
abençoar a união dos dois, mas já era tarde, encontra Cirino caído e sangrando. Arquejante, Cirino
mostra-se honrado. Pede a Cesário que pegue o dinheiro que acumulara na função de médico e pague
todas as suas dívidas e seus carregadores. Em seguida, morre chamando por Inocência. Cesário enterra
o corpo do médico enfeitando o túmulo com uma cruz improvisada.
No epílogo, sem mais esclarecimentos sobre a união ou não de Inocência com o vaqueiro, o
narrador nos conta da pomposa festa realizada na Alemanha para homenagear o famoso pesquisador
Guilherme Meyer, destacando-lhe como maior feito a descoberta de uma esplendorosa borboleta,
batizada de Papilio Innocentia em homenagem a uma jovem, conhecida no interior de Mato Grosso –
Brasil, por sua indescritível formosura... Era também o mesmo dia em que a morte de Inocência
completava dois anos.
Crítica
O romance Inocência, enquadra-se corretamente no Romantismo brasileiro, pois encaminha-se
para uma das vertentes mais significativas dessa escola m nossa literatura: o Sertanismo (
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regionalismo). É um livro no qual o narrador procura mostrar todas as nuanças da gente habitante dos
sertões de Mato Grosso e Minas Gerais. Durante a leitura, entramos em contato com a fauna, a flora, o
povo e, principalmente, com os costumes da região. É um romance no qual o autor, além de aludir a
uma experiência amorosa ( uma jovem que conheceu em suas viagens pelo sertão do Brasil ),
demonstra um acurado senso de observação. O livro tem traços românticos na idealização da
protagonista, seu nome já indica isso; na retidão de caráter do jovem Cirino, comprovada no desfecho;
no patriarcalismo imperante no país, o pátrio poder ( até hoje? ); no forte apelo à natureza, nem sempre
cúmplice da personagem romântica; na recorrência ao Quasímodo, de Victor Hugo, personificado no
jogo do Feio e do Belo, entre as personagens Tico e Inocência, dentre outras situações. No entanto, por
ser um livro de transição ( o Romantismo encontrava-se decadente), já podemos identificar traços de
outras estéticas em sua composição: o Realismo ( na postura, às vezes, racional de Cirino ) e o
Naturalismo, representado por Meyer, um cientista, e pelo tom meio determinista de personagens
como Pereira, Tico e Manecão. Em suma, na linha de autores como Alencar ( O sertanejo e O Gaúcho
), B. de Guimarães ( O Garimpeiro ) e F. Távora ( O Cabeleira ), Visconde de Taunay escreveu, com
muito talento, mais uma importante página da literatura brasileira. Resumindo, Inocência é um
romance romântico com forte inclinação sertanista, mas que abria possibilidades para as novas
estéticas que surgiriam a partir de 1881.
2 - D. Guidinha do Poço – Oliveira Paiva
Autor e Obra
Autor dos mais renomados da Literatura Cearense e da intelectualidade em geral, Manuel de
Oliveira Paiva, nascido em Fortaleza no dia 02 de julho de 1861, só entrou para a Literatura Brasileira
em 1952, graças aos esforços da prof. Lucia Miguel-Pereira, com a publicação oficial deste romance,
D. Guidinha do Poço. Estudou no Seminário do Crato e cursou a Escola Militar do Rio de Janeiro
quando publicou seu primeiro texto “ Zabelinha“. Participou do Clube Literário publicando muitos
artigos e contos no suplemento A Quinzena sob o pseudônimo de Gil-Bert. Atacado de tuberculose
procurava tratamento em climas mais amenos, por isso viajava sempre de um lugar a outro, não
conseguindo sucesso, pois faleceu a 29 de setembro de 1892, depois de fazer a revisão de seu último
romance: D. Guidinha do poço. Obras: Zabelinha ou a Tacha Maldita ( 1883 )/ Vinte e cinco de
março de 1884 ( poemas ) Romances: A Afilhada ( 1889 ) / D. Guidinha do Poço ( 1899 ); Teatro: Tal
filha, tal esposa e Contos: O ar do vento, ave-Maria!, Corda Sensível, A melhor cartada, dentre
outros, relançados pela ACL em 1976.
Momento
Manuel de Oliveira Paiva com seu romance D. Guidinha do Poço deve ser enquadrado no
Realismo, muito propriamente, principalmente pelo fato de ter sido influenciado por escritores como
Eça de Queiros e Machado de Assis, autor do romance Dom Casmurro. O Realismo cearense, que de
forma alguma pode ser considerado atrasado, ainda tem como representantes Rodolfo Teófilo - A
Fome, Antônio Sales - Aves de Arribação e Domingos Olímpio - Luzia-Homem. No entanto,
diferentemente do que aconteceu com Domingos Olímpio, Rodolfo Teófilo e Adolfo Caminha,
Oliveira Paiva em D. Guidinha do Poço não se ateve simplesmente à vertente oitocentista do
naturalismo ( de Aluisio de Azevedo ) ou seja, é uma obra mais voltada para o realismo machadiano,
tanto que trata também de um adultério e de um crime passional. Isso não quer dizer que a obra não
possua nenhum traço naturalista, ou seja, há um momento em que o narrador chama Guidinha de
“fêmea “, e isso é uma postura naturalista. Ao final, fala-se de óvulo, incesto e masturbação, palavras
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que também marcam o apelo ao naturalismo, mas isso não é suficiente para chamar a obra de
naturalista.Resumindo, D. Guidinha do poço é um romance realista, pois a temática do adultério e a
ambigüidade sobre o comportamento das personagens é que prevalece.
Resumo
LIVRO I
A historia começa com o narrador ( em 3ª pessoa ) explicando onde era o Poço da Moita e quem
era a D. Guidinha do Poço, por isso, fala do avô da moça, Reginaldo Venceslau de Oliveira, português
trabalhador que desbravou aquela região. D. Guidinha casou-se com um pernambucano, o Major
Joaquim Damião de Barros, comprador de cavalos que passava pelo Ceará e ficou apaixonado por
Margarida. O tempo é a transição entre Monarquia e República. Em seguida, o narrador apresenta em
forma de balanço-testamento os bens de D. Margarida. Num rápido flash-back, o narrador nos conta as
proezas de D. Guidinha ainda menina, andando a cavalo e botando cabresto em quem a desafiasse.
Com 14 anos atravessou um rio a nado, de braça, como homem, só porque outra menina a desafiara.
Seguindo a narrativa, o presente é um tempo de seca, dezenas de retirantes passam pedindo uma
colocação. D. Guidinha, que manda mais que o marido, trata a todos muito bem, dá-lhes água e
comida, mas não permite que fiquem. Mas uma única família, conhecida do Major Quinquim, gente
do Rio Grande do Norte, acaba conseguindo moradia. D. Guidinha inicialmente não concorda, mas
deixa para ver no que vai dar a besteira do marido. Agregou-se a família de Antônio Silveira.
Um dia, D. Guidinha estava nos afazeres da casa, em cima de um galpão, quando avistaram um
cavaleiro, cheio de malas. Era o Sr. Secundino, sobrinho do Major que " coincidentemente " chegava
por ali em visita ao tio. A verdade era que o rapaz fora acusado de um crime em Pernambuco e vinha
procurar ajuda.
Feitas as apresentações, ainda com um pouco de segredo, pois ninguém entendia aquela visita
inesperada do sobrinho Secundino ao Major Quinquim, D. Guidinha não simpatizou muito com o
viajante. Primeiro, porque era gente do marido, e isso só já bastava, depois pelo vexame que passara ,
pois teve que ficar enganchada no alpendre até que ele se afastasse.
De qualquer forma, Secundino estava muito bem aboletado. Mesa, bacia de rosto com uma toalha
e chinelos, e foi para o quarto de hóspedes. O tio não chegava. Enquanto aguardava, agora por
coincidência, acabou encontrando a família do Silveira. Mataram as saudades contando cada um a sua
historia. Silveira estava ali porque o pai fizera besteira e tinha “vindido “o sítio da família. Na verdade
queimou, deu de graça. Agora estavam naquela pendura e na terra dos outros, o que era pior.
Secundino acaba pedindo a Silveira que se for preciso aceite depor em um processo em seu favor, pois
estão querendo prendê-lo injustamente. Combinam que tudo se arranjará da melhor forma possível.
Secundino sai para tomar banho no rio. Age como hóspede ilustre. Logo, se faz de dentro, passa a ser
tratado como sobrinho do dono. Guida mantinha-se distante, à espera do marido. E no fim da tarde,
junto com várias compras da capital, o tio chegou. O encontro foi deveras emocionante. E depois de
muita comida, e pouca cerimônia de Secundino, o Major mandou preparar uma casa que tinha na Vila
para o sobrinho se estabelecer, e tudo vinha a calhar porque nas andanças “Dino “( apelido de infância
) de comprador de cavalos acabou se tornando mascate. Iria montar um negócio com a chancela do tio
enquanto a historia do processo se desenrolava. Silveira partiu para as praias com os cargueiros do
patrão.
Secundino ia ficando cada vez mais de dentro. A vida na fazenda era muito agradável e o
convívio entre os parentes se dava de forma harmoniosa, seja num café da manhã tomado em
conjunto, seja numa roda de conversa ou mesmo em uma dança típica como por exemplo a
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quadrilhada. Silveira agora é mandado à Goianinha ( RN ) por ordem de D. Guidinha. Secundino
entende que por ordem dela é que Silveira deporia no processo em seu favor. Começa a simpatizar
mais ainda com a “tia “. E numa partida de baralho começa a achar a esposa do tio realmente muito
bondosa.
Chega o inverno em Poço da Moita e os planos de Secundino de colocar uma loja na Vila são
agradavelmente adiados. Na fazenda todos estão felizes com o inverno e com o ambiente familiar. A
fartura é uma constante. Findo o período de chuvas, Secundino se manda para a cidade; o negócio
dessa vez sai do papel. No Poço da Moita, D. Guidinha conversa com a mulher de Silveira e deixa
transparecer uma certa saudade de Secundino. O ponto interessante do Livro I é que encerra com um
traço cultural do sertão, a contação de história, hábito sertanejo que muito enobrece a nossa cultura.
Temos um tipo de desvio do foco narrativo ( uma história dentro da outra ) quando a mulher de
Silveira conta um causo na tentativa de dizer a um peão metido a importante que sertanejos, apesar de
retirantes sofridos, são gente e merecem respeito.
LIVRO II
O livro II trata de uma festa, o casamento da filha do Miguelzinho do Vaváu, Secundino
compareceu e lá mostrava felicidade ao lado da filha do juiz chamada Lalinha. Quando Guida fica
sabendo começa a desfazer do sobrinho e rebaixar a moça. Dias depois, Guida convida Lalinha para
passar uns dias na fazenda, ficam amigas, e Guida pergunta sobre uma pedra que Lalinha traz consigo.
A jovem diz que foi presente de Secundino, que é o bem mais precioso que possui, um presente de seu
amado. Guida chama de Tolice. Secundino passa três dias no Poço da Moita. Chega carta de Natal
dizendo que Secundino tem que se apresentar para o julgamento. Guida diz que ele não tenha medo,
pois tudo será resolvido, e ali, nas terras dela, ninguém tocará em um fio do seu cabelo. É dada uma
festa no Poço da Moita e os violeiros ( traço cultural ) fazem improviso para a dona da casa e o
sobrinho ilustre.
Todo branco quer ser rico
Todo mulato é pimpão
Todo cabra é feiticeiro
Todo caboclo é ladrão
Viva Seá Dona Guidinha
Senhora desse sertão.
No meio da festa, quando o forrobodó ficava quente, ( homens e mulheres se melando ) Guida
pede a Secundino que a acompanhe até a casa. Os dois saem por uma veredinha no escuro...
LIVRO III
No livro III o fato mais importante fica por conta do poder de D. Guidinha do Poço que manda o
delegado da cidade soltar os homens que havia prendido numa festa, entre eles o Silveira, que não se
demorou para agradecer a soltura. Depois disso, não se falava noutra coisa a não ser na coragem da
filha do capitão-mor.
Todos se preparam para a Missa Cantada. Guida toma banho no rio ( Banabuiú ) com outras
moças, ela pensa em encontrar Secundino, se arruma toda. O narrador faz várias sugestões sobre a
atração de Guida pelo sobrinho, mas não transmite nada que possa concretizar a traição. Guida se
decepciona, pois Secundino é tão safado que não olha só para ela e nem só para a namorada Lalinha.
Fica sugerido até que D. Guidinha do Poço já pulava a cerca ó... há tempos.
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― – É melhor Margarida que tu deixes de abusões. Aquele rapaz é um peralta, pois tu não estás
vendo, mulher, com teus olhos? Tarde chorarás o teu pecado, Margarida. Vê como aquilo se baba
com a tal de Lalinha! Pois uma coisa assim merece lá um coração como o teu? E ele nem tem lá essas
belezas que julgas! Repara. Espia. Compara aquele todo com o viço dos teus matutos. É farinha de
barco, os outros são farinha da terra... ―
A polícia do RN continua atrás do Secundino, D. Guidinha diz que vai protegê-lo. Os negócios de
Secundino vão mal; sua maior cliente era a própria Guida que comprou de um tudo e vestiu toda a
molecoreba da terra. Aceitam a sugestão de ceder uma das fazendas para Secundino. O major
Quinquim cuida da transação; o sobrinho agora é fazendeiro.
Tomada de ciúmes, Guidinha, ajudada por Aninha Balaio ( prostituta ) começou a inventar coisas
arranjando um modo de fazer confusão entre Secundino e o pai de Lalinha para que não houvesse jeito
de ficarem juntos. Passou a inventar fofocas, alguma coisa do tipo “Eu limpo é o fioto com diploma de
juiz de direito !”, como se fossem palavras de Secundino remetidas ao Juiz. “ E a briga continuou.
Dia da Missa de Bom Jesus, no alto, na entrada do povoado. Lalinha e Guida ( falsa que só o cão )
passeiam pelas ruas do povoado. Nesta hora o narrador começa a avaliar certas atitudes sentimentais.
Assim, dedica uma página inteira às atitudes de Lalinha, que amava desesperadamente Secundino. Na
fazenda de Secundino, o novo criador da região, a discussão é sobre a marca que o seu gado deve ter.
O peão, usando a inteligência do povo, depois de discutir com o patrão diz: “Se amarra o burro onde o
dono manda “.
Secundino começa a considerar o afeto que tem pela tia com quem já até sonhara... se bem que
nada tinha de parecida com a Lalinha. Uma hora achava-a gorda, a cara grande, o cabelo assanhado.
Outra hora achava-a interessante. Volta a cultura popular “Quem ama o feio bonito lhe parece “.
Morre a D. Anginha, avó de Guida.
Guidinha pensava mais ainda em Secundino, tanto que passou a evitar o marido Quinquim. A
velha Corumbá, personagem mística, avisava: “Ninguém se livra da inoração do povo, Sinhá.” Chegou
o tempo das eleições e o resultado foi imprevisto; os poderosos amigos de Guida foram exonerados.
Agora ficava difícil defender Secundino. Eleições representavam, na crítica do autor, apenas sinônimo
de barulho salseiro e desordem. Guida se revolta, mas não adianta, seu partido não ganha. O que a
consolava era a paixão. Passou a agir como adolescente. Lia novelas, tinha o ABC dos namorados e
muitos versinhos que, de imediato, mandava ao Secundino”
“Meu pensamento ligeiro
Botai-me aonde eu quero
Lá junto com meu benzinho
A quem eu tanto venero”
Chega uma carta de Natal dizendo que o Secundino foi absolvido. Guida fica muito contente, pois
já imagina que o sobrinho passará todo o mês de maio no Poço do Moita, ao lado dela...
LIVRO IV
Um belo dia, D. Guidinha pede, ou seja, ordena ao marido que organize uma vaquejada, uma
brincadeira para os homens da fazenda. A festança é geral, todos começam a ajudar. O local é um
pouco afastado da casa e por isso precisa ser limpo. Preparam o gado, as bebidas e, principalmente, o
churrasco. Secundino e Guida são os convidados de honra. O narrador desvia um pouco o foco
narrativo para a figura de Lalinha e tenta descrevê-la como pura, sentimental e sonhadora que espera
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um amor, mas que, no momento, pela rivalidade do pai com o pretendente vai ter que esperar. Em
resumo, consola-se no terço, rezar passa a ser o seu maior prazer.
Nisso, o narrador também acaba criticando a Igreja. A preparação para a festa continua e
Secundino visita o Poço da Moita. Conhece um professor, Joaquim Ribeiro, mostra-se interessado em
aprender latim. O professor não liga para o entusiasmo do rapaz. Começa enfim a vaquejada. Vários
vaqueiros estão no páreo, os melhores animais da fazenda estão correndo. Ao final, acontece um
acidente: o vaqueiro Manchico fica muito ferido depois de bater-se com outro cavaleiro. Fim da
vaquejada. Todos caminham para a casa. O major Quinquim fica um pouco para trás por causa de uma
precisão... Quando se aproxima, escuta um bando de vaqueiros que também parara e conversava. “ Se
fosse cumigo eu mitia bala. Só bala é que lava a honra. Mais hõmi quem jura qui o tal Secundino faça
isso com u majó? “ Quinquim ficou estupefato. Avermelhou-se. Perdeu o compasso. E agora? Todos
zombando dele... Que a Guida não era muito santa ele já sabia, mas o Secundino... Pensou até em
suicídio, principalmente quando a galhofa dos vaqueiros aumentou. Desistiu.
Morre o vaqueiro Manchico. Guidinha deu dinheiro para o enterro e chorou um pouco. Quinquim
afastou-se da mulher. Sofria calado. Um dia, ao passear à noite pela beira do rio, ouviu um
barulho....Imaginou logo.... Assombração, visage! Pegou a espingarda e meteu bala. Ouviu apenas a
disparada do espectro. Contou para Miguelzinho do Vavau que disse que devia ter atirado mais, assim
poderia ter acertado logo nos dois, na Guida e no camarada que estava com ela. Quinquim não
concordou, disse que era mesmo uma visagem. Continuou triste. Guida achava que era pela morte do
vaqueiro, pois eram amigos.
A vida continuava assim no Poço da Moita. Secundino, vez em quando visitando a tia. Lalinha,
por causa disso, também voltou a freqüentar a casa da amiga. Secundino corta o pé e passa uns dias
ausente. Guida falava de Secundino para a menina. “ Aquilo, minha filha, depois que se meteu de
fazendeiro não liga mais é pra ninguém. E você ainda fica metida com semelhante vasilha? Aquilo
nunca valeu foi nada! “ Lalinha ouvia espantada. Uma noite, depois de muito milho e café, começam a
contar histórias ( causos ) na beira da fogueira. Todos se revezam contando. Volta o assunto da
aparição da beira do rio. Dias depois, acontece uma missa pela alma da irmã do vigário e na volta o pai
de Lalinha visita o Poço da Moita. Ela vai junto na tentativa de ver o Secundino, mas até ele andava
distante. O interessante é o major Quinquim que agora anda calado, arredio e com manhas de
vaqueiro, todo empacotado em roupas de couro. O tempo passava sem maiores assombros.
LIVRO V
Agora a Guida estava feliz. Secundino ficou bom do pé e voltou a freqüentar a fazenda. O major
é que não estava feliz. Guida percebe, mas continua flertando com o sobrinho e fazendo sei lá mais o
quê. Um dia, por baixo da mesa, dá um beliscão na coxa do sobrinho e pede ao marido que vá buscar o
baralho para jogarem uma bisca. Desta forma, seguem de namorico. Quinquim começa a mexer os
pauzinhos na tentativa de afastar o sobrinho da região. Fala com o vigário que pode interceder para
que o Secundino seja recrutado pelo partido. O padre diz que é quase impossível, pois agora, graças ao
próprio major, o Secundino tem fazenda e fortuna. Quinquim pensa em acusar Secundino de um
defloramento, para ver se a polícia de Natal manda buscá-lo de novo. O padre diz que o caso é
complicado. A conversa encerra.
Acontece no vilarejo um caso de traição. O marido, Lulu Venâncio, mata a mulher. O caso é
notícia. Guida esconde o assassino em suas terras em troca de um possível favor... O Major está meio
doente, diz que pensa em viajar. Guida dá a maior força. Diz que ele não deve brincar com a saúde,
tem mais é que ir... para Natal, para o Rio de Janeiro... arruma até as malas do marido. Guida reflete
sobre a possibilidade de o marido estar maquinando alguma vingança... Secundino começa a rarear.
Antes de viajar, Quinquim bota Secundino para fora da fazenda. O capataz Antônio pede para ir
embora. Quinquim recebe um bilhete que o ameaça de morte. Pensou: Ali tem dedo da Guida. Viajou.
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Quinquim fica na cidade e diz que não voltará para casa. Quinquim procura o escrivão, o juiz e quer
saber dos seus direitos na partilha de bens ao separar-se por adultério. Guida chama Lulu Venâncio
para um serviço importante...O homem sai com um punhal antigo pertencente à família da Guida. Na
hora de matar o major ele desiste.
No entanto, dias depois o Major é assassinado. A cidade fica em polvorosa. Quem matou o
Major? Quem mandou matar? Tudo acontece muito rápido. O que se sabe é que pela boca dos outros,
o assassino foi um tal de Naiú, quase afilhado do major que, a mando da esposa, D. Guidinha, deu fim
à vida do pacato fazendeiro com o mesmo punhal oferecido a Lulu Venâncio enquanto o fazendeiro se
barbeava. A população se revolta, querendo linchar o Naiú. O Juiz manda prender Secundino e D.
Margarida Reginaldo. Ela é presa. Atravessa a cidade com arrogância e coragem. Na prisão, enquanto
observa as avoantes livres no céu, chora pensando no que vão fazer quando pegarem o Secundino. Ao
final, o crime não é totalmente esclarecido, mas nesse ponto é como a própria história que motivou o
romance, ou seja, aos olhos de todos, Guida ficou sendo responsável pelo assassinato do marido.
Crítica:
D. Guidinha do Poço é um romance inspirado em fatos reais, ou seja, ao fazer essa história,
Oliveira Paiva teve como base o estranho caso policial ocorrido em Quixeramobim por volta de 1885,
a incrível história da mulher ( Marica Lessa ) que mandou matar o marido ( Coronel Domingos de
Abreu ) para ficar com o sobrinho ( Sinhorinho Pereira ). A mulher foi presa, julgada e condenada,
mas ninguém nunca teve certeza total do fatos, o que não é totalmente incrível tamanhas as injustiças
que acontecem ainda hoje por culpa do judiciário brasileiro.
Assim, originado de um caso sobre o qual pairam ainda hoje muitas dúvidas, era natural que o
próprio romance ficasse envolto em mistério. No final do texto, com um, final em aberto, pois não há a
solução de todo o caso, temos a Guida presa e considerada culpada de toda a acusações, mesmo que as
principais testemunhas ainda não tenham sido ouvidas. Por conta disso, a narrativa ganha em
imprecisão e ambigüidade, elementos essenciais do Realismo, tanto que pode ser um romance
aproximado do que se passa em D. Casmurro de Machado de Assis. Outras observações importantes
sobre o livro estão embutidas no caráter regionalista da obra ( a linguagem, as danças, as missas , a
vaquejada... ), no teor naturalista ( muito pouco ) de algumas considerações do narrador onisciente.
3 - Os Bruzundangas – Lima Barreto
“ Bruzundanga: O mesmo que Burundanga. ( Algaravia; mixórdia; coisa complicada, confusa;
ninharia. In. Dicionário Brasileiro Contemporâneo. ) Coloquialmente, diz-se do que é imprestável.”
Autor e Obra
De vida infeliz e desgraçada, pode-se dizer que Lima Barreto ( 1881) foi um autor da
marginália. Na infância, em suas brincadeiras, teve como cenário um asilo de loucos onde o pai
trabalhava como zelador. Na adolescência, por conta das péssimas condições econômicas da família,
foi impedido de fazer a faculdade que desejava: engenharia. Sobrevivia fazendo contos e artigos para
os jornais, já demonstrando um talento para a ironia à moda Machado de Assis. Em seguida, a bebida
passou a dominar-lhe os sentidos. Assim mesmo, lia muito, instruía-se a cada instante. Em seus artigos
a nota social era sempre viva, os dramas do homem mestiço e outros problemas sociais não passavam
despercebidos, tome-se como exemplo, Clara dos Anjos.
Interessantemente, não fez sucesso em sua época, sendo como autor, o mesmo homem que era,
sempre à margem da sociedade, um artista com paixão por sua cidade, sobretudo os bairros pobres,
subúrbios de funcionários, retocados por dramas humildes, tragédias de classe média ao som de
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serenatas de violão, a boêmia carioca. Também soube retratar com agudeza e sarcasmo os políticos,
literatos e jornalistas de seu tempo mostrando aspectos curiosos e dolorosos. No entanto, enquanto
perdia a estima de seus contemporâneos, ganhava para sempre a admiração dos homens póstumos
inscrevendo seu nome como um dos mais significativos das letras brasileiras. Faleceu em 1922. Obra:
Romances: Recordações do escrivão Isaias Caminha ( 1909 ); Triste fim de Policarpo Quaresma (
1915); Numa e a Ninfa ( 1915 ); Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá ( 1919); Clara dos Anjos ( 1923
); Conto: Histórias e sonhos ( 1920 ); Contos Argelinos ( 1952 ); Aventuras do Dr. Bogoloff ( 1912 );
Crônicas: Os Bruzundangas ( 1922); Bagatelas ( 1923 ); Marginália ( 1953 ); Vida Urbana ( 1953 );
Feiras e mafuás ( 1953); Memórias: Diário íntimo (1953) e Cemitério dos Vivos ( 1953); Crítica:
Impressões de Leitura ( 1956).
Momento
Afonso Henriques de Lima Barreto pertence ao Pré-Modernismo, um período de transição em
nossa literatura que vai dede a publicação de Os Sertões ( 1902), Euclides da Cunha, a 1922 com o
advento da Semana de Arte Moderna. A seu lado, podemos destacar as presenças do próprio Euclides
da Cunha, Monteiro Lobato, Graça Aranha e Augusto dos Anjos. O Pré-modernismo é um momento
em que os autores, por não pertencerem a nenhuma estética, e a todas ao mesmo tempo, não podem ser
enquadrados como velhos ( tradicionais) nem como novos ( modernistas ). Resta-lhes a alcunha de
pré-modernistas, marcando com suas obras o período de vinte anos que antecede a Semana de Arte
Moderna, em fevereiro de 22.
Resumo Crítico
O livro Os Bruzundangas(1922), de Lima Barreto, é, primeiramente, uma coletânea de crônicas,
cujo título remete a ninharias e confusão, popularmente a coisas imprestáveis. Na obra em si, o que
temos é principalmente um supra-sumo de tudo o que o autor quis dizer ao longo de sua vida sobre
aqueles que por ele passaram, sobre as situações que vivenciou e, principalmente, sobre o país que
tanto adorava e com o qual se decepcionava. Antes de tudo, a Bruzundanga é o Brasil, o Brasil dos
políticos desonestos, dos literatos sem talento, dos jornalistas inescrupulosos, dos engenheiros e
advogados mal formados, da intelectualidade superficial e inútil.
O tempo todo, temos o Lima Barreto crítico da sociedade que o evitava, na qual não podia ser
inserido, fosse por sua condição financeira pouquíssimo favorável, fosse pelo tipo de texto que
produzia, sempre acintoso, sempre irônico.
O livro é aberto com um capítulo especial dedicado à literatura corrente na Bruzundanga. O que
temos, na verdade, é um narrador que se coloca como estrangeiro avaliando tudo o que se passa no
país tropical da Bruzundanga. Os Samoiedas, sem muito esforço, não podem ser outros que não os
poetas da escola que se processava na época, os adeptos da imitação clássica, os remanescentes da
Grécia Antiga. Neste capítulo especial, e nos demais que seguem, tudo o que vemos é um
posicionamento analítico, irônico, sarcástico, de quem entende de arte e literatura.
Em seguida, na ordem dos capítulos, a crítica é distribuída a cada elemento constituinte da
Bruzundanga. Avalia-se então: o grande financeiro, de conhecimento superficial e equivocado; a
nobreza, de origem mais que humilde, gente que tem sobrenome e nenhum centavo no bolso, gente
que se julga importante; a política do favorecimento e do apadrinhamento, mais atual que nunca; as
riquezas, vilipendiadas e enviadas ao exterior por ninharia e sendo compradas de volta por preços
absurdos; o ensino equivocado professado na Bruzundanga, seguramente o mesmo de hoje baseado no
“anel” e no “papel”; a diplomacia, a política da boa vizinhança; a Constituição falha e tendenciosa do
país; os manda-chuvas, que não fazem falta no Brasil; a Força (des)Armada, a mesma de hoje, incapaz
de invadir uma favela quanto mais declarar guerra a outro país; Os ministros, chupando nas tetas do
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governo; os heróis, que tanto fazem falta; a sociedade em geral burra e hipócrita; as eleições,
palhaçada supersticiosa; a religião e outras observações dignas de nota sobre esse estranho país.
O que temos é uma visão interessantíssima de um brasileiro que precisa disfarçar-se de
estrangeiro para falar sobre as nossas mazelas porque, ainda que não se concorde plenamente, quem
está de fora vê melhor que aquele que está dentro, ninguém melhor para analisar uma sociedade que o
indivíduo que se encontra fora dela. Assim fizeram José de Alencar, Adolfo Caminha e, logicamente,
Lima Barreto.
Em Os Bruzundangas, obedecendo ao gênero semi-jornalistico, a crônica, o autor ficcionalizou
a maior de toda as verdades: a deficiência constante do Brasil e do povo brasileiro, fazendo isso de
forma bem humorada e, acima de tudo, metafórica, em subentendidos que só não perceberá aquele que
for mais inoperante que o próprios samoiedas tão criticados na introdução. Fica ainda uma grata
surpresa que é a presença de uma digressão especialíssima na inserção do texto Sua Excelência, um
bom exemplo de Literatura Fantástica reforçando a crítica do autor aos políticos brasileiros,
vaidosos e incompetentes, e os bruzundanguenses de forma geral.
4–
Contos da Montanha – Miguel Torga
Autor e Obra
Pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha. Nasceu em S. Martinho de Anta ( Trás – os – Montes –
Portugal ) em 12 de agosto de 1907. A família sempre imaginou o filho padre, principalmente pela
falta de perspectivas que tinham por serem camponeses, por isso, enfiaram o menino em um mosteiro,
mas o jovem Miguel Torga nunca se enquadrou no regime eclesiástico. Na adolescência, passou cinco
anos numa fazenda em Minas Gerais, onde foi apanhador de café, vaqueiro e caçador de cobras ( no
bom sentido ). Voltando a Portugal em 1925, formou-se em medicina pela Universidade de Coimbra.
Durante os anos de estudante, fez parte da revista Presença, grupo literário representante do ideário
modernista em Portugal. Desligando-se da revista, em 1930, juntamente com Branquinho da Fonseca,
lançou os periódicos Sinal e Manifesto. Terminados os estudos superiores, passou a dedicar-se à
clínica e a sua obra literária. Morreu em Coimbra, a 17 de janeiro de 1995 e, segundo consta, uma das
maiores injustiças cometidas contra ele foi o não recebimento de um Prêmio Nobel por sua obra.
Escritor bastante versátil, Miguel Torga fez uma incursão em vários gêneros. Na Poesia seus
principais textos são: Ansiedade – O outro livro de Job – Lamentação – Nihil Sibi – Cântico do
Homem – Orfeu Rebelde – Câmara Ardente – Poemas Ibéricos. Na Prosa de ficção, destacou-se com:
Pão Ázimo – A criação do mundo – Bichos – Contos da Montanha ( 1941 ) – Novos Contos da
Montanha ( 1944 ) – Vindima. Para o teatro contribuiu com: Terra firme e Mar; Sinfonia e O
Paraíso.
Momento
Depois de Fernando Pessoa, maior nome do Modernismo português, representante do Orfismo,
surge o Presencismo. O Grupo da Presença era constituído por alguns estudantes da universidade de
Coimbra e tinha como líderes José Régio, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, primeiros
fundadores da Revista Presença, da qual participava, com alguns escritos, o jovem Adolfo Correia da
Rocha ( Miguel Torga ). O Presencismo adota Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro ( Geração de
Orpheu * ) como mestres que devem ser seguidos, mas ao mesmo tempo valoriza os quesitos de
criação, invenção e descoberta ( originalidade ) coisas que fazem grande a arte Moderna. Para
alguns, havia nisso uma certa contradição e a dissidência foi inevitável. Com a saída de Branquinho da
Fonseca, Torga também se afastou caracterizando-se uma desavença entre o grupo numa contradição
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de seus ideais. A revista é parcialmente interrompida em 1938, último número da primeira fase, para
em 1939 editar os dois últimos. O fim da revista coincide com o começo da Segunda Grande Guerra e
o avivamento revolucionário do Neo-realismo.
* Geração de Orpheu – Caracterizado pelo mito de Orpheu e Eurídice, tinha como principal integrante
Fernando Pessoa.
Resumo Crítico de alguns contos
1. A Maria Lionça
Utilizando analepses ( flash-back ) e prolepses ( antecipações ) este conto, ambientado em
Galafura, apresenta a história de uma mulher de muita coragem. Maria Lionça, mulher que nasceu
pobre, viveu pobre e morreu pobre, tanto que nem ler sabia. Respeitada por todos no lugar, era o
exemplo de presteza, trabalho e correção. O texto começa com a morte de Maria Lionça e a
comoção de todos e principalmente da terra Galafura, que é personificada pelo telurismo
torguiano. Na juventude, Lionça era a mais bonita de todas as cachopas ( moças ) e por isso muito
desejada, mas impunha respeito. Casou com Lourenço Ruivo e começava a ser feliz. Neste
momento, o narrador, através de uma prolepse, antecipa informações que ainda virão na narrativa
diz: Só o destino, fiel às misérias do mundo, sabia que fora reservado a Maria Lionça um papel
mais significativo: ser ali a expressão humana dum sofrimento levado aos confins do possível”.
Logo que lhe nasceu o filho Pedro, o marido acovardou-se e partiu para o Brasil. Viúva de marido
vivo, pensava em um dia receber notícias e todos no lugar também achavam o mesmo ou
perguntavam por notícias só para aumentar-lhe a ferida. Fiel ao amor mirrado, Lionça não quis
mais homem algum, preferiu perder os encantos. Um dia o marido voltaria. E voltou, doente,
apenas para ver o filho e morrer. A esposa e a terra ( mãe) receberam pacientes a ovelha
desgarrada. Lionça não chorou nem botou luto, ficou apenas apiedada. E quando tudo parecia
normalizar-se, o filho Pedro, envergonhado da vida e do pai, mandou-se para Lisboa. Mais
sofrimento viria. O tempo passava e ela envelhecia sem notícias do filho que não voltava. Um dia
chegou-lhe a notícia de que o filho estava mal em uma cidade vizinha. Lionça viajou e foi buscar o
filho. Trouxe-o morto, nos braços como em A Pietá, para enterrar-se em Galafura, mãe dele e
também de Maria Lionça, a próxima a ser enterrada.
2. Um Roubo
Novamente, em forma de flash-back, o narrador nos contará a história de Faustino, morador
de Abaças, também atacado pela miséria, que vê como solução, ao menos temporária, para os seus
problemas assaltar a caixa de esmolas de Nossa Senhora da Saúde. Imediatamente, o plano estava
traçado e parecia haver determinação suficiente no pobre ladrão de galinhas que agora se preparava
para um roubo maior. No entanto, a coragem diminuía, e o ato sacrílego que estava prestes a cometer
passou a perturbá-lo. Entrou em crise e não sabia mais o que fazer. Mas ver a falta de coisas em casa e
a fome da mulher o impeliam para o herege ato. À noite, com a esposa dormindo e encoberto pelas
sombras, Faustino tomou coragem e saiu. Enfrentou o tempo ruim, vento e chuva para chegar à igreja.
No caminho, ao passar pelo túmulo de um conhecido, também ladrão, mas de roletas, compara-se com
ele e vê-se em desvantagem. Continua, questiona-se o tempo todo, mas segue. Nessa hora, Miguel
Torga coloca na boca de suas personagens um pouco de seu conflito existencial marcado pela teologia.
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A situação do roubo a uma santa já é sacrílega, o ladrão pensando em rezar um pai-nosso antes do
assalto é sacrílega e parodística, mas apenas aos olhos da igreja e de gente que acredita nela. Torga
não parece acreditar, por isso age com essa liberdade. Momentos depois, Faustino chega, todo
molhado, ao templo. Entrou e acendeu um castiçal. Volta a agressão torguiana “ A igreja nem sequer
o ar atônito de há pouco conservava, e o resto , francamente, sem nenhum ar divino. Toalhas, bancos,
jarras... o trivial. Tanta mortificação inútil! “ Ao abrir a caixa, descobriu que estava vazia. Conclusão:
ou o dinheiro havia sido roubado antes ou não havia mais fé nesse “amaldiçoado mundo “. Com muita
raiva, de castiçal em punho, atirou-se em direção ao altar. O sacrário não tinha nada, o calix e os
outros apetrechos de missa não estavam lá. Mais raiva. Mais profanação. “tocos de círio, um crucifixo
partido... Que cambada!” “Larápios! “ “Canalhas!” Faustino amaldiçoava o padre por ter levado
consigo os objetos de valor. Voltou indignado para casa. A chuva era tanta que lhe banhava a alma.
Entrou em casa às quatro da manhã, tremendo de frio e foi para as cobertas. De manhã, ardia em febre.
Seis dias depois estava a morrer. Chamaram o padre para dar-lhe a extrema unção. Quando o padre
chegou e pegou-lhe na mão para o responsório, o semimorto acordou histérico. E com a voz rouca da
pneumonia gritou para todos: - Ladrão! Prendam-no que é ladrão!
3. A Ressurreição
No conto “A Ressurreição”, Miguel Torga descarrega sobre o leitor mais uma dose de seus
conflitos teológicos. Temos a história não de uma pessoa, mas de um lugar, Saudel, e de todo o
povo que lá vive. Mais uma vez, sob a ótica inflexível da miséria analisa: “Aquilo nem são casas,
nem lá mora gente. São tocas com bichos dentro. “ O tom naturalista da comparação é apenas
parte da verdade que o narrador deseja apresentar. Basta ver pela atitude do Pe. Unhão, o pároco
do lugar, que diz no sermão que “os pais não restam, que as filhas são porcas, que os filhos são
brutos, que é tudo uma miséria.” Mas mesmo assim, para espanto do narrador Jesus Cristo ainda
insiste em visitar aquela gente, na figura de padre. É uma gente sem perspectivas, com as mulheres
parindo como a Virgem quiser , os gajos e as raparigas criados como gado. A coisa é tão ruim que
nem o padre tem mais coragem de fazer algo.
Nessa hora, a partir de um flash-back, o narrador nos conta da tentativa do padre em
congregar as pessoas e salvar-lhes a alma quando fez representar, à força, ali, em Saudel, as
endoenças, a “Paixão de Cristo”, ao ar livre. Cada morador tomou parte da encenação. Um como
Herodes, outro como Judas, outra como Madalena... e assim ia-se dando os papéis a cada um. Um
pouco a contragosto, mas ia-se. No entanto, para um dos personagens, o Coelho, toda a Saudel
olhou com assombro. Um homem que não valia dez réis... o Cristo!? Depois de arranjados, a
coisa começou a andar. Logo, Saudel era Jerusalém, e cada um no seu papel fazendo-o tão bem
que , estranhamente, passaram a tomar gosto naquilo. Estavam todos transfigurados e nenhum
deles tinha mais segurança de sua própria realidade. A cidade vivia mesmo a Paixão de Cristo,
estavam todos tomados, tão diferentes e compenetrados em seus papéis que até o Coelho
começava a sentir-se outro. Coitado. Depois de muito martirizado, carregou uma cruz e enorme e
foi amarrado a ela, em jejum total. A cidade mantinha-se empenhada na representação, mas a
mulher do Coelho ao saber que o marido seria colocado em um túmulo, foi falar com o padre,
pediu para ao menos alimentar o marido que ainda não tinha tomado um caldo. O padre
irredutível: “- Começou, tem de acabar! “. Finalmente, a encenação já se acabava. O Coelho, quer
dizer, o Cristo havia sido posto no túmulo e esperava-se o momento de glória. Começaram as
aleluias, e quando abriram o túmulo, irônica e milagrosamente, não estava lá o Coelho. A multidão
indignada, voltou-se contra os algozes, os fariseus. E a igreja transformou-se num campo de
guerra, o povo vingava como podia a injustiça cometida. Lá fora, o sino tocava animadamente
anunciando a Ressurreição.
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4. O Lugar de Sacristão
Nesse conto, brilhantemente engendrado, Torga leva sua revolta ao extremo. Cria a história
de um amor frustrado pelas condições miseráveis de vida a que se submetem as personagens. Esta é a
história de Felisberto ( nome ironicamente contraditório ) que assume a função de sacristão-coveiro.
Morre de amores por uma moça chamada Deolionda ( irônico quanto à beleza incontemplável de Deus
). O jovem Felisberto assumiu na verdade o lugar do pai, que morrera no oficio. O padre precisou
insistir muito porque o jovem estranhamente pressentia que aquela profissão não lhe traria boa
ventura. De fato, pois no dia em que resolveu abrir seu coração, falar de seu amor a Deolinda recebeu
como resposta um não “redondo”. A moça disse que não o queria. Isso dava até para compreender,
mas quando ela fez questão de deixar bem claro que não o queria porque o homem que ficasse com ela
não seria o mesmo a abrir-lhe a cova Felisberto desmoronou. Passou a sofrer calado. Guardou para si o
amor que tinha e nunca mais falou sobre o assunto com ninguém. O tempo passava e foi ainda ele
quem ajudou a casar Deolinda e tornar-lhe os filhos cristãos. Doía-lhe quando o padre dizia: “- No
domingo temos o baptizado de mais um crianço da Deolinda. “ O padre tentava em sua própria solidão
fazer-se amigo e perguntava-lhe por que não casava. A resposta ficava-lhe na garganta.
“Envelhecemos para aqui, ambos como dois infelizes”, o padre dizia. Os anos continuavam a correr e
vinham com eles as doenças, as gripes, as tuberculoses e os reumatismos. O sacristão resistia, sem
saber por qual motivo. Um dia, a notícia fatal: a morte da Deolinda. Recebeu a notícia e foi tocar o
sino para anunciar a desgraça. Pegou a pá e começou cedo o serviço que teria que fazer de qualquer
jeito. Começou a cavar a sepultura da mulher que tanto quis e nunca teve. Estava abrindo a cova da
que não quisera ser sua mulher justamente por esta razão. Começou a cavar sem ânimo , mas depois
veio-lhe uma energia não se sabe de onde e cavou, cavou e cavou... Quando o coração se acalmou a
campa lhe dava pelo pescoço. Pousou a pá e encostou-se na trincheira. Pronto! Acabou-se o fadário...
Tentou olhar para fora e viu apenas pontas e cruzes, cruzes e mais cruzes. E sem forças para sair do
buraco, aninhou-se. “Esta é para mim. A dela que lha faça quem quiser”.
5. Um Filho
Neste conto, apesar de ainda enxergar pelo olho da miséria, Torga aborta seu pessimismo. É
um texto interessantíssimo, de muita tensão, mas que trata de valores muito fortes no que diz
respeito ao ser humano . O lugar chama-se Provezende onde até o ar parece chegar por favor.
Temos o casamento de Rebel e Júlia . Ele nascido para o trabalho do campo e as dificuldades da
vida; ela filha de pai alcoólatra avesso aos bons princípios. O casamento segue a contento com
pouco, mas suficiente. As dificuldades são muitas, até que vem a boa notícia: Um filho!
E logo entrou a imaginar o menino pulando pela montanha a danar-se como um cabrito. O
nascimento da criança exigia dele mais trabalho, mais lençóis, faixas, cueiros... precisa de
algumas compras. O menino nasceria em janeiro, no pino do inverno. E chegou o dia. Júlia , a
passar mal em cima da cama, pedia ajuda a Rebel que saiu desesperado. Tinha que ir de uma vila
a outra à procura de alguém que pudesse ajudar. O pior era a neve. E foi. Depois de muito
caminhar, não encontrou ajuda . Voltou. E durante o trajeto, como incentivo, só repetia: Um filho!
Um filho! Cresce a tensão e junto com ela o medo de um final trágico. A personagem está
desesperada e o leitor atônito e esperançoso . De mãos vazias, o Rebel torna a casa. Silêncio. Até o
gado parara de berrar. O Rebel empurra a porta com medo. Na boca, sem muita força... Um filho
... Neste momento, Torga surpreende . Em vez de pessimismo ou autocomiseração,
intrigantemente neste conto, há um final feliz . O Rebel encontra a mulher adormecida e já com o
filho no colo, simples, natural, sem precisos, sem faixas, sem cueiros, sem nada. E teve a alegria
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de ouvi-lo, no dia seguinte, a gritar animando a casa, podendo também pegá-lo no colo e olhar o
mundo novamente coberto de sonhos e dizer para a esposa: “- Não há riqueza como a nossa,
Júlia!”
Sobre Contos da Montanha
A história desse livro começou no Brasil, em 1941 quando de sua publicação. O conteúdo está
intimamente ligado com a experiência vivida pelo autor no Brasil, num momento em que muitos
portugueses migraram para nosso país escapando de conflitos internos e principalmente da fome que
ameaçava a todos. Neste livro, há um equilíbrio entre a dimensão individual ( intimismo ) e a
dimensão social ( universalismo ). Nos anos 40, como proposta do Presencismo, a subjetividade já
vinha sendo atacada, dando lugar ao neo-relismo ( influência da Geração de 30 brasileira ). Mas
Torga conseguiu a medida certa, o equilíbrio entre estas duas facções. Temos então, um texto sobre o
homem, e sobre a terra ( a Montanha ) tão verdadeiramente construídos que apenas quem viveu aquilo
poderia dar mais detalhes ( individual-subjetivo ) mas o que foi experimentado não pertence apenas a
um homem, pertence a um povo ( coletivo-universal ). São textos sobre o trabalho ( Vindima ) , sobre
miséria, sobre alegria pequenas ( Um filho ) e sobre a relação Deus – Homem arranhada por
questionamentos ainda sem resposta ( O desamparo de S. Frutuoso ). Adolfo Correia da Rocha, que
deveria ter sido padre, mas não foi, jogando fora a “única” oportunidade, segundo a família, de ser
alguém; foi trabalhador braçal, vaqueiro, caçador de cobra e passou por muitas dificuldades na vida.
No entanto, pelo esforço e, através do estudo, conseguiu sair da condição de empregado de fazenda
desconhecido em Minas Gerais, para médico famoso e conceituado em Coimbra. Não satisfeito,
ingressou com toda a força na carreira literária ao lançar Ansiedade, seu primeiro texto, e só não
ganhou um Prêmio Nobel porque morreu antes. José Saramago que me perdoe.
Sobre os demais contos
Quanto aos outros contos, o que temos é um Miguel Torga cheio de lusitanismo. Um autor
apaixonado pela sua terra, mas preocupado com a condição humana. Marcado pelas intempéries da
vida, pelas privações que também experimentou e pelo conflito constante entre Criador e Criatura.
Reconhecemos um Torga apegado à cultura e às tradições de seu povo, mas bastante influenciado por
uma brasilidade insistente que passou a fazer-lhe parte da alma, seja em traços do linguajar
incorporados ao léxico lusitano como “Pensando na morte da bezerra “. Ou em referências diretas ao
país que o acolheu. Em “Amor” temos um crime passional. Em “Homens de Vilarinho “ o apego à
terra diminuído pela necessidade de ganhar a vida em outro lugar. Em “O Cavaquinho” uma história
tocante, sutil e humana sobre um filho que esperará por um presente que jamais vai chegar. Em “A
promessa” uma referência ao Brasil e a crítica a valores eclesiásticos. Em “Maio Moço “ uma
metáfora interessantíssima sobre o que somos e no que podemos nos transformar segundo a nossa
vontade. Em “O Bruxedo “encontramos uma pitada gostosa de humor negro a partir de um traço
cultural universalíssimo que é o medo de feitiçarias. O conto “A Paga “ mais parece uma crônica
milenar sobre um jovem que “desgraça “a vida de uma moça e os irmãos que estavam no Brasil,
voltam apenas para vingar a honra da irmã. Humano até a alma, este conto trata de uma situação das
mais comuns, principalmente no Brasil, em qualquer parte dele, e em Portugal, nas zonas interioranas,
devido ao apego às tradições milenares como por exemplo a honra defendida e a justiça feita com as
próprias mãos. “Inimigas “ traz uma história bonita sobre amizade e humanitarismo. Em “Solidão “, a
história é das mais antigas, um homem que mata a mulher que o traiu e que depois tira a própria vida
por causa de outra e do desprezo de todos. “A Ladainha” antes de ser irônico é uma apologia ao
tradicionalismo religioso português. “O vinho “ traz um monólogo dos mais interessantes, um
desdobramento de personalidade de tendência freudiana, mas que antes de ser psicológico
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simplesmente retrata uma personagem tipo, o bêbado, pura universalidade. “Justiça” é uma aula sobre
mesquinharia. “ Vindima” é um retrato do povo português em momento de trabalho, colheita. “Um
coração desassossegado” destrincha-nos um conflito amoroso. “A revelação “é mais um drama da
existência humana, talvez apenas familiar. “O desamparo de S. Frutuoso” , para variar, é uma grande
ironia em relação ao idolatrismo da igreja católica. “ O Castigo “ é de uma tonalidade causticante, é
corrosivo no que diz respeito à ironia dos nossos destinos. Temos uma história de traição bem
resolvida quando a mulher , no leito de morte, resolve dizer ao marido das traições cometidas. O mais
importante ela não revela: que o médico ali no quarto era o seu último erro. A própria revelação tornase desnecessária pela cumplicidade dos dois amantes na hora da terrível cena. “ O pé tolo “é uma
história mais particularizante, ligada ao povo português pelo assunto tratado , porém universal pela
situação que se arma. A verdade é que em todos os contos, Torga é perceptível, em sua ironia discreta,
na crítica escancarada, no apego às tradições ou no aleive contra elas. O que mais se deve lembrar é do
amor de Torga pela terra, um Portugal que ele reconstrói ou inventa segundo os seus propósitos.
Crítica
Tendo como elemento motivador o Telurismo ( amor pela terra portuguesa), mesmo que nesse
livro esta não seja a maior característica, toda a extensa e variada obra de Torga estará sempre atrelada
às mesmas idéias centrais: Miguel Torga será sempre o mesmo homem, de pés fincados na terra
transmontana, pois é nela que espera encontrar explicação para a angustiante condição humana. Nesse
momento, “ser humano “ não parece algo vantajoso por introduzir na cabeça e no coração do homem
indagações existenciais, inicialmente, sem resposta. Quem somos? Qual a razão de nossa existência?
O que fazemos aqui? O que é morte? O que é Deus? Este problema teológico-existencial atrai o
paradoxo comum a todas as perguntas e como se tivesse pego o caminho errado, nascem no “eu-lírico”
ou no “narrador” a revolta, a indignação, o desejo de conhecer e conhecer-se numa ira titânica,
violenta ou branda conforme a situação, contra o Deus cujo poder não consegue compreender, aceitar
ou dirimir. Reside aí uma vontade extraordinária de viver a vida com toda intensidade num desespero
consciente que levará seu telurismo ( marca registrada ) a trilhar diversos caminhos desde a blasfêmia
mais herética e pagã ao elogio desinteressado, caracterizando uma agonia permanente. O que mais
surpreende é que na ânsia de compreender Deus e a si mesmo, Torga refaz os passos do Criador na
tentativa de também compreender a Criatura. E nesse encontro, teremos Deus como sempre foi: Tudo
para todos ou Nada para alguns e o poeta cada vez mais gente, cada vez mais homem em relação à
terra, a Deus e a si mesmo. Observe-se portanto em Contos da Montanha, de apelo bíblico como no
“Sermão da Montanha”, e na maioria das obras, O Telurismo torguiano e a Humanização constante
dos seres e das coisas, nascidos, pura e simplesmente, do prosaico, do cotidiano, das relações comuns
a qualquer ser. Torga representa a contradição necessária entre o Criador, ( Deus ) o Mundo ( que é a
Montanha ) e a Criatura ( o Homem ) numa tentativa incessante de auto-compreensão.
5 - Rosa, Vegetal de sangue – Carlos Heitor Cony
Autor e Obra
Nascido a 14 de março de 1926, Carlos Heitor Cony é carioca, filósofo, jornalista e literato. Em
1955/58 lançou seu primeiro romance O ventre, dedicando-se depois ao jornal Correio da Manhã com
uma irreverente coluna “ A arte de falar mal “. Principais obras: A verdade de cada dia; Tijolo de
Serança; Informação ao crucificado; Matéria de memória; Antes o verão; Posto Seis; Balé Branco;
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Chaplin; A Travessia; Luciana Saudade; Uma história de amor; Marina,Marina; O amor e as pedras
e Rosa, vegetal de sangue.Conto: Sobre todas as coisas ou Babilônia( 1973);
Momento
Considerado por Otto Maria Carpeaux uma das maiores revelações do romance brasileiro ( neorealista ), Carlos Heitor Cony pertence ao último momento do Modernismo brasileiro, sendo por isso,
uma de suas últimas revelações. Na trilha de Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Adonias Filho,
Cony consegue mostrar suas personagens ao leitor, revelá-los a si mesmos, ainda que num ambiente
demasiadamente violento e urbano. Cony é mais um cronista urbano/suburbano carioca, pois em
seu romance, baseado em um fato verídico, a narrativa é tão próxima da realidade que nos sentimos no
Rio de Janeiro, com direito a todas as emoções que a cidade proporcionava na época. O que temos é
um romance urbano, pós-modernista, com tratamento policial, aproximado até de Agosto.
Resumo
De enredo fragmentado ( característica do texto contemporâneo ), o romance começa com a
recepcionista Rosa Maria lembrando o dia em que ganhara um relógio. Rosa é amante de Lobianco,
um cronista do jornal onde ela trabalha. Ele é casado e tem uma filha da idade de Rosa. Rosa Maria é
do subúrbio ( Quintino Bocaiúva ), tem um pai aposentado, uma mãe costureira e um irmão inútil(
Almir ) que parou de estudar. Lobianco passou a ajudar nas contas de casa, paga um colégio para
Almir e faz tudo o que Rosa pedir.
O narrador, em 3a. pessoa, onisciente, analisa a vida de Lobianco. Advogado formado, filho de
um capataz de jornal que tivera morte trágica ( chifre! ). Lobianco Filho acabou virando jornalista.
Escrevia uma coluna de assuntos internacionais. Respeitado no jornal, começou a perceber que os
melhores trabalhos, as melhores matérias nunca eram dadas a quadradões como ele, mas aos
cafajestes, àqueles que traíam as mulheres abertamente, sem o menor caráter. Os homens sempre
traem. Resolveu ter uma amante, Rosa. “ Magrinha, quase insignificante, mas tinha um jeito de andar
elegante, sensual. Os olhos eram grandes, pintados demais. Verdes, um pouco amarelos. “ Rosa
fumava com elegância, em pose copiada do cinema e das revistas de moda. Tudo que precisava pedia
a Lobianco que não dava mais o mesmo padrão de vida para os filhos porque sustentava Rosa e toda a
sua família.
Rosa morava em Quintino, subúrbio do Rio. O pai era aposentado, mas a inflação comeu o
ordenado. A mãe fazia algumas costuras para ajudar em casa. O irmão Almir largara os estudos. Rosa
era a salvação. Arranjou emprego em um jornal, não era grande coisa, mas era melhor que trabalhar no
balcão das Lojas Americanas ou nas Casas da Banha. Lobianco alugou um apartamento para a família
de Rosa no Rio Comprido.
Tudo corria bem até que, um dia, apareceu Glorinha, a filha de Lobianco, jovem e bonita, bem
mais que Rosa Maria. Rosa ficou um pouco abatida, mas reagiu a tudo com classe ( não imaginava que
Glorinha fosse tão bonita, estudante de futuro; sentiu-se mal sendo apenas uma recepcionista ).
Lobianco sentiu-se pior ainda, ele, um velho, no meio daquelas duas moças... sentiu raiva de si
mesmo.
Levou Rosa para casa e descobriu que Seu Tomás, pai de Rosa, passara mal. Lobianco entra, fala
com os pais da menina e resolve assumi-la totalmente. No dia seguinte, pede um aumento, consegue, e
aluga um apartamento só para Rosa em Botafogo. Rosa sente-se feliz, não será mais um contínuo de
saias . Vai reiniciar os estudos, fazer inglês e secretariado. Um dia, descendo para comprar um band
aid encanta-se por um caderno esverdeado “ Meu diário “ . Passa a registrar toda a sua vida ali. E
Rosa, inocentemente, gosta da nova vida. Em casa, curte Toquinho e Vinícius no rádio, às vezes, ia
ao cinema com Lobianco, gostava de Liz Taylor, queria estudar, conhecer a Bahia...
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Uma noite, com fome, depois de uma tarde de amor com Lobianco, desceu para comer alguma
coisa. Encomendou uma pizza. Mas o rapaz que veio entregar não era da pizzaria. Foi entrando e
fazendo perguntas, deixando-a atordoada. Seu nome era André, e disse que a havia observado na
lanchonete e resolveu conhecê-la. É indiscreto, petulante, quer saber de sua vida íntima. Rosa manda-o
embora, ele diz que não vai. Ela tem ódio, mas admite que algo nele a encanta. De repente, André diz
que vai embora. Sai. Rosa pensa em tudo o que lhe acontecera, anota no diário.
Um dia, quando fora ao jornal contar a Lobianco sobre a visita de André, Rosa encontrou o Dr.
Alberto, o chefão. Ele faz alguns elogios e ela sente que ele quer alguma coisa. Resolve aceitar a
paquera para ver onde ia dar ( ambigüidade ). Marcam um encontro num apartamento que o chefe
mantinha já para aquelas ocasiões.
Na pizzaria, sempre na ânsia de encontrar André, Rosa conhece Luís. Conversam sobre arte,
música, teatro... É um rapaz agradável. Rosa diz a ele que pode aparecer quando quiser, mora no 612,
despedem-se.
O encontro com o Dr. Alberto foi uma piada. Rosa compareceu, mas na hora em que o chefe
investia, ela recuava. Deixou-o tão enervado e desorientado que ele acabou ficando de quatro
beijando-lhe os pés, uma de suas taras era sapato.Rosa pede um relógio caríssimo em troca de sexo
para sempre. O velho fica indignado, mas na hora em que diz que vai fazer o que ela pedir, Rosa vai
embora e o deixa ali, no chão. Rosa vai embora vingada. Em casa, sente-se inútil “como um vegetal”.
Lobianco chegou um dia de surpresa, estranhamente, usou a chave, nunca fez isso. Parecia
desconfiar de alguma coisa. Rosa teve um certo medo. Lobianco a possui com violência. Estranho.
Depois de tudo, Rosa avalia a sua vida: que tipo de conduta era aquela. “ Não me sinto uma prostituta
“ Não amava Lobianco, descobrira isso. Luís apareceu, combinaram sair. Foram à Barra e lá
encontraram Ricardo, garotão de pinta muito suspeita, surfista e lindo, mas suspeito. Pareciam muito
íntimos...
Em casa, Rosa pensa em falar com Lobianco, precisa arranjar um emprego, não pode ficar só
pastando. Rosa vegetal. Por que Rosa? Ela precisava viver. Rosa encontra Ricardo, ele está triste e
pergunta se é verdade que Luís tem a chave de seu apartamento, ela confirma. Pergunta se pode ajudar
em alguma coisa, ele diz “ esquece” , era a gíria do momento.
No capítulo 8, típico das narrativas pós-modernistas, uma fragmentação do enredo já mostra ao
leitor Rosa assassinada. A polícia está no apartamento. Dr. Lemos é o investigador, um fotógrafo do
jornal reconhece a moça. “ Morte suspeita em Botafogo “ é o que deve sair nos jornais no dia seguinte.
Lobianco, trabalhando nas notícias do dia ( Carter, Paulo VI, Tratado de Helsink, conflitos no
Irã... ) alguém chega trazendo a notícia do crime que ocorreu em cima do cinema Ópera. Lobianco não
sabia o que fazer. Pegou o carro ( um fusca ) e saiu pensando em Rosa Maria. Dirigiu a esmo.
A investigação pega fogo. Dr. Lemos tenta achar o culpado a partir do diário deixado por Rosa
Maria. Lobianco, André, Ricardo, Luís, Dr. Alberto...aquilo ia dar um trabalho danado. Resolveu
começar pelo mais difícil, foi interrogar o Dr. Alberto, o chefão do jornal, mas não conseguiu nada,
teve que sair com o rabo entre as pernas, o homem tinha poder, o homem tinha argumento. A narrativa
segue alternada ( lembre de Agosto ).
Enquanto isso, Lobianco assimila melhor as notícias: “ morte suspeita em Botafogo “ ; “
esganada pelo amante “; “ a comerciária era sustentada por um jornalista e tinha outros amantes “ . No
fundo, sentiu-se aliviado, não teria mais que pagar o colégio de Almir. Não devia ter fugido. Voltou
para o Rio e foi para a casa dos pais da moça. Na chegada, já ouviu o velho “ O que vai ser de nós
agora? “ Lobianco diz que vai continuar ajudando. Dorme na cama de Almir a tarde inteira. Quando
acorda, o Dr. Lemos já o espera na sala. Saem. É amistosamente interrogado. Lemos não acredita que
ele seja o assassino e pede a Lobianco que o ajude a encontrar Luís, André ou Ricardo. Dois homens
passam a vigiá-lo.
Lobianco resolve ir ao apartamento de Rosa, que estava como antes, cama desfeita, restos de
sanduíche deixados pelo pessoal da perícia. Pensou em Rosa, no dia em que lhe mostrara o
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apartamento, na solidão da moça, às vezes, tentou compreender as visitas dos rapazes. Por que Rosa
ficava com ele? Pelos recibos de Almir? Ela não se prostituiria por tão pouco. Ela gostava dele? O que
é prostituição hoje? Algumas mulheres recebem presentes...Desejou Rosa Maria, mesmo morta.
Desceu à pizzaria. Lá em baixo, conheceu Luís. Falaram sobre Rosa Maria, tentando compreendê-la,
ficaram solidários. “ Afinal, quem era Rosa Maria?”
No capítulo 15, outro momento de fragmentação, temos a discussão de Luís e Ricardo por causa
de Rosa Maria. Ricardo estava possesso. “ Quem é essa piranha? “ ( pense na bicha com raiva! )Luís
não agüentou as ofensas e encheu Ricardo de porrada, murros e chutes, depois dormiu. Ricardo
levantou, pegou a chave no bolso de Luís, foi à garagem e fez uma cópia. Em seguida, pegou um par
de luvas que pertencia ao pai.
Rosa Maria fechou o diário. O sono não a deixava mais escrever. Precisava contar tudo. Mas
como contaria a Lobianco sobre Luís? Sentia nojo e medo. Lembrou do episódio com o ministro,
arranjado pelo Dr. Alberto. Lembrou do relógio que nunca teria. Lembrou do velho ministro pedindo
para que ficasse nua, lembrou da bolsada que dera no velho e dele no chão procurando os óculos. Não
poderia escrever nada disso. Era tanta coisa: André-esquece, Luís, cara bacana,Ricardo, que era
estranho, Lobianco que gostava dela. Não podia escrever nada no diário. Ela mesma fazia força para
esquecer tudo.
Rosa tentava dormir; o sono não vinha. Ouviu um barulho na porta. Só podia ser o Lobianco.
Talvez estivesse bêbado, por isso o embaraço na hora de abrir a porta. Mas Rosa conhecia os passos de
Lobianco. Não era ele. Talvez fosse Luís. Sim era o Luís. Luís voltava...Ela nunca traíra Lobianco,
mas que Luís viesse, que viesse mansamente e que se amassem como dois amigos. A mão macia,
como uma luva, alcançou o seu pescoço. “ Luís, está me machucando... não. Assim não.
Fez um gesto em direção à tomada de luz, para acender o abajur da mesinha de cabeceira. Sua
mão parou no meio. E o grito que ia soltar também parou no meio. Apenas o pensamento foi até o fim:
“ amanhã escreverei o diário: preciso viver...preciso viver... pre... “
Crítica:
Rosa, vegetal de sangue não é um romance qualquer. Em primeiro lugar, ao levar o subtítulo de
“tragédia carioca “ o livro já nos impõe uma perspectiva urbana e violenta, o que serve para atestar o
poder de registro dominado pelo autor, além de demonstrar como essa narrativa é atual. Quantas
tragédias iguais a essa vemos nos jornais diários? Inúmeras. Cony, nesse romance, no mínimo, foi
rodrigueano, ou seja, apresentou-nos a vida exatamente como ela é. O que temos é um romance neorealista ( fora daquela perspectiva de seca da Geração de 30 ) que se impõe como social. É um livro
que retrata, dentre outras mazelas como a degradação humana, a problemática da juventude “moderna
“ ( se olharmos para a época dele ) e contemporânea ( se relacionarmos com a nossa ). Cony não tem
intenção de chocar nem de causar escândalo com seu livro, mas vai direto ao ponto, narra com
objetividade os percalços de uma sociedade em que os jovens são o principal foco ( Rosa, Luís,
Ricardo, Almir etc. ). O crítico Massaud Moisés, sobre o autor, assevera: Com uma virulência,
refletida no estilo desafetado, franco de recortes coloquiais, faz o balanço da pequena burguesia
urbana decadente, uma espécie do microcosmos da condição humana, não sem apelar para
lembranças autobiográficas de permeio com o testemunho da ordem ética da política reinante nos
anos 60.
Tipo de romance que se lê de um fôlego só, talvez por causa do toque policial, pois o que temos
é um crime no qual o número de suspeitos é inteligentemente introduzido a partir de uma chave, Cony
nos apresenta uma série de personagens-possíveis: o chefe de família que está cheio de ser certinho, o
aposentado roubado e inutilizado pela inflação, o patrão aproveitador e, acima de tudo, jovens, como
Ricardo ( principal suspeito ), Almir, André, Luís e Rosa Maria, perdidos no imenso turbilhão urbano
e sem futuro de um país que parece não saber direito aonde vai.
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6 - Agosto – Rubem Fonseca
Autor e Obra
Desde o início de sua carreira com Os Prisioneiros em 1963, Rubem Fonseca vem burilando
seu texto num estilo dos mais extasiantes. Assim, procura sempre causar , a cada livro, um choque
em seus leitores. É dono de uma literatura forte, profundamente verossímil e vigorosa na
linguagem utilizada. Além disso, percebemos um texto intencionalmente imagético, tanto é
verdade que Rubem, vez em quando ainda escreve roteiros cinematográficos para produtores
independentes. Esta característica é bastante sutil, mas perceptível em suas descrições, quando
percebemos quase uma câmera perscrutando o espaço para revelá-lo, imediata ou pausadamente,
ao leitor seguindo a vontade daquele que a manuseia. Rubem Fonseca é romancista, contista e
roteirista de cinema. Contos: Os Prisioneiros ( 1963), A Coleira do Cão ( 1965 ), Lúcia
McCartney ( 1967 ); O homem de fevereiro ou março; , Feliz Ano Novo ( 1975 ), O Cobrador (
1979), O Romance Negro e outras histórias ( 1992), Pequenas Criaturas(2000), dentre
outros.Romance: O caso Morel ( 1973); A grande Arte; O selvagem da ópera ( 1994 ); Agosto (
1986 ); Buffo & Spallanzanni ( 1985 ); Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988).
Momento
Autor lançado na década de 60, período de grandes transformações sociais, políticas e culturais,
Rubem Fonseca é o que se pode chamar de autor contemporâneo. Não se pode negar, no entanto, a
forte influência exercida pelos autores do Pós-modernismo, o pessoal da “terceira fase”, 1945, como
os contistas Clarice Lispector, Dalton Trevisan, José J. Veiga, Murilo Rubião e Lygia Fagundes
Telles. Rubem Fonseca, porém, não chegou a dedicar-se ao gênero fantástico desses três últimos,
preferiu o traço urbano e psicológico de Clarice e a verossimilhança lingüística de Guimarães Rosa.
Note-se ainda, que o próprio autor faz questão de delinear-se contemporâneo, usando técnicas de
fotografia e cinema em suas descrições, apelando para a força e a utilidade da música em narrativas,
completando esta “contemporaneidade” ao escrever sobre a violência urbana e o caos cotidiano das
grandes cidades.
Resumo
O romance começa com o assassinato de Paulo Machado Gomes Aguiar, um empresário bem
sucedido, dono de uma importante empresa de exportações ( Cemtex ) que tem um vínculo meio
obscuro com pessoas influentes do governo Vargas. Fica responsável pela investigação do crime o
comissário Alberto Mattos, policial modelo, justo, honesto e competente que vive atormentado por
dores no estômago ( tem uma úlcera no duodeno ) e por sua namorada Salete, uma ex-garota de
programa que gosta dele mas tem um caso com um político importante. Mattos é respeitado e temido
por todos nas ruas, mas é odiado por todos os bicheiros do Rio de Janeiro e principalmente por alguns
policiais que se deixam corromper e exigem de Mattos que faça o mesmo.
Aparentemente, a situação é das mais normais. Um crime misterioso que será investigado por um
policial competente. No entanto, durante as investigações, com a ajuda de Rosalvo, seu auxiliar, o
comissário Mattos vai encontrar ligações entre o assassinato do empresário ( uma bichona incubada ) e
o atentado político contra o jornalista Carlos Lacerda, maior opositor do governo Getúlio Vargas. O
país já não respira um clima muito favorável. A situação de Vargas não era das melhores, por isso,
uma tentativa de assassinato contra o homem que denunciava as falcatruas do Governo podia acabar
com a calma e, principalmente, com a soberania nacional. Os dois crimes passam a ser investigados
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paralelamente. Alberto Mattos procura o assassino de Gomes Aguiar e os militares ( sempre eles ) não
deixarão que a impunidade, o banditismo e o vandalismo tomem conta do país.
Mattos faz as investigações iniciais e descobre que o morto mantinha um relacionamento de
aparências com a esposa de nome Luciana e que na realidade gostava era de homens. O corpo foi
encontrado envolto em sangue, esperma, fezes e urina, dele e de um negro que ficará desconhecido até
perto do final do texto. Alberto Mattos procura o assassino a partir de uma importante pista: um anel
em ouro, gravado com a letra F, que estava no banheiro do morto e que não o pertencia. Paralelamente
a estas atividades o comissário vive um conflito vigoroso entre a Justiça que deve prevalecer a
qualquer custo e a Corrupção que, a cada dia, toma de conta da polícia e do país.
Salete, sua namorada, é uma ex-prostituta que tem um caso com um parlamentar influente, Luís
Magalhães, pertencente ao círculo de amizades da bicha falecida. Voltando ao caso de Salete, o
deputado Luís Magalhães, fazem parte do mesmo círculo de amizades: Vítor Freitas, senador influente
( outra bicha) , Cláudio Aguiar, primo da vítima, e Pedro Lomagno, poderoso empresário que não
mede esforços para obter o que deseja, além disso, todos são acionistas da Cemtex. Pedro Lomagno,
além de tudo é marido de Alice Lomagno, moça emotiva e depressiva, ex-namorada de Mattos, e tem
um caso com Luciana Aguiar, viúva da bicha que morreu. Está armado o destroço!
Enquanto Alberto Mattos prossegue nas investigações ocorre, em Copacabana, o atentado contra
o jornalista Carlos Lacerda, maior opositor de Getúlio Vargas. O atentado resulta num erro do alvo.
Lacerda sai apenas ferido e o assassinado é o major Rubens Vaz, da aeronáutica. Isso detona uma
crise muito forte entre a relação do Governo com os militares. Exército, marinha e principalmente a
Aeronáutica tiram o apoio a Vargas e acreditam que de alguma forma ele tem culpa no atentado da rua
Tonelero. O assassinato do major aviador faz com que a opinião pública se volte mais ainda para as
falhas do Governo de Vargas e principalmente para crimes cometidos por motivação política. Está
instalada a crise. Os militares designam uma comissão de investigação e o maior suspeito é o filho de
Getúlio, o deputado Lutero Vargas.
A vida de Mattos também é um inferno e para completar, Alice, sua ex-namorada, esposa de
Pedro Lomagno, deixa o marido e pede para viver com Mattos, em seu apartamento. Salete, a “titular”,
não aceita a situação e vendo o distanciamento de Mattos, resolve fazer um despacho, botar uma
macumba para prender o seu homem. A macumbeira aconselha que ela consiga uma casca de ferida do
comissário. Salete vai fazer de tudo para conseguir seu objetivo, inclusive derramar uma panela de
água fervendo na mão de Mattos na intenção de pedir a ele a casca de ferida que virá a surgir. Esta
cena e outras da mesma natureza envolvendo o nojo, o grotesco e o asco são comuns em todo o texto,
é como se fosse um elemento essencial para a narrativa. ( depois falaremos mais disso ). O
relacionamento entre Mattos, Salete e Alice fica meio tempestuoso e isso reflete na vida do
comissário. Em meio a atestados de pobreza e residência ele tenta solucionar outros crimes, mas a
morte do empresário é o seu maior dever.
O crime fica mais misterioso principalmente com a relação que guarda com o atentado da rua
Tonelero. Mas o que a morte do empresário teria a ver com o atentado contra Carlos Lacerda? O
mistério começa a se resolver quando Mattos relaciona o anel que encontrou no banheiro da bichona
com a prisão do tenente Gregório Fortunato, chefe da guarda presidencial de Vargas, um negro alto e
forte que também usava um anel. Gregório Fortunato é preso pelos militares que também estão na
captura dos executores do crime, dois elementos de nome Climério e Alcino. Mattos vai ao encontro
de Fortunato na tentativa de interrogá-lo, mas os militares, não gostando do jeito meio comunista de
Mattos, não deixam que ele fale com o Corvo Negro. Mattos consegue o mais importante, descobre
que o anel que ele recolheu no banheiro não pertencia a Gregório Fortunato. Alberto Mattos agora
procura por um outro negro, forte e violento, o assassino de Paulo Gomes Aguiar. Mas onde ele
poderia estar? E qual o verdadeiro motivo do crime? Seria apenas viadagem? Qual a relação de tudo
isso com Pedro Lomagno e Vítor Freitas? A coisa começava a feder e Mattos não se intimidava nem
um pouco.
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Um assassino profissional, um tal de Turco Velho, foi contratado para acabar com a vida do
comissário, mas Alberto Mattos foi mais esperto e prendeu o meliante. Um bicheiro de nome Ilídio foi
quem encomendou o crime, mas esta informação fica apenas para o leitor. Alberto Mattos, na sua
ânsia de consertar o mundo comete um grave erro: prende um homem acusado de um crime e sem
fazer a investigação adequada não sabia que o verdadeiro assassino era outra pessoa, um filho do
velho que, depois do falecimento do mesmo, vem à delegacia para passar na cara de Mattos como ele
era “inteligente”, sabia tudo e não sabia nada. Mattos fica inconformado e isso vai repercutir de forma
negativa para o desenlace do romance.
Enquanto tudo isso acontece, Getúlio Vargas, sua esposa Darcy Vargas, seu filho Lutero, e sua
filha mais corajosa, Alzira Vargas, reúnem-se com os militares que pediram uma reunião com o
presidente em virtude da atual situação política do país. As forças armadas se insubordinam e
aconselham ao presidente que ele renuncie ou que ao menos se afaste do governo por uns tempos até
que tudo se acalme. Vargas, depois de uma breve relutância, reconhece que não tem muitas opções.
Aceita a imposição dos militares. Na família, ninguém concorda, mas a voz forte do presidente faz
com que todos aceitem o que o destino os impusera. Vargas, no entanto, depois de muito refletir sobre
a atitude covarde que acabara de tomar, deita em sua cama e dá um tiro certeiro no próprio peito,
deixando para a posteridade apenas um bilhete, o qual dizem hoje que nem chegou a escrever.
Se o clima já era pesado imagine agora com o suicídio de Vargas. O povo vai para as ruas
gritando o nome do presidente. Ninguém aceita o vice, Café Filho. Os militares entram em ação para
manter a ordem, mas o caos toma conta da cidade durante dois dias com prédios depredados, carros
incendiados rádios e jornais destruídos. Enquanto isso, os poderosos e corruptos se divertem em algum
lugar da cidade e pensam principalmente em como eliminar Alberto Mattos. Mas, o cerco se fecha. Os
militares prendem Alcino e Climério, os executores do crime e descobrem que Gregório Fortunato foi
realmente o mandante do atentado contra Carlos Lacerda. Gregório só queria proteger o presidente.
Mas seu gesto não foi bem visto pela família que o proibiu expressamente de ver o corpo do homem a
quem ele tanto idolatrava e servia.
O comissário Alberto Mattos, meio desnorteado pelos últimos acontecimentos e pelo crime que
insistia em não se resolver, diz que precisa ver o corpo de Getúlio Vargas porque o presidente fazia
parte de sua história ( ou da história do povo? ou da história de todos nós? ) Mattos, antes de sair, faz o
que deveria te feito há muito tempo: prende todos os policiais, inclusive Rosalvo, e solta todos os
presos. Chama outro comissário de nome Pádua e tenta entregar seu distintivo. Pádua não aceita e
pede a Mattos que vá pra casa, descansar a cabeça que ele pensará numa maneira de resolver a
situação que, diante do que estava acontecendo no país, era quase nada. Mattos inconformado vai para
casa, mas antes sofre uma crise terrível por causa de sua úlcera. Passa mal nas ruas, mas consegue
chegar até o apartamento. Lá, liga para o hospital onde está Alice, internada desde o dia em que
colocou fogo no apartamento do comissário. Depois chama Salete. Esta atende prontamente. Mattos
está muito mal, quase sem forças. Salete largou tudo. Realmente gostava de Mattos, tanto que mudou
de atitude por causa dele. Foi ao morro e trouxe a mãe para morar com ela, deu-lhe uma nova alegria,
só não queria que dissesse que ela era bonita, isso Salete não tolerava.
Salete chegou logo ao apartamento. Entrou e foi encontrar Mattos deitado na cama, sem forças.
Sentou perto dele e colocou a cabeça do comissário no seu colo. Naquele instante sentiu que o amava
mais que tudo. E recebeu de Mattos a prova maior de seu amor por ela, um embrulhinho cheio de
cascas de ferida que ele guardara especialmente para ela. Salete não se conteve de felicidade. Mattos
pediu para ouvir uma ópera antes de ir para o hospital. Adorava música e achava que aquela era uma
hora em que precisava relaxar. Salete obedece e coloca um disco na vitrola. No momento em que estão
aproveitando o Elixir do Amor, entra um negro alto e forte procurando por Mattos. Salete corre para
perto do namorado.
O negro fecha a porta. Alberto Mattos, finalmente, está diante do homem que procurava.
Francisco Albergaria, ex-pracinha na Itália, boxeador, amigo de Pedro Lomagno, que transou com
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Paulo Machado Gomes Aguiar e depois acabou com a vida da pobre bicha a mando de Lomagno, para
que a transação da Cemtex com o governo fluísse mais comodamente, e que agora estava ali,
contratado especialmente para acabar com a vida do comissário Mattos. Alberto Mattos não o
esperava, mas já sabia de tudo, tanto que tirou do bolso o anel com a letra F e o deu ao assassino, em
seguida proferindo-lhe a voz de prisão. Mas Alberto Mattos não estava em condições de prender
ninguém. Fraquejou e foi amparado por Salete e pelo próprio assassino, o que é mais ridículo. ( o final
é dotado de um humor negro fora do comum ) Chicão ( apelido do assassino ) aumenta o volume da
vitrola e com um tiro certeiro acaba com a vida de Alberto Mattos. Prepara outra bala e aponta o
revólver para Salete, mas não a mata sem antes elogiar a sua extrema beleza, logo ela que se achava
tão feia. Salete aceita os elogios do assassino e concorda passivamente em ser assassinada. Chicão
promete pra ela que não vai fazer nada em seu rosto em respeito a beleza da moça. Acerta-lhe um tiro
no peito e ela fica lá, estirada ao lado do seu grande amor.
Depois que Chicão vai embora, entra um outro pistoleiro de nome Genésio, contratado por Vítor
Freitas para também dar fim em Alberto Mattos. Genésio já encontra o serviço feito, mas vai ao
encontro dos mandantes e diz que foi ele quem matou o comissário e também a namorada. Recebe o
dinheiro e foge para gastá-lo em paz, com a consciência do dever cumprido. Depois do ocorrido, em
outro ponto da cidade, o comissário Pádua, amigo de Mattos, revoltado com o assassinato do colega, o
único policial honesto do seu distrito, mata friamente o bicheiro Ilídio, como se este fosse o verdadeiro
culpado pela morte de Alberto Mattos.
Subentende-se então que, em algum lugar, Pedro Lomagno, Vítor Freitas, Clemente e Cláudio
Aguiar estarão bebendo, divertindo-se com a morte do pobre policial certinho naquele tão conturbado
mês de agosto. Os políticos continuarão freqüentando o Senadinho, Genésio ganhou um dinheirinho
no mole, sem fazer nada, Chicão depois que receber a recompensa prometida por Pedro Lomagno vai
imediatamente para a Bahia se esbaldar de acarajé. Desenlace é a palavra chave e Normalidade é a
palavra mágica. O romance encerra com um panorama interessantíssimo da cidade do Rio de Janeiro,
no comecinho de setembro. O comércio tem um dia bom, crianças nascem, mais meninas que
meninos, como se uma nova era estivesse chegando para as mulheres, mais turistas chegam ao Rio de
Janeiro, a cidade maravilhosa, e pela temperatura amena dá para sentir que tudo está bem, tudo está
normal, o país continua do mesmo jeito de sempre. Nada de novo sob o sol.
Crítica
Concordando com Massaud Moisés, a prosa de Rubem Fonseca parece não possuir mais o traço
de mineiridade que lhe seria peculiar ( se tomarmos como exemplo Drummond e Guimarães Rosa),
pois sua ida para o Rio de Janeiro lhe causaria profundas transformações na vida e na obra. Isso fez
com que seus contos e até mesmo os seus romances recebessem uma carga muito grande do realismo e
da negatividade urbana que o Rio de Janeiro do seu tempo( por que não o mesmo de hoje ) tinha para
oferecer a qualquer contista ou cronista que ali chegasse. O Rio era o Distrito Federal, e o “detrito”
Federal, seja onde for, ferve e fede ao mesmo tempo. Diferenciam-se seus textos principalmente por
seu realismo, uma veracidade feroz, cruel, violenta, que não teme recorrer ao palavrão mais
contundente, ao baixo calão para exprimir-se, pois para quem pertenceu a uma geração que foi forçada
a calar ( ditadura ), na hora da livre expressão o que sai é um grito, um grito de denúncia das verdades
obscuras que fazem do Brasil o país que ele é, principalmente no aspecto político, na conduta
enviesada de suas autoridades e na falta de decoro e ética de nossos representantes. Agosto é um
retrato, melhor dizer um filme que serve para nos mostrar a realidade da qual insistimos em fugir. Em
Agosto de 1954, o que temos é o Brasil de hoje, de corrupção ativa e passiva, queima de arquivo,
homossexualismo, policiais corruptos, prostitutas, dramas de consciência, desavenças amorosas,
escolhas erradas, a mesmice que sempre nos acompanha.
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7 - Dizem que os cães vêem coisas – Moreira Campos
Autor e Obra
José Maria Moreira Campos ( 06/01/1914) nasceu em Senador Pompeu-Ce, mas viveu sua
infância e parte da adolescência em Lavras da Mangabeira, após residir a família em cidades da
Paraíba( Cajazeiras e Sousa ) particularmente na histórica fazenda Acauã, onde esteve refugiado o Frei
Caneca. Sempre foi muito estudioso, mesmo sem recursos. Quando mudou definitivamente para
Fortaleza, em 1930, matriculou-se no Liceu do Ceará. O pai morreu neste mesmo ano e a mãe no ano
seguinte.. Interrompeu os estudos por seis anos.
Depois, retomou-os e ingressou na antiga Faculdade de Direito, bacharelando-se em 1946. Para
ser professor, fez vestibular para a Faculdade Católica de Filosofia do Ceará ( embrião da UFC ) ,
licenciando-se em Letras Neolatinas em 1967. Ensinou nos colégio Fênix Caixeiral e Pe. Champagnat.
Ingressou no Funcionalismo Público. Tornou-se professor renomado da UFC, mais propriamente do
Curso de Letras, onde ocupou cargos de chefia de departamento e obteve indicações para reitor.
Participou da fundação do Grupo Clã com os amigos Antônio Girão Barroso e Arthur E.
Benevides. Ministrou cursos na Alemanha sobre Guimarães Rosa e Machado de Assis. Membro da
Academia Cearense de Letras e da Academia de Língua Portuguesa. Faleceu em Fortaleza, no dia 07
de maio de 1994. Obras: Vidas marginais (1949); Portas fechadas; As vozes do morto; O puxador de
terço; Contos escolhidos; Momentos (poesia); Contos; Os doze parafusos; A grande mosca no copo de
leite( 1985); Dizem que os cães vêem coisas (1993).
Momento
Ao compreendermos Moreira Campos como um autor da atualidade, presente ainda em nosso
cotidiano, como ex-professor da UFC e grande nome das letras do Ceará ao lado de Arthur E.
Benevides presidente da ACL, devemos enquadrá-lo corretamente na Contemporaneidade, ou seja,
no grupo de artistas que representa a Literatura e a arte da atualidade cearense. Não podemos esquecer
logicamente que fez parte do Grupo CLÃ e que este grupo teve suas atividades iniciadas ainda nos
anos 50 ( Período do Pós-modernismo ) , no entanto, chamá-lo de Contista de 45 parece-me um
pouco forçado, uma vez que o conjunto de idéias propostas por João Cabral de Melo Neto, Clarice
Lispector e Guimarães Rosa não era radicalmente o mesmo de Moreira Campos.
Assim, é mais adequado dizer que Moreira Campos é contemporâneo com influência Pósmodernista, isso porque cultivou o Conto, o texto denso, psicológico, como Clarice. Também porque
foi universal à Guimarães Rosa, em suas temáticas sobre a dor, a família, o sexo, e a morte ( o conflito
entre Eros e Tanatos ), além de manter a preocupação social de João Cabral de Melo Neto.
Sinopse crítica de alguns contos
1. Dizem que os cães vêem coisas
Conto de tendência psicológica e sobrenatural recheado de crítica social e sensualidade.
Temos a história de um churrasco à beira da piscina de uma casa de classe média alta. Todos estão
se divertindo, todos comem e bebem às custas da dona da casa. No entanto, quase ninguém
percebe que desde o início da festa a Morte, inteligentemente denominada Ela assistia a tudo
pacientemente e esperava. Enquanto as pessoas se divertem, mulheres conversam futilidade,
homens falam de negócios e o narrador destila a sua crítica à sociedade burguesa de qualquer
cidade, apenas os cães e as crianças percebem a chegada da estranha visitante. E neste clima de
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festa, de relações cotidianas, de gula e de sensualidade, de erotismo incontido, as pessoas ficam
mais displicentes, principalmente as mães e as babás. E é exatamente no momento em que todos
estão comendo, enchendo a barriga de peru e farofa, que sentem a falta de uma criança, Netinho,
filho de Lenita, personagem secundária funcionalmente irrelevante, pois o fato é mais importante,
que desaparece por instantes até surgir no fundo da piscina, preso à escada. Um atleta
sensualmente prestativo tenta salvar a criança, mas é inútil, Netinho já está morto. Lenita se
desespera. Em vão, Ela, que esperava há tempos, veio em busca de algo e acabava de levar. O
mais interessante é que quase ninguém percebeu sua presença, apenas as crianças que silenciaram,
por medo ou respeito, e os cães, dotados de estranhas faculdades, que latiam o tempo todo ante a
presença daquele ser transparente, fluídico e Eterno.
2. A gota delirante
Este é um dos contos mais perfeitos e conhecidos de Moreira Campos tamanha a
intensidade com que o foto é narrado. O que temos é a história de um jovem, estudante de
direito, denominado economicamente de “moço “ pelo narrador, que vive um grande dilema
quando passa a morar na casa de um primo e conviver diariamente com a beleza despudorada
e tentadora da mulher do mesmo. As coisas ficam piores quando o primo passa a viajar muito
a trabalho ( é engenheiro importante ) e a esposa fica a cada dia mais provocante. O moço é
envolvido diariamente por ondas de prazer num solitário desejo de possuir a mulher do primo,
por isso a expressão “gota delirante” tem tudo a ver com o começo de um orgasmo masculino
ou feminino, cientificamente conhecido como lubrificação. O tormento do moço é maior
porque as atitudes da mulher, apesar de casada, são muito provocantes e aparentemente
intencionais, a cada atitude, na porta do banheiro aberta a propósito ao desligar o sensual do
aparelho de TV; isso é o que mais o perturba. Por fim, depois de tanto desejo contido sem
nenhum sucesso, chega o dia em que o fato é consumado e mais por iniciativa dela. Transam
loucamente e ele encerra em seus braços, exausto, sugado até a última gota, e talvez ela
também o esperasse há muito tempo, pois são muito fortes as marcas de unhas em suas costas.
3. Profanação
Este conto apresenta a história, um tanto grotesca, do namoro de dois jumentos, começando na praça
para terminar dentro da igreja. O narrador descreve passo a passo todo o desenrolar dos fatos,
principalmente, a torcida dos homens no bar observando o grande evento. De repente, os animais
entraram na igreja e foram parar ao lado da sacristia. Padre Rolim esbravejava – Xô demônios!. Os
animais não ligavam. No momento, apenas a beata Inacinha tentava rezar. Não consegui, pois ficou
hipnotizada assistindo ao coito profanador que acontecia à sua frente. “ A penetração profunda, que
lhe dera estremecimentos, a contração da fêmea, os movimentos rápidos. A própria Inacinha sentira
um dilaceramento íntimo...” como se fosse com ela. Ao final, o padre Rolim lava a igreja e pede à
prefeitura e à polícia que tomem providências. A jumenta é recolhida. A cidade volta ao normal.
4. Irmã Cibele e a menina
Nesse outro conto brilhante, e erotizante, de Moreira Campos, o que temos é a história de uma
menina que, depois da morte da mãe, sem nenhum parente, é entregue a um convento, sob a
responsabilidade de irmã Cola. A menina está ficando moça, e o que tem de mais bonito são os
cabelos, sempre elogiados, principalmente, por irmã Cibele, uma das freiras recentes. Irmã Cibele acha
a menina encantadora. Irmã Teresa, a inspetora, não gosta de irmã Cibele. Tem motivos... Tudo se deu
com a cumplicidade da tarde. Irmã Cibele alcançou a menina no corredor do dormitório. “Seus seios
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estão ficando lindos...” Levantou-lhe a roupa e começou a beija-los. A menina sentia cócegas... Agora
está sentada na cama e rói a unha.... a blusa ainda úmida pela saliva de irmã Cibele.
5. Os doze parafusos
Com uma vaga inspiração em James Joyce ( A volta do parafuso ), este é um dos contos
mais intrigantes ( psicológico ) de Moreira Campos. A história gira em torno da figura de uma
mulher, casada, jovem ainda, que já passara um tempo internada em um sanatório. A cunhada
a infernizava. “meu irmão é um mártir!”. O marido arranjou uma amante. Ela passou a sofrer
mais ainda. Em casa, acusavam-se, a relação não fazia mais sentido. Os filhos sofriam. A
briga aumenta dentro do quarto. Ela chama o marido de idiota e a amante de puta. Um dia,
pensando na vida e no que sofria, depois de entregar os filhos à vizinha, desatarrachou os
doze parafusos da janela e atirou-se do oitavo andar. A cunhada, no outro apartamento, dizia:
Ela sempre foi assim , exaltada. Meu irmão foi um mártir.
6. Os moradores do casarão ( Já utilizado pela UFC)
Mais um texto denso no qual Moreira Campos demonstra a sua maestria, principalmente na regra
maior da narrativa curta que é a capacidade de mostrar os “flagrantes” da vida, de uma vida provável (
ficção), mas realista na apresentação dos fatos. O que temos é a história de Violeta, um casarão e sua
lembranças. Violeta é a irmã mais velha de um professor decadente de conduta relaxada que tomou a
criação do irmão para si como se fosse a mãe ( não teve filhos ). Moram em um casarão imundo e
fétido ( o velho penico cheio de mijo e restos de cigarro embaixo da cama), os passeios da velha com a
negra mais nova ( tinham duas empregadas e um jardineiro ). Uma amiga diz que a vida dela dá um
romance ( a vida opulenta de outrora e a decadência de hoje... ). Tudo foi se acabando. Os mortos
enfeitam a parede. Violeta lembra das festas em casa, do casamento que a família foi contra. Nunca
teve filhos. Anos depois estava separada.O marido mudou de cidade e de vida tornando-se um grande
advogado. Violeta engorda lambendo os dedos sujos de manteiga. Tudo é silêncio. O casarão foi o que
restou. O texto encerra com Violeta, gorda de propósito, tentando fechar a janela de onde vem uma
fria corrente de ar. A morte talvez lhe dê descanso.
7. Lama e folhas
Nesse conto, de grande densidade psicológica, o que temos é a história de um pai, um
comerciante, ex-escriturário que deu um desfalque no banco em que trabalhava, mas que agora
dedicava-se ao trabalho e à família, a esposa Marta e às filhas, mas faltava-lhe algo. Engendrara
seguidas vezes cinco meninas, ou seja, não possui um filho varão. Finalmente, para sua alegria nasceu
o primeiro menino, Eduardo. Sua vida mudou completamente. Tornou-se mais alegre e dedicava-se
dioturnamente ao filho. Se os filhos se danavam brigava apenas com as meninas,pois o menino era o
“queridinho”. Brincava com ele, divertia-se com suas perguntas infantis. Pai, quem fez as formigas?
Um dia, trabalhando em um balanço para um cliente dá-se conta de que esquecera o filho por duas
horas! A mãe também procura o menino. Todos se assustam. Onde está o Dudu? Chamam o
empregado para que ajude a procurar o menino. Dudu não está em lugar algum. Faltava procurar em
um único local, na piscina. O velho empregado dirige-se à piscina. Quando volta, pela sua expressão,
já é perceptível saber o que foi encontrado. O pai, no entanto, exige-lhe uma resposta, mas pede-lhe
que diga que encontrou apenas lama e folhas, lama e folhas...
Crítica
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E assim serão os demais contos desse volume: cheios das particularidades de Moreira Campos (
erotismo, sobrenatural, social, superstições, cultura nordestina, crítica social, descrição de costumes,
psicologismo e paixão pela língua portuguesa dentre outros aspectos ). Ler Moreira Campos é entrar
em contato com tudo isso, com Fortaleza e as pessoas que nela vivem, mas que apesar do tom
provinciano, tem um caráter universalizante fora do comum. Vimos o sobrenatural universal em
Dizem que os cães vêem coisas quando temos a figura da Morte, personificada no pronome Ela; eis o
Universal e a Linguagem. É também um autor crítico da sociedade ( da Burguesia, seguramente ) e se
assim não fosse, por qual motivo colocaria em seu texto a mãe desesperada pela morte do filho com a
boca cheia de farofa? E que choque social ele provoca entre o Peru ( comida de rico ) e a farinha (
comida de pobre ). Eis a burguesia, a classe remediada, retratada em todas as suas contradições, seja
no Ceará, das Lavras da Mangabeira, seja no Rio de Janeiro, em um bairro luxuoso.
Moreira Campos também retrata aspectos culturais do povo nordestino, a priori o cearense, seus
mitos, suas superstições presentes em um cotidiano que tantas peculiaridades nos trazem. A tristeza, o
Sexo e a Morte sempre têm lugar em seus textos, seja por um caráter biográfico ou simples reforço do
psicologismo inerente ao pós-modernismo que muito o influencia, para não nos demorarmos em suas
fontes exteriores como F. Dostoiévisk e N. Gogol.
Grande exemplo disso temos no texto dos cães e em Lama e folhas, onde podemos perceber que a
morte de crianças é um de seus temas mais recorrentes ( acontece em outros textos ).Por último, dentre
outros aspectos que nos custa enumerar, Moreira Campos é um autor da Carne, do erotismo, da
sensualidade, e não o faz apenas por ser homem ( e homem normal é meio tarado ), mas por princípios
estéticos e estilísticos. Assumidamente, temos um autor erótico e erotizante, que em cada gesto de suas
personagens, do garçom ao guarda-livros, da freirinha mal resolvida à prima deliciosa, das virgens
aspirantes ao sexo à mulher casada insatisfeita, consegue fazer de sua literatura, com requintes de arte,
sem pornografia, sem vulgaridade, a maior “transa” de sua vida.
8 - A Casa - Natércia Campos
Sobre o título
Querendo dizer exatamente o que é, esse título nos lembra uma casa, a casa de todos
nós, um lugar onde nascemos, onde crescemos, somos felizes, onde adoecemos e onde
morremos geralmente. É um título que nos faz pensar sobre a nossa própria casa, sobre os
segredos que toda família tem, sobre as pessoas que nela habitam, algumas transparentes, e
por isso boas, outras acinzentadas e melancólicas, algumas de olhar sombrio, e por isso
más, outras misteriosas, dadas ao mundo místico... gente comum como todos nós. Na casa de
todos nós sempre existe uma tia Alma, um Bisneto escondido, um Custódio por nascer...
O Pós-modernismo e a Literatura Contemporânea
Natércia Campos pertence a um momento denominado Pós-modernismo ( na visão
mediana do vestibular ) , e à Contemporaneidade ( no modo acertado de ver as coisas no
terceiro grau ), estando ao lado então de Virgilio Maia, Airton Monte, Adriano Espínola,
Linhares Filho, Horácio Dídimo, Pedro Salgueiro e até de Paulo Coelho, pois há quem
goste. Essa contemporaneidade é que faz com que a autora trabalhe o incomum em crise com
o cotidiano, a família e as relações humanas, a partir do que acontece com as pessoas e com
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as coisas, afinal de contas, o tempo sempre passará, e assim como o mundo, sempre será
diferente, o que não muda nunca é o homem, sempre propenso ao medo, a angústia, a
solidão e ao tédio, pois sempre será carente de afeto, de cuidados, de carinho, de amor e de
respostas para os seus infinitos questionamentos. Natércia, se um dia não lhe fizerem
enquadramentos, será creditada até lá como uma autora pós-modernista ou contemporânea,
influenciada por gênios do conto como Machado de Assis, Eça de Queirós, Clarice
Lispector e seu talentoso pai, Moreira Campos, de quem conseguiu diferenciar-se ao
mergulhar no desafio de escrever romances.
Autora e obra
Natércia Campos nasceu em Fortaleza, a 30 de setembro de 1938, “na beira do mar da Praia de
Iracema, em casa com cheiro de maresia e flor, povoada pelas criaturas fictícias” inventadas por seu
pai, ídolo e mestre Moreira Campos, um dos maiores contistas brasileiros, autor de Dizem que os
cães vêem coisas. E como ele mesmo dizia, e nem ela mesma sabia, ali já existia uma “contadora de
histórias”. A menina praiana cresceu, trabalhou na cultura cearense, casou e teve seis filhos. Sem
negar-lhe influência, a autora seguiu, na prosa, a trilha iluminada do pai. Seu primeiro conto
publicado foi A Escada (1987), de teor sobrenatural, escrito em Barcelona, um dos mais elogiados, o
que fez com que partisse para o seu primeiro livro. Depois, em 1988, graças ao Prêmio Nestlé de
Literatura, o Brasil e o Ceará, principalmente, passaram a conhecer a arte literária de Natércia
Campos. Agraciada com o primeiro lugar na categoria conto, Natércia, com o livro, Iluminuras,
apenas confirmava aquela velha máxima: “Filho de peixe, peixinho é “. Em 1998, ela ganha o Prêmio
Osmundo Pontes de Literatura pela maestria do romance A Casa, a confirmação de sua genialidade.
Trabalhou durante muitos anos na Secult, colaborando com o desenvolvimento de nossa cultura.
Entrou para a ACL, eleita por unanimidade, em 2002. Doente há alguns anos, mas dotada de uma
fortaleza extraordinária, faleceu em 2004, deixando uma obra curta, mas tão significativa quanto a sua
estada entre nós.
Natércia e o olhar dos amigos
“Um filósofo amigo nosso em comum, dizia que a Natércia parecia uma mulher de romance. E eu
acrescento: uma heroína forte e, ao mesmo tempo, suave e misteriosa. Uma figura iluminada”. (Regina
Fiúza – Escritora e diretora da ACL))
“Eu queria usar uma expressão muito usada na família da minha mãe, a delicadeza de sentimentos.
Natércia, pra mim, encarna essa delicadeza de sentimentos; mas, ao mesmo tempo, era uma mulher
forte”. (Ângela Gutierrez – Doutora em Literatura Brasileira )
“Meu consolo é que ela tenha deixado de sofrer. E outro consolo é que o nome dela vai ficar,
definitivamente, com o romance A casa‖. (Sânzio de Azevedo – Historiador e crítico literário)
“Urge ver o que está dito e o mistério tecido em tudo que escreveu. É preciso palmilhar as palavras e
os seus significados em Iluminuras, Por terra de Camões e Cervantes, A Noite das fogueiras e A
casa‖. ( João Soares Neto – Escritor e Jornalista)
Obras:
Conto: Iluminuras (1988)
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Crônica: Vôos.
Romances: A casa; A noite das fogueiras.
Narrativas de viagem: Por terra de Camões e Cervantes, Caminho das águas.
Análise
Narrado em primeira pessoa, pois é a própria casa quem nos conta a história, o romance
nos oferece o desafio da credibilidade, pois na dialética do “ponto de vista”, os olhos da
casa passam a ser os nossos olhos. Crendo nela é que poderemos saber o que houve na
fazenda das Trindades. O texto começa em forma de flash-back.
“As madeiras de lei duras e pesadas com que me construíram até a cumeeira têm o cerne de
ferro, de veios escuros, violáceos e algumas mal podiam ser lavradas. Todas elas foram
cortadas na lua minguante para não virem a apodrecer e resistirem, mesmo expostas ao
tempo...”p.7
Marcada pelas superstições desde a sua construção ( madeira escolhida na lua minguante
) ao seu batismo, quando deram-lhe o nome de Trindades, depois de Casa Grande, ungida
pela primeira chuva que lavou suas telhas, a casa nos conta sobre os seus primeiros
moradores, família portuguesa que trouxe, para juntarem-se às daqui as suas superstições e
crenças religiosas.
A normalidade de sua existência é quebrada com o nascimento de Bento, um menino que
tinha estranhos poderes, pois “chorara no ventre da mãe”. Cresceu místico, adivinhando as
coisas e curando pessoas quando lhe era permitido. “Filho desenganado não se deve fazer
promessa para ele se salvar. É entregar nas mãos de Deus. Prefiro chorar a morte do que a
sorte – Há de ser o que Deus quiser!”. Dizia o Bento.
Em seguida, resgatando a cultura popular ( com a história da menina dos cabelos de
capim ) e reavivando as superstições de toda a gente ( brancos, índios e negros ) a casa
segue a sua narrativa, aumentando o interesse do leitor em torno de sua figura e das entidades
que dela fazem parte, como a presença constante Moça Caetana, representação sertaneja da
Morte, também denominada Ela. ( uma segura alusão ao pai, Moreira Campos, em “Dizem
que os cães vêem coisas” ).
Os fatos ocorridos na casa são os mais inusitados como por exemplo o dia em que um
morcego chupou o sangue de uma criança, uma cena tão impressionante que nos sugere uma
rápida alusão ao romance A Fome, de Rodolfo Teófilo, um dos nossos maiores autores
naturalistas, que apresenta em seu grande texto uma situação semelhante. Lembremos que,
com a novela Violação, o baiano Rodolfo Teófilo, ao lado de Oliveira Paiva, é um dos
precursores do Fantástico no Ceará. Nessa hora, em tom de advertência, a casa analisa o
comportamento do ser humano.
“ Aprendi que os homens não percebem o que lhes pode suceder dentro de suas casas... aquela
massa em movimento de cor marrom-pardo, sobressaía ainda mais no branco véu. Conseguira
entrar na rede e se arrastara desequilibrado, tateando pelo pequeno corpo, aprumando suas
membranas, dando curtos saltos na tentativa de vôo e por fim sugou-lhe o sangue.Só eu
assistira ao tatear bambo e lento do morcego sobre seu corpo.” p. 24
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A casa passa a lembrar da doce Tia Alma ( seu nome verdadeiro era Maria) , chamada
assim porque também era devota das Santas Almas Benditas do Purgatório. Era na verdade
uma solteirona da família que também tinha esses dons sobrenaturais. Quando criança, por um
descuido da mãe, pegou “um vento” e uma série de seqüelas. Dizia: ”Não me casei por
culpa do vento”.Ajudou a criar os vários sobrinhos e afilhados tratando-os como filhos.
Também advertia que não se deve passar a mão nos cabelos depois de ter tido um sonho bom,
pois o mesmo virá a se perder, esquecido na memória...
Tia Alma morreu ao pôr-do-sol de uma tarde bela e calma. Anos depois de seu
sepultamento, quando a família quis mudar os restos mortais de lugar, ao abrirem o caixão, o
corpo estava extraordinariamente intacto, desfazendo-se em pó com um simples vento, aos
olhos incrédulos dos parentes. ( Tal fato insere de vez o romance no Gênero Fantástico e no
Realismo Maravilhoso ) Depois, ela também virou uma sombra, correndo pelos cantos da
casa... as almas apegam-se às paisagens e às casas. Quando acendemos uma vela, dela se
acerca uma sombra. ( Nesse momento, advertimos para a coincidente relação, nesse
vestibular, entre as personagens Tia Alma e Ana Terra, pois apresentam algo em comum:
uma estranha e mística relação com o vento que está no começo de suas vidas e,
principalmente, ao final).
A casa também revela que, naquela família de tantas gerações, viu retornarem, repetidas
vezes, em outras pessoas, os mesmos gestos, os mesmos olhos, as mesmas dores etc. Dentre
estes ela viu chegar o Bisneto, menino “estranho”, que vivia olhando o céu e mirando-se em
espelhos, pois era vaidoso. Devia ter uma irmã gêmea, mas sugou a força da irmã ainda na
barriga da mãe. A menina morreu e ele assimilou dela toda a sensibilidade e sutileza que
tanta dor lhe causaria em família. (Observe-se a forma sutil como a autora aborda o tema da
homossexualidade.
Em primeiro lugar é eufêmica, adotando o mesmo “modo de ver” da gente do sertão (que
ele sugou a sensibilidade da irmã), mesmo que, biologicamente falando, conhecesse o nome
técnico desse tipo de problema: mosaicismo, uma rara disfunção que faz com que, no caso de
gêmeos, um se nutra da seiva do outro levando o mais débil à morte. Depois disso, o Bisneto
estará exposto às condições comuns do naturalismo.
“Era o Bisneto ainda um menino quando com um primo mais velho, embaixo do vão da
escada, praticaram a posse inversa. Ninguém os viu, só os ventos e eu testemunhamos. Era o
Bisneto o invertido. “ p32
Deve ser observada nesse momento a maneira como a autora trabalha o
homossexualismo, uma das temáticas mais utilizadas na literatura contemporânea. Em A
casa, talvez pela conduta mística do povo do sertão ele é principalmente “estranho”. Juntando
as duas coisas, homossexualismo e literatura, encontramos uma significativa alusão a Oscar
Wilde, grande nome da literatura inglesa, também amante das artes, da pintura, da fotografia
e de orquídeas, como o Bisneto. Essa postura “diferente” é reforçada principalmente com
indicações como essas: “Olhava o céu e dizia: É mais bela a vida acima dos telhados do que
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embaixo deles. Bisneto, dizia isso, em nossa opinião, porque, de alguma forma, talvez por sua
acurada sensibilidade, soubesse que não fazia integralmente parte desse mundo...
O Bisneto era adorado pelo avô, e com a morte do velho português toda a herança lhe
fora dada. O Bisneto passou a ser dono de tudo. Intrigantemente, o Bisneto passa a ser um
coronel “diferente” dos outros que povoam o imaginário sertanejo e a nossa literatura. É um
homem bom, justo e sensível que gosta de flores e de literatura. Adorava orquídeas, tinha
uma porção delas pela casa.
Nas horas de insônia, o Bisneto escrevia histórias, mas só ele e a casa sabiam. Fazia as
histórias e “contava como se fosse só para mim” diz a casa em sua narrativa de segredos. Uma
das histórias que a casa mais gostava era a do menino do rasto de pluma que vivia com a
mãe no Reino das Pedras. A casa segue enfrentando intempéries ( chuva, o vento,
terremotos, nuvem de morcegos..) e povoando-se de gente, de superstições e de demônios
como o Trasgo(Demônio sensualista que beliscava as mulheres à noite), a Velha do Chapéu
Grande(a Fome) etc.
Com o tempo, morando na Trindades, porque ali fora enterrado o seu umbigo, resolveu
mudar para o solar da serra. Deram-lhe por lá, como afilhada, uma menina chamada Eugênia,
que nascera empelicada.. ( A placenta gruda no corpo do feto e o pelico, geralmente, fica em
volta da cabeça. O nome Eugênia, nesse caso, é muito significativo, pois chama-se eugenia,
em Biologia, tentativa de aperfeiçoamento dos órgãos e das funções do corpo humano).
Um dia, O Bisneto chegou trazendo um amigo que pintava tudo o que ele pedia. Era
um rapaz de talento, muito “íntimo” do Bisneto. Trouxe um desenho do Solar, a casa do avô
que ficava na serra. O Bisneto pediu que pintasse a casa, e ele pintou. ( Esse mesmo
quadro, como o punhal de Pedro Missioneiro em Ana Terra, passará de pai para filho
durante várias gerações )
Depois, pintou, com a ajuda do espelho, um quadro com o rosto do Bisneto ( relacione
com O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, também um texto do gênero fantástico) .
Na família nem todos viram com bons olhos aquela “amizade”, mas todos calavam diante da
bondade e da autoridade do Bisneto. ( Nessa hora, o patriarcalismo parece meio invertido,
pois um “coronel delicado” é quem manda em tudo). Passavam horas deitados em suas redes
no alpendre. O Bisneto pediu, certa vez, ao campeador de gado que contasse a história do
“encoletado” em couro. (E ele contou, dando ao romance um caráter polifônico, pois mais
de uma voz fica responsável pela narrativa). O passador de gado era exatamente o menino
órfão que tia Alma dissera que uma mão invisível balançava na rede, a mãe dele, que nunca
abandonou o filho.
Era a história do Capitão Longuinho, homem tirano, de muitas posses que casara com
uma jovem que lhe encomendara o pai. Mas a jovem tinha um primo, e alguém soubera que
entre os dois houve coisas no passado... ( Amor de primo e de prima, coisa comum em
qualquer casa...) Cegos pela paixão, acharam que poderiam ser um do outro. O Capitão pegou
os dois. E pela manhã de um dia, estava o rapaz amarrado e seguro pelos jagunços. A jovem
sofria nas mãos do marido que, com golpes de faca, arrancou-lhe todo os cabelos, uma
verdadeira desgraça. Em seguida, mandou encoletar o rapaz com um couro de novilha recém
arrancado. O rapaz foi empacotado com o couro e, costurado, foi jogado ao sol. O efeito viria
aos poucos. O capitão sentou bem próximo, na sombra, e ficou esperando a morte horrível
que se abateria sobre o rapaz. Enquanto o sol ia ficando cada vez mais escaldante, o couro ia
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curtindo e apertando o corpo do infeliz amante. O sol queimava o couro, o couro engelhava, e
o rapaz acabou espremido dentro da roupa de couro, a ponto de o sangue explodir pelas
brechas da costura. Morte horrível. O vaqueiro, apiedado do corpo do jovem, que ficou
jogado aos bichos, deu-lhe um enterro decente. Daí por diante, dizem, passou a ter a proteção
daquela alma. O pintor também fez o retrato do passador de gado acocorado.
A casa relata agora o nascimento de Custódio, filho de uma jovem íntima da família, e
por isso também protegido do Bisneto. Ganhou esse nome porque também teve dificuldades
no parto. Nessa hora a mãe o maldiçoou. Custódio era estranho, de nascimento estranho,
quase morrera no parto. Tinha seis dedos. A mãe o detestava, como se adivinhasse desgraça
futura. Se alguém vem marcado, é porque Deus o quer assim. O filho seria o seu desgosto.
Custódio era o tempo todo enxotado, mas, de madrugada, corria para o quarto da mãe e
dormia aos seus pés, encolhido, como um bicho (naturalismo) Antes de ela acordar, ele se
retirava. Seus belos olhos azuis eram misteriosos. A mãe o perturbava. Apenas a casa viu no
dia em que tentou acariciá-la, a desgraça ainda viria. Já rapaz, tentou agarrá-la (Complexo de
Édipo). Ela o repeliu. Os irmãos de Custódio casaram. Ele foi o último.
A casa nos diz que “o tempo vive em roda a girar, a repetir-se como um velho
desmemoriado. Faz reaparecer os mesmos atos, dramas, situações. “. Nasceu e morreu, nesse
tempo, um jovem louco que ficou anos trancafiado e acorrentado em um quartinho fora da
casa (retrato da ignorância da gente do sertão em relação à Loucura). Havia na casa também
uma senhora de nome Cosma, mãe de Francisco, o menino que morreu no açude, deixando
aquele local assombrado. Moravam ali também Maria e Emerenciana, esposas dos irmãos
de Custódio, e esta última alegrava-se em perturbar a vida de Maria, que acabará
enlouquecendo, pelo fato de não poder ter filhos. Quando o Bisneto subiu a serra levou
consigo o Custódio. Lá, sua afilhada Eugênia ficou presa aos olhos azuis do Custódio.
Casaram-se. Tiveram três filhas: Ana, Beatriz e Elvira. Depois veio um menino.
A vida em família fizera bem ao Custódio, mas não se diga que deixou de ser “estranho”.
O que mais se estranhava, embora fossem coisas de pai, era o carinho com o qual tratava a
filha Ana, que aos poucos ficava mocinha. Mas a menina crescia encolhida pelos cantos,
demonstrando um certo medo do pai. Tempos depois, o mesmo acontecia a Beatriz e Elvira,
embaixo das ventas da mãe, que nada reparava. Custódio voltava a ser o que era, ou nunca
deixara de ser: louco e pervertido. Abusava sexualmente das três filhas.
O tempo continuava sua volta. Um dia, as filhas quebraram o silêncio e Eugênia,
também em silencio, separou-se do Custódio e subiu para o solar com o Bisneto e as filhas
para não dar nas vistas. Todos calaram. ( Esse fato deve ser relacionado com a idéia da
violência contra a mulher, principalmente as violências sexuais ). Morre a mãe de Custódio.
Isso lhe trouxe terríveis sofrimentos. Custódio passou a rezar o dia inteiro, virando beato e se
martirizando pelos caminhos. Tempos depois, desapareceu totalmente da Trindades. Nunca
mais foi visto.
O Bisneto desceu do solar e veio, adoentado, para o lugar onde nascera, já seguro pelas
garras da Moça Caetana. Trouxe consigo Eugenia, sua fiel afilhada. Ã noite, Eugênia lia as
histórias do Bisneto, como a do “menino do rasto de pluma”. Ele adorava. Dizia: “É mais
bela a vida acima dos telhados que debaixo deles”.
Agora, com a ajuda de Eugênia, conta a história desse menino que vivia sozinho com a
mãe, no meio da mata, no Reino da Pedra, e, por ter a passada suave, era o maior caçador da
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região. Mas a mãe possuía outro amor, o pai do menino, um cigano, com o qual o menino não
se dava; isso o fazia sofrer (Novamente o complexo de Édipo) . E o menino saiu pelo mundo,
tornando-se grande caçador. E depois de tanto virar sem rumo, encontrou a morte no bote de
uma cobra grande, deixando-lhe apenas o rasto pegado no chão... morrera talvez de propósito,
não tinha mais por que viver.
Na tarde seguinte a essa história, diz a casa, o Bisneto chamou Eugênia e deu-lhe o
quadro que representava a pintura da Trindades. Depois, o Bisneto viu quando Ela chegou,
entrando pela casa ( relacione com Dizem que os cães vêem coisas ). O espelho trincou de
cima abaixo e ele a encarou de frente, sem medo. A casa volta a fazer reflexões sobre a vida,
sobre o tempo, sobre o material de que foi feita. Fala do gemido do açude que sempre lhe
anunciou as mortes, como a de tia Alma e de outra jovem chamada Maria, que se enforcara
porque não conseguira engravidar. Lembra de seu primeiro dono, o português Francisco José
Gonçalves Campos ( Interessantemente, o nome verdadeiro do avô de Natércia, uma leve
nota de biografismo ). O tempo passa depressa. Estamos de novo no tempo real. Fim do
flash-back.
Nesse momento, entra na casa uma jovem, também chamada Eugênia, que visita o
lugar que, durante muito tempo, foi a morada de sua família, de sua bisavó Ana ( a filha mais
velha do Custódio ). Ela está com o namorado. Passeia pelos quartos, principalmente os mais
abandonados, onde ainda se pode ver e ouvir as sombras... Quando sem, a porta se fecha
sozinha... Alguém chama Eugênia para fora e avisa: “A grande barragem será construída em
torno deste remanso. A Casa irá para o fundo das águas.” Sem muito discutir, assim foi feito.
Ao final, mediados por esse aspecto meio teológico (Gênese, origem da casa, e
Apocalipse, o dilúvio do final, provocado pela retirada da pedra que represava o rio), com as
palavras da própria casa, passamos a entender a perenidade daquele lugar ( lembremos que
a casa é espaço, personagem e narrador dentro do texto ), pois “não há morte para as
lembranças” quando temos a sua transformação em um “quadro vivo” que lembra o outro
encomendado pelo Bisneto:
“Próximo à Hora Grande da meia-noite, por brevíssimos instantes, as águas adormecem.
Sonho então, sob a luz das estrelas, que sou uma fluida aquarela a espraiar-se refletida no
cristal das águas”
A casa, impedindo que qualquer outra consideração seja feita, numa confirmação da
forte tradição oral que permeia o romance, ainda encerra com a maneira peculiar dos
grandes contadores de história:
E como encontraram
tal qual encontrei
assim me contaram
assim vos contei.
Observações!
1. Romance fantástico (realismo-mágico) de tonalidade regionalista.
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2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Romance de fundação ambientado no Nordeste colonial.
Comparado às grandes rapsódias: As mil e uma noites e Calila e Dimna.
Presença de índios (Pitiguaris), portugueses e negros (Discurso étnico).
Romance de costumes.
Narrativa policromática, sinestésica e plástica.
Forte presença da cultura popular.
A casa é personificada como em O cortiço. A diferença é que o cortiço não
narra a sua própria história.
9. A casa é personagem e espaço.
10. A motivação para esse livro, possivelmente estava no romance O mundo de
Flora, depois que Moreira Campos disse que a casa de Flora parecia uma
coisa viva.
11. Metáfora de permanência de valores culturais e morais através de objetos
(quadro da casa).
9 - A palavra e a PALAVRA – Horácio Dídimo
Autor e Obra
Horácio Dídimo é professor aposentado da UFC. Mestre em Literatura Brasileira e Doutor em
Literatura Comparada. Tem vários livros publicados ( poesia e literatura infantil ) e muitos ensaios.
Participou e participa da evolução da poesia cearense, representando o grupo SIN e o estado em toda a
sua extensão poética. É um poeta acima de tudo místico ( surrealista e religioso ), mas voltado para a
simplicidade das coisas, para a sutileza que a própria poesia nos exige. Livros: ( poesia ) Tempo de
Chuva/ Tijolo de Barro/ A palavra e a palavra/ A nave de prata/ A estrela azul e o almofariz ( prosa )
O passarinho carrancudo/ Historinhas cascudas/ Reinações do rei/ historinhas do mestre jabuti. As
harmonias do pai-nosso/ Crítica: Ficções lobatianas/ D. Aranha e as seis aranhinhas.
Momento
Definitivamente contemporâneos, Horácio Dídimo pertence ao SINCRETISMO, grupo literário
da literatura cearense. O Sincretismo pregava a mistura, a mescla de formas e conteúdos poéticos, e
mesmo que alguns integrantes não assumissem a postura de engajamento muitos de seus textos deixam
transparecer a influência de uma época muito difícil da história do nosso país, pois as atividades do
grupo situam-se nas décadas de 60 e 70, período conturbado da Ditadura Militar. Horácio e seus
companheiros, como por exemplo Pedro Lyra, Linhares Filho, Carlos Dálge, Batista de Lima, Rogério
Bessa e Barros Pinho , viveram numa época em que “ser ou não ser” era realmente a questão, ou seja,
viveram literalmente entre o Sim e o Não.
Análise
O título
Quanto ao título de seu livro, o que devemos supor é exatamente o que ele nos sugere, ou seja,
que a palavra deve ser valorizada. Em primeiro lugar porque é palavra poética e não deve ser menos
valorizada que outra. No entanto, quando se pensa a estrutura do livro, ou seja, a arrumação do texto
na página ( atitude concretista ), percebemos que a palavra em minúscula ( do poeta ) é
complementada pela palavra em maiúscula ( palavra de Deus ). Devemos, então, ler a palavra do poeta
e tentar compreendê-la a partir da interpretação que fizermos da palavra de Deus. Sabemos que
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entender a palavra de Deus é difícil, mas como bom pai que Ele é, no mínimo, só pode expressar aos
filhos duas coisas: advertência ou conforto. É isso que está contido na palavra de Deus que mais serve
ao homem.
Primeira Parte: tempo de chuva
I - as doces meninas de outrora
as doces meninas de outrora
amanheceram
vestiram os vestidos novos
pintaram as unhas de vermelho
por um instante resplandeceram
depois baixaram as cabecinhas louras
e envelheceram como as flores
( EIS O QUE VOS DIGO, IRMÃOS: O TEMPO É BREVE Cor.7,29)
Comentário: Este poema fala sobre fugacidade, sobre a efemeridade das coisas e da vida,
principalmente da Beleza, como se dissesse que algumas mulheres crescem rápido demais, se
arrumam, são idolatradas por algum tempo, mas depois sucumbem na sua própria futilidade. A palavra
de Deus faz uma advertência como se dissesse ao homem para utilizar melhor o seu tempo e suas
qualidades, pois o tempo é breve. Pode ser relacionado com os livros Lucíola e Rosa, vegetal de
sangue.
II - o emparedado
muro
muro
muro
muro
muro
muro
muro
muro m ( urro )
( EIS PORÉM QUE SOBREVEIO UM ANJO DO SENHOR E UMA LUZ ILUMINOU A PRISÃO
At 12,7 )
Comentário: Poema que subentende, não obrigatoriamente, o clima de repressão vivido pela geração
de Horácio Dídimo ( o SIN ). O que temos é o emparedamento do homem, daquele tempo ou de hoje,
a pressão cotidiana da vida. O homem está sem saída. Ou ele reage ( murro ) ou ele grita, denuncia (
urro ). O poeta escolhe a denúncia, velada, subentendida por causa da época. A palavra de Deus
aparece como um conforto, ou seja, quando estiver sem saída, quando as coisas estiverem ficando
“pretas”, a luz chegará, seguramente a palavra de Deus.
Segunda Parte: tijolo de barro
I - a princesa
a princesa mandava no céu e no mar
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no tique-taque do relógio
no leve farfalhar do bosque de malmequeres
a princesa sobraçava uma ânfora de penas
onde estavam escritas as mutações do dia amanhecendo
as horas de pouco caso
e os pequenos minutos verdejantes
a princesa antes ninguém a conhecesse
( A MULHER QUE VISTE É A GRANDE CIDADE AQUELA QUE REINA SOBRE OS REIS DA
TERRA Ap 17,18)
Comentário: Texto que demonstra o caráter infantil e bíblico da obra de Horácio Dídimo, a influência
de Monteiro Lobato e Câmara Cascudo. No entanto, com a interpretação da palavra de Deus, embaixo,
pode ser feita uma relação até mesmo com a Repressão.
II - um dia
um dia
quando as coisas melhorarem
eu vou me deitar em algum lugar
onde haja um céu bem grande sobre a minha cabeça
e a lua apareça de repente sem cerimônia
um dia quando as coisas melhorarem
eu vou morrer de achar graça
( TRIUNFE EM VOSSOS CORAÇÕES A PAZ DE CRISTO. Cl 3,15 )
Comentário: Um dos poemas mais interessantes do poeta. Este é um texto que passa uma
positividade, um texto que dá força ao leitor que, nos momentos de maior atribulação já sabe a quem
recorrer: a um bom texto e, principalmente, a Deus.
Terceira Parte: o passarinho carrancudo
I - a palavra chave
a palavra chave
já não fecha
nem abre
a palavra amor
muda de cor
a palavra verde
amadurece
a palavra ave
voa no papel
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( CALEI-ME, JÁ NÃO ABRO A BOCA, PORQUE SOIS VÓS QUE OPERAIS Sl 38,39 )
Comentário: Texto que enfatiza o “ poder da palavra “ professado pelo poeta francês Mallarmé. É
também um texto que, somado ao caráter religioso demonstra que o homem deve saber calar-se,
principalmente nos momentos em que Deus se manifesta.
II - o sol existe
ainda que seja noite
o sol existe
por cima de pau e pedra
nuvens e tempestades
cobras e lagartos
o sol existe
ainda que tranquem o nosso quarto
e apaguem a luz
o sol existe
( A PAZ DE DEUS QUE EXCEDE TODO O ENTENDIMENTO GUARDARÁ OS VOSSOS
CORAÇÕES E OS VOSSOS SENTIMENTOS EM CRISTO JESUS. Fl 4,7 )
Comentário: Texto que envolve bastante sutileza, a contemplação da natureza, mas que, somado ao
momento em que viveu o poeta, a repressão dos anos 60 e 70 pode ter uma leitura um tanto
subversiva. Ou seja, apesar de tudo, dos porões, da pouca luz e da violência, o fato de saber que o sol
existe é uma alegria muito grande, confirmada pelo teor confortante da palavra de Deus logo abaixo
Crítica
Particularmente, considero este livro o mais difícil da lista da UFC. Em primeiro lugar, porque é um
livro de poemas, de metáforas, de conotação a toda prova, e isso torna as palavra do poeta mais
“complicadas” para alguns candidatos, principalmente aqueles mais racionais e insensíveis. Em
segundo lugar, se é difícil entender a palavra do Homem, imagine entender a Palavra de Deus!. Este
livro é um grande desafio. Mas, é bom que se perceba que se compreendermos um pouco o que há
nesse livro, entenderemos um pouco mais de nós, da Bíblia, livro maior da Literatura, e até de Deus.
Para quem duvida que isso aconteça provarei isso agora. Vejamos. Quando um pai conversa com seus
filhos qual o significado de suas palavras, qual sua intenção? É tão simples. Um pai conversa com o
filho em duas posturas: advertência ( Estuda, filho, se queres passar no vestibular! ) ou conforto ( Se
não deu para passar dessa vez, filho, não tem problema; a vida continua e muitos vestibulares ainda
virão. Anima-te! ). Não é diferente o que Deus tem para nos dizer através dos poemas de Horácio
Dídimo.
Na verdade, o livro deve ser lido e entendido, no mínimo, respeitando a plurissignificação
inerente ao texto literário, como a soma de duas Palavras: a palavra do Homem, que busca
sustentação, base, na Palavra de Deus. A Palavra de Deus vem logo abaixo do poema, pois representa,
no mínimo, a fé. Sem Deus, que nos sustenta, não somos nada, não ficamos nem em pé, por isso
calamos quando Ele nos fala.
Afora essas considerações, devemos atentar para as características particulares do autor Horacio
Dídimo, por exemplo:
1. O aspecto Infantil ( nas temáticas, às vezes, sobre crianças, às vezes, sobre princesas etc. )
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2. O tom Filosófico-Teológico ( exige, às vezes, a reflexão sobre as coisas e os seres )
3. O tom de Prosa ( tonalidade narrativa )
4. O uso da função Metalingüística
5. O aspecto Popular ( temáticas da oralidade, ditos e cultura popular. )
6. O tom de Sutileza ( sentido íntimo e infantil das metáforas )
7. O tom de Melancolia ( surge, às vezes, quando o momento vivido pelo poeta, a repressão, se
instaura de forma subentendida no poema Ex. o emparedado )
8. O tom Social ( nem sempre perceptível)
10 - Palimpsesto – Virgílio Maia
“Manuscrito em pergaminho que os copistas medievais apagavam para neles escrever de novo e no
qual, modernamente, se tem conseguido avivar os primitivos caracteres ”. ( p 933, dicionário brasileiro
contemporâneo. )
Autor
Virgílio Maia nasceu em Limoeiro do Norte ( Ce ), em 1954, e depois mudou-se para Fortaleza. É
advogado, poeta e ensaísta, principalmente, poeta escolhendo o soneto ( composição clássica ), como
forma de expressão, divide seu tempo entre leis, cordéis, poemas e letras de músicas. Virgílio Maia é
dono de uma escrita a um tempo íntima, a um tempo coletiva, é exatamente o “homem do mundo”
sugerido por Baudelaire. Seus textos tem um quê de desconhecimento e um quê de revelação, pois
ama a História e sua história, além da história das coisas e das pessoas que conhece. O título
palimpsesto confirma essa postura. Tem publicados: Palimpsesto(1992); Álbum de iniciação a
Heráldica das marcas de ferrar gado; Espanha – Doce ciudades Y una aldeã; Via-sacra sertaneja;
Inscrição Mural; Palimpsesto e outros sonetos (1997);Estandarte das tribos de Israel; Cartilha;
Timbre; Recordel (2004).
Momento
Um dos amigos mais chegados da contista Natércia Campos, Virgílio Maia, assim como seus
colegas de letras, deve ser enquadrado no rol dos escritores de hoje, na Contemporaneidade, esse
momento em que vivemos, no qual a marca registrada passou a ser a intertextualidade, a
transversalidade, demonstrada por ele ao abarcar tantos assuntos, principalmente históricos, em seus
poemas. É um autor de olhar contemporâneo ( como em Um bujão de gás ),mesmo que lhe seja
inegável o apreço que tem pelas incidências do passado ( Canudos não se rendeu).
Análise
Poemas importantes
1 O circo está indo embora ( p. 9 )
Pousada no banquinho que domou
tantas vezes o mesmo leão manso
a magra trapezista tem descanso
no suburbano Circo de Moscou.
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Paciente, terrestre e maternal,
amamenta seu filho enquanto um ganso
sai correndo em ridículo balanço
das folias do mono em carnaval.
Perseguindo quimeras pelo espaço
parte em sonho levando todos os seus
argonautas de um mesmo madrigal.
Vai-se mambembe, a tantos tão igual,
na aparente alegria do palhaço
e nas lonas dobradas dando adeus.
Comentário:
Poema de tonalidade irônica e melancólica, apresenta o contraste comum da vida: alegria e dor. Notese, porém, que esta antítese vai ao extremo quando temos a “aparente alegria do palhaço” lembrando
até um dos mais famosos sonetos sobre o assunto ( O palhaço ) de autoria do cearense Pe. Antônio
Tomás, sobre um palhaço que,mesmo tendo motivos para chorar precisava exercer sua função, fazer
rir.
2 Xilogravura ( p 10 )
Queda a caiada tábua sobre a mesa,
pura e sã qual papel antes da tinta
ou quadro de pintor que se requinta
em deixar sua tela sempre ilesa.
Cortante canivete, a ponta acesa,
Traça-lhe entalhes, mossas, sem que sinta
Transformar-se da tábua a singeleza,
O que ela já talvez não mais pressinta.
Insculpido, um poema se repete,
E dos talhes do tosco canivete
Salta um mundo de santos e dragão,
Que mal-agradecidos, sem demora,
Cavalgando cordéis se vão embora,
Deixando suas lascas pelo chão.
Comentário:
Poema que apresenta um flagrante da vida, ao mesmo tempo em que materializa a abstração da arte,
remonta a “Profissão de Fé”,(poema parnasiano) do próprio fazer artístico, em um tipo de
homenagem a duas de nossas artes marginalizadas, o Cordel e a Xilogravura, representada no livro
pelo artista e literato Audifax Rios.
3 Canudos não se rendeu ( p 16 )
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- Foi ontem, claro dia de mais sol
( me haviam dito: tudo se findou;
que o futuro da gente se acabou
não havendo sequer mais um farol).
Mas foi ontem um dia luminoso;
Fui ao trabalho em alta andaimaria
E vislumbrei de lá,ao meio-dia,
Sobrepujando um tempo desditoso,
Eu pude ver, não se entregou ainda,
Ainda peleja, a luta não é finda,
Belo Arraial de Sempre onde se viu
Ser o homem possível. Pois foi isto
Que noutro dia me afirmou ter visto
Um operário em construção civil.
Comentário:
Poema que justifica o apelo histórico do título, o que temos é um tipo de exaltação ao movimento
social encabeçado por Antônio Conselheiro, pois a luta pelo direito de viver, e ser livre, está embutida
no próprio título, uma alusão a Euclides da Cunha, em seu último capítulo de Os Sertões. A expressão
“Arraial de Sempre” comprova a perenidade do tema. Canudos é eterno como o sertanejo é
imorredouro.
4 Padaria Espiritual ( p 25 )
Vinte e cinco de março, 1007;
Corre tranqüila a brahma no balcão,
É quase meia-noite e um violão
Em batidos acordes se repete.
Esta velha bodega tem caminhos
Ecos da noite desta Fortaleza;
E se da madrugada faz-se presa,
Não se contém a cana dos burrinhos.
Bar afamado, não lhe sei rival,
Onde se encontra, todo santo dia,
A fina flor da vasta boemia,
Recebendo contrita e mui louçã,
A batuta de Monsieur Vincent,
A comunhão do pão espiritual.
Comentário:
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Poema também de tonalidade histórico-lierária, o que temos é uma louvação à boemia e à Padaria
Espiritual, maior agremiação literária do Ceará. São rasgos de lirismo permeados pela boemia das
noites e dos bares de Fortaleza, seja a antiga, de Adolfo Caminha, Quintino Cunha e Barbosa de
Freitas, seja a atual de Virgílio Maia ou Airton Monte.
5 Iluminura ( p 60 )
Num velho manuscrito medieval,
recoberto de pó, de muito tempo,
inda rebrilha, em verde sem igual,
o Santo Graal com uma história dentro.
Na emoção caligráfica da uncial,
Diz o texto do amor, contado vento,
Da demanda sem fim de Percival,
Ou dos simples preceitos de São Bento.
Bordada à mão com tintas multicores,
Guarnece o texto a bela iluminura,
sonhando mundo de um sonhado zôo.
Noites em claustros, pensamentos, dores
Se uniram da beleza ba procura,
Nas cores todas de um dorido vôo.
Comentário:
Este poema, bem como ouros do mesmo feitio e temática, tem como objetivo homenageara autora
Natércia Campos, pois foi com Iluminuras que se deu sua estréia. Encontramos aqui a temática
maravilhosa, a busca pelo cálice de Cristo , cantada ao longo dos tempos, confirmando o apreço da
autora pela literatura sobrenatural.
6 O Quinze Revisitado ( p 75 )
Percorro novamente este romance
espiando seu áspero caminho
de fome e seca e sol sem que me canse,
pois retirante vou em redemoinho.
Cumprindo minha sina,lance a lance
Na paisagem queimada em desalinho.
De repente me areio e num relance
Não sei mais onde estou nem adivinho.
Olho sedento os secos carrascais,
O seixo reluzente, este universo
Onde tudo é tão cinza e nada vinga.
47
De onde a chuva se foi, não volta mais,
Bebida para sempre neste verso:
Vastidão arranhenta da caatinga...

o derradeiro verso foi tirado do romance ( capitulo 17 ).
Comentário:
Também feito com o sentido de ode, este soneto procura justificar o valor de Rachel de Queiroz e de
seu livro, também perene como Os Sertões, mas que precisa, vez por outra, ser revisitado, para que
nunca esqueçamos de que ali registram-se as impressões mais doloridas de nossa gente e da caatinga.
7 Um bujão de gás ( p 32 )
Prateado, bojudo,gordo, anão,
num escuro recanto relegado,
humilde é Prometeu acorrentado
por plástica corrente a um fogão.
Traz no bojo ancestral ignição
ofertada da chama no azulado
na memória assoprando inesperado
espeleológico arco de um tição.
Reside nele a flama do carvão,
labareda eternal em combustão,
homenagem de fogo a quem ousou;
Homem primevo, rude antepassado,
que acendendo o futuro, desgrenhado,
num gesto só o fogo arrebatou.
Comentário:
Novamente, em perspectiva antropológica, principalmente histórica, o autor nos apresenta um
flagrante cotidiano, plástico, de um a natureza morta dos dias de hoje: a imagem calada de um bujão
de gás. No entanto, ao remeter-se ao fogo, aos ancestrais ( homem primevo), ao mito (Prometeu ) o
cotidiano é recheado de referências intertextuais típicas da literatura de hoje.
11- A Luneta Mágica – Joaquim Manuel de Macedo ( RJ, 24/06/1820).
Autor e Obra
Formado em medicina, chegando até mesmo a clinicar, enveredou por muitos caminhos.
Foi jornalista, redator, professor, dramaturgo, poeta, biógrafo, memorialista, orador e
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deputado de província. Em 1852, em sua residência, montou uma tipografia, onde passou a
ser impresso o jornal liberalista A Nação. De 1850 a 1881, ocupou cargos públicos como
suplente e deputado. Sua vida doméstica não é muito conhecida; o que se sabe é que casou-se
com a jovem Maria Catarina, inspiradora do romance A Moreninha, prima do poeta Álvares
de Azevedo, com a qual não teve filhos. Político liberal e, por isso, um dos primeiros autores
a usar a Literatura como arma abolicionista ( Ex. As Vítimas Algozes ), era respeitado por
todos que o conheceram à época. Estimado pelo imperador “ artista “, D. Pedro II, foi
professor das princesas Isabel e Leopoldina. Levou uma vida tranqüila até que, por conta de
uma dívida, viu-se na miséria morrendo em seguida, a 11 de abril de 1882. A esposa, sem
recursos, passou a receber uma pequena pensão mensal concedida pelo próprio imperador.
Sua obra é composta de: Romances: A Moreninha – 1844, O Moço Loiro – 1845, Os Dois
Amores – 1848, A Luneta Mágica – 1869, As vítimas-algozes – 1869, A Namoradeira – 1870
e outros. Conto: Os Romances da Semana – 1861, Memórias da Rua do Ouvidor – 1878
Poesia: A Nebulosa – 1857, Mazelas da Atualidade – 1867 Teatro: O Cego – 1849, Cobé –
1855, O Fantasma Branco – 1856, Luxo e Vaidade – 1860, O Novo Othelo – 1863 e outras
peças.
Momento
Pela data de publicação e pelo assunto tratado no texto, levando em consideração todos os
elementos de composição e a tessitura das idéias, estamos diante de um representante do Romantismo.
Mas cuidado! Não é o romantismo nacionalista da primeira fase com Gonçalves Dias, nem a “ morte
por Amor” proposta pelos byronianos da Segunda Geração como Álvares de Azevedo; é um
romantismo mais observador da sociedade e de seus costumes, observador do homem, da mulher e de
sua conduta, observador das diferenças sociais e dos problemas de ordem pública inerentes a qualquer
país ou estado. É um romance social e “costumbrista”, um texto de análise sobre os costumes de uma
época que, à moda balzaquiana ( Honoré de Balzac – FRA ) pinta um quadro de cores um pouco mais
vivas sobre a sociedade carioca da época.
Resumo
1a. Parte – A visão do Mal
Na primeira parte, com uma breve introdução, o leitor é apresentado ao jovem Simplício
(
guarde este nome, ele é tudo para o entendimento do texto) que por conta de uma miopia em alto grau,
é tomado de profundo pessimismo.
― Sou míope, pior do que isso, duplamente míope, míope física e moralmente. ( ... ) Nasci sob a
influência de uma estrela maligna, nasci marcado com o selo do infortúnio ― .
Narrando em 1a. pessoa, o protagonista nos fala de sua incapacidade de distinguir Inocência de
Malícia.
Órfão de pai e mãe aos doze anos, ficou aos cuidados de uma tia, Tia Domingas, mãe de Anica, e
do irmão mais velho, Américo, do qual dependia para tudo. Domingas, além de cuidar da filha, o criou
49
e também ao mano Américo. O irmão mais velho, Américo, muito mais esperto passou a tomar conta
dos negócios da família, portanto, gerenciava a parte da herança que cabia a Simplício. Simplício
dependia de todos na casa, pois não enxergava bem, ou melhor, quase nada. Américo, cuidando de
“seus” interesses, era os pés e mãos de Simplício , como ele mesmo dizia: um santo!. A tia era uma
religiosa devotada e a prima, tão pudica que o ato mais libidinoso que fizera foi dar a mão para um
homem beijar. Mas, ainda assim, cercado de bondade e de santos, Simplício ainda se sentia mal,
praticamente cego, um inútil, um estorvo. O que fazer para contemplar as belezas do mundo?
E sua vida seguia assim, monótona, escurecida pela cegueira moral e pela cegueira física, até que
um dia, inesperadamente, foi indicado para fazer parte do Júri popular, posição que nem todo mundo
tinha direito, apenas gente que possuía “ senso” : comum, raro ou apenas bom. E há diferença entre
eles!
― ... eu podia ser jurado!...eu tinha senso comum, condição exigida pela lei‖.
Mas ao exercer suas obrigações a cegueira o atrapalhava. Foi quando um colega de júri, um velho
de nome Nunes, falou-lhe sobre um homem chamado Reis que poderia sem demora restituir-lhe a
visão. Simplício ficou interessadíssimo e, logo que pode, foi com o Nunes ao armazém do Reis.
Ao chegar, ficou decepcionado porque nenhuma das lentes vendidas na loja serviram para ele.
Vendo a tristeza de Simplício, e por sua insistência, o dono do armazém mandou-o ao encontro de um
armênio, mestre de alquimia, cabala e bruxarias que morava num quartinho nos fundos da loja. O
misterioso armênio o recebeu e disse que voltasse mais tarde, à meia-noite, um horário mais propício,
sabia o que ele queria e iria atender ao seu apelo. Ele voltaria a enxergar, porém mais do que deveria...
À meia-noite, Simplício, Nunes e Reis, presenciaram o ritual assustador presidido pelo armênio
que culminaria na criação de uma luneta, mágica, ofertada especialmente a Simplício, mas não sem
muitos avisos...
― Esta luneta é a maravilha da magia; por ela verás demais no presente e poderias ler no futuro;
mas o teu coração é bom, e a tua alma é pura; criança, além do número de três minutos está a Visão
do Mal, que o meu poder de mágico não te pode impedir; a visão do mal é a vingança da salamandra
escrava ( presa dentro da lente) , mas a fixidade desta luneta além do número de treze minutos é a
vidência do futuro, e essa eu ta impeço, Caschiel! , Schatiel!,Aphiel!,Zarabiel!; eu ta impeço , criança
louca: esta luneta fixada além de treze minutos se quebrará em tuas mãos! ―
Ouvindo os conselhos do armênio, Simplício foi para casa e não conseguiu nem dormir na
esperança de usar a luneta no dia seguinte.
E mal o dia raiou, sentindo-se como Eva, em pecado, fixou sua luneta mágica na aurora. Os três
primeiros minutos foram êxtase, nada no mundo era mais belo que o alvorecer e ele, só ele, era dono
deste segredo, a luneta era única! Mas, em seu íntimo, algo o impelia para além dos três minutos.
Simplício desobedeceu ao armênio e a luneta mágica mostrou-lhe a verdade sobre a aurora...
― ... vi os raios de ardor desastroso que crestam as plantas e preparam a miséria e preparam a
miséria e a fome; vi raios que pela insolação tinham de produzir a loucura. (... ) vi o sol – não fonte de
vida – mas senti a sua força atrativa forjando só os terremotos, os cataclismos, o horror... ( ... ) meus
Deus! Como a aurora é enganosa e falsa...!e como o sol é feio, terrível e mau! ―
Era a força da luneta mágica, a visão do mal se processando, a visão do íntimo das pessoas e das
coisas, a verdade! Simplício estava assombrado, não resistiu mais, passou a fixar a luneta em tudo e
em todos para saber-lhes as verdadeiras intenções, mas com cuidado para não exceder aos treze
minutos ditos pelo armênio.
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Primeiro, fixou a luneta em seus parente e assustou-se com o que viu:
I – Anica
― Passados três minutos, não lhe vi mais o rosto nem a figura, vi o coração e a alma; o coração era
uma pedra de gelo; a alma era o espírito reduzido a cálculo. ( ... ) No seu coração li a indiferença e a
tristeza, na sua alma a ambição de um marido rico... ―
II - Américo
― E passaram três minutos, oh! Minha cega e imensa credulidade! O político patriota era apenas um
ambicioso vulgar! ( ... ) Américo queria subir, queria ter influência...
( ... ) Américo não me ama, mas
olha-me com piedade, creio que não me deixaria morrer de fome, creio...
III - Tia Domingas
― ...a tia Domingas é invejosa e má, detesta as moças porque é velha;( ... ) Tem no mundo um amor, é
sua filha; aborrece Américo ,mas finge que o estima para ver se consegue casar Anica ou com ele ou em
último recurso comigo...
E daquele momento em diante, não encontrou mais ninguém que fosse digno de confiança. Todos
eram maus, interesseiros, aviltadores e sacrílegos. Simplício chegou a bendizer a visão do mal que o
fazia mais esperto, mais preparado para enfrentar as maldades que se operam no mundo.
Simplício sentia-se bem, seguro contra as atrocidades do mundo e a falsidade das pessoas, mas até
que ponto este dom de ver bem as coisas o faria feliz se só conseguia comprovar-lhe que ninguém
prestava, que todos ao redor lhe desejavam o mal, mentiam para ele? Nos parentes não confiava, o
Nunes era um interesseiro, os médicos, políticos e advogados as piores classes de gente e as mulheres,
oh! engano, umas falsas... até a aurora o enganara...
O pior foi que toda a sociedade voltou-se contra ele, o enxotavam e maldiziam ,pois o achavam
louco e dono de um poder , longe da magia, de macular, distorcer, criticar e ridicularizar todos que
fossem vistos por ele e sua horrível luneta. Para a sociedade não havia mágica alguma, mas um doido
que, possuidor de um lente de grau apurado, poderia vê-los em poucas vestes ou nenhuma. Isso era
inaceitável! Queriam a cabeça de Simplício ; pior, queriam a destruição da luneta mágica.
Sem aceitar o que diziam dele e sem compreender que a luneta o poderia estar ludibriando, fixou,
com a ajuda de um espelho, em si mesmo, a luneta mágica...
― Vi a minha perversidade! Meu Deus! Isto é necessariamente mentira ,ou castigo, meu Deus! Eu
não sou assim!... ―
Depois de ver como realmente era, caluniador e inimigo dos parentes e de quem gostava dele,
soltou um grito de pavor ,quebrando entre os dedos a luneta mágica, e , com a mão sangrando foi
deitar-se, em dolorosos soluços, aos gritos de:
-
Perdão! Perdão! Perdão!
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Segunda parte: A Visão do bem
Novamente, em uma pequena introdução, Simplício nos conta de seu estado, depois de quebrar a
luneta mágica. A visão do mal sobre si mesmo o deixara atormentado, por isso, durante os oito dias
que e seguiram ao fato, passou enclausurado em casa, com medo e acima de tudo, com vergonha de
tudo o que lhe acontecera. E lamentava a todo instante o fato de ter perdido a lanterna mágica e junto
com ela a pouca visão que possuía. Pensava em sair à rua, mas mudava de idéia. Mais de mil vezes
pensou em ir procurar novamente o Reis e o armênio, mas o medo de ser apontado na rua como louco
e ser mandado a um hospício o atormentava: isso pra não falar do vexame que seria aparecer
novamente na loja do Reis querendo uma luneta nova. E ficava entre o medo de ser internado como
louco e o vexame de se sujeitar-se à nova experiência. Aos poucos foi vendo que um vexame de vez
em quando não fazia mal a ninguém.. e quanto ao medo de que o internassem em um sanatório, até
isso já esmaecia. E naquele momento, Simplício via como a sua cidade era cheia de incoerências,
cheia de defeitos.
― Eu creio pois que não há lugar nem cidade como o Rio de Janeiro, em que se possa ser impunemente
e sem inconveniência pessoal, não somente excêntrico e maníaco: mas até doido, completamente doido,
contanto que se traje de paletó escovado e se tenham meses ou dias de lucidez. ( ... ) E lá se vão oito dias!
Em oito dias, regenera-se o político que a opinião pública, irritada, condenou. ―
Em seguida, depois do caso da luneta, Simplício deixou de ser uma ameaça à população para
transformar-se em NADA! As pessoas o ignoravam totalmente, e isso também o irritava , pois se a
popularidade é pedestal, a indiferença pode ir mais alto ainda. Um dia, depois de muito refletir sobre a
indiferença que sofria, encontrou o Reis. Devido ao seu estado de miopia, só o reconheceu pela voz,
não via quase nada. Desta vez o Reis que o procurava para dizer-lhe que estranhamente no dia em que
Simplício quebrara a luneta o armênio veio ter com ele. “A salamandra libertou-se. Seu míope
quebrou a luneta mágica. “
O mais intrigante ainda estava por vir. O armênio o esperava , sabia que Simplício queria procurálo, por isso mandou dizer que viesse logo, pois ele receberia uma nova luneta agora muito mais
potente que a outra.
Depois de algumas reflexões, Simplício estava resolvido a visitar o armênio e dependendo do que
fosse acontecer, de posse de uma luneta mais poderosa ainda que a primeira, contaria a todos na
cidade das maravilhas que se processavam no armazém do Reis, bem ali, na rua do Hospício. O
armênio era um bem para a humanidade e não podia ser privilégio de poucos.
Simplício vagou pela cidade noite adentro, observando a pobreza da vida humana. Casas de jogos,
prostitutas, mendigos, lixos, velhos ricos, jovens viciosos, champagne e sexo. Às três da madrugada
foi para a casa do Reis. O armênio já o esperava e repreendeu-o com o que fez com a primeira luneta,
mas disse que aquilo já era esperado, como também a volta de Simplício ao seu gabinete. Depois de
um rápido diálogo, o armênio sentenciou:
― Pedes uma luneta mágica que te será fatal como a primeira ―
Simplício foi obrigado a vestir uma túnica branca, pois estava de preto e o preto não era bom para
um Domingo. O ritual se repetiu nas mesmas linhas do primeiro, mas desta vez, foi mais intenso. Ao
final, o armênio, antes de cair em sono profundo disse:
― Terás a visão do bem e hás de ser por ela infeliz; verás demais no presente e poderia ver no futuro
fixando-a por mais de treze minutos... esta luneta quebrar-se-á em tuas mãos antes do décimo quarto
minuto de fixidade. ―
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Simplício foi para casa ansioso para testar a sua nova luneta. Em casa, os parentes ao saberem que
a nova luneta continha a visão do bem, pediam para ser observados, mas Simplício relutava. Mas por
dentro, queria utilizá-la em alguém.
― A visão do bem! Deve ser deliciosa! Mas não a quero! Não sou criança tola; sou homem de juízo e de
força de vontade, não quero a visão do bem! ―
Mas quando resolveu publicar num jornal as maravilhas do armazém do Reis, fixou a luneta, e viu
que suas palavras eram palavras de amor pela humanidade. Tinha consciência do bem que fazia... dali
para os parentes foi um pulo.
I . Anica – Um anjo de inocência e simplicidade, e ao mesmo tempo, uma senhora de juízo reto e de
exemplar virtude. ( ... ) Vi a minha imagem na alma de Anica... um amor desinteressado e puro.
II. Tia Domingas – Era a devoção, a piedade personalizada... era a caridade do evangelho.
III. Américo – É o tipo de dedicação fraternal, vive pensando em mim, negociando por mim,
explorando em meu favor... aumenta a sua fortuna jogando com o meu dinheiro, mas quando há
lucros meu irmão os reparte comigo.
E Simplício achou-se feliz. Via tanta gente boa ao seu redor... “O Alcazar ( famoso cabaret da
época ) me pareceu enfim uma bela instituição filantrópica e filosófica. “ Os homens eram sempre
bons e as mulheres que mirava, sem exceção, eram belíssimas e cheias de virtude. Até uma prostituta
de nome Esmeralda, sob a visão do bem, era a mais correta e doce de todas as mulheres. Agora, o
maior problema: Simplício não conseguia esquecer Anica nem Esmeralda , nem dona Ana, filha do
Nunes, visto antes como um traidor e agora o mais nobre de todos os homens e o mais fiel de todos os
amigos tamanha era a força da visão do bem. Simplício estava gostando de todas as pessoas que
encontrava e amando todas as mulheres que via, e já eram mais de vinte!
Simplício, antes rejeitado, agora angariava amigos como nunca. Todos o queriam por perto ou
apenas ficar perto dele. E sempre que ia beber, pagava uma rodada para os amigos, que não eram
poucos. Se ia a um bom restaurante estava sempre acompanhado de amigos, e alguns já costumeiros.
Havia sempre alguém para avisá-lo sobre os aproveitadores, mas ele não se importava. A visão do bem
o guiava. Assim, fazia favores; emprestava dinheiro e assinava letras ( promissórias ) como a que
assinou para o Nunes salvando-o de uma dívida e da vergonha pública. E quem não o faria a pessoa
tão boa?
O pior aconteceu quando ao passear pela cidade e ver os presos na casa de correção, não
conseguiu ver neles mal algum. Eram todos homens de bem, ninguém era culpado de nada. Aquilo o
perturbou. Pensou um pouco e foi procurar os magistrados porque poderia ter havido algum engano no
julgamento dos processos. Mas os juizes também estavam certos, justos e corretos em seus
julgamentos. E agora? Simplício entrava em crise. Será que não havia mais maldade no mundo? Será
que a luneta mentia novamente?
―Não há sabedoria de homem que possa comparar-se com a sabedoria do armênio. O armênio me
avisou e não mentiu. A visão do bem pode fazer mal. ―
A medida que os dias iam passando, a visão do bem tornava-se mais imponente e desastrada.
Quando ia sair de casa era um martírio porque todas as roupas que escolhia pareciam boas. À mesa,
não podia escolher a comida porque acabava em dúvida sobre o melhor... não comia nada.
53
“Era o bem mais maléfico que se pode imaginar. “
Simplício continuava dominado pela visão do bem. Contribuía com tudo, dava dotes, colocava
pontos em rifas, cotas de alforria, letras para amigos, benefícios para cegos, aleijados e afins...
bebidas, jantares e charutos. Mas, valia a pena. Eram todos boa gente, a luneta assegurava isso.
Simplício já gastara bem mais do que deveria. Logo precisaria pedir dinheiro ao mano Américo e o
irmão não concordaria porque já havia advertido sobre seus gastos com pessoas inescrupulosas que
estavam se aproximando da sua inocência. Mas, Oh! sorte! Foi apresentado ao mais nobre, benéfico e
generoso e gentil capitalista da cidade. Que lhe foi emprestando dinheiro a juros de 3% ao mês, em
letras garantidoras da dívida. Tudo voltava ao normal.
Um dia, teve uma surpresa. A letra assinada em favor do amigo Nunes foi executada. E os
cobradores bateram-lhe à porta. A família ficou estupefata, o mano Américo mais ainda. Américo
pagou em silêncio o valor da dívida para depois conversar a sós com Simplício. E foi uma chuva de
impropérios, xingamentos e escárnios a ponto de Américo trocar-lhe até o nome de Simplício para
Inocêncio ( isso é observado por todos os editores e críticos ) Os parentes depois de tanta asneira,
queriam trancafiá-lo e principalmente quebrar-lhe a luneta. Apenas Anica foi contra esta última
atitude.. Mas ninguém era capaz de convencê-lo de que o amigo Nunes deixara de pagar os dez contos
de reis de propósito. A visão do bem não me engana!
Não agüentando a pressão, Simplício foge pela janela do gabinete e vai para um hotel. E lá,
desfrutando dos três dias que provavelmente teria antes de ser internado pela família, aproveitou um
pouco de descanso. E tome mais dinheiro. Gastava com tudo e com todos e além dos gastos normais,
passou a dar dinheiro a todos que vinham pedir. As pessoas inventavam tudo, um parente doente, a
falta de uma perna ou algo mais sério para tirar-lhe o dinheiro e ele não ligava, e nem via estas
intenções. Era avisado, mas não ligava. A visão do bem o iluminava. As pessoas inventavam tudo.
Mas felizmente, o dinheiro acabou. O irmão não lhe daria nem mais um centavo. Não tinha mais
nenhum guardado, o que tinha era o resto de sua herança, mas também não podia usufruir sem a
chancela ( autorização ) de Américo. Procurou os amigos, certo de que saberiam reconhecer a sua
necessidade. Mas nada, fugiam dele como o diabo da cruz. Não entendia. E depois de muito vagar e
sofrer, parou numa ruela e viu um enterro que passava. Fixou a luneta no defunto.
―Eu vi, eu senti, compreendi a morte, que se patenteou tal qual é, a visão do bem! (...) A morte é
o Jordão que lava as culpas...A morte é glória ...A morte é luz...‖
Simplício estava decidido. Queria morrer, esquecer tudo. O suicídio era a saída. E afinal a morte
era tão bela ...Atravessou a cidade a caminho do Corcovado, o ponto mais alto que conhecia. Foi
subindo. E, no caminho, encontrou um colono, guarda dos aquedutos. Conversaram sobre a vida, sobre
os sofrimentos dela, sobre o trabalho e de como era difícil viver. O colono, contrariando o pessimismo
de Simplício , apegava-se à vida com gana porque tinha mulher e filhos, e o melhor de tudo, não tinha
ambições, era conformado, aceitava-se e aceitava os outros como eram e preferia não pensar sobre a
vida das pessoas, suas atitudes, melhor era cuidar da vida dele. Simplício viu sabedoria no guarda do
aqueduto, mas continuou sozinho no seu objetivo: morrer.
Simplício , decidido, resolveu, antes de matar-se, usara a luneta mágica pela última vez, queria
aproveitar a visão do futuro, já que iria morrer. Fixou a luneta e viu um mundo bom, as belezas e
maravilhas da natureza e viu que o homem é que era mau, perdulário e ingrato. Fixou a luneta sobre a
metrópole do Rio de Janeiro e viu um futuro promissor, leis justas e um império soberano . Na maioria
dos homens viu inveja , vaidade e ambição, paixões viciosas e egoísmo. Indo até os treze minutos viu
um começo de futuro promissor , leis sendo cumpridas, um governo soberano, a população mais
moralizada e pura, uma indústria esplendida... Além dos treze minutos, a visão do futuro... primeiro
uma imensa e compacta nuvem negra e um raio de luz que o feriu e partiu a luneta mágica em
54
migalhas. Pronto. Agora era morrer. Simplício preparou o salto e foi... De repente, uma voz : - Ainda é
cedo, criança!
Era o armênio , que sempre soubera das intenções de Simplício, e disse-lhe que a hora dele ainda
não era chegada. Disse-lhe também que não se chamava Armênio, mas que seu nome era Lição e o
nome de Simplício era Exemplo. Deu-lhe algumas explicações, sobre os homens e sobre o mundo, e
ali, no alto do Corcovado, preparou um novo ritual para dar a Simplício uma nova luneta. Era a luneta
do bom senso, e Simplício não iria enxergar nem mais nem menos, apenas e suficiente , o certo.
Depois disso, Simplício foi ao encontro do amigo Reis que agora tinha em seu armazém muitas
lunetas com a visão do bom senso. A intenção deles era fazer chegar a todos que precisam,
principalmente aos ministérios do Governo.
Simplício aproveita a visão do bom senso já há mais de um mês e deseja contar a todos sobre isso
mas jurou ao Reis e ao armênio. Promete que depois conta, mas até lá ... como ele diria ... SEGREDO!
Crítica
O que se pode dizer sobre o texto A Luneta Mágica é que seguramente é um achado, uma
preciosidade da literatura brasileira. Neste texto, Macedo se mostra mais livre, mais obtuso e bem mais
expressivo que no início, com um romantismo canônico proposto pelo romance A Moreninha. Na
história de Simplício, a primeira coisa a ser observada é que o romance de Macedo antecipa um
procedimento realista, não traz mais o sentimentalismo bobo dos textos iniciais nos quais o fatalismo
era uma constante indo ao byronismo glorificador. Não que o amor já estivesse em descrédito, que
fosse um passadismo, mas o que se percebe é que o autor volta-se um tanto para a sociedade quanto
para o indivíduo. Em A Luneta Mágica, Macedo consegue fazer isso, o curioso é que o fará bem antes
do tempo. Em 1869, quando o livro é publicado o ataque à sociedade ainda viria a ser proposto por
Machado de Assis, primeiro em seus contos e depois em Memórias Póstumas ,1881. Macedo,
seguindo as linhas do romantismo francês, no qual a crítica aos costumes sempre foi uma das tônicas
mais importantes vai, delineado por fina ironia, traçar um perfil da sociedade da época, criticar
profissões, analisar o indivíduo, o coletivo e principalmente o perfil feminino. Vale lembrar que a
maior diferença entre o romantismo francês, influenciador do romantismo brasileiro, e o nosso
romantismo residia no fato de os nossos autores fazerem uma crítica encoberta dos costumes e da
sociedade, diferentemente do que se fazia na França onde a podridão e o mau gosto burgueses eram
atacados a tempo e a hora. Mas isso é fácil de compreender quando sabemos que a classe da época, a
classe que representava o romantismo era a burguesia, classe esta que lia os romances, ia ao teatro e à
ópera e que de uma forma ou de outra era quem financiava a arte naquele momento.
A luneta Mágica em seu formato, segue o modelo romântico, no entanto, há traços
importantíssimos que devem ser destacados como por exemplo a presença do maravilhoso, do
fantástico, na figura do armênio e de seus rituais, recurso que praticamente não era usado pelo
romantismo brasileiro. Outro fator importante é a proposição de uma alegoria. O texto tem um fundo
moralizante a partir da interpretação do que realmente querem dizer as visões do mal, do bem e do
bom senso. Assim, voltamos novamente ao ponto em que Macedo antecipa procedimentos realistas
para somà-lo a autores que resgatam um formato prosaico, típico da cultura popular, a contação de
história bem típica de uma literatura de tradição oral.
Fazer uma análise profunda do livro A luneta Mágica é tarefa das mais complicadas, mas os
tópicos mais importantes podem ser listados aqui e é o que tentaremos fazer agora.
Em primeiro lugar, podemos qualificá-lo como um romance urbano analisador de costumes,
recheado de crítica social sobre uma época. No entanto, não devemos esquecer que o texto é
apresentado em forma de alegoria. Há algo de moralizante em seu conteúdo. Basta ver a fala do
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armênio ao final do livro: “meu nome não é armênio e o seu não é Simplício. Meu nome é Lição e o
seu é Exemplo “. Devemos lembrar também que, por não ser um romance romântico, como A
Moreninha do próprio Macedo ou Inocência do Visconde de Taunay, texto não será rico em
sentimentalismo. Existe sentimentalismo? Sim, mas pouco. Talvez na conduta de Simplício em
relação às mulheres ou no fato de procurar refúgio na morte, mas como isso não se concretiza,
entramos na negação dos referidos valores românticos.
Em seguida, devemos observar a maneira irônica como a narração é construída. O brilhantismo
do autor supera as expectativas. Veja bem. Podemos dizer que Simplício é irônico? Não. De forma
alguma porque seu próprio nome não o permitira. Simplício é simples, é bobo, é idiota e outras coisas
mais. Então a ironia passa a não existir? Errado, ela subsiste, ela subjaz na construção ambígua, na
cumplicidade entre autor, narrador e leitor. É inaceitável existir alguém assim tão bobo, esse cara só
pode estar brincando com a gente! O normal das coisas é que identifiquemos uma ironia, não em
partes como fazia Machado de Assis, mas no todo, à moda Flaubert, ícone do realismo francês.
Macedo, enquanto autor, incute a sua ironia na falta de malícia da personagem. Parece
complicado, mas encaremos da seguinte forma; Simplício é irônico e malicioso? Não. E o autor? Com
certeza. E o narrador já que o texto é em primeira pessoa? A resposta é sim, sempre que o ponto de
vista da personagem é influenciado por idéias partidas do autor, como se a personagem não falasse por
si mesma, mas por alguém que precisa a todo custo fazer-se ouvir. ( o autor ).
Podemos dizer então que A luneta Mágica pertence seguramente ao romantismo de Alencar, de
Bernardo Guimarães, Visconde de Tunay, Manuel Antônio de Almeida e Machado de Assis em sua
primeira fase, porque apesar de trazer inovações de cunho realista, as mesmas não são suficientes para
modificar o conteúdo proposto. Lembre-se: a crítica ao comportamento da sociedade e aos seus
costumes também é uma coisa própria do romantismo, que já existia no texto dos franceses Alexandre
Dummas, Victor Hugo e Honoré de Balzac. Sabemos que esta postura vai ser reformulada e
direcionada, posteriormente, ao indivíduo ( complexidade psicológica da personagem ) quando surgir
o Realismo brasileiro , pelas mãos de Machado de Assis, mas esta é uma conversa para outra hora.
12 - Helena – Joaquim Maria Machado de Assis
Autor e Obra
Brilhantemente irônico, considerado, com mérito, o maior escritor brasileiro, reconhecido
internacionalmente (ganhou há algum tempo um busto de bronze na entrada de uma importante
universidade espanhola) no seu dizer, nunca foi bonito. Nascido a 21 de junho no Morro do
Livramento (RJ), filho de uma lavadeira e um pintor de paredes, Machado de Assis em sua infância,
era mestiço, pobre, feio, gago e epiléptico e, pra se sustentar, vendia doces nas baixadas cariocas.
Com todas essas “qualidades” e tendo seu talento literário reconhecido por seu grande mestre Manuel
Anto. de Almeida, de quem foi ajudante de tipógrafo, Machado fez de tudo um pouco, ou seja,
escreveu peças teatrais, contos, crônicas, críticas e poesia, mas, ficou conhecido principalmente por
seus contos e através do romance Dom Casmurro. Publicou quatro livros de poesia intitulados:
Crisálidas, Falenas, Americanas e Poesias Completas. Quanto à prosa, sua obra pode ser dividida em
duas fases: a Primeira, romântica, (Ressurreição 1872; A Mão e a Luva 1876; Iaiá Garcia 1878; e
Helena 1876); e a Segunda, realista, compreendendo os romances (Memórias Póstumas de Brás
Cubas 1881; Quincas Borba 1891; Esaú e Jacó 1904 e Memorial de Aires, 1908). Muito influenciado
por Gustave Flaubert (FRA) e Eça de Queiroz (PORT), Machado de Assis não era um escritor
qualquer ou seja, o “anatomista” de almas ou “bruxo” nunca escrevia só por escrever; cada
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personagem, cada palavra em seu texto precisava estar no local exato e desempenhando a função mais
do que adequada. Sua obra é recheada de filosofia, perspicácia e ironia. Casou-se com D. Carolina
Xavier de Novais, a quem amou toda a vida. Em seguida. fundou a ABL, sendo seu primeiro
presidente. Morreu a 29 de setembro de 1908, deixando, para a eternidade, uma vasta e
importantíssima contribuição literária.
Momento
Possuidor de traços importantíssimos como a aura de mistério e o tom melancólico do amor
impossível levado ao extremo ( escapismo ) e, principalmente, por ser anterior a 1881( início do
Realismo no Brasil ), o romance HELENA pertence ao Romantismo, ou seja, à fase romântica de
Machado de Assis. Publicado em 1876, o romance enquadra-se quase com ressalvas nos moldes
tradicionais das obras do romantismo. Tanto é que não conserva aspectos “sonolentos” como a
valorização exagerada do espaço ou da natureza, atitude alencarina, típica do Romantismo em sua fase
inicial. É, também, melodramático por atender, em seu enredo, às perspectivas de um público burguês,
basicamente feminino. Este romance, amantíssimo, preclaríssimo e incauto vestibulando ( corra ao
dicionário, pode ser um xingamento!) merece atenção redobrada. Por que? Porque é do Machado de
Assis. E em se tratando de “aparentar o que não é “ o Preto-velho era o maior. Procure ficar com a
opinião acertadíssima da Profa. Vera Lúcia da UFC que me abriu os olhos: “Em Helena, Machado foi
romântico, mas estava aprendendo a ser realista”. Esclarecendo desde já, desavisado vestibulando, o
livro Helena de Machado de Assis tem tudo pra “parecer” realista, mas para você, para a sua prova no
vestibular, parece, mas não é. Valeu?!
Resumo
No dia da morte do Conselheiro Vale, a tristeza tomou conta de todos na casa .E os que mais
sofreram foram Úrsula , irmã do Conselheiro ,e Estácio ( professor, bonito, educado, inteligente ,
honesto, bom partido...) filho único do Conselheiro. Os amigos compareceram e o mais íntimo deles
ficou junto da família o tempo todo, uma fidelidade invejável. Assim era o Dr. Camargo, amicíssimo
do Conselheiro Vale. O Pe. Melchior também não faltou, pois no Romantismo não existe “família”
sem a presença forte e necessária da Igreja. Até os criados estavam tristes.
No dia seguinte (não deixaram nem o defunto esfriar), o testamento foi aberto e qual não foi o
susto de todos quando o Dr. Camargo, reproduzindo as palavras do morto, declarou que toda a
herança deveria ser dividida com uma filha, de nome Helena, que ele (Vale) havia deixado em um
colégio interno na Capital. Úrsula, indignada, não teve como protestar pois Estácio, sempre correto,
disse que a vontade de seu pai seria, acima de tudo, respeitada.
Em poucos dias mandaram buscar Helena. Estácio não se continha de curiosidade até que,
finalmente se encontraram e, de imediato, rolou um “clima” que só foi quebrado quando Úrsula, a
contra gosto, apresentou um ao outro e enfatizou a palavra “irmãos”.
Daí por diante, todos gostaram de Helena, que era realmente muito simples, bonita, inteligente
e educada (uma beleza de morena ) Uma pessoa no entanto, aliás, duas, não ficaram satisfeitas com a
atenção dada a Helena: Dr. Camargo e Eugênia, sua filha. O maquiavélico doutor era um verdadeiro,
“traíra” (pode chamar de antagonista) e queria o casamento da filha com Estácio, de olho, é claro, na
fortuna de Vale. E toda a atenção que antes era para Eugênia, agora, era dedicada a Helena. Se o Dr.
Camargo ficou injuriado, eu não preciso nem dizer como é que ficou Eugênia...
Doutor Camargo não perdeu tempo. Passou a vigiar Helena e descobriu que ela dava uns
passeios meio misteriosos. Saía sozinha e visitava uma casa velha que ficava bem próxima às terras do
Conselheiro. Na primeira oportunidade , mais propriamente numa festa em homenagem a Estácio, o
pilantra (analisado como antagonista) usou o que descobriu contra Helena, forçando a nossa
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protagonista a desistir do que sentia por Estácio e, ainda por cima, apressar o casamento dele com
Eugênia. Nessa ocasião é apresentado a Helena um cara chamado Mendonça, um dândi, um tipo de
playboizinho gastador do dinheiro dos pais que, “imediatamente” se apaixona por ela.
Helena, com medo de ter o seu segredo revelado, entrou no jogo de Camargo que, na verdade,
não sabia era de nada. O próprio Estácio, no entanto, caçando por suas terras, encontrou a casa velha
onde morava um “coroão” charmoso de nome Salvador. Estácio, com a cabeça “feita” por Camargo e
morrendo de ciúmes de Helena, passa a achar que ela tem um caso com o homem da casa da bandeira
azul. Helena, sentindo-se descoberta, faz uma carta revelando tudo. Depois que Salvador conta a
verdade a Estácio, manda um bilhete para a família dizendo que é pai de Helena e que vai embora
para não complicar a vida da filha.
Estácio, Úrsula, Camargo e Pe. Melchior ficam apalermados com a revelação. Helena não é
filha do conselheiro Vale; mentiu pra todos e, por isso, não merece tomar parte na herança. Estácio e
Melchior, no entanto, reúnem-se para definir o destino de Helena que, a essa altura, se sente aliviada,
pois foi forçada a mentir, e torce pela chance de poder ficar com Estácio. O que sentem um pelo outro
já é quase incontrolável.
Melchior e Estácio optam por fazer a vontade do Conselheiro que queria, a todo custo, ter
Helena como filha e, por isso, decidem perdoá-la. Helena, porém, sem o verdadeiro pai e sem o amor
de Estácio, adoece de tristeza e quase se mata quando, em uma chuva muito forte fica próxima a um
tanque d‟água. Mesmo sendo salva por Estácio, passa dias acamada com pneumonia. Estácio, sem
saber o que fazer, luta contra os próprios sentimentos. Admite que ama Helena e que podem ter uma
chance pois não são irmãos. Em contrapartida, não tem coragem suficiente para enfrentar a sociedade,
que ignora tudo o que se passa, e dizer para todos que ama Helena e vai ficar com ela. Tem medo,
assim, como Úrsula e o Padre, do que as pessoas possam falar (a burguesia fede). Enquanto o jovem se
desfaz em dúvidas e angústias, Helena não resiste à febre e, olhando apaixonadamente para Estácio,
morre segurando as mãos do seu único e impossível amor. Cumpre-se o destino da personagem
romântica, sofrida, martirizada, que sofre imposições da sociedade, mas que não pretende cumprir.
Como é incapaz de insurgir-se contra o seu destino ( a personagem rebelde é mais própria ao Realismo
) encontra uma saída nos braços da morte, a mais fiel de todas as amigas, que não atrasa e nunca falta,
o nome disso é Ultra-romantismo. Vale ressaltar que a morte nesse caso não é uma covardia, mas um
ato de coragem a bem da verdade redentor.
Crítica
Amigo vestibulando, aceite o meu conselho: entremos no clima do Romantismo. Só assim será
possível entender o que o “Bruxo” quis dizer. O romance que acabamos de ler (resumido, é claro)
parece ser a prova mais concreta de que o amor, de fato, existe (mesmo que poucos acreditem). É um
texto muito bem construído, o autor dispensa apresentações, justamente pelos elementos tipicamente
românticos utilizados na composição. A adjetivação, o senso de mistério, a idealização das
personagens, a valorização da beleza, a subjetividade e outros fatores identificam o referido texto
como um excelente exemplo do movimento romântico.
Não caia nessa de achar que só porque Machado de Assis é o maior nome do nosso Realismo
ele tenha sido completamente realista no romance Helena. Há traços que denunciam um Machado em
transição para um novo momento, mas ainda é romântico. Um texto é enquadrado, no devido
movimento a que pertence, não simplesmente pelo autor, mas sim, pelas características que possui, os
recursos utilizados e, em alguns casos, pela data de publicação. Não estranhe o fato de o livro não
terminar como uma novela da Globo, com todos felizes, o bandido preso ou morto e um belo
casamento. A vida nem sempre é bela. As coisas e a vida da gente às vezes dão errado. O Romantismo
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também contava com isso. Por isso, quando encontramos a Morte no texto romântico ela tem duas
explicações: serve como providência divina para o Bem prevalecer ( A Escrava Isaura ) ou como
reforçador do Romantismo ( Os Sofrimentos do jovem Werther do alemão, Goethe) . No Brasil, a
partir de 1836, o movimento foi dividido em três gerações. A primeira era indianista e nacionalista, a
terceira teve um cunho social e a Segunda, por ser pessimista, entrevadora, exagerada no sofrer por
amor, recebeu o nome de Byroniana ou mal-do-século.
Helena é o retrato desse segundo momento. A personagem principal é obrigada a viver uma
mentira, a situação a leva a isso. A tristeza dela e sua morte justificam esse amor em exagero; tem a
morte como única saída (escapismo). Helena não morre de tuberculose ou pneumonia, ela morre de
tristeza, por amor, um amor impossível que, para existir, precisa lutar contra a sociedade e nós
sabemos que Sociedade = Família + Igreja, sendo praticamente impossível passar por cima dessas
instituições. Note que para Helena é apresentada ainda uma outra opção, justamente quando
Mendonça, amigo de Estácio se interessa por ela, mas a mentira não pode ser encoberta com outra,
Helena cansou de fingir, de fugir de todos e de si mesma. Mas quando prefere morrer, para alguns uma
“covardia”, precisamos entender que isso acontece como elemento caracterizador do próprio ideário
romântico. “Morrer de amor” não é covardia, pois a maior demonstração de amor e coragem é ser
capaz de dar a vida por alguém, como o próprio Cristo um dia fez. Esse tipo de atitude jamais pode ser
em vão.
Sendo assim, o livro Helena, do “Bruxo” Machado de Assis, não é Realista. É altamente
romântico até que o pessoal que vai ingressar no curso de Letras resolva provar o contrário. Só!
13 - Lucíola – José Martiniano de Alencar
Autor e Obra
José Martiniano de Alencar, o maior romancista da era romântica, formou-se em Direito pela
Faculdade de São Paulo e foi deputado em várias legislaturas. Brilhou como crítico, parlamentar,
jurisconsulto, publicista e literato. Pelo que se registra nos anais da crítica da Arte em geral, não existe
obra mais brasileira nem de maior resplendor selvático do que O Guarani, cuja leitura inspirou ao
maestro Carlos Gomes a famosa ópera que tem o nome do romance, cuja fama excedeu aos limites da
costa brasileira sendo representada na Itália, na França, na Alemanha e até no Japão. Grande
romancista, fez incursões também no teatro onde escreveu peças de relativo êxito como O Demônio
Familiar . Ardente jornalista, nada lhe passou aos olhos que não intimasse a pena. Faleceu no Rio de
Janeiro, a 12 de dezembro de 1877, levando consigo uma grande mágoa, a de não ter sido Senador
como lhe fora o pai, tudo por uma rixa com o imperador Pedro II que nunca simpatizou com Alencar.
Quanto a este fato, perdeu a Política, mas ganhou a literatura Brasileira. Graças a Deus! É autor dos
seguintes romances: O Guarani (1857);As Minas de Prata (1862); Diva (1864); Lucíola (1865);
Iracema (1865); O Gaúcho(1870) ; A Pata da Gazela (1870); O Tronco do Ipê (1871); Sonhos de
Ouro (1872); Ubirajara (1875); O Sertanejo ( 1877); A Guerra dos Mascates (1877) e Senhora,
dentre outros. Fez alguns contos como seus primeiros textos: Cinco Minutos e A Viuvinha. Famoso
por ser abrangente e mais ainda por ser brilhante, Alencar escreveu sobre o homem e sobre o Brasil,
cotejando diversos cenários e tipos humanos, desde o índio selvagem ao branco valoroso, do sertanejo
impertinente ao gaúcho ufanista, do severo colono ao cavalheiro elegante, da mulher do campo à dama
elegante dos salões que retratava a fina flor da burguesia oitocentista.
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Momento
Em 1836, com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, o Romantismo instala-se no Brasil.
Isso fez com que houvesse uma divisão de nossa escola romântica em obras de Prosa e Poesia,
havendo posteriormente, o englobamento do gênero Dramático. A poesia romântica dividiu-se em três
momentos: 1. Nacionalista/Indianista ( textos ufanistas valorizando a terra e o índio ) representado por
Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias. 2. Byroniano/Ultraromântico/Mal-do-século ( textos
exageradamente românticos com tendência mórbida, havendo o Escapismo e a Morte Gloriosa ) que
teve como representantes Alvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Junqueira Freire. 3.
Condoreira/Hugoana/Social ( textos mais críticos mais engajados em problemas sociais como por
exemplo a Escravatura) sendo as maiores referências Castro Alves e Sousândrade.
O romance Lucíola é ótimo representante da Segunda Fase do Romantismo, uma vez que sua
temática, o desenrolar dos fatos e seu desfecho nos encaminham para a postura byroniana. Resumindo,
Lucíola é um romance romântico no qual José de Alencar foi profundamente influenciado pelos
franceses ( Balzac e Dummas ) e pelo lord inglês George Byron.
Resumo
O romance tem início com um pequeno bilhete remetido ao protagonista por uma senhora ( G. M )
que lhe servira de confidente durante todo o relacionamento amoroso que lhe mudaria vida. G. M diz
que recolheu todas as cartas de Paulo e transformou em um livro que agora o envia, uma história de
amor, que terá como título Lucíola. Depois desse preâmbulo, a narrativa tem início com uma
justificativa de Paulo a respeito daquela que seria a mulher de sua vida. Depois disso, pede a G. M que
posteriormente, dê o destino que achar justo às cartas que envia. Assim, a história segue com a
narrativa de Paulo, estudante oriundo de Pernambuco, provavelmente vindo do Ceará se levarmos em
conta aspectos biográficos, sobre sua chegada ao Rio de Janeiro de 1855 para começar sua vida
profissional . Encontra-se com o amigo de nome Sá e vai à festa da Glória, tradição religiosa da época
e de hoje. Durante a festividade, Paulo vê uma linda jovem distribuindo moedas aos pobres. Sá
reconhece Lúcia e apresenta-a a Paulo. Paulo elogia a jovem como se fosse uma dama, pis não sabe
que se trata de uma cortesã. Sá diz-lhe a verdade, mas Lúcia sente-se ofendida e diz que depois
poderão se encontrar. Paulo fica muito impressionado e Lúcia parece ter gostado de Paulo porque foi o
único homem a achar que ela tivesse boas qualidades e não apenas um corpo bonito e desejável.
Passeando pela cidade, Paulo não pára de pensar em Lúcia e a cada dia fica mais apaixonado.
Algumas dúvidas, porém, o atormentam: o luxo ostentado por Lúcia, o tratamento dos homens em
relação ela... Ele não queria acreditar que a jovem linda, pura e doce que conhecia aos poucos podia
ser uma cortesã das mais requisitadas. Mesmo assim, Paulo começa a se aproximar de Lúcia. Depois
de alguns encontros, surge entre eles uma necessidade de estarem juntos, algo que não sabem explicar.
Um dia, dominados pelo desejo, Paulo e Lúcia transam, mas sentem-se mutuamente indignados
porque o “amor “ dá lugar ao “profissionalismo”. Paulo fica duplamente ofendido e vai embora. Lúcia
sofre por ter sido mal interpretada em seus sentimentos. O conflito amoroso de Paulo aumenta a cada
dia. O tempo passa e Paulo faz novos amigos. É convidado a uma festa na casa do jovem Sá, um
“dândi “ apreciador de arte, festas e música de inspiração dionisíaca. Lúcia também comparece. Na
festa estão presentes Sá, Rochinha, Cunha, Paulo e Couto ( um velho com jeito de tarado ) e ainda
algumas mulheres amigas de Lúcia. Há muito vinho e muita comida; estão dispostos a tudo...
Desde o começo da festa todos fuma e se embriagam. Em dado momento Lúcia acidentalmente
fura um dos dedos e, maliciosa, coloca o dedo sujo de sangue na taça de champagne de Paulo que, sem
pestanejar, bebe todo o líquido como se bebesse a própria alma da mulher amada. Num instante, Lúcia
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muda de atitude e passa a ser vulgar e irônica, principalmente quando sobe na mesa e prepara uma
espécie de streap-tease. A festa de tom byroniano ( champagne com sangue ) ganha teor dionisíaco e
descamba para a orgia. Num ato de repulsa, Lúcia sai correndo para o jardim, Paulo a segue e lá,
sozinhos, falam de si. Lúcia pede desculpas pelo seu comportamento; Paulo aceita. Beijam-se e ali
mesmo acabam fazendo amor. Adormecem no jardim. Pela manhã, Lúcia vai para casa, silenciosa,
deixando Paulo cada vez mais confuso.
No final do dia seguinte, Paulo visita Lúcia em sua casa. Esta se mostra cada vez mais irresistível.
Dormem juntos novamente. Andando pelas ruas da capital, Paulo encontra Sá que acaba advertindo o
amigo ao dizer-lhe que não leve Lúcia a sério, pois o que lhe parece um anjo tem muito de messalina
romana. Paulo não discute com o amigo, apenas fica contente ao saber que Lúcia recusou o dinheiro
de Sá pela festa orgiástica e pela noitada entre amigos. Sá diz a Paulo que Lúcia na verdade é um
mistério, ninguém a entende. Paulo diz que talvez seja o primeiro. Despedem-se, mas quando Sá de a
Paulo que Lúcia parece estar apaixonada, Paulo fica muito contente.
Depois, na casa de Lúcia, Paulo vê sua amada entregando dinheiro a uma amiga. Lúcia não lhe
revela o motivo. Discutem. O romance entre Paulo e Lúcia já dura mais de um mês. Paulo, sempre
radiante, passa os dias com Lúcia, lê-lhe romances e a Bíblia, livro preferido da jovem, e parecem
felizes. Lúcia, no entanto, para espanto de Paulo passa a recusar-lhe alguns convites, como por
exemplo o de ir ao teatro. Paulo estranha o comportamento da amada, mas acaba aceitando. Um dia,
vai a um passeio e lá acaba encontrando o amigo Sá. Conversam muito, mas parta a indignação de
Paulo o amigo o avisa que todos na cidade já estão dizendo que ele está vivendo às custas de Lúcia.
Paulo se revolta contra a hipocrisia da cidade, mas, infelizmente, não há nada a fazer. Sua fama de
gigolô ou coisa parecida corre pela cidade. ( Neste momento a crítica de Alencar volta-se para os
costumes da sociedade, o hábito de mexericar, o gosto pela vida dos outros, e tudo que possa
transformar a burguesia no centro das atenções). Na volta do passeio, Paulo reconhece um vulto de
mulher que o segue: é Lúcia. Ela está enciumada, pois viu a filha do dono da casa sendo apresentada a
Paulo. Discutem. Paulo diz que não se sente à vontade com o que andam dizendo sobre ele. Lúcia
entende o que está acontecendo. Brigam e vão para casa separados. Dias depois, Paulo procura Lúcia e
revela suas apreensões. Lúcia diz que é capaz de tudo por ele, mas antes ele precisa ter certeza do que
quer. Paulo diz-lhe que para ele um amor a custo de honra é um preço muito alto. Lúcia fica
decepcionada e diz que agora vai voltar a ter amantes para que as pessoas não tenham mais o que
dizer. Deixa, logicamente, transparecer a sua mágoa pela falta de coragem de Paulo em viver o amor
que sente por ela sem ligar para a opinião pública. Brigam novamente. Paulo decide se afastar. Lúcia
diz que seu erro nem ela mesma compreende, pois que mal há em amar um homem, rico ou pobre, e
respeitá-lo, mesmo sendo ela uma prostituta de luxo?
Paulo vai embora e Lúcia tranca-se em seu quarto. Pouco tempo depois, Lúcia vai às compras e
faz com que Paulo se arrependa de tê-la abandonado. Torna-se aos olhos de todos amante do velho
Couto de quem passa a receber presentes. Um baile estava marcado para logo mais à noite, todos
esperam ansiosos. Dolorido de saudades e culpando-se o tempo todo, Paulo vai para a casa de Lúcia
com a intenção de reatar o namoro, mas inexplicavelmente, acaba entregando-a nas mãos do Couto,
que também chega, dizendo-lhe que ela deve acompanhar o velho ao baile, pois é este o seu
“trabalho”. Lúcia, para dar vingar-se do orgulho de Paulo vai com o velho, e mesmo desarrumada é a
mulher mais linda da festa. O baile, para os dois foi horrível. Paulo marca um encontro com Nina,
outra cortesã, arrependido, passou a noite toda em frente a casa de Lúcia remoendo-se de ciúmes sem
saber que Lúcia, apaixonada, livrara-se do velho e também passara a noite procurando por ele nos
arredores. No dia seguinte, Paulo procura Lúcia em casa e lhe diz que não passou a noite com o Couto
e que agora está pronta para ele, só lamenta a “dor que sente no coração e que um dia irá matá-la”. (
Seria o amor?). Reconciliam-se.
Vinte dias depois, Paulo sente que Lúcia está diferente, mais distante. Numa tarde, chegando de
surpresa, Paulo vê Lúcia esconder um livro: A Dama das Camélias de Alexandre Dummas; a história
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de uma prostituta e seu amor proibido pelos ditames sociais. Lúcia lamenta que sua historia seja
diferente da dela, pois acha que não tem direito ao amor, aliás, para que amar se o amor só traz
sofrimento? Paulo não sabe o que dizer, mas passa a acreditar que Lúcia, por suas atitudes, não o ame
de verdade. Passam a se estranhar novamente. Continuam juntos, mas, desde a leitura do livro, Lúcia
foi-se modificando. Vão ao teatro, visitam-se, mas Lúcia continua triste.
Um dia, em casa de Lúcia, conversam sobre o passado de ambos e apenas Paulo revela passagens
de sua infância. Lúcia não diz muito de si. Daí para diante, Lúcia adoece e toma uma certa distância de
Paulo. Suas visitas encurtam, pois agora ela tem junto de si uma senhora de nome Jesuína. Paulo
sente-se ridículo, como um amante deixado de lado. Não entende a indiferença de Lúcia. A jovem se
restabelece e Paulo faz o possível para não encontrá-la na rua, e quando a vê, não lhe dirige a palavra.
Dias depois, sem agüentar a pressão, Lúcia vai para a casa de Paulo e faz-lhe uma surpresa; arruma
toda a casa e ainda cozinha para ele. Paulo fica mais feliz ainda quando Lúcia diz que está pronta para
dar a ele a virgindade de sua alma porque do resto seria impossível. Novamente, falam das
impossibilidade do amor. Lúcia se embriaga e diz que uma das piores coisas que poderia lhe acontecer
era ter um filho, exatamente porque achava que não mereceria , por ser cortesã, por ser impura. Paulo
a repreende.
Paulo e Lúcia passam a viver um verdadeiro idílio amoroso, mas sem relação sexual a pedido da
amada. No dia seguinte, Lúcia convida Paulo para um passeio muito importante nos arredores da corte
numa pequena casa onde passou sua infância. O amor aumenta com a demonstração de confiança, mas
numa tarde quando Paulo ia chegando a casa de Lúcia viu um homem bem vestido entregando
dinheiro a sua amada. Paulo não consegue se conter e vai embora angustiado com um ódio quase
mortal. Para ele, Lúcia voltara a se prostituir. Outro dia porem, passeando pelos arredores da cidade
encontra o mesmo homem que, inquirido, acaba lhe contando tudo e desfazendo o mal entendido.
Lúcia havia comprado por intermédio dele uma casinha ali perto toda mobiliada para, segundo ela,
passar o resto de sua vida quando abandonasse a corte. Depois disso, Paulo se arrepende e volta
correndo para os braços de Lúcia pedindo perdão por ter desconfiado dela. Os dois choram e Lúcia
acaba lhe contando sua verdadeira historia. Disse-lhe que seu verdadeiro nome era Maria da Glória e
que durante a infância em São Domingos acabou passando muitas necessidades porque sua família (
pai, mãe, irmãos, tia... ) foram atacados pela febre amarela de 1850. Ela, coma apenas 14 anos, tinha
que fazer alguma coisa para ajudar a família. Mas não havia como arranjar dinheiro. Foi então que
passou um vizinho chamado Couto... um velho tarado que em troca de algumas moedas exigia-lhe
certos carinhosa que ela em sua inocência acabou fazendo. Sob o olhar penalizado de Paulo, Lúcia diz
que depois desse fato nunca mais teve nada com o velho Couto, ele é que ainda hoje vive lhe
atormentando para que fique com ele. Justamente porque o pai dela, no enterro da mãe, descobriu a
origem do dinheiro e expulsou-a de casa. Depois de ser expulsa, sem ter para onde ir, conheceu
Jesuína, uma senhora aparentemente bondosa que, na verdade, era uma cafetina. Lúcia caiu na vida.
Anos depois, soube que quase toda a sua família havia morrido sobrenado-lhe apenas Ana, a irmã
caçula que ela imediatamente colocou num colégio interno. E desde que passou a se prostituir, todo o
dinheiro que ganhava era para dar um futuro decente para a irmã.
Depois da comovente historia, Lúcia pede a Paulo que lhe perdoe e, logicamente, o perdão é
concedido. Paulo é redundante: “Tú és um anjo, minha Lúcia! “ Para Lúcia, foi como se ela tivesse
ressuscitado. O amor e a confiança entre os dois só aumenta. Em seguida, juntaram tudo o que tinham
e foram para a casa nova onde passaram a desfrutar da natureza e do amor. A vida melhorou mais
ainda com a chegada de Ana que era tão linda quanto a irmã.
N casa nova tudo é felicidade. Isso até o dia em que o velho Couto aparece com algumas moças
da região ( ô véi tarado! ) e faz com que Lúcia passe vergonha na frente de Paulo e Ana. Lúcia
responde aos insultos do velho assim: “Eles não sabem que eu tenho outra virgindade, a virgindade do
coração. “ Apesar do incidente, a vida do trio segue e a felicidade só aumenta. Mas um dia, Lúcia,
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como em A Dama das Camélias, adoece. Todos ficam preocupados. Paulo é pura aflição e cuidados
em torno da mulher amada. Os dias passam e com a ajuda de Paulo e Ana Lúcia se restabelece.
Noutro momento, para surpresa de Paulo, Lúcia, agora chamada carinhosamente de Maria, chama
o namorado e faz uma proposta indecorosa: pede-lhe que se case com Ana e cuide das duas, e diz que
ela mesma não casa com ele porque não o merece. E é exatamente nesse momento que Maria leva a
mão ao ventre e cai dizendo que sabia que “ele” queria levá-la consigo. Na sala ninguém entende
quem é “ele”. Paulo se desespera e ela confessa que esperava um filho dele, mas agora sente que o feto
não se mexe dentro dela, não sabe se está vivo ou morto. Paulo manda vir um médico. O médico diz
que ele tem chances de sobreviver se expelir o feto. Lúcia é contra e diz que prefere ir junto com o
filho. Pede ainda uma vez a Paulo que case com Ana. Paulo se recusa, mas jura-lhe que servirá como
pai. Lúcia e Paulo juram amor eterno, e à noite, com a chegada da luz das primeiras estrelas Lúcia
morre, feliz por ter sido amada, mesmo achando que não merecia a grandeza de tal sentimento.
A narrativa encerra com os lamentos de Paulo para G. M por ver ainda nos objetos e nos lugares
que freqüenta o espírito de sua amada. Ana casa-se com um bom rapaz e é feliz, por isso Paulo
acredita que cumpriu o seu juramento. E como prova do grande amor que viveu, Paulo manda para
G.M alguns fios de cabelo de Lúcia, pois segundo a sabedoria popular ( oriental ) o cabelo tem uma
ligação direta com o espírito.
Crítica
Seguindo inicialmente o que fora preconizado pelos dois últimos grandes nomes do Arcadismo
brasileiro, Basílio da Gama e Santa Rita Durão, José de Alencar estreou fazendo a linha do
Indianismo romântico. O Guarani, Ubirajara e Iracema são textos que denotam muito bem esta
referência. No entanto, depois de autores como Joaquim Manuel de Macedo e Manuel Antônio de
Almeida de, A Moreninha e Memórias de um sargento de milícias, respectivamente, Alencar passou a
se dedicar ao texto de descrição e análise de costumes. Autor dos mais representativos da literatura
brasileira pela grandiosidade de sua obra e pela quantidade de textos escritos, José de Alencar tornouse, com mérito, o maior romance brasileiro. E justamente por sua obra pertencer a uma fase na qual se
trabalhava a idealização, o sentimentalismo e a descrição dos costumes da sociedade, também teremos
em José de Alencar o maior nome do Romantismo brasileiro. Isso se deve, basicamente, pela
abrangência de suas temáticas, pois escreveu sobre quase tudo ou de tudo um pouco, como se diz, fez
textos indianistas, textos ultra-românticos, textos nacionalistas, textos urbanos, sociais, textos de
temática regionalista como O Gaúcho e O Sertanejo, e para solidificar sua importância na literatura
brasileira, é considerado o precursor do romance histórico em nossa literatura com As Minas de
Prata, Guerra dos Mascates e O Guarani.
Mas em relação a Lucíola, especificamente, Alencar buscou inspiração nos franceses e
principalmente no inglês George Byron de quem herdou o traço ultra-romântico. Quanto à influência
francesa, podemos tomar como base o romance A Dama das Camélias de Alexandre Dummas que
trata dos desatinos amorosos de um jovem advogado lutando pelo amor de uma cortesã. A crítica aos
costumes da sociedade já indica um posicionamento menos sentimentalista ( tendência realista )
marcado pela obra de Honoré de Balzac, Guy de Maupassant e Victor Hugo. Em Lucíola, temos o
ultra-romantismo de Byron e a crítica audaciosa de Balzac.
14 - Os Sertões - Euclides Pimenta da Cunha
Autor e Obra
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Euclides Pimenta da Cunha nasceu em 1866 em Cantagalo , no Rio de Janeiro . Em 1885 foi para
Escola Politécnica de Engenharia e, em 1886, para Escola Militar da Praia Vermelha ( a Real
Academia Militar ). Seu espírito rebelde não o ajudou muito no Exército. Em 1888 foi expulso por
insubordinação. Quebrou o espadim na frente do Comandante Geral pois não concordava que o
Exército fosse tão submisso à Corte portuguesa. O crime foi tão grave que seria passivo de prisão e até
fuzilamento, mas graças à intervenção daquele que seria seu sogro, o Gal. Solón, foi apenas expulso.
Muda para São Paulo. Colabora com o jornal O Estado de São Paulo. No entanto, por ironia do
destino, aquele que foi expulso como bandido, em 1889 é reintegrado ao Exército brasileiro como
herói da república; forma-se Oficial Engenheiro. Alguns anos depois, em 1896, ao perceber que a
república que sonhara, juntamente com a maioria dos brasileiros, não era nem sombra do que
realmente acontecia, pede baixa e vai para a reserva.. Continua escrevendo nos jornais e 1897, por
força doas acontecimentos, publica A nossa Vendéia uma avaliação da Guerra de Canudos. Ainda
neste anos é enviado como adido à Quarta Expedição. Depois da destruição do arraial, talvez por
vingança de alguém, é mandado para São José do Rio Pardo e lá, “ redige “ Os Sertões. Finalmente
em 1902 publica Os Sertões. Assusta-se porque na primeira semana de venda o livro não é nem
procurado. Mas na semana seguinte, depois que alguns intelectuais o leram e falaram maravilhas do
romance, Euclides vira destaque. Em 1903 é eleito membro da ABL e do IHGB. Em 1909 realiza um
grande sonho, torna-se professor de Lógica do Colégio Pedro II. Neste mesmo ano, a 15 de agosto, é
assassinado pelo alferes Dilermando Cândido de Assis., amante de sua esposa Ana.
Momento
Pertencente ao período conhecido como Pré-Modernismo ( fase de transição para o Modernismo
brasileiro ) Euclides da Cunha é colocado como um dos maiores escritores da literatura Brasileira,
justamente por ter feito um livro que na mesma medida que é difícil de ler, também é difícil de ser
enquadrado. Um misto de Literatura, Historia, Antropologia, Ciências Sociais e Jornalismo, Os
Sertões indicam, no dizer do crítico Antônio Cândido, o “ fim do Imperialismo Literário “ e o início
de uma nova Literatura, mais técnica, mais científica e mais séria. O Pré-Modernismo, para um melhor
entendimento, é um momento literário onde se inserem autores que não possuíam uma escola porque
tudo o que fizeram nem era totalmente velho ( tradicionalismo proposto pelo Rio de Janeiro ) e nem
representava ainda a inteira Novidade ( a ruptura promovida por São Paulo na Semana de Arte
Moderna ). Autores como Monteiro Lobato, Lima Barreto, Graça Aranha, que publicou Canaã no
mesmo ano, e Augusto dos Anjos fizeram textos tão independentes das escolas que a única maneira de
enquadrá-los era em um momento de transição. Não podemos esquecer, logicamente, que ao mesmo
tempo que traziam algum tipo de novidade ( as personagens marginais de Lima Barreto, a Literatura
Infantil de Lobato, a temática do imigrante de Graça Aranha, A poesia científica de Augusto dos
Anjos ) estes autores também faziam uma grande mescla de todas as estéticas passadas, no entanto,
com um toque especial, um estilo muito particular que os diferenciava de tudo quanto havia sido
escrito. Euclides da Cunha é um pré-modernista e seu livro, Os Sertões, a bíblia do sertanejo,
Literatura da melhor qualidade, sempre será uma referência.
Resumo
DIVISÃO
Primeira parte - A Terra
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Estudo científico da região com aprofundamento teórico em questões geográficas, geodésicas,
mineralogia, geologia, história, ciências sociais e riquíssimo padrão vocabular.
Segunda Parte: O Homem
Análise de perspectiva antropológica, sociológica, histórica e determinista de como o homem
pode ser influenciado pelas diversas forças que atuam sobre ele. Assuntos como raça, gene,
miscigenação e arianismo são evocados numa intenção notadamente especulativa acerca dos
conhecimentos do autor sobre as ciências passadas e da época.
Terceira Parte: A Luta
Narrativa do conflito entre as facções militares, representantes da visão republicana e urbana, e os
celerados de mentalidade monarquista e retrógrada seguidores de Antônio Conselheiro. Este conflito
resulta em um massacre histórico de sertanejos do qual depreende-se apenas um derrotado: O Brasil
I - Expedição: Ten. Pires Ferreira ( antecedentes )
Na parte denominada A Luta encontramos a narração do conflito entre os militares e a gente de
Antônio Conselheiro. O narrador começa dizendo que era um tempo de insurreição e que o Governo
da Bahia estava diante de um mal que já era antigo.
Assim, para que se entenda a guerra em Canudos torna-se necessário compreender episódios
anteriores, determinantes, para o desfecho. Um desses incidentes foi denominado Episódio da
Madeira.
Aconteceu que Antônio Conselheiro adquirira certa quantidade de madeira para a construção de
uma igreja no povoado, mas o juiz de Direito de Juazeiro, afrontado uma vez pelo Beato ( outro
antecedente envolvendo a quebra das leis internas pelo povo do Conselheiro ) decidiu vingar-se e não
permitiu que fosse feita a entrega. Antônio Conselheiro ordenou que a madeira fosse trazida à força.
Assim, para objetivo mais de defesa que de ataque, foi montada a Primeira Expedição, composta de
107 homens ( 03 oficiais e 104 praças ) que rumaram para Canudos sob o comando do tenente Pires
Ferreira para interceptar os homens do Beato.
Partiram a 12 de novembro ( porque 13 era aziago ), mas principalmente pela penosa marcha,
podemos dizer que o pior inimigo dos militares não eram os homens do Conselheiro mas a própria
caminhada no meio da Caatinga. Ficaram acantonados ( acampados ) em Uauá, cidade habitada por
simpatizantes de Conselheiro, na realidade seus olhos e ouvidos. Na madrugada do dia 21 a tropa foi
acordada com a investida dos jagunços que metiam medo mais pelo semblante que pelo poder de fogo.
“ Os combatentes armados de velhas espingardas, de chuços de vaqueiros, de foices e varapaus,
perdiam-se no grosso dos fiéis que alteavam inermes, vultos e imagens dos santos prediletos e palmas
ressequidas retiradas dos altares. “
E depois do primeiro embate, antevendo uma guerra quase interminável, o que se via em Uauá era
um quadro lastimável. Mortos por toda a parte ( 150 jagunços e muitos militares ). O médico da tropa
enlouqueceu, quedou-se inútil olhando para os feridos. Depois veio a fuga. Quando a tropa chegou a
Juazeiro a população assustou-se com aquelas caras destruídas. Era uma tropa em farrapos, uma
vergonha.
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Lembremos que o Episódio da Madeira representou a gota dágua que faltava para o conflito, mas
outros já haviam ocorrido, como por exemplo a quebra das leis da cidade e a missão religiosa
pacificadora mandada ao Belo Monte na tentativa de conscientizar o Conselheiro, mas que, pela
obstinação do Beato, resultou inútil
E nas linhas do telégrafo foi transmitido para todo o país o prelúdio da grande guerra sertaneja.
II - Expedição: Maj. Febrônio de Brito
“ O revés de Uauá requeria reação segura “ de tal modo que a Segunda Expedição ( primeira
regular ), compôs-se inicialmente de 211 homens ( 200 praças e 11 oficiais ) das forças federais e
estaduais. Simultaneamente, mais 250 soldados , 2 canhões e 4 metralhadoras seguiram sob o
comando do major de infantaria Febrônio de Brito para unir-se ao grupo sobreviventes de Pires
Ferreira. Como se não bastasse, foi enviado ao local o Cel. Pedro Nunes Tamarindo para chefiar a
expedição. Eram mais de 600 homens. Seguem para a região de Monte santo. Euclides disserta sobre
guerra, estratégias militares e sobre o próprio homem, e acaba tecendo considerações sobre a tática
primitiva e eficaz dos jagunços. ( p. 190 )
No dia 29 de dezembro, os expedicionários entraram em Monte Santo. Era menos de uma brigada,
pouco mais de um batalhão em termos de formatura. O povo da cidade acreditava na vitória da lei
contra a barbárie, “antecipava-lhes as honras “... Aquela expedição ia, na opinião de todos, vencer. Foi
um mal.
A certeza do sucesso fez com que demorassem 15 dias em Monte Santo saindo apenas a 12 de
janeiro de 1897. Foram pela estrada do Cambaio, curta e acidentada. Dias de caminhada. Primeiros
sinais do inimigo. A comida acabara. A tropa ia sendo castigada pela caatinga e torturada
psicologicamente pela presença do inimigo. Voltar era morrer de fome. O certo era ir em frente e
destruí os rebeldes para manterem-se vivos. A salvação era chegar a Canudos.
Na travessia do Cambaio, um tipo de Canyon, os jagunços atacaram, e a tropa, revidando como
cegos, sem o mínimo de postura militar, sofreu as primeiras baixas. ( p. 212 ) A travessia foi penosa,
muitas mortes dos dois lados. Chegaram a Tabuleirinhos, às portas de Canudos. Saldo: mais de 300
mortos. Acamparam. O comandante pára para refletir e acha melhor voltar. Enquanto isso, no arraial, a
guarda de Conselheiro avisa sobre a presença dos militares. O Beato sobe nos andaimes da igreja,
manda retirar as escadas e olha severamente para o acampamento. Chega a notícia de que a tropa está
indo embora. O povo passa a acreditar que apenas com um olhar o beato afastou os inimigos. (
coincidência? milagre? ) Falas de Euclides; “A retirada foi a salvação. Mas o investir de arranco com o
arraial, arrastando tudo, talvez fosse a vitória “ p. 218
Ao perceberem a saída dos militares os jagunços vão-lhes ao encalço, mas não será preciso atacar,
a simples volta pelo Cambaio e a fome já era capaz de destruí-los. E a tropa segue faminta. A
salvação, à noite, é o surgimento de um rebanho de carneiros desgarrados que acabam virando
churrasco. A cena é hilária.
Pela manhã, chegam a Monte Santo. Não havia um homem válido; mais pareciam um bando de
retirantes, flagelados fugindo da seca e da miséria. A população recebeu-os boquiaberta, mas em
silêncio. A notícia se espalhou rapidamente.
Naquele mesmo dia, à tarde, a procissão dos jiraus cantava suas ladainhas e “incelências” para os
mártires ceifados pelo combate. O fúnebre cortejo seguia para Canudos tendo sobre a cabeça a cruz
sacrossanta das estrelas.
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III – Expedição Moreira César - Tamarindo
“O novo insucesso das armas legais, imprevisto para toda a gente, coincidia com uma fase cr‟tica
da nossa história ”.
Euclides começa a narrativa da Terceira Expedição falando sobre a situação por qual passava o
pais, um momento de crise cheio de resquícios dos conflitos civis ( Balaiada, Sabinada etc. ) O
governo instalado em 1894 não tivera a totalidade da opinião pública porque o Brasil estava dividido
em vitoriosos e vencidos. Assim, coincidindo com o encalacramento do Florianismo, restando-lhe
apenas o túmulo, o fetichismo político precisava de um novo ídolo. Encontraram no Cel. Moreira
César a imagem de Floriano. Euclides passa a descrevê-lo.
“ O aspecto reduzia-lhe a fama. De figura diminuta – um tórax desfibrado sobre pernas arcadas em
parêntesis – era organicamente inapto para a carreira que abraçara. Faltava-lhe esse aprumo e a
compleição inteiriça que no soldado são a base física da coragem. Apertado na farda , que raro
deixava, o dolmâ feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe a postura. A fisionomia
inexpressiva e mórbida e mórbida completava-lhe o porte desgracioso e exíguo. ( ... ) pálido,
alongado pela calva em que se expandia a fronte ( ... ) velado de tristeza permanente. Era uma face
imóvel como um molde de cera. ( ... ) Aos que o viam pela primeira vez custava-lhes admitir que
estivesse naquele homem de gesto lento e frio, maneiras corteses e algo tímidas, o campeador
brilhante, ou o demônio crudelíssimo que idealizavam. Não tinha os traços característicos nem de um
nem de outro. Isto, talvez, porque fosse as duas coisas ao mesmo tempo. “( p. 230 )
Cheio de honrarias e nomeações por seus feitos brilhantes, era tido como exemplo de coragem e d
amor à pátria, ainda que marcado por uma conduta de vias de fato violentíssimas . Tapas em um,
facadas em outro, mas o principal estava no assassinato de um jornalista cometido por ele como
vingança por ter o correspondente escrito algo que manchava a imagem do Exército Brasileiro. Feito
o convite para a chefia da Expedição , aceitou de imediato.
“ O Cel. Moreira César seguiu a 3 de fevereiro para a Bahia, levando o batalhão que comandava, o
º
7 de infantaria, entregue à direção do Major Rafael Augusto da Cunha Mattos; uma bateria do 2 º .
Regimento de Artilharia comandada pelo Capitão José Agostinho Salomão da Rocha; e um esquadrão
do 90. de Cavalaria, do Capitão Pereira Franco. “ Moreira César uniu-se ainda ao 16º batalhão de
infantaria, parte do 33º ( 318 homens ) mais o 9º de infantaria do Cel. sobrevivente Pedro Nunes
Tamarindo e pequenos contigentes da força estadual baiana.
A 08 de fevereiro, toda a Expedição estava reunida, 1300 combatentes, além das forças auxiliares,
fartamente municiados com quinze milhões de cartuchos e 70 tiros de obus. Base 1 em Queimadas,
Base 2 em Monte Santo, estavam prontos para a investida. No entanto, o que mais assustou a tropa no
início da empreitada foi o ataque epiléptico de Moreira César. Mesmo depois das recomendações e
pedidos para que voltasse para se recuperar, Moreira César seguia para Canudos no cumprimento
honroso de sua missão. Os engenheiros, com a ajuda dos guias, criaram uma nova trilha desviando do
Cambaio ( p. 236 ) margeando o Vaza-Barris.
No arraial, os homens de Conselheiro faziam seus preparativos, pois já estavam cientes da nova
investida. Bem armados, por causa das últimas expedições, e mais numerosos, Canudos crescia a cada
instante recebendo diuturnamente os retirantes combalidos ( cangaceiros, jagunços, alforriados,
fugidos etc. ) , valiam-se da caatinga para suas armadilhas e camuflagens, além de localizarem-se num
ponto intrigantemente estratégico. Os vigias do Conselheiro chegaram com o nome do chefe
expedicionário. Espanto extraordinário, quase todos já ouviram falar de Moreira César, era o AntiCristo contra os infelizes. Imaginaram-no herói de grande número de batalhas, quatorze como dissera
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um dia um poeta sertanejo, e pensaram na devastação de seus lares, dias de tortura sem fim, Canudos
dissolvida a bala, fogo e espada... Deram-lhe o apelido de “Corta-Cabeças “.
Enquanto no arraial alguns jagunços abandonavam o Belo Monte com medo da fama de Moreira
César, na tropa, tomados pelo desejo insano de vitória preocupavam-se com uma questão simplista: E
se Canudos estivesse vazia? A campanha inteira transformada em passeio militar penoso; a volta
inglória, sem o dispêndio de um cartucho.
Seguindo em marche-marche, finalmente, a tropa encontrou o inimigo, um bando de seis que
disparou sobre os soldados ferindo um deles mortalmente. Mas combatentes do 7º batalhão, mostrando
serviço aos comandantes, vararam os arbustos com a metralhadora e suas baionetas. Os jagunços
fugiram deixando para trás as armas ( que eram mesmo ridículas diante do arsenal militar ). O Cel.
Moreira César recolheu uma das socadeiras ( pica-pau ) e disparou para o ar gritando em seguida aos
camaradas: “Essa gente está desarmada ! “
Em Angico, ponto da última parada onde acordara-se que acampariam por um dia saindo para o
ataque em seguida, a alienação do comandante espalhou-se entre os comandados na fala de Moreira
César;
“Meus camaradas! Como sabem estou visivelmente enfermo. Há muitos dias não me alimento, mas
Canudos está muito perto... vamos tomá-lo! Vamos almoçar em Canudos! “.
Descansaram por um quarto de hora e rumaram imediatamente para o arraial. E para chegarem
logo, foi permitido aos soldados que deixassem para trás mochilas, cantis e bornais que a Cavalaria
sairia recolhendo. Chegaram ao Alto das Umburanas e de lá se via o tamanho da grande favela
composta por duas igrejas, sendo uma em construção, um cemitério e cinco mil barracos. Era uma
vista formidável e amedrontadora.
De repente, o sino da igreja começou a bater. Veio em direção aos soldados um sertanejo, um ser
excepcional, algo fantástico, que levou tiros de todos os jeitos, mas continuava a caminhar com
tranqüilidade. Agachou-se e sentou numa pedra para acender um cachimbo. Andava tranqüilamente
apesar de ser alvo de um exército. Era um desafio irritante. O sino que tocava no arraial como um
alarme emudeceu. A força começava a descer para o ataque. Mas a investida era desordenada e pouco
tempo depois os soldados atiravam sobre si mesmos, de um flanco a outro.
Parte do efetivo militar adentrou em Canudos por entre a vila de casas inteligentemente dispostas
em diagonal. E novamente o despreparo dos militares preludiava um fim desagradável para o ataque
irresponsável, pois quando o soldado invadia um casebre encontrava pendurada na cumeeira uma peça
de carne seca, ao lado uma quartinha de água fresca. Comia rapidamente, mas não era rápido o
suficiente para escapar à armadilha levando uma carga de chumbo previamente organizada. E
morreram muitos.
Do alto do Monte O Cel César observava o insucesso dos camaradas. Subitamente, resolveu
investir contra o arraial pessoalmente: “ - Eu vou dar brio a essa gente! “ A meio caminho, porém, foi
atingido no ventre por uma bala. Tentou ser forte, não descavalou e foi atingido pela Segunda vez.
Valoroso, disse que aquilo não era nada, mas estava mortalmente ferido.
O Cel. Tamarindo foi imediatamente avisado de que teria de substitui-lo, embora estivesse ainda
tentando salvar o seu próprio batalhão.
“ Era um homem simples, bom e jovial, avesso a bizarrear façanhas. Chegara ao sessenta anos
candidato a uma reforma tranqüila. Fora ademais incluído contra a vontade na empresa. “ p. 264
A luta continuava. De um lado, oficiais valorosos, soldados obedientes, mesmo sabendo que seu
líder estava baqueado; de outro, uma guarda santa e fanática capaz de tudo no combate. Mediram
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força por bastante tempo, mas quando chegou a notícia da morte de Moreira César ( que protestou m
documento contra uma retirada ) os combatentes se sentiram sozinhos. Na verdade, há tempos não
havia comando.
“ A expedição era agora aquilo: um bolo de homens, animais, fardas e espingardas, entupindo uma
dobra de montanha... “
Faltava seguramente um comando mais firme, e Tamarindo, que não estava suportando as
responsabilidades que o oprimiam, não deliberava mais nada. Perguntado por um oficial sobre o que
fazer, saiu-se com uma rima popular e triste que dizia:
“É tempo de murici – Cada um cuide de si “
Com a morte de Moreira César, a retirada impunha-se. Houve então uma fuga, sem ordem, sem
formatura; uma vergonha. A antes briosa expedição não se retirava ( ato de estrategistas ) apenas
fugia. No encalço, iam-lhes alguns homens de Antônio Conselheiro e nessa desordem, pode-se ouvir,
de longe, a algazarra dos sertanejos... ( tome vaia ). E foi uma debandada geral.
“ Oitocentos homens desapreciam em fuga, abandonando as espingardas; arriando as padiolas em que
se estorciam feridos; jogando fora as peças de equipamento; desarmando-se; desapertando os cinturões
para a carreira desafogada; correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos ( ... ) tontos, apavorados,
sem chefes... Entre os fardos atirados à beira do caminho ficara – logo ao desencadear-se o pânico –
tristíssimo pormenor – o cadáver do comandante. Apenas a Artilharia, na extrema retaguarda, seguia
vagarosa e unida, solene ( ... ) “
O Cel. Tamarindo, que voltou para ajudar a retaguarda valorosa, tentava socorrer “os únicos
soldados que foram a Canudos “. Mas, diante dos ataques dos jagunços, não restava nada a fazer a
não ser “debandar ! “. Neste momento em diante, soldados e oficiais igualavam-se em uma só carreira,
apesar da louca resistência de alguns.. A infantaria desaparecera na caatinga, a artilharia estava
desmembrada... consumara-se a catástrofe.
Depois de tudo, a guarda-mariana saiu recolhendo os despojos da malfadada expedição.
Clavinotes e socadeiras foram trocados por fuzis de repetição ( comblain e mannlichers ). A verdade é
que a tropa não se desarmara diante do inimigo, despira-se...
A vitória contra tão numerosa expedição, marcada pelo aspecto místico uma vez que às 18:00h,
impreterivelmente, onde estivessem, os jagunços paravam para rezar, ganhou logo status de milagre.
“Era sem dúvida um milagre. O complexo dos acontecimentos perturbava-os e e tinha uma
interpretação única: amparava-os visivelmente a potência superior da Divindade. “p. 274
O fantástico acontecimento só receberiam uma única mácula, um fato estranho, uma espécie de
divertimento macabro idealizado ninguém sabe por quem:
“Concluídas as pesquisas nos arredores, e recolhidos as armas e munições de guerra, os jagunços
reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos.
Alinharam depois, nas duas bordas da estrada as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se,
faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos
de fardas, calças e dolmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas,
cantis e mochilas ... ( ... ) Um pormenor doloroso completou esta encenação cruel; a uma banda
avultada, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do Coronel Tamarindo.“
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Quatro meses mais tarde , se assim era profecia, novos expedicionários seguiriam para Canudos e
se deparariam com este pavoroso espetáculo, regido pelo espectro do velho comandante, protagonista
de um drama formidável.
IV – Expedição – Gal. Arthur Oscar
A Terceira Expedição fora vencida, vergonhosamente e a nação vergonhosamente ultrajada
principalmente com a morte de um de seus mais honrados oficiais, o Coronel Moreira César. “ A nova
deste revés foi um desastre maior “ . A Quarta Expedição organizou-se num estado de comoção
nacional. Procurava-se entender o insucesso das armas, mas não havia muito o que explicar. Para os
mais exagerados os tabaréus canhestros não estavam sozinhos, havia focos de monarquistas em muitos
lugares... A República estava em perigo; era preciso salva-la de gente como Pajeú, João Abade e
Antônio Conselheiro.
A imprensa noticiava a necessidade da restauração. Exigia que os republicanos se armassem. O
presidente da república respondia em nota:
“ Sabemos que por detrás dos fanáticos de Canudos, trabalha a política. Mas nós estamos preparados,
tendo todos os meios para vencer, seja como for, contra quem for. “
A população só precisa de uma fagulha para fazer um incêndio...destruiu e queimou jornais
monarquistas.
“ Então começaram a quebrar e inutilizar tudo quanto encontravam atirando depois os objetos , livros
papéis, quadros, móveis, utensílios, tabuletas, divisões, etc. para rua de onde foram logo conduzidos
para o Largo de S. Francisco de Paula onde formaram uma grande fogueira, ficando outros em montes
de destroços mesma Rua do Ouvidor. “ p. 281 ( Jornais: Gazeta da Tarde, Liberdade e Apóstolo )
As primeiras notícias do desastre prolongaram por muito dias os comentários no país, mantendo a
constante agitação. Opiniões das mais desencontradas davam contam bem ao gosto do povo do que
tinha sucedido em Canudos. Alguns diziam que o Coronel Tamarindo não estava morto, estava em
Queimadas se recuperando para voltar ao combate. Estava ferido e doente, mas estava se
restabelecendo. Outros diziam que foi covardemente assassinado, trucidado. Os sertanejos não eram
um bando de carolas fanáticos, mas um exército altamente instruído, preparado e bem armado com
fuzis importados e artilharia pesada. No meio de tanta lorota, outras verdadeiras lendas se formaram
como por exemplo a lenda do Cabo Roque que resistiu bravamente ao lado do corpo do seu
comandante Salomão da Rocha. Um mártir, um herói, morreu em nome da pátria. Outra dizia que
quase três mil soldados foram dizimados pelo inimigo... e assim por diante.
O mais interessante é que a verdade, que tarda mas acaba aparecendo, vinha aos poucos
aumentando o fiasco da empreitada. Cerca de tr~es dias depois, já se encontravam em queimadas 74
oficiais e mais de 1080 soldados. Chegavam aos poucos, envergonhados, depois da carreira
desabalada. Mas a gota dágua foi que depois de honras cívicas, monumentos e etc. até o Cabo Roque
apareceu vivo para vergonha de todos.
Enquanto isso, no Congresso Nacional, o presidente já estudava uma forma de derrotar o inimigo
da República. Chamou „as armas até os deputados do congresso. E eles foram? Idéias mirabolantes
surgiram como por exemplo fazer em 30 dias uma ponte por cima de um vilarejo e uma estrada de
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ferro enchendo o sertão de locomotivas que levariam soldados... Em Canudos estava em jogo a sorte
da República.
Do outro lado, entre em cena um heresiarca sinistro, Padre Cícero reunião multidões de novos
adeptos para Antônio Conselheiro. Em Pernambuco, um tal de José Guedes era a favor do beato. Em
Minas, um quadrilheiro corajoso, João Brandão, tangia cargueiros arrojados de armas.....
“ E todo isto, punha-se de manifesto, eram feituras de uma conjuração que desde muito vinha
solapando as instituições. A reação monárquica tomava afinal a atitude batalhadora ( ... ) uma
vanguarda de retardatários e de maníacos. O governo devia agir prontamente. “
Depois de convocados os batalhões de todos os estados, o Gal. Arthur Oscar de Andrade
Guimarães foi convidado para a celebérrima missão. Respondeu prontamente: “ Todas as grandes
idéias têm os seus mártires; nós estamos votados ao sacrifício de que não fugimos para legar à geração
futura uma república honrada, firme e respeitada. “
“ Desencadeou-se uma refrega original e cruenta . Não se via o inimigo, encafurnado em todas
as socavas, metido dentro das trincheiras-abrigo, que minavam as encostas laterais, e encoberto nas
primeiras sombras da noite que descia.. “ próximos da cidadela, desenrolou-se a bandeira nacional e
uma salva de 21 tiros de granadas atroou sobre Canudos.... Arthur Oscar estava estupefato. Os
jagunços haviam dormido ao lado da tropa, vigiando-os e agora revidavam com uma fúria de loucos.
Mais tarde, refeito do susto, o chefe expedicionário confessou-se impotente para descrever a chuva de
balas que descia os morros e subiam num sibilo horrível de notas. Em cinco anos na Guerra do
Paraguai, nunca presenciara coisa semelhante.
Enquanto isso, a tropa do general Savaget fazia alto nas proximidades de Canudos. Era o socorro
em caso de urgência. Pra perceber a competência de Savaget, basta observar que foi a única tropa a
não ser surpreendida pelos jagunços. Seguem pelo Cocorobó „as margens do Vaza-Barris. ( canyons ).
Somadas as forças retomou-se o revés. Três horas de fogo e Canudos resistia, intacto. “ Os jagunços
eram duzentos ou dois mil? Nunca se soube ao certo. A ação tornou-se formidável. Cinco batalhões
debatiam-se entre morros, sem vantagem visível, depois de quatro horas de luta. Era grande o número
de feridos. Alguns jagunços avançados começava,m a recuar.
“ os jagunços em desordem, contudo, depois do primeiro arranco da fuga, volveram ainda ao mesmo
resistir inexplicável. Abandonando as posições e franqueando a travessia perigosa, recebiam de longe,
os triunfadores, a tiros longamente espaçados. “ p. 323
Em meio a tantos tiros, o General Savaget foi atingido enfraquecendo em parte a luta, mas
valorizando sobremaneira o “ batalhão talentoso” . mesmo assim continuou no comando até ser
possível o encontro com a outra coluna, a do general Carlos Teles. Reunidas as duas colunas, bastava
o encontro, às portas de Canudos, com o Comandante da Expedição para o ataque fulminante. O dia
28 de junho, em ordem do dia, constituiu-se página de horrores, mas perfumada de glória.
Enquanto Savaget caminha, o grupo de Arthur Oscar passava maus bocados. Vivia-se a aventura,
de expedientes. Os soldados, sem comando algum, aventuravam-se diuturnamente nos terrenos e
cercados da região em busca de comida ( mandioca, milho, feijão, galinhas e cabritos ) que pudesse
aplacar a fome que só seria resolvida com as provisões que viriam de Geremoabo. O gado adquirido
era apenas um paliativo por isso, como os sertanejos, já apelavam para a flora. Por fim, faltou água. A
guerra persistia com seus combates rareados. Mas o inimigo ali ficava, a dois passos, sinistramente
acotovelando o s triunfadores. Esperava-se a comida e a brigada salvadora. E na tarde do dia 11 de
julho, um vaqueiro apareceu pedindo proteção para o grande comboio de comida e munição que
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puxava. Os soldados,mesmo com cara de mortos, sorriram e aprontavam-se para o salvamento em
forma de farinha e jabá. Descia a noite no acampamento. Em Canudos, tocaram a Ave-Maria.
Reúnem-se as colunas. Leitura da ordem do dia. “ Valentes oficiais e soldados das forças
expedicionárias do interior do estado da Bahia! ( ... ) O inimigo não tem conseguido resistir „a vossa
bravura ( ... ) Amanhã vamos batê-lo na sua cidadela de Canudos. A pátria tem olhos fitos sobre vós,
tudo espera da vossa bravura. O inimigo traiçoeiro que não se apresenta de frente, que combate-nos
sem ser visto, tem contudo, sofrido perdas consideráveis. Ele está desmoralizado... “
“ Canudos cairia no dia seguinte. Era fatal. “ Vencidos de véspera, o inimigo mesmo parecia
ciente da resolução heróica; cessara os tiroteios irritantes. À tarde, as fanfarras dos corpos militares
vibraram harmoniosamente até cair a noite.
No dia seguinte, data do mais potente assalto, as colunas seguiram firmes na investida fatal contra
os jagunços e o Beato. A luta pela República e contra os seus imaginários inimigos era uma Cruzada.
Enquanto alguns guerreiros morriam saudando o busto também imaginário do Marechal de Ferro, do
outro lado, a gente de Canudos morria dando vivas ao Bom Jesus Conselheiro. Foi um dia sangrento,
mas a noite transcorreu sem maiores problemas, mesmo em meio a muita vigilância das duas partes.
Dia 19 - a fuzilaria inimiga principia às 5 da manhã.
Dia 20 - o acampamento é subitamente atacado quando cornetas tocam a alvorada.
Dia 21 - os canhões atiram até à boca da noite. Dia relativamente calmo, poucas baixas.
Dia 22 - a artilharia abre os canhoneiros às 5 da manhã
Dia 23 - Alvorada tranqüila. Uma hora depois os jagunços começam a atirar.
Dia 24 - Bombardeio ao levantar do sol
Dia 25 - As mesmas cenas. Uma monotonia dolorosa.
Os fatos e as cenas do combate potente chegavam à capital da República de forma baralhada.
Resumindo, João Abade e Pajeú em vez de celerados, tomavam feição de revolucionários admiráveis,
verdadeiros chouans. Por outro lado, alguns já gritavam pelas ruas. Os inimigos estão encurralados. A
vitória é certa!
Depois de dias de batalha, as primeiras vítimas, os feridos e alguns corpos recolhidos, começaram
a chegar a Monte Santo para serem cuidados. Montaram-se hospitais de guerra. A hecatombe
progredia com uma média diária de oito mortos por revés. Por outro lado, os adversários pareciam
dispor de extraordinários recursos. Novos reforços. Chega a brigada do Marechal Bittencourt. A
divisão Arthur Oscar é reforçada. Prefigura-se próximo o término da campanha. O arraial
bombardeado tinha um novo aspecto, não parecia mais tão rebelde. Das cinco mil e duzentas vivendas
via-se pouco mais da metade. O pior é que toda a gente acostumara-se àquele espetáculo diário de
mortes gerando uma despreocupação da vida.
“ A vida no arraial tornou-se atroz. Revelaram-na depois a miséria, o abatimento completo e a
espantosa magreza de seiscentas prisioneiras. ( ... ) Nada revelava a origem daquele estoicismo
admirável. É simples. Falecera a 22 de agosto Antônio Conselheiro. “ Fora encontrado por Antônio
Beatinho ( seu auxiliar direto ) . Estava rígido e frio, tendo aconchegado ao peito um crucifixo de
prata. ( No próprio livro há uma contradição de Euclides sobre essa data.)
Seguiu-se uma situação de hipnose coletiva, pois mesmo sem seu líder os jagunços lutavam com
mais afinco, crentes no encontro celestial com seguiu no Dia do Juízo final.. Alguns se desesperavam
e, com a chegada dos soldados, ateavam fogo às próprias casas e mergulhavam nas chamas. Outros
corriam destemidos para a frente dos fuzis. A luta continuava e nesses intervalos, desaparecia o
casario, sumia o povoado. Os jagunços recuavam diante do poder numérico do fogo militar. Alguns se
rendiam como o fez Antônio Beatinho e algumas dezenas de fiéis. Outros até fugiram. Foi o caso de
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Villa Nova que dormiu e não amanheceu. Estava bloqueado, cercado e invadido o arraial de Canudos.
O telegrafo noticiou. A insurreição estava morta.
Crítica
O livro Os Sertões denominado A Bíblia do sertanejo é uma dessas obras que precisamos por bem
ler, ou seja, determinados livros de determinados autores podem e até devem ser ignorados, mas uma
obra como esta, de valor humano inigualável, de tendência histórica, científica, jornalística,
sociológica e até mesmo paradoxal sobre o Brasil, não só sobre o que houve no sertão da Bahia, deve
ser lida e sempre estudada por tudo o que representa. E o que esta obra realmente representa?
Primeiramente, uma denúncia, o grito de um homem sobre um crime, um massacre inconcebível, uma
das maiores atrocidades cometida pelo governo brasileiro depois da Guerra do Paraguai. Euclides da
Cunha, em um discurso inteligentemente ambígua e paradoxal conseguiu passar com o máximo de
veracidade permitida pela Literatura não só a Guerra de Canudos, mas as mazelas que afetavam o
homem daquela época, a época em que o Brasil ainda buscava ( e talvez ainda esteja procurando ) uma
identidade cultural, social, racial e política. Euclides da Cunha em certos pontos do livro e na opinião
de leitores superficiais parece racista, preconceituoso e encamisado pelo militarismo constante. No
entanto, para bons leitores e conhecedores da obra euclidiana, o que temos ali é o discurso paradoxal
de um homem introspectivo e em crise. Primeiramente, decepcionado com o regime que ele ajudou a
fazer e em seguida pela utilização errada da força bruta e das armas contra um bando de ignorantes e
fanáticos que, na verdade, não precisavam ser combatidos ( assassinados ), mas principalmente
ajudados. O livro Os Sertões revela um crime partido de uma atitude errada do poder que em vez de
mandar para os sertões da Bahia um carro cheio de farinha e carne-do-sol conduzido por alguns
professores, pois de comida e educação era o que aquele povo precisava, mandou foi bala, munição à
farta, exigindo a cabeça de Antônio Conselheiro que, depois de analisada pelo maior legista da época,
descobriu-se ser um crânio normal, de uma pessoa tão normal quanto o novo presidente da república
ou o professor que vos fala. Outro fator importante neste livro é a linguagem utilizada, um tom
declamatório que combina com o teor de denúncia, pois ao mesmo tempo que parece científico
apresenta-se como uma voz altiva, como se Euclides da Cunha realmente estivesse falando em cima de
um púlpito ( gesto repetido por Cafu na conquista do Penta ) para que todo o Brasil o escutasse. O
interessante é que Euclides não usou um discurso empolado, ( como os parnasianos ) mas palavras tão
fortes que ainda hoje ecoam pelas capitais, pelas favelas, pelos nossos ouvidos e pelos sertões de
nossas memórias de maneira tão insistente a não mais acabar.
15 - Balé do Pato – Paulo Mendes Campos
Autor e Obra
Pertencente à Terceira Fase do Modernismo brasileiro, Paulo Mendes Campos é mineiro,
escritor, poeta e jornalista, nascido em Belo Horizonte em fevereiro de 1922, ano da Semana
de Arte Moderna. Teve uma infância campestre e arredia, tanto é que um dia fugiu sozinho
para Mato Grosso. As lembranças dessa época passariam a se refletir em alguns de seus
textos, e a fuga propriamente dita foi a inspiração para os primeiros textos. Crescendo, fez
direito, odontologia e veterinária, mas sua indecisão literária fez com que trancasse todos os
cursos. Em 1942, estreou como jornalista publicando seus primeiros artigos no Diário de Belo
Horizonte. Depois não parou mais de escrever. Mudou para o Rio de Janeiro como todo
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escritor que deseja aparecer. E dizia: “a imprensa me pegou pelo pé e me sobrava pouco
tempo para ajeitar os meus poeminhas “. Estreou oficialmente para a Literatura em 1951 com
um livro de poemas intitulado A Palavra Escrita demonstrando muita versatilidade. Morreu
em julho de 1991 no Rio de Janeiro, deixando alguns poemas e uma infinidade de
observações da vida, as crônicas, como devemos chamar. Obras: POESIA: A palavra escrita
( 1951 )/ O Domingo azul do mar/ Testamento do Brasil/ Transumanas/ Antologia Poética/
Balada do amor perfeito ( 1979 ) . CRÔNICA: O cego de Ipanema ( 1960 )/ Homenzinho na
ventania/O colunista do morro/ Hora do recreio/ O anjo bêbado/ Supermercado/ Os bares
morrem numa Quarta-feira/ Crônicas escolhidas/ Trinca de copas / A arte de ser neta ( 1985 ).
Momento
Paulo Mendes Campos, assim como Rubem Braga, Sérgio Porto e Fernando Sabino, pertence à
última geração modernista, o grupo de 45 que, seguindo os ideais de modernidade acabou adotando
como prática o culto ao texto breve, ou seja, o Conto e a Crônica, que possuem um poder de síntese
muito maior se comparado com os grandes romances do século XIX. Esta geração Pós-modernista foi
marcada pela destruição parcial do mundo na Segunda grande Guerra, e por isso acabou sendo
herdeira de duas vertentes: a preocupação social e os estigmas da vida, o teor psicológico, de um
ambiente de reconstrução. Falando mais propriamente da Crônica, o que devemos destacar também é a
importância que passou a ser dada ao texto jornalístico, prática que fez brotar grandes escritores nas
páginas dos jornais da época que não se ocupavam mais de folhetins, mas de textos-verdade. O povo
gostava de veracidade, e o texto jornalísticos passava-lhes credibilidade. Assim, os cronistas foram
surgindo aos montes, recriando a realidade, mas com uma verossimilhança tão forte que era difícil
saber onde estava a verdade ou a ficção. Cronista e pós-modernista; é a melhor maneira de enquadrar
Paulo Mendes Campos.
Análise de algumas crônicas
METIDO EM APUROS
1.
Despertar da montanha
Um homem fala de sua dificuldade para despertar e do problema angustiante que é perceber as
coisas comuns do dia-a-dia quando se está acordando. Diz que detesta que lhe façam
perguntas, no entanto, tem dois filhos que não fazem outra coisa a não ser perguntar, e
perguntar as coisas mais fúteis. “Quais são os símbolos da pátria? “ Qual é o antônimo de
fervor? Como era o verdadeiro nome do Caramuru? E diante de todo esse esfingético cotidiano,
com a ajuda do potencial de ameba que ele julgava ter, logicamente, as perguntas ficavam todas
sem resposta.
2.
Balé do Pato
Esta crônica é sobre um brasileiro comum, Alexandrino, guarda-vidas da praia de Botafogo, que
estava em seu posto pronto a perceber mais um dia sem muitas alterações. Até que surgiu uma
loura linda com jeito de turista trazendo debaixo do braço um pato preto e gordo. A jovem
chorava copiosamente. Alexandrino ficou observando. A moça colocou o pato na água e parecia
tangê-lo para o alto mar. Mas o pato rebelde nadou rapidamente para a praia e depois para o
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passeio ( calçada ). Alexandrino, na intenção de ajudar correu atrás mas foi inútil. Um gari
recolheu o pato e saiu feliz levando o mesmo preso para casa. Na praia, a senhora, francesacarioca chorava mais ainda. Alexandre resolveu investigar. Soube que o apto era um tipo de
macumba, ou simpatia, para a jovem manter o marido que queria deixá-la. Uma macumbeira do
Vigario geral foi quem deu a dica. Se o pato nadasse para o mar, o marido voltaria; se fugisse
para a terra, adeus marido. Alexandrino, novamente querendo ajudar pensou num plano perfeito:
disse que a simpatia não dera certo porque tinha que ser um pato branco. A moça acreditou e
foi correndo comprar outra ave. O pato foi lançado também ao mar e desta vez o despacho deu
certo, o pato ficou na água com evoluções mansas A moça deu um beijo em Alexandrino como
agradecimento. Depois entrou em um Pegeaut e foi embora. Alexandrino, espertamente, jogouse ao mar e capturou o pato em um instante. Chamou imediatamente um negrinho de rua, seu
colega, entregou-o o pato e mandou dizer à esposa que caprichasse no molho pardo. Estava
encaminhado o almoço feliz daquele dia.
3.
Menino de Cidade
Esta crônica está ligada à própria infância de Paulo Mendes Campos que era um menino
do campo e foi para a cidade. Metaforicamente, a situação é armada como se o narrador
fosse um pai, e o filho um menino cheio de sonhos sobre coisas vivas, amante das plantas
e de animais que, em sua inocência vai criando, mesmo no Rio de Janeiro, um lugar
agradável, como um sítio, cheio de todos os tipos de plantas e bichos desde ariranhas até
rinoceronte, que o pai não quer permitir. E o menino continua moldando o seu habitat,
conhecendo melhor os bichos que as pessoas, melhor as plantas que as coisas.
Atualmente, plantou uns brotos de feijão em um pires sem uso e jura que tem uma enorme
fazenda.
REVIVENDO O PASSADO
4.
Numa Cidadezinha de Minas
Texto inspirado na infância rural do autor, por isso apresenta um fato cotidiano, mas que
por envolver a Igreja e um pouco de política, acaba sendo inusitado. O que temos é um
padre que pede às autoridades um novo cemitério e é atendido. Aos poucos, a comunidade
vai fazendo restrições ao comportamento do padre que mata até passarinho. Os políticos
não vão muito com a cara dele, chamam-no de Udenista, mas faltam motivos para prendêlo ou expulsá-lo. Nas um dia, descobrem que o padre transformou o cemitério novo em
um horta. As pessoas ficam indignadas, principalmente os parentes do morto, pois o
túmulo de sus parentes está cheio de tomates e abóboras, mas não conseguem demover o
vigário de suas atitudes. Pedem ajuda a Assembléia e ao prefeito, mas não adianta, o padre
manda bala em quem mexer com sua horta. Inteligentemente, escrevem ao bispo da
Diocese e em poucos dias o padre abandona a cidade de mala e cuia. A horta é arrancada .
Mesmo assim, ninguém nunca tinha visto abóboras tão grandes e tomates tão bonitos.
5.
Marcha para o Oeste
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Este é um texto inspirado na fuga de Paulo Mendes Campos para Goiânia. Metaforicamente, o
título pode ser ligado à Coluna Prestes, sei lá. Mas o que temos é a historia de três meninos
resolvidos a fugir, querendo liberdade dos pais, da escola e de todo tipo de opressão juvenil.
Arrumam as mochilas, pegam comida, animam-se, roubam 3 cavalos e fogem. No caminho,
quando ia começar a parte mais perigosa da viagem, encontram um velho misteriosos que lhes
diz para não fugirem, pois seria além de perigoso uma grande bobagem. Dão os mantimentos ao
velho e voltam para casa, mais amadurecidos, mais conscientes e achando infantilmente que
“bons velhinhos “ainda existem.
6.
Revolução em Belo Horizonte
Narrado em 1ª pessoa, este texto é de uma sutileza fora do comum, principalmente
quando o compreendemos sob o ponto de vista de uma criança. O que temos é uma
narrativa feita sobre o tempo em que houve a Revolução de 30, quando aviões militares
bombardearam as instalações do 12º Regimento de infantaria de Belo Horizonte tudo
assistido pelo narrador, na época com 7 anos, como ele dizia, “uma gracinha de alienado
“, pois tudo para ele era uma beleza, não compreendia nada do espetáculo cru de uma
revolução. A família toda abandonou a casa, o pai perdeu o comércio que possuía e foram
obrigados a fugir. Em tempos de fome e miséria causados pela revolução, o pai do
narrador distribuía o que tinha com os pobres e o relato inteiro é motivado exatamente
por este sentimento de orgulho.
PENSANDO NA VIDA
7.
A arte de ser infeliz
História de um homem comum que tem uma vida comum, com uma esposa comum,
filhos comuns e um trabalho comum. A intenção do autor é mostrar que não devemos
pautar a nossa vida pelas trivialidades, pois acabaremos infelizes. É como se fosse uma
receita para a infelicidade.
8.
O pobre do escritor
Texto que revela um certo ranço e amargura do narrador ao tratar da sua relação com
a sociedade, os leitores, e outros escritores, principalmente os da Academia. O texto fala
de Narcisismo, egoísmo e paixão pela escrita. Fala também da falsidade das pessoas e dos
críticos, com os seus elogios falsos e principalmente a incapacidade de julgar
corretamente um autor e seu texto sem tendenciosidade. Com isso, pobre do escritor que
se fiar na crítica ou nos elogias diários, tão comuns como comer pão com presunto.
9.
Minhas janelas
Texto muito interessante que fala da angústia de um escritor em mudar de residência
porque infelizmente vai ter que abandonar sua janela. Aparentemente, qual o sentido de
tudo isso? Parece uma situação boba e sentimental, mas não. O apego do escritor (
cronista ) à janela é porque ao longo de toda a sua vida, a vida de cronista, tudo o que
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produziu, tudo o que escreveu, nasceu exatamente das observações que fazia do cotidiano
do mundo e das pessoas que passavam ali em frente à sua janela, por isso, a tristeza em
deixa-la.
Crítica
A crônica, durante muito tempo considerada um gênero menor, é na verdade tão
importante e tão complexa quanto o conto. Por ser um gênero híbrido, tem muito a ver com o
que é verídico, mas em se tratando de Literatura diremos que é apenas mais verossímil que o
conto, exatamente porque trata de fatos do cotidiano, ou seja, situações que não são reais mas
que podem perfeitamente acontecer dentro de uma potencialidade de realização. É também
um a modalidade narrativa muito próxima do social que traz via de regra situações alegres ou
tristes, mas que principalmente sejam capazes de fazer o leitor refletir sobre o assunto. Na
maioria dos seus textos Paulo Mendes Campos é sempre o exemplo da categoria a que
pertence, ou seja, o analista de situações da vida e do cotidiano, de coisas que passam por sua
retina e vão imediatamente transpondo a barreira da insignificância para transformarem-se em
material humano, escrito, mas humano, sobre a vida, os problemas, as alegrias e os dissabores
de toda e qualquer pessoa.
16 - Beira-Sol – Adriano Espínola
AUTOR E OBRA
Adriano Alcides Espínola é professor de literatura brasileira na UFC, diretor adjunto da revista
“Poesia Sempre” - Biblioteca Nacional, Brasília – colaborador de vários suplementos literários mundo
a fora, e agora nos brinda com uma tese de doutorado sobre Gregório de Matos, o “boca-do-inferno”.
É autor dos seguintes livros de poesia: Fala Favela (1981), O lote clandestino (1982), Trapézio (1984),
Táxi (1986), Metrô (1993), Em trânsito (1996) e Beira-Sol (1997).
Seu livro Táxi foi devidamente traduzido para o inglês e tem participado de várias antologias
nacionais e estrangeiras com uma poesia muito apreciada pelo público e pela crítica, tanto que um dia
já teve seu nome sondado para um cadeira na ABL, mas o “lobby” dos concorrentes foi mais forte e
Adriano, pacientemente, espera para ter sobre sua cabeça os louros da consagração.
Adriano Espínola pertenceu ao grupo Siriará, formado na década de 70 por pessoas que hoje
têm lugar na cultura cearense como Oswald Barroso, Batista de Lima e Floriano Martins. O grupo
Siriará é portanto, posterior aos grupos CLÂ e SIN, grandes formadores da literatura cearense após a
revolução literária provocada pelos rebeldes de 1922. Muito à vontade, culto e viajado, Adriano
Espínola é uma das maiores referência da literatura cearense na atualidade.
MOMENTO LITERÁRIO
Exemplo conhecido de versatilidade, Adriano Espínola faz parte da nova safra de autores
cearenses, herdeiro portanto da chamada Geração de 45, de João Cabral e Ledo Ivo no tocante ao
Brasil, e produto direta do que foi propagado pelo Canto Novo da Raça e pelo Suplemento Maracajá,
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Modernismo Cearense, de autores como Paulo Sarasate, Rachel de Queiroz e Demócrito Rocha.
Conheceu a poesia audaciosa inovadora do Grupo CLÃ , do qual fez parte seu tio Moreira Campos,
um dos maiores contistas do país. Teve contato direto com os integrantes do Grupo SIN, grupo de
poetas que viveu o dilema do Sim e do Não durante a Ditadura, autores como os conhecidíssimos
Linhares Filho e Pedro Lyra, autor de Desafio. Conheceu, conhece e vive todo tipo de poesia, por isso
conseguiu criar suas metáforas de forma muito particular, podendo ser inserido no que chamamos de
Contemporaneidade.
Essa Contemporaneidade , adepta de um “sincretismo” talvez exagerado, cultua de tudo um
pouco. Se em determinados momentos é legítima representante do classicismo camoniano, ao mesmo
tempo sugere um dualismo intrigante, assumidamente neo-barroco. Vai à Espanha e à França, é
simbolista e Moderno, mas sem deixar de registrar, de forma interessantíssima, suas impressões de
poeta apegado ao mundo, ao homem e ao meio em que está inserido. É portanto, um poeta da
liberdade e da sociedade, assim como o revolucionários Garcia Lorca, Gregório de Mattos e João
Cabral de Melo Neto.
Adriano, “poço profundo de metáforas”, representa juntamente com Horácio Dídimo, um dos
introdutores do Concretismo no Ceará, Artur Eduardo Benevides (presidente da ACL) e o prof.
Linhares Filho, a “nata” da poesia cearense.
ANÁLISE
O livro Beira-Sol está dividido em duas partes: “Claridade” e “O cão dos sentidos”. Cada uma
delas fará parte da grande poesia que é o livro, e a partir do título, “Beira-Sol”, representa em síntese
uma grande apologia à “Luz” e à própria cidade de Fortaleza que, de forma “pessoana”, é revisitada,
como um canto de amor iluminado.
1º PARTE: A CLARIDADE
1. LÍNGUA-MAR
A língua em que navego, marinheiro,
na proa das vogais e consoantes,
é a que me chega em ondas incessantes
à praia deste poema aventureiro.
É a língua portuguesa, a que primeiro
transpôs o abismo, e as dores velejantes
no mistério das águas mais distantes,
e que agora me banha por inteiro .
Língua de sol espuma e maresia
que a nau dos sonhadores - navegantes
atravessa o caminho dos instantes,
cruzando o Bojador de cada dia.
Ó língua-mar, viajando em todos nós
No teu sal, singra errante a minha voz.
ANÁLISE:
78
Este poema tem conotação ufanista (orgulho e valorização). Feito à moda portuguesa, glorifica
a nossa língua. O ritmo cadenciado, agradável melodia, fala de “Mar”, dialeto “oficial” na poesia. Foi
aplicada a forma fixa (soneto, 4, 4, 3 e 3), tem 14 versos decassílabos e, por isso, me lembrou Camões.
Não um Camões amargurado, perceptível no final d‟Os Lusíadas, mas um Camões modesto, de um
amor pela língua-mar e poesia quase sem medida. A forma fixa, mesmo sem o devido espaçamento
entre as estrofes, coisas de hoje, denuncia a proximidade com o ardor e a galhardia do versejar
camoniano, famosos no Classicismo.
Interessante, ainda, é notar que o poeta, antes pescador e agora navegante, usa o mar, a voz e a
língua como fundamentos de sua poesia que, de tão forte, tão vigorosa, consome-se e o consome
“cruzando O Bojador, singrando o mar de forma errante” e espalhando pelo mundo a nossa língua.
2. PESCA
A aurora se desamarra do caís.
Um barco singra o peito
rosado do mar
A manhã sacode as ondas
e os coqueiros
O azul estica a linha do horizonte
Na praia, um pecador arrasta
um sol de algas
Em suas mãos, um peixe salta:
ó palavra escamosa,
espírito agitado das águas.
ANÁLISE:
Neste poema, o título “Pesca” é bastante sugestivo para explicar quem é realmente o poeta
Adriano Espínola. É na verdade um “metapoema” no qual encontramos Adriano como um simples
pescador. O samburá do poeta enche-se do espírito agitado das águas, um tipo de peixe “escamoso”, a
própria palavra. Uma palavra - peixe que de deliciosa, às vezes, pode amargar à boca. O poeta é
simplesmente isso, um pescador de palavras em seu barco de metáforas. Pode-se dizer que o peixe é a
própria poesia.
3-) BEIRA-SOL.
Nasce da luz solar um pescador.
Sobre uma pedra
fisga a carne prateada.
Duas mulheres na areia,
retalhando pargos,
cantam uma canção vermelha.
Cajueiros sopram
sua verde vigília
na fronte de um jangadeiro.
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Nas dunas
Meninos açoitam
Com a espinha dos peixes
o dorso da claridade .
Três jangadas,
inclinadas na praia,
aparam a luz
com seus brancos dedos entrelaçados.
O céu
é uma vela inflada
ao sopro salobre das ondas.
Faiscando,
a manhã marinha rola,
em Fortaleza, à beira - sol.
ANÁLISE:
Neste poema existe um apelo. Adriano quer que a leitura nos leve pra algum lugar, formula
imagens. A percepção dele deve ser a nossa. É pura construção e captação de imagens. Alguma coisa
a ver com o Simbolismo? Seguramente. O cenário é a praia; o clima é o vento cálido. O momento: à
beira-sol; a força é a própria luz e as cores são variadas, como retoques na belíssima paisagem. Os
pargos, vermelhos como a canção, a verde vigília, os brancos dedos, o céu azul (como a poesia de
Adriano) indicam apenas a presença de um poeta-pintor que faz da natureza viva, da percepção que
tem das coisas através de “seu” olhar, rico em sinestesias, um gracioso painel. Os versos livres, sem
obrigações aparentes, não são ricos nem pobres, apenas versos. São pelo somatório das estrofes, sete
molduras nas quais a cor e a luz são elementos encantatórios e imprescindíveis. Não se deve esquecer
ainda, que continuamos com o mesmo pescador de palavras, ávido de “carne prateada”.
2º PARTE: O CÃO DOS SENTIDOS.
Na Segunda parte de Beira-Sol podemos destacar, dentre muitas outras coisas, a presença de
elementos (pessoas, autores, animais e etc.) que de acordo com o emprego podem ser intratextuais ou
extratextuais.
Há também um caráter de homenagem a autores que influenciam, de alguma forma, a poesia
de Adriano Espínola. É o caso do poema “João”, que faz referência a João Cabral de Melo Neto, o
“poeta das facas”, o “poeta do coração de pedra”. Há uma alusão a um grande pintor cearense, Chico
da Silva e a citação de outros personagens importantes como Vicente Pinzón ( navegador espanhol que
chegou ao Ceará pelo Vale do Acaraú ), Silva Paulet ( engenheiro famoso que deu à arquitetura de
Fortaleza, principalmente o centro da cidade, o desenho retangular que possui.), Matias Beck (
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fundador da vila que originou a cidade ) e Martim Soares Moreno ( o guerreiro-branco desbravador
do Ceará que virou personagem do romance Iracema de José de Alencar ).
O CÃO
Ofegante e negro
salta de dentro da luz
do meio dia.
Rebate,
com a capa aveludada,
o branco abraço do sol
Inquieto,
Investiga com o focinho
O suor oculto das coisas.
(...)
(Na rua vazia,
o cão é um bicho
ou uma aparição?
Que coleira prenderá
o cão dos sentidos?)
Súbito se espanta.
Alerta,
salta ao lado,
latindo
ancestral
para o alto
( para quem? )
antes a brusca presença
do real.
2-) JOÃO
Conter esta chuva nos lábios
é adensar nuvem repleta
a sua exata estação lambendo
a terra.
Amansar este rio nos dedos
é fisgar nas locas do tempo
o peixe arisco da busca,
atento.
(...)
Apreender o homem no chão
é aguçar o fio das palavras,
faca ferindo certeira
o espanto.
Fazer o verso quanto João
é plantar a palavra pedra,
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horta sonora brotando,
severa.
ANÁLISE:
No poema “O Cão”, confronto inimaginável entre a “Claridade” e a escuridão, há um requinte
de mistério. O cão negro, criação da “luz do meio-dia” , antes de ser mais um vira-latas, como tantos
na praça José de Alencar, mais um elemento social, é a nossa imaginação, a imaginação criadora do
poeta. O cão tem função: investigar as coisas, correr até elas. A imaginação, que é o Cão dos Sentidos,
corre à solta pois não há quem a possa prender, não há coleira para isso (?).
O 2º poema com o mesmo objetivo da maioria dos que estão no livro, como por exemplo:
“Evocação de Garcia Lorca” e “Moema”, refere-se a João Cabral, poeta da Geração de 45 autor dos
textos A Escola das Facas, A Educação pelas pedras, O Engenheiro e Morte e Vida Severina.
É, sem dúvida, o mesmo “João”, pois o uso das palavras “pedra”, “faca” (na aliteração “faca
ferindo”) e “severa” denunciam essa alusão.
COMENTÁRIO:
Há muitos outros elementos interessantes nos poemas de Adriano Espínola. O intertexto, o
intratexto e o extratextual estão o tempo todo presentes. Temos um Ulisses, em “O jangadeiro”, numa
alusão a James Joyce, A Rendeira e as Marias, de lagoa Mariterra, que se não pescam são
lavadeiras num afresco social. denotando a variadíssima cultura do povo cearense. Há retratos de
Fortaleza como nos poemas sobre o morro do Mucuripe, as Dunas, a lagoa de Maraponga, a Praça,
a Catedral e a Residência. A Natureza personifica-se no Gato e no Cão, na Àrvore e no Coqueiro,
apinhados de Frutas, e em todo o Zoológico, onde vemos pescadores de palavras e Marias lavadeiras
fugindo dos Urubus, habitando a Claridade, vigiados pelo amedrontador Cão dos Sentidos. Tudo isso
em Fortaleza, perto do Mar e à Beira-Sol.
17 - Desafio: uma poética do Amor
- Pedro Lyra
Autor e Obra
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Nascido em Fortaleza a 20 de janeiro de 1945, Pedro Wladimir do Vale Lyra foi professor do
curso de Letras da UFC até 1981. Quando transferiu-se para a UFRJ, onde aposentou-se
posteriormente em 1997. Profundo conhecedor de literatura, é Mestre em Poética e Doutor em Letras
pela UFRJ, dedicou-se à crítica e mais ainda à poesia. Durante muitos anos foi colaborador do Jornal
do Brasil ( RJ ), onde divulgou parte de seus escritos como dos seus dois maiores trabalhos críticos: O
real no Poético e Sincretismo
Amante incontestável da língua portuguesa, tem como grande influência o teor semântico dos
autores Luís Vaz de Camões, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes.
A obra de Pedro Lyra, bastante conhecida, foi acolhida favoravelmente pelos críticos nacionais e
estrangeiros. Com vários livros publicados, Pedro Lyra conseguiu, como poucos, ver sua obra
traduzida e publicada em outros países ( Inglaterra, França, Itália, Alemanha, Portugal etc. ) Grande
colaborador de revistas e periódicos especializados em literatura, Pedro Lyra conseguiu o que todo
artista procura intensamente, ser “homem do mundo “ como dizia o grandiosíssimo Charles
Baudelaire, maior nome da poesia francesa.
A obra de Pedro Lyra está resumida, basicamente, a textos de poesia e crítica literária. Poesia:
Sombras ( 67 ), Doramor ( 69 ), Poema-Postal ( 70 ), Decisão ( 85 ), Desafio ( 91/2001 ) Errância,
Jogo e Contágio ( 93 ). Poesia Inéditos: Confronto e Argumento. Crítica: Poesia Cearense e a
realidade atual ( 68 ), Sincretismo: a poesia da geração 60 ( ) , A socialidade da arte ( 76 ), O real
no poético ( 80 ), O dilema poético de Camões e Pessoa ( 85 ), O real no poético II ( 86 ).
Momento
Definitivamente contemporâneo, Pedro Lyra segue bem o ideário do SINCRETISMO, grupo
literário ao qual pertenceu. O Sincretismo pregava a mistura, a mescla de formas e conteúdos poéticos,
além de ser engajado politicamente uma vez que as atividades do grupo situam-se na década de 60,
mais propriamente 64 a 68, período da Ditadura Militar. Pedro Lyra e seus companheiros, como por
exemplo Linhares Filho ( UFC), Carlos D`Alge ( UFC ), Batista de Lima ( UECE/UNIFOR ), Rogério
Bessa ( UVA ) e Barros Pinho ( político ) , viveram numa época em que “ser ou não ser” era realmente
a questão, ou seja, viveram literalmente entre o Sim e o Não, como diria Adriano Espínola.
Quando as coisas melhoraram, quando a poeira abaixou, Pedro Lyra fez como Moacir, ( o
primeiro cearense, na lenda de Alencar ) foi embora de sua terra, buscar prestígio onde dizem que as
coisas realmente acontecem, no estrangeiro ou no eixo Rio-São Paulo.
Análise
O Título
Conhecendo bem as provas da UFC, podemos assegurar que a comissão organizadora do concurso
procura tirar do livro tudo que for importante e que possa originar uma boa questão. Assim, quando
nos comprometemos a estudar uma obra literária, não podemos deixar que nada nos escape. Cada
detalhe é importante para entendermos a obra por completo, por isso, o ponto de partida deve ser o
título. O que poderia significar Desafio: uma poética do Amor? O que é poética? E o que o Amor tem
a ver com isso? É perceptível que o título realmente pode significar uma boa questão. Pronto para a
resposta? Então vamos lá.
83
O título Desafio, de acordo com alguns críticos, e segundo o que o próprio livro nos apresenta,
está ligado a uma atitude duplamente desafiadora do poeta. Em primeiro lugar, Pedro Lyra demonstra
audácia ao falar de Amor ( sentimento sublime valorizado por Camões e pelos românticos ), e é
realmente corajoso se levarmos em consideração o fato de que nos dias de hoje o mundo (
informatizado, globalizado, mais capitalista e em pé de guerra ) impede que o homem ainda acredite
nisso. Atualmente, como dizem os Brás Cubas de plantão “Não existe amor, existe homem com carro
e homem sem carro “. “Se você tem dinheiro as mulheres te amam, se não tem, elas te desprezam “.
O segundo grande desafio está ligado à palavra poética, relacionada com o verbo “fazer “. Para
quem percebeu, o poeta nos apresenta 89 poemas em forma de soneto (4,4,3,3 ), exatamente como o
faziam Petrarca, Camões, Bilac e Vinícius. É realmente um duplo desafio.: falar de Amor quando
ninguém mais fala ( 2001 ) e da forma mais antiga possível, o soneto ( 1500 ). Tá explicado?!
Os Poemas
Parte I - Constatação
A este grupo de poemas o poeta deu uma característica bastante prosaica, pois trata de situações
comuns vividas pelos amantes, seus conflitos existenciais e seus problemas mais concretos recortados
do dia-a-dia para reforçar que a qualquer dia, mês ou ao, o Amor é eterno, mas nunca o mesmo
Ex. Soneto de amor se realizando II ( pág. 30 )
De repente
vontade de estar junto
em casa
no trabalho
numa nuvem
de nada mais fazer
sem ter o outro
a motivar o feito
de só ir
aonde o outro for
partilhar tudo
( um problema
um cigarro
aquela ilha)
a ver nas mais singelas atitudes
( no sorriso
um aceno
uma surpresa)
um acento que só imanta o ser das
coisas
e as transfigura
a tudo acrescentando
o halo de magia do recíproco
num mundo de alegria e descobertas
É o desejo não só adivinhado
mas satisfeito
Já
antes de abrir-se.
84
Comentário: Em primeiro lugar, é preciso entender que em poesia e na poética de Pedro Lyra duas
coisas são muito importantes: o conteúdo trabalhado ( o Amor ) e a forma escolhida para fazer isso
( o soneto ). Pedro Lyra é acima de tudo um sonetista ( clássico por influência de Camões e Bilac e
inventivamente moderno se considerarmos o reflexo de Vinícius de Moraes e Guilherme de Almeida ).
Neste soneto, exatamente por estar se realizando, encontramos um “eu-lírico” que fala da vontade de
estar junto, “em casa”, “no trabalho”, na rua ou “numa nuvem”. Encontramos a necessidade de
partilhar tudo, “um problema”, “um cigarro” ou qualquer coisa. É, na verdade, um poema sobre o
amor cotidiano, tão simples e tão presente que não precisa ser entendido, apenas realizar-se.
Parte II – Confissão
Como o subtítulo sugere, este bloco de poemas apresenta uma situação comum: o diálogo do
poeta com sua musa ( tendência clássica ) na tentativa de apresentar casos mais particulares das
diversas situações amorosas.
Ex. Até a Exaustão ( pág. 69 )
Não só a convivência
- foi-me a vida
que começou no prisma deste encontro
da negação
donde negava o resto
rompeste
- negação das
negações
e seguimos
trocando sem fissuras
o que não se esperava achar em outro
essas palavras
que o silencio grifa
essas coisinhas
que a paixão encanta
e as atitudes que
cruzando os seres
tornam um ao outro necessário
Como que sem sentir
Fomos sorvendo
Sem nem bem perceber
Fomos entregues
E em quanto o dia-a-dia ia rolando
Ia-se o nosso ser desenrolando.
85
Comentário: Novamente, temos o cotidiano amorosos marcado pela palavra convivência que
acompanha o leitor desde o primeiro encontro. O Amor neste momento, para o eu lírico, segue num
desenrolar constante indo até a exaustão, não a exaustão do amor, mas do dia, dos prazeres e dos
amantes. Nesse caso, o Amor apenas cresce, como também cresce a necessidade que os amantes têm
de estarem juntos.
Parte III – Clivagem
Agora, neste bloco de sonetos, o poeta inverte um pouco as coisas. Em vez de o “eu-lírico “
conversar com a sua musa, a musa é quem se dirige ao poeta, orientando-o, passando-lhe sabedoria e
até consolando-o se for o caso. Percebe-se também o paradoxo criado em relação ao amor e suas
motivações a partir do que o subtítulo possa sugerir: Clivagem representaria uma fenda, um tipo de
buraco no hermético mundo do Amor.
Ex. Soneto de Consolação - I ( pág. 107 )
Poeta
minha cria
meu amante
meu deus
minha criança
meu
capricho
Como estás enganado
Eu sou a Musa
não tenho e não preciso de poder
( exceto aquele que me destinaste
de te encantar
em vez de te
oprimir).
Sou a motivação
a liberdade
a fonte da beleza
( isto é: da vida )
te dou a poesia:
que mais falta?
Se fosse necessário
inventaria
mas ela é a razão do teu nascer
o bastante a cumprir a tua missão
86
Comentário: No soneto acima, encontramos, numa situação atípica, a musa conversando com o
poeta. É mais um soneto reestruturado no qual Pedro Lyra, apesar do requinte clássico ( influência
de Camões ), mostra-se acima de tudo pós-moderno, pois a exemplo de Vinícius de Moraes, não
destrói a estrutura comum do soneto clássico, apenas apresenta-nos uma nova possibilidade de
leitura( diagonal descendente ) para a forma antiga. Entende-se também que a Musa estaria para a
poesia assim como o Amor estaria para o poeta. Na realidade, a Musa é a inspiração, que teve como
berço o próprio Amor. Outro aspecto intrigante é o tom feminino e feminista das elocuções. É como
se a musa, que também é mulher, cobrasse do homem ( de conduta duvidosa ) que não decepcione sua
amada.
Parte IV – Lavragem
Quanto a este momento de Desafio, é importante observar a tonalidade narrativa. Há uma
semelhança com a prosa poética, pela ausência de rimas e pela aparente quebra da estrutura, mas na
verdade o que se configura é uma poesia em prosa. Nesta quarta parte, a poesia ganha um caráter
metapoemático, ou seja, é como se tudo que já foi dito pelo poeta, em poemas anteriores ou em
outros livros, voltasse a ser citado. ( metapoema )
Ex. Soneto de Advertência IV ( pág. 153 )
Ama.
Queres amar
Pois então
ama.
Desde que cumpra certas condições
Uma
antes de todas outras
que ela
Possa te amar também
E que não sonhes
Que esse amor vá além do seu desejo
E não vejas de um céu o que é do chão
E não julgues eterno o que é da hora
E não forjes o gume em que te firas
E não lhe queiras mais do que a ti
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Comentário: Este é um poema de caráter discursivo no qual é montada uma conversa amigável
entre um amador experiente e um amante que inicia. É como se o poeta tentasse esclarecer alguns
pontos sobre Amor e sobre o amar. Ouve-se nas entrelinhas, e até diretamente, a voz da experiência,
alguém que conhece profundamente os descaminhos do amor. Ao final, o Amor é revelado a partir da
advertência de alguém que sabe o que fala, que tem conhecimento de causa, pois uma das maiores
verdades do poema é “não lhe queiras mais do que a ti mesmo” , pois quando isso acontece o amador
estará com sérios problemas.
Parte V – Figurações
Nesta parte do livro, somos levados a um encontro delicioso com o ser humano mais
extraordinário que existe: a mulher. No bloco de sonetos denominados Figurações, ficamos diante da
mulher e com a ajuda do poeta, aproveitamos para saber tudo sobre ela , sua posição no mundo, sua
função, seus sentimentos. Entramos em contato com a história. Vemos a mulher em transformação,
pois nunca foi a mesma, principalmente depois da revolução sexual que se deu nos anos 70.
Ex. Soneto da Fêmea III ( pág. 210 )
Ela dá do prazer
E quase nunca
Recebe do que dá
Nem como
Ou
quanto
E dá-lo
Dá-se
Dá-lhe
- dá
ao ponto
de já não mais sentir-se desejada
88
Comentário: Este é um soneto nitidamente feminino. O assunto maior, depois do Amor, que em
todos os poemas é a base de tudo ( a poética ) acaba sendo a mulher, a alma e o corpo feminino em
todas as perspectivas. E, por qual motivo isso acontece não seria uma pergunta inteligente, pelo fato de
sabermos que o ser mais intrigante, extraordinário e maravilhoso do mundo, sem dúvida, é a mulher.
Este soneto é sobre uma mulher comum, que ama, que sonha e se dá, oferece-se em nome do amor
que tem, mas que dificilmente é valorizado, quase nunca reconhecido. Há um tom realista ao falar de
vingança, mas o que mais importa é a crítica ao comportamento de alguns homens que não dão para
suas mulheres o mínimo em uma relação: carinho, atenção.
Parte VI – Cumprimento
Nesta parte do livro, encontraremos uma análise do amor numa perspectiva diacrônica, ou seja,
um estudo do amor através do tempo, sua transformação, seu papel em nossas vidas. Mas, como na
89
maioria dos sonetos dessa parte, o que se pretende é apenas constatar uma coisa: a supremacia do
Amor. Há um recheio de tonalidade filosófica e até um pouco de existencialismo, mas sempre ligados
ao sentimento maior., aquele “que arde sem se ver”, que “transforma o amador na coisa amada”.
Ex. Soneto de Constatação VII ( pág. 233 )
Nasce um homem
Quando ele se
percebe
joga contra o destino a sua vontade
quer luzir
quer voar
quer sobrepor-se
para provar que a vida tem sentido
Trabalha:
cada fruto desse
esforço
lhe torna o fruto em forma de
desfrute.
Combate
cada etapa ultrapassada
acrescenta-lhe forças para outras.
Pesquisa:
cada pedra lapidada
lhe confirma o triunfo sobre o
tempo.
Mas na horta mais densa
opaca
Íntima
em que um espelho aceso cobra a
Comentário: Este prova
soneto, sem muita apelação, possui como variante máxima o tempo. É um texto
de tonalidade existencialista
que, de tão filosófico, me lembrou Machado de Assis em um de seus
Nem riqueza
mais expressivos contos. Falo de “ONem
Espelho”
glória narrativa sobre um jovem alferes que de tão orgulhoso
de si mesmo não percebe que só existe em função da
farda e da patente que ostenta. Um dia, diante de
Nem
um espelho, sem o poder:
elogio dos amigos e parentes, sozinho em casa, não consegue mais se ver. Este
conto pode ser relacionado com este poema? Acredito que sim, pois o conteúdo é aproximado pela
- só interessa mesmo o que lhe falta.
90
dicotomia “ser” e “não-ser”. Temos no poema, como no conto machadiano, alguém, um homem que
quer luzir, quer sobrepor-se e triunfar sobre o tempo, pois sabe que a ele, como a qualquer um, só
interessa o que falta. A forma utilizada pelo poeta é a mesma, um soneto reestruturado na tentativa
de propor uma nova leitura do modelo clássico.
Parte VII – Confirmação
Neste grupo de poemas, o individualismo parece sobrepor-se ao coletivo-universal, porque nos
parece que o poeta está falando do homem através de si, sobre sua consciência, sua maturidade
poética, cultural ou social. No entanto, o que realmente acontece é uma abordagem humanística de
caráter tão íntimo que ganha tons existenciais. O poeta parece propor uma auto-análise na tentativa de
compreensão de tudo, mas principalmente do homem e de seus sentimentos buscando um tipo de
confirmação de algo que ele sabe, acredita e pensa que estamos prontos a conceber: que o Amor é
eterno e que sem ele ( que traz a felicidade ) não vale a pena existir.
Ex. Soneto de Confissão XVII
( pág. 313 )
Musa
Sou feliz
Eu.
A nossa
espécie
Pode provar em mim que se
cumpriu:
Vivo ao que gosto
Tenho o
necessário
Me volto pronde quero
Faço o
bem
Sou benvindo ao oásis onde iria
Em troca até do sonho de estar
neles
Deixo filhos
uma árvore
alguns
livros
Mas, sobretudo, amo e sou amado
E sei o que fazer da solidão.
( mas como posso me mostrar
feliz
ou me viver feliz
se a convivência
exige que os demais também o
91
Comentário: Neste soneto, bem como em todo os textos de Confirmação, encontramos o individual
sendo somado ao coletivo. O caráter clássico da língua, com sua atitude universalizante, perde o
brilho diante da maior de todas as verdades sobre o Amor: que dói, que é ruim, que causa mal, mas
que o mundo precisa dele para sobreviver. Entenda-se pois que dentro do aspecto humanístico
deste poema encontramos uma certa oposição ao individualismo por tratar-se de uma opinião
bastante particular do poeta aqui representado pelo eu-lírico. Mas, no momento em que o eu-lírico
afirma: “ Um só será feliz se todos forem” há uma preocupação com os outros, com o que possam
realizar ou apenas experimentar. O poeta procura confirmar sua impressões sobre o Amor e revela o
que já sabe: que este sentimento é, sem dúvida, a base de tudo, o caminho para a plenitude, para a
felicidade.
Crítica
A verdade é que os poemas de Pedro Lyra, apesar de pós-modernos, definem-se principalmente,
pelo lirismo e pela avaliação da condição humana. E qual o melhor sentimento para fazer isso se não
o Amor? Estamos diante de um renovador da poesia amorosa, um neo-romântico, um poeta que
reestruturou o soneto clássico camoniano, um transgressor visual, evitando é claro a sua destruição
como o fizeram alguns rebeldes de 1922. Pedro Lyra, faz do sentimentalismo romântico, coisa
superada para muitos, um de seus maiores traços. Versos como “Ela está morta” e “ Queres mar, então
ama“ , profundamente românticos, comprovam esta assertiva.
Notadamente humanístico e universalizante, principalmente na parte VII , analisa o mundo e
seus enigmas filosofamando com algumas pitadas existenciais. Bons exemplos disso são o soneto de
constatação VII e o soneto de confissão XIII. Seus poemas, profundamente visuais, dificilmente
existem em separado, fazem parte de um conjunto, de um sistema orquestrado, melodioso e
melódico, assim como o nome do autor, sobre o homem, suas glórias e reveses que, tanto num caso
quanto no outro, atendem pelo nome de Amor. Escrever dessa maneira ( soneto ) e sobre esse assunto
( Amor ) é um verdadeiro Desafio.
São ao todo 89 poemas e um único assunto: Amor. No entanto, até o amor sofre variações, estas
variações darão nome aos sonetos de Pedro Lyra. E já que o maior lance aqui é o Amor, basta lembrar
que tudo isso acontece pela influência de vários autores, mas saiba que a maior delas é Luís Vaz de
Camões, o homem que melhor definiu o Amor... um fogo que arde sem se ver. Outros pensamentos
camonianos são encontrados em Desafio e podemos dizer que constituem a maior parte da poética de
Pedro Lyra, de sua sonetologia amorosa, de sua ars amatoria, como disse a crítica Nelly Novaes
Coelho; um desses pensamentos reside no verso “Transforma-se o amador na coisa amada “ que Pedro
Lyra usa constantemente na metáfora „um projeta-se para o outro “. Desta forma, entender Desafio é
entender Pedro Lyra, é entender de Amor. Mas cuidado! Pois como dizem alguns; “Só falará bem de
Amor quem já amou alguma vez”.
18 - DÔRA-DORALINA – Rachel de Queiroz
Autora e Obra
92
Primeira mulher a pertencer a Academia Brasileira de Letras. Nasceu em Fortaleza, Ceará, em
1910. Em 1917 mudou-se para o Rio de Janeiro em virtude da seca que assolava a região. Depois de
algum tempo, retorna para Fortaleza, mas antes, passa por Belém, no Pará.
O pai teve enorme influência sobre ela. Foi educada espartanamente (de forma rígida). Aos
três anos fazia ginástica e aos quatro, já montava cavalo. Tomava banho nos açudes. O pai era jurista,
a mãe tinha educação refinada, por isso, aos quinze anos lia Balzac (Romantismo) e Zola
(Naturalismo). Aos 16, estreou em jornal publicando poemas e crônicas, além de um romance de
folhetins História de um Nome - em “O Ceará”. Sob o pseudônimo de Rita de Queluz, ela colaborava
no recém - lançado jornal de Demócrito Rocha que, naquele ano de 1928, publicava em uma página
literária - Modernos e Passadistas - a produção de escritores locais, ao lado de Guilherme de Almeida,
Peregrino Júnior e outros.
Recebida com entusiasmo pela crítica, quando publicou, em 1930, o romance O Quinze
(documentando a brutal realidade da seca, da fome e da criação), aos 19 anos de idade. Dois anos
depois do livro de estréia, a escritora lança João Miguel (1932 - retrata ainda a seca, o coronelismo e
os impulsos passionais).
Em 1937, Rachel nos presenteia com Caminhos de Pedras. Uma nova experiência de ficção
ocorre em 1939 - As três Marias.
Em 1975 quando os críticos apostavam que a exímia cronista havia absorvido o romancista,
Rachel de Queiroz lança Dôra, Doralina (romance que mantém lado a lado o Nordeste e o Rio de
Janeiro; mundo rural e mundo urbano).
Anos depois, em 1992, o público é agraciado com Memorial de Maria Moura uma história de
amor e aventuras.
Recentemente, em 1998, Rachel volta com o lançamento do livro, Tantos Anos que foi
engendrado em parceria com sua irmã Maria Luiza Queiroz. Trata-se de uma obra que, segundo a
crítica, inaugura as primeiras letras e não tem o compromisso existente nas primeiras publicações.
Longe de ser um livro autobiográfico é, na verdade, um livro no qual duas adolescentes relembram
fatos de sua infância, sentimentos esquecidos, sofrimentos e alegrias marcantes e etc.
MOMENTO LITERÁRIO
Chamou-se de Modernismo o movimento literário que nasceu da união de escritores não com
um projeto comum, mas unidos por sentimentos de Liberdade de criação e o desejo de “colonos”
apegados a valores estrangeiros. O movimento modernista contou com duas importantes fases: a
primeira entre 22 e 30, e a segunda de 1930 a 1945.
Na década de 30, enquanto o rádio, o mais moderno meio de comunicação de massa de época
encurtava distâncias, aproximando o país de ponta a ponta, nossa ficção, com renovada força criadora,
nos punha em contato com um Brasil meio desconhecido. Por meio de vários autores, entre eles
Rachel de Queiroz, a literatura mostra o homem como alicerce de cada uma das diversas áreas sócio econômicas do país, mas quase sempre, em luta desigual com ela.
Resumo
O antepenúltimo romance de Rachel de Queiroz, publicado em 1975, Dôra, Doralina, é, antes
de tudo, o livro da mulher brasileira, nordestina, sertaneja, confrontada com desafios existenciais. A
romancista cearense encontrou em Dôra, que vive, que ama, que sofre, e em seu homem, o
Comandante, alto, bonito, audacioso, o motivo de sua ficção.
93
Narrado em 1ª pessoa pela protagonista Dôra, o livro é um “flash-back “ da vida da
personagem e divide-se em três partes: “O livro de Senhora”, “Livro da Companhia” e “Livro do
Comandante”.
O LIVRO DE SENHORA
Este primeiro livro é um dos mais importante. Digno de uma Clarice Lispector, tamanho o teor
psicológico que possui ( imagine a pessoa ter raiva do próprio nome ) nos mostra a relação
tempestuosa ou praticamente a não-relação entre mãe e filha. ( Pode relacionar com Laços de Família )
Dôra nasce na fazenda “Soledade” (nome bastante simbólico para nossa história) a exemplo de seu
próprio nome, Maria das Dores. Sob o mesmo teto convivem mãe viúva, autoritária e arrogante e filha
oprimida. A relação de ambas é bastante delicada, nem sequer se olham. A vida de Dora segue normal,
de amor pela fazenda e por seus bichos, pela vaquinha deixada pelo pai e pelo bom relacionamento
com os trabalhadores da fazenda e pela implicância da mãe, que analisa a filha como um ser igual a
qualquer outro. Surge, então, Laurindo, homem forte, viril e conversador que, apesar de não possuir
muita “boniteza” exerce um fascínio fora do comum em Dôra. Chamado para resolver uma questão de
terra, era agrimensor, veio medir as fazendas e acabar com o litígio a fazenda (Arábia) pertencente ao
Dr. Fenelon, e a fazenda Soledade, pertencente a Senhora. No final das contas, acaba casando com
Dôra, passando a morar com as duas mulheres..
No entanto, a mesma permanece sob aguarda de Senhora. Com o casamento, a situação de
mãe e filha tende a piorar. O inesperado ou o “clímax” se dá quando Dôra descobre que o marido
mantinha um relacionamento com sua mãe( a mãe dela, é lógico). Dias depois, Laurindo é morto
misteriosamente com um tiro de espingarda quando tentava pular uma cerca no terreno do velho
Delmiro (um dos personagens mais intrigantes do romance, sertanejo bravo e fiel a Dôra) a procura de
marrecas para matar. Atentado? Assassinato? Puro acidente?
Semanas depois, Dôra, vestida de azul (por que não de luto?), para espanto de todos, atravessa
as ruas de Aroeiras e toma o trem rumo a Fortaleza.
O LIVRO DA COMPANHIA
Dôra parte para a capital , onde vai morar na pensão de D. Loura (velha conhecida de Senhora,
na Tristão Gonçalves). Agora Dôra acredita que depois de anos de reclusão vá começar a viver: assiste
a peças no Teatro José de Alencar, onde elementos da Companhia de Comédias e Burletas Brandinni
Filho, também hospedado na pensão de D. Loura, se apresentam. Torna-se amiga do grupo. Uma das
componentes da companhia, a “ingênua” Cristina, resolve abandonar o grupo. Após dias de
insistência, Dôra, moça educada nas Aroeiras até os dezessete anos, ingressa no teatro, preenchendo
aquela vaga. Dôra passa a renegar seus amigos antigos costumes e adota outro modo de vida. Seu
nome agora é Nely Sorel.
Começam as viagens: Manaus, Fortaleza, Recife, Minas etc. É tempo de guerra. A companhia
inicia suas excursões pelo interior. As notícias da “Soledade” vêm através de cartas de Xavinha (moça
velha, parente distante de Senhora) endereçada a D. Loura. Em uma dessas viagens (Juazeiro da
Bahia) Dôra apaixona-se pelo comandante Asmodeu , um dos nomes do diabo.
O LIVRO DO COMANDANTE
Chegando ao Rio de Janeiro, Dôra vai morar em companhia de seu Brandinni e D. Estrela.
Desfaz-se a “companhia”. O Comandante retorna ao encontro de Dôra e passam a morar juntos. Para
sobreviver o comandante descola um “gancho”, como instrutor de tiro-ao-alvo na PE. Na verdade, ele
94
é um exímio contrabandista. Com o tempo o negócio de contrabando prospera. Tempo em que Dôra
recebe um telegrama da Soledade, assinado pelo Dr. Fenelon (proprietário da fazenda vizinha):
“Lamento informar falecimento de sua mãe ocorrido noite ontem devido embolia cerebral”. É com o
Comandante que Dôra retorna ao seu total estado de subserviência que ela mesma admite, mas sentese imensamente feliz e acredita encontrar-se recompensada por estar ao lado de seu único e verdadeiro
amor. Mesmo que esse amor seja ciumento, possessivo, beberrão, e às vezes, violento.
Depois que o Comandante morre de “tifo” (febre), Dôra busca refúgio no único lugar que era
realmente seu e que para onde jamais pensara em retornar, a fazenda Soledade. É lá que tenta
reconstruir sua amarga existência, tirando forças da terra e das lembranças de Senhora.
4. A CRÍTICA
Dôra, Doralina cognominado de “o romance da mulher brasileira” por sua própria escritora
veio à baila (surgiu) em 1975, espantando a crítica e o próprio leitor, pois, há exatamente 39 anos
Rachel de Queiroz não publicava um romance.
É um romance singular que apresenta muito da vida de sua criadora. Nele mais uma vez
encontramos o mundo rural. Só que desta vez, para deleite do espectador, deste universo se contrapõe
ao mundo urbano. Rachel nasceu na roça e a vida a tornou cidadã do mundo. Não é à toa que ao nos
depararmos com Dôra, Doralina observando a desenvoltura com que nossa artesã das letras percorre
muito bem esses dois universos. Cenários, personagens revelam a intimidade de que Rachel se valeu
para escrever um de seus melhores romances.
Entrevistada pela escritora Edla Van Steen, que indagou sobre preferência por alguma de suas
personagens respondeu: “A minha personagem feminina mais complicada é a Dôra. De modo geral,
minhas personagens são lineares, sem muitas complexidades psicológicas e, provavelmente, têm muito
de mim. Gostar de alguma propriamente não sei se gosto; acho mais que não gosto. “Será? Não terá
Rachel uma preferenciazinha por Dôra?”
Nascida na capital (Fortaleza) a menina Rachel, faz a sua primeira viagem a cavalo pelo
sertão, onde viveu até os três anos de idade, ora na fazenda, ora na casa em Quixadá. O sertão se
tornou essencial para ela. E Dôra também nasceu no sertão. Amava a vida que levava (com exceção da
mãe, é claro). Queria conhecer o Rio de Janeiro, é verdade. No entanto, eram coisas da juventude
como ver peças de teatro e morar num apartamento. A fazenda era o único lugar que a mantinha
segura. Rachel casou e passou a residir no Rio de Janeiro (hoje mora em apartamento). Dôra, só
encontrou o amor de sua vida na Cidade Maravilhosa. Rachel quando quer descanso e refúgio volta
para sua fazenda “Não me deixes” (Quixadá). Dôra, depois de todas as aventuras e desventuras
retornou a Soledade. Coincidência ou não, a semelhança é gritante.
A maravilhosa narração em 1ª pessoa favorece ao tom coloquial empregado no romance como:
“pra”, “pro”, “apesar dele velho”, “Me preocupei...”. Rachel vai mais além. Promove um verdadeiro
turismo no Vocabulário de outras línguas. É quando, por exemplo, transcreve o português de D. Pepa,
carregado de expressões espanholas.
Pelo que podemos observar em suas obras a liberdade está no centro dessa criação, no
romance, na crônica. Rachel, ao escrever, procura mostrar a alma inquieta de suas personagens. É
justamente esse poder criador que caracteriza a obra de Rachel, tanto na crônica como no romance. Há
sempre a agudeza da observação psicológica e uma perspectiva social.
Um obra que gira em torno de temas e problemas nordestinos, figuras humanas, dramas,
sociais, episódios ou aspectos de cotidiano. Entre o Nordeste e o Rio, construiu uma obra, ao longo de
mais de meio século de fidelidade à sua vocação. Seus dois primeiros romances são rurais; os outros
dois são urbanos. O Galo de Ouro é urbano, mas na periferia do bucolismo marítimo da Ilha de
95
Governador. E Dôra, Doralina, por fim, é a síntese do rural e do urbano, nessa espécie de ânsia em
busca de liberdade.
Pertence, portanto, Rachel de Queiroz à 2ª Geração do Modernismo cognominada de “O
romance de 30”. No entanto, a obra Dôra, Doralina, publicada somente em 1975, deve ser enquadrada
como Literatura Contemporânea, mas com traços da Terceira Fase Modernista ( psicologismo em
relação ao nome da personagem e ambientação enfática sobre o período da Segunda Guerra Mundial )
No momento da concepção do livro, Rachel talvez respirasse o clima de guerra, mas na época da
publicação, a literatura começava a respirar outros ares, como uma literatura de dispersão cultural,
sem a consistência ideológica de “geração” ou movimento artístico
19 - Memórias de um sargento de milícias – Manuel Antônio de Almeida
Autor e Obra
Manoel Antônio de Almeida, a voz de exceção em nosso romantismo, nasceu no Rio de Janeiro a
17 de novembro de 1831 e morreu em 28 de novembro de 1861, no naufrágio do Vapor Hermes, nas
imediações de Macaé. ( RJ ). Filho de portugueses de origem humilde, viveu no período regencial
1831-1840, e fez seus estudos no próprio Rio de Janeiro. Passou pela Academia de Belas Artes, mas
formou-se em Medicina em 1855.
Trabalhou no Correio Mercantil, elaborando suplementos nos quais editou, em folhetins semanais,
as Memórias de um sargento de milícias sob o pseudônimo de “um brasileiro”. Tinha então 22 anos
incompletos. Publicou o primeiro volume do livro em 1854 e o segundo em 1855. Foi administrador
da Tipografia Nacional, onde foi chefe e mentor do menino Machado de Assis, Chegou a oficial da
Secretaria da Fazenda e diretor da Imperial Academia de Músicos e Ópera.
Alcançou tanto prestígio que foi indicado para a política, mas quando se dirigia a uma cidade
vizinha para cuidar desse assunto, sofreu o terrível acidente. Lançou apenas um livro, mas foi o
suficiente para que ali se identificasse o seu brilhantismo e toda a sua genialidade. É considerado por
isso, um precursor do Realismo brasileiro, e tanto é verdade que o no título do livro que inaugura o
realismo em nosso país (Memórias Póstumas de Brás Cubas) Machado de Assis arranjou um jeito de
homenagear o mestre, afinal de contas, estes são os dois livros de memórias mais importantes de
nossa literatura.
Momento
O momento literário ao qual pertence o livro Memórias de um sargento de milícias, ainda hoje é
motivo de discussão entre alguns estudiosos. Manuel Antônio de Almeida, vulgo Manecão, era tão
relaxado que escrevia seus livros pelas ruas, em qualquer lugar e depois, pegava as páginas e enfiava
dentro do chapéu colocando-o depois sobre a cabeça. E quando alguma senhora passava por ele,
procurando ser educado, fazia reverência. Para isso, precisava tirar o chapéu, mas não lembrava das
páginas. E estas saiam voando pelas ruas e o nos escritor correndo atrás. Mas deixando de lado as
infelicidades do autor, encontraremos uma obra muito interessante. Em primeiro lugar, enquadra-se
perfeitamente no Romantismo em relação à cronologia, ou seja, à data de publicação. ( entre 1836 e
1881 ). Mas quando o narrador nos apresenta os pais do Leonardo, não nos parece um texto romântico.
Pior ainda, como chamar de herói um cara que nasceu de uma pisadela e de um beliscão? Quem sabe
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até de outras coisas? Que amor seria esse à base de pontapés e hematomas? Pior é quando nasce o
menino. “ vermelho, cabeludo, esperneador e chorão “. Daí por diante, termos a história de um antiherói, um romance picaresco, sobre um cara que não resta, que mora em um lugar que não presta e que
por isso ninguém gosta dele. Não parece um texto romântico. Mas apesar de tudo, levando em
consideração o desfecho ( o que antecede ao desfecho discutiremos depois) o texto sofre uma
transformação total. As coisas começam a dar certo para o Leonardo, as pessoas começam a gostar
dele, ele começa a se corrigir e deixa de ser vadio, perseguido pela polícia ( major Vidigal ) para ser
um exemplo, para ser um militar de respeito e mais respeitável ainda quando segue os ditames
românticos rendendo-se ao encanto da burguesia chamado casamento. É, meus amigos, as coisas nem
sempre são o que parecem ser. Tomando como exemplo o livro Helena de Machado de Assis,
podemos dizer que Memórias de um sargento de milícias é a história de correção de um marginal, com
direito a casamento e tudo o mais. Sendo assim, podemos dizer que este romance tem muitos traços de
rebeldia, que precursor de uma escola que ainda nasceria com o grande Machado de Assis denominado
Realismo, mas interessantemente, acaba sendo um livro romântico.
Resumo
Primeira Parte
Leonardo Pataca, vindo para o Brasil, conhece Maria da Hortaliça. Durante a viagem de navio,
entre pisadelas e beliscões acabam dormindo juntos. Ela desce grávida e vão morar juntos. Sete meses
depois, nasce Leonardo Algibebe com quase três palmos de comprimento, gordo, vermelho, cabeludo,
esperneador e chorão. Na falta de padrinhos ricos serviram como opção o barbeiro e a parteira.
Leonardo Pataca, vira meirinho ( oficial de justiça ) e um dia, ao chegar em casa mais cedo,
encontra a mulher com um amante, que foge pela janela. Enciumado, dá uma surra na Maria.
Enquanto os pais brigavam Leonardo rasga papeis importantes do pai que pega o menino e dá-lhe um
belo chute no traseiro colocando-o para fora de casa. Leonardo, ainda criança, passa a morar com o
padrinho barbeiro, com a ajuda dá comadre ( a parteira ) que não desampara o menino em momento
algum.Maria abandona o marido, foge com o comandante do barco que os trouxera.
O barbeiro, velho e solteiro, dedica-se ao afilhado, mimando-o em demasia. A comadre acusa-o
de ser cúmplice nas travessuras do menino, pois não o castiga severamente. O menino cresce mimado
e imprestável, mas o padrinho sonha em vê-lo padre.
Leonardo Pataca apaixona-se por uma cigana que também o engana. Ele recorre à feitiçaria para
atrair o interesse da mulher. À meia-noite, na hora do responso, na hora dos trabalhos, aparece o major
Vidigal e prende o Leonardo ( pai) por vadiagem.
O major Vidigal, alto de movimentos lentos é o comandante da milícia, é a autoridade no Período
Joanino.; de suas sentenças não há apelação, todos o respeitam e temem.. O major é tão cruel que na
noite da prisão do Leonardo, fez com que todos os vadios presentes dançassem enquanto os
chicoteava.
Enquanto isso, o Leozinho acompanhando uma procissão de rua a mando do padrinho, junta-se a
outros meninos danados e vai passar a noite em um acampamento de ciganos. Leonardo Pataca,
depois que a comadre foi ao Pátio dos Bichos, sala dos oficiais, pedir que o soltassem, é liberado e vai
para casa. . A comadre é melhor apresentada e segundo o narrador, a comadre gorda e baixa, é ao
mesmo tempo ingênua e esperta de acordo com a ocasião. É parteira, mas também benze quebranto.
Gosta de missa e dos cochichos das beatas.
O compadre, apesar de ser apenas um barbeiro, tem vida confortável. Seu dinheiro originou-se de
um acaso. “Entrando em um navio em peste, exerceu a função de sangrador. O capitão já moribundo
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confiou-lhe as economias para que entregasse à filha. O barbeiro ficou com o dinheiro sem jamais ter
procurado a filha do capitão.
Usando um flash-back, o narrador nos conta que o filho do tenente coronel desvirginara uma moça
em Portugal. Ao saber que ela estava no Brasil, casada com Leonardo Pataca, procurou ajudá-la para
limpar a consciência, por isso, ajudou o Pataca por ocasião de sua prisão, liberando-o .
O padrinho tenta ensinar ao afilhado, mas ele é lento na aprendizagem e não se interessa por
assuntos religiosos. O menino apronta tanto que a vizinha, uma vez, bateu nele. Leonardo imita a
velha. O compadre acaba criando uma forte inimizade com a vizinha., uma velha fofoqueira.
Leonardo Algibebe, o Leonardo, até que tenta ir à escola, mas não adianta, o menino é um perfeito
moleque e apanha tanto de palmatória que acaba deixando de ir por completo.
O padrinho quer que o afilhado volte para a escola, mas dela ele sempre foge. Numa dessas fugas,
faz amizade com um coroinha, que também não era boa bisca, e descobrem que na igreja é um ótimo
lugar para se fazer traquinagens. Leonardo convence o padrinho a fazê-lo coroinha. O barbeiro acha
que é a vocação do menino que está se apresentando e acredita mais ainda que o menino um dia há de
ser padre. O padrinho consegue-lhe a vaga de coroinha. Aproveitando-se da oportunidade, durante a
missa, de posse dos incensos e dos defumadores, Leonardo e o amigo jogam incenso na cara da velha
fofoqueira e acabam derramando cera quente na mantilha dela.
O padre da paróquia é amante da cigana que abandonara o Leonardo Pataca e por isso, muito
vaidoso com os seus sermões preparou um que achou genial para a festa da igreja. Em seguida, pediu
ao Leonardo que avisasse a todos que a missa seria às dez. Leonardo, como sempre, aprontando, disse
a todos que a missa era às nove. Foi dito e feito. Quando o padre chegou, já havia outra pessoa
fazendo o sermão no lugar dele. Imediatamente, foi descoberto o Leonardo e ele acabou perdendo a
função de coroinha.
Pataca descobre que o padre é amante de sua cigana e por isso, prepara uma vingança. Chama um
tal de Chico Juca para arrumar uma confusão durante o aniversário da ex-amada. Pataca avisa ao
major Vidigal da confusão. Todos são presos, inclusive o padre.
O padre, depois da humilhação, deixa a cigana. Pataca reconquista a mulher e passam a viver
juntos. É censurado de perto pela comadre que sabe de tudo e de todos.
Dona Maria velha é benfazeja, muito devotada aos pobres. De sua casa, a comadre, a vizinha e o
menino assistem juntos à procissão. A conversa sempre gira em torno das travessuras do menino. Ao
discutirem o futuro do menino, Maria sugere que ele seja procurador de causas.
Leonardo Algibebe cresce e torna-se um perfeito vadio. Leonardo Pataca casa-se com Chiquinha,
filha da comadre. Dona Maria, torna-se tutora de uma menina, Luisinha, uma sobrinha órfã. O
compadre e o afilhado visitam-na freqüentemente. Eis que surge Luisinha, Leonardo se encanta, mas
tudo o que consegue compreender é que ela lhe causa risos.
Leonardo apaixona-se por Luisinha, lá do jeito deles, e tornam-se íntimos durante a Festa do
Divino. Um espertalhão de nome José Manuel passa a cortejar a pequena Luisinha, logicamente de
olho em sua herança.. Os padrinhos de Leonardo unem-se visando desmascarar o vigarista. Leonardo,
num momento interessantíssimo do livro, declara-se mudamente para Luisinha,.
Segunda Parte
Leonardo Pataca e Chiquinha, depois de irem morar juntos, têm uma filha.. A comadre, tentando
abrir caminho para Leonardo, inventa que José Manuel é suspeito de um famoso caso policial: o rapto
de uma moça.
José Manuel tenta descobrir quem são os seus adversários. O mestre-de-rezas encarrega-se de
descobrir quem é o outro pretendente de Luisinha.
Morre o padrinho, e morto o compadre, todos os bens ficam para Leonardo. Leonardo Pataca, o
velho, quer tomar conta do filho, mas a comadre tem o mesmo desejo. Vão morar todos juntos e, um
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dia, Leonardo, nervoso por não encontrar Luisinha em casa, briga com Chiquinha. Pataca expulsa
Leonardo de casa com outro pontapé e fica com o dinheiro que o padrinho deixou para o menino.
Leonardo vai para a rua e num piquenique, encontra o sacristão. Leonardo conhece Vidinha, uma linda
e jovem mulata cantora de modinhas. Leonardo passa a morar na casa de Vidinha como agregado. E
lá desperta o ódio dos primos da moça. Os encantos de Vidinha seduzem cada vez mais o Leonardo.
Dona Maria repreende a comadre por conta da intriga envolvendo José Manuel. Dois irmãos da
nova família de Leonardo são apaixonados por Vidinha e unem-se contra o agregado. As velhas e as
moças tomam partido por Leonardo. Há muitas brigas e Leonardo quer abandonar a casa, mas as
velhas não permitem. A comadre aparece para conversar com o afilhado e após muita conversa ele
decide continuar na casa das moças para alegria de Vidinha. Os primos de Vidinha vingam-se de
Leonardo que é preso ( mesmo destino do pai ) em uma farra ( tertúlia ) pelo major Vidigal.
Enquanto isso, José Manuel completa o seu plano casando com Luisinha e passando a tomar conta da
herança da moça.
Leonardo consegue escapar do Major voltando para a casa de Vidinha. Vidigal jura vingança por
causa do orgulho ferido e da zombaria do povo porque nunca, jamais ninguém havia escapado de suas
mãos. A comadre, pensando que o afilhado ainda está preso, ajoelha e implora diante do major sendo
ridicularizada pelos granadeiros. A comadre vai a casa das velhas, a casa de Vidinha, e conversa com
o Leonardo exigindo que ele tome responsabilidade e consegue para o afilhado um emprego na
Ucharia , um tipo de taberna, na Despensa Real. Na ucharia, uma mulher muito bonita mora em
companhia de Toma-Largura, o chefe da cozinha. Toma-Largura encontra o Leonardo “ tomando
sopa com a mulher “ e o escorraça do emprego. Vidinha descobre o que houve e vai tomar satisfações
em favor de Leonardo. Leonardo acompanha Vidinha, encontra o major Vidigal e é preso novamente..
Vidinha xinga Toma-Largura e a mulher. Toma-Largura fica encantado com Vidinha e passa a seguila na intenção de conquistar a moça. Vidinha percebe.
Em casa, todos dão por falta do Leonardo e desconfiam que ele tenha sido preso pelo Vidigal.
Encontram-no na Casa da Guarda. A comadre procura o afilhado e não encontra. A família de
Vidinha, pensando que ele desapareceu de propósito, passa a odiá-lo. Toma-Largura passa a rondar a
casa de Vidinha, mas a família prepara uma armadilha. Convidado a beber, Toma-Largura arma uma
confusão e é preso pelo Vidigal. Todos se espantam, pois Leonardo é agora um soldado da milícia.
Vidigal como vingança transformou o Leonardo em um granadeiro. Leonardo e os outros soldados não
conseguem carregar o Toma-Largura que é gordo demais, por isso deixam o preso jogado na calçada.
Vidigal não gosta. Aos poucos o anti-herói vai-se mostrando competente no serviço policial, mas um
dia imita o Vidigal morto só para ridicularizá-lo.
Noutra ocasião, Leonardo é designado para prender Teotônio, jogador e cantor de modinhas,
porque um dia, em casa de Leonardo Pataca, Teotônio toca e também imita o major, na frente dele,
para a alegria de todos. Vidigal sai , mas ordena a Leonardo que prenda o sujeito. Leonardo vai
cumprir a ordem, mas quando chega é bem recebido na casa do pai, conhece o Teotônio e ficam
amigos. Acaba revelando a missão e juntos armam um plano para enganar o major. Mas o major
percebe tudo bem antes e manda prender o Leonardo. Enquanto isso, José Manuel, com pouco tempo
de casado revela sua verdadeira face e Luisinha que casara à força sofre bastante nas mãos dele. D.
Maria e a comadre unem-se na libertação de Leonardo. Procuram Maria Regalada, caso antigo do
major, e pedem que interceda junto a ele por Leonardo. O major fica irredutível, mas Maria Regalada
diz alguma coisa no ouvido do major e ele muda. Promete que vai soltar Leonardo e ainda vai fazer
alguma coisa por ele para que ele melhore. Ninguém sabe o que ela prometeu.
José Manuel tem um ataque cardíaco por conta de uma ação movida por D. Maria e morre.
Leonardo, já solto, visita Luisinha depois do velório. Voltam a paquerar., mas agora diferentes. Ele
como militar e ela bonita, viúva e rica. O romantismo começa a surgir no texto.
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Passado o luto, o casal inicia o namoro. Pretendem se casar, mas precisam do consentimento do
major uma vez que Leonardo é granadeiro. O major agora está vivendo com Maria Regalada ( foi isso
que ela prometeu a ele ) . Sob influência da mulher, o major encontra a solução: dá baixa em Leonardo
e o promove a Sargento de Milícias. Leonardo Pataca, arrependido, devolve ao filho a herança que lhe
deixara o padrinho. Leonardo e Luisinha casam e são felizes.
Crítica
Memórias de um Sargento de Milícias é um dos primeiros romances escritos no Brasil. Ao
contrário dos romances anteriores que descreviam a vida do Rio de Janeiro enobrecendo-a de adjetivos
e pompas ou até mesmo a omissão de tudo que não significasses a elite e o seu bom gosto. Em
Memórias vamos conviver com todas as classes sociais (baixas) e com os costumes (maus e bons) de
uma sociedade. Outro aspecto que devemos salientar no texto de Almeida é a documentação da língua
apresentada. O certo é que Manoel Antônio de Almeida se aproveita de uma teia narrativa (uma
história puxa a outra) para nos dar um retrato perfeito (ou quase) de costumes fluminenses da classe
“remediada” do começo do século XIX. Temos, portanto, as festas, os eventos religiosos, o modo de
vida simples, os tipos, enfim, tudo o que particularize o viver carioca da época. Tudo é claro, sendo
narrado com um tom cínico e bem humorado.
Ah! Não esqueçamos de frisar a utilização de um vocabulário essencialmente coloquial sem
nenhum estrangeirismo. Podemos observar um tom pitoresco (imaginativo) e um estilo despojado por
parte de seu autor. “Olhe, veja lá, se o negócio não se arranja, eu estouro!” “... nas causas de sua
imensa alçada não haviam testemunhas...”, ou “Não tinha ele enganado em suas previsões, apenas
chegou em casa” (talvez estejamos diante de um verdadeiro elemento romântico) por outro lado,
temos um elemento característico do romance realista, o diálogo com o leitor assim como em breve
nos apresentaria o imortal doutor das letras Machado de Assis. Como no exemplo: “Dadas as
explicações, voltemos ao Leonardo...” , “ apressemo-nos a dar ao leitor uma boa notícia”. Este é o uso
da função comunicativa.
Alguns críticos afirmam que o romance em questão filia-se ao Romantismo somente sob o
aspecto cronológico (1852-1853), uma vez que suas características o aproximam mais de uma
narrativa realista. Embora fique bem nítida a intenção , ao menos a partir do clímax, de tentar
encaminhar a narrativa para o modelo romântico vigente à época, tudo isso por conta da correção de
Leonardo e das mudança ocorridas em Luisinha, não é o suficiente para ser apontado como bom
exemplo de romantismo. Falta, para alguns críticos, idealização típica dos romances da época. Outros
afirmam que o tom coloquial a caricatura, a situações cômicas, a ironia aos cacoetes românticos, a
descrição dos costumes e o final (feliz?) deixam muitas dúvidas quanto a filiação ao estilo da escola de
Alencar. O que deve ser entendido para o vestibular é que Manuel Antônio de Almeida, vulgo
Manecão, até perto do final de seu romance, antecipou procedimentos realistas ( humor, linguagem,
paródia, herói picaresco, falta de sentimentalismo e quebra da idealização ), mas a partir do clímax (
ponto alto da narrativa, quando a vida de Leonardo precisa tomar um rumo ), talvez com medo de não
ser lido, adotou uma postura romântica. Agindo de maneira providencial ( morte de José Manuel e
ação de Maria Regalada ) conseguiu direcionar a narrativa para o cânone romântico. A prova de que
isso aconteceu é que o anti-herói, um cara que nem estudava e nem gostava de missa, acaba aceitando
o que a sociedade o impõe ( apenas personagens românticas agem assim, as que não agem fogem da
realidade pela morte ), como se não bastasse, a personagem feminina Luisinha, antes descrita como
um pequeno monstro, aparece ao final tão divina e bela quanto Helena. Para completar, o nosso
rebelde, o nosso pícaro, acaba casando e sendo tão romântico quanto qualquer outro, pois o
casamento, ao que sabemos, é a marca registrada da burguesia, classe que sustenta o romantismo.
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Resumindo, apesar dos procedimentos realistas, Memórias de um sargento de milícias deve ser filiado
ao romantismo de José de Alencar.
20 - Laços de Família – Clarice Lispector
Autora e Obra
Filha de imigrantes russos, Clarice Lispector veio para o Brasil com dois meses de idade. A
família se instalou em Maceió e depois em Recife, onde a menina Clarice (Flor-de-Lis-pector, apelido
dado pelo pai) cresceu correndo pelas ruas da capital, brincando muito, ouvindo e dançando frevo.
Mudou, aos doze anos, para o Rio de Janeiro onde se formou em Direito. Naturalizou-se brasileira,
trabalhou como jornalista e iniciou sua carreira literária oficialmente com a publicação de Perto do
Coração Selvagem (1944). Casou com um diplomata brasileiro, teve dois filhos e morou por muito
tempo no exterior devido ao trabalho do marido. Também por conta de suas viagens, conheceu a
bruxaria, optando pela magia branca, passando a ser mais misteriosa do que o que já era. Dona de
apurado senso crítico, estudiosa do comportamento humano e principalmente da alma feminina,
sempre trazia uma “pérola” nos lábios sempre que falava: “Toda mulher é uma bruxa. Tem o Dom de
enfeitiçar. Eu estou apenas me profissionalizando...” Devido às constantes viagens por conta do
trabalho do marido e uma vida de solidão e desgaste por não agüentar mais tantas recepções sociais
como mulher de um diplomata, a depressão chegou com tudo. Por tudo isso, sucumbiu ao vício.
Depois de alguns anos, alguns incidentes, como o incêndio que causou por dormir com um cigarro
aceso na cama, fumando e bebendo em demasia (a mulher era meio estranha) morreu em dezembro de
1977, no Rio de Janeiro, deixando para a posteridade uma obra de admirável psicologismo. Obras:
Romance – Perto do Coração Selvagem, O lustre (46), A Cidade Sitiada (49), A Maça no Escuro
(61), A Paixão Segundo G. H (64), Água Viva (73), A Hora da Estrela (77). Conto – Alguns
Contos (52), Laços de Família (60), A Legião Estrangeira (64), Felicidade Clandestina (71),
Imitação da Rosa (73).Crônica – A Descoberta do Mundo (84). Infantil – O Mistério do Coelho
Pensante (67), A Mulher que matou os peixes (69) e A vida íntima de Laura (74).
Momento
Inserida no terceiro momento do Modernismo, Clarice é, como outros autores da 3 a fase,
representante da prosa introspectiva ou de sondagem psicológica. Nos textos de Clarice, o enredo (a
história) não tem tanta importância. As ações relatadas servem para constituir, delinear o perfil
psicológico das personagens. As personagens é que são importantes, suas atitudes, seus pensamentos,
seus anseios, traumas e alegrias que constituem o “recado indireto” da autora para o leitor.
Também chamada de “pós-modernista ”, a geração de 45 (o período do pós-guerra) em certos
momentos, foi estetizante (preocupada com a forma e a beleza do texto) e em outros adquiriu um
caráter político-participativo. A geração que tem como maior nome, da poesia, João Cabral de Melo
Neto (de Morte e Vida Severina) possui um tópico identificador, a criação de um regionalismo
“universalizante” com João Guimarães Rosa (de Grande Sertão: Veredas) e o predomínio da prosa de
tempo e caráter basicamente psicológicos através de textos breves como os contos de Clarice
Lispector.
Pode-se dizer, por exemplo, que a terceira fase modernista , com seu ideário de mescla, para
alguns uma volta ao formalismo, pelo fato de seus representantes não adotarem a mesma conduta dos
rebeldes de 22 ( Mário e Oswald) foi a mais produtiva e a mais eclética, pois estamos diante de um
tipo de reconstrução ( das artes, da Literatura e do mundo - estamos no pós-guerra) que só perderá
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sua força a partir de 1965, quando a literatura ganha um contorno diferente, um certo engajamento
sócio-político, com uma prosa diferenciada que desaguará numa vertente mais incisiva (a bem da
verdade contagiante ) a Poesia Marginal, parecida com o movimento “musical” de Gil e Caetano
chamado Tropicalismo.
Resumo crítico de alguns contos
I. DEVANEIO E EMBRIAGUEZ DUMA RAPARIGA
Escrito intencionalmente à moda portuguesa e, por isso, recheado de expressões do tipo:
“Sabes quem veio a me procurar cá à casa?” ou “Já que os filhos estavam na Quinta das tias...” que
ajudam a delinear o perfil conflitante da personagem (devidamente sem nome, é simplesmente uma
“rapariga”, sem a conotação pejorativa do Nordeste) e, como outros contos de Clarice, é um texto de
personagens sem nome. Os nomes, assim como as datas não são importantes. O olhar aguçado da
autora focaliza a personagem como “gente comum”, cheia de conflitos, ansiedades, defeitos. A
personagem vai-se despindo aos poucos, pelas mãos de Clarice, diante do leitor. Os segredos são
desvendados, os defeitos expostos e os desejos ficam jogados pelo chão, neste livro de contos,
sufocados pela rotina.
O texto fala de uma mulher, uma dona-de-casa que, por não suportar mais a rotina, o dia-a-dia
da família e do marido, parece descontrolar-se a cada instante. A inconstante rapariga fala sozinha,
recrimina-se, enfurece. Gosta da ausência momentânea dos filhos, que estão na fazenda de umas tias, e
principalmente, não tolera mais o marido, sua presença e seu toque. Faz o possível para cumprir as
tarefas de casa, compras, lavagem de roupas etc, até conseguir um momento de alegria. Uma falsa
alegria. Ela e o marido saem para jantar com o patrão dele. Sentiu-se bem, paquerada, desejada e
“temporariamente” feliz. Depois veio a censura. Achou que estava mal vestida, que suas mãos
estavam maltratadas pelas tarefas em casa. Embriagou-se e andou pelas ruas, riu e falou até não poder
mais. Depois voltaram pra casa e, após rejeitar os “carinhos” do marido naquela noite, sentou na cama
e pensou na vida. Avaliou a “noitada”, censurou-se de novo. Colocou a culpa, por tudo que fizera, na
casa que precisava ser lavada imediatamente. Parou diante da janela e, olhando a lua e rindo sozinha,
chamou a si mesma de “cadela”.
A tensão dramática desenvolve-se basicamente no campo psicológico. De tal forma que não
precisamos de nomes para as personagens. O que a autora procura imediatamente é o peso da rotina
familiar, a esposa que “cansou” do marido, que gosta da calma da casa sem os filhos, o cansaço
provocado pelas atividades constantes e repetitivas do dia-a-dia, os desejos femininos, sentir-se bonita,
ver-se “mulher” novamente ainda que vista por outros. Clarice vai do “cansaço” ao descontentamento,
neste caso, da alma feminina nitidamente imprevisível. Nesse texto, aparentemente “confuso” Clarice
mostra que só existe “confusão” no íntimo da personagem, indicando que os “laços” geralmente
criados pelo afeto mútuo podem surgir também da opressão, da mesmice, do descontentamento. O que
a autora quis dizer com seu texto é que as pessoas e as famílias, vez por outra, ficam presas em si
mesmas, em seu dia-a-dia, por isso, a rotina é uma ameaça.
II. AMOR
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“Amor” é a história de Ana, de classe remediada, casada e com filhos que um dia, entra em um
bonde pegando o caminho de casa depois de algumas compras. Porém, diferentemente das outras
vezes, sua cabeça não estava muito “boa”. Pensava nos filhos, no calor, na arrumação da casa
enquanto o bonde tomava seu rumo. Ana, de tão absorta, parecia não estar ali, principalmente quando
viu, no ponto de parada, um cego que, com a maior naturalidade, mascava um chiclete. Aquilo a
perturbou tanto a ponto de deixar cair o pacote de compras que trazia, espalhando as coisas e
quebrando alguns ovos. Foi tomada de um profundo mal-estar diante da censura dos outros
passageiros e depois da indiferença. Displicente, passou de sua parada indo descer mais à frente.
Parecia não conhecer nada, até entrar no Jardim Botânico. Sentou em um banco e continuou pensando
na vida, em sua rotina.
Impressionou-se com a beleza e a calma do jardim. Sentiu-se bem até lembrar dos filhos, das
pessoas que passam fome, lembrou da vida diária. Pegou seus embrulhos e foi embora para o seu
apartamento. Lamentou ter visto o cego e o Jardim Botânico, foram eles os culpados de tudo. Ao
mesmo tempo, gostou do que aconteceu e pensou em conhecer mais lugares e mais pessoas. Passou o
resto do dia pensando no jardim, no cego, na cozinha, que estava como o jardim. Jantou com sua
família e quando os “convidados” foram embora, voltou a pensar na vida e no que o cego e o jardim
desencadearam em “sua” vida. Foi interrompida por um barulho na cozinha. Era seu marido que
tentava fazer um café. Foi ajudá-lo. Diante de cansaço “perceptível” da esposa, o marido a atraiu para
si, fez-lhe um carinho e a levou para o quarto. E lá antes de esquecer o dia e dormir, penteou-se diante
do espelho sem pensar em nada.
Novamente, sob o olhar “machadiano” de Clarice, no tocante a anatomia da alma, a
protagonista, Ana, que poderia ser Maria, Juliana ou Clarice, é analisada a partir do meio em que vive
(há um certo Naturalismo nisso) enfocando-se, é claro, o traço psicológico, que advém as diferentes
visões de mundo da personagem. O vocabulário é muito simples, gerando um texto fácil de ler, porém
quanto ao entendimento, esta “facilidade” é apenas aparente. Afinal de contas, por qual motivo, ou até
que ponto um jardim bonito e um cego mascando chicletes podem ter alguma importância para uma
simples dona-de-casa? O que há de intrigante ou substancial no choque das imagens do cotidiano para
Ana? Esse choque seria tão forte a ponto de mudar a vida da nossa personagem? Ocorre então o que
chamamos de Epifania, um processo de revelação seguido de um extravasamento.
Os objetivos de Clarice, quando da utilização de pessoas, objetos, animais e situações em seus
contos, não são outros senão, com dosado lirismo, invadir o cotidiano das personagens em seus
mundos e buscar uma síntese ou mesmo uma reflexão sobre esse cotidiano, o que ele é ou poderia ter
sido segundo as aspirações de cada um.
Ana é simplesmente qualquer pessoa, homem ou mulher, de vida aparentemente estável, mas
que não consegue esconder, ou amenizar, a maior causa dessa “instabilidade”, a rotina, que modifica
as pessoas, os relacionamentos e transforma os laços, que deveriam ser de afeto mútuo, em laços de
aprisionamento.
III. UMA GALINHA
Neste conto, com uma sutileza fora do comum, típico dela, Clarice mostra, como em outros
contos, o estreito laço que une homens e animais da mesma forma que une as pessoas. Fugindo à
regra, como sempre, em vez de falar só das pessoas, fala do dia-a-dia. Analisa a atitude (insensata?) de
uma família que mesmo esfomeada é capaz de apiedar-se da ave que iam comer. Clarice humaniza a
ave, como desanimalizou a família que a comeria. A menina, dona da galinha, parece mais uma irmã
mais velha. A autora expõe a vida da família, seus problemas, o ridículo de cada um. Fala de uma
família em especial? Não. Fala de qualquer família do enorme grupo dos desafortunados. Não é
preciso e nem há nada mais denunciador dessa realidade que a expressão? “galinha de domingo”.
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A galinha, magra e sem graça, na hora de virar almoço, conseguiu fugir. O dono da casa
conseguiu subir para o telhado onde perseguiu a galinha. A pobre ave, depois da escapada, sentindo-se
segura, “estúpida, tímida e livre” (alguma comparação com as mulheres?) não atentou para o seu
perseguidor que, depois de algum esforço, capturou a ave.
Levada para casa e prestes a ir para a panela, a ave conseguiu a salvação quando, em meio à
confusão, botou um ovo. A família inteira, recriminada pela menina, maior defensora da ave, decidiu,
por causa do nascituro, não comer mais a ave.
No texto em questão, Clarice rabisca diante de nossos olhos um retrato primoroso de uma
realidade. O leitor fica diante de personagens que além das dificuldades diárias, precisam “correr atrás
do almoço” e até mesmo ter a sensibilidade (efêmera) de abrir mão do mesmo. Importante ainda é
notar o estreitamento quase familiar (os laços) entre a menina, a galinha, o ovo e a família.
Estreitamento esse que perdura até o dia em que a galinha deixa de ser “gente” e vai pra panela.
IV. FELIZ ANIVERSÁRIO
O conto “Feliz Aniversário” é um relato de uma situação cotidiana, típica de qualquer família
do Brasil ou do Mundo. Trata do aniversário de 89 anos de D. Anita, matriarca seminválida de uma
numerosa família. D. Anita vive com a filha, Zilda, que, como os outros irmãos, não escapa do olhar
crítico da autora.
O aniversário se passa na casa de Zilda, em Copacabana, e todos os irmãos são convidados,
juntamente com as famílias, esposas e filhos, para desgosto de Zilda que vai trabalhar sem descanso.
Alguns vêm da periferia, outros de Ipanema e casa fica cheia. As noras se analisam (roupa,
maquiagem etc) brigam com os filhos umas das outras e falam de Zilda. Os irmãos, por sua vez
atacam-se silenciosa e mutuamente, pois são sempre indiretos. A família vive um momento forçoso de
insustentável e falsa alegria diante da aniversariante que, para espanto de todos, esculhamba as noras e
os filhos chamando-os de putas e cornos. A velha simpatiza apenas com um dos netos, Rodrigo, o
único que caberia em seu coração por parecer parte dela.
Enquanto o cinismo continuava, a “luta” pelos salgados e doces e a “desobediência” das
crianças era ferrenha. A aniversariante analisava cada um, sua índole, seus aspectos. Pareciam ratos,
segundo ela.
No final da festa os irmãos sentiram falta do mais velho, Jonga, que sempre discursava e tinha
o apreço da aniversariante. Jonga, porém, falecera e sua ausência era maior, principalmente para quem
não tinha jeito para discursos. As únicas palavras que puderam pronunciar foram: até o ano que vem!
Saíram, aos poucos, cada um com seus pensamentos, tão distantes quanto na chegada. Enquanto isso
lá em cima, a velha, que agora passara a cuspir no chão, se perguntava: Será que hoje não vai ter
jantar?
Este conto é um dos mais interessantes, e por isso mais estudado, de Clarice Lispector. A
maneira linear como a história se desenrola (a chegada dos parentes, a festa, o fim da festa, a partida
dos irmãos etc) não é muito natural em seus textos. A descrição é bem objetiva, mas sem
prolongamentos. A localização dos objetos e das pessoas é importantíssima para o “retrato” do mundo
pequeno-burguês objetivado pela autora. As noras são a personificação da inveja, do despeito e outras
coisas. Zilda, com sua “ forçosa” bondade também é analisada. Os irmãos, com suas falsas glórias e
sus limitações, o ridículo que são na opinião da mãe e a desordem normal da casa, como um todo,
mostram ao leitor que esse aniversário pode estar acontecendo em qualquer casa, em qualquer lugar. A
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aniversariante é a tônica, fundamental até em seu “silêncio”. Nada mais verdadeiro que a “cuspida”
que ela dá no chão representando, a meu ver, o nojo de tudo aquilo.
Como observação final e necessária, o que o leitor precisa atentar é para o aniversário em si
que, contrariando às expectativas de festividade, alegria, descontração, carinho e segurança, a única
coisa que traz, para todos, é o desconforto, a náusea, o incômodo.
V - Os Laços de Família
Neste conto primoroso de Clarice, identificamos novamente o cerne de toda a obra, as relações
humanas. No conto em questão, a rotina é novamente motivadora, diria até fundamental.
O que temos é a história de um casal (Catarina e Antônio) às voltas com a visita da mãe dela
num Sábado. O resumo do conto seria este pequeno parágrafo não fosse as observações sobre as
atitudes de cada personagem no decorrer da narrativa ou seja, antes, durante e depois do trajeto da
filha, de táxi, levando a mãe para a estação.
Para uma análise desse conto não é preciso forçar muito a barra, basta entender que Severina,
a mãe, é obviamente sogra de Antônio e que não há aspectos mais interessantes para um estudo sobre
“rotina” do que os laços “afetivos” entre marido - sogra - mulher.
Destaque-se o relacionamento da mãe com a filha que, tudo indica, nunca foi muito bom. Não
conseguem ser realmente “mãe” e “filha”, nunca tentaram ser. A rudeza dos gestos, quebrados só na
partida, a falta das palavras de carinho. Note-se também, o tom não-irônico da autora ao usar o
estrabismo e o pudor de Catarina para realçar a personagem.
O marido, em si, representa o “dia-a-dia”, é rotina personificada. Repare que o Sábado “dele”
está perdido com a visita da velha. O egoísmo do marido e a introspecção de Catarina levam,
naturalmente, a uma distância do casal em relação ao filho, sempre analisado e censurado.
O mais interessante de tudo é o arremate da autora (diga-se do narrador) quando sugere que o
filho nada mais é que uma extração da vida diária, podendo ser até a única coisa boa que o casal já fez.
A rotina é a maior pauta quando se fala dos momentos raros e do desejo do marido de ir ao cinema à
tarde para que a noite chegue logo.
Sobre os demais contos
Sobre os outros contos (O Jantar, A Imitação da Rosa, A Menor Mulher do Mundo,
Preciosidade, Começos de uma fortuna, O Búfalo e O Crime do Professor de matemática) o que deve
ser notado é que embora as histórias sejam diferentes, são narrativas construídas com os mesmos
elementos ( rotina, opressão, frustração, solidão, carência, fragilidade ). A perspectiva de Clarice é a
mesma, ou seja, o ponto de vista da autora pode até variar, mas pára sempre na rotina e nos laços
afetivos. Clarice varre o inconsciente das personagens jogando-as aos pés do leitor. Explicita os
anseios, as temeridades, os desejos mais recônditos com apenas um objetivo: ajudar a compreender
melhor o ser humano ( coração e mente ). Um outro aspecto que deve ser lembrado é a maneira como
a autora faz isso. Escreve de forma automática, sem revisão, sem releitura, sem modificações. Esta é
uma característica básica em seus textos, mas lembremos que isso nasce com o memorialismo da
geração de 30 ( Cyro dos Anjos, Graciliano Ramos e Pedro Nava) e é chamado fluxo da consciência.
Nós leitores, em poucas linhas, somos postos em contato com um mundo onde o insólito, às
vezes, acontece e invade o cotidiano mais previsível , corroendo e dizimando a repetição monótona do
universo de homens e mulheres, em seus laços afetivos, ou mesmo de seres marginais. O que
descobrimos é um ambiente falsamente estável, no qual as vidas aparentemente sólidas se
desestabilizam de imediato, justamente quando o dia-a-dia parecia estar arrumado para nada acontecer.
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Nesta obra em especial a sensibilidade pequeno-burguesa é observada por Clarice, na tentativa
de escolher e registrar os laços que podem acolher ou oprimir as personagens.
Clarice Lispector, em seu texto psicológico, segue uma conduta machadiana, pois até o título
“Laços de Família “constituiria uma grande ironia se levarmos em conta o conteúdo de cada texto. O
que temos no livro todo são personagens ( gente ) que tentam estabelecer um tipo de laço, algum laço
de segurança. No entanto, devido à rotina, ao cotidiano massacrante, aos problemas de ordem
psicológica ( frustrações e traumas ) estes laços transformam-se em laços de opressão, um tipo de
enforcamento gradativo.
Interessante é notar que para compreender o livro Laços de Família ou qualquer outro texto da
autora o leitor precisa de um requisito muito básico: ser gente. Pois, como ela mesma dizia: “Não faço
textos para pessoas, faço para quem é ou tenta ser gente”. E o que quer dizer ser gente para Clarice?
Para Clarice ou para qualquer outro propósito, ser gente é complicado, ser gente é colocar-se no lugar
do outro, pois só assim haverá uma pequena possibilidade de compreendê-lo. Então, amigo, se você
não havia entendido Laços de Família, volte a ele seguindo este grande conselho. Coloque-se no lugar
das personagens, imagine que aquilo está acontecendo com você. Que é você que é casado, tem filhos
e um bom apartamento, mas não tem o principal: Amor. Lembre que no dia do seu Aniversário você
é a pessoa mais nojenta da casa. Imagine que você não sabia do seu potencial e que um dia, de forma
brusca e por intermédio dos outros, você descobriu que possui alguma coisa de valor, que você é uma
verdadeira Preciosidade. Faça isso e tudo será diferente. E como nós sabemos que ser gente é uma
coisa muito complicada aqui vai outro conselho: " Ame, sofra”. Já é um bom começo.
21 - Os Verdes Abutres da Colina – José Alcides Pinto
AUTOR E OBRA
Nasceu em 1923, no município de Santana do Acaraú, na localidade de São Francisco do
Estreito. Ainda jovem foi estudar no Rio de Janeiro onde formou-se em Jornalismo e Biblioteconomia.
Sua estréia na literatura cearense foi em 1950 ao participar da famosa “Antologia dos poetas da nova
geração”. Daí por diante, fez poesias, romances, novelas, teatro, críticas e ensaios sobre literatura. Foi
um dos fundadores do “concretismo” cearense na companhia de Antônio Girão Barroso, Horácio
Dídimo e outros. Autor de personalidade conturbada (talvez por isso, a alcunha de “maldito”) há
sempre em seus textos um pouco de desordem e subversão. Lançou há pouco tempo, um livro de
poemas As Tágides que já está dando o que falar. Veja mais algumas obras do poeta maldito: O editor
de insônia – Os catadores de sirí – Acaraú: biografia de um rio – O tempo dos mortos (trilogia) –
Trilogia da Maldição ( João Pinto de Maria: biografia de um louco / O Dragão / Os verdes abutres da
colina ) - O criador de demônios – Entre o sexo, a loucura e a morte – A divina relação do corpo e
outros.
MOMENTO
Fazendo parte da Trilogia da Maldição e publicado pela primeira vez em 1974 (hoje na 3ª
edição) o romance Os Verdes Abustres da Colina está dividido em três partes sempre apresentadas por
um versículo da Bíblia. E é justamente por esta data de publicação, somada ao conjunto de idéias
apresentadas no texto, a maioria de cunho surrealista, que achamos por bem classificar o autor como
contemporâneo com influência da Terceira Fase modernista. Note-se no entanto, que não há o
apego aos preceitos reconstruidores da geração de 45. Até mesmo o ideário Concretista, importante
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para o autor em questão, já tem passado sem maiores preocupações. O texto de José Alcides pinto
deve ser apreciado com muito cuidado para que certos pormenores possam ser analisados de maneira
sóbria. A narrativa densa e fragmentada, um texto meio ilógico e desnorteador nos faz cativos de um
gênero dos mais intrigantes e fascinantes, o Realismo Fantástico.
RESUMO
O livro Os verdes Abutres da Colina, numa conotação surrealista ( fantástica pelos abutres ),
nos conta em sua primeira parte (servindo de fio condutor para a segunda e a terceira) a história do
Coronel Antônio José Nunes, imigrante português, na verdade, um fugitivo, que depois de jogado ao
mar nas águas do Acaraú conseguiu escapar da morte indo parar numa vila de pescadores que lhe
deram água e rede, mas ele depois de descansar não se demorou. Partiu no rumo do vento e foi parar
em Almofala, comunidade dos Índios Tremembés. Lá, depois de arrumar confusão com os índios
roubou a Índia que lhe pareceu a mais bonita e fugiu. O coronel era um homem bonito, nascido a 24 de
agosto de 1800 em Cascais, Portugal. Tinha olhos azuis, era branco, alto e forte como um touro, tinha
na realidade um jeito animal e segundo contavam fez um pacto com o diabo. Depois que fugiu de
Almofala, o coronel, com sua índia, vagou pelas matas até chegar a um alto coberto por um angical
sombrio onde parou e resolveu fundar “sua” aldeia. Queria ter sua gente, seu próprio povo. Queria
plantar, criar, ver os campos cobertos de animais de toda espécie , a terra cheia de espigas e frutos. O
lugar era uma beleza, ao lado, o Morro dos Macacos, a Ibiapaba estava bem perto e logo abaixo, o
Acaraú corria majestoso. Fundou a aldeia na elevação de Alto dos Angicos e esse ficou sendo o nome
do lugar. Trabalhou dia e noite com a Índia que era fecunda e dava filhos aos pares, como uma
coelha, e, como no começo do mundo, as terras do Acaraú iam sendo povoadas. Não havia, porém,
diferença entre pais e filhos, irmãos e irmãs. Logo, uma geração enorme de machos e fêmeas, bonitos
e ágeis como animais selvagens povoaram a região. A aldeia se expandiu, desenvolveu-se rapidamente
e os habitantes, descendentes do “Garanhão Luso”, apelido do coronel, pois além de “cobrir” (fazer o
bam-bam-bam) suas filhas, sobrinhas e netas ainda recebia a visita “voluntária” de mulheres de outras
localidades que faziam de tudo para ter um filho com ele, pois saiam fortes , valentes e trabalhadores
como o coronel. Na prática, o coronel era um bárbaro, um primitivo e achava que filhos deviam ser
semeados como sementes no campo, tendo as mulheres a obrigação de serem fecundas. No entanto
não caçava mulheres, elas o procuravam, aos montes( ô bicho sortudo)?. E o garanhão Luso não fez
outra coisa senão obedecer às Leis Divinas: “Crescei e multiplicai e enchei a terra”. (O mundo no
início foi assim e o fim seria igual ao começo). Assim dizia Padre Tibúrcio .Houve também o Padre
Anastácio Frutuoso, o “Asceta”, contemporâneo do coronel, que o acompanhou desde a fundação da
aldeia e, escondido, com a ajuda de um anão com dons de vidência ( Damião ), escreveu a história de
Alto dos Angicos de São Francisco do Estreito. Até que um dia, com a notícia da morte do coronel, no
dia 27 de julho de 1910 (mais de 100 anos e sem Viagra) todo o vale parou. As estradas ficaram
entupidas e as mulheres choraram copiosamente. O coronel tinha o diabo nos couros como diziam e as
mulheres sentiram um frio no útero, perdendo o calor de antes, porque o coronel como um touro
reprodutor, cobria todas as fêmeas que aparecessem, fossem quem fossem, viessem de onde viessem
pois, cor, tamanho, idade ou parentesco, nada disso importava. Mas agora estava morto, era o começo
do fim.
Depois da morte do coronel a aldeia entrou numa decadência espantosa. As terras do Garanhão
foram retalhadas e divididas com o imenso harém de mulheres e filhos que eram como bichos
espalhados por todo Acaraú. Morreu também na mesma noite o Mestre (homem culto da aldeia)
Manuel Carneiro do Nascimento, homem de boa memória que tinha dado diversos saberes ao povo da
aldeia. Enquanto isso tudo acontecia, o Padre Anastácio Frutuoso da Frota, avô do padre Tibúrcio, que
viria depois, registrava todos os acontecimentos auxiliados por Damião, um anão muito esperto. A
cidade começou a ruir. As pessoas adoeciam, o padre contraiu a Gota (uma espécie de reumatismo
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fatal). Os demônios pareciam rondar a cidade e os verdes abutres da colina (sempre presentes)
sobrevoaram a aldeia de forma ameaçadora. Os homens agora eram bananas, uns cuias, a braguilha
sempre aberta, espiando os verdes abutres, pareciam doidos, cuspiam nos pés e se espreguiçavam. Um
tédio inexplicável.
O tempo passava e o Asceta registrava tudo. Fazia suas anotações secretamente, apenas com a
ajuda de Damião, pois a doença se agravava e o ajudante agora era praticamente sua mão. Havia na
aldeia, como o coronel, muita gente que fez pacto com o diabo, os mais conhecidos eram João da Mata
e Antônio Marreca. Todos, no entanto, entraram em um processo de letargia, de demência coletiva e
mais pareciam bichos, de tão desmemoriados. Até o filósofo João Firmo Cajazeira andava olhando
contemplativo a cumeeira das casas, sem explicação aparente. Um dia, porém todos despertaram e, a
um só tempo, desataram a rir até a exaustão. Em seguida, um silêncio profundo. Depois um raciocínio
lógico entrou no juízo de cada um. Era como se todos houvesse bebido dos conhecimentos de Platão e
Aristóteles demonstrando profunda inteligência. O Asceta pensou até em rasgar todo o relatório pra
começar tudo de novo. Padre Anastácio suspendeu o relatório e voltou à vida normal. Os homens,
porém, tomados de profundo senso crítico, falavam de ciência e política visando o progresso e a ordem
da comunidade dos Angicos.
2º PARTE
O segundo momento do livro relata a chegada do padre Tubúrcio, neto do Asceta (Anastácio
Frutuoso) que tinha como principal objetivo descobrir os alfarrábios do avô, que morrera há alguns
anos. Os papéis conteriam, segundo ele, toda história do Garanhão Lusitano e da fundação da aldeia.
No início a diocese de Sobral, na pessoa do bispo Dom José Tupinambá da Frota, foi contra, pois a
lenda sobre a cidade e os manuscritos do Asceta, nunca vistos, poderiam perturbar a ordem e surtir um
efeito indesejado na missão do padre Tibúrcio.
A narrativa fica alternada. Em umas partes temos a história ainda sob o ponto de vista do
Asceta que, auxiliado por Damião, conta tudo. Em outro momento, segue a tentativa do padre
Tibúrcio, neto do Asceta, anos depois de sua morte, em busca do relatório que comprovaria a
existência da aldeia fundada pelo coronel Antônio José Nunes e, consequentemente, a veracidade dos
fatos conhecidos apenas por contação de história.
As coisas mudaram muito no povoado alto dos Angicos. O progresso era inevitável e até
mesmo os verdes abutres pararam de aparecer. Existia agora uma sabedoria de tudo. Padre Tibúrcio
corria atrás de informações sobre o Asceta. A vida continuava e coisas boas aconteciam. O diabo tinha
dado uma volta completa no mundo e se perdido por algum lugar ignorado. Dois partidos foram
criados: o partido dos “Marretas” com idéias cristãos de salvação e o partido dos “Democratas” que
defendia o Anticristo. Padre Tibúrcio era um dos “Marretas” e a cidade gostava dele. Era agora uma
cidade civilizada, as mulheres cortavam os cabelos dos filhos e dos maridos e os homens faziam a
própria barba. A aldeia parecia um reduto de sábios. Havia de tudo, como na Grécia antiga, poeta,
oradores, profetas, filósofos, astrônomos , historiadores etc. Surgiram na cidade as mulheres públicas
(as putas) e com elas as farmácias, pois os homens começaram a adoecer. O mal, como o bem,
também era necessário. Até que as senhoras de família resolveram expulsar, a pedradas, as meretrizes.
Foi então que, de repente, as cabeças dos poetas, dos profetas, dos matemáticos, dos historiadores
voltaram a regredir, como antigamente, passaram a se comportar como imbecis, de mente parada,
como primatas, indiferentes ao progresso que havia.
3º PARTE
O início da terceira parte se dá com o aparecimento de um louco, Francisco das Chagas Frota,
na casa velha do Asceta, onde agora reside o padre Tibúrcio. Em seguida, padre Tibúrcio quase chega
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ao seu objetivo, quando encontra um embrulho na chaminé. Pensa que é o manuscrito do avô, mas vê
depois que não passa de uma relíquia do tempo do coronel. Padre Tibúrcio destijolou a casa toda,
arrancou o piso, mas nada do documento. Estava com vontade de desistir. Mas, um dia, sem
explicação alguma, um pedaço de manuscrito foi jogado pelo vento, ou algum bruxo, em suas mãos. O
fragmento dizia que “toda a comunidade estava com ares de animais, as orelhas crescendo e quase
engatinhando, quase a dar coices como as bestas do Apocalipse”. A cidade voltava a regredir. Uma
tempestade de poeira com o fedor do esterco de animal e bosta de porco invadiu o povoado e a casa de
padre Tibúrcio. Outro pedaço do relatório veio parar nas mãos do padre: “Não entendendo mais a
linguagem das pessoas da aldeia, falam mastigando, grunhindo como bichos. “Era como se o diabo
tivesse arrancado o manuscrito das mãos do Asceta e estivesse espalhando os pedaços pelo mundo.
Assim pensava o padre Tibúrcio depois de ler. As campanhas políticas continuaram até o dia das
eleições em Santana do Acaraú e todo o povo teve de andar duas léguas. O partido dos marrecas
ganhou a eleição. De repente todos queriam trabalhar, fazer alguma coisa, ainda que não soubessem,
queriam ajudar em tudo, só falavam em trabalho e Padre Tibúrcio desconfiou que aquilo poderia ser
também algum tipo de doença e parte da maldição. O filósofo João Firmo Cajazeira chegou para
Tibúrcio e disse: “ A besta do Coronel é ágil, chupa de longe”. Ninguém compreendeu mas tudo
parecia a voltar a ser como antes. O fato mais intrigante foi o desaparecimento do Livro de registro de
nascimento, registro civil, do escrivão José Studart Freitas. Era como se as pessoas, agora, não
passassem de fantasmas ou apenas seres que nunca existiram. A procura foi grande até que,
finalmente, encontram o livro, mas o nome das pessoas não podia mais ser lido, havia apenas tinta
borrada, as páginas, os nomes haviam-se desfeitos.
As mulheres adultas viraram crianças, mijavam debaixo dos pés de tamarindo, os homens
catavam pulgas na barba, tudo era como antes, como previra o padre Tibúrcio. Gente correndo nua
pela rua, morcegos em bando e apenas Rosa, a matriarca de mais de cem anos, parecia manter a
sanidade. O padre não conseguia mais rezar a missa e lembrava dos conselhos do bispo Tupinambá:
“terra amaldiçoada!”. A confusão era geral e até a professora, contratada em Sobral para o letramento
das crianças usava um método novo que nem ela entendia: “do “A” para trás tem muito o que se
aprender”. A desordem continuava e as pessoas não se entendiam. Um bando de ciganos passou, mas
não quis demorar pois o lugar parecia destinado a um fim descomunal. Não havia mais uma mente que
prestasse em todo o povoado. Padre Tibúrcio foi conversar com Rosa de Jesus, matriarca viúva que já
não escutava nada, mas mantinha-se lúcida. Tibúrcio contou que as pessoas andavam mais pelas ruas,
que estavam enlouquecendo como antes e que os fatos estranhos do passado estavam voltando. Rosa,
no entanto, perguntou apenas sobre os verdes abutres e pelos marrecos. Em suma, no Alto dos
Angicos de São Francisco de Estreito, muitas coisas ficavam sem explicação: as pessoas que só
morriam aos pares, o manuscrito misterioso, a idade certa de Rosa, os ventos, as tempestades, os
verdes abutres da colina.
Foi então que, num dia de Domingo à tarde, padre Tibúrcio viu, de seu alpendre, deitado numa
rede, a aproximação de uma nuvem, uma formação extraordinária, amarelada, um tipo de cinturão que,
acompanha pelos verdes abutres da colina, um bando gigantesco, precipitaram-se sobre a cidade. João
da Mata e Antônio Marreca, os últimos que tinham o diabo no couro, deviam ter morrido. A
tempestade, com os verdes abutres, entrou na cidade. Tetos foram arrancados e um grande incêndio
teve início. As labaredas devoraram tudo em um segundo. Ainda havia fagulhas quando uma mulher,
como a Fênix, levantou das cinzas, era Rosa Cornélio. Já devia passar dos 150 anos, mas estava em pé.
A paz, agora reinava. O sol reapareceu e as nuvens pairavam pelo espaço.
Porém, num minuto, tornaram-se escuras, engrossaram, crescendo sobre o povoado e
derramaram-se em gotas grandes e pesadas. Choveu. Quando as águas pararam não havia mais o
destroço do incêndio, não havia mais nada de pé no povoado, só Rosa Cornélio, a matriarca. E Rosa,
como se nada tivesse acontecido começou a cantar hinos religiosos. A terra estava úmida, como se
estivesse preparada para receber uma nova plantação. Não se via nem ouvia nada, mas até a surdez de
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Rosa tinha ido embora. De repente ela avistou alguém. Era Francisco de Chagas Frota, o “louco”, que
chegava trazendo um bando de galos brancos que, sob o comando de seu chefe, começaram a cantar
ao mesmo tempo num canto mavioso que se elevou indo repercutir na serrote do Morro e nas abas da
serra do Mucuripe.
CRÍTICA.
Adepto do gênero “fantástico” , surgido na Idade Média com os textos de vampirismo e
licantropia ( lobisomem ), mais fortemente na “Trilogia da Maldição”, da qual fazem parte os livros:
Os verdes Abutres da Colina(74), José Pinto de Maria (biografia de um louco) (74) e O Dragão (64),
José Alcides Pinto, apelidado de “poeta maldito” por suas temáticas abarcando o diabo, o sexo
amaldiçoado, a morte, as alucinações, o profano e o sagrado, nesse romance, especialmente, ultrapassa
todos os limites do “real”, do que é verossímil (próximo à realidade) fazendo com que nem mesmo as
personagens tenham certeza do mundo em que habitam.
A história da aldeia do Alto dos Angicos, sua fundação pelo coronel português (garanhão luso)
Antônio José Nunes e o modo como ele povoou valendo-se de preceitos bíblicos como “crescei-vos” e
multiplicai-vos. “, ficando mais intrigante quando somada às estranhas mazelas que passam a assolar,
feito “maldição”, o povo da pequena cidade.
Analisando pelos aspectos simbólicos, pode-se dizer que, a partir do mito de Adão e Eva, é
criada uma espécie de alegoria para representar novamente o “Gênesis” e confrontá-la em seguida com
o próprio nome Apocalipse. Os habitantes da aldeia têm todos o mesmo sangue, pois o coronel era
como um touro reprodutor, “traçava” todas as mulheres não importando o grau de parentesco que
pudessem ter. A “maldição”, na verdade, advém da origem dos personagens que nascem de relações
incestuosas. Faça -se aproximação com a referência ao “pecado original” que a Igreja fala tanto. Se
assim for, também possuímos essa “maldição” nas costas e teremos um final parecido.
Encontramos ainda o narrador que de observador passa às vezes a compactuar com as idéias
do velho coronel. O padre Tibúrcio, neto do Asceta, tem tudo para ser o “elo necessário” entre a aldeia
real e o mundo fantástico do coronel, no entanto, o desejo que tem de encontrar os manuscritos de seu
avô fazem dele mais um habitante daquele estranho mundo de maldição inexplicável. É valendo-se de
elementos como o diabo, um cego curandeiro, uma velha de 150 anos, os verdes abutres, as
tempestades etc que o autor constrói o mundo imaginário e absurdo no qual habitam ele e suas
personagens “fantásticas”.
O romance, porém, possui outras vertentes literárias como por exemplo, um certo toque
“naturalista” (no que diz respeito ao coronel , um verdadeiro animal), um pouco do “regionalismo” de
José Américo de Almeida (a ambientação) e se analisado sob o prisma Realismo/Naturalismo, o final,
mistura de “apocalipse e redenção” seria comparado ao mesmo fim encontrado em O Cortiço (Aluisio
Azevedo) e O Ateneu (Raul Pompéia). Mas, em se tratando de José Alcides Pinto o “fim”, embora
calmo, seria, mesmo com a presença da chuva, contra o “fogo” do Positivismo, a marca de uma
destruição completa, sem perspectiva de um “futuro melhor”.
Outra observação importante deve ser feita quando à relação entre o autor e obra. O mundo
que o autor criou para suas personagens é um tipo de réplica do seu mundo de influência. Até mesmo
o coronel existiu e foi dono da fazenda Alto dos Angicos localizada no Vale do Acaraú. José Alcides
Pinto, ainda hoje, guarda a lápide, datada de 1910, do túmulo do coronel. Pura ficcionalização do real.
Em suma, José Alcides Pinto pode ser subversivo (e quem não é?), transgressor, maldito e
outras coisas, mas sua genialidade o transformou em um dos nomes mais importantes da literatura
cearense.
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22 - ESTORVO – Chico Buarque de Holanda
Autor e Obra
Consagrado como um dos maiores compositores da MPB e um dos seus melhores
intérpretes, Chico Buarque ( 1944-RJ), filho do intelectual Sérgio Buarque de Holanda, não se
contentou com a música,. Fez incursões na dramaturgia e na ficção. Em 1966, com a explosão
de sua música A Banda ( festival da Record ), alcançou definitivamente o sucesso. Em 1967,
com a peça Roda Viva , dirigida pelo doido José Celso Martinez ( Teatro Oficina ) perdeu o
ar de bom moço e ganhou a fama de rebelde. Mudou-se para a Itália e só voltou em 1970.
Escreve, em 1973, uma peça que foi proibida ( Calabar ). No entanto, ao ser editada em livro,
o texto vira um sucesso. Em 1974, depois de nova viagem à Itália, lança a novela pecuária
Fazenda Modelo ( alegórico e grotesco ) que pode ser uma metáfora tanto sobre o ser
humano quanto sobre o Brasil. O livro Estorvo é o seu primeiro romance.
Chico Buarque de Holanda, filho de Sérgio Buarque de Holanda, nasceu no Rio de
Janeiro, em 19 de junho de 1944, no auge da Segunda Guerra mundial. Em 1946, a família
mudou para São Paulo. Chico iniciou a vida acadêmica em 1963. Em 1965 compôs a música
da peça Morte e Vida Severina ( Funeral de um lavrador ). Em 1966 ganhou o II Festival de
MPB com a música A Banda. Em 1967 a Roda Viva é encenada alterando a imagem do
compositor junto ao público. Em 1968 entrou em conflito com os tropicalistas e viaja para a
Itália. Em 1971 lança o disco Construção. Em 1974, depois de ter uma peça censurada (
Calabar ), Chico publica uma novela, Fazenda Modelo. Em 1977, Chico monta a peça Os
Saltimbancos. Em 1978, depois de uma viagem à Cuba, Chico é preso juntamente com o
escritor Antônio Callado. No final do ano, estréia a peça A ópera do Malandro. Em livro: A
Banda- manuscritos de Chico Buarque; Calabar, o elogio da traição; Fazenda Modelo; Gota
D‟água; Ópera do Malandro; Chapeuzinho Amarelo. Romances: Estorvo; Benjamim e
Budapeste.
Momento
Surgindo no cenário nacional em 1966, e projetado na literatura na década de 70, Chico
Buarque de Holanda deve ser entendido como um autor contemporâneo, que tem todas as
influências dos melhores autores brasileiros e estrangeiros, servindo-nos como exemplo a
prosa intimista dos escritores de 45, e a densidade psicológica do Russo Fiodor
Dostoiévski, autor de Crime e Castigo e os Irmãos Karamasovski. É antes de tudo um
jovem, um homem que atravessou e sentiu na pele tudo que as décadas de 60 e 70 tiveram
para oferecer ( repressão e chibata ). Chico não poderia escrever outra coisa a não ser as suas
mais íntimas impressões sobre o seu tempo, numa tentativa de compreender o que será que
será dele mesmo e de todo o país.
Resumo
111
Estorvo é um romance em 1a. pessoa de tonalidade psicológica numa postura estética
bem própria das décadas de 60 e 70, do texto “ marginal “ e engajado, com inovações
lingüísticas, de forma e temáticas inovadoras, características de uma geração que ansiava por
mais liberdade de expressão.
O romance começa com a personagem central ( apropriadamente incógnita ) dizendo que
não consegue definir o homem estranho que vê pelo “ olho mágico “. A presença desse
homem o perturba. O texto segue com uma narrativa inovadora quando são preferidos verbos
no futuro, marcando ações que se processam tanto no presente quanto no passado, ou seja, o
leitor sabe que os fatos são narrados no presente, sobre o presente e o passado, mas que
determinadas ações, por iminentes aos olhos da personagem, são narrados como se ainda
fossem acontecer. A personagem se comporta como se estivesse sempre fugindo de alguém.
Nosso fugitivo de si mesmo resolve visitar um amigo em bairro próximo, mas antes visita a
irmã, pois é sustentado por ela, que é casada com um cara rico. A irmã lhe arranja dinheiro,
mas o marido sempre a repreende. Volta para casa. Ao chegar em casa, liga pára a mãe que
vive nos arredores, diz alguma coisa, ela não o reconhece, cai a ligação e ele finge algumas
palavras ao telefone. Viaja para visitar a antiga casa da família, um sítio distante do centro,
próximo a um morro. A narração ganha um tom poético e saudosista. Conversa com o caseiro
e com as crianças que ali estão, um menino e uma menina que mexem com ele de alguma
forma.
O homem de preto do olho mágico volta a atormentá-lo em sonhos, pode ser um
advogado, um tabelião, um oficial de justiça. No final do dia, três motoqueiros chegam à
fazenda e mandam que ele desapareça imediatamente.Os homens são invasores ou ele é que
nunca deveria ter voltado ali? Volta para a cidade com o dinheiro emprestado pelo caseiro.
pensa em procurar novamente a irmã, mas sabe que não seria uma boa idéia. Liga para a exmulher, marcam um encontro no shopping perto de onde ela trabalha. Um rápido flash-back
esclarece ao leitor um pouco de sua vida com a ex-mulher, de como foram felizes até o dia em
que ela perdeu a criança ( talvez um aborto provocado por ele ). Toda a rotina é realçada na
intenção de tirar o incomum do mais prosaico.
Depois de conseguir o que queria ( grana ), resolve visitar um amigo, um literato,
apreciador de arte que tinha mania de beber e recitar poemas em francês ( as poucas pessoas
que suportam poesia não gostam de francês ) e ficavam sozinhos no bar. Quando chega em
frente ao apartamento do amigo, não consegue entrar, houve um crime, a polícia interditou o
lugar e acabou de prender um suspeito. Um jornal local entrevista o porteiro que não confirma
se a vítima era “ viado “ ou não. Uma mulher baixinha, mãe do suspeito, grita para o repórter
( Diário Vigilante ) que seu filho ( um negrão de sunga de oncinha ) não era criminoso não. A
vida ao vivo ( mídia ) é ironizada pelo narrador, pois a mãe tinha que chorar com mais
realismo. Alguns gritam “ maconheiro! “, uma garota grita “ tesão! “ . Jogam o negro no
camburão. O corpo é retirado elevado para o rabecão, segue para o IML. Desiste de visitar o
amigo e segue para a casa da ex-mulher.
Lá chegando, irrita-se, pois as coisas não funcionam como antes, portas não abrem,
torneiras giram para o outro lado... segue para o banho. Depois de inundar o banheiro, procura
uma mala. O homem do olho mágico volta a atormentá-lo. Realidade confunde-se com o
Sonho.Pega a mala e sai. Anda pelas ruas desconfiado, pois era muito suspeito. Vai para a
casa da irmã. Na entrada, depois de apalpado pelos seguranças, descobre que a irmã está
112
dando uma festa. É um intruso. Seu nome não constava na lista de convidados. É ironizado
pelo cunhado que o chama de porra-louca ( toda família sempre tem um ). Apenas um rapaz
bonito, de cabelos longos, o observa. ( gayzagem? talvez. ).
Lembra de um dia em que visitou a irmã e ainda era querido. Subiu ao quarto dela e não
imaginava que a irmã e o marido dormissem no mesmo quarto. Quem estará com ela agora?
O rapaz cabeludo? Não há ninguém no quarto. Encontra roupas e jóias da irmã, não pega
todas as jóias da irmã.Acha-se um cara legal. Encontra uma amiga da irmã, uma doida que o
agarra querendo sexo imediatamente. Ele foge pela copa. Mistura-se aos garçons, recebe até
gorjeta. Ruma para a rodoviária. No ônibus, com as jóias da irmã no bolso, sente-se
confortável. Lembra da infância, da irmã, das brincadeiras... ( insinuação de incesto ).
Encosta-se no passageiro de lado para brincar com o balanço do ônibus ( ôôôôô!!! ). Percebe
as mãos frias e de cera do homem, está morto. Desce do ônibus, mas o morto olha-o com um
olhar fixo. Atravessa o sítio. É levado pro homens estranhos a um trailer onde entrega as jóias
da irmã. Apanha. Depois de tudo, volta ao sítio da família, onde a menina cozinha-lhe uma
sopa. A gengiva sangra. Escuta um gemido que não sabe se é de alguém ou dele mesmo.
Acorda pela manhã sentindo fortes dores. Está com o rosto inchado e com a boca
amarga. Pega a garrafa de rum do velho, passa por cima da menina que dorme ao lado com
um walk-man. Por causa de um limão, lembra do amigo intelectual que adorava caipirinha. O
amigo ajeitava o cabelo atrás da orelha como a irmã.Falam de literatura russa. ( Crime e
Castigo - Dostoiévski ). Lembra do amigo, pensa nos pés do amigo que podiam ser como os
pés do morto. Lembra que o amigo um dia lhe disse “ você é um bosta “ . teve de concordar.
Ele era um bosta, sua família outra bosta, e o governo... ( haja bosta! ). Lembra que foi a uma
festa com o amigo, conheceu uma antropóloga que tentou lhe ensinar uma dança africana.
Casou com ela e viveram juntos por 4 anos e meio. O amigo sumiu. Espera a venda das jóias
pelo ruivo e pelos gêmeos. Toma banho de piscina, são 3456 azulejos ( neurose ). A casa fica
próxima a um morro, a uma favela, negocia com traficantes e ladrões. A fazenda está
invadida, na realidade. Não consegue dormir. Sonha que foi seqüestrado e que o grupo vai
matá-lo se a irmã não der a grana. Acorda e passeia pelo sítio. Vê a chegada da polícia dando
uma batida no trailer do ruivo e dos gêmeos. Fogem todos. Descansa na casa enquanto a
menina faz-lhe tranças. O gêmeo aprece com uma mala cheia de maconha e diz que o chefe
gostou do trabalho dele. Pega a mala, à noite, e sai.
Chega a um ponto de ônibus Crianças brincam na rua e sobem no pára-choque do ônibus.
Ele sobe junto. O ônibus balança. ôôôôô!!. Pessoas o observam e olham para a mala.
Encaminha-se para o subúrbio.Desce na rodoviária. Pega um táxi e vai para a casa da mãe.
Descreve o quarto a partir do que lembra. Na entrada, encontra um porteiro, um negro quase
azul, lembra do pai. “ crioulo não tem signo “ . Deixa a mala na porta da mãe ,toca a
campainha, mas ela não vem abrir. Vai para a frente do prédio. A mãe não aprece na janela (
quem mora em frente ao mar não aprece na janela ). Delira, pensando na morte da mãe e na
mala que será encontrada pela polícia. Sobe de novo e paga a mala. Passeia pelas ruas com a
mal. Entra em um banco, Encontra uma moça paralítica que é irmã de um ex-amigo festeiro.
A moça está chorando, pois talvez o empréstimo tenha sido recusado. Também pode estar
chorando porque ao vê-lo lembrou das festas dadas pelo irmão e ela não podia dançar. Suas
pernas ficaram com quinze anos para sempre. Atravessa a rua e vai para o prédio do outro
amigo de quem pegava livros emprestados e nunca devolvia.Escorrega na escada, a mala cai e
113
esparrama tudo que tem dentro. Bate com a cabeça e sangra.Feriu o rosto. Fica desolado. Ao
levantar a cabeça. dá de cara com o negro de sunga pele de onça que tem um canivete na mão
e uma laranja. Sai desconfiado, pula o muro e cai num terreno baldio. A polícia chega,
multidão, a mala foi achada. Cai ao lado de um sujeito, talvez um professor ) que está
fumando. Saem juntos e onde vai aquele homem o acompanha silenciosamente. Entra no
shopping.A ex-mulher o ignora. A porta da loja explode em pedaços. Seguranças são
chamados. Chega uma ambulância. Lá embaixo, seu amigo é agarrado e levado para um
sanatório. vem outro carro, a porta abre e ele entra.
No carro, a amiga de sua irmã está indo a uma partida de tênis. Ela o reconheceu. Vão
para a mansão da irmã. Chega. Ela desce e vai para a quadra onde o cunhado dele a espera.
Onde andaria a irmã? Pela conversa da magrinha, tudo indica que a irmã viajou para o
exterior. Ele não entende. Depois da partida, o cunhado e a magrinha entram na sauna. ( que
beleza! ). Chega a hora do jantar. A sobrinha está com a cara toda verde, usa as pinturas da
ma~e. Durante o jantar, perguntam se ele viu a cara dos ladrões no jornal. Ele mente dizendo
que sim. Falam de um assalto. A casa foi assaltada na noite da festa, no dia em que ele pegou
as jóias. Os ladrões pediram dinheiro. A irmã disse que tinha jóias, foi buscá-las e não
encontrou. Os ladrões ficaram violentos... O cunhado pergunta se ele soube o que os ladrões
fizeram com a irmã dele no chão do quarto. Ele diz que sim. ( nós também já sabemos ).
Levanta-se e vai ao banheiro. Não consegue urinar. Em seguida, o copeiro o leva à
presença de um delegado que está ali exclusivamente para investigar o caso. O delegado fazlhe um relato do crime. O delgado ficou interessado pelas olheiras da irmã. Mulheres
sofridas são cativantes. É levado pelo delegado que, depois de pegar um amigo, rumam para
a delegacia e para o sítio onde há o trailer do ruivo e onde os gêmeos fazem a guarda. Acha
estranho. No sítio, são recebidos pelos gêmeos que agem de forma violenta. Dentro do trailer,
na chegada do policial, explode uma rajada de balas. O ruivo, injuriado, atirou para o teto com
a metralhadora. O cara que ele julgava um ladrãozinho qualquer é, na verdade, o dono do
sítio. As coisas pioram quando o delegado entra. Os bandidos se rendem. São fuzilados do
lado de fora. O delegado acha cocaína e as jóias nas gavetas do ruivo. Coloca as jóias no
bolso do paletó e si do trailer. O delgado continua expulsando ( como foi pedido pelo cunhado
) todos que estão no sítio, o velho, a menina, etc. A plantação, provavelmente de maconha, é
incendiada. Ele sai andando sem destino. Chove.
No caminho, encontra o homem de camisa quadriculada ( o doido quadriculado do
barranco) e tenta abraçá-lo de forma amistosa. O louco tem um facão enferrujado na mão, o
fero entra-lhe fundo nas carnes e o louco some pelas ribanceiras. Vem um ônibus, ele sobe,
não tem dinheiro para a passagem, mas o motorista deixa-o entrar. Senta junto de um homem
esverdeado que tem a cara encostada no vidro. Encosta a cabeça no vidro também. Quer
descer na rodoviária. Quando a irmã voltar não se negará a pagar-lhe um apartamento; o
amigo que gosta de francês também poderá hospedá-lo; sua ex-,mulher fará cara feia, mas
quando perceber o sangue e o ferimento, talvez o deixe entrar.
Crítica:
114
Estorvo é o típico romance moderno, ou seja, feito nos moldes da literatura “de hoje”. O
que temos é a história de um homem que é um verdadeiro estorvo, um saco, uma perturbação
para qualquer um e principalmente para ele mesmo. Narrado em 1. Pessoa, fragmentado até
não poder mais e cheio de inovações ( verbos no futuro ), Estorvo ultrapassa os limites do
neo-realismo, pois nos apresenta a uma narrativa tão densa que beira o transtorno psíquico,
uma narrativa de uma personagem perturbada, visivelmente perdida dentro de si mesmo e do
mundo. O niilismo contemporâneo também é a marca dessa narrativa onde o oral funde-se ao
formal e o popular ( policial ) suplanta o tradicional ( psicológico ). É um livro dotado de
um circularidade enervante, ou seja, pode ser iniciada a leitura em qualquer ponto porque
também não se tem a certeza de onde é o seu final. Talvez o início seja o fim, talvez o
narrador já estivesse morto quando a história começou, talvez ele nem vá morrer... É um livro
corrosivo, causticante porque o autor conseguiu atingir em cheio não apenas o cérebro de sua
personagem mas o cérebro do leitor. É também um livro onde as metáforas de Chico
Buarque revelam como há poesia no cotidiano, mesmo que seja uma poesia mórbida ou
embrutecida. Assim, podemos dizer que como romancista, ao menos em Estorvo, pois
Budapeste é um caso a estudar, Chico Buarque é um ótimo compositor.
23 - O Sertanejo – José Martiniano de Alencar
Autor e Obra
José Martiniano de Alencar, o maior romancista da era romântica e um dos mais consagrados de
todos os tempos, nasceu em Mecejana, no Estado do Ceará, no dia 10 de maio de 1829, descendente de
importante família, pois o pai fôra deputado durante as cortes portuguesas e participante ativo da luta
pela maioridade do imperador Pedro II. Polígrafo, imaginoso, foi um dos melhores no gênero
indianista e também fiel observador dos costumes sociais de sua época. Mesmo que fosse exagero
nas descrições, conquistou um grande e fiel público leitor , não apenas pela riqueza de sua imaginação,
como também pela beleza e suavidade de seu estilo, uma vez que podemos tê-lo como um dos maiores
defensores da língua brasileira em oposição ao português de Portugal. Apaixonado pela literatura,
conseguiu passar para o leitor a mesma paixão que sentia, pois muitas de suas obras em prosa ( contos
e romances ) têm forte indicador poético. José de Alencar formou-se em Direito pela Faculdade de
São Paulo. Foi deputado por seu Estado em várias legislaturas. Brilhou como crítico, parlamentar,
jurisconsulto, publicista e literato. Pelo que se registra nos anais da crítica da Arte em geral, não existe
obra mais brasileira nem de maior resplendor selvático do que O Guarani, cuja leitura inspirou ao
maestro Carlos Gomes a famosa ópera que tem o nome do romance, cuja fama excedeu aos limites da
costa brasileira sendo representada na Itália, na França, na Alemanha e até no Japão. Embora, como
observam os críticos, os personagens nem sempre se coloquem bem no ambiente em que se
movimentam, mesmo assim as descrições são feitas com tintas fortes e impressionantes. É bem
verdade que algumas críticas foram e ainda são feitas a José de Alencar pela construção um tanto
quanto inverossímil de algumas de suas personagens como o próprio Peri, de O Guarani, um selvagem
que só não tinha curso de informática, mas o resto ele fazia para ajudar o homem branco. Grande
romancista, também escreveu peças teatrais de relativo êxito e foi ardente jornalista. Faleceu no Rio de
Janeiro, a 12 de dezembro de 1877, levando consigo uma grande mágoa, a de não Ter sido Senador
como lhe fora o pai, tudo por uma rixa com o imperador Pedro II que nunca simpatizou com Alencar.
Quanto a este fato, perdeu a Política, mas ganhou a literatura Brasileira. Graças a Deus! É autor dos
115
seguintes romances: O Guarani (1857);As Minas de Prata (1862); Diva (1864); Lucíola (1865);
Iracema (1865); O Gaúcho(1870) ; A Pata da Gazela (1870); O Tronco do Ipê (1871); Sonhos de
Ouro (1872); Ubirajara (1875); O Sertanejo ( 1877); A Guerra dos Mascates (1877) e Senhora,
dentre outros. Fez alguns contos como seus primeiros textos: Cinco Minutos e A Viuvinha. Famoso
por ser abrangente e mais ainda por ser brilhante, Alencar escreveu sobre o homem e sobre o Brasil,
abrangendo diversos cenários e tipos humanos, desde o índio selvagem ao branco valoroso, do
sertanejo impertinente ao gaúcho ufanista, do severo colono ao cavalheiro elegante, da mulher do
campo à dama elegante dos salões que retratava a fina flor da burguesia oitocentista.
Momento
Seguindo inicialmente o que fora preconizado pelos dois últimos grandes nomes do Arcadismo
brasileiro, Basílio da Gama e Santa Rita Durão, José de Alencar estreou fazendo a linha do
Indianismo romântico. O Guarani, Ubirajara e Iracema são textos que denotam muito bem esta
referência. No entanto, depois de autores como Joaquim Manuel de Macedo e Manuel Antônio de
Almeida de, A Moreninha e Memórias de um sargento de milícias, respectivamente, Alencar passou a
se dedicar ao texto de descrição e análise de costumes. Autor dos mais representativos da literatura
brasileira pela grandiosidade de sua obra e pela quantidade de textos escritos, José de Alencar tornouse, com mérito, o maior romancista brasileiro. E justamente por sua obra pertencer a uma fase na qual
se trabalhava a idealização, o sentimentalismo e a descrição dos costumes da sociedade, também
teremos em José de Alencar o maior nome do Romantismo brasileiro. Isso se deve, basicamente, pela
abrangência de suas temáticas, pois escreveu sobre quase tudo ou de tudo um pouco, como se diz, fez
textos indianistas, textos ultra-românticos, textos nacionalistas, textos urbanos, sociais, textos de
temática regionalista como O Gaúcho e O Sertanejo, e para solidificar sua importância na literatura
brasileira, é considerado o precursor do romance histórico em nossa literatura com As Minas de
Prata, Guerra dos Mascates e O Guarani.
Resumo
A história começa com a volta do capitão-mor Campelo a sua fazenda Oiticica, no sertão de
Quixeramobim. A família estivera passeando no Recife, e agora, voltava para casa. O narrador,
sempre em terceira pessoa, aproveita para fazer uma primorosa descrição do sertão cearense falando
do clima, da vegetação e da fauna agreste. A comitiva segue lentamente em direção à fazenda. Um
pouco mais distante do grupo viaja D. Flor, filha única do capitão-mor, de beleza e feminilidade fora
do comum. A personagem feminina é descrita à moda romântica, de forma idealizada, subjetiva,
como se fosse uma deusa ou espécie de anjo.
Seguindo a família, principalmente D. Flor, escondido, pronto parta entrar em ação, como os
grandes heróis de cavalaria, vem Arnaldo Louredo, o sertanejo, criado com D. Flor, e agora, o maior
vaqueiro da região, pois seguiu a profissão do pai já falecido, o grande vaqueiro Louredo, ex-capataz
da fazenda.
De repente, um incêndio começa exatamente onde Flor vem cavalgando; o cavalo se assusta e ela
cai desmaiada. Arnaldo entra em ação. Salva D. Flor e leva-a para casa, por caminhos que só ele
conhece. Quando todos chegam, a moça já estava em segurança, trazida por um misterioso cavaleiro (
Arnaldo ). A partir de então, muitas peripécias vão surgir para que Arnaldo por meio de sua bravura
demonstre o grande sentimento que nutre por Flor. A jovem vai-se meter em uma série de apuros e,
em todos será salva pelo corajo0so sertanejo, uma espécie de cavaleiro andante, que alimenta um amor
impossível por uma donzela que não sabe o que sente por ele. Este amor aparentemente é inviável pela
116
diferença social que se interpõe entre eles. Ele, um vaqueiro, ela, filha do capitão-mor o homem mais
importante da região. Assim, Arnaldo viverá em função de Flor, amando-a escondido e defendendo-a
de todo e qualquer perigo. Fará tudo isso em companhia do seu fiel amigo Jó, um homem misterioso,
de idade avançada, meio cego, que apareceu na fazenda de forma misteriosa e foi acolhido por todos,
mas com ressalvas pelo capitão-mor. Os segredos de Jó e, principalmente, sua origem, apenas o
sertanejo conhece. Serão muitas as aventuras e amizades de Arnaldo, mas todas ligadas aos diversos
perigos que enfrentará.
No entanto, o maior de todos os perigos chama-se Marcos Fragoso, filho de um fazendeiro
vizinho, inimigo do capitão-mor, que se apaixona por Flor e vem, desde o Recife tentando encontrá-la,
pois também esteve nas festividades e competiu com vários cavaleiros em nome da moça mais bonita
da festa, Flor, com certeza. Vale lembrar que Marcos Fragoso perdeu apenas um embate e justamente
para um cavaleiro misterioso, surgido do nada, que ofereceu o prêmio a Flor, e esta aceitara. Fragoso
apaixonou-se pela donzela e agora saia à sua procura, mas não sabia, logicamente, que o tal cavaleiro
misterioso ainda estava por perto...
Em uma atitude amistosa, Fragoso, logo que chega, corteja Flor na casa do pai, mas não deixa
bem claro o que deseja, subentende apenas que Flor seria a mulher ideal para ele. O capitão-mor,
acostumado aos ditames do sertão, não gosta muito da atitude pois [para ele o pretendente da filha
quem costuma indicar é o pai. Se o capitão-mor não gostou de Marcos Fragoso, imagine o que sentiria
o Arnaldo, vendo sua amada sendo cortejada por outro.
Dias depois, Marcos Fragoso convida toda a família Campelo para um almoço em comitiva, com
direito a caçada de bois e muita fartura ( esta é a diferença do sertão de Alencar para o sertão do
regionalismo de 30, no Modernismo ). Nesta ocasião, pede Flor em casamento. Campelo, depois de
muita reflexão, pensava até em ceder, pois a filha já estava na idade de casar e Marcos Fragoso, bem
ou mal, era um homem de posses. Mas quando soube, por Arnaldo, que Fragoso já havia preparado o
seqüestro de Flor vaso a resposta fosse negativa, expulsa o pretendente e diz que Flor jamais casará
com ele porque o noivo da filha apenas ele poderia escolher. Marcos fragoso, com mais ódio ainda,
reúne um bando de jagunços e tenciona invadir a fazenda Oiticica para destruir o capitão-mor e levarlhe a filha à força, pois a queria a qualquer custo. Chega à Oiticica o jovem Leandro Barbalho,
sobrinho do Capitão-mor que veio conhecer a moça, pois Campelo pensa em casar a jovem com o
primo. Arnaldo não simpatiza muito com Leandro Barbalho, mas entende que ele apenas está
atendendo a um pedido do tio.
Arnaldo, Jó e alguns amigos índios, responsáveis pelo fracasso da operação montada por Fragoso,
preparam-se para defender a fazenda do cerco do inimigo, que acabara de fechar com sua jagunçada
todas as saídas da Oiticica. Com muita raiva, o Capitão-mor Campelo, homem de muita palavra, quer
afrontar Marcos Fragoso e ordena que se monte um altar no qual casará a filha com o jovem Leandro
Barbalho. Arnaldo não gosta da idéia, mas não tem raiva de Leandro Barbalho. Neste momento, jura
para si mesmo que se Flor não for dele também não será de mais ninguém. O cerco continua e Marcos
Fragoso começa a entender o que está acontecendo na fazenda.
Enquanto isso, Jó, que conseguira fazer contato com os índios amigos de Arnaldo, deixa-os a par
da situação e pede-lhe ajuda. Os índios se mobilizam para socorrer Arnaldo e o povo da fazenda
Oiticica. Na hora do casamento, Marcos Fragoso, enfurecido, ataca a Oiticica, mas providencialmente
os índios e Jó chegam de surpresa, deixando os homens de Fragoso no meio de um fogo cruzado. O
casamento, estranhamente, prossegue e à certa altura, Leandro Barbalho, o noivo, é atingido por uma
flecha, provavelmente disparada por Jó, a mando de Arnaldo. O combate aumenta, mas, perdendo
muitos homens, Marcos Fragoso bate em retirada e a fazenda Oiticica, com a vida de seus ocupantes,
é salva pela astúcia de Jó e dos índios, pela coragem de Arnaldo.
O capitão-mor Campelo, orgulhoso pela vitória, dá todo o crédito a Arnaldo, apesar de haverem
discutido há alguns dias pela rebeldia do rapaz. Neste momento, fazem as pazes. Como gratidão,
Campelo dá a Arnaldo o direito de usar seu sobrenome e diz que lhe concederá ainda qualquer coisa
117
que o vaqueiro pedir. Nesta hora, o leitor acredita piamente que Arnaldo vai pedir a mão de Flor em
casamento, mas não. Arnaldo pede a mão de Alina, uma das criadas de Flor, e também sua amiga de
infância.
Quando isso acontece, Flor parece indecisa. Não sabe se fica alegre pela amiga ou se morre de
ciúmes, pois nem ela sabe o que sente por Arnaldo. Espanto geral. Arnaldo não pediu a mão de Alina
para ele, mas para Agrela, seu amigo, capataz da fazenda, que muito ajudou na luta contra Marcos
Fragoso.
Depois disso, os sentimentos de Flor ficam ainda mais confusos, por isso ela se afasta de todos e
chora. Arnaldo a segue e pergunta em tom preocupado por que ele estava chorando. A resposta é
“Deus não quer”. Flor agora acredita que Deus não quer que ela case com ninguém, nem com Marcos
Fragoso, nem com Leandro Barbalho... Flor entra em casa chorando e Arnaldo, agora Arnaldo
Campelo, contente pela “solidão temporária” de sua amada, continuará em busca de novas aventuras
para dedicar seu feitos heróicos a donzela D. Flor.
Interessante é notar que neste romance, em particular, alguns mistérios não são totalmente
desvendados como por exemplo a origem do velho Jó, amigo fiel de Arnaldo, ou que fim levou o
corpo do jovem Leandro Barbalho, pois é antecipado ao leitor que a flecha não era envenenada, apenas
continha alguma substância indígena que o faria dormir. Será que ele morre? O que D. Flor sente
realmente por Arnaldo? A resposta a estas e outras perguntas seria estaria em um outro livro que José
de Alencar escreveria apenas para contar o final da história de amor entre D. Flor e o corajoso
vaqueiro Arnaldo, mas, infelizmente, morreu antes de escrevê-lo.
Crítica
Considerado entre outros romances de Alencar um livro “menos importante”, O Sertanejo
deveria ser melhor analisado. É bem verdade que a obra de certa forma se perde em um romantismo
telúrico e ufanista em relação ao nordeste brasileiro, isso se levarmos em consideração o fato de o
Romantismo ser, na verdade, bastante nacionalista. Mas afora estas questões, bem particulares até,
podemos dizer que há em O sertanejo um fator de muita importância para a literatura brasileira: a
caracterização sem precedentes de uma personagem tipo, a personagem que representa uma classe, que
representa uma região, um povo: o sertanejo. Este é um romance construído dentro do cânone
oitocentista, mas com uma tonalidade medieval. A história de Arnaldo e Flor é, antes de tudo, uma
história de amor cortês, de amor platônico impedido por conta de preceitos sociais, morais e
financeiros. Arnaldo é um vaqueiro e nem mesmo ele acredita que um dia possa desposar a filha do
capitão-mor. O tempo todo, temos um herói que se esconde, que não assume seus grandes feitos, mas
que na surdina os dedica àquela que tanto ama. Arnaldo, a bem da verdade, e próximo do que há no
livro, lembra os grandes cavaleiros andantes, medievalescos, de histórias mágicas como O Rei Arthur
os Cavaleiros da Távola Redonda, no distante reino Bretão. Se formos em busca destas raízes veremos
seguramente que José de Alencar tomou como base grandes romances como o do inglês Walter Scott,
o clássico Ivanhoé, sobre a origem do povo inglês. Em O Guarani, um dos seus primeiros textos,
Alencar já utilizava esta influência, pois os heróis ( Peri e Ivanhoé ) têm no mundo o mesmo objetivo,
e na literatura a mesma funcionalidade, representar um gente, uma raça, na luta pela perpetuação de
um povo. A diferença entre O Guarani e O Sertanejo é que O Sertanejo não valoriza aspectos
historicistas. O Sertanejo é antes de tudo a história de um amor, mas também de um homem, um
homem diferente dos demais pelo contato fraternal que tem com os animais e com a terra. O Sertanejo
também visa a valorização de uma cultura, de um povo, de uma região. Neste ponto, podemos
entender porque José de Alencar é considerado um dos precursores do “romance regionalista”, uma
vertente que só será valorizada na geração de 30 do Modernismo brasileiro. Por isso, a crítica literária
118
vai dizer que autores como Alencar ( O Sertanejo ), Franklim Távora ( O Cabeleira ) , Domingos
Olímpio ( Luzia-Homem ) e Rodolfo Teófilo ( A Fome ) serão primeiramente chamados de
“sertanistas “. Nascia então a corrente “sertanista “ do romance brasileiro. O romance O Sertanejo é
um romance romântico, mas pertencente a esta linha sertanista ( regionalista ). Podemos enquadrá-lo
como romântico, imediatamente pela data de publicação, anterior a 1881, e também pela postura de
idealização adotada por José de Alencar em relação ao espaço ( um sertão contraditoriamente de muita
fartura ), em relação à figura feminina ( o ar de deusa e santa que Flora possui ) e também pela
conduta da personagem masculina ( o heroísmo e a bondade de Arnaldo ). Este é, sem dúvida, um
grande romance alencarino; não sendo o melhor, com certeza, mas um texto essencial para quem está
começando a entender de cultura e de amor.
24 - Esaú e Jacó – Machado de Assis
Autor e obra
Considerado, com louvor e verdade, o maior escritor brasileiro, reconhecido internacionalmente
pela universalidade de sua obra, no seu dizer, nunca imaginou chegar ao que chegou: “O talento
geralmente pula uma geração”. Nascido a 21 de junho no Morro do Livramento (RJ), filho de uma
lavadeira e um pintor de paredes, Machado de Assis nunca foi bonito. Era mestiço, pobre, feio, gago e
epiléptico e, pra se sustentar, vendia doces nas baixadas cariocas. Com todas essas “qualidades” e
tendo seu talento literário reconhecido por seu grande mestre Manuel Anto. de Almeida, de quem foi
ajudante de tipógrafo, Machado fez de tudo um pouco, ou seja, escreveu peças teatrais, contos,
crônicas, críticas e poesia, mas, ficou conhecido principalmente por seus contos e através do romance
Dom Casmurro. Publicou quatro livros de poesia intitulados: Crisálidas, Falenas, Americanas e
Poesias Completas. Quanto à prosa, sua obra pode ser dividida em duas fases: a Primeira, romântica,
(Ressurreição 1872; A Mão e a Luva 1876; Iaiá Garcia 1878; e Helena 1876); e a Segunda, realista,
compreendendo os romances (Memórias Póstumas de Brás Cubas 1881; Quincas Borba 1891; Esaú e
Jacó 1904 e Memorial de Aires, 1908). Muito influenciado por Gustave Flaubert (FRA) e Eça de
Queiroz (PORT), Machado de Assis destacou-se principalmente por seus contos, entre eles os
volumes Histórias da meia-noite, Relíquias da Casa Velha, Contos Fluminenses, Papéis Avulsos e
Histórias sem data. Como gênio que foi, não usou uma poética qualquer, ou seja, o “anatomista” de
almas ou “bruxo” , como dizia a crítica, nunca escrevia só por escrever; cada personagem, cada
palavra em seu texto precisava estar no local exato e desempenhando a função mais do que adequada.
Sua obra é recheada de filosofia, perspicácia e ironia seguindo os ditames da escola que o antigo
mestre preconizara, o Realismo. Casou-se com D. Carolina Xavier de Novais, a quem amou toda a
vida. Em seguida. fundou a ABL, sendo seu primeiro presidente. Morreu a 29 de setembro de 1908, de
um câncer na língua, deixando, para a eternidade, uma vasta e importantíssima contribuição literária.
Momento
Mesmo possuindo uma fase romântica Machado de Assis, com o romance Memórias Póstumas de
Brás Cubas, lançado em 1881, passou a ser considerado o maior nome do Realismo brasileiro. Como
Esaú e Jacó faz parte desta Segunda fase, que vai de 1881 a 1908, podemos enquadrá-lo também como
um livro realista. Esta escola literária surge na realidade em 1857, quando o francês Gustave Flaubert
119
leva a público o romance Madame Bovary, no qual apresentava à sociedade a primeira protagonista
sem caráter, ambiciosa, adúltera, vadia e linda da literatura mundial. O livro causou um grande furor
na época a ponto de ser proibido por não ser uma boa leitura para as moças e senhoras recatadas da
época. Flaubert foi levado a julgamento pela criação desta personagem, mas como bom advogado que
era fez sua própria defesa e conseguiu se safar dizendo ao juri “ Madame Bovary cest moi “, “Madame
Bovary sou eu! ela só existe na minha cabeça, mas a mulher dessa história, na realidade está em
todas as esquinas da França, em cada quarto, esquecida, em cada cozinha, trabalhando, em cada
desejo não realizado, em cada sofrimento calado, basta procurar. “ Desta forma, instalou-se o
Realismo na Europa. Em seguida, teremos o português Eça de Queiroz lançando O crime do Pe.
Amaro e mostrando ao mundo que a Igreja também tem pecados. Em suma, o Realismo passa a existir
com a negação dos principais valores românticos e os autores desta época travarão uma verdadeira luta
com outros que insistem na produção de textos marcados por um romantismo passadista e decadente.
Por conta disso, Machado de Assis passou a ser o maior representante do ideal realista em nossa
literatura, primeiramente pela destruição do cânone romântico e em seguida pela inovações
apresentadas como por exemplo a criação de um “defunto-autor” em Memórias Póstumas e um
psicologismo tão forte que seria superado apenas por um rapazinho chamado Sigmund Freud.
Resumo
O livro começa em flash-back, com as irmãs Natividade e Perpétua indo ao morro do Castelo
fazer uma consulta com uma certa cabocla de nome Bárbara que tinha dom de adivinhação. Natividade
mostra a foto de seus dois gêmeos, Pedro e Paulo, e pergunta sobre o futuro deles. Bárbara diz que há
coisas futuras e que eles serão grandes. Em seguida, a história dos gêmeos é contada desde a gestação.
Santos, o esposo de Natividade, fica muito contente com a notícia de que vai ser pai, e mais surpreso
ainda quando sabe que serão gêmeos. Desde a gestação, também lembrado pela adivinha, os gêmeos já
brigavam. Santos ouve da esposa sobre a visita que esta fizera a cabocla e sobre o que a adivinha
dissera sobre o futuro dos gêmeos.; Santos fica mais contente ainda e comenta a notícia com alguns
Amigos, dentre eles um certo Aires, ex-ministro, conhecido por todos como Conselheiro Aires (
personagem reutilizada por Machado de Assis em sua última obra ) verdadeiro cético em assuntos
espirituais. Aires procura incutir na cabeça de Santos e dos amigos que a briga dos gêmeos dentro da
barriga da mãe não deveria ser encarada como algo sobrenatural, pois os mesmos, segundo a ciência,
poderiam estar-se acotovelando para ficarem melhor acomodados. Diz que outras explicações não são
negadas, mas lembra que na bíblia, lugar onde tudo é simbólico, os gêmeos Esaú e Jacó também
brigaram na barriga da mãe e isso não foi determinante em suas vidas.
Depois de conversar com os amigos Santos vai para casa, abraça e beija a esposa e compartilham
a felicidade de serem pais de crianças de futuro... O autor, em seguida, nos apresenta os gêmeos a
medida que vão crescendo. E de iguais que já eram, crescendo mais idênticos ainda, mas cada um com
suas partivculari8dades,pois eram iguais fisicamente, mas tinham atitudes opostas, divergiam em tudo.
Pedro e Paulo, nome verdadeiro dos gêmeos, já que o título é antes uma referência bíblica, divertiamse como crianças comuns, mas na verdade não eram. Discutiam sempre, mas um dia, brigaram tanto,
de tapas, que os pais precisaram interferir. Depois, para animarem-se ganharam beijos e doces. Na
ama, 1a noite, refletiam intimamente e descobriram cada um a seu modo, que só ganharam os doces
porque brigaram. Assim, concluíram que brigar parecia uma atividade lucrativa. Em seguida, D.
natividade é descrita: uma mulher de 40 anos coma cor azul dos 30. Ardorosa e ainda causadora de
paixões como s que causará no finado João Melo e também no próprio Conselheiro Aires. Um dia,
exatamente no aniversário de casamento de Natividade e Santos, quando nada estava para acontecer e
o desapontamento da senhora era grande, veio a notícia: santos foi elevado à condição de barão.
120
A cabocla começava a adivinhar. Se os pais eram barões, os filhos já começavam a ser “grandes”:
coisas futuras.
Ao gêmeos continuavam crescendo e as opiniões se dividindo. Em 1886, já estavam quase de
barbas quando em uma reunião familiar perguntaram quando tinham nascido. Um respondia: “Quando
Pedro II subiu ao trono” e o outro dizia: “Quando o Pedro I caiu do trono”. Faziam o possível para não
terem opinião em comum. E tanto cresceram as opiniões de Pedro e Paulo que intelectualmente e
politicamente eram opositores. A mãe passou a reparar na rivalidade e sofria com isso. Os pais
resolveram que Pedro seria médico e Paulo seria advogado. Isso era, na realidade, um recurso para
separá-los e evitar as brigas. Assim, um foi estudar no Rio e o outro em São Paulo. Era a paz Perpétua
... e a Perpétua amizade... Mas se brigavam até por uma gravura, uma foto, de Luís XVI para um,
Robespierre ( monarca francês X republicano rebelde ) para outro, imagine o que farão por seus
ideais, por seus amores. Pior ainda, imagine se iriam se contentar com a esposa. Ou será que não hão
de querer a mesma esposa? E realmente quiseram.
A jovem em questão chamava-se Flora, filha de D. Cláudia e do Sr. Batista, gente que abastada
fora e agora caíra no esquecimento. Flora representava o contrário dos pais. Não possuía a paixão de
D. Cláudia e nem o aspecto governamental do Sr. Batista. Flora era apenas ela mesma, vaso quebrado,
flor de uma só manhã, de olhos grandes e claros, nariz aquilino, boca muito risonha, rosto comprido e
cabelos ruivos. Gostava de musica, mas não de festas. Tocava piano divinamente. E como não poderia
deixar de ser, as duas famílias, a dos gêmeos, e a de Flora, tinham em comum a amizade com o
conselheiro Aires, ex-ministro aposentado, sessentão , fino, filosófico, irônico e galanteador.
Deste ponto em diante a narrativa se volta mais para o conselheiro Aires, amigo de todos que, a
tudo inquiria e anotava, originando um tipo de “Memorial”. É o que temos dele é que era viúvo sem
filhos, apaixonado, no passado, por várias mulheres, dentre elas D. Natividade. Aires ao ver a jovem
Flora, chama-a de “inexplicável”. Seria um elogio ou uma crítica?
Voltando aos gêmeos, vemo-los crescidos, formados, Paulo em direito e Pedro em medicina.
Sempre aptos a discórdia, um liberal e outro conservador. Mas de tudo que discordavam havia um
assunto em que eram comuns: Flora, linda, doce, meiga, maravilhosa... Flora era a união destes pontos
tão distantes. Sobre ela não havia discussão, apenas recato, calma e apreciação espontânea. Flora sabia
disso e seus ares de menina-moça ainda não a forçavam a escolher entre um e outro.
O ambiente político do final do século fez com que as divergências entre os gêmeos se
acentuassem. Mas a abolição dos escravos em 1888 trouxe uma união momentânea, apenas de opinião,
mas já seria um bom começo. Para Pedro era um ato de justiça, para Paulo o início da Revolução.
Paulo critica o imperador em um discurso no jornal. Natividade escreve ao filho exigindo que se
retrate e ele diz que deve tudo a ela e mudaria tudo por ela, mas “as opiniões é que não”. Natividade
sofre e pede ajuda ao conselheiro Aires para que passe a orientar os gêmeos senão eles nunca serão
grandes e importantes, principalmente, atacando o imperador.
Aires aceita a missão
que D. Natividade o impõe e lembra alguns casos antigos que lhe
ocorreram como por exemplo um “gatuno” preso na rua, um burro teimoso que refletia sobre o dono e
uma sevilhana de nome Carmem que lhe ensinara algo sobre governos que caem ou que sobem
segundo as vontades e reações do povo. Aires pensa que por ironia do destino poderia ter sido o pai
dos gêmeos. Por este tempo, Paulo, o republicano, escreve um discurso bastante acirrado contra a
monarquia. A família teme por ele da outra interpretação ao texto. Paulo não gosta e isso é mais um
motivo para os gêmeos discutirem. Aires, a pedido de Natividade, tenta aconselhar os irmãos, para
isso convida-os para jantarem em sua casa. Lá , compara-os, um é Aquiles e o outro é Ulisses, heróis
de Homero na Ilíada e Odisséia.
As conversas e os alguma coisa. Os gêmeos adimiram o conselheiro Aires e ele vai escrevendo
sobre os gêmeos em seu “memorial”. Os pais de Flora, Cláudia e Batista, ficam decepcionados porque
a indicação do esposo não saíra para presidência de alguma província, tudo por causa de algumas
inquietações políticas entre monarquistas e republicanos, conservadores e liberais, dando uma
121
provável mudança de regime. Em seguida, é dada uma festa na qual pessoas influentes do governo
traçam planos políticos. Flora, paquerada pelos irmãos, fica a cada dia mais dividida. Aires observa
tudo isso.
Deste ponto em diante, no episódio da “tabuleta”, encontramos na obra um sentido político
incomum nos textos machadianos. A crise do 2.0reinado agrava-se e a política é cada vez mais
inconstante. O episódio trata da dúvida de um comerciante que não sabe mais como escrever o nome
de seu estabelecimento “Confeitaria do Império” se não houver império algum.
O Sr. Batista, pai de Flora, depois de “ puxar bem o saco”, a conselho da esposa, consegue a
nomeação para presidente de província. Isso vai trazer um dilema para a jovem que sofre ao imaginarse longe de Pedro e Paulo. Apenas para o conselheiro Aires a moça deixa transparecer seu sofrimento.
Enquanto isso, D. Cláudia, mãe de Flora, pensava nas recepções, nos bailes, em toda a boa vida de
uma mulher de presidente de província.
Pedro e Paulo, o primeiro cursando Medicina no Rio de Janeiro e o segundo fazendo Direito em
São Paulo, não viam a hora de matar as saudades de Flora, estavam cada vez mais apaixonados. Não
diziam isso um ao outro, mas concordavam silenciosamente com todos os predicados da moça.
Quando chegaram para rever a amiga, encontraram-na triste, e não houve força que a fizesse dizer-lhes
a verdade sobre a separação que já era certa.
Dias depois, à 14 de novembro, foi assinado o decreto no qual o Sr. Batista tornava-se presidente
de uma das províncias do Norte. Os irmãos entenderam tudo e sofreram calado, mas juntos a mesma
dor. Era momentâneo o sofrimento, mas isso os uniu de certa forma. Mas no dia seguinte, 15 de
novembro de 1889, Deodoro da Fonseca toma as rédeas do país. Agora a monarquia tornava-se coisa
do passado. O Brasil, além de independente, tornava-se livre. Foi proclamada a república . Mudava o
regime e tudo que fora atestado pelo governo anterior tornava-se sem efeito.
Entre os gêmeos, na casa da família Santos, havia uma certa disparidade. Enquanto Paulo,
republicano, sorria com o triunfo dos militares, Pedro, conservador sofria calado a queda do II
Império. Entre os dois, sofria Natividade, mãe, mulher e discípula, crendo em tudo que ouvira do
lábios da cabocla: “coisas futuras”. Neste momento, Flora também estava contente, pois a província
que fora dada ao pai agora teria que esperar... um novo acordo, um novo governo....
Neste momento, é esclarecida ao leitor a presença de um certo Nóbrega, pedinte que foi
presenteado no começo do texto com uma boa gorjeta dada por Natividade depois de sair da cabocla.
O fato é que este Nóbrega enriqueceu e agora visita a cidade e os lugares por onde andara, no passado,
pedindo esmolas. Está sozinho e também vai se apaixonar por Flora.
Depois da decepção da família Batista, foram todos se hospedar na casa de Santos por alguns dias.
Em seguida, Cláudia pediu a Batista que fosse falar com Mal. Floriano, talvez conseguisse alguma
coisa. Batista obedece. Flora passa a sonhar com os gêmeos, mas na condição de um só, como se fosse
a única saída para ter os dois, já que não se decidia. Via os olhos de um no rosto do outro. O corpo de
um, a índole do outro. A dúvida aumentava. Flora por não conseguir escolher entre um e outro acaba
criando para si um terceira figura que englobaria as virtudes dos dois. A família Batista, depois de
acalmados os ânimos, volta para a casa em São Clemente. Natividade passa a simpatizar bastante com
Flora desde que a menina não atrapalhe o futuro brilhante que os filhos possam vir a ter. Enquanto
isso, entre Aires e Flora surge uma certa cumplicidade. Uma vez que o Conselheiro sabia da dúvida
cruel que atravessava o coração da jovem. Depois desse momento o Conselheiro Aires consegue
extrair um acordo entre os gêmeos: cada um iria se esforçar para buscar a felicidade mesmo que um
deles viesse a sofrer.
Cansada dos últimos acontecimentos, natividade resolve passar uns dias em Petrópolis, mas os
filhos, sem revelar o motivo da recusa, não aceitam viajar com a mãe. E mesmo que procurassem a
moça, cada um a seu tempo, não conseguiam fazer com que a mesma se resolvesse. Durante e esse
impasse, eis que surge um “terceiro “ pretendente e em seguida um quarto. O terceiro era o Gouveia,
um oficial de escritório que vira a moça uma vez e amou-a imediatamente. O quarto era o Nóbrega,
122
que para quem não lembra correspondia ao mendigo que recebera uma generosa esmola de Natividade
, agora, estava rico. Flora não deu esperança a nenhum deles.
O que há de importante nesse episódio é que no momento em que está à janela, Flora recebe em
seu rosto um pouco de chuva que vinha caindo grossa na cidade. Isto será o suficiente para que a
jovem adoeça. Flora fica de cama e não recebe nem mesmo os gêmeos que estranharam muito a
atitude. Mas a constipação da moça não era ainda declarada, por isso, não havia grandes preocupações;
apenas o conselheiro Aires percebeu as mudanças na jovem. Aires aconselha Flora a passar uns dias
com sua irmã D. Rita, uma solteirona solitária. Flora aceita e as duas dão-se muito bem. Os gêmeos
ficam sem noticias e Aires mantém-se presente. Um dia, Aires visita Flora e descobre que a jovem está
pintando, descobre um quadro mal terminado no qual duas cabeças esboçadas representariam os
gêmeos e a dúvida que ainda se arrastava no coração da moça.
Enquanto isso, Pedro e Paulo começaram a discutir mais ainda, mas não declararam um ao outro
que seria por causa de flora. A tensão é tanta que depois de anos dormindo no mesmo quarto, separamse. Na chácara da irmã do conselheiro a imagem dos gêmeos persegue a jovem Flora. Eles estão em
tudo e em todo lugar. Ela não sabe mais o que fazer. Nóbrega vai a casa de Flora e deixa bem claro a
sua intenção de casamento; a mãe se anima, mas a filha não. Nóbrega diz que Flora deve estar doente
para rejeitá-lo; seu palpite é certo. A constipação virou moléstia. Flora fica pior, convalesce por alguns
dias e morre, como uma flor cuja fragilidade sucumbe ao tempo ou à indecisão.
A morte de Flora coincide com o estado de sítio decretado na cidade em virtude das agitações
políticas ( proclamação da república ). O narrador deixa claro que o problema de Flora não foi amar,
mas não saber a quem amava. O cortejo fúnebre segue para o cemitério e lá, depois das despedidas de
todos, os gêmeos continuam ao pé da cova e prometem um ao outro e a si mesmos fazer uma trégua.
Apertam-se as mãos e até abraçam-se.
Um mês depois da morte de flora os irmãos tiveram estranhamente a mesma idéia, levar flores
para a cova da amada. Quando um chegou, o outro já estava saindo. Não se viram, mas intimamente
tiveram ciúmes do tempo que um teria passado a mais que o outro conversando com a defunta.
Voltava as velha rivalidade, que se tornaria maior ainda por conta da opção que fizeram ao trocar a
profissão pela política. O narrador faz alusão a Divina Comédia do italiano Dante Aliguieri, ao dizer
que Flora seria, na realidade, uma Beatriz para dois.
O tempo passa, o novo regime se instala e consolida, Pedro e Paulo são eleitos deputados. Tomam
posse das cadeiras com muita festa, mas não se cumprimentam. Aires e Natividade discutem sobre
coisas futuras... a presidência da república ... um dia... mas que infelizmente, não pode ser para dois.
Machado de Assis discute com o leitor sobre procedimentos utilizados na construção do texto quanto
ao final do romance ( metalinguagem ) e diz que vai procurar ser breve.
No penúltimo capítulo, assim batizado, Natividade morre, mas antes chama os filhos e faz com
que prometam que não vão mais brigar. Eles juram que serão bons irmãos, que serão amigos. E
procuram cumprir a promessa, mas os ideais políticos de cada um acabam levando os dois brilhantes
deputados pra lados opostos. Conversam sobre isso e concordam que não estão desobedecendo à mãe.
Juraram fraternidade, mas o juramento não incluía a política, ambiente no qual cada um tem direito às
suas próprias idéias. Passam a bater-se publicamente; os ânimos esquentam e ficam até sem se falar. O
presidente da câmara e os demais colegas observam a diferença. Dias depois, Aires, durante um
almoço com um amigo também deputado, ouve deste uma declaração espantada: “ - O senhor que se
dá com eles diga-me o que os fez mudar tanto. Quem sabe questões de inventário, a herança da mãe...
“
Aires diz que não mudaram nada, que eram os mesmos, e para evitar discussões, aceitou o ponto
de vista do colega. Mas, sabia, como o leitor também sabe que os gêmeos eram os mesmos desde o
útero.
123
Crítica
Este pode ser considerado o livro mais politizado de Machado de Assis, tanto que a própria
crítica da época estranhou. Para quem não sabe, Machado sempre foi criticado por não ter se engajado
em lutas mais sociais como por exemplo a questão da escravidão e a validade de um regime
monárquico em nosso país. Estas críticas tinham um certo fundamento quando relacionávamos o
homem, Machado de Assis, mestiço, quase negro sem escrever sobre a grande luta daquele que seria o
seu povo. O que ninguém atinava era que o homem era diferente do escritor. O homem tinha boas
relações, amigos influentes e um cargo público no Ministério da Fazenda, naturalmente não iria se
insurgir contras aqueles que o veneravam. No entanto, em Esaú e Jacó, a veia irônica e a critica
mordaz unem-se a uma história falsamente romântica, o amor indeciso de Flora, Pedro e Paulo, para
traçar um perfil social e político da sociedade carioca de sua época. Neste caso, se avaliarmos este
livro hoje, podemos defender Machado de Assis e dizer que ele se preocupava sim com as coisas de
seu tempo e com a situação política do seu país, e escreveu bastante sobre tudo isso; quem sabe até
sobre os negros ele tenha escrito, nós é que em nossa pacata ignorância ainda não temos capacidade
para decifrar seus enigmas. Vale lembrar ainda que em Esaú e Jacó a perspectiva romântica que nasce
do perfil de Flora dá lugar a um realismo sutil que começa com a descrição das personagens, dos
costumes da época até irmos as aspirações de cada um. A partir disso, Machado nos apresenta todo o
realismo de sua construção. Flora não é uma mulher do romantismo, mas um ótimo exemplo de
personagem realista porque não morre de amor, mas da incapacidade de entregar-se a este sentimento,
muito ao contrário dos verdadeiros românticos. Lembremos também do recurso intertextual de ilações
bíblicas, e a citação de grandes autores da literatura mundial como os gregos e os romanos, e ainda
Shakespeare, Goethe e Dante Aliguieri. Por último, é valiosa a observação sobre o papel
especialíssimo que representa o Conselheiro Aires, personagem machadiana que, de suas anotações,
organizará um novo texto o Memorial de Aires , texto de caráter biográfico no qual encontramos um
pouco da vida do autor. Pode-se dizer até que, em Esaú e Jacó, Aires representa não apenas uma
personagem secundária, mas a fala do próprio Machado de Assis.
25 - A Bagaceira – José Américo de Almeida
Autor e Obra
Dizem que definir José Américo de Almeida é uma das atividades mais complicadas para um
crítico literário porque não se sabe o que ele realmente era, apenas o que pretendia, falar sobre o
sertão, sobre sua terra na tentativa de fazer com que o leitor soubesse o que é o Brasil. Diante dessa
dificuldade, vejamos o que o próprio autor diz de si mesmo: “ Tenho três filhos e duas netas que são a
minha predileção. Tenho 1,70 metro e 74 quilos bem pesados. Prefiro andar de automóvel, mas
sempre volto para casa de bonde. Raramente faço visitas. Gosto muito de música, principalmente de
Chopin. Não fumo e no intervalos de meus trabalhos, leio romances, poesia e biografias. Só leio e
escrevo à luz solar, de preferência pela manhã, é mais saudável. Não escrevo cartas, pois não tenho
jeito para o estilo epistolar. Tenho mais saúde agora do que quando moço. Gosto das campanhas,
mas não propriamente da política partidária. Meu livro preferido é Crime e Castigo. Escrevi A
Bagaceira com 38 anos. Tenho muitos inimigos, todos feitos na vida pública, mas os amigos que tenho
superam esta dissaboria. Meus poetas modernos preferidos são: Carlos Drummond de Andrade,
Cecília Meireles e Murilo Mendes. Gosto de jardim e de cuidar dos meus netos. Ajudei minha mulher
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a criar meus filhos contando histórias para fazê-los dormir. Meus romancistas prediletos são: José
Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Amando Fontes. Desejo viver enquanto puder viver
lucidamente. E não espero pela morte, pois sei que um dia vem. “ José Américo de Almeida sempre
esteve envolvido com a cultura e com a arte de seu estado, a Paraíba e com o o Brasil. Muito admirado
na vida literária, procurou fazer o mesmo com a vida política. Participou ativamente dos movimentos
da década de 30 e 40 e quase chegou a presidente da república ( pergunte ao seu professor de História
). Foi ministro, senador e governador da Paraíba e na literatura, sua maior contribuição, seguramente, é
o romance A Bagaceira. É autor de uma novela Reflexões de uma Cabra e de vários romances além de
muitos ensaios e críticas. Romances: O Boqueirão; Coiteiros; Ocasos de Sangue; Eu e Eles. Crítica e
Ensaio: A Paraíba e seus Problemas; as Secas do Nordeste; Discursos de seu Tempo; Graça Aranha, o
Doutrinador; Memórias: O ano do Nego. Faleceu a 10 de março de 1980, com 93 anos.
Momento
José Américo de Almeida pode ser encontrado em alguns livros de crítica como um autor
pertencente à primeira fase do Modernismo brasileiro, pois esteve ao lado de grandes nomes de 22
como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. No entanto, a publicação de A
Bagaceira, em 1928, vai transformá-lo em referência para a geração vindoura, a Geração de 30, da
poesia social com Carlos Drummond de Andrade, e do texto de temática regionalista e nordestina com
Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas. A Bagaceira, para bons entendedores, passou a ser
considerado o marco inicial do romance regionalista. Desta forma, a melhor maneira de enquadrar
José Américo de Almeida e seu valiosíssimo romance é na Segunda Fase do Modernismo brasileiro,
ou seja, na Geração de 30.
Resumo
O romance começa com Dagoberto Marçau, dono do engenho Marzagão, observando um bando
de retirantes que atravessa suas terras por causa da seca, a grande seca de 1898. O engenho está em
crise, mas fica localizado numa região de brejo, menos seca que o sertão da Paraíba, por isso passou a
receber retirantes. Junto com Dagoberto encontramos Lúcio, filho único do fazendeiro, que está
aproveitando as férias da faculdade, pois faz Direito na capital.
Em meio a tantos retirantes que buscavam uma “colocação “na fazenda, estava a família de
Valentim Pereira, sertanejo valoroso, pai de Soledade e “padrinho” de Pirunga, um mestiço que lhe
ficara aos cuidados. O feitor da fazenda, Manuel Broca, dono de certa autoridade, não simpatizou com
Valentim, mas na horta em que Dagoberto, o patrão, botou os olhos em Soledade, imediatamente
mandou arranchar a miserável família. Valentim é o homem do sertão, rígido em seus valores e
orgulhoso como alguém que um dia já teve posses. Pirunga foi criado por Valentim, acompanha a
família desde a infância, foi criado junto com Soledade, e não se afasta da moça, primeiro por ordem
de Valentim, depois por vontade própria pois nutre uma paixão escondida pela moça. É na verdade um
tipo de guarda-costas, fiel a Valentim e capaz de morrer ou matar por Soledade.
Soledade é a mulher do sertão antes de desabrochar, de cor intrigantemente clara, virgem como a
natureza e maltratada pelas péssimas condições de vida às quais precisa se submeter. Por causa da seca
está magra, ossuda, descabelada e suja, mas depois que se instala na fazenda, dá um trato no visual e
deixa a peãozada babando.
Quando Lúcio fica sabendo que o pai acolheu retirantes na fazenda, coisa que nunca fez, vai
conhecer a família de Valentim. Quando Lúcio vê Soledade fica muito intrigado, primeiramente
porque a jovem é mesmo muito bonita; depois pelo fato de ela parecer muito com a mãe dele, já
falecida.
125
Noutro momento, Lúcio começa a observar melhor a vida na Bagaceira, a conduta dos homens do
brejo ( Xinane ) e dos homens do sertão ( Pirunga e Valentim ). Vê o atraso tomando conta do
engenho e pensa em um dia resolver aquele problema... Abate-se quando vê um retirante levando a
mãe doente nas costas e caem os dois, beijando, sem querer, a terra da promissão. Em seguida, o dia-adia do engenho é retratado e o narrador não deixa de valorizar as atitudes de Pirunga e Valentim como
se estivesse demonstrando a superioridade do sertanejo em relação ao homem do brejo.
Valentim, num dado momento, começa a contar a Lúcio e aos convivas que ali estão, a história
sobre a cicatriz que trazia no queixo, mas é interrompido pelo sacrifício de um animal enfurecido, a
mando do “major “. Dagoberto Marçau.
Lúcio, em sua intelectualidade, parece não compreender direito o que acontece ao seu redor, e
passa o tempo em suas leituras. Mas um dia, perto da cachoeira, encontra Soledade. Ela está saindo do
banho e Lúcio fica perturbado com a beleza expansiva da moça, exuberante como a própria terra.
Conversam, queixam-se da vida, paqueram, e Soledade diz a Lúcio que Dagoberto não é uma "boa
pessoa” principalmente porque deu a ela molho de “espia –caminho “uma florzinha com formato
indecente. Lúcio e Soledade passam a se encontrar cada vez mais, porém cercados de inocência ( um
pouco por parte de Soledade ) e timidez ( exagerada da parte de Lúcio ).
Outra noite, Valentim termina de contar a história da “cicatriz . Um fato relacionado com a
“macheza “ e a “honradez “ do sertanejo, num dia em que quase matou um homem que “desonrara”
uma jovem e não queria casar com a mesma. Valentim espancou o sacana e fez com que a moral e os
bons costumes fossem respeitados. No entanto, na confusão, ganhara aquela cicatriz por um chute que
levara. Na casa, todos prestavam atenção, principalmente Lúcio, que ficou apreensivo, entendendo a
história como um tipo de aviso.
A vida no Marzagão segue normal, até que o feitor Manuel Broca, pede ao patrão para que se faça
um “: samba “. Neste capítulo ( Moritutr et Ridet ) a cultura do homem brasileiro ( sertão ou brejo ) é
o principal enfoque, seja na dança, na linguagem, ou na atitude intrigante que viver sofrendo, na
miséria e ainda arranjar um momento para diversão . E o samba começa com a valorização da festa e
da própria dança pelo requebro sensual das morenas do engenho. Mas o delegado, que não vai muito
com a cara de Dagoberto, estraga a festa em, na confusão, começa um incêndio no qual Soledade
acaba se queimando. Pirunga consegue salvá-la para espanto de Lúcio.
Lúcio e Soledade continuam se encontrando e é num desses encontros que Lúcio mostra a foto de
sua mãe a Soledade. Ficam espantados com a semelhança. Pirunga interroga Lúcio, quer saber o
motivo daquele “grude “. Lúcio dá-lhe a mesma explicação: que ela se parece muito com a sua
falecida mãe.
No capítulo “Na Bagaceira “, o dia-a-dia do engenho, os afazeres, os trabalhadores, tudo é
explicitado e valorizado pelo narrador. Valentim vê a foto da esposa falecida de Dagoberto, percebe a
semelhança. Ao final, Pirunga impede o passeio de Lúcio e Soledade. Um dia, Soledade resolve
conhecer o povoado de Areia. Consegue a autorização do pai que a leva. Lá, descobre-se bonita e
valorizada pelos homens, por isso imagina que poderia ganhar muitas coisas com sua beleza... Lúcio a
traz de volta em seu cavalo. Pirunga, com ciúmes, faz com que o cavalo pare na chegada ao engenho e
manda que Soledade desça. Valentim dá razão a Pirunga e olha desconfiado para Lúcio.
O casal parece a cada dia mais apaixonado. Soledade em seu desabrochar impetuoso, e lúcio em
sua inocência vagarosa de uma timidez mais lenta ainda. Explicitando: Soledade crescia rápido, estava
“virando mulher “, ela percebia isso; todo mundo percebia, menos o Lúcio, que sói era esperto para os
seus livros. Mesmo assim, Pirunga, para garantir, estava sempre de tocaia, vigiando os dois.
Lúcio e Dagoberto conversam e falam principalmente de Soledade. O pai avisa ao filho que não
perca a cabeça por mulher: “Sertaneja quando é boa, é boa; mas quando desencabeça...” Chega a
compará-la com uma certa Carlota sertaneja bonita e brava que acabou virando lenda na Paraíba. Mas
Carlota era “o diabo “e Soledade “ um anjo de candura “, não dava para comparar, dizia Lúcio. Depois
disso, Lúcio vai ao encontro de Soledade; brincam e ela lhe oferece um beijo. Na indecisão dele ela
126
recua dizendo: “Brejeiro! Não nega que é brejeiro... “Como se o ato de ser brejeiro estivesse
relacionado à “moleza “de Lúcio. Se fosse “cabra-macho do sertão... “ Novamente, surge a análise da
vida da gente do engenho, uma gente acomodada, numa vida miserável sem fazer nada que pudesse
melhorar. Imagina que um dia mudará tudo, fará com que o homem do engenho passe a produzir mais
e tenha uma vida melhor.
Soledade começa a evitar Lúcio, explica que é porque os encontros com ele fazem com que a
estejam sempre vigiando. Diz que Dagoberto falou a Valentim que ia mandá-los embora se os dois
continuasse4m se encontrando “como a linha atrás da agulha “ Depois disso, Soledade solta uma
indireta para Lúcio: “E você nem alinhavar quer. “ Soledade se irrita e diz que está cansada do “velho,
do mocó e do carrapato “ ( Lúcio, Dagoberto e Pirunga ).
No capítulo seguinte, Lúcio é criticado ( por Soledade e pelo Narrador ) por sua falta de tino em
relação às coisas da vida e do amor.
SOLEDADE – “ Tudo quanto é bicho cria asa no inverno: é formiga, é cupim. Só a gente é
que não cria. ( ... ) Pra voar pra muito longe.
NARRADOR –
“ Lúcio virou um imbuá... com tantas pernas e a arrasar-se como uma
lesma ou viver enroscado. “
Em seguida, Lúcio tem o desejo e a chance de dar muuuuuuitos beijos em Soledade, de cobrir-lhe
de carinho, mas não arranja coragem para isso. Diz-lhe apenas que precisa voltar para a faculdade. Sai
roído de angústia e frustração, enquanto ela, escondendo o sentimento, faz pouco: “E eu que me
importo? “
Os dias passam, e depois da partida de Lúcio, Soledade parece mais bonita ainda, mas dotada de
uma beleza ag4ressiva, sensual, um “canteiro de tentações”. Valentim Pedreira passou a se preocupar
com a filha. Sentia que ela estava diferente, que alguma coisa estava acontecendo. Chamou Pirunga,
que não confirmou as suspeitas. Ficaram de observar mais. E um dia, quando Valentim quando
Valentim não agüentava mais o comportamento suspeito da filha, deu de cara com um baú cheio de
presentes, perfumes, lenços e jóias baratas que a filha tentava esconder. Soledade não pode enfrentar o
pai e revela sua “meia verdade “ diz a todos que foi o feito Manuel Broca quem lhe deu os presentes.
Valentim fica possesso. Para ele, nascido e acostumado com as regras do sertão, não havia outra
explicação: a filha fora seduzida . E o pior, estava gostando de ganhar os presentes,. Mas ele já sabia o
que fazer. Aliás, já passara por isso antes: a cicatriz, a história se repete.
Em seguida, numa narrativa um pouco confusa, Valentim mata o feitor Manuel Broca, é preso em
seguida pelos homens de Dagoberto Marçau, e quando está sendo encaminhado para a cadeia, pede a
Pirunga que cuide de Soledade.
O tempo passa, e enquanto Pirunga vigia Soledade, numa certa noite, tem a impressão de que
alguém quer entrar pela porta da cozinha. Core atrás e se assusta com o contato de uns braços peludos
e gelatinosos que o agarram no escuro. Seria uma visagem ou o amante de Soledade? Na confusão,
Soledade se queima com uma lamparina. Pirunga ajuda-a novamente.
Um belo dia, Lúcio volta para o engenho. Dagoberto o recebe de má vontade. Ao vê-lo, Soledade
mal levanta o rosto para cumprimentá-lo. Passa a fugir dele. Evita sua presença. Lúcio não entende. (
Como sempre! ) Lúcio fica chocado com a prisão de Valentim, pois ignora ainda o verdadeiro motivo
do crime. Lúcio observa também o desapego de Pirunga e Soledade, que também mal se falavam, era
tudo muito estranho.
Pensando em Soledade, Lúcio não conseguem sequer dormir direito. O sono do rapaz é
perturbado várias vezes pela imagem de soledade, a agressividade e a indiferença do reencontro.
Milonga, a mãe preta de lúcio procura consolá-lo, manda que esqueça , mas diz : “mulher é como
fruita; quando cai, apodrece... “ Lúcio fica mais abatido. Seu sofrimento de amor leva-o a escrever
127
pelas paredes pensamentos pessimistas “Nós compramos as mulheres perdidas e as mulheres honestas
nos compram “.
Num dia de mais coragem ( raridade ) Lúcio resolve falar seriamente com o pai. Encontra
Dagoberto na sala, próximo ao retrato da esposa e, como sempre de mau humor. Lúcio abre o jogo e
diz que vai ser o advogado de defesa de Valentim. O pai pergunta por quê. Diz que o filho quer sua
desgraça pois quando Valentim sair da cadeia vai matá-lo. Lúcio não entende as reações de Dagoberto
e comunica ao pai que vai fazer isso porque pretende casar com a filha de Valentim. Dagoberto fica
furioso, num descontrole sem tamanho. Diz que o filho está louco, que vai deserdá-lo por casar com
uma “mundiça “. Lúcio enfrenta o pai, e Dagoberto, falando abertamente, diz ao filho que ele não
pode casar com Soledade porque a moça já lhe pertence, é sua amante ( ( lhe e sua são para Dagoberto
). O pai tenta se justificar pedindo desculpas por ter ofendido a memória da falecida, mas diz que foi
inevitável, por causa da semelhança entre as duas.
Lúcio fica arrasado e vai embora. Pega uma faca e entra na casa de Soledade. Ela está no chão
bordando. Lúcio levanta a faca mas depois joga a arma para o terreiro. Em seguida, discute com
Soledade, chama-a de desgraçada. Ela revida dizendo que ele não tem o direito de insultá-la. Lúcio vai
embora e se despede dizendo “Até o dia do juízo final “.
Depois desse episódio, Pirunga vai à cadeia e promete a Valentim que sempre vai proteger
Soledade. Conta-lhe a verdade, que o verdadeiro culpado era o senhor de engenho não o feitor, o feitor
apenas levava os presentes. Valentim fica com muito ódio, mas pede a Pirunga que não mate o
desgraçado, fique apenas vigiando porque o prazer de matar Dagoberto, o homem que desonrou sua
filha, deve ser só dele no dia em que sair da prisão. Pirunga faz o juramento.
Meses depois, Dagoberto e Soledade, amancebados, viajam para o Bondó ( a coisa não estava boa
no brejo ). No Bondó ( sertão ) as chuvas fazem a alegria da natureza que antes era morta e agora
começa a reviver, é a festa da ressurreição. Pirunga via junto. Passam a morar lá, pois o engenho
Marzagão agora está de Fogo Morto. Dagoberto aprende a campear, fazer coisas do sertão, só não
domina os cavalos. Lúcio continua na cidade grande, distante de tudo.
Por várias vezes, Pirunga salva Dagoberto dos perigos do sertão, mas um dia, aproveitando a
disparada suicida de um cavalo, Pirunga deixa que Dagoberto seja jogado num precipício, morrendo
em seguida com a cabeça esfacelada. Pirunga traz o corpo do “major “repetindo a todo instante: “Eu
não matei! “Soledade ficava indiferente ao ver os restos mortais do amante. Alguns dias passam e
Soledade continua distante, mas uma noite, quando Pirunga dormia, ela vai até ele e tenta matá-lo
como vingança pela morte do amante. Estava grávida há sete meses. Pirunga escapa, revida.
Engalfinham-se como animais ( neonaturalismo ) e Pirunga esgana Soledade. Ele foge o mais rápido
que pode. O corpo da moça fica estendido no chão.
Depois de muito tempo fugindo, Pirunga se entrega a polícia como assassino de soledade, é
recolhido, fica preso junto com Valentim que ainda espera um advogado. O sertanejo conta toda a
história a Valentim e diz que está arrependido de tudo o que fez. Valentim o perdoa e diz que soledade
está melhor morta do que mal-falada.
Lúcio retorna ao Marzagão, vem reclamar a herança do pai. Coloca novamente o engenho para
funcionar , agora com maquinaria moderna. No entanto, parece ter perdido o encanto. Lúcio ( como
sempre ) não entende o que está acontecendo. Em seguida, procura Valentim e diz que vai tirá-lo da
cadeia. Chega o dia do julgamento e Lúcio , numa defesa brilhante, consegue absolver o sertanejo.
Tempos depois, sem nenhuma explicação por parte do narrador, Pirunga também já se encontra solto.
Lúcio casa com uma jovem também rica, filha de um usineiro e passam a tocar juntos o engenho
Marzagão. As melhorias são muitas, mas mesmo com o poder da maquinaria trazendo menos esforço
físico para os trabalhadores e um tratamento justo dado pelo novo dono do engenho, os trabalhadores
não parecem felizes, apenas alegres. E há diferença entre alegria e felicidade? Provavelmente.
Alguns anos passam e Lúcio parece contrariado. Vive razoavelmente bem, apesar dos problemas
no engenho. Um dia, passeando pela fazenda, encontra uma velha árvore. No tronco, escrito há anos,
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os restos de um amor abortado, apagado pelo tempo. EDADE e CIO são as letras que ainda restam de
tudo o que não viveu. Pensa em alguma coisa, mas guarda para si.
A vida continuava para Lúcio e para o novo engenho, mas quando o Marzagão parecia feliz o
povo parecia triste, sem as festas, os sambas e a miséria comum de antigamente. Xinane e Pirunga
continuavam trabalhando para ele, mas tudo era diferente. Alguma coisa faltava e Lúcio não sabia o
que era.
Anos depois, em 1915, numa das piores secas que o Brasil já atravessou, uma nova leva de
retirantes passa na frente do Marzagão. O Dr. Lúcio Marçau observa a chegada de uma mulher
puxando um menino pela mão. Ela entra e pergunta quem é o dono daquele lugar. Respondem-lhe que
é o Dr. Lúcio. A mulher pede comida para o menino, para ela não pede nada. Lúcio se aproxima e diz
que vá embora em seguida, pois não pode acolher retirantes. A mulher diz que não vai embora, porque
o menino está ali para receber o que é dele. Nesta hora, Pirunga chega e se espanta. “Credo em cruz! “
Reconhece Soledade que está com os cabelos embranquecidos e novamente açoitada pela seca.
Soledade revela que o menino é irmão de Lúcio, filho de Dagoberto. Lúcio, agindo como um bom
advogado, ( coisa rara hoje em dia ) leva o menino para peto de si, dá-lhe um beijo na testa e
apresenta-o à esposa. “Este é o meu irmão . E esta é minha prima, mãe do meu irmão “. Depois disso,
Lúcio afasta-se para pensar. Aparecem, imediatamente, alguns trabalhadores revoltados contra o
acolh9imento dos dois retirantes ( Soledade e o filho ). Lúcio, decepcionado ( com ele, com o amor,
com a vida, com o engenho com os trabalhadores etc. ) diz aos homens que eles são livres para ficar
ou partir e completa denotando frustração: “Eu criei o meu mundo; mas nem Deus pode fazer o
homem a sua imagem e semelhança. “
Crítica
O romance A Bagaceira foi publicado em 1928 sem muito entusiasmo pelo autor. Mas depois que
a cr´tica pôs os olhos sobre o que aquele ilustre paraibano havia escrito, principalmente um certo
Tristão de Athayde, não havia mais como negar o fulgor e a força de sua prosa. ― Este é um dos
maiores romances brasileiros. Não é apenas um grande livro nosso; é um grande livro humano ― .
Palavras de Athayde.
O romance surgiu num contexto histórico e cultural muito marcante pois nesta mesma época foi
lançado o maior livro do modernismo brasileiro: Macunaíma de Mário de Andrade. Por conta desses
pormenores e principalmente de seu conteúdo humano e inovador ( não esquecendo do sertanismo
alencarino ) A Bagaceira é um marco do romance de temática social voltada para o homem nordestino,
uma vez que sabemos que na Geração de 30, do romance regionalista, a maioria dos autores era
mesmo nordestina. A seca, o êxodo, a fome, a miséria humana passam a fazer parte da temática
regionalista ( Homem X Terra ), e A Bagaceira, dentro de suas bases temáticas, nos põe em contato
com esta realidade ( neorealismo ), e por meio de um discurso dos mais críticos de nossa literatura,
passamos a ver melhor nossas mazelas e precariedades atestando a frase interessantíssima de Graça
Aranha : “ Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: É não ter o que comer na terra de
Canaã .“
Nesse romance, devemos destacar a importância da linguagem, a maneira como o texto é narrado.
Notamos que não é mais a linguagem rebuscada dos autores oitocentistas, no entanto, dado o potencial
acadêmico de quem o fez, tornou-se difícil desvincular-se totalmente de uma linguagem culta,
normativa, mas, para o bem de toda a obra, impregnada de vocábulos bastante particulares da
linguagem sertaneja ou brejeira, uma vez que há mesmo esta oposição. Lembremos que na geração de
30 há apenas uma tentativa de reproduzir a fala do sertanejo, pois a reprodução exata da fala só
acontecerá em 45 com Guimarães Rosa em Sagarana e Grande Sertão: veredas. No romance, o que
mais vale destacar é a valorização do sertanejo ( Pirunga e Valentim ) em detrimento das péssimas
129
qualidades do brejeiro ( Xinane, Lúcio e Dagoberto) ; a perda fácil da inocência por parte de
Soledade; a honra e a macheza de Valentim e Pirunga representantes legítimos da raça e da cultura
sertaneja; os desmandos e a péssima conduta do senhor de engenho ( norteando talvez, o Coronelismo
de Jorge Amado ); e a inutilidade do conhecimento livresco, das coisas da academia ( no livro
representadas por Lúcio ) em oposição ao conhecimento promovido pela experiência, pela vida (
representados por Valentim e Dagoberto Marçau ). Por último, vale ressaltar a importância
comprovadíssima deste romance para a geração vindoura, uma vez que expressões como bagaceira,
fogo morto, bangüê etc. passarão a ser exploradas nos romances posteriores.
26 – Ana Terra – Érico Verissimo
Ana Terra - Érico Veríssimo
O título desse romance, que além de compor a obra O tempo e o vento, também foi
publicado em 1971, imediatamente o caracteriza como romance homônimo, aquele que leva
o nome do protagonista como Inocência, Iracema etc. A primeira idéia que se tem é a de que
compartilharemos das inquietações de uma personagem feminina, seus desejos, suas
pequenas alegrias e seus dissabores. Popularmente, por força do próprio nome, Ana é uma
mulher “indo e voltando”. Em, segundo momento, o título nos remete a uma pequena
metáfora sobre a própria família, pois a terra é o que mais importa dentro do contexto
riograndense em que se passa a história, comprovamos isso na postura de personagens como o
velho Maneco Terra, pai da jovem.
A Geração de 30 e um autor que fugiu à regra...
Iniciado, praticamente, com a publicação de A Bagaceira, esta geração tem como base as
temáticas sociais, pois assume uma postura de denúncia contra todos os males que assolam a
sociedade ( seca, fome, miséria, relações de trabalho injustas, coronelismo, êxodo rural,
prostituição, delinqüência etc. ) seja no sertão ou na cidade. É retomada uma vertente do
Romantismo, o sertanismo, que se transforma em Regionalismo, mas sem
sentimentalidades ou idealização. As obras desse período, por conta de sua veracidade e da
apresentação de denúncias e crítica social, ganham um caráter neo-realista, postura que será
levada ao extremo pelos pós-modernistas.
O maior nome da prosa regionalista é Graciliano Ramos com os textos Vidas Secas e
São Bernardo. Em segundo lugar, temos o nome de José Lins do Rego com o Ciclo da canade-açúcar de onde se destacam os romances Menino de Engenho e Fogo Morto. Outros
autores: Jorge Amado ( Cacau ), Rachel de Queiroz ( O Quinze ), Ciro dos Anjos ( A menina
do sobrado ) e Érico Veríssimo ( O tempo e o vento ).
Quanto a ser um regionalista, o próprio Érico Veríssimo já se defendia: “ Eu precisava
situar minhas histórias em algum lugar... não me sinto um regionalista”. De fato, se tivermos
de enquadrá-lo como um autor do Regionalismo de 30, precisaremos fazer isso com a
130
máxima consciência de que o autor não seguia os mesmos postulados de Jorge Amado,
Rachel de Queiroz ou Graciliano Ramos.
Autor e obra
Escritor modernista da segunda fase, Érico Veríssimo nasceu em Cruz Alta, em 17 de
dezembro de 1905, vinha de uma família tradicional no Rio Grande do Sul, mas que declinava
e se arruinava financeiramente. Assim, o autor exerceu várias profissões em sua vida como
as de caixeiro, bancário e dono de farmácia, não obtendo êxito em nenhuma delas. Saiu do
interior do Rio Grande do Sul, após a separação dos pais, e foi para Porto Alegre, onde se
tornou jornalista e secretário da revista O Globo.
Trabalhou na Livraria do Globo, tornando-se grande amigo de Henrique Bertaso, filho do
dono, de quem escreveu a biografia. Veríssimo publicava pequenos textos no Correio do
Povo, traduzia textos e trabalhava durante a semana, deixando seus próprios textos para
escrever no final de semana. Seu primeiro livro foi Fantoches (1932), um livro de contos.
Seu primeiro romance foi Clarissa (1933), e até a publicação de Olhai os Lírios do Campo,
seu quinto romance, Veríssimo não tinha popularidade. Fortemente antifascista, assinou um
manifesto em 1935 contra o fascismo e isso lhe rendeu algumas acusações de comunista, o
que de fato, não era. Sufocado pelo Estado Novo, aceitou, em 1943, um cargo como professor
universitário nos EUA na Universidade de Berkley, na Califórnia. Lá, juntou matéria para o
relato de viagem Gato preto em campo de neve (1941). Viajou muito, especialmente quando
nos anos 50 teve um cargo na União Pan-Americana. Teve vários enfartes e um lhe foi fatal
em 1975. Não chegou a completar o segundo volume de sua autobiografia, Solo de Clarineta,
que seria uma trilogia. Sua obra é divida comumente em três fases. Primeira ( romances
urbanos ) : Clarissa (1933), Música ao longe, Caminhos Cruzados, Um lugar ao Sol, Olhai
os lírios do campo, Saga e O resto é silêncio. Segunda ( romances históricos ): O Tempo e O
Vento (a mais famosa), dividido em três partes: O Continente(49), O Retrato(51) e O
Arquipélago(61). Terceira (romances de linha social e política ): O Senhor embaixador, O
prisioneiro e Incidente em Antares (1971). Escreveu também livros infantis como A vida de
Joana D’arc; Os três porquinhos pobres; As aventuras do avião vermelho; As aventuras de
Tibicuera; A vida do elefante Basílio; Gente e bichos; Rosa Maria no castelo encantado
dentre outros. Escreveu sobre suas viagens: A volta do gato preto; México, Israel em abril.
Fez também biografias: Solo de clarineta ( autobiografia) e Um certo Henrique Bertaso, além
de um livro crítico: Breve história da Literatura Brasileira (1944).
O Tempo e o Vento
O Tempo e O Vento é a maior obra do escritor Érico Veríssimo e conta a história da
família Terra Cambará durante dois séculos, começando nas Missões (jesuitismo) e
seguindo pelo século XX (Getúlio Vargas). Sob o ponto de vista dessa família passa a própria
história do Rio Grande do Sul e o drama de seu povo, na cidade fictícia de Santa Fé,
simulacro de Cruz Alta, entre os anos de 1745 e 1945.
131
Divisão
1. O Continente
Intercalada pela história da estância ao sobrado, onde morre Florêncio Terra e a filha
recém-nascida de Licurgo, durante uma revolta em 1895, onde aparecem também os jovens
Rodrigo e Toríbio Terra Cambará. Conta-se 150 anos da história do Rio Grande do Sul até
aquele ponto através da vida da família Terra Cambará.
A Fonte é a primeira parte, assim chamada porque o que se segue é a história do
personagem que representa a origem de toda a família. É a história do mameluco Pedro
Missioneiro, que nasceu em 1745, morou nos Sete Povos das Missões e adquiriu de um padre
(seu padrinho, que o batizou com o nome de um homem que um dia quis matar pela amante
antes de se tornar padre) uma adaga que passa pela família. Pedro tinha visões que se
realizavam, dizia ser filho da Virgem Maria e sai da Missão três meses após a morte de Sepé
Tiaraju, figura lendária do Rio Grande.
Ana Terra é a jovem filha de Maneco Terra que ajuda Pedro Missioneiro a se curar após
cair ferido, já homem, em seu rancho. Ana Terra se apaixona por Pedro e dele engravida,
passando assim a ser desprezada pelo pai e os irmãos, que matam Pedro. Quando o rancho é
atacado, seu pai, seu irmão (o outro se mudara e abrira uma venda) e dois escravos são mortos
e ela é estuprada, mas sua cunhada e as crianças se salvam disto tudo escondidos. Após
enterrar os cadáveres, ela segue para as terras do Coronel Amaral para ajudar na fundação de
um povoado chamado Santa Fé. Lá se torna a parteira. Pedro cresce e fica noivo de Arminda
Melo , mas é recrutado para a guerra. Nascem Juvenal e Bibiana Terra, filhos de Pedro. Na
segunda vez que vai “pelear” Pedro diz que não sabe se volta. Ana Terra diz que ele voltará e
que ela cuidará de tudo até sua volta.
Um certo Capitão Rodrigo conta a história de Rodrigo Cambará, um anti-herói que
chega ao povoado de Santa Fé e se apaixona por Bibiana, neta de Ana Terra e filha de seu
único filho Pedro. Bibiana era disputada pelo jovem Bento Amaral, o que leva Rodrigo e ele
a duelarem de arma branca. Rodrigo mais tarde se casa com Bibiana, também apaixonada,
apesar de contrariada pelo pai Pedro Terra. Rodrigo abre um negócio com Juvenal Terra,
irmão de Bibiana, e começa a se degenerar, traindo Bibiana, bebendo e jogando. Rodrigo vai
então para a Guerra dos Farrapos e, ainda durante a guerra, volta para Santa Fé para atacar a
residência dos Amaral. Ele ama Bibiana mais uma vez e promete voltar, mas cai com um tiro
no peito durante um ataque.
A teiniaguá conta sobre Luzia, Florêncio e Bolívar. Florêncio é o filho de Juvenal e
melhor amigo de Bolívar durante a infância. Luzia é a neta de um agiota que se estabelece em
Santa Fé. Doente mental, Luzia é sádica, como a teiniaguá, uma lenda gaúcha que conta de
uma princesa moura transformada em cobra com cabeça de diamante que gosta de ver outros
sofrerem, mas sua beleza atrai todos os homens, incluindo Florêncio e Bolívar. Luzia se sente
presa a Santa Fé. O doutor finalmente fala com Bolívar e este revela que tudo que queria era
fugir para uma guerra. Como eles estão de quarentena no Sobrado, obra de vingança do
Coronel Bento Amaral por ser Bolívar filho do homem que lhe talhou o rosto. Bolívar sai
atirando do Sobrado contra os homens que lhe prendiam humilhantemente em casa e cai
morto, enviuvando Luzia e deixando órfão de pai seu filho Licurgo.
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A Guerra conta a história dos anos finais de Luzia e sua disputa com Bibiana pelo amor
de Licurgo enquanto este cresce. Luzia está na época com um tumor no estômago, e a
preocupação principal de Bibiana é permanecer no Sobrado. Luzia, ao final, perde a guerra
não declarada, pois o que queria era um filho cosmopolita, e Licurgo continua em Santa Fé.
Ismália conta a história de Licurgo já mais velho trabalhando em Santa Fé com seu
melhor amigo, o jornalista Toríbio, pela proclamação da República, tudo enquanto envolvido
com o casamento com a prima Alice, filha de Florêncio Terra e a amásia, Ismália uma simples
china (palavra usada até hoje em partes do Rio Grande do Sul que designa uma "mulher da
vida"). A luta pela República enfim tem sucesso e a rivalidade dos Terra Cambará com os
Amaral continua com Alvarino e Licurgo, como antes fora com Bento e Rodrigo.
2. O Retrato
Dividido em quatro partes, conta a história da família Terra Cambará até 1945, completando junto
com O Arquipélago mais 50 anos da história do RS. Rosa-dos-ventos conta da chegada de Rodrigo
Cambará do RJ logo após a deposição de Getúlio Vargas em 1945. Divide-se em: Rosa dos ventos;
Chantecler; A sombra do anjo e Uma vela para o Negrinho.
3. O Arquipélago
O Arquipélago continua com a história da família Terra Cambará a partir do Dr. Rodrigo.
Entrelaçada pelas várias partes de Reunião de Família, a história da família se reunindo após
a queda de Vargas, com Rodrigo à beira da morte, em 1945. As personagens centrais são
Rodrigo e Toríbio. Divide-se em: Caderno de Pauta Simples; O deputado ; Lenço
encarnado, que conta sobre a revolução de 23 e a participação dos Cambarás. Um certo
Major Toríbio; O cavalo e o obelisco, a história da Revolução de 1930; Noite de Ano-Bom
mostra um único dia: 31/12/1937. Do diário de Sílvia e Encruzilhada, a última parte, um
título que define bem a situação em que a família e o país se encontram naquele final de1945.
Análise
Acontecendo entre 1777 e 1811, essa parte de O Continente nos fala sobre Ana
Terra, uma moça que morava com sua família em um sítio muito longe da civilização e que
levava uma vida sofrida. A única coisa que Ana e sua família faziam era trabalhar. Com
verbos basicamente no passado, o primeiro capítulo define um tipo de flash back, uma
tentativa de Ana Terra de lembrar algo que lhe acontecera e lhe marcara a vida. Assim, o
narrador, em discurso indireto livre, participa ao leitor o pensamento místico de Ana Terra.
“Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando”.
Ana Terra e sua família vieram de São Paulo, bem antes de 1777, para se estabelecerem
no Continente, no Rio Grande, onde diziam, principalmente os Bandeirantes, entre eles um
dos avós da moça, que aquele lugar um dia prosperaria, e que havia terra para todo aquele que
ali quisesse trabalhar. O pai, Maneco Terra, desfez-se de tudo que tinha e mandou-se com a
família para o Sul. Por isso, Ana tinha saudades de São Paulo. Sonhava em voltar para lá e,
desde mocinha, no momento estava com uns vinte e cinco anos, tudo o que mais queria era “ir
embora daqueles cafundós”, onde levava uma vida de atraso, sem relógio, sem calendário,
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sem espelhos, sem música, sem festa, sem vaidades, sem nada, pois tudo o que se fazia era
trabalhar, trabalhar e trabalhar. O pior era o risco iminente da invasão dos violentos
salteadores castelhanos, com quem o Rio Grande vivia sempre em guerra. Era um tipo de
medo que não atacava apenas a ela, mas também a sua mãe, D. Henriqueta:
“ Aquilo não era vida! Viviam com o coração na mão. Os homens do Continente não faziam
outra coisa senão lidar com o perigo. Tinha saudades de Sorocaba, de sua casa, de seu povo.
Lá pelo menos não vivia com o pavor na alma.”p.13
Sob as ordens severas do pai Maneco Terra viviam D. Henriqueta ( uma verdadeira
“escrava” para o marido e os filhos); Ana Terra ( detestando tudo aquilo e principalmente a
tirania do pai ) Antônio e Horácio, os irmãos de Ana, que eram simplesmente a sombra do
pai, a quem obedeciam cegamente. Houve um irmão menor, Lucinho, que morreu logo que
chegaram. O velho costumava dizer: “Terra tem só uma palavra”.
Um dia, indo buscar água na sanga, um riacho ali próximo, Ana Terra teve a impressão
de que não estava sozinha. A uns cinco metros, estirado na beira d‟água, ela viu um homem.
Largou tudo e saiu correndo para casa na intenção de avisar ao pai e aos irmãos. Minutos
depois, os homens entravam em casa carregando o estranho.
“Tinha ele uma cara moça e trigueira de maçãs muito salientes. Era uma face lisa, sem um fio
de barba e dum bonito que chamava atenção por não ser comum ( ... ) A tez do desconhecido
era quase tão acobreada como a dos índios, mas suas feições não diferiam muito das de
Antônio e Horácio”. p. 15
Estavam diante de Pedro Missioneiro, a personagem que tem sua origem contada em A
fonte ( Primeira parte de O Continente ). Era filho de mãe índia e pai branco. Havia crescido
nas Missões, sob a guarda do cacique e do padre Alonso. Aprendeu a ler, aprendeu latim e se
iniciou em algumas artes como a música, a poesia e a contação de história. Quando melhorou
dos ferimentos Pedro contou um pouco de sua história. Maneco Terra e os filhos não
acreditaram muito, principalmente que aquele índio sabia ler e que fora tenente de um
exército outrora poderoso, o exército de Rafael Pinto Bandeira. Na cabeça de todos, assim
que ele melhorasse, deveria tomar o seu rumo.
Mas Ana, inexplicavelmente, não desejava a sua partida. Contraditoriamente sentia pelo
mestiço um tipo de repulsa, uma raiva estranha. Maneco Terra, mesmo não gostando de
Pedro, sabia que o trabalho na estância era árduo e que um homem a mais seria de muita
valia. No entanto, não podia confiar em índios, “são traiçoeiros”, dizia. Pedro se recupera
rapidamente e, demonstrado ser trabalhador e honesto, além de ótimo domador de cavalos,
acaba permanecendo na fazenda como uma espécie de agregado. Surpreende a todos com
suas habilidades campeiras, com seu repertório de histórias e lendas e com sua capacidade de
tocar flauta. Isso realmente os surpreendeu, pois a única música que havia naquela casa era
quando alguém assobiava. Na primeira vez que Pedro tocou sua flautinha improvisada Ana
foi tomada de grande emoção:
134
"Sentiu então uma tristeza enorme, um desejo amolecido de chorar. Ninguém ali na estância
tocava nenhum instrumento. Ana não se lembrava de jamais ter ouvido música naquela casa."
A chegada de Pedro Missioneiro desencadeou em Ana Terra sentimentos que de certa
forma ela já experimentava, sozinha... ( pense o que quiser ) Mas era o homem mais próximo
além de seu pai e seus irmãos. O desejo aumentava por sua condição de macho, o torso nu, o
suor escorrendo no corpo e seu cheiro nas roupas que ela lavava, completamente diferente do
cheiro do pai e dos irmãos. Ana, quando o via, sentia uma coisa que não podia explicar: um
mal-estar sem nome, mistura de acanhamento, nojo e fascinação. A solidão de Ana Terra e o
desejo que atormentava seu corpo só aumentavam a paixão incontrolável pelo índio. (Nessa
hora, o instinto de Ana, aflorado pelo cheiro de Pedro, revela um traço de Naturalismo).
Apesar da idade, inocentemente, Ana caminhava em direção ao desejo que Pedro lhe
incutia em cada gesto,em cada olhar. Na boca convidativa ao toque da flauta, no trabalho com
os irmãos... e no jeito de responder a tudo “Mui lindo”. Seria difícil resistir, ainda mais com o
índio morando ali, bem perto, em uma cabana no caminho do riacho. Entregar-se àquele
desconhecido foi algo tão natural como o perpassar do vento e o suceder das estações
naqueles descampados. A verdade era que quisesse ou não, agindo a favor ou contra a lei de
seu pai, seria daquele homem. “E ali, no calor do meio-dia, ao som daquela música, voltavalhe como nunca o desejo de homem. Pensava nas cadelas e tinha nojo de si mesma."
No capítulo 10, denotando um verão seco e cruel, quando o áspero vento norte soprava
quase que por obrigação e o calor tomava conta de tudo, Ana Terra não conseguia dormir
direito. A noite já havia sido quente e naquela hora, depois do almoço, à hora da sesta, sentiu
que algo a sufocava. Não era apenas o calor, mas algo que se insinuava dizendo que algo
faltava em seu corpo. Começou a descer a encosta que levava à sanga. Deitou-se na beira do
riacho, puxou a saia para cima dos joelhos, mergulhou as pernas na água e fechou os olhos (
Mui lindo!). De repente, um barulho:
“ Pedro estava tão perto que ela sentia a sua presença na forma dum vento e dum bafo quente.
Sentiu quando o corpo do índio desceu sobre o dela, soltou um gemido (Ai!) quando a mão
dele lhe pousou num dos seios, e teve um arrepio quando essa mão lhe escorregou pelo
ventre, entrou-lhe por debaixo da saia e subiu-lhe pelas coxas como uma grande aranha
caranguejeira”. p. 42
Os dias que se seguiram foram de vergonha, constrangimento e medo. Tinha vergonha de
ter cedido tão fácil ao próprio desejo e tinha medo por saber que o pai jamais permitiria, nem
mesmo pensaria, em ter Pedro Missioneiro na família. Para Maneco Terra, Pedro seria um
índio, apenas um índio “traiçoeiro” em quem depositara a confiança. Sentir-se-ia traído,
ultrajado em sua honra através da filha. E “honra se lava com sangue!”. A narrativa trata
então da desdita de um estranho que chega a um lugar distante, e vive um amor que lhe
custará a vida.
O tempo passava e ao verão sucedeu o outono. Ana pensava em outra coisa para não
pensar em Pedro, em querer estar com ele de novo. Sua mente ia para outro lugar, mas seu
corpo parecia procurá-lo. As coisas não iam bem. E poderiam ficar piores.
135
Um dia, ajudando a mãe na cozinha, Ana sentiu uma tontura... estava grávida! Pedro
estava em viagem com Horácio. Quando voltasse conversariam. E Pedro chegou. Ana contou
que estava grávida e que ia ter um filho. Estava desesperada e esperava ofegante a resposta
que poderia mudar suas vidas. Em sua calma peculiar, tudo que ele disse foi: “Mui lindo!”
Ana começou a chorar. Pedro enlaçou-a nos braços e suas lágrimas rolaram no peito dele.
Pedro alisou-lhe os cabelos e assim ficaram por algum tempo. ( Mui lindo!) Em seguida ele
disse com firmeza: “Rosa mística”, invocando o nome de Nossa Senhora. Ana disse que
poderiam fugir dali para qualquer outro lugar. Ele apenas repetia:
“Demasiado tarde”, pois sonhara com sua própria morte. Sonhara que dois homens
enterravam seu corpo em um lugar estranho. “Vi quando dois hombres enterraram mi cuerpo
cerca de um arbol. Demasiado tarde” p. 44
Chegando perto de casa, Ana encontrou a mãe, D. Henriqueta, e não podendo mais omitir
a verdade contou-lhe tudo. A mãe ficou horrorizada. O pior de tudo foi que o pai, Maneco
Terra, também acabou ouvindo a história e, no mesmo instante, chamou Antônio e Horácio e
disse-lhes o que fazer. Os irmãos encilharam os cavalos e o pai ainda lhes disse:”Bem longe
daqui”. Mais tarde, D. Henriqueta encontrou o marido com a cabeça metida nos braços. Era a
primeira vez que via o marido chorar.
Os irmãos chegaram com o clarear do dia. Vieram calados e dali por diante quase nunca
falavam com Ana. Se falavam não a olhavam nos olhos. Um silêncio mortal tomou de conta
de todos. Ana sabia que sua vida naquela casa, dali por diante, seria um inferno. De um
instante para outro, tornou-se invisível aos olhos do pai, transfigurando-se para eles numa
entidade pecadora. Morava na casa, mas estava, na prática, expulsa da família.
Voluntariamente, procurou fazer-se pequena, diminuiu-se para ver diminuída também a sua
dor. Não havia bem uma culpa, mas um erro mais aceito que compreendido.
Nunca mais poderia haver paz naquela casa. Nunca mais olhariam uns nos olhos dos
outros. Chegou mesmo a pegar o punhal, lembrança de Pedro Missioneiro, para resolver
aquilo tudo. Mas não conseguiria meter o punhal em sua carne e muito menos na barriga,
onde crescia seu filho. Olhando para a barriga, sentiu uma certa alegria. Pedro estava vivo.
Depois sofreu. O filho seria como o avô e os tios. Um dia talvez se voltasse contra ela.
Vieram outros dias e noites e nunca mais o nome de Pedro foi pronunciado naquela casa. (
Era assim quando alguém morria ). O inverno chegou trazendo o minuano ( vento forte ) que
cortava o ar como uma navalha. Para Maneco Terra a filha estava morta e enterrada.
Por esse tempo, Horácio, um dos irmãos, depois de uma viagem a Rio Pardo, manifestou
o desejo de casar, de ir embora e se estabelecer noutro lugar. O pai disse que depois tratariam
daquele assunto. Mais de um ano se passou. Naquela mesma noite aconteceria o nascimento
do filho de Ana Terra. Quando os homens ouviram os gritos da rapariga, encilharam os
cavalos, saíram, e só voltaram no dia seguinte. Incertamente, era o ano de 1779.
Os anos chegavam e se iam. O tempo era constante como o vento. E era o trabalho que
fazia Ana esquecer o tempo. No inverno, a vida era pior. As doenças eram curadas com chá
de ervas e cobertores. A criança gemia e ela, sem saber direito o que era, com a ajuda apenas
da mãe, cantava baixinho para a criança dormir com medo de acordar os homens da casa.
136
O tempo continuava a sua caminhada. Em 1781, Horácio, contra a vontade do pai, pegou
suas coisas e foi para o Rio Pardo casar com a moça de seu interesse. Lá colocou uma venda,
virou tanoeiro ( trabalhava com pipas e tanques na venda de líquidos ) Antônio casou com
Eulália, filha de um colono açoriano( português) dos arredores. Em 85, uma nuvem de
gafanhotos desceu sobre a plantação. Em 86, uma peste atacou o pouco gado e um raio matou
um dos escravos comprados recentemente pelo velho. No final de 86, nasceu Rosa, filha de
Eulália. Ana, na verdade, perdia a conta dos dias. Mas lembrava da tarde em que D.
Henriqueta fora-se deitar com uma dor aguda do lado direito. Quando Antônio encilhou o
cavalo para ir pedir ajuda, era tarde demais:
“ Ana não chorou. Seus olhos estavam secos e ela estava até alegre, porque sabia que a mãe
finalmente tinha deixado de ser escrava. (...) não teria mais que cozinhar, ficar horas e horas
pedalando na roca... “ p. 56
Ana também não sentia pena do pai. “Por que havia de ser fingida? Não sentia. Agora ele
ia ver o quanto valia a mulher que Deus lhe dera.” Enterraram a velha perto de Lucinho, o
irmão mais novo, no alto da coxilha. Mas durante a noite, incrivelmente, Pedrinho e Ana
escutavam a roca trabalhando. Ana não queria assustar o filho, mas admitia para si que era
mesmo a mãe que, mesmo depois de morta, voltava para trabalhar, trabalhar e trabalhar. (
Relacione com as coisas fantásticas do romance A Casa, pois quanto a isso podemos dizer
até que há uma forte relação entre Ana Terra e a Tia Alma, ambas pela estreita relação com
o vento) .
Em 1789, Maneco Terra conseguiu realizar um grande sonho. Desde o dia que chegara,
tinha o desejo de plantar trigo. Muitos diziam que não daria certo. Na época ele não tinha
mesmo recursos e por isso resolveu esperar. Mas, naquele ano plantou. Pela primeira vez, em
muitos anos, Ana o viu sorrir. Tempos depois de ter sido a terra preparada e semeada, a
entrada de Pedrinho, a quem os tios e o avô desprezavam tanto quanto à mãe, foi um
alvoroço. O menino veio quase engasgado gritando: O trigo está aparecendo! “ As lágrimas
brotaram de seus olhos e sua emoção já indicava o carinho que tinha pela terra, algo herdado
do avô, que percebeu, daquele momento em diante, que tinha mesmo um neto. Depois disso,
Ana chegou a ver, várias vezes, Maneco e Pedrinho conversando animadamente no trigal
como dois bons amigos. Ela também sorriu. Esse parece ser um dos únicos momentos de
alegria do livro.
Mas coisas ruins sempre vêm com o vento. Antônio entrou correndo em casa dizendo
que os castelhanos estavam chegando. O primeiro pensamento de Ana foi para o filho. Onde
andaria Pedrinho? O menino chegou. Maneco ordenou que as mulheres corressem para o
mato. Ana deu as ordens a Eulália e Pedrinho, mas ficou junto do pai e dos irmãos dizendo
que os castelhanos eram muito espertos, pois veriam as roupas de mulher em casa e não
descansariam enquanto não achassem todos, podendo até matá-los. Disse que ficaria. Os
cavalos se aproximaram. Antônio saiu para recebê-los enquanto o pai, os escravos e Ana,
armados, ficavam à espreita nas janelas. Ouviu-se um tiro lá fora e os homens praguejando em
espanhol ( Perro súcio! = Cachorro imundo!). Maneco saiu e também foi alvejado com um
tiro certeiro.
137
Os homens entraram na casa com cavalo e tudo e encontraram Ana encolhida em um dos
cantos. Um deles chamou os outros. “Mira que guapa!”. Sentiu que mãos muito fortes
agarravam e suspendiam seu corpo. Eram uns cinco homens, cercavam-na e diziam pilhérias
em espanhol. Foi jogada ao chão, enquanto mãos lhe arrancavam a roupa. Pegavam em seus
seios e coxas. Ela tentava resistir, mas era inútil. O suor e o mau cheiro daqueles homens a
repugnava. Ana começou a passar de braço em braço, de homem em homem, de boca em
boca.
“ Ela soltou um grito, fez um esforço para se erguer, mas não conseguiu. O suor do rosto do
homem pingava no de Ana, que lhe cuspia nas faces,procurando ao mesmo tempo mordê-lo. (
Por que Deus não me mata?) veio outro homem. E outro. E outro. Ana já não resistia mais.
Tinha a impressão de que lhe metiam adagas no ventre. Por fim, perdeu os sentidos.”p. 65
Quando Ana voltou a si, tudo o que via era a imagem da destruição. Na verdade, uma
desgraça passara ao seu redor. A casa estava destroçada, ao seu lado um escravo
provavelmente morto, um pouco mais à frente o velho Maneco Terra caído com um tiro na
testa; Antônio emborcado em uma poça de sangue e outro escravo com a cabeça decepada.
Saiu dali como uma louca. Precisava chegar ao esconderijo onde estavam Pedrinho, Eulália e
a criança. No meio do caminho, pulou em um poço e lavou-se pensando também em se matar
para esquecer aquilo tudo. Chamou pelo filho e, pouco depois, ele apareceu. Contou aos
sobreviventes o que houve e decidiu corajosamente que ainda dormiriam ali, mas assim que
pudessem iriam embora. Enterraram os corpos e caíram exaustos. Ana cavou embaixo das
camas, lugar onde o pai enterrava os recursos da família, e pegou o dinheiro que lá havia.
Preparou-se para uma jornada que ainda não tinha data, mas que logo começaria. E ela
renasceria como no mito grego da Fênix.
Dois dias depois, aproximou-se daquela estância miserável uma carreta. Marciano
Bezerra, um velho tropeiro, passava ali com a família em direção às terras do Coronel
Ricardo Amaral, homem de muitas posses que, um pouco além da serra, queria fundar um
povoado. Ana pediu para ir com eles. O velho aceitou e começaram a retirada. Horas depois,
Ana já não via direito o que ficava para trás. O que não lhe saia da vista e da memória eram as
seis cruzes que ali ficavam. Na viagem morre a filha de Marciano.
Depois de cruzarem o rio Jucuí, chegaram à estância de Santa Fé, onde foram bem
recebidos até que o dono aparecesse em pessoa dando-lhes permissão para morar ali. Naquele
mesmo dia, Ana, Pedro, Eulália e alguns vizinhos começaram a construir um rancho de taipa
coberto de capim.
Dias depois estavam na casa nova. Dormiam todos no chão, em esteiras de palha. O único
móvel da casa era a velha roca de D. Henriqueta. Ana também conservava junto de si a velha
tesoura da mãe dizendo: “Um dia inda ela vai ter a sua serventia”.E assim foi, pois, desde a
sua chegada, quando uma mulher ali perto começou a sentir as dores do parto, Ana passou a
utilizar a tesoura, ganhou fama de ter a mão boa, e continuou trazendo à luz novos viventes
para o povoado que principiava. Durante muito tempo fez aquilo: “Enrolava-se no xale,
amarrava um lenço na cabeça, apanhava a velha tesoura e saia. “p.83 (Devemos observar
nessa hora que Ana, depois de muito contato com a Morte, agora lidava com a vida,pois,
138
graças à tesoura da mãe, trazia à luz os novos viventes do povoado, uma metáfora sobre a
Vida)..
Muitos anos se passaram e Ana via Pedrinho crescendo. Já era um homem feito. Ela, de
sua cadeira de balanço, tomando chimarrão ( traço cultural e regional ) , mostrava as
crianças que passavam e dizia que estavam ali por intermédio de suas mãos. Olhava o filho e
tinha a certeza de que nele havia duas pessoas: o velho Maneco Terra ( Pedrinho também era
calado como o avô ) e seu amor Missioneiro, pois, com o punhal herdado do pai, o menino
fazia coisas, desenhava tudo que via.
A calmaria teve fim quando mais uma guerra teve início. Ana tentou impedir o
alistamento de Pedrinho, mas o velho Amaral disse que era obrigatório e que todos os homens
iriam guerrear. Pedrinho foi para a guerra e Ana ficou esperando. Com ela ficou esperando
Arminda, a noiva de Pedrinho, com quem o jovem sonhava casar. Ana Terra, Rosa, Eulália e
Arminda ficaram observando os homens que se afastavam para mais uma guerra insana sem a
certeza de voltar. ( lembre do romance A casa das sete mulheres ). Ana percebeu que também
nessa hora ventava.
E Ana ficou esperando até que um dia chegaram as notícias. Mais da metade dos homens
morreram, mas ao menos venceram a guerra. A grande baixa foi o Coronel Amaral, morto ao
final da batalha. Transformou-se em um herói deixando o filho Chico Amaral como herdeiro
de um nome e de um povoado. Ana sabia, de alguma forma, que Pedrinho era um dos
sobreviventes e, por isso, aguardou dizendo à noiva que precisavam preparar as coisas para o
casamento.
Dias depois, com as tropas de Chico Amaral, Pedrinho também chegou. A emoção foi
muito grande. Uns diziam que os castelhanos ainda iriam voltar, mas outros asseguravam que,
uma vez que na Europa tudo estava bem entre Portugal e Espanha, não havia nada a temer.
Um ano depois, graças aos esforços de Chico Amaral, resguardado pelo heroísmo do pai,
conseguiram a autorização para fundar o povoado. Uma capela foi construída, novas casas
surgiram, ruas foram desenhadas e tudo tomava o seu lugar. Em 1806, Ana Terra trouxe ao
mundo o seu segundo neto, Bibiana, uma linda menina que, com certeza, daria trabalho. O
primeiro filho de Pedrinho chamou-se Juvenal. Ana resmungou na mesma hora, jogando a
tesoura sobre a mesa, num gesto de tristeza e alegria: “Mais uma escrava”. ( Nesse momento,
uma das discussões mais importantes é sobre a condição da mulher, naquele tempo e nos dias
de hoje, pois mesmo na atualidade muitas mulheres ainda costumam maldizer a sua “condição
feminina”, dizendo, talvez bobamente, que “se fossem homem” a vida seria melhor ).
Eulália passara a viver com um viúvo muito bom que se interessara por ela e resolvera
cuidar dela e da filha Rosa. Pedrinho estava casado, era um homem de bem e se transformara
em um agricultor feito o velho Maneco Terra. Arrendou umas terras e começou a plantar
trigo. Mas as coisas não andavam tão bem assim, pois os platinos, da Banda Oriental,
continuavam querendo se apartar do domínio espanhol. Uma nova guerra estava prestes a
começar. Pedrinho teve que abandonar a lavoura e ser incorporado novamente às tropas de
Chico Amaral. Pedro não tinha ilusão sobre a guerra, já a conhecia. As mulheres começavam
a rezar. Pedrinho disse para a mãe que dessa vez não sabia se voltava Ana Terra respondeu:
.“Volta, sim. Pense nos seus filhos, na sua mulher, na sua lavoura”. Os olhos de Pedro
brilharam e ele sabia que podia confiar em sua mãe.
139
O povoado ficou novamente quase deserto de homens. As mulheres continuavam sua
longa espera. O minuano começava a soprar, e ela o recebeu como a um velho amigo
resmungão que cruzava o seu rancho. Ana Terra estava de tal forma acostumada ao vento
que até parecia entender o que ele dizia. ( A personificação do vento, e sua relação com ele,
nos remete de novo à Tia Alma, do romance A Casa ).
“E nas noites de ventania ela pensava principalmente em sepulturas e naqueles que tinham ido
para o outro mundo. Era como se eles chegassem um por um e ficassem ao redor dela,
contando casos e perguntando pelos vivos. Era por isso que muito mais tarde, sendo já mulher
feita, Bibiana ouvia a avó dizer quando ventava: Noite de vento, noite dos mortos...”.
O romance encerra como se fechasse um grande flash-back, pois é isso que o
seu início nos sugere, que tudo aquilo já havia acontecido e Ana não
conseguia lembrar direito, mas sabia que tudo começou com a chegada de
Pedro Missioneiro. Desse ponto em diante, o resto da narrativa e da vida
daquela corajosa mulher será revelada no próximo livro: Um certo Capitão
Rodrigo, quando teremos a história de amor de Bibiana e Rodrigo Cambará
dando seguimento não apenas à saga da família terra , mas à história do
próprio Rio Grande.
Observações!
1. Título original de O Tempo e O Vento seria Encruzilhada. Sofrendo de bloqueio de
escritor após O Retrato, Érico Veríssimo aceitou um emprego nos EUA para, entre
outros motivos, não precisar escrever O Arquipélago.
2. Algumas das obras de Veríssimo são reedições: Ana Terra e Um Certo Capitão
Rodrigo são extratos de O Continente, enquanto A ponte é um extrato do livro de
contos O Ataque.
3. Os nomes usados por Érico Veríssimo em seus primeiros romances não são originais.
Tanto os sobrenomes "Terra" quanto "Cambará" já haviam sido usados em romances
da primeira fase.
4. Tibicuera, herói de um de seus livros infantis, no qual o Brasil é retratado, é o apelido
pelo qual sua mãe o chamava.
5. Romance de caráter histórico, épico, heróico e regionalista representando também o
mito da fundação.
6. O Regionalismo do livro é fraco, pois reside apenas na linguagem de alguns
perosnagens e em certos costumes do Rio Grande.
7. Apresenta momentos de polifonia, por exemplo, quando Pedro Misisoneiro conta a
lenda da teniaguá.
8. Deve ser relaiconado com o romance O Guarani quanto aos protagonistas (moça
branca e um índio) e a relação estranha do índio com Nosssa Senhora.
9. Deve ser relacionado com o romance A casa, de Natércia Campos, por conta da
personificação do vento.
140
10. Apresenta metáforas materiais importantes em relação a certos objetos. Ex. tesoura,
roca e punhal, representando vida X morte, trabalho incessante e talento para a arte,
respectivamente.
11. Árvore Genealógica de Ana Terra
Livro 4
27 - A Normalista – Adolfo Caminha
Autor e Obra
Natural de Aracati – Ce, (29/05/1867), por conta da grande seca (1877/1878), mudou-se para
Fortaleza. Muito jovem, ingressou na Escola Naval do Rio de Janeiro, sendo guarda-marinha em 1885.
Promovido a segundo tenente, volta para Fortaleza. Aos 21 anos, envolveu-se em um escândalo social,
apaixonou-se perdidamente por uma mulher casada ( Isabel de Paula Barros ) e foi correspondido. Por
conta de seu conservadorismo, a sociedade puritana de Fortaleza o condena. A jovem abandona o
marido passam a viver juntos. Naquele momento, era participante ativo da Padaria Espiritual ( 1892
) assistindo às reuniões muitas vezes fardado. Por causa do escândalo, pressionado principalmente por
membros de sua corporação, demite-se da Armada. Lança como resposta à sociedade o livro A
Normalista ( 1893 ), um tipo de “livro vingador “. De uma excursão aos Estados Unidos( 1886 ), onde
pode analisar o tipo de vida americano, nasce o livro No país dos Ianques ( 1894 ). Suas viagens como
marinheiro lhe deram inspiração para o romance O Bom Crioulo ( 1895 ), considerado sua obra prima.
Em 1896, por falar mal da Padaria, é expulso da agremiação. Em 1897, como funcionário público,
levando uma vida simples, falece no Rio de Janeiro, com trinta anos incompletos. Obra: Poesia (
Vôos incertos ); Conto: ( Judite ou Lágrimas de um crente ) e A Mão de Mármore; Romance: A
Tentação ( 1896 ), Ângelo e O Emigrado, estes últimos, póstumos. Crítica: Cartas Literárias ( 1895 ).
Momento
Como membro da Padaria Espiritual, Adolfo Caminha não poderia representar outra estética que
não o Realismo/naturalismo, pois a referida agremiação, segundo o crítico Sânzio de Azevedo, é
141
responsável pela consolidação do Realismo em nosso estado. No entanto, além da crítica à sociedade
que seu livro acaba trazendo, principalmente na fala do jovem Zuza, a postura Naturalista sobressai-se
em cada momento impressionista, em cada fala científica. Assim, Adolfo Caminha representa o
Realismo/naturalismo cearense, tanto nos romances como em seus contos ( excetuando-se A mão de
mármore ), dentre os quais devemos destacar Lágrimas de um crente.
Resumo
O romance tem início com a localização da narrativa, ou seja, é apresentada ao leitor a tradicional
“Rua do Trilho “, hoje, Tristão Gonçalves, onde acontecerão os fatos mais importantes da narrativa.
Em uma noite como outra qualquer, o amanuense João da Mata joga Víspora ( um tipo de bingo )com
um grupo de “amigos “. Era um costume do povo e da própria cidade.
Entre os jogadores havia um certo Zuza, filho do Coronel José Nunes, homem importante da
cidade; o rapaz parecia encantado com a afilhada de João da Mata, a jovem Maria do Carmo, “uma
rapariga muito nova, com um belo arzinho de noviça, moreno-clara, carnes rijas... “. As outras pessoas
eram “da intimidade”: Loureiro ( guarda-livros ), Dr. Mendes ( juiz municipal) e esposa ( D. Amélia )
e Lídia, filha da viúva Campelo ( D. Amanda) de quem se diziam coisas...
João da Mata já fora professor, agora era amanuense, “carão magro de tísico, com uma cor
hepática denunciando vícios de sangue, bigode ralo, beiços tesos, testa ampla e calva reluzente. No
passado, responsável pelos recursos enviados para a seca de 77, andou fazendo desfalques, além de
quase ser preso pelo defloramento de uma menor. Dedicou-se depois à política na função de cabo
eleitoral ( babão ), mas dinheiro era o que lhe fazia feliz. Não lhe falassem em política sem interesse
pessoal!
Sua grande paixão, seu fraco, era a afilhada Maria do Carmo, estudante da Escola Normal (
escola mal falada ), saída da Imaculada Conceição ( escola de freiras tida como exemplar ) que era sua
queridinha, pois tratava-a com carinho de amante apaixonado. “Tinha direitos sobre ela; podia mesmo
beijá-la sem malícia, já se deixa ver – nas faces, na testa, nos braços e até na boca. Por que não? ” p.
25. Olhava-a com desejo enquanto ela, toda ingênua, fazia-lhe cafuné e as vontades, trazendo ao
padrinho isso ou aquilo.
Mas, João começou a irritar-se com a presença do Zuza; olhares em direção da pequena, um jeito
de dizer a coisas por metáforas... chegou até a passar cartas à Maria. “Alto lá! Tudo menos patifaria
dentro de casa!“. Maria estava mudando, não era mais a mesma tontinha do tempo do colégio das
irmãs, estava ficando diferente, fornida de carnes...
João da Mata precisava cuidar da afilhada para que não se desencaminhasse e ninguém se
aproveitasse dela. “As melhores famílias sacudiam as filhas na Imaculada Conceição como único
recurso para não vê-las completamente ignorantes e pervertidas”. Mas João não gostava de freiras nem
de padres, que para ele eram homens como qualquer outro. “A educação moderna, a educação livre,
sem a intervenção da batina”.
Maria do Carmo estava há meses na Escola Normal, levava o tempo a ler romances e a conversar
com a Campelinho ( Lídia ). O Zuza estava no quinto ano do curso de Direito em Recife e, vez em
quando, aparecia na terra para ver o pais. Era um rapaz da moda, detestava o atraso de cidades como
Fortaleza e vivia de passeio com o presidente da província, o Sr. Castro. “Isto me parece
definitivamente uma terra de bugres. Uma terra em que só se fala na seca e no preço da cana verde,
sou muito exigente em matéria de civilização porque fui educado na Veneza americana... “
Em seguida, temos um flash-back que justifica a presença de Maria do Carmo na casa do
amanuense. Foi no ápice da seca 1877, que o capitão Bernardino de Mendonça, sem ter mais como
sobreviver, resolveu rumar para Fortaleza junto com sua esposa, D. Eulália de Mendonça Furtado, e
seus dois filhos: Cassimiro e Maria do Carmo. Havia um terceiro, Lourenço, que partira para ser
militar e nunca mais dera notícia. Há tempos queria arrumar suas coisas e ir para a cidade, mas tinha
142
medo que Eulália não resistisse a uma vigem tão longa, pois estava adoentada, com umas pontadas no
coração. Lembrou-se de João da Mata Gadelha, padrinho de Maria do Carmo.
Era um homem conhecido em Fortaleza, “casado” com D. Teresinha, de quem falavam coisas
sobre um romance furtivo com o presidente da Província, o Dr. Castro. Ela desmentia. Chegando a
Fortaleza, no dia seguinte, D. Eulália morreu. Dia depois, Mendonça e Cassimiro embarcaram para o
Norte. O amigo João da Mata dizia “Aquilo é que era terra para enricar. ( ... ) O Ceará era terra para
políticos e ricaços, pois o pobre, mesmo cheio de honra, só servia para ser humilhado, espezinhado e
ridicularizado “.O pai ali morreria, o filho nunca mais se soube dele. Maria do Carmo ficara com o
padrinho, morando na Rua do Trilho, um lugar tradicional, mas pouco elegante da cidade, freqüentado
por gente pobre que se divertia com mexericos e intrigas. Maria do Carmo lembrava de tudo isso.
Um dia, Lídia emprestou à Maria do Carmo O primo Basílio ( Eça de Queirós ), um livro que
muito mexeu com a cabeça da moça, principalmente uma cena em que Basílio ensinara a Luisa como
tomar champagne de boca a boca. “Sentiu um formigamento nas pernas, titilações em certa partes do
corpo, primeiro no bico do seios...depois...” Terminou a leitura cansada como se tivesse acabado de
sair de um gozo infinito... “Até aquela data só havia lido romances de José de Alencar... mas, O primo
Basílio...aquilo é que era romance ( crítica ao romantismo ). “A gente parece que está vendo as coisas,
que está sentindo “. Conversam sobre o Zuza e sobre o Loureiro, noivo de Lídia. Campelinho é mais
safada...ensina coisas a Maria. Campelinho tem 20 anos, Maria tem 15.
Maria do Carmo começa a refletir sobre a possibilidade de Zuza realmente gostar dela, os
olhares, os sorrisos, a carta... Precisava responder à carta! Lídia a incentivava. Dias depois, o Zuza
viaja com o presidente da província para Baturité, um viagem de 8 dias. Maria fica furiosa porque ele
nem se despediu. Lídia mostra-lhe um poema que saiu na Matraca dedicado a ela. Maria suspira
apaixonada pensando na volta do rapaz.
Enquanto isso, João da Mata arquiteta planos. A mulher já estava gasta “precisava de uma
rapariga nova pra ensinar certos segredo do amor, ocultamente, sem que ninguém soubesse... “
Arranjaria tudo. “Tinha direitos sobre ela, era uma questão de oportunidade “.
No quarto capítulo, Zuza é apresentado com mais detalhes. O pai, o coronel José Nunes, tem
orgulho do filho e da amizade do mesmo com o presidente da província. Sua família era um exemplo
de honradez, pois não se misturava com a ralé.
O que o pai não sabia era que o Zuza estava enrabichado pela normalista. Mas, infelizmente,
graças a um jornaleco chamado Matraca, o “namoro do Trilho de Ferro “chegou aos ouvidos do velho.
Teve ódio. Que canalha! Emporcalhando o nome de sua família e de seu filho. Tinha que tirar a limpo
aquela história. Zuza disse ao pai que aquilo era conversa e que ia tomar satisfações com o dono do
pasquim. O pai fica mais sossegado.
Lídia e Maria do Carmo conversam. Falam dos rapazes e da vida na província. “No Ceará,
basta um rapaz ir duas vezes à casa de uma moça pra que se diga logo que o namoro está feito... e
que já não é mais moça. Invejosas é o que não faltam nesta terra”. p 61 Chega D. Amélia, esposa do
juiz, conversam futilidades e a visitante acaba pedindo dinheiro emprestado a D. Teresinha. Diz que
não tarda em pagar...
À tardinha, chegando meio bêbado, João da Mata dá um beijo em Maria do Carmo. Ela reluta,
mas o padrinho é mais forte e agarra-a por trás. “Nada de gritos! Eu sou seu padrinho e posso lhe
beijar onde e quando quiser!” Maria chorou largamente sobre o piano.
João da Mata e um bêbado perneta haviam bebido muito e conversaram obre poesia valorizando
Álvares de Azevedo, Barbosa de Freitas e José de Alencar, mas esculhambaram os poemas do Zuza e
de outros imitadores.
Maria do Carmo passou os dias da viagem do Zuza numa tristeza sem fim. Enervava-se com
tudo. Emagreceu. Queria estar só. Queria o Zuza. “Que inferno! Todos metiam-se com sua vida.
“Outras moças invejosas, ironizavam-na sempre que a viam. A Matraca não parava de falar no
namoro do bacharel com a normalista. E ela nem falara com o Zuza ainda! Para completar, o padrinho
143
a acuava. Não sabia o que fazer. Como contrariá-lo? Afinal de contas fora praticamente criada por ele,
morava em sua casa e comia do seu pirão? Tinha que agüentar.
Uma noite, depois do víspora, João da Mata, escondido, pediu-lhe um beijo. Maria do Carmo
ofereceu-lhe os lábios sem resistência. Foi grande a luxúria do padrinho. Tudo estava saindo como ele
queria.
D. Teresinha começou a desconfiar das intenções de João da Mata com a afilhada, pois o mesmo
vivia de canto com a menina e brigando com a mulher por tudo. João da Mata foi mais longe ao
ofendê-la. Disse que uma mulher “ amigada” era como uma fêmea qualquer. Se ele quisesse, ela
estava no olho da rua. D. Teresa tentou agredi-lo, mas ele deu-lhe um tabefe no meio da cara. Maria
do Carmo assistiu a tudo paralisada de medo. Toda a rua soube da confusão.
Finalmente, os viajantes estavam de volta. Maria acordou radiante. Foi para o colégio e lá
divertiu-se com a amiga até o momento em que o presidente da província entrou na sala acompanhado
pelo Zuza. O professor, querendo mostrar serviço, perguntou às alunas: “ Quantos são os polos da
terra? “ Ninguém respondeu. Uma das “ inteligentes” disse que eram quatro, norte, sul, leste e oeste.
O professor perguntou à Maria do Carmo que, diante do Zuza, começou a chorar nervosamente. A
Campelinho respondeu corretamente e o professor ficou aliviado. Maria foi chorar em casa,
arrependendo-se da vida e de tudo. O que o Zuza estaria pensando dela? Que era burra? Deitou-se na
rede sensualmente.
O primeiro cuidado do Zuza ao regressar foi tirar a limpo aquela história da Matraca. Um amigo
dizia: “ No Ceará não se faz reparo nessas coisas, meu Zuza. Insulto nesta terra é um divertimento
como qualquer outro... Cada cidadão aqui é uma verdadeira matraca. “ p.87. O Zuza começou a
esmorecer. Refletiu. Viu que o prejudicado seria ele. O melhor era ignorar.
Zuza seguiu para casa com nojo do Ceará moleque. “ província estúpida! Era aquilo que se
chamava terra da luz? “ Teve saudade do Recife, da vida boa, das mulheres e das noitadas. Pensou em
Maria do Carmo, comparou-a com outras mulheres que possuiu. “ Uma matuta com nome de matuta.
Ainda se fosse Maria Luísa.“. Foi ler Casa de Pensão ( Aluísio Azevedo ) que livro! Detestava
literatura portuguesa ( lusofobia ) mesmo sem conhecer Eça de Queirós. Só respeitava Camões porque
este era universal! Pensou em Maria novamente. Ela não lhe respondera a carta. Era o que faltava! A
senhora D. Maria não lhe dar atenção. Havia de cair por força, era uma questão de tempo.
Aproximava-se o casamento de Lídia com o Loureiro. Todos estavam felizes. O noivo
freqüentava cada vez mais a casa das Campelo, tornou-se de casa e depois pagava as contas. Como
noivo, ia ficando gaiato, a noiva resistia, resistia... E o namoro que antes terminava às oito da noite,
agora estendia-se até a uma hora da manhã...
O Zuza, por sua vez, não tinha pressa em se formar. Assim, divertia-se pela cidade. O melhor
lugar para isso era o Passeio Público. Dirigiu-se para lá com um amigo, o Sr. José Pereira, um
jornalista. No Passeio, encontraram a Campelinho e a amiga Maria do Carmo. Maria entregou
finalmente uma carta de resposta a Zuza e foram, juntos, tomar umas cervejas no bar mais próximo.
As pessoas começaram a ir embora, enquanto os amigos ficavam cada vez mais “ animados “. Logo,
as moças estavam em brasa, até a Maria do Carmo perdeu o acanhamento.
Maria do Carmo chegou em casa tarde da noite, ofegante e trôpega. O padrinho a esperava com
ar severo. Mas a alegria da afilhada, o sorriso meigo, o jeitinho de falar e um beijo que dera no rosto
do padrinho foram dobrando o velho e o que seria uma bela surra virou uma simples advertência. João
da Mata não resistia aos olhos e ao sorriso da afilhada. - Vá, minha filha, vá dormir que você não está
boa... Com a cabeça rodando e o corpo quente, Maria foi dormir. Teve sonhos impossíveis e
horrorosos naquela noite. Sonhou com o negro Romão, um escravo forte que vivia bêbado pelas ruas
gritando Arre corno! E era responsável, às vezes, por carregar potes de dejetos para fora da cidade. No
sonho, o negro atirava-se a ela beijando-a num frenesi louco, deitando-a no chão e ela sem poder
escapar... Finalmente, acordou. Tinha esquecido de rezar. Depois, foi dormir pensando no Zuza.
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No mesmo dia da briga com D. Teresinha, o amanuense passou a dormir na sala de jantar,
próximo ao quarto de Maria do Carmo, não agüentava mais o calor infernal da alcova e nem a própria
mulher, a quem vivia ameaçando expulsar de casa. A casa de João da Mata ia ficando como um mal
exemplo em toda a vizinhança tamanhas as brigas que lá aconteciam. Não se jogava mais o Víspora
em casa do amanuense. D. Teresinha foi criando verdadeiro ódio pela afilhada a quem o padrinho
sempre mimava. “ Uma peste que se metera em casa mostrando os dentes e mais alguma coisa ao
padrinho “. Com efeito, Maria, para não desagradar ao padrinho, até consentira que ele lhe afagasse o
bico dos seios virgens e passasse a mão pelas coxas polpudas... Ficava quieta, de olhos no teto,
abandonada às carícias daquele homem que a perseguia como um animal no cio... mas que era seu
padrinho... Tinha raiva, tinha nojo, mas o que fazer se não tinha pai nem mãe? ( Naturalismo).
A vida de Maria do Carmo era um tormento, a cada dia ficava mais difícil. Nem mesmo a Lídia a
procurava mais. Para completar, todos os dias, a Matraca insistia em falar do “ namoro do Trilho” . A
cidade aumentava a conversa dizendo que tudo que o estudante queria era plantar um Zuzinha no
bucho da normalista e se mandar para o Recife. Esse tipo de conversa deixou furioso o Zuza que um
dia pegou um pobre jornaleiro e encheu de tabefe, depois de rasgar-lhe todos os jornais. Como todo
político espeto, Dr. Castro ensina a Zuza como se vingar dessas coisas sem uso da força. “ Zuza, eu
respondo a cada artigo com a demissão de dez funcionários amigos da oposição. ( ... ) Hoje mesmo,
muita gente vai pagar pelos diretores do dito partido. Nada mais simples, não acha? “ Zuza ficou
perplexo. Decididamente, aquele era um grande homem!
Os pais de Zuza estão preocupados com a demora do filho na capital cearense. D. Sofia nem
tanto, pois sempre fez as vontades do filho, mas o Cel. Sousa Nunes não via com bons olhos aquela
demora e nem aquela conversa sobre a normalista. Advertiu ao filho e disse-lhe que não brincasse com
sua vida, pois estava pronto a mandar-lhe para Recife no primeiro vapor! Zuza, neste momento,
pensava até em casamento, talvez como afronta ao pai, e justificava que Maria do Carmo, em sua
inocência, tinha ares de mulher boa e honesta, pois acreditava que nem todas as normalistas eram tão
safadas como falavam pela cidade. Maria daria uma boa esposa sim, bastava corresponder às suas
expectativas.
O nono capítulo trata basicamente do casamento da Campelinho. Foi uma festa na Rua do Trilho.
Os noivos saíram em cortejo em direção à igreja do Patrocínio. As ruas estavam cheias. Os convidados
mais ilustres eram o Sr. Carvalho & Cia. , padrinho e patrão do noivo, o alferes Coutinho, um gaúcho
com fama de orador e o poeta Castrinho, autor do “ famoso” poema Flores Agrestes. Houve muita
comida e bebida, além da falta de educação dos convidados na hora de comer. O noivo surpreendeu a
todos presenteando a esposa com uma casa muito bem montada que ficava no Benfica, um pouco mais
distante do centro. A casa era um brinco, e até Maria do Carmo teve uma pontinha de inveja da amiga,
pois a Lìdia, ao menos estava casada e ela? Depois da festa, D. Amanda, mãe de Lìdia, recebia em
casa, agora mais sossegada, a visita do Batista da feira...
Em casa, Maria do Carmo não conseguia dormir. Pensava na amiga, que afinal se casara.
Pensava no Zuza. Quando o Zuza teria coragem de pedi-la? O seu casamento seria lindo, o mais
bonito. Esse sim teria a presença de gente importante... o presidente da província... adormeceu.
Sonhou novamente com o “ negrão” . Acordou sobressaltada. Era Segunda vez que sonhava. Será que
iria lhe acontecer alguma desgraça?
De repente, ouviu uma vozinha de nada que chamava o seu nome. Era o padrinho. “ - Sou eu...
não faça escândalo. Quero só conversar com você” . João da Mata estava só de ceroulas. Sentou na
beira da rede da afilhada e começou com uma conversa de que a sala fazia muito frio, mas que o mais
importante era que ele sabia que ela gostava do Zuza e que para ser feliz com seu amado só dependia
dela... Maria, ainda meio sonolenta, não repeliu o padrinho, pois o assunto realmente a interessava. O
padrinho ia-se deitando ao lado da afilhada dizendo que aquela rede era pequena, precisava comprar
para ela uma rede mais rica. Maria, intrigantemente, “ começou a achar certo encanto naquela
intimidade secreta, ombro a ombro com o padrinho. Seu instinto de mulher nova acordara agora
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obscurecendo-lhe todas as faculdades, ao cheiro almiscarado que transudava dos sovacos de João da
mata. Coisa extraordinária. ( ... ) produzia-lhe um efeito singular nos sentidos, como uma mistura de
essências sutis e deliciosas, desconcertando-lhe as idéias. Uma coisa impelia-a para o padrinho sem
que ela compreendesse exatamente aquela força misteriosa. E quando ele lhe falou do Zuza...“ p. 149.
O padrinho foi chegando, todo meloso, dizendo que a felicidade de Maria só dependia dela...
deu-lhe um beijo. Ela o repeliu. O velho disse que se ela deixasse, ele nunca mais se meteria na vida
dela e permitia-lhe que ficasse com o Zuza... era só uma vez e ninguém precisava saber... ninguém
saberia...
A madrugada encontrou Maria de joelhos diante de Cristo, lágrimas nos olhos. Nunca o olhar
de Cristo fora-lhe tão meigo. A cidade acordava e a vida recomeçava como um eterno poema de
alegrias e de dores sem fim. Maria procurava no coração de Jesus um conforto para o seu doloroso
arrependimento. ( Ô bicha abestada! )
Depois dessa noite, Maria definhou. Não queria mais comer nada. Adoeceu e o padrinho,
cinicamente, era só cuidados. Trazia-lhe doces, dizia que ela precisava se levantar, que aquilo era
bobagem, que o que fizeram não foi nada demais e que acontece com qualquer uma. Que era comum.
Maria se achava uma desgraçada. D. Teresinha não ligava mesmo para a afilhada; a empregada
Mariana, também não lhe fazia diferença. Estava perdia. Por conselho do padrinho, resolveu passear.
Foi à casa da Lìdia. Abraçaram-se e conversaram por muito tempo. Maria não lhe disse nada. Lídia,
por sua vez, deu-lhe uma notícia triste: disse-lhe que o Zuza havia partido para Recife.
Maria chorou copiosamente. Sentiu-se totalmente desprezada e só. Para completar, teve a
certeza de que estava grávida. Um filho que acabaria totalmente com sua vida, com sua reputação
diante daquela sociedade hipócrita, ávida de escândalos que se banqueteava com a desgraça alheia.
Seria apenas uma mulher “ que já teve filho “ . Pensou várias vezes em se matar, mas não teve
coragem, como também não tinha coragem de expelir o feto, afinal de contas era seu filho. Seu futuro
não lhe garantia coisas boas.
Era verdade o que a amiga lhe dissera. O Zuza havia ido embora numa sexta-feira, um pouco
depois do casamento da Lídia. Arrumou-se cedo, não precisaram nem chamar. Lamentou um pouco
não Ter dado tempo nem para umas beijocas de despedida, mas o que fazer? A cidade estava com o
seu nome na ponta da língua. Seu pai estava certo, era homem de juízo. “Já se foi o tempo de um
homem sacrificar posição e futuro por uma mulher pobre “( crítica ao romantismo ). Mas a notícia de
sua partida, em vez de acalmar as coisas, piorou muito mais. Os jornais divulgavam seu nome como o
de um salafrário, um aproveitador da família cearense. Os pais diziam. “Nós é que somos os culpados,
pois todo o nosso mal é recebermos em nossas casas qualquer sunga-nenen que chegue a esta terra.” p.
169. A viagem de Zuza ganhou proporções de escândalo. Em um momento, releu as cartas de Maria. “
Que horror, meu Deus, quanta banalidade! Magnífico rol de asneiras para fazer rir a rapaziada de
Pernambuco. “
Três dias depois da partida do Zuza foi que Maria do Carmo sentiu realmente ao seu abandono.
Arrependia-se da vida, de não ter tido coragem para expulsar o padrinho de seu quarto com a mão no
focinho nem que sacrificasse a própria vida. Não tivera coragem.. agora estava ali... Cochichos e
maledicências eram-lhe dirigidos em qualquer lugar, principalmente na Escola Normal, de onde foi
suspensa acusada de ter desenhado uma obscenidade na lousa. Em casa, tinha que esconder-se a todo
custo, principalmente da madrinha que passou a investigá-la os passos. João da Mata entregou-se à
bebida e perdia com isso todo o ordenado, o que lhe inverteu a posição em casa, quem mandava agora
era D. Teresinha. Não faltando mais nada de ruim para acontecer, morre o Dr. Castro, o presidente da
província, muito admirado por todos e principalmente por Maria do Carmo que achava injusto da parte
de Deus que homens bons morressem enquanto ratos ( como João da Mata ) pareciam ter uma vida
eterna. Uma coisa estúpida a vida afinal. Na hora do cortejo fúnebre, Maria caiu estatelada no meio da
sala. Todos ajudaram e D. Teresinha aumentou mais ainda as suas suspeitas.
146
Em poucos meses, o estado “interessante” de Maria passou a exigir mais cuidados. João da
Mata, mais que depressa, arranjou um lugar onde ele pudesse descansar por uns dias... Uma casinha de
amigos no Cocó, lá para as bandas da Aldeota, a casa de D. Joaquina, conhecida como “velha dos
cajus “. João da Mata conhecera D. Joaquina e Seu Cosme na seca de 77, quando era chefe da casa de
socorro, o casal tinha uma filha, também Maria ( das Dores ), que morreu de febre depois, João da
Mata fizera-lhes muito benefícios... Aceitaram de bom grado acolher a afilhada do seu Janjão.
Na chegada de Maria, os velhinho deram-se muito com ela. E dentro de um mês, era notável a
influência do campo em sua saúde. Criara novas cores, novo sangue, mais solícita agora nas
preocupações domésticas. Maria era realmente forte, João da Mata admitia isso e já sonhava com o
filho que estava por vir. Dizia para si mesmo “Um bom útero é tudo na mulher; equivale a um cérebro!
“ E ficava a filosofar na vida intra-uterina, admirando-se muito de que uma simples gota de esperma
pudesse gerar um homem! ( naturalismo ). p. 197.
Enquanto isso, em Fortaleza, o desaparecimento de Maria do Carmo dava muito o que falar. “
Aquela mesma não era mais moça não, meu bem. Muito metida a aristocrata e caíra nas mãos de um
Zuza. Uma grande orgulhosa com carinha de santa. Bem feito! Aí estava a santidade... “ Todos queria
saber a verdade, mas nada era seguro. O mais interessado na história era o redator da Matraca, um tal
de Guedes, que não deixava de insistir com João da Mata para saber o que houve com a menina. João
da Mata, muito esperto, mesmo caindo de bêbado, diz ao Guedes que Maria realmente estava grávida
e que o culpado de tudo era o Zuza, um biltre, um safado... e tanto que ele avisara...
A notícia espalha-se como o vento. Alguns diziam que já esperavam , outros como o José
Pereira, amigo de Zuza, não acreditam , mas enfim... o que queriam de uma normalista, e criada pelo
João da Mata? José Pereira, Castrinho e um tal de Elesbão discutem sobre a “educação dada a mulher”
naquela época, falam sobre os colégios e principalmente sobre o que se ensina na Escola Normal, uns
atacam, outros defendem. Quem tem culpa? O colégio? Os professores? Os pais? Ou os próprios
alunos? ( crítica à sociedade ).
Lídia fica sabendo da gravidez da amiga. Espanta-se, fica com um pouco de raiva, mas depois diz
que assim que puder tentará consolar a amiga. A mãe é contra, pois aquilo era um mal exemplo. Não
ficava bem para uma moça de família como ela... ( a situação se inverte, a Campelinho agora é a santa
e Maria a depravada ). Surgem alguns boatos sobre as visitas freqüentes de José Pereira à casa da
Lídia, é agora o amigo mais íntimo do Loureiro...Já andavam dizendo coisas, e o José Pereira tinha
fama...
Na casa de João da Mata a notícia teve efeito contrário, pois a primeira coisa que D. Teresa
gritou foi “Sem vergonha! Sedutor de filhas alheias! “. João da Mata apenas cantarolava fugindo do
assunto. Durante à noite, com um tesão fora do comum, João da Mata precisava urgentemente de uma
mulher. Pensou em Mariana, a empregada, mas sabia que ela não se lavava. Foi, pé ante pé, ao quarto
de D. Teresinha, mas teve seus desejos frustrados, pois a cama estava completamente vazia e nunca
mais seria ocupada de novo. A mulher o abandonara. Retirou-se pensando nos caprichos da sorte.
No último capítulo, é chegada a hora de Maria do Carmo ter seu filho. Tia Joaquina mandou
chamar uma parteira, a D. Joana Pataca, para pegar a criança. João da Mata foi chamado e passou o dia
pela Aldeota na expectativa de ser pai. Mas deu meio-dia e a rapariga não teve a criança. Às sete da
noite, Maria sobressaltou-se ficando em pé, gemendo de dor. A parteira e a velhinha pediam para que
ela sentasse, mas ela não conseguia. Soltando um grande gemido, Maria expeliu o feto “Ouviu-se uma
pancada surda no chão, como a queda de um bolão de barro úmido, e, imediatamente, rios de sangue
jorraram aos pés da parteira, e no linho branco da camisa de Maria do Carmo desenhou-se larga
faixa rubra, de alto a baixo, como uma bandeira de guerra desdobrada. “p. 214
Maria do Carmo dormiu profundamente. Ao seu lado, em uma pequena caixa de pinho, dormia o
sono eterno uma pequena criança, roxa, com as gordas mãozinhas sobre o peito, que tinha um fio de
sangue a escorrer-lhe pelo nariz.
147
João da Mata não dormira. Culpava a parteira. “Estúpida! deixara morrer uma criança tão bem
feita e nutrida. “. Depois, conformou-se com a idéia. Isso de filho natural daria um trabalho danado.
Maria do Carmo acordou e pediu para ver a criança. A dor foi imensa, pois já sonhava em amamentálo, criá-lo, e amá-lo muito, pois, afinal de contas, era seu filho. Infelizmente, não poderia. Ali perto,
tocava, ironicamente, um samba qualquer que varava a noite.
No dia seguinte, antes do sol nascer, João da mata e o mestre Cosme enterraram a criança e, com
um ar de tristeza, João da Mata sufocou duas lágrimas que lhe caiam dos olhos, “como duas linfas
cristalinas na aspereza de uma rocha. “ Com pouco, o amanuense viu sumir-se debaixo da terra o
corpo do seu primeiro filho. O samba havia acabado.
Meses depois, quando Maria do Carmo apresentou-se na Escola Normal estava completamente
desenvolta e com uma felicidade no olhar. A sua presença foi uma ressurreição. As amigas diziam: “A
Maria do Carmo heim, nem parecia a mesma! “Houve um alarido entre as estudantes, abraços, beijos,
cochichos... até o prédio havia sido pintado de novo como para recebê-la. O colégio era outro, o
programa havia mudado, com educação física, educação intelectual, educação nacional, cívica,
educação religiosa... estava tudo mudado! Inclusive Maria do Carmo.
No momento, um grande acontecimento estava na boca de todos, a Proclamação da República.
Grupos de militares cruzavam as ruas, o canhões estavam enfileirados ao lado do Passeio Público, no
forte de Nossa Senhora da Assunção. Ninguém se lembrava mais de escândalos domésticos quanto
mais de “pequeninos fatos particulares”. Mas um homem se revoltava com aquela situação: João da
Mata. “ Isto é um país sem dignidade, uma nação de selvagens! Expulsar do país um monarca da
força de Pedro II...era o cúmulo da ignorância e da selvageria! “
E Maria do Carmo, agora noiva do alferes Coutinho, da polícia, via diante de si um futuro largo,
imensamente luminoso, como um grande mar tranqüilo e dormente.
Crítica
O livro A Normalista pode ser visto como um livro vingador, ou seja, um livro no qual o autor
Adolfo Caminha destilou toda a sua ironia e sua revolta contra a sociedade que o recriminou. Isso
pode ser comprovado na postura rebelde da personagem Zuza que, vez por outra, deprecia o povo
cearense e a cidade de Fortaleza. Estaria ele errado? Esteticamente, o livro enquadra-se em todos os
pormenores do Realismo brasileiro havendo a crítica à sociedade, a sugestão sobre o comportamento
da mulher, a ambigüidade das atitudes e as imperfeições de homens como o próprio Zuza (
mulherengo e insensível ) ou o Dr. Castro, presidente da província, o típico político despótico. Quanto
ao Naturalismo da obra, este encontra-se distribuído, muito bem espalhado a ponto de prevalecer
sobre a obra, em cada gesto de João da mata, em cada frase cientificista, em cada cena
impressionista, principalmente no parto bestial do filho de Maria do Carmo. A bem da verdade,
alguns até dizem que estas duas estéticas ( realismo e naturalismo ) equilibram-se dentro deste livro, e
não estariam totalmente equivocados, mas para um autor que tem no livro O Bom-crioulo (
Naturalismo puro ) a sua obra prima, pode-se dizer que A Normalista é muito mais naturalista que
realista. Ressalte-se também o caráter determinista representado na amizade de Lídia e Maria do
Carmo, no papel que a Campelinho exerce promovendo, inicialmente, um certo “desencaminhamento”
na figura inocente de Maria do Carmo. Outra observação sobre isso é a discussão final sobre o papel
da Escola Normal na formação moral de suas educandas, assunto que, por mais que pareça superado,
ainda paira sobre nossas cabeças. Outra possibilidade de leitura é compreender que tudo o que houve
apenas serviu, como em O Ateneu, para o amadurecimento de Maria do Carmo que, ao final, sem
demagogia, parece ter substituído a antiga amiga no colégio, ou seja, Maria do Carmo, daquele ponto
em diante, passa a ser a nova “Campelinho”; mais velha, mais bonita e, acima de tudo, mais
experiente. A ironia final é deixar transparecer que foi como se nada tivesse acontecido.
148
28 - Fogo Morto – José Lins do Rego
Autor e Obra
José Lins do Rego nasceu em Pilar, na Paraíba, onde conviveu com tudo que o mundo do sertão
seria capaz de oferecer. Depois dos estudos iniciais, bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Recife
em 1923, onde iniciou sua vida literária, ainda como estudante, escrevendo contos e artigos muito
elogiados, geralmente sobre política. Foi promotor público em 1925 no estado de Minas Gerais,
tornando-se depois funcionário do ministério da Fazenda. Em 1935, mudou-se para o Rio de Janeiro
onde passou a colaborar com diversos jornais e revistas de sua época. Assim, desenvolveu toda a sua
atividade literária, principalmente nesta cidade. Foi membro da ABL, sendo patrono da cadeira de no.
25. Seu convívio com Gilberto Freire, ambos do grupo modernista de Recife, denota a importância
desse encontro na obra do autor, pois é a partir de então que seus textos voltam-se para a valorização
da vida em sentido regional. Morreu no Rio de Janeiro em 1957.Sua obra possui três momentos
distintos: 1 – Ciclo da cana-de-açúcar com Menino de Engenho ( 1932 ) ; Doidinho ( 1933) ; Bangüê
( 1934 ); Usina ( 1936) e Fogo Morto ( 1943 ). 2 – Ciclo do Cangaço com Pedra Bonita ( 1938 ); e
Os Cangaceiros ( 1953 ). 3 – Ciclo de obras autônomas: Moleque Ricardo ( 1935 ); Pureza ( 1937 );
e Riacho Doce ( 1939 ) - relacionadas com os primeiros ciclos. Ainda, Água- mãe ( 1941 ) e Eurídice
( 1947 ) – desvinculados dos dois ciclos. Fez crônicas como: Gordos e Magros; Poesia e Vida; Bota
de sete léguas; A casa e o homem; Gregos e Troianos. Por último, publicou textos de memórias: Meus
vinte anos ( 1956 ); Póstumo: O vulcão e a fonte ( 1958 ).
Momento
Depois do lançamento de A Bagaceira, de José Américo de Almeida, o texto regionalista de
temática nordestina tomou conta do país na década de 30. A verdade é que os autores da Segunda
Geração modernista deixaram de lado as divergências lingüísticas e gramaticais, a luta Brasil X
Estrangeiro esgotadas em 1922 para trabalhar a tensão do binômio Terra – Homem. O texto ganha
um caráter social, político e participativo privilegiando as temáticas mais particulares inerentes ao
homem e ao chão. O texto de 30 prima pela tradição dos costumes e a valorização dos aspectos
culturais que possam definir o perfil do homem inserido ou sendo expulso do seu meio. Paralelamente
a estas temáticas, uma vez que o Brasil tem suas falhas, teremos o homem oprimido pelas condições
de trabalho, pela miséria e pelo êxodo constante na tentativa de melhorar de vida. Textos como Vidas
Secas de Graciliano ramos, O Quinze de Rachel de Queiroz são marcas registradas do ápice desta
tendência. Vale lembrar que o enlevo regionalista não se dá apenas pelo fato de os autores falarem do
sertão. De forma alguma, o Regionalismo propriamente dito relaciona-se ao homem e ao seu lugar,
assim, a narrativa tanto pode ocorrer no nordeste, num sertão baiano ou cearense, nos Gerais, em
Minas ou mesmo nos Pampas no Rio Grande do Sul. Por conta disso, se analisarmos Fogo Morto de
acordo com sua temática, podemos enquadrá-lo corretamente no segundo momento modernista, na
geração de 30, responsável pelo texto regionalista de temática nordestina.
Resumo
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Dividido em três partes, O mestre José Amaro, O Engenho de Seu Lula e O Capitão Vitorino, o
romance Fogo Morto é considerado o melhor texto da obra de José Lins do Rego. Integrando o Ciclo
da Cana-de-açúcar, encontramos um romance dos mais interessantes no que diz respeito à reprodução
do momento que trata do declínio dos engenhos brasileiros e à apresentação da cultura do homem do
sertão.
Na primeira parte, temos a história do Mestre José Amaro, um velho seleiro ( fazia selas para os
animais da região ) meio parecido com o Seu Lunga ( ô bicho ignorante! ) casado com uma mulher
que segundo ele não presta mais pra nada e pai de uma moça de nome Marta que, depois de alguns
ataques de histeria, somados à ignorância do pai, vai ficando completamente louca. A vida de José
Amaro começa na verdade com a chegada de seu pai ao engenho Santa Fé. O velho Amaro veio
fugido, pois matara um cabra pelas bandas de onde morava. Recebeu umas terras para plantar e viver
( tornou-se agregado ) e ali constitui família. Depois da morte do pai, José Amaro tomou o lugar deste
e tornando-se um bom seleiro passou a ser requisitado pelos grandes senhores de engenho da região.
Amaro vive amargurado, sente-se infeliz e vê na filha e na esposa mais motivos para arrependimento;
guarda em si uma grande mágoa que o arrastará para a comiseração e por fim à morte. Freqüentam-lhe
a casa o bêbado Passarinho, o aguardenteiro Alípio, algumas comadres de sua mulher ( D. Sinhá ) e o
compadre Capitão Vitorino, um cara meio doido, apelidado de papa-rabo ( relacione com zoofilia )
que terá sua historia contada na terceira parte do livro. Amaro tem como inimigo, além de todo
mundo, o coronel Lula de Holanda, o dono do Santa Fé, que desde quando passou a ser dono do
engenho, que era do sogro ( Cap. Tomás Cabral de Melo ) , passou a implicar com a família do
agregado. Mas o seu maior ódio é dirigido a um negro meio bicha, um tal de Floripes, que vive
inventando fuxico sobre o pobre José Amaro, por exemplo o boato de que o velho vira Lobisomem,
porque anda sozinho tarde da noite como se estivesse em busca de sangue humano. No final da
primeira parte, José Amaro é chamado pelo dono do engenho que lhe ordena que saia de suas terras. É
lógico que a bicha Floripes tem culpa no cartório. José Amaro fica sem saber o que fazer, pois só
quem pode lhe socorrer é o Capitão Antônio Silvino, um bandoleiro, cangaceiro, que mete medo em
todos os donos de engenho sempre que passa pela região. José Amaro não tem saída; a mulher o
abandona, a filha é internada como louca, tem poucos amigos, o povo acha que ele vira lobisomem e
por isso foge dele, está sendo expulso da terra que fora de seu pai e a única pessoa que pode ajudá-lo
não chega.
Na segunda parte, temos a história do surgimento do engenho Santa Fé. Tudo começa com a
peleja do primeiro senhor de engenho da região, Capitão Tomás de Melo, em casar a filha, D. Amélia,
a quem dera uma educação primorosa e não podia por força nenhuma casar com um camumbembe
qualquer. D. Amélia acaba se interessando por um primo, o jovem Lula de Holanda Chacon.
Acertados os detalhes, casam e a vida de moleirão do genro não agrada ao pai da moça. O tempo passa
e todos percebem que o rapaz não serve para a vida no engenho, mas o que fazer? Só restava aceitar.
Morre o pai de Amélia, e Lula de Holanda, depois de enterrar o velho briga com a viúva querendo a
posse da terra. Fica mal visto por todos no Pilar como caça-dotes. Depois de enterrar também a velha
mãe de sua esposa, passa a ser o dono definitivo do engenho Santa Fé. Isso revolta os moradores, e até
mesmo pessoas ligadas à família que já achavam que o cara não prestava. De fato, Lula muda da água
para o vinho e além de fazer a esposa sofrer manda açoitar os negros escravos. O engenho não
progride na mão de Lula, pois ele é preguiçoso, incompetente e para completar sofre de epilepsia, pois
às vezes cai no chão se debatendo e espumando pela boca. A irmã de D. Amélia, D. Olívia, também é
louca e mora com eles. O casal tem uma filha, Neném, que foi educada como a mãe e que agora vive
o mesmo conflito do “casamento necessário”. Mas com quem? Vem a Abolição da Escravatura e com
ela uma rebelião na fazenda. Alguns negros tencionam atacar o engenho. A família fica praticamente
sozinha e o que era fartura começa a preludiar a miséria. Lula cria o costume de mandar rezar terços
em casa, é agora que entra o negro Floripes, pois até a esposa D. Amélia, tem um certo ciúme da
relação do negro afilhado com seu marido. Lula tem vários ataques e está quase à morte, mas quando
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o assunto é a insubmissão do agregado José Amaro, o homem ganha força. Manda chamar o agregado
e diz-lhe que saia de suas terras. O a produção do engenho está num declínio total e pelo que diziam,
comparado com outros engenhos como o Santa Rosa, o Santa Fé estava acabado.
Na terceira e última parte, temos a história do compadre de José Amaro, o Capitão Vitorino
Carneiro da Cunha, uma figura quixotesca ( gente meio doida que vive de aventuras como a
personagem D. Quixote de Miguel de Cervantes ) que entre um vilarejo e outro, entre um engenho e
outro angaria votos para, na próxima eleição, derrubar o atual governo, na tentativa de melhorar a vida
do povo daquela região. Vitorino é casado com D. Adriana, mulher trabalhadeira que agüenta em
silêncio as loucuras do marido e principalmente a chacota que as pessoas fazem, além das provocações
do apelido que tem de Papa-rabo. Nessa atitude constante de querer mostrar-se herói, defensor dos
fracos e oprimidos, Vitorino acaba desfeiteado por muitas pessoas dali, mas respeitado pela maioria
como uma pessoa de bem, doida, mas de bem.
Nesse momento, as três partes do livro passam a se encaixar, pois o velho Lula de Holanda
continua querendo a expulsão de José Amaro. Vitorino, depois de muitas dores, ainda toma as dores
do compadre e vai falar com seu Lula que continua irredutível. O cangaceiro, através de seu
verdadeiro informante, o aguardenteiro Alípio, manda um recado para Lula de Holanda ordenando que
deixe José Amaro em paz. Lula fica possesso e diz que na terra dele é ele quem manda. Vitorino vai
embora, mas diz que volta para acabar com a arrogância do senhor de engenho. Num belo dia,
Vitorino dá de cara com a volante do Tenente Maurício, militar vindo da capital com a missão de
capturar o cangaceiro Antônio Silvino. Vitorino não reconhece outra autoridade além dele mesmo e
desrespeita o oficial. Leva só uns tapas. Em sua missão, o tenente vale-se dos piores expedientes,
inclusive bater em pessoas indefesas como o cego Torquato, que na opinião do oficial é um informante
do cangaceiro. Vitorino, por ter desrespeitado o tenente Maurício, é preso como se fosse um elemento
de alta periculosidade. É conduzido pacificamente; isso faz com que muita gente perceba como o
tenente Maurício estava sendo autoritário. Alguns políticos e senhores de engenho pedem a libertação
de Vitorino; os jornais de Recife noticiam a arbitrariedade da lei. As eleições se aproximam. Vitorino
é solto e vai aos jornais dar o seu depoimento. É transformado em herói revolucionário pois teve peito
para lutar contra os poderosos ( mente que só o cão para o repórter e o povo acredita ).
Um dia, o capitão Antônio Silvino chega ao Santa Fé. Exige de Lula de Holanda que deixe José
Amaro em paz e ordena-lhe que entregue a botija que possui. Vitorino chega e tenta defender o
Coronel Lula. Antônio Silvino pede a um de seus homens que dê umas porradas em Vitorino. Os
cangaceiros quebram a casa toda procurando ouro. Chega o Coronel José Paulino, o homem mais
respeitado da região, dono da maioria dos engenhos, e pede para que Antônio Silvino vá embora. O
cangaceiro obedece. Depois desse episódio, o tenente Maurício manda prender José Amaro, o cego
Torquato e o bêbado Passarinho. Todos apanham. Vitorino dá uma de advogado e pede a liberdade dos
amigos. Consegue, mas o tenente não obedece ao juiz e ainda se vinga de Vitorino dando-lhe outra
surra. Finalmente, José Paulino intercede por todos, afasta o tenente da região do Pilar e espera as
eleições para ver o curral ( eleitoral ) funcionando.
A história segue enfocando os três personagens mais importantes na intenção de amarrá-los para
que façam sentido, contando a história do engenho Santa Fé ( surgimento, apogeu e declínio). Lula de
Holanda está para morrer, como o próprio engenho. Vitorino continua sua vida quixotesca, já que até o
tenente Maurício não se mete mais com ele, elevado ao status de herói. José Amaro, atacado por uma
doença que ele não sabe qual é, mas que fica evidente que também seja epilepsia, acaba sucumbindo à
amargura e termina por cometer o suicídio enfiando uma faca no peito. Há nesta parte um ponto
positivo no que se refere à solidariedade do povo nordestino, pois todos se unem para dar um enterro
decente ao mestre José Amaro. O tenente Maurício continua a sua busca pelo cangaceiro Antônio
Silvino. A política e o tráfico de influência continuam sendo as atividades mais importantes em
Pernambuco e no Pilar, uma vez que a cana-de-açúcar não é assim tão lucrativa. No Santa Fé, e nos
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arredores, ninguém mais acredita que o engenho possa se reerguer, pois aconteça o que acontecer, já
está de FOGO MORTO.
Crítica
Melhor romance de José Lins do Rego, Fogo Morto é um dos textos mais importantes da segunda
fase do Modernismo brasileiro, a geração de 30, do romance regionalista de temática nordestina.
Tratando basicamente das misérias do ser humano, por conta do aspecto social que permeia esta fase,
temos o enfoque de muitas questões inerentes ao binômio Terra X Homem que fazem o texto da
geração de 30. Não encontramos, como em Vidas Secas de Graciliano Ramos, a seca como principal
algoz do homem, mas contraditoriamente, o homem que é lobo do próprio homem, ou seja, a relação
de mandonismo latifundiário entre o dono do engenho e seus empregados ou agregados nos aproxima
do coronelismo encontrado em Jorge Amado. Fogo Morto não é um romance sobre a seca, mas um
romance sobre o ser humano, ( sobre o homem em sua terra ) pois a verdade é que a queda dos
engenhos é apenas pano de fundo para as principais questões apresentadas. O que temos em Fogo
Morto é o achatamento da personalidade do homem por conta da sua condição social, a
obrigatoriedade das relações servis, o fim da escravidão no Brasil e a força das tradições interioranas
juntam-se aos aspectos culturais do povo nordestino. Há em Fogo Morto a intenção explícita de falar
do homem, mas de uma maneira tão introspectiva que chegamos a achar que o texto já esteja
caminhando para o psicologismo proposto pela Geração de 45. Predomina o discurso indireto, mas,
muitas vezes o narrador conduz a história através do discurso indireto livre. As personagens são
apresentadas primeiramente pelo que são, daí o apelo social desta geração, mas depois são reveladas
ao leitor a partir de suas angústias. Lula de Holanda e Vitorino não seriam um bom exemplo disso,
mas o amargurado José Amaro, com certeza.
Outro aspecto muito interessante em Fogo Morto é a proposital intenção de colocar o leitor em
contato tanto com a cultura nordestina e principalmente com o linguajar rasteiro e cotidiano, às vezes
vulgar, da gente menos favorecida e também dos endinheirados sem educação. Novamente, como em
A Bagaceira, a honra, a palavra empenhada, as tradições familiares e a religiosidade cristã são
realçadas. Outro aspecto interessante é a força mística que o sertão emana, não só em suas missas e
terços caseiros, mas em suas histórias de assombração que trazem o medo coletivo, por exemplo na
questão do lobisomem que o mestre José Amaro pode vir a ser. Não esqueçamos também da maneira
sagaz que o autor encontrou para opor a ostentação voluntariosa dos senhores e das senhoras em suas
vestimentas e casas maravilhosas à miséria conformada e natural das personagens de classe inferior. É
também um livro de muitas personagens, mas todas com uma função primordial. Quando não estão
ligadas diretamente à teia narrativa que levará ao desfecho, por si só, representam tipos sociais como o
cego Torquato, o aguardenteiro, o caçador de avoantes, o bêbado, a negra cozinheira etc. Sem dúvida
alguma, Fogo Morto é um dos melhores livros do modernismo brasileiro, e o melhor texto de José
Lins do Rego.
29 - Seara Vermelha – Jorge Amado
Autor e Obra
Jorge Amado nasceu a 10 de agosto de 1912, no distrito de Ferradas, município de Itabuna, sul do
estado da Bahia. Em Ilhéus, passou a infância e iniciou os estudos primários. Fez seus estudos
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secundários ali mesmo em Salvador, onde cresceu sempre em contato com a cultura do povo da Bahia
exatamente partícipe de uma boêmia adolescente que iria marcar toda a sua obra de grande prosador.
Dali foi para o Rio de Janeiro ingressando na Faculdade Nacional de Direito, bacharelando-se em
Ciências Jurídicas, mesmo que jamais viesse a exercer a magistratura. Desde a mais tenra idade já
participava das letras de seu estado colaborando em jornais. Em 1945, foi eleito deputado pelo estado
de São Paulo, com participação na Assembléia Constituinte (1946), sendo responsável por várias leis
que beneficiavam a cultura, dentre elas a lei que assegura a liberdade de culto religioso. Em São Paulo,
conheceu o ideário comunista filiando-se ao partido. Por conta dessa relação precisou exilar-se na
Argentina, no Uruguai (1941-42), em Paris (1948-50) e em Praga (1951-52). Foi eleito em 6 de abril
de 1961 para a cadeira número 23, da Academia Brasileira de Letras. Em 1945 casou-se com a
escritora Zélia Gattai dedicando-lhe toda a vida e os escritos num amor iminentemente poético. É, sem
dúvida, o autor brasileiro que melhor representa a cultura de nosso país no exterior, cabendo aos
bruxos de plantão abrigarem-se em sua majestosa sombra. Obras: Primeira Fase: No país do
carnaval, 1932; Cacau/Suor,1933; Jubiabá/1935; Mar Morto/1936; Capitães da Areia/1937; O
cavaleiro da esperança; Terras do sem-fim/1943; Seara vermelha/1946; ( francas denúncias sociais que
correspondem ao período de intensa participação política do autor pelo Partido Comunista Brasileiro).
Segunda Fase: A partir de 1958, com o romance Gabriela, cravo e canela tem início um novo
momento, em que predominam a crítica aos costumes e a sátira, que passam a ter bastante aceitação
popular, pois surgem os textos Dona Flor e seus dois maridos/1967 e Tenda dos Milagres/1969 dentre
outros dos quais citamos: Os subterrâneos da liberdade 1954;Gabriela cravo e canela 1958; A morte e
a morte de Quincas Berro d'Água;Os velhos marinheiros; A bola e o goleiro; Pastores da noite1964;
Dona Flor e seus dois maridos1966; Tendas dos milagres 1969;Tereza Batista cansada de guerra1972;
O gato malhado e a andorinha sinhá 1976;Tieta do agreste1977; Farda fardão camisola de dormir
1979;O menino Grapiúna1981; Tocaia grande 1984; O sumiço da santa 1988;Navegação de
cabotagem; A descoberta da América pelos turcos,1992.
Momento
Pertencente ao Segundo momento modernista ( 1930 a 1945 ), Jorge Amado será também
marcado pela crítica social, ou seja, escreverá textos que terão como principal finalidade denunciar e
criticar as diversas injustiças do Brasil e do Nordeste como por exemplo a Seca, o Coronelismo, as
relações de trabalho injustas, o latifúndio , a marginalidade da infância, a prostituição e outros
defeitos de nosso país. A Geração de 30 ficará marcada também por esse tipo de texto, tanto que o
maior representante será Graciliano Ramos com os romances Vidas Secas, Angústia e São Bernardo.
Assim, se tivermos que enquadrar Jorge Amado e sua obra, devemos inseri-lo exatamente nesta
geração, mas sem esquecermos de sua contemporaneidade, pois os assuntos de que tratava ainda hoje
afetam a sociedade brasileira. O que temos, então, é um momento de preocupação social, o que
acabará marcando a obra de autores como Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes,
grandes nomes da poesia.
Resumo
Livro Primeiro
O livro começa com o narrador, em terceira pessoa, apresentando Arthur, capataz da fazenda do
Sr. Aureliano, homem muito rico que vivia mais no Rio de Janeiro que em suas propriedades. Arthur
é o chefe da fazenda, chefia os trabalhadores, grupo constituído basicamente de agregados, famílias
que trabalhavam a terra no regime de meia, ou seja, dividindo em 50% com o proprietário tudo aquilo
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que era produzido. Arthur coordena o trabalho dos meeiros e sabe que muitos não gostam dele. Não
reclamava. O melhor era saber que assim, com aquele trabalho, mantinha os filhos maiores estudando
na capital e que, um dia, um deles seria doutor.
Em seguida, o foco narrativo se direciona para a velha Jucundina que sofre pensando na volta
dos três filhos, que caíram no mundo, José, João e Nenem. Apresenta também uma velha chamada
Zefa, acometida pela loucura. O sonho de Jucundina era ver os três filhos regressando para ajudarem
o pai, Jerônimo, no plantio da terra. Noutra alternância, o foco agora é a personagem Gregório,
homem trabalhador que nunca se divertia, apenas trabalhava e juntava dinheiro para comprar seu
pedaço de chão. Pairavam sobre ele algumas desconfianças, homem assassinado à faca... nada era
certo.
Agora, o narrador volta-se para a história do negro Bastião, um velho tocador de harmônica que
era o único a ser dono de seu próprio terreno. Na verdade, suas terras foram um presente do coronel
Inácio, pai de Aureliano, que, com boca de bêbado, para fazer-se de bom para os amigos, dera-lhe o
chão onde ficava a casa do tocador. Bastião também não gostava de Arthur, mas o capataz admitia o
talento do negro tocador de sanfona. “negro besta!”, dizia.
A velha Zefa, conhecedora desde cedo das coisas sobrenaturais enchia o terreiro com sua voz
“Desgraçados! Desgraçados!” repetia numa voz cheia de pena e ternura. Alguns diziam que era Deus
que falava pela boca de Zefa. ( flash-back) Houve até o dia em que Zefa salvou a fazenda do
cangaceiro Lucas Arvoredo que vinha com tudo para saquear o lugar. A arma de repetição já estava
apontada para o peito das pessoas. Mas, na hora em que Lucas Arvoredo viu aquela criatura
desgrenhada,que não se penteava há anos, benzeu-se: “Que demônio é esse?” O cangaceiro mandou
restituir o dinheiro que já havia roubado e não quis levar mais nada. Ajoelharam-se os saltadores
enquanto Zefa dizia as suas preces: “ O mundo vai se acabar. O castigo de Deus tá perto, ninguém vai
se salvar... “ A única coisa que o cangaceiro levou foi o José, filho de Jucundina, que fugiu naquele dia
para se juntar ao bando.
Arthur e Felícia preparam-se para a festa. Arthur quer dar um bom presente à noiva para que os
colonos não tenham tanta raiva dele. Enquanto se arrumam, chega carta do Dr. Aureliano. Na carta, a
notícia fatídica: vendeu a fazenda! Todos os colonos devem ir embora. Arthur tem que ir à festa e dar
a notícia. “Meus Deus, que fazer?”
Desse ponto em diante, aberto como “ Os caminhos da fome” , com os meeiros já expulsos,
todos caminham pela caatinga, buscando um lugar melhor. O sonho de todos é ir para São Paulo, onde
dizem existir trabalho para todo mundo e nenhuma notícia de seca. O espaço do romance, nessa hora,
é descrito pelo narrador onisciente, com a imagem recorrente da morte que estruma o chão (
Seara) com o corpo dos infelizes que se arrastam pelo sertão, sertão dos coronéis, capitaneado pelos
jagunços, sertão que nunca será dos colonos. O momento histórico e político ( anos 20 e 30) é
colocado na fala do narrador. “Na caatinga habitam os cangaceiros, os soldados da vingança, os donos
do sertão...”p.61
Na caatinga surgem também os beatos mais famosos que enchem o sertão de orações estranhas e
ritos supersticiosos. Na caatinga habitam Lucas da Feira, Antônio Silvino, Corisco e Lampião. Os
imigrantes é que são os mesmos, indo para São Paulo, onde não existe nem terra nem dinheiro. Os
colonos, depois de entregarem suas casa e posses ao capataz, que foi mantido pelo novo dono,
atiraram-se pelo meio do sertão. Desde a noite da festa, depois de dada a notícia, Arthur foi mais
odiado ainda. Na mesma noite, Gregório deu-lhe um tiro no ombro. Uns achavam bem feito. Outros
remendavam:”Cachorro mandado não tem culpa”. A gente caminhava pela caatinga sonhando com o
país São Paulo, onde diziam que era fácil enricar. Na verdade, voltava-se mais pobre do que se havia
ido.
Assim, Zefa, Jerônimo, Jucundina, Agostinho, Gertrudes, Marta, João Pedro, Tonho, Noca,
Dinah, Jeremias, Marisca etc. vão pela vastidão arranhenta da caatinga( êxodo ). O bando encontra
uma outra família que também vai para São Paulo. Noca, a menorzinha, adoece. A viagem segue, a
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menina fica pior. Zefa, como ave de mau agouro, profetiza: “Vai morrer!” A família não queria
acreditar, mas sabia das dificuldades que ainda enfrentariam. Num vilarejo mais adiante, encontram
um mágico. Alegria e dor se misturam num espetáculo grotesco. O autor é mestre em criar situações
limites em que o agonismo das personagens vê-se diante de elementos de falso contentamento. Nesse
caso, temos a irrealidade das do mágico confrontando-se com a realidade grotesca da vida. Noca
entra em convulsão e falece. Zefa pede o corpo, mas a família não dá. Com o passar do tempo,
aumenta o desejo de Agostinho pela prima Gertrudes. Todos se preocupam. O pai da moça não quer
que a filha fique falada. Jucundina conversa com Agostinho e ele diz que não quer ir para São Paulo,
quer ficar em Juazeiro (BA) e casar com Gertrudes. Fica resolvido. A miséria só aumenta. Um dia, a
fome é tão grande no meio do sertão que comem a gata Marisca, bichinho de estimação de Noca, que
não estava mais ali para defendê-la. A cena é tocante. Morre Dinah. Os urubus comem o corpo dela.
Em seguida morre o jumento Jeremias. A caminhada prossegue. Jerônimo é internado:tuberculose
inicial. Três dias depois é liberado. Continuam a viagem e chegam às margens do Rio São Francisco.
Jerônimo e João Pedro tentam comprar passagens até Pirapora, de onde seguiriam para São Paulo em
trens pagos pelo governo. Tentam pechinchar, mas o bilheteiro não vende. Pagam reclamando e ainda
precisam aguardar o dia da partida.
Perto do São Francisco, ficam maravilhados. Havia alguma coisa inexplicável que os atraia para a
ira do rio. Ali, Marta encontra um jovem chamado Vicente que a compara com a estátua esculpida na
proa de uma barca. Paqueram. O lugar é marcado pela passagem dos imigrantes que ora descem para
São Paulo, ora adentram nos sertões arrependidos de conhecer a cidade grande. Enquanto o navio não
chega, vão ficando por ali, sobrevivendo à falta de comida e recursos. Apenas as passagens e o sonho:
São Paulo. As crianças maiores vão aprendendo coisas ruins, ficando com as mãos leves, virando
delinqüentes, aprendendo coisas dos moleques da cidade, principalmente sabedorias sexuais e
palavrões de todo tipo (lembre de Os capitães da areia ). Alguns árabes chegam vendendo coisas. As
mulheres se encantam. Outros viajantes davam notícia de uma certa Zefa que agora andava em
companhia do Beato Estevão e que este fazia tudo o que a velha mandasse. Jucundina, ao ouvir isso,
sabia que estavam falando da mesma Zefa que ela conhecia, velha e doida, a mesma que sumira na
caatinga. Jucundina também avalia que antigamente havia sido feliz na sua terra, com o marido e os
filhos. Noite quente, sertanejos amontoados. O navio surge. Vicente e Marta, que só andavam juntos,
agora entristecem. A polícia chega para organizar a partida. Embarcam. Os marinheiros simpatizam
com o grupo de Jerônimo. Jogam baralho, contam histórias. O barulho pobre da terceira classe se
mistura com a música vinda do piano da 1a. Ernesto, uma das crianças de colo, morre de diarréia.
A retirada prossegue marcada pelas privações e pela novidade da própria viagem, pois a maioria
ali nunca havia andado em navio. Durante a viagem, um surto de caganeira e outro de febre acabam
com a vida da maioria dos tripulantes. A diarréia toma de conta da primeira e da terceira classe. A
coisa é tão séria que as pessoas não usam mais a latrina, defecam na borda do navio, diretamente nas
águas. As mulheres, no princípio, escanchadas no navio, tinham um pouco de pudor, depois, a merda
era tanta que ninguém ligava mais para certas vergonhas pessoais. ( o homem perde o pudor com as
desgraças e a honra com as necessidades) Os da primeira classe têm outras alternativas de alimento,
mas os miseráveis tudo que possuem é o mar e os peixes repetitivos para comer. Pessoas mortas são
jogadas no rio para as piranhas, pois não é possível fazer um enterro decente. Finalmente
desembarcam.
A pior parte da viagem aconteceria em Pirapora, pois era ali que um médico, o Dr. Epaminondas,
examinava a todos e dava-lhes um parecer, o que diria se o retirante viajaria ou não para São Paulo.
Acontece que esse médico era um homem já cansado da profissão, já transformado pelo ambiente de
degradação. Divertia-se apalpando, durante o exame, as poucas carnes de algumas moças. Geralmente,
ao dar a negativa de viagem aos pais, aproveitava-se da filha o quanto podia, para em seguida ver
todas aquelas moças prostituindo-se na rua do baixo meretrício. Via tudo isso como uma circunstância
comum àquela vida. Sua clientela já fora herdada de um outro médico, tão acostumado quanto ele
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àquela situação. Na chegada da família de Jerônimo, seus olhos, imediatamente, bateram sobre Marta,
pálida e triste, mas de carnes rijas, que tinha um pensamento distante, pensava em Vicente. Depois de
examinar Jucundina, Jerônimo e os menores, mandou que Marta entrasse. Disse-lhe que tirasse a
roupa. A moça era toda vergonha. Apalpou-a, acariciou-a disfarçando tudo num exame que não tinha
fim. Pulsava de desejo e já maquinava alguma maneira de aquela moça deliciosa deitar-se com ele.
Disse-lhe então que sua mãe estava bem, que com algumas vitaminas poderia viajar. Os irmãos
estavam bem, mas o pai Jerônimo, tinha uma doença que precisava ser examinada melhor, que talvez
não fosse grave, mas que inspirava certos cuidados e eles teriam que demorar um pouco mais por ali.
Marca para vê-los no dia seguinte, quando insiste que a moça precisa tomar uma vacina que seria
aplicada nas nádegas. Só então revela-lhe que seu pai está doente, com tuberculose, e que dificilmente
ele conseguiria o visto para viajar. Mas, como ele também poderia conceder esse visto, mesmo que
fosse uma falta de ética de sua parte... com seu poder, poderia dar um jeito... Mas algumas coisas
exigem outras em troca... Muda de assunto e diz que enquanto eles ficarem por ali, Marta pode
trabalhar em sua casa. No final, dá-lhe um dinheiro para que se alimentem, e ainda arranja um lugar
para família se abrigar até a chegada do trem que os levaria a São Paulo. Marta passa a trabalhar na
casa do médico. Logicamente, passa a ser assediada por ele, que tenta seduzi-la oferecendo-lhe o visto
do pai que os liberaria para a viagem. Marta resiste.
No entanto, à medida que o tempo passa, a jovem compreende que sua família jamais sairia dali.
Um dia, a jovem chega trazendo na mão o visto do pai. Sua cara triste não consegue enganar
Jucundina, que pergunta se o médico “ fez mal a ela”. Ela confirma.. A mãe entristece, pois sabe que o
pior seria quando o pai descobrisse a verdade sobre aquele bilhete. Alguns dias passarão até que o
trem chegue, mas antes disso, nas conversas pelos arredores, alguém joga na cara de Jerônimo que ele
não tem escrúpulos, pois deu a honra da filha em nome de uma passagem. O velho sertanejo fica com
ódio da filha, expulsa-a e diz que não quer mais vê-la. Marta vai para a rua das prostitutas. Por ser
bonita, arranja muitos clientes e logo adoece. Sua dor aumenta quando Vicente aparece. O rapaz,
depois de vê-la, bebendo com alguns homens, vai embora triste. O trem se aproxima. A família de
Jerônimo embarca deixando para trás mais um membro, Marta, que, de longe, em uma das esquinas,
acena envolta em um vestido vermelho que, segundo eles, jamais será visto novamente. O pai é só
tristeza. O trem apita na curva.
Livro Segundo
O livro segundo se inicia com um combate entre o bando de Lucas Arvoredo e uma pequena
facção militar. Os policiais atiravam a esmo e tinham um medo indescritível daqueles seres que
pulavam rangendo os dentes e atirando ao mesmo tempo como animais municiados. No meio dos
militares havia um jovem tenente que, no calor da batalha, pensava em sua esposa e filho, ambos numa
cidade próxima. Sabia das dificuldades, mas a morte do cangaceiro lhe daria uma promoção e também
uma transferência para outro lugar melhor. As lembranças são interrompidas pelos tiros que soam
mais perto. O tenente é atingido pelo bandido mais cruel do grupo de Lucas Arvoredo, um certo Zé
Trovoada, que se alegrava ao matar policiais, principalmente graduados. Depois de matar o tenente,
Zé Trovoada encontrou a foto da esposa do oficial. Guardou-a consigo. O bando rumou para a cidade
de Graúna. Entraram dando tiros para o alto. Algumas pessoas tiveram tempo de fugir. Alguns homens
ainda esconderam mulheres e crianças no mato. Lucas mandou chamar o prefeito e exigiu trinta contos
de réis para deixar a cidade. O prefeito saiu para arranjar o dinheiro com os comerciantes do lugar. Os
bandidos começam a saquear a cidade. Na loja de um turco, Zé Trovoada fica encantado com um
patinho movido à corda. Quando o bichinho funcionava todos ficavam ao redor com olhos de criança,
nem pareciam os bandidos que ameaçavam o sertão. ( compare com Capitães da Areia). Zé Trovoada
é o mais fascinado. Depois disso, foram para um hotel onde lhes foi servido comida e doce. Lucas
queria ver um filme no cinema da cidade. Ordenou que todos fossem levados para o cinema. Homens
156
e mulheres eram arrastados para o cinema. Lucas também avisa que vai haver uma festa. Tudo pronto,
o filme começa. Era um filme de cow-boy. Depois de ver a fita várias vezes, Lucas mandou passar o
filme de cabeça para baixo. Disse que gostava mais assim. Ao final da exibição, a música começou. A
cachaça era dada aos músicos e às mulheres, todos tinham que beber. Zé Trovoada arrasta a viúva do
tenente. Lucas Arvoredo manda todo mundo tirar a roupa. Era um baile infernal. O juiz e a esposa (
parecida com um elefante ) foram obrigados a dançar uma valsa. Sua nudez era grotesca. Os
cangaceiros riam. Zé Trovoada, como um bicho, partira para cima da viúva, mas ela, de forma
corajosa, o empurrou e perguntou-lhe se ele não tinha mãe, se não se envergonhava daquilo. Zé
Trovoada ficou paralisado, lembrando de Jucundina. A imagem de sua mãe salvara a viúva daquele
animal. A moça vai embora correndo para ver o filho. Zé Trovoada olha para os lados e escolhe uma
das mulheres que ninguém quis: - Vem cá, pata choca... se se mexer eu meto a faca!” A música agora
era trocada pelos gritos das mulheres na posse obrigada. Muitas foram possuídas ali mesmo, na frente
dos pais e maridos. O baile infernal terminou. Lucas Arvoredo vai ao extremo, marca com ferro e fogo
a mulher que escolhera. O cheiro de carne queimada ficou no ar. Fugiram num caminhão velho; depois
se embrenharam na caatinga.
O narrador assegura que a única diferença entre os cangaceiros e os policias, que também
estuprava e capavam, era o respeito com alguns fazendeiros, pois só Lucas Arvoredo também os
atacava. Nos jornais da Bahia a noticia era sobre José: “O remorso paralisou as mãos do bandido”. O
bando foi se esconder na fazenda de um senador influente. Mas o velho político sabia que aquela
amizade poderia lhe trazer problemas. Já pensava em traí-lo. Lucas não desconfiava, nem mesmo
quando o senador sugeriu que ele fugisse para o outro lado do rio, para outro estado.
As noites de Lucas Arvoredo na casa do senador eram de festa. Assim, mandou buscar um
sanfoneiro famoso que estava de passagem por ali. Era Bastião, um amigo da família de Jucundina.
Quando Bastião chegou reconheceu Zé Trovoada. O sanfoneiro contou sobre a expulsão da família de
Jerônimo; sobre as ordens do novo dono. Zé Trovoada disse que riria aparecer por lá, pois destruir
aquela fazenda seria um prazer. Assim fizeram. Destruíram e queimaram tudo. Na volta, a polícia os
interceptou. Alguns foram feridos. Lucas Arvoredo percebeu que a polícia parecia saber a sua direção.
Lembrou-se do senador. Fora traído. Rumou imediatamente para a fazenda. Lá, matou friamente o
político que pensou ser mais esperto que ele. O grupo sumiu por dois meses. Sabiam que agora a
captura do cangaceiro era um ponto de honra. Foi no esconderijo que receberam um emissário do
Beato Estevão. “Meu pai Estevão manda dizer que vosmecê leve quanto homem puder, e tudo que for
arma que o baruio é grande...” Organizaram os homens. Durante seis dias e seis noites avançaram
entre os espinhos. Na sétima noite avistaram o acampamento do Beato. O vento trazia um ruído de
orações cantadas pelo povo que seguia Estevão. Lucas parou , dobrou os joelhos na terra, os outros
cangaceiros o imitaram, fizeram o pelo-sinal e avançaram humildemente no rumo da cantoria.
Em seguida, temos a história de Jão, na verdade João, mais um dos filhos de Jucundina. João é da
polícia e, no momento, faz um cerco ao grupo do beato. Está preparado para tudo, inclusive para
morrer. Em seu íntimo, sabe que, se não fosse um policial, facilmente seria mais um dos seguidores do
beato. Era sertanejo também e sabia que Estevão era um tipo de conforto para sua gente. No entanto,
estavam em lados opostos. Faria o que tinha de ser feito. Todas as tardes, João subia um monte e
ficava observando o sertão. Pensava em sua vida, em sua fuga de casa, na chegada à cidade, e nas
dificuldades passadas até ingressar na polícia. Viu quando Lucas Arvoredo chegou com seus homens.
Não pensava na morte. O mundo ia-se acabar, como dizia o beato. O narrador agora apresenta o Beato
Estevão.
“ Ninguém sabia de onde ele vinha , quem era, quando chegara, nem sua idade,nem seu nome por
inteiro. Chamava-se Estevão, sobrenome não possuía, o seu bordão que parecia uma cobra cascavel,
trazia poeira de muito caminho percorrido, as alpargatas velhas e rotas, o camisu salpicado de lama
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seca de muitos dias. A barba alva e revolta, não muito densa,descia-lhe sobre o peito, os cabelos
compridos, brancos também, escorriam sobre o pescoço até o princípio das costas.” P.240
Sua voz era sugestiva e terna parecendo uma voz de criança, confortando a gente do sertão sem
muitas perspectivas. Sua benção era milagrosa, curva doenças e feridas, evitava pragas de plantação,
expulsava os maus espíritos e fechava o corpo dos homens contra cobras venenosas e balas assassinas.
Como duvidar do seu poder sobrenatural? Nenhuma palavra, nem a dos padres, podia contra ele. Mais
rápido que ele era o seu nome, se espalhando pelo sertão onde a fome cria santos e bandidos.
João lembrava de sua vida, da infância, da cidade.Lembrava da carta mandada por sua tia Dinah
dando notícias da fazenda, da expulsão de todos, do tiro em Artur. O que não supunha era que seu
irmão José, também fugido, estava agora a alguns metros de distância, defendendo o beato. Não sabia
que José era o mesmo Zé Trovoada, braço direito de Lucas Arvoredo, tão sanguinário quanto o chefe
do bando. O narrador fala da bondade do beato, do perdão dado a Cirilo, seu emissário, que matara a
esposa e os filhos por medo de traição. Conta a chegada de Zefa, da forma como foi recebida pelo
beato que disse a todos que ela era santa, uma santa da verdade.O sertão passou a ter dois santos. Nas
palavras do beato, a tonalidade social: “Menino morrendo sem ter de comer. Os homens morrendo
sem ter tratamento. Os homens sem terra suando na terra de outro... Gente cum tudo... gente cum
nada... Deus achou ruim, num tava direito. Deus tá cansado de tanta ruindade... o mundo vai se acabar!
“. Os policias atacavam o beato, que já tinha mais de cem homens consigo, outros sempre a caminho.
A policia atacava os romeiros. Foi por isso que o beato mandou chamar Lucas Arvoredo. Na chegada,
Zé Trovoada reconheceu a velha Zefa, primeiro pela voz, depois pelo semblante. Não se manifestou.
Achou que ela era mesmo santa. Arrependeu-se até das brincadeiras de menino. Ajoelhou-se e recebeu
o batismo de cinza das mãos da própria Zefa. Os amigos cochichavam orgulhosos: “É tia de Zé
Trovoada”. Naquela hora não havia limites entre a realidade e a imaginação. O combate começou. Zé
Trovoada avançava. Do outro lado a polícia resistia. Havia gente corajosa entre eles. Era João, sem
saber que à sua frente, quem atirava e gritava era José. Quando se aproximam as facções, Zé Trovoada
levanta e faz pontaria. João ainda pôde ver o rosto do irmão no lampejo da arma. O tiro foi certeiro.
Trovoada tinha a boca apertada de raiva. João morrera sorrindo, compreendera que o tal do Zé
Trovoada era José, seu irmão. Ainda teve tempo para pensar no irmão. Desejou que escapasse com
vida; o beato também. Os soldados avançavam. O combate não terminava. Lucas Arvoredo levou um
tiro na cabeça. Em seguida, um soldado fez pontaria e acertou o peito do beato. Zefa pulou para cima
do soldado, o soldado deu-lhe uma coronhada e depois que a velha foi ao chão atirou impiedosamente.
Zé Trovoada, com poucos homens,precisou fugir, pois viu a derrota no acampamento.
Na fuga, pisou no rosto de um soldado, disse um palavrão. Mesmo assim, João sorria... Os
soldados cortaram as cabeças de Lucas, Estevão e Zefa e levaram para a cidade como troféus. Até o
capitão, que não era de literaturas, escreveu um livro: “O NOVO CANUDOS”
O sertão esqueceu o nome do beato Estevão, esqueceu o nome de Lucas Arvoredo. Mas o nome
de Zé Trovoada estava apenas começando. E por aquelas bandas, as trovas que antes eram feitas em
nome de Lucas, agora tinham um novo mote: “Trovoada já chegou/ muito sangue vai correr...”
A última parte do livro é dedicada à vida de Nenén, um dos filhos de Jucundina que, depois de
algum tempo na polícia, acabou ingressando no Exercito Brasileiro. Seu nome é Juvêncio, é cabo de
um batalhão em Natal e tem participação nas revoluções da década de 30, principalmente a Revolução
Constitucionalista. No momento, é membro do Partido Comunista e tem vínculos com a Aliança
Nacional Libertadora. Uma grande revolução está pronta para acontecer no Brasil, algo que pode ser
levado ao extremo com a ajuda do General Luis Carlos Prestes, que tomaria conta da revolução.
Juvêncio é respeitado por todos os colegas, praças e oficiais. É um homem de brios, honesto e
corajoso. Tem uma esposa de nome Lurdes que enfrentou a família para estar ao seu lado. Lembravase de José que devia estar no bando de Lucas Arvoredo. Pensou que ele também teria acabado virando
jagunço se não fosse policial. Também entendia que os jagunços tinham sua razão, pois sua mãe
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Jucundina nunca dissera nada contra os cangaceiros que levaram seu filho. Tinham seu ideais. Lucas
Arvoredo, com seu bando de jagunços, parecia um destemido vingador da gente sertaneja. Lembravase da briga de João por causa da filha de Ataliba, mais um a ir embora. Ele fora o último, estava ali.
Engajou no Exercito. Foi para São Paulo. Conheceu o Comunismo. Muitos no exército também eram.
Foi herói no Mato Grosso e na Amazônia, pois numa missão de desbravamento, onde havia índios, o
próprio tenente comandante do grupo desertou, fugindo com medo dos índios. Juvêncio ficou,
organizou os poucos homens restantes, fez fortificações e resistiu até a chegada dos reforços. Os
homens o admiravam. O clima esquenta e todos os militares que se insubordinavam estavam sendo
transferidos. As esposas dos outros militares que acompanhavam Juvêncio ficam com medo da
transferência.Lourdes tentava consolá-las. Estava com barriga de oito meses. O movimento, marcado
por levantes nos quartéis, chegou a Natal, estava marcado para as duas da manhã. Sua calma assustava
os colegas. Em seguida, os soldados, comandados por Juvêncio e Quirino, colega de partido, tomam o
comando do 21o.BC.
Durante a investida, Juvêncio é atingido. Socorrido por amigos,olha para o mastro e vê a bandeira
vermelha tremulando. Sorri e desmaia. Lurdes vai visitá-lo. As freiras do hospital dizem que ele não
faça esforços. Vários quartéis no Brasil inteiro revoltaram-se durante aquele dia. A Aliança estava
funcionando. O que Juvêncio não sabia era que, na maioria dos estados, forças reacionárias eram
montadas. Às vezes, a própria polícia, aliada na maioria dos casos, dava combate aos insubordinados.
Juvêncio estava otimista demais. Ao sair da enfermaria foi informado que a maioria dos soldados
revoltosos,além de se divertirem bebendo cachaça e levando prostitutas para o quartel, queriam matar
os oficiais presos. Juvêncio, mesmo ferido, consegue conter os ânimos e convencê-los de que lutam
por uma causa e que não são assassinos. Apenas o cabo Conceição insistia em aliciar os soldados
contra Quirino e Juvêncio. Juvêncio prende Conceição e depois manda fuzilá-lo.
No dia seguinte, Juvêncio fica sabendo que a revolução enfraquecia, que fuzis silenciavam na
Paraíba e no Recife. Um batalhão marchava para Natal. Estavam chegando. A maioria dos soldados
resolveu fugir. Juvêncio disse que ficaria até a última hora. Deu ordem para que todos fossem embora.
Depois, retirou a bandeira vermelha do partido que tremulara por quatro dias sobre a cidade de Natal.
Os outros soldados não iriam ter o prazer de retirá-la. Ferido, Juvêncio foi lentamente para casa. O 22o.
BC entrava na cidade sob música e flores. Entrou em casa e encontrou Lurdes sentada em um sofá.
Colocou a cabeça no colo da mulher e percebeu que vinham dela um descanso e uma paz indizível. No
seu ventre um criança se preparava para nascer.
“Juvêncio fechou os olhos. Agora não pensava em nada, sentia apenas aquele calor vindo da esposa, e
parecia que tudo havia terminado, que aquela paz e aquele sossego eram para todo o sempre. Lurdes
passou as mãos no cabelo chamuscado, ele sorriu levemente. As sombras do crepúsculo desceram
sobre a sala.” P.328
Crítica
Iniciando sua carreira de escritor ainda em 1922, com textos de pouca relevância, Jorge Amado
ficou marcado profundamente por esse movimento que tanto afetou o modo de pensar Arte no Brasil,
principalmente a intenção de termos uma cultura própria. Por isso, em São Paulo, escritores, pintores e
poetas contextualizavam um modo de resolver o problema da identidade nacional, a partir de uma
produção artística voltada para sua própria cultura. Como podemos constatar, a sua obra inclui pérolas
como "Mar Morto", um retrato mágico da vida arriscada dos pescadores e canoeiros do litoral
nordestino e da magia que o mar exerce no controle da vida e no descontrole da morte; ou "Cacau" que
descreve sem estilo ou estética a vida dos assalariados do cacau, moralmente dominados pelos
coronéis, mas impulsionados por uma íntima convicção pela melhoria de suas condições de vida, ou
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ainda "Tenda dos Milagres" que revela o mundo mágico dos cultos afro-brasileiros. É essa narrativa
fruidora que fez de Jorge Amado um dos maiores escritores do século XX no Brasil, cuja produção
literária é a mais conhecida mundialmente.
Jorge Amado, em largos painéis coloridos, retrata o regionalismo nordestino, mostrando a
desgraça e a opressão do negro, do pobre e do trabalhador, nas zonas cacaueiras e urbanas da Bahia.
Através desses tipos marginalizados, apresentados com humanidade, simpatia calorosa e um vivo
senso do pitoresco, analisa toda uma sociedade. Um grande expoente do Modernismo, sua maturidade
literária se revela na capacidade de mesclar realismo e romantismo, lirismo poético e documento em
sua narrativa, cuja linguagem explicita o falar de um povo e cuja ideologia se sobrepõe na forma de
uma necessidade premente de justiça social. O caráter político e revolucionário das obras iniciais não
se encontra nos romances pós década de 50, o que tem feito críticos dividirem sua obra em diferentes
temáticas. O Romance Proletário que retrata a vida rural e citadina de Salvador, com forte apelo
social. Incluem-se nesse tipo: Suor, O País do Carnaval e Capitães da Areia [ver Antologia]. O "Ciclo
do Cacau" tem como temas os latifúndios da região cacaueira e as lutas que, em tom épico, retratam a
ganância dos coronéis, a exploração do trabalhador rural. Pertencem a esse ciclo: Cacau, Terras do
Sem Fim [ver Antologia] e São Jorge dos Ilhéus. A Pregação Partidária constituída por um grupo de
escritos de cunho político: O Cavaleiro da Esperança e O Mundo da Paz. Sua última fase se compõe
de Depoimentos Líricos e Crônicas de Costumes iniciando-se com Jubiabá e Mar Morto, cujos
temas giram em torno das rixas e amores marinheiro. Consolidam-se com Gabriela, Cravo e Canela
que, mesmo tendo Ilhéus e problemas políticos, como pano de fundo, tende mais para crônica
amaneirada de costumes. Nesse momento, a ideologia que permeia as obras de 30 e 40 foi
abandonada. A partir daí, tudo se dissolveu "no pitoresco, no saboroso, no apimentado do regional",
como diria o crítico Alfredo Bosi.
30 - O sorriso do lagarto - João Ubaldo Ribeiro
Autor e Obra
João Ubaldo Ribeiro nasceu em Itaparica, na Bahia, e como bom baiano que é nunca deixou de
cantar as excelências de sua terra. Jornalista, romancista, contista, cronista e professor, autor de muita
versatilidade, nunca aventurou-se na poesia. Durante boa parte de sua infância, viveu em Sergipe, ao
lado do pai que era professor e político. Voltou para a Bahia e entrou para a faculdade de Direito (
UFBA ), mas nunca exerceu a profissão. Passou um ano em Lisboa, um ano no Rio de Janeiro,
fixando-se novamente em Itaparica, onde viveu mais sete anos. De 1990 a 1991, morou em Berlim (
Alem. ). Casou três vezes e tem, atualmente, quatro filhos. É pós-graduado em Administração pública
e Ciências Políticas. Obras: Romance: Setembro não tem sentido(1968); Sargento Getúlio(1971);
Vila Real(1979); Viva o povo brasileiro(1984); O sorriso do lagarto(1989);O feitiço da ilha do
pavão(1999);A casa dos budas ditosos(1999); Diário do Farol(2002). Conto: Vence-cavalo e o outro
povo(1974); Livro de histórias(1981); Histórias pitorescas(1977). Crônicas: Sempre aos
domingos(1988); Um brasileiro em Berlim( 1995); Arte e ciência de roubar galinha( 1998); O
Conselheiro Cosme (2000). Ensaios: Política, quem manda, por que manda, como manda(1981);
Literatura Infanto-juvenil: Vida e paixão de Pandomar, o cruel( 1983); A vingança de Charles
Tiburone ( 1990).
160
Momento
Considerado, acertadamente, um autor contemporâneo, João Ubaldo Ribeiro foge a certos
enquadramentos, pois a sua narrativa, iniciada na década de 60, tanto recebe influências do PósModernismo de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, como recebe todo o aparato sociológico, cultural
e político do momento que corresponde à Ditadura Militar e ao AI-5. É um autor, acima de tudo,
voltado para o Brasil, não num nacionalismo bobo, próprio de autores de “encomenda”, mas um autor
de retina aguçada, que consegue ver o mais fundo possível no meio desse lamaçal que é a política
brasileira. Sofre influências machadianas, certamente, e por isso é dado ao psicologismo, mas todos
os outros requintes de sua obra devem-se, basicamente, ao seu próprio tempo, coisas como o cinema, a
literatura , a música, a ciência e a tecnologia. Dado a temáticas sócias, insere-se também no realismomágico, de situações fantásticas como um lagarto que sorri. Vez em quando, adere ao grotesco, ao
escatológico e até à ficção científica. No entanto, acima de tudo, o que encontramos é uma visão
profunda e pessimista sobre o Brasil de ontem, de hoje e de amanhã.
Resumo
Capítulo 1
O romance começa com o narrador, de forma onisciente, falando sobre um dia que, de forma
indefinida, pressagiava alguma coisa que dificilmente seria boa. Passa então a falar sobre um homem
que parava o seu barco na enseada. Este homem é João Pedroso, pescador e peixeiro, morador da ilha (
provavelmente Itaparica) que era chamado por um grupo de meninos que lhe mostravam um
calanguinho de dois rabos que carregavam numa caixa de sapato. João, biólogo mal formado,
conhecedor superficial das coisas, crítico de si mesmo e pessimista ( lembre de Memórias Póstumas)
diz que aquilo não é nada demais, pois o bicho pode estar apenas mudando de rabo e o outro ainda não
estava totalmente despregado, ou seja, dá uma verdadeira aula de biologia para as crianças que nada
entendem. Sai e passa a pensar, intrigado, sobre aquilo. Depois concluí que não seria nada demais
mesmo. Continuou caminhando para a peixaria. No caminho, entre umas folhas percebeu a presença
de algum bicho. Aproximou-se e viu, em cima de um muro, um lagarto que, estranhamente, lhe sorria.
O que mais o perturbou foi que era um sorriso irônico, um sorriso que indicava alguma coisa que ele
não sabia o que era. Teve medo. Medo de um futuro muito mais que incerto. Chamou de coincidência.
Como é que pode, um lagarto rindo? Bobagem. Ignorou.
Em seguida, o narrador nos apresenta o Dr. Ângelo Marcos, médico não clinicante que, agora
envolvido com a política, leva uma vida de luxo e de orgias, mas sem esquecer alguns valores morais
como honestidade, escrúpulos etc. ( você acredita? ). Marcos é casado com Ana Clara, mulher bonita,
muito atraente, que vive um casamento de aparência, pois o marido não demonstra muito interesse por
ela, tanto que já tem amantes. Ela se conforma. Ângelo Marcos, no momento, ocupa um cargo
importante na Bahia, na área da saúde pública. Ana Clara é amiga de Bebel ( pense numa criatura
destrambelhada) que tem um marido, mas não dispensa uma orgiazinha com os amigos, um casamento
liberal que faz com que tenha uma filosofia de vida: “Explorar o lado lúdico das coisas “. É esposa de
Nando e caso de Tavinho, que é o seu ex, um riquinho drogado que vive para transar e cheirar cocaína.
Resumindo, sempre que dá certo, na base de muita cocaína e maconha, todo mundo fica com todo
mundo. Ana Clara não aceita isso. Continua fiel, sem motivos. O capítulo encerra com a chegada do
Dr. Lúcio Nemésio, médico da cidade, agnóstico, iconoclasta, ateu e arrogante em sua inteligência,
conversando com João Pedroso sobre um caso de echinococcus ( lombriga na cabeça ) em um menino
da região. Conversam sobre isso e sobre a presença de cientistas americanos na ilha.
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Capítulo 2
Ângelo Marcos recebe a notícia de que está com câncer, uma protuberância no reto que o faz
esvair-se em sangue numa simples cagada. ( a linguagem agora vai ficando mais pesada e mais
atraente ). Pensa em se matar, mas encara o problema e diz que vai se tratar. Tudo que estava
acostumado a fazer e a comer, agora, tem um controle. Ana Clara, sedo da doença do marido, é
solidária. Começa a escrever um livro, faz anotações assinando com o pseudônimo de Suzana
Fleischman. Sua vida passa a ser ficcionalizada e algumas considerações de ordem feminista e amorais
passam a surgir no livro. Cenas de sexo narradas e descritas com detalhes escatológicos, e até
nojentos, passam a chocar, de certa maneira, o leitor.
Era em cena um padre chamado Olavo Monteiro ( Monteirinho ) amigo de João Pedroso,
orientador espiritual da ilha, que tenta levar o astral do amigo, verdadeiro fracassado e cachaceiro, em
sua própria opinião. Monteirinho diz-lhe que não se martirize tanto. João Pedroso bebe. Para variar. ( o
bicho é uma esponja ). O discurso indireto livre toma conta de quase todo o romance, havendo
apenas algumas falas no discurso direto. Há uma relação intertextual com Machado de Assis ( “Nem
filhos fiz! Não fiz nada! “p 62 ) e Dostoievski ( Crime e Castigo p.59). Lúcio Nemésio, um dia,
conversa com João Pedroso que lhe pergunta sobre a possibilidade dos animais terem alma . A
conversa fica cheia de termos científicos, latinismos e teorias biológicas. Questionam a vida, as artes.
O que é a dança? O que é a música?. Os bichos, as plantas e os insetos têm alma? (Boa pergunta).
Capítulo 3
Nesse capítulo, temos o encontro do casa Ângelo Marcos e Ana Clara com o pescador João
Pedroso. Num primeiro instante, não há nada demais. No entanto, quando Clara percebe que aquele
homem, pela sua conversa, não é nenhum matuto de praia e que por isso oferece uma aura de mistério,
encanta-se. ( Vai já explorar o lado lúdico... ) procuram um “marcador “para saírem de barco. João se
oferece. Bebel chega e saem. No barco, durante a pescaria, Bebel e Clara insinuam-se para João
Pedroso, que não liga muito para as duas, mas, ao final fica muito impressionado com aquela mulher
linda de olhar infeliz. Ângelo Marcos passa a sentir o efeito da quimioterapia. Compra perucas
importadas. Impacienta-se com os pardais que voam ao redor da casa. Pensa em matá-los. Monteirinho
avalia o motivo que o levou a ser padre. Pensa na mulher que lhe atormenta a mente dia e noite.
Graças a Deus já está passando. Sua fé vai-se fortalecendo. Reza em silencio.
Capítulo 4
Ana Clara e Bebel organizam um almoço de aproximação. Todos estão convidados,
principalmente João Pedroso, pois ela pensa em aproximar-se dele. Bebel dá cobertura e eles
conseguem trocar alguns afagos. Monteirinho convida João para ir à sua casa e chamam-lhe a atenção,
pois sabe que logo, logo, João Pedroso vai incorrer em pecado. João desconversa, mas o padre diz que
não adianta disfarçar, pois já perceptível o que ele sente pela mulher de do Dr. Marcos. João Pedroso
assume e diz que, se for pecado, o pecado é dele e que Monteirinho só precisa não se importar.
Monteirinho diz que, como amigo, poderia ignorar, mas como padre não. Falam de Satanás o
“adversário”. Discutem Teologia e filosofia. Por que Deus não salva Satanás? ( outra pergunta
interessante ) Continuam discutindo. Diz que não quer continuar a amizade com ele porque todos
podem dizer que ele é cúmplice. João fica com raiva, mas aceita. Separam-se arrependidos. Será o fim
de uma amizade? No almoço, em que todos comparecem, Ângelo Marcos não desconfia de nada e a
paquera entre João e Clara rola solta. Marcos destrata um garçom negro comparando-o com um
macaco. Lúcio Nemésio mostra seus conhecimentos, não defende o negro, mas prova, com palavras
também de João Pedroso, que os brancos parecem muito mais com o macacos. A discussão agora é
162
sobre genética e evolucionismo. Clara, ajudada por Bebel, consegue se encontrar com João no andar
de cima da casa. Calados, em cima da mesa do escritório do marido, transam louca e silenciosamente.
No fim do almoço, seguranças de políticos e pedintes brigam pelas sobras.
Capitulo 5
Padre Monteirinho recebe um convite do macumbeiro Bará. Guiado por um jovem de família
estranha, Mãozinha Três ( ainda tem 1, 2, 4, e 5 ), o padre chega ao esconderijo do macumbeiro. Bará
revela-se um homem estudioso e calmo, não quer briga com a Igreja, mas diz que precisa avisar ao
povo da cidade, através do padre, de algo muito ruim que está acontecendo ali. Uma pescaria é
organizada só entre os homens. Marcos, Tavinho, Nando e João Pedroso. Conversam sobre tudo,
principalmente sobre suruba. Marcos conta a história de Boa Ventura, um pistoleiro perigoso que
começou matando pardais. Diz a todos que ele mete medo principalmente porque dizem que para
completar é viado. Uma bichona enrustida que age de acordo com a ocasião. Na opinião dele isso é
inaceitável, o pior tipo de indivíduo. Diz que não gosta nem de penar na idéia de ver um macho
chupando a língua de outro. Lembram-lhe que ele tem um empregado que é bicha assumida e
espalhafatosa, um tal de Cornélio ( pense na Lacraia ). Ele diz que aceita porque é o jeito, ele cozinha
bem, mas vacilou vai pro olho da rua. Tavinho pensa em pescar um peixe grande, colocar um
pouquinho de cocaína na boca do bicho e soltar de novo pra ver o bicho endoidar. O dia segue calmo.
Na casa de Bará, uma cigana, incorporada, de nome Carmem, confirma que a ilha está à mercê do
Mal. Bará explica. Três criaturas horrendas, cara de bicho, talvez macaco, foram vistas nos arredores.
Estão escondidas. As mães estão fugindo de algo ou de alguém que ele não sabe quem é. Diz ao padre
que tome cuidado. O padre não acredita. A pescaria chega ao fim. Voltam todos para casa. Ângelo
Marcos, em seu quarto, lembra do encontro que tivera com Boa Ventura, da forma como ele lhe
beijara e da violência como fora penetrado. Lembrou dos beijos, os dois nus na cama, a força do outro
entrando por trás, as mordidas na orelha... Parou de pensar, o esperma escorria pelo calção. Queria
matá-lo, mas sabia que nunca resistia ao seu poder. ( égua! ).
Capítulo 6
João Pedroso encontra Monteirinho. Matam as saudades, pois estavam sem se falar, e
Monteirinho diz que recebeu uma carta de Bará. Conta a João todo o episódio na casa do curandeiro,
quando o mesmo lhe falou que coisas misteriosas estavam acontecendo na ilha. João Pedroso fica
sabendo sobre três crianças com aparência de bicho ( provavelmente macacos ) que estavam
escondidos nas redondezas. Avisa a João que o curandeiro também gostaria de falar com ele, talvez
pelo fato de ser biólogo. João Pedroso explica a Monteirinho que se as criaturas podem ser obra do
próprio homem, pois cientistas, em várias partes do mundo, já andam fazendo experiências misturando
genes de animais gerando criaturas híbridas. João diz que duvida que Bará tenha visto mesmo criaturas
assim e fica encucado com a idéia de que o macumbeiro sacrifica carneiros em alguns rituais. João vai
embora bêbado. Enquanto isso, Ana Clara pensa nele, na possibilidade de transarem logo mais à tarde.
Bebel chama-lhe a atenção, pois nunca esteve tão envolvida, e isso não é bom par o lado lúdico. Sem
ligar para os avisos da amiga Ana Clara e João passam a tarde transando e são tomados por uma
esquisita felicidade. Ângelo Marcos lembra da negrinha que ele faturou no hotel. Ao chegar em casa,
encontra os cadernos de Ana Clara com as anotações de Susana Fleischman, brigam feio. Ângelo
Marcos bebe com amigos e a conversa gira em torno de traição. A idéia de levar chifre o atormenta. O
menino que tinha lombriga na cabeça morre. João Pedroso descobre que o menino esteve na casa de
Bará, que tinha muitos cães. João manda um recado por Mãozinha Três. Planeja encontrar-se com o
curandeiro. Pensa em Ana Clara.
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Capítulo 7
Ana Clara recebe uma notícia triste. Cacilda foi assassinada por um seriguê. Cacilda era sua
galinha de estimação ( relacione com Clarice Lispector em Felicidade Clandestina ) e Seriguê é um
tipo de cassaco. Bebel e Ana clara discutem sobre os homens. Ana Clara diz que seu marido deve ser
viado. Homem que bate em mulher é viado. João Pedroso pensa em Ana Clara. Pensa na possibilidade
de vier com ela. Depois, sai e vai ao encontro de Bará. Depois de algumas considerações, João concluí
que os cachorros criados por Bará contaminaram o menino e que também os carneiros que vieram do
hospital, que comeram capim com bosta de cachorro, podem gerar a doença em quem comer de sua
carne. João diz a Bará que seu terreiro, provavelmente, será interditado pela Saúde Pública. Quando
sai João Pedroso sente uma presença maligna. Tavinho, Nando e Ângelo Marcos combinam uma
suruba. Na conversa, segundo o médico Ângelo Marcos, a AIDS é colocada como uma coisa que só
ataca homossexuais. “Quem não deu o rabo não precisa ter medo de AIDS “. A farra é grande e tome
suruba. João Pedroso lê algumas cartas de seu pai que sempre o achou um inútil. Do lado de fora,
pensa ter visto um lagarto. Seria o mesmo de antes? João Pedroso conversa com Lúcio Nemésio, quer
saber da existência dos carneiros no hospital. Lúcio desconversa e diz que foram uns gringos que
trouxeram. A história não convence João Pedroso. Na saída, João encontra a mulher de Lúcio Nemésio
que traz na coleira dois cães: Watson e Crick ( dois embriologistas que desvendaram a estrutura
helicoidal do DNA ).
Capítulo 8
Ângelo Marcos volta de viagem e o drama de Ana Clara é o que fazer para não transar mais com
o marido. Pensa em colocar catchup num absorvente e dizer que ainda está menstruada, mas não
adianta. O marido força a barra e ela ainda tem que fingir um orgasmo. Ângelo, numa atitude mais
cafajeste que elegante, dá à esposa um colar de pedras preciosas. Ana Clara chora. O marido pensa que
é de alegria. Ana Clara abre o jogo e diz que não ama mais o marido, pois conheceu outra pessoa. O
marido pede um tempo, um prazo de 30 dias. João vai novamente ter com Bará. O curandeiro diz que
já foi visitado pelo pessoal do hospital, mas eles estavam mais interessados nas criaturas que nos
cachorros e na doença. João lembra da conversa que teve com Lúcio Nemésio: o médico deve estar
por trás de tudo, pensa. Bará entrega a João Pedroso algumas fotos que tirou das criaturas como prova
de sua existência. Os seres são horríveis numa mistura de gente com cachorro e macaco. João Pedroso
volta para casa e mostra as fotos a Monteirinho. Acreditam que Lúcio Nemésio tem algo a ver com as
criaturas. ( relacione com A Ilha do Dr. Moureau de H. G. Wells ). Ana Clara passa a se encontrar
com João Pedroso na casa dele. Ela ri da cama que é gigantesca. João explica que seu tio-avô casou
com duas irmãs e dormia com as duas na mesma cama. Ana Clara está completamente apaixonada e se
declara em um bilhete para João Pedroso. Ângelo Marcos recebe uma carta anônima que informam
que sua mulher está saindo com outro homem. Ele é profético: “Um homem mata por causa disso,
sabia? “. Brigam. O marido lembra-lhe o prazo. Ela concorda. João Pedroso vai ao encontro de Lúcio
Nemésio. O médico abre o jogo e diz que o que está acontecendo na ilha é um projeto internacional
muito importante que lida com experiências genéticas. João é contra e tenta demover o médico de
suas idéias inescrupulosas. Nemésio diz que o projeto continuar a qualquer custo e que João Pedroso
não deve nem pensar em se meter, pois ou está do lado dele ou está contra o futuro. Nemésio, ao final,
destrói as fotos tiradas por Bará. João Pedroso fica indignado. Lúcio Nemésio convoca. urgentemente,
uma reunião.
164
Capítulo 9
João Pedroso dá uma entrevista a um jornal da cidade. A história das criaturas é divulgada, mas
com a credibilidade duvidosa, ou seja, por causa de alguém, ( Lúcio Nemésio ou Ângelo Marcos, João
Pedroso é desacreditado e fica com a fama de doido. Monteirinho e João Pedroso ficam revoltados.
Monteirinho acha tudo monstruoso. João Pedroso lembra que Bará deve estar em perigo. Pega um jipe
e vai à casa do macumbeiro. Por outro lado, Ângelo Marcos descobre através de um detetive particular
que João Pedroso é o amante de Ana Clara. Planeja matá-lo. Pensou logo me Boa Ventura. João
Pedroso pensa em pedir ajuda a Ângelo Marcos, pois o mesmo tem muita influência para ajudar o
curandeiro. Ângelo Marcos age falsamente e diz que vai pensar, mas na verdade nunca ajudará e adora
torturar João dando-lhe esperanças. Ângelo Marcos procura Nemésio e o médico nega tudo. Ângelo
Marcos diz que está com ele para o que der e vier. João Pedroso toma um porre e passa vergonha na
frente de Ana Clara. João Pedroso encontra Monteirinho, bebe mais e diz, de forma pessimista, que “o
lagarto vai sorrir” porque Deus está indiferente.
Capítulo 10
João Pedroso recebe um telefonema de Ana Clara e em seguida um bilhete marcando encontro em
um lugar ermo. Ângelo Marcos diz à esposa que vai-se ausentar da ilha por uns dias, vai ver um
negócio de umas antigüidades com um amigo fazendeiro. O leitor sabe que ele trama com Boa
Ventura a morte de João. O biólogo sai ao encontro da amada. Ao chegar ao local, vê o carro
estacionado e desconfia. Quando se aproxima, tudo o que sente são duas balas que lhe atravessam o
corpo. Morre, imediatamente. No seu gabinete, Ângelo Marcos aguarda a resposta do pistoleiro sobre
o serviço. Enquanto isso, pensa novamente na noite de amor com o pistoleiro, lembra dele, de como
fora penetrado profundamente e se masturba ( argh... ). O corpo de João Pedroso é colocado dentro de
um caixão com vários furos e é jogado ao mar, para nunca mais. Ana Clara liga para João, mas
ninguém atende. Lúcio Nemésio vai conversar com Ângelo Marcos e, durante a conversa, ao falarem
de João, Ana Clara percebe que o marido deve ter dado um fim em seu amado. Chora. Pouco depois,
Ana Clara discute com o marido e diz na cara dele que espera um filho de João Pedroso. Brigam feio e
ela cai da escada. Perde a criança. O marido adora. O tempo passa. Ana Clara agora insiste em ser
chamada de Susana Fleischman. Todos dizem que ela pirou. Não fala mais em João nem o filho que
teria com ele. Conta a Bebel que está escrevendo um livro que é uma paráfrase de Nicolau Maquiavel:
A Princesa, um tipo de “manual para a mulher esperta”. A dupla identidade leva um tempo até que ela
melhora e afirma não lembrar nem da ilha, nem se conheceu alguém chamado João Pedroso.
Aniversário de Nando, muita droga e muita suruba. Tudo fica bem. Monteirinho é transferido para
outra paróquia. Antes de ir, tem um encontro decisivo com Lúcio Nemésio com quem nunca havia
falado. Falam de João Pedroso que nunca mais apareceu. Monteirinho fala do projeto científico.
Nemésio conforma e diz que muitos “Joões Pedrosos” podem aparecer, mas nenhum deles conseguirá
para o projeto. É uma coisa que mudará o futuro da humanidade e que ninguém poderá impedir. A
discussão passa a girar em tono dos híbridos. O padre diz que a Ciência não é Deus. Nemésio diz que
não acredita em Deus. A Ciência é valorizada por um e ironizada por outro. Lúcio diz que
Monteirinho o acha parecido com o Satanás. Lúcio Nemésio dá uma gargalhada “infernal “.
Monteirinho deixa a mesa, pois não ficava bem um padre na companhia de Satanás. Chega em casa e
pena no fim ridículo que deve ter tido João. Lutando inutilmente contra aquelas forças. Seria possível
a vitória completa do Mal? Deus estava realmente indiferente? Ajoelhou-se e rezou pela humanidade.
Monteirinho entristeceu. Arrumou suas coisas. Mas antes de tomar o ônibus, viu de relance um lagarto
enorme que, estranhamente, parecia sorrir, um riso irônico e frio. Seria o mesmo lagarto de João
Pedroso. Entrou no ônibus para não ver mais o lagarto, mas sabia que nunca poderia fugir dele.
165
Crítica
No livro O sorriso do lagarto, como em outros de mesma feitura, de que são exemplos: Viva o
povo brasileiro, O feitiço da ilha do pavão e Sargento Getúlio, João Ubaldo Ribeiro apenas destila toda
a sua ironia em forma de crítica social subentendida, ou seja, mascarada pela ficção e, geralmente, por
uma alegoria, como acontece em O feitiço da ilha do pavão e O sorriso do lagarto, uma vez que tanto o
pavão quanto o lagarto são criaturas que sugerem uma certa simbologia. No mais, o Brasil é analisado
em todas as suas perspectivas: política ( de corrupção, conluios e até assassinatos ); social (
desigualdades sem fim ); cultural ( intelectualidade estagnada ou adepta de uma americanização
perniciosa ) e teológica ( a velha rivalidade do catolicismo com a Macumba, pois estamos geralmente,
nos seus livros, em uma Bahia que é o Brasil ). No mais, podemos dizer que o autor é acima de tudo
contemporâneo, pois todas as marcas de contemporaneidade são utilizadas, dentre as mais importantes
destacamos a Intertextualidade, o Niilismo e a Linguagem Coloquial.
31 - O Cabeleira – Franklin Távora
Autor e Obra
João Franklin Silveira Távora nasceu em Baturité ( Ce ) em 1842 e morreu no Rio de Janeiro em
1888. Formou-se em Direito pela Faculdade de Recife. Foi diretor da instrução Pública e secretário
da Assembléia provincial. Como escritor, dedicou-se aos temas do sertão nordestino e em seus
romances e contos a ação se desenrola quase sempre no passado ( uso de flash back ). Colaborou na
revista Ilustração Brasileira em cujas páginas divulgou Lendas e tradições populares do Norte ( 1878 )
e na Revista brasileira onde publicou Sacrifício. Censurava o sucesso metropolitano de José de
Alencar, pois lançou violenta campanha contra este, acusando-o de incorreção na linguagem.
Pretendeu criar uma literatura do Norte, baseada em ricas fontes de tradição , convencido de que o
homem do norte constituía um tipo caracteristicamente distinto do Sul. Fundou a sociedade dos
homens de Letras, de curta duração, além de pertencer ao Instituto Histórico e Geográfico do Brasil.
Obras: Romance: Os índios do Jaguaribe ( 1862 ); A casa de Palha; Um casamento no arrabalde; O
Cabeleira ( 1876 ) ; O matuto ( 1878 ); Contos: A trindade Maldita ( 1861 ); Teatro: Um mistério de
família; Três Lágrimas. Crítica:Cartas a Cincinato ( 1870 ).
Resumo
A história do Cabeleira tem início com o narrador (em 3a. pessoa e profundamente onisciente)
valorizando sem a menor vergonha o heroísmo do estado de Pernambuco e a coragem histórica de seu
povo. Em seguida, fazendo referência a rebeldes literários com El Cid (Esp.) e Robin Hood (Ingl)
começa a narrar a saga do jovem José Gomes, conhecido como Cabeleira, que entrara no caminho do
crime pela influência perniciosa do pai, um certo José Gomes, criminoso por convicção.
Com flash-backs alternados e digressões constantes, o narrador vai reconstituindo a história,
intrigantemente real, daquele que seria um dos homens mais temidos do sertão pernambucano. Assim,
o leitor tem acesso à infância do Cabeleira, momento em que o papel do pai, bandido de “más
entranhas”, é determinante para o futuro de crimes que aguarda o pequeno José. São momentos como
o dia em que o pai ensinou a matar, primeiro os pequenos animais, depois gente de verdade ... O
Cabeleira era apenas uma criança quando experimentou a dor de ver seu bichinho de estimação
estrangulado em horrendo espetáculo promovido pelo pai com o objetivo de ensiná-lo a maldade, uma
vez que o mundo seria mau com ele. O pequeno Cabeleira assistia a tudo calado e mesmo com as
166
tentativas bondosas da mãe, D. Joana, acabou aprendendo com o pai tudo o que não prestava. O mais
interessante é que, assim como ia crescendo, ia sentindo prazer nas atitudes horrendas que tomava. O
mal estava plantado em seu coração e parecia não haver lugar para nenhum outro sentimento. Depois
de algumas maldades adolescentes, Cabeleira acaba por matar perversamente uma cabocla de nome
Chica para em seguida ser visto pelo povo de Pernambuco, e pelo leitor, como um dos bandoleiros
mais perigosos do Nordeste brasileiro cuja fama já atravessava fronteiras. Estavam junto com ele o
pai, Joaquim Gomes, e um larápio de nome Teodósio outra figura desonesta capaz de roubar até os
próprios comparsas.
Para situar os fatos, o narrador nos deixa por volta de 1770, momento em que o Cabeleira já tem
seu nome estampado em cartazes, procurado pela força estadual. No entanto, sem levar em
consideração a fama que possuía ou as conseqüências das maldades que fazia, ele apenas triplicava os
crimes que praticava. E como não podia deixar de ser, pela boca do povo, até o crime que não
praticava era-lhe atribuído. Roubava igrejas, fazia miséria em procissões, saqueava fazendas e
comércios, depois descansava nas matas onde tinha comida e abrigo cedidos pela Natureza, que o
Romantismo sempre valoriza. A verdade é que sua maldade era tanta que ao empunhar uma faca
nunca fazia-o em vão, retalhava homens ou mulheres que se intrometessem em seu caminho. Tome-se
como exemplo o dia em que se viu enganado por dois meninos (culpa de Teodósio) e, enfurecido,
enfiou a faca em um e atirou covardemente em outro.
Não podemos esquecer porém que mesmo tentando ser bom, o Cabeleira não conseguiria , pois
tinha sempre a companhia do pai, serpente venenosa, a orientar-lhe para o mal, como diziam as trovas
da época:
Fecha a porta gente
Cabeleira ai vem
Matando mulheres
Meninos também
Corram minha gente
Cabeleira ai vem
Ele não vem só
Seu pai vem também
Minha mãe me deu
Conta para eu rezar
Meu pai me deu faca
Para eu matar
Mas o perverso Cabeleira, mesmo que muito tentasse não fugiria ao destino, e nas linhas tortas de
sua vida estava escrito AMOR. E foi o que lhe aconteceu. Em uma de suas andanças, à noite, no mato,
deu de cara com Luisinha, uma linda sertaneja de características românticas, a qual conhecia desde os
tempos de criança, mas desde quando fugira com o pai nunca mais a tinha visto, guardando da mesma
apenas a lembrança e a promessa de um dia ficarem juntos. Mas a vida, agora, colocava-os frente a
frente.
Luisinha estava crescida, na verdade muito bonita, e virgem como a Natureza. E no momento em
que recolhia água próximo de sua casa, saiu das sombras aquela figura, um homem estranho, forte e
moreno. O encontro foi um pouco violento, uma vez que o Cabeleira informou à jovem que ela iria
com ele e que não relutasse pois seria pior. Luisinha resistia tentando fugir do “tarado “ que tentava
levá-la à força. Mas em dado momento, surge D. Florinda, mãe adotiva de Luisinha, que tenta salvar a
moça. O bandido deu-lhe uma coronhada na boca levando a velha ao chão. Luisinha fica indignada,
167
mas assim mesmo Cabeleira tenta levá-la mata a dentro. Ela resiste mas no encontro dos corpos e ao
perceber os longos cabelos do bandido, ela reconhece o amigo de infância. Fica descontrolada,
tentando ajudar a mãe que julga estar morta. Cabeleira a reconhece e fica atônito, sem saber o que
fazer de tanta vergonha. Os bandidos chamam Cabeleira, pois estão em perigo por causa de alguns
homens ( Mathias e Liberato ) que resolveram vingar a morte de um amigo ( o negro Gabriel ) . O
bandido fica entre obedecer ao pai e explicar tudo a Luisinha, mas não há tempo. Foge por entre as
sombras e vai ajudar os amigos. Promete que voltará. Luisinha fica no chão, em cima do corpo da
mãe, julgando-a morta e odiando o homem que está destinada a amar.
Cabeleira socorre os amigos e acabam fazendo uma nova chacina. Matam os homens que
tentavam capturá-los, mas deixam que um sobreviva para levá-los ao rancho onde suas mulheres
ficaram escondidas. Os bandidos além de precisarem se esconder das forças do governo, também
procuravam mulheres para satisfazerem desejos de ordem animal ( o livro é precursor do Naturalismo
).
Luisinha, ao perceber que a mãe ainda vive, tenta levá-la para o mesmo rancho onde as outras
mulheres estão. Chegam ao sítio com dificuldades e são recebidas pelo grupo que espera os maridos,
chacinados, que nunca voltarão.
Mesmo depois de socorrer o pai e os amigos, profunda revolução estava acontecendo no íntimo do
bandido. Mas precisam se esconder, por isso, caminham para o rancho guiados por um caboclo
chamado Mathias. Chegam ao rancho, mas as mulheres os reconhecem e não abrem a porta. Os
bandidos, a mando de Joaquim Gomes, tocam fogo na casa. Resolvidas a preservarem sua honra, as
mulheres se deixam morrer, queimadas, rezando, ajoelhadas no meio do fogo. Luisinha coloca a mãe
nas costas e foge com um esforço sobre-humano. Cai do lado de fora. Joaquim Gomes pega Luisinha
pelo braço e diz que ela será sua. Cabeleira não concorda, pois reconhece a sua amada. Trava uma luta
com o pai e está disposto a matá-lo, Só pára quando a moça pergunta se ele é tão mau assim, a ponto
de ferir o próprio pai. O bandido cai em si e recua imediatamente. Ao mesmo tempo, ouvem a tropa
que, apitando, se aproxima. Há uma debandada geral. Cabeleira pega Luisinha e foge para a mata. A
moça reluta, mas não tem mais nada a perder, pois sua mãe acabou morrendo por causa dos
ferimentos. A jovem está inconsolável, mas o Cabeleira tampou-lhe os soluços com um beijo. Em
seguida, o bandido, de maldades inumeráveis, entrega-se ao AMOR e jura a Luisinha que nunca mais
matará ninguém, pois pretende, por causa dela, mudar completamente de vida!
Enquanto isso, o governador da província, José César, aumenta o regimento e alista mais homens
na tentativa de pacificar a região pois o terror das últimos acontecimentos deixou a população em
polvorosa. As milícias saem imediatamente; a ordem é prender todo tipo de bandoleiro,
principalmente o Cabeleira, seu pai e o comparsa Teodósio.
Enquanto isso, Cabeleira e Luisinha dormiam pelo mato, fugindo das volantes, escapando a toda
sorte de perigos em busca da felicidade. Mas como imaginar um final feliz para um homem que fora
tão mau? A verdade é que o Cabeleira mudara; milagres do AMOR...
O homem estava tão diferente que um dia, depois de roubar milho e frutas para comerem, deixou
o roubo no mesmo lugar ao ser lembrado por Luisinha que aquilo não era certo. Dali pra diante,
passava fome, mas não roubava nem agredia ninguém. Ficam noivos tendo a Natureza como
testemunha. Luisinha lamenta o noivado em meio a tanta perseguição.
Durante a noite, porém, dentro da mata, num lugar onde o Cabeleira havia assassinado um
homem inocente, no passado, o bandido começa ver assombrações. A alma do viajante aparece apenas
para ele. Cabeleira fica transtornado e treme de medo. Luisinha, aparentando fraqueza, diz ao bandido
que se ele rezar a alma vai embora. Ele diz que nunca aprendeu. Luisinha ajoelha-se e exige que ele
faça o mesmo. Ensina-lhe a oração e em pouco tempo, o bandido reza com todo fervor de seu coração.
O fantasma desaparece, mas Luisinha está fraca. Resolvem dormir . No dia seguinte, depois de uma
noite de febre, Luisinha morre e o Cabeleira percebe que a moça estava ferida desde o dia do incêndio.
Chora a morte de sua amada e não pode enterrá-la, pois uma volante bem armada se aproxima. Ele
168
foge. Os soldados chegam, acham o corpo da jovem e, a notícia que se espalha é que o terrível bandido
acabou de fazer mais uma vítima. Aumentam as buscas.
O tempo passa e entra em cena um vendeiro de nome Marcolino que viu o Cabeleira durante a
fuga e diz a todo mundo que vai encontrar o bandido para entregá-lo à polícia. Todos riem dele. Neste
momento, um traço cultural do sertão é valorizado quando trovadores travam uma “peleja” na base do
improviso.
Vosmecê seu Marcolino
Vai atrás do Cabeleira?
Se quiser pegar o cabra
Monte na besta fouveira
Monte na besta fouveira
ou no cavalo cardão
Não há de pegar o cabra
No meio desse mundão.
O bandoleiro arrependido, tocado pelo amor de Luisinha e também pelo amor de Deus, agora se
escondia. Mas, quando entrou num canavial nas terras do Engenho Novo foi visto pelo vendeiro. E
Marcolino, imediatamente, avisou a Cristóvão de Holanda chefe da milícia que mandou para o local
uma volante bem armada. Cabeleira é preso, sem oferecer resistência.
Meia hora depois, Marcolino, que estava detido por garantia da informação que dera, é solto.
Entra em sua cidade coberto de glória.
Cabeleira é conduzido para a cadeia e a única coisa que lamenta é não ter enterrado o corpo de
sua amada. Pede uma viola e canta tristemente . ( como um Orfeu morrendo de Saudade ) . Os
soldados ficam penalizados e um deles consola o bandido ao dizer-lhe que o corpo de Luisinha não foi
devorado pelos urubus, pois ele enterrou com as próprias mãos a pobre donzela. Cabeleira agradece o
gesto. O julgamento é breve e os bandidos : Cabeleira, o pai, Joaquim Gomes, e Teodósio são
condenados à forca. Algumas pessoas, sensibilizadas, pedem ao juiz que poupe o Cabeleira, mas é
inútil. O dia da execução já está marcado.
E no dia previsto, sem a vasta cabeleira, José Gomes sobe ao cadafalso. Seu olhar é sereno, como
quem sabe o que deve e tem consciência de tudo o que fez. Antes da ação do carrasco, ele diz que
morre arrependido de tudo o que fez e feliz porque havia entrado no caminho do bem. A comoção é
geral. E aumenta quando uma mulher de cabelos brancos chora histericamente dizendo que não
podem matar o seu filho. É D. Joana, mãe do Cabeleira que, envelhecida pelo tempo e pelo
sofrimento, pede pela vida do filho. Não adianta. Pouco tempo depois, os corpos dos três bandidos,
enforcados, perdem o chão da vida e ganham um lugar na história.
Na última página, como se não tivesse sido compreendido, o narrador, num rasgo de onisciência
fora do comum, coloca todas as suas opiniões sobre o Estado, sobre o país, sobre o povo e sobre o ser
humano em particular, incentivando a honestidade, condenando as injustiças, a corrupção e os
pequenos erros cometidos intencionalmente pelos poderosos, inclusive os religiosos, trazendo prejuízo
para as pessoas honestas. Adverte que as coisas errada s que vemos não devem servir apenas para nos
desmotivar, mas para temos a certeza de que precisamos trabalhar mais, cultivar a terra, criar
indústrias e, acima de tudo, valermo-nos da arte para sermos honestos, independentes e felizes.
Crítica
169
Pertencendo ao Romantismo Brasileiro, O Cabeleira é um romance sertanista, um dos primeiros
a divulgar o texto de tendência regionalista, feito anteriormente por José de Alencar ( O Sertanejo ). O
Cabeleira, porém, na opinião de alguns críticos chega a ser melhor representante do gênero que o texto
de Alencar pois revela um sertão mais verdadeiro, mais próximo do que poderia realmente ser e não
um ambiente de belezas inigualáveis e heróis medievais vestidos em roupas de couro. O Cabeleira
tenta ser um retrato dos traços culturais verdadeiros do povo do sertão, seus costumes e suas
desgraças. Assim, o livro é marcado pela presença do povo e principalmente pelas tradições culturais
identificadores do homem e de sua relação com a terra. Temos também a presença do romantismo
na figura idelaizada de Luisinha e na modificação surpreendente de um bandido. Sem esquecer a
perspectiva da morte redentora, a morte que salva, uma vez que o bandido Cabeleira termina seus
dias vivendo de forma diferente do que costumava. Para identificarmos os traços românticos, basta que
olhemos para a adjetivação da mulher e do espaço. No entanto, as atitudes do narrador em relação a
determinados comportamentos de personagens como Cabeleira e o pai, fazem surgir a idéia de que
este livro tenha sido o precursor do Naturalismo brasileiro, pois em certos momentos são comparados
a animais que agem instintivamente e determinados pelo ambiente bem ao estilo de Emile Zola. Em
dados momentos o livro parece mal escrito, piegas demais e exageradamente onisciente, numa
passionalidade sufocante, ainda mais por sabermos que Pernambuco é um estado admiravelmente
aguerrido digno dos registros que possui na História. No entanto, sabemos que tudo isso se deve à
postura propositada do autor de valorização do povo pernambucano por ter adotado aquela nova terra
como lar..
32 - O Cortiço – Aluisio de Azevedo
Autor e Obra
Nascido em São Luís do Maranhão em 1858, Aluisio Tancredo Belo Gonçalves de Azevedo foi o
grande introdutor do Naturalismo no Brasil. Foi jornalista, professor, guarda-livros, empregado
público, caricaturista, retratista, de3senhista e até gerente de hotel em tempos de vacas magras. Mais
tarde, depois de reconhecido e por seu mérito literário e jornalístico chegou a posição de Cônsul indo
ao Japão a serviço do Brasil. Pertenceu a ABL e faleceu como cônsul em Buenos Aires em 1913. Seu
primeiro romance Uma lágrima de mulher ( 1880) tem com certeza, requintes românticos assim como
algumas obras anteriores a 1881, ano em que publicou O Mulato e foi alçado ao patamar de grande
representante do naturalismo brasileiro. Dono de um estilo fluente, mas não por isso leve, uma vez que
preserva alguns traços do vocabulário romântico somados à postura cientificista e filosófica do próprio
naturalismo, preferiu enveredar pela liberdade que se pode dar à própria personagem de expressar-se
como quiser. Realista em suas temáticas ( taras, vícios, homossexualismo, preconceito... ) e
impressionista em suas descrições ( ver O Cortiço ) Aluisio de Azevedo não deixava nada a dever aos
grandes mestres do Naturalismo mundial como o francês Emile Zola autor de Rougon Marcot e
Germinal, ou mesmo ao luso Eça de Queiroz em alguns de seus livros. É autor de várias obras, entre
elas Uma lágrima de mulher, Memórias de um condenado, Mistério na Tijuca, Casa de Pensão, O
Coruja, O Cortiço, Mortalha de Alzira, Livro de uma sogra, A Condessa Vésper e alguns livros de
contos como Demônios e Pegadas. Dentro da linha naturalista podemos dizer que seus principais
romances são O Mulato, Casa de Pensão e O Cortiço. O primeiro por ser o introdutor do Naturalismo
no Brasil, o segundo por definir totalmente seu estilo e o último por representar a total maturidade e o
ápice da escola liderada por Emile Zola. O que melhor caracteriza o conjunto de sua obra é a visão
abrangente que lança sobre o ser humano em estado de reunião, em comuna, a análise de múltiplas e
170
diversas vidas em conjunto, principalmente no Cortiço e em Casa de pensão. Notabilizou-se também
como grande impressionista, pois segundo os críticos ninguém apanhou melhor os flagrantes de rua,
nos meios onde a ralé e a pobreza se encontram e se agitam. Seu interesse pela miséria humana foi tão
grande que chegou a alugar um barraco em um cortiço de sua cidade e passar dias por lá escrevendo,
analisando as pessoas e recolhendo material para seu grande livro. Contam alguns que certos
marginais do lugar pensando que ele fosse algum policial ou espião tentaram matá-lo, mas felizmente
o doido fugiu.
Momento
O Naturalismo tem inicio também na França com a publicação dos Contos Experimentais do
francês Emile Zola. O Naturalismo caracteriza-se na realidade como uma extensão do pensamento
realista, ou seja, uma espécie de realismo exagerado, pois os problemas da natureza humana ( taras,
vícios, homossexualismo, cleptomania, lesbianismo, ambição, hereditariedade, loucura... ) não são
apenas denunciados, mas trabalhados a fundo à luz de teorias cientifico-filosóficas da época dentre
elas: o Positivismo de Augusto Comte, O Evolucionismo de Charles Darwin, o Determinismo de
Hipolité Tayne, O Anticlericalismo de Renan e até as teorias sociológicas do Manifesto Comunista de
Karl Max e Friederich Engels. Desta forma, o texto naturalista é contemporâneo aos textos do
realismo machadiano, mas trata dos dramas humanos de uma forma mais direta, sem metáforas, e com
uma visão cientifica, mecanicista e filosófica. Os dramas humanos revelados pelo realismo agora são
trabalhados e as personagens( cobaias ) cederão para o autor ( cientista) aquilo que de melhor
possuem, suas taras, seus defeitos, seus vícios que servirão como base na comprovação das teorias
propostas pelos pensadores da época e aplicadas ao texto literário.
Resumo
Esta é a história de João Romão, ajudante de vendeiro, que desde os 13 anos trabalha para ganhar a
vida. Quando o comerciante resolveu voltar para a terra ( Portugal ), deixou para João Romão a venda
e o que havia dentro. O rapaz entregou-se ao trabalho. Trabalhava dia e noite e poupava tudo que
ganhava. Fazia biscates, vendia comida, criava galinhas e comerciava ovos. Dormia numa esteira, em
cima de sacos no balcão para não comprar uma cama. E mesmo que tivesse paixão por ovos, não
comia nenhum, pois eram todos para venda na esperança de um dia Ter muito dinheiro. A ambição de
João Romão era fora do comum, típica do Naturalismo, uma verdadeira doença.
João Romão conhece Bertoleza, uma negra fugida que passa o dia trabalhando com “seu homem”,
juntando dinheiro para comprar sua alforria. Um dia, o homem de Bertoleza morre na rua, de tanto
trabalhar, puxando uma carroça. A negra ficou inconsolável e João Romão estranhamente oferece o
seu ombro amigo, conforta e ajuda a escrava que, alguns dias depois, já confia cegamente no vendeiro
a ponto de entregar-lhe todas as suas economias. João Romão passa a cuidar do ativo e do passivo de
Bertoleza. De quebra, ainda ganhou uma amante. Os dois passam a viver amigados e a trabalhar mais
ainda.
O negócio de João Romão começa a prosperar. Com o dinheiro que sobrava, o vendeiro construiu
dois quartos no fundo do quintal e colocou parta alugar. Vieram os primeiros inquilinos, gente que
trabalhava numa pedreira que havia nos fundos das terras de João Romão. O casal de negociantes não
171
parava de investir e mais quartinhos iam surgindo, construídos é claro com material roubado pelos
dois em construções daquela área. Nascia o Cortiço ( para alguns críticos, a personagem central do
romance ). Com o dinheiro dos aluguéis e da venda, João Romão comprou metade da pedreira e agora
pensava em ampliar seu negócio. E à medida que a pedreira de João Romão ia crescendo também
crescia o número de quartos, numa febre irrefreável de ambição. O Cortiço era como uma moléstia que
tomava de conta do corpo do doente...
Gente de todo tipo passou a morar no Cortiço São Romão ( esta é uma obra de muitas
personagens ), mas os primeiros foram Leocádia, Costa, Machona, Alexandre, Augusta, Marciana,
Rita Baiana, Pombinha. Albino dentre outros. O importante é que todos, basicamente, constituem
tipos, classes representativas ( prostituta, engraxate, beata, homossexual etc ) Em seguida, chegou
Jerônimo, português hercúleo, honesto e trabalhador, acompanhado de esposa e filha, deixou o
emprego na outra pedreira e aceitou a proposta de João Romão.
O cortiço era como uma planta viva, daninha, que a cada dia crescia mais e mais e se espalhava
para frente, para trás e parta um dos lados, porque do outro ficava a casa do velho Miranda, homem de
posses, um chifrudo, pai de Zulmirinha ( paixão de João Romão ) casado com D. Estela, ninfomaníaca
que não dispensava nem um negrinho, seu afilhado, e até o Henriquinho, um sobrinho que mal tinha
quinze anos. Esta era a família do Miranda, completada por um “agregado” o velho Botelho, bicha
encubada, que muito ajudará João Romão em sua batalha para ser nobre casando-o com Zulmirinha.
A vida no Cortiço é marcada pela miséria, pelas atitudes equivocadas e pelo comportamento
patológico de seus moradores. Rita Baiana é a mulata sensual, livre e desimpedida que leva sua vida
como lhe dá na telha, sendo por isso admirada por todos. Namora o negro Firmo, um capoeirista,
elemento perigoso, do cortiço vizinho de nome Cabeça-de-Gato. Pombinha é a “flor do cortiço”,
bonita e bem tratada, mimada por todos, tem o dom de escrever cartas: além disso, tem um problema:
a menstruação que nunca chega impedindo-a de ser mulher “completamente”. É afilhada de Leonie,
uma cafetina lésbica, francesa, que vez em quando visita o cortiço. A verdade é que no Cortiço São
Romão tem de tudo: gente boa, gente ruim, ladrão, bicha e sapatão que tentam superar as dificuldades
da vida ajudando uns aos outros, na luta contra a miséria e o ciclo vicioso imposto por João Romão,
ambicioso e sem caráter, com seus preços exagerados na venda e nos aluguéis.
O clima vai ficar tenso quando Jerônimo, o português bonzinho, apaixona-se por Rita Baiana.
Firmo, o capoeira, e a mulher do português não vão gostar nada disso. O foco narrativo, neste e em
outros momentos, deixa a figura central João Romão, e passa a analisar detidamente os dramas das
outras personagens: a machona, a bicha, a menstruação atrasada de Pombinha etc.
Enquanto isso, João Romão amadurece a idéia de ser nobre. Parta tanto, pensa em cortejar
Zulmirinha, filha de Miranda, pois o casamento com a jovem representaria, pela influência de
Miranda, o ingresso em uma nova vida com uma posição bem mais respeitada, uma vez que dinheiro,
para João Romão, não era mais problema.. O cortiço estava socado de gente; isso representava muito
dinheiro em caixa. Mas nobreza é sangue ou título ( barão, conde ou visconde ) e João Romão não
possuía nenhum dos dois.
No Cabeça-de-Gato, depois de muito fuxico, Firmo descobre o engraçamento de Jerônimo e Rita.
Dá, imediatamente, uma surra no português. Dias depois, numa emboscada, Jerônimo mata o
capoeirista a pauladas, abandona a esposa e passa a morar com Rita Baiana. A morte de Firmo cai
como uma bomba no Cabeça-de-Gato e os capoeiras de lá resolvem vingar a morte do amigo. Invadem
o São Romão, território dos Carapicus e ateiam fogo ao cortiço.. Confusão geral. No meio da fuga,
Rita e a Piedade brigam pelo português. Os capoeiras dão navalhadas em seus inimigos. Gente morre
queimada, crianças e velhos são esmagados na correria e o cortiço é parcialmente destruído. João
Romão fez o que pode, mas não deu para evitar a desgraça. No fim das contas, porém, o incêndio
acabou sendo lucrativo porque João Romão havia feito um seguro.
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João Romão recebe o pecúlio e manda reformar o cortiço. O novo cortiço fica pronto, e mais
pessoas passam a morar nele. João Romão ganha muito dinheiro e é admirado por todos, inclusive por
Miranda, que pensa em fazer sociedade com ele e até permitir que case com Zulmirinha.
Mas um obstáculo existia para a felicidade completa de João Romão: Bertoleza, a escrava,
caixeira e amante que dificilmente se deixaria enganar de novo ou substituir. A verdade é que João
Romão há muito tempo a enganava, usando o dinheiro da negra em seu favor dando-lhe uma alforria
falsa, de próprio punho, para ludibriar a escrava. Mas agora a coisa era bem pior. Foi então que
Botelho, o velho agregado, gay e ambicioso, aconselhou João Romão a livrar-se da negra devolvendoa para os antigos donos. E com a ajuda financeira do vendeiro, cuidou logo dos preparativos.
Depois do incêndio, o cortiço mudou de cara, até os moradores agora eram outros, tudo
reformado, tudo limpo. Não eram mais mendigos, engraxates, carregadores e prostitutas, mas
estudantes de classe baixa, mascates, estrangeiros, italianos e polacos: a comunidade mudava.
Rita e Jerônimo sumiram. Pombinha, depois da esperada menstruação caiu na vida e foi morar
com Leonie. A mulher do português ficou na miséria, igualmente à maioria dos antigos moradores, e
quem não tinha dinheiro para o alto preço do aluguel foi forçado a ir embora, migrando para o Cabeçade-gato”.
Um dia, o filho do antigo dono de Bertoleza chega para reclamar a posse de sua escrava. João
Romão, para posar de bonzinho, diz que o rapaz está certo e que ainda não entregara porque não sabia
quem era o dono ou que a negra era uma escrava fugida. Bertoleza, que estava na cozinha tratando
peixes para fazer a comida do seu ex-amante, ao perceber a arapuca, pega a faca amolada e abre o
próprio ventre de um lado ao outro como fazia com os peixes, e cai debatendo-se em cima das próprias
vísceras.
Na mesma hora, lá fora, na sala, João Romão recebe um título de honra, de sócio benemérito,
colaborador da ordem abolicionista, uma vez que seu gesto humanitário de devolver a escrava, sendo
contra a escravidão, era um exemplo para todos.
Crítica
Aluisio de Azevedo é realmente o maior nome do Naturalismo brasileiro, mas, ao contrário do que
se pensa, sua fama não se deve ao romance “quase romântico “ O Mulato ( 1881 ), introdutor do
Naturalismo no Brasil. Seguramente, é com O Cortiço que Aluisio Azevedo consolida a estética
naturalista em nosso país e, principalmente, demonstra seu momento de maior maturidade. Autor de
textos anteriormente rom6anticos como Uma Lágrima de Mulher e A Condessa Vésper, Aluisio
conseguiu com O Cortiço espelhar com maestria a estética iniciada pelo francês Emile Zola, autor de
Germinal e Contos Experimentais. Em O Cortiço, o modelo naturalista é tão bem seguido que é
possível identificar além da temática realista ( a ambição desmedida e doentia de João Romão) a
presença de ideais sociológicos, filosóficos e científicos dos pensadores da época. O cortiço é o
próprio ideal de comuna proposto por Marx e Engels no Manifesto Comunista; o Positivismo de
Augusto Comte reside nas reflexões de caráter científico; Charles Darwin, com a teoria sobre a
Seleção Natural e a Evolução das Espécies pode ser encontrado no recurso de animalização de
algumas personagens. Para completar, o Determinismo ( social ou biológico ) proposto por Hipolite
Taine pode ser exemplificado no comportamento do português Jerônimo, homem bom, correto e justo
que, influenciado pelo meio, acaba se tornando igual a todos no cortiço, mais um marginal.
Resumindo, o tom Naturalista sugerido por Zola impregnou esta obra de tal forma que, a cada
capítulo, percebemos a utilização do pensamento cientifico-filosófico pregado pela estética. Bom
exemplo disso é quando, no desfecho, depois do incêndio, os moradores mais miseráveis do cortiço
São Romão, por não poderem mais pagar os aluguéis, migram para o cortiço vizinho, o Cabeça-de-
173
Gato, como um tipo de “transferência biológica” ( osmose ). Depois disso, o Cabeça-de-Gato passa a
ter as mesmas características do antigo cortiço São Romão, ou seja, um “alimentou-se” do outro.
A análise das personagens é mais pura comprovação do caráter “patológico “ valorizado no livro.
João Romão é “doente” por dinheiro. Albino é “anormal “ em sua sexualidade não resolvida.
Pombinha é “estranha” por não menstruar. Leonie é a lésbica admirada e reprovada. Rita Baiana
representa a sensualidade e o erotismo comuns às classes menos favorecidas, mas atenuada pela
ausência de vulgaridade. A família de Miranda é o protótipo de uma família também doente,
carcomida pelo vício e pelas taras patológicas, seja do velho Botelho, de Estela, do Henriquinho e do
próprio Miranda. As personagens são comparadas a animais como se isso fosse uma boa maneira de
justificar suas atitudes. O que temos é um bando de pessoas-bichos que não vivem, apenas sobrevivem
ou lutam para manter-se vivos num lugar tão hostil, dominado por um predador implacável chamado
João Romão. De certa forma, o que encontramos em O Cortiço é a constatação de que o romance
naturalista constitui-se realmente um romance de tese, uma tentativa de demonstrar algo, de
comprovar alguma teoria. É como se o mundo ( o espaço ou o cortiço ) fosse o laboratório, o autor um
cientista e as personagens apenas cobaias sendo testadas não pelas vontades do “criador” mas pelas
leis naturais às quais estão sempre submetidos. Temos a crítica à sociedade quando analisamos a
família de Miranda, a inversão sexual de Leonie e Albino é matizada por escusa opinião cientificista, e
para completar, o Cortiço, que parece adquirir o status de personagem é comparado a uma planta, ou
doença, ou corpo biológico que cresce, avança e se modifica numa metamorfose das mais intrigantes
que a literatura já viu.
Enfim, O Cortiço pode não ser o livro mais importante do Naturalismo brasileiro, mas com
certeza é o que contém as principais características da escola. Não desprezando, é lógico, obras como
Casa de Pensão, do mesmo autor, O Ateneu, de Raul Pompéia, e Luzia-Homem do sobralense
Domingos Olímpio.
33 - O ATENEU – Raul Pompéia
Autor e Obra
Nascido a 12 de abril de 1863, no Rio de Janeiro, Raul Dávila Pompéia descende de
família mineira cujo pai, advogado austero, precisou mudar de estado por Ter-se envolvido
com o grupo de Tiradentes. Em 1873, Raul Pompéia foi matriculado no Colégio Abílio Costa
que era um dos mais importantes estabelecimentos de ensino para jovens filhos de famílias
ricas, ali ficando. Fica matriculado por 3 anos até transferir-se para o Pedro II. Em 1880,
publica seu primeiro romance ( Uma tragédia no Amazonas ). Em 1881, entra para a
faculdade de direito engajando-se na luta pela abolição da escravatura. Em 1888, publica em
folhetim O Ateneu. Em 1891, ofendido por Olavo Bilac ( principalmente quanto à sua
sensibilidade ) desafia o ex-colega a um duelo de espadas. Florianista convicto, é nomeado
diretor da Biblioteca Nacional. Em 1895, acusado de ofender o presidente Prudente de Moraes
é demitido. No dia 25 de dezembro, amargurado, põe fim à própria vida com um tiro do
coração. Prosa: Romances – Uma tragédia no Amazonas; As jóias da coroa ( 1882 ); O
Ateneu ( 1888 ); Conto: Microscópicos ( 1882 ); Prosa Poética/Poesia: Canções sem metro (
174
1883 ); Crítica: Seção Pandora ( 1888 ) Póstumos, inédito e inacabados: Alma Morta ( 1888 )
e Prosas Esparsas ( 19220 )
Momento
O Naturalismo representa o texto com tendências cientificista com personagens, às vezes,
animalizadas. Iniciado na França com Emile Zola, autor de Germinal e Contos
Experimentais, o Naturalismo prega o aspecto laboratorial do romance ( romance de tese )
influenciado pelas correntes filosóficas e científicas da época. Determinismo de Tayne (
homem agindo de acordo com o meio ), o Evolucionismo ( Teorias de Charles Darwin
incluindo a seleção natural ) Positivismo ( do pensador Augusto Comte ) são as principais
vertentes. O Brasil, depois do lançamento de O Mulato , em 1881, e o Cortiço de Aluisio
Azevedo passará a seguir o mesmo modelo com textos que se valem de personagens
degeneradas, ambientes sociais em desequilíbrio e um certo determinismo social. O Ateneu
pertence então ao Naturalismo brasileiro, ainda que seja possuidor de um certo ar de
infantilidade que, pela sutileza, diminui a postura cientificista da época.
Resumo
I
O romance começa com a frase do pai do menino Sérgio “Vais encontrar o mundo.
Coragem para a luta “. A frase é importante porque Sérgio era apenas um menino comum
educado exoticamente na estufa de carinho doméstico ( mãe e irmãs ). Aos onze anos, Sérgio
era apenas mais uma criança entregue ao melhor colégio da cidade que costumava
transformar meninos em homens. Na prática, O Ateneu era mesmo o melhor colégio ( um
exemplo!), tão importante e privilegiado que só estudavam ali os filhos de quem podia pagar
as exorbitantes mensalidades. A importância do colégio era atestada pelas visitas regulares de
gente nobre como a princesa Isabel. Destaque-se no colégio a imagem de alguns professores
autoritários, superficiais e pedagogicamente equivocados. A figura mais imponente era a do
diretor. “O doutor Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida família a do Visconde de
Ramos, do Norte, enchia o império com o seu renome de pedagogo “.
O narrador, sempre em tom de memórias, esclarece pontos da narrativa e faz sempre
comentários saudosos e ambíguos apresentando-nos o colégio, os professores, os alunos e sua
rotina como as aulas de arte, religião, astronomia e educação física. No final desse capítulo,
merece destaque o momento em que Sérgio conhece Ema Argolo de Ramos ( inspirada em
Gustave Flaubert ) , esposa do diretor, que lhe mandou cortar os cachinhos loiros e ofertá-los
à sua mãe como lembrança da infância. Sérgio ficou maravilhado. “Bela mulher em plena
prosperidade dos 30 anos de Balzac, formas alongadas por graciosa magreza, quadris amplos,
fortes como a maternidade. Olhos negros, pupilas retintas, de uma cor só que pareciam encher
o talhe folgado das pálpebras, morena ( ... ) seria também a cor do jambo, se jambo fosse
rigorosamente o fruto proibido “. No mais, as sombras do colégio e de Aristarco cresciam ao
redor de Sérgio.
175
II
No segundo capítulo, Aristarco recebe pessoalmente o pai de Sérgio, momento em que se
percebia um certo aborrecimento no diretor-empresário porque naquele ano o número de
novatos tinha sido bem menor que o número de concludentes. Mas o instinto corretor tomava
logo lugar em seu semblante ao dizer:
“ Um trabalho insano! Moderar, animar , corrigir essa massa de caracteres, onde começa a
ferver o fermento das inclinações ( ... ) amordaçar excessivos ardores, desiludir as
aparências sedutoras do mal, prevenir a depravação dos inocentes, fiscalizar as amizades...
Ah, meu amigo... não é a preguiça o inimigo, é a imoralidade! “
Integrou-se o Sérgio. Seus companheiros de sala, quase uns 20, uma variedade que
divertia. Gualtério ( cara de símio ); Nascimento ( só os ossos ); Alvarez ( violento );
Almeidinha ( rosto de menina ) ; Maurilio ( nervoso e sofrido ); Negrão ( babão ); Cruz (
tímido ); Sanches ( 1º da classe ); Barbalho ( caôlho ); Franco ( pegador de moscas ). O resto
uma cambadinha sem importância. Dentre estes colegas, Sérgio confiava em quase nenhum,
mas sempre tentavam aproximar-se dele por algum motivo estranho. Rebelo, um dos alunos
mais antigos, avisava: Faça-se forte aqui. Faça-se homem; os fracos perdem-se. Não admita
protetores. “
Os gêneros possuíam ali dos sexos, como se fosse uma escola mista. Os rapazes tímidos e
ingênuos eram impelidos para o sexo da fraqueza. Todos tinham o comportamento suspeito.
Enquanto os pais pensavam que o colégio era a melhor coisa da vida, seus pequenos filhos,
exatamente por causa dos mais velhos, estavam perdidos, entregues à corrupção.
Importante é ressaltar a briga do narrador com Barbalho, um menino que tinha como
divertimento encher o saco de Sérgio. Atracaram-se ( como duas feras/ naturalismo ) e Sérgio
deu uma bofetada em Barbalho, restando-lhe como lembrança algumas escoriações e uma
blusa suja de sangue. O medo o perseguia e ele acordava, temeroso, para um novo dia
anunciado pelo toque da sineta.
III
Neste capítulo, o assunto principal é o “banho” dos garotos. Havia um tanque de cimento
cheio de água, sempre usada, onde acontecia a natação numa mistura perigosa de corpos que,
eletrizados, brincavam. Nesse instante, os menores ajuntavam-se a seus protetores para
ficarem livres de certas brincadeiras. Sérgio quase morre afogado. É salvo, estranhamente,
por Sanches que vai ganhando sua amizade e passa a ser seu colega mais próximo apesar de
Sérgio não lhe suportar o mau hálito e a mania de falar beliscando. “Aquele microcosmos do
Ateneu causava-lhe receios”.
A convivência com Sanches , amigo cordato e, aparentemente desinteressado, torna-se
uma constante. Mas Sanches era igual aos outros, e Sérgio passou a ter-lhe uma certa
repugnância porque o mesmo acabou lhe fazendo uma proposta indecente... Sérgio abandonou
a companhia do Sanches buscando consolo nas aulas de Cosmografia dadas à noite pelo
176
diretor. Aristarco não entendia, ele mesmo, quase nada, mas aproveitava para suas
moralidades. E dizia, mostrando a mão peluda “ Esta é a mão da Providência!
ÏV
Nesse capítulo, o narrador nos apresenta Ribas ( linfático de voz maravilhosa ), Santa
Rosália, originada a partir de uma foto de sua prima morta, a quem passa a dedicar extrema
devoção. Franco, um dos mais rebeldes, arma uma vingança contra aqueles que o humilharam
( foi pego mijando na bomba de água potável ) e para isso conta com a cumplicidade de
Sérgio. Pulam o muro e vão para o lugar da “natação “. Franco quebra um monte de garrafas
de vidro e joga dentro da piscina. Fogem. Sérgio passa a noite atormentado por saber de tudo
e não avisar ao diretor poupando alguns meninos da desgraça que era iminente. Não consegue
dormir pensando na hora do banho. Adormece na igreja. Ao acordar fica sabendo que o banho
foi transferido para outro lugar. Seu alívio o denuncia e ele inventa uma desculpa para
enganar Aristarco. Passa a considerar seu papel no Ateneu a partir das amizades que lhe
cercam. Compara-se, às avessas, com o relâmpago de Damasco ( Bíblia: AA, 9: 1-30 ).
V
Sérgio viaja ao encontro do pai. Conta-lhe seus insucesso. O pai lhe dá forças para reagir.
Quando volta, entrega-se aos estudos. Supera Sanches, melhora na esgrima e ainda ganha
elogios de Aristarco. Em seguida, insurge-se contra algumas regras do Ateneu e passa a
desdenhar dos prêmios que eram ofertados aos melhores alunos. Recupera a auto-estima, mas
vira um rebelde. “Com uma palavra faz-se um anarquista “. Inimigos se formavam ao redor.
Nas aulas de Anatomia, sonhava em ver um cadáver. ( Eu queria a realidade, a morte ao vivo!
).
Temos também o segundo contato de Sérgio com o sexo feminino. Ângela, uma das
empregadas do colégio, era “consciente de sua formosura “, por isso “abusava “.
“Os olhos riam destilando uma lágrima de desejo; as narinas ofegavam, adejavam trêmulas
por intervalos ( ... ) os lábios animados de convulsões tetânicas desafios, prometendo
submissão de cadela e a doçura dos sonhos orientais. Ali estava, a deturpação da inocente, três
servilismos reclamando um dono; apetite, apetite para esta orgia rara sem convivas. “
VI
Depois de tanta desilusão com as amizades, de tanto fugir de interesses escusos e de gente
que lhe queria mal, Sérgio pensava ter encontrado um amigo. Sua amizade por Bento Alves o
fazia pensar que certa efeminação pode existir como um período de constituição moral.
“Estimei-o femininamente porque era grande, forte, bravo... porque me respeitava... para me
fitar, esperava que eu tirasse dele os meus olhos. No momento geral da existência do
internato, desvelava-se caprichosamente; sabia ser fraternal, paternal, quase digo amante,
tanta era minudência dos seus cuidados.”
177
É criada no colégio uma irmandade, uma agremiação artística ( Grêmio Literário Amor
ao Saber ) para reforçar o talento dos jovens beletristas. Aristarco presidia e falava de tudo: de
ciência, de arte e de literatura. “O homem, por desejo de nutrição e de amor, produziu a
evolução histórica da humanidade”. “A obra de arte é a manifestação do sentimento “ (
freudiano? )
VII
Sérgio vai ficando cada vez mais crítico ( principalmente dos outros ) , um tipo de
amadurecimento , e avalia os amigos e té a filha do diretor. “Amália, lambisgóia, proporções
de vareta, fina e longa, morena e airosa, levava o tempo a fazer de princesa. Dois grandes
olhos pretos ( ... ) tomavam-lhe a face, dando-lhe, de frente, a semelhança justa de um “i “com
dois pingos “.
Sobre os “amigos “veja o que dizia: “Eram infantis, alegres, francos, bons, imaculados ... tempos
da escola que não voltam mais... e mentiam todos! ... cada rosto amável daquela infância era a máscara
de uma falsidade, o prospecto de um traição. “. Em seguida, Sérgio destaca-se no desenho ( Raul
Pompéia também ) de tal forma a receber muitos elogios.
VIII
Dia de marcha ao ar livre. Saem de madrugada e voltam para o almoço. No refeitório, um
susto. Aristarco exibe um bilhete encontrado no colégio no qual um certa Cândida marcava
um encontro com alguém no jardim. “tenho a alma triste, senhores. A imoralidade entrou
nessa casa! Esta cortesã, esta prostituta confirma um poema de pouca vergonha! “Aristarco
prometeu apurar os fatos e punir severamente quem estivesse envolvido na presença de
Cândida no Ateneu...
Mas, não era Cândida, era Cândido ( o mais gayzinho de todos ) que havia marcado o
encontro. Todos sabiam, menos o diretor. Todos estavam implicados. Quem poderia
denunciar? Qual o tamanho da lista de envolvidos?
Depois de um certo distanciamento, Sérgio encontrou novamente o Bento Alves.
“Confusamente ocorria-me a lembrança do meu papelzinho de namorada faz-de-conta, e eu
levava a seriedade cênica a ponto de galanteá-lo, ocupando-me com o laço da gravata dele,
com a mecha de cabelo que lhe caía aos olhos... “
Dias depois, Bento Alves transforma-se ( descobriu a falsidade ). Segura Sérgio no
corredor, brigam de murros e rolam por uma escada até o momento em que o diretor chega.
Bento foge e Sérgio é erguido no ar por Aristarco que exige uma explicação. Sérgio puxa o
bigode do diretor arrancando alguns pelos. O diretor fica ao mesmo tempo indignado e
impressionado com a coragem do menino. “ Ferir um mestre é como ferir ao próprio pai, e os
parricidas serão malditos. “
Sérgio foge. Arrepende-se e chora. Fica esperando a qualquer momento uma punição. A
punição não chega. À tarde, Bento Alves deixa o Ateneu. Tudo fica sem explicação. O
capitulo encerra com a Revolta da Goiabada, quando todos descobrem que a goiabada
servida todos os dias na sobremesa era feita de banana. Aristarco contorna a situação dizendo
que nem ele sabia.
178
IX
Neste capítulo, Sérgio, depois de desencantar-se com o Sanches e Bento Alves, diz que
finalmente encontrou a amizade: Egbert, aluno novato, de origem estrangeira.
“Vizinhos do dormitório, eu, deitado, esperava que ele dormisse para vê-lo dormir e acordava
mais cedo para vê-lo acordar. ( ... ) Eu o admirava desde o coração até a cor da pele e a
correção das formas. Amor unos erat.
Depois, Sérgio encontra novamente D. Ema percebe como ela mexe com ele. Sua
presença era mágica como se ele fosse revolvido por dentro. Fazia-se homem por dilatação.
Mas, havia outras coisas. Olhava para Egbert como quem olha para uma recordação.
Diminuía o entusiasmo da fraternidade.
X
No décimo capítulo, depois do desespero comum das provas, a imagem de Ema fica mais
forte e Sérgio sente operarem-se algumas transformações em si. Sonha com Ema, brincava
com ela e beijava-a. Tudo sobre Ema interessava-o. Ganhava forma a caricatura da
sensualidade. Isso era comprovado também na figura da fogosa Angela que se fazia de
menina para brincar e correr com a vivacidade de uma gata. Era um turbilhão de imagens e de
opiniões. O professor Crisóstomo sugeriu algumas coisas sobre D. Ema que Sérgio não
aceitou. Falou da maneira carinhosa demais como ela fazia-se de enfermeira para alguns
meninos... estudantes muito mal, com moléstias imaginárias... Um infâmia, uma infâmia esta
afirmação de coisas improvadas!.
XI
No penúltimo capítulo do livro, ao delinear-se o perfil de Sérgio, define-se também o
próprio Ateneu quando em suas considerações compreendemos o que o colégio representa
para ele, para cada um dos colegas, para Aristarco e para o leitor: “Não se diga que é um
viveiro de maus germens, seminário nefasto de maus princípios que hão de aborrecer depois.
Não é o internato que faz a sociedade, o internato a reflete. Erro grave combater o internato. “
Outro fato importante é a morte de Franco que, definhou lentamente como planta que murcha
e morre. “Perguntei ao Franco como passava ( ... ) Nunca lhe conheci tão belo sorriso. Sorriso
de criança à morte. No dia seguinte, um Domingo alegre, Franco estava morto. “
O enterro foi modesto, era melhor para o colégio, pois na semana seguinte iniciavam-se
as festas de fim de ano, a entrega de medalhas aos melhores alunos.
De repente, surgiu entre os alunos, talvez por medo ou puxasaquismo, a idéia de
homenagear o diretor. Dar-lhe-iam um busto, um busto de bronze! E no dia da festa, Aristarco
sorria de satisfação, envergonhando-se de tantos elogios e adorando ouvi-los encorajado pela
imagem de bronze escondida embaixo de um pano verde, uma réplica sua, na verdade só o
busto, que logo seria seguido pelos braços, pelo tórax, pelas pernas e, um dia, pelas botas.
179
Sonhava com uma estátua inteira no meio da praça onde todos poderiam adorá-lo , mas um
busto já era um bom começo.
Durante a festa, depois de muitas palmas e epígrafes, uma frase ecoou: - Coroemo-lo! E
colocaram uma coroa de louros na cabeça da efígie. Mais palmas. Aristarco, dessa vez não
gostou, sentiu inveja do busto. Entendeu que o homenageado, na verdade, não era ele, que as
palmas não eram para ele, que nada era pra ele. Em silêncio, levantou-se e retirou da cabeça
da estátua a coroa de louros. Mais palmas, pois para a sociedade, ali estava a humildade em
pessoa, não aceitando aquela coroa de glórias... Inveja! Inveja de si mesmo.
XII
O último capítulo é marcado pela doença de Sérgio ( sarampo ) que o leva para a
enfermaria, a casa de Aristarco. Sérgio é assistido por D. Ema e vê pela janela a figura
insinuante de Ângela, por quem dois funcionários do colégio haviam brigado, um matando o
outro. Todas essas lembranças misturavam-se às alucinações da moléstia. Tinha febre,
fraquejava e era sempre amparado por Ema. Sua família havia viajado para a França
deixando-o aos cuidados do Ateneu. Mas Sérgio não se sentia só, não sentia falta da mãe
porque encontrava em Ema tudo o que precisava. Sérgio experimenta um confusão de
sentimentos, pois o que começava com uma manifestação de carinho maternal, agora,
ganhava força numa atração sensualmente inexplicável. Ema por sua vez correspondia das
duas formas. Em um momento era a mãe extremosa, zelando pela saúde do filho querido; em
outro instante, fazendo confidências, entre risos francos ou tristes, como uma amante que se
apaixona aos poucos.
Foi então que, uma noite, madrugada sinistra, gritaram: - Fogo! O Ateneu ardia, queimava em
toda a sua imponência pelas mãos de um aluno novato ( Américo ) que detestara o colégio. Sérgio
acompanhou as tentativas frustradas de salvação. Compêndios de medicina, livros de matemática, de
geografia, cartas, mapas e quadros misturavam-se às vísceras humanas usadas nas aulas de anatomia
queimadas como tudo o mais. Estava acabado o Ateneu. Era o período de férias, mas alguns alunos
ainda estavam ali. Nenhum ferido. Sorte. Aristarco corria de um lado a outro na tentativa de salvar o
que pudesse. Chorou, mas logo enxugou as lágrimas porque não ficava bem pra uma autoridade
pedagógica como ele.
Na manhã seguinte, o esclarecimento: o incêndio fora mesmo causado pelo Américo
que, inteligentemente, desaparecera logo depois do atentado. O mais estranho era que,
justamente durante o incêndio, desaparecera também D. Ema, a mulher do diretor. Aristarco
estava em choque. Respondia a tudo com sua imobilidade. Sérgio compara o diretor a um
deus frustrado, triste diante do fim de sua obra. O narrador fecha o livro chamando-o de
crônica de saudades que, verdadeiras ou não, apenas atestam que o tempo representa, acima
de tudo, o funeral das horas.
Crítica
O romance O Ateneu, de Raul Pompéia, juntamente com Adolfo Caminha ( A
Normalista e O Bom Crioulo ), Rodolfo Teófilo ( A Fome e Violação ) e Domingos Olímpio (
Luzia-Homem ) são grandes representantes do Naturalismo brasileiro. Lembremos, também,
que o Naturalismo possui nas artes um equivalente no chamado Impressionismo ( Van Gogh
180
). Assim, a descrição forte do texto naturalista acaba sendo chamada de impressionista.
Lembremos, porém, que O Ateneu, bem antes de representar um texto de memórias marcado
por uma postura um tanto “homossexual”, tem o objetivo de falar sobre amizade, o tipo de
amizade sincera e desinteressada que, atualmente, é tão difícil de se encontrar. Sérgio entra
com onze anos no Ateneu e sai com 16. Será que é o mesmo menino? Será que as
experiências vividas, o conhecimento adquirido não acabaram influenciando na vida do
Sérgio adulto, na vida do narrador que, vez em quando, parece ter saudade do tempo de
colégio? O que temos é um livro de amadurecimento, pois se o tempo for mesmo o “funeral
das horas”, o que devemos compreender é que as datas não são importantes, mas os fatos,
coisas como as que Sérgio viveu no Ateneu que nunca sairão de sua memória e ajudaram,
seguramente, na formação de sua personalidade. Resumindo, o romance O Ateneu representa
as idéias sutis de um autor extremamente sensível.
34 - Luzia - Homem – Domingos Olímpio
Autor e Obra
Inserido no mesmo período de Machado de Assis, adota, porém, uma postura
naturalista, a mesma de Aluisio Azevedo (de O Mulato). Nasceu em Sobral, interior do Ceará,
onde fez seus primeiros estudos. Em 1865 já estudava em Fortaleza, partindo depois para
Recife. Ingressou na Faculdade de Direito onde conheceu Castro Alves e Tobias Barreto.
Voltou a Sobral e tornou-se promotor público em 1878. Casou com Dona Adelaide Ribeiro
com quem teve uma filha. Com a morte da esposa viajou para o Pará onde participou
ativamente na imprensa e na política, pois foi eleito deputado daquela província.
Alguns anos depois, mudou-se para o Rio de Janeiro, fixou residência e participou
como mediador na questão de fronteira com a Argentina. Em 1903, em edição particular,
publicou Luzia-Homem, seu único livro. Até o ano de 1906, dirige a revista “Os anais” na
qual publica outro romance, O Almirante, e os primeiros capítulos da novela O Uirapuru.
Candidatou-se a uma cadeira na ABL, mas foi derrotado por Mário de Alencar, filho do José
do mesmo nome , em 1905. Em 1906, a 06 de outubro, falece de embolia cerebral, no estado
do Rio de Janeiro.
Momento
Iniciado na França com a publicação de Contos Experimentais de Emíle Zola, o
Naturalismo é uma espécie de “extensão” do Realismo. As diferenças entre um e outro darão
ao Naturalismo um caráter especial. Por exemplo, enquanto o Realismo denuncia, o
Naturalismo tem a nítida intenção de corrigir as atitudes, a personalidade e os vícios
humanos. Foi introduzido no Brasil com a publicação de O Mulato de Aluisio de Azevedo,
que abriu o caminho Adolfo Caminha, Domingos Olímpio e Manuel de Oliveira Paiva.
Legitimamente embasado nos preceitos cientificistas de Charles Darwin (Evolução da
Espécies)e na crítica social de Karl Marx (Manifesto Comunista) o estilo ganhou um caráter
laboratorial, pois o empirismo, o “ater-se aos fatos” do Naturalismo contrasta com a
181
imprecisão do Realismo, movimento no qual a “sugestão” é a palavra de ordem. Quanto às
características do Naturalismo, os desvios de personalidade (cleptomania, homossexualismo,
doenças hereditárias etc), o homem agindo como animal “a besta humana” e a crueza dos
fatos apresentados mostram que não há uma simples atitude de denúncia, mas sim, uma
tentativa de corrigir o que parece estar errado.
Resumo
A história de Luzia, chamada de “Homem” por ter um físico avantajado e também um
buço, começa com a construção da penitenciária de Sobral, no Morro do Curral do Açougue.
Homens, mulheres e crianças, quebrantados pela seca, trabalham sem cessar na construção da
nova cadeia. Recebiam como pagamento, farinha, arroz e charque. Entre esses miseráveis,
encontrava-se Luzia-Homem, que ali trabalhava para sustentar a mãe, D. Zefa, e não morrer
de fome. Luzia se destacava diante das outras mulheres por seu porte físico e, segundo um
misantropo pesquisador francês de nome Paul a moça uma vez carregou uma parede inteira na
cabeça. Luzia era mesmo forte como um homem (deu muitas provas disso) mas era bonita
como poucas mulheres na região. Isso dá ao livro um caráter dicotômico, ou seja, Luzia era
mulher ( sentimental e bonita ), mas também é Homem (sempre trajou-se como um menino e
assumiu papel do pai no sustento da família ).
Luzia não se importava com o que falavam dela e continuava seu trabalho. Foi então
que Crapiúna, um dos soldados do destacamento, o pior deles, engraçou-se com Luzia e disse
que não a deixaria em paz enquanto não a possuísse. Ao mesmo tempo, também apaixonado
por Luzia, mas sem assumir isso publicamente, o jovem Alexandre, funcionário do armazém
de suprimentos, fazia de tudo para agradá-la. Deu-lhe um dia lindos cravos como
demonstração de afeto. Andavam sempre juntos e, como é natural no interior, o povo
começou a falar. As pessoas diziam que Alexandre e Luzia estavam namorando e já pensando
em casar.
O ciúme e o ódio tomaram conta de Crapiúna que, na surdina, ajudado por Gabrina,
moça ingênua apaixonada por Alexandre, armou um plano para prejudicar Alexandre.
Crapiúna arrombou o armazém de suprimentos e levou mantimentos e dinheiro. A polícia foi
chamada e como o principal responsável era Alexandre, e apenas ele tinha acesso ao local, o
jovem foi preso. Não que fosse comprovadamente o culpado, mas ficaria detido até a última
ordem ou até que se encontrasse o verdadeiro criminoso. Acusado por Crapiúna (homem da
Lei) e prejudicado pelo depoimento de Gabrina, que disse ter recebido presentes do rapaz,
Alexandre foi para a cadeia onde passou a sofrer o diabo, junto de marginais da pior espécie.
Luzia-Homem, imediatamente, pôs-se a procurar uma forma de ajudar o amigo.
Chegou a vender os cabelos para a mulher do promotor público e fazer consulta com Rosa
Veado, rezadeira e mandingueira da região, mas nada adiantou. A amiga Teresinha também
fazia de tudo para provar a inocência de Alexandre. Crapiúna continuava importunando
Luzia. Mas a moça resistia., queixando-se ao delgado dos assédios do soldado. O delgado
deixou Crapiúna sob investigação.
A vida de Luzia e D. Zefa é preenchida apenas com o trabalho do dia-a-dia e os
préstimos da amiga Teresinha que, numa noite, acaba contando a Luzia sua verdadeira
história. Num flash-back, o leitor fica sabendo que Teresinha, moça loira, de olhos azuis e
182
bem apessoada, pois era filha de família abastada, perdera-se o mundo por causa de um amor.
Apaixonara-se por um rapaz de nome Cazuza, mas o pai, o Capitão Marcos, era um homem
autoritário, não queria a filha envolvida com gente que não fosse da mesma classe social.
Teresinha era muito jovem e teimou. Fugiu com Cazuza e passou a sofrer pelo mundo, pois o
rapaz adoeceu e morreu de bexiga. Daí por diante, a moça passou a sofrer pelo sertão, até que
um dia, um outro rapaz engraçou-se dela. Berto era um homem viril, valente, possessivo, mas
Teresinha vivia apanhando de seu novo companheiro. Conheceu outro rapaz, o filho de uma
família importante e fugiu com ele, vivendo num mundo de delicadezas. Mas, como ninguém
consegue explicar o coração das mulheres, Teresinha passou a sentir falta de Berto, dos
tabefes que levava, achava que aquela violência era o jeito dele de gostar dela. Abandonou o
novo companheiro e, não encontrando mais Beto, pois o mesmo acabara morrendo, passou a
errar sem destino. Foi o exato momento em que a Seca de 77 passou por ela. Para sobrevier,
teve que se prostituir. Esta era sua história. Luzia teve pena de Teresinha e consolou a
rapariga.
Uma noite, Teresinha, que morava na Gangorra, perto da casa do soldado Belota, onde
havia uma banca de jogo, vício maior de Crapiúna, viu o soldado, escondido, tirando dinheiro
de dentro de uma bolsa. Era o dinheiro do armazém, que Crapiúna gastava sem medida em
jogos de azar e presentes para suas “conquistas”. Teresinha pulou a cerca e pegou a bolsa com
o dinheiro do armazém. Em seguida, Teresinha foi à delegacia e, diante de todos (delegado,
juiz, soldados e testemunhas) acusou Crapiúna de ser o verdadeiro ladrão. O delegado chamou
o soldado que, mesmo negando tudo, foi preso. Recuperaram o dinheiro e, finalmente
Alexandre foi solto.
Com o soldado Crapiúna preso, a cidade ficou bem mais calma. As mulheres ficaram
aliviadas e Luzia se sentiu bem mais segura. Alexandre, meio fraco por causa da temporada
na cadeia, voltou a encontrar Luzia-Homem e, numa cena típica do Romantismo, demonstrou
o que sentia por ela. Devolveu-lhe os cravos que Luzia havia abandonado nas grades da
cadeia, um dia quando fora visitá-lo e ficou enciumada. Alexandre convida Luzia e Tia Zefa
para, junto com ele e os amigos, mudarem-se para outro lugar, sonho antigo de Luzia.
Desejavam ir para a Serra da Meruoca onde a seca era menor.
O narrador apresenta também a chegada a Sobral da família do Capitão Marcos, pai de
Teresinha que, também pego pela seca, perdera quase tudo que tinha. Reuniu seus pertences e
partiu na direção da cidade intelectual, a cidade suntuosa do Norte. No caminho, morrera-lhe
o comboio quase todo sobrando-lhe apenas o burrico Macaco. Na chegada, Marcos, a esposa e
a pequena Maria da Graça encontram Teresinha. Mãe e filha se reconhecem. Choram juntas,
mas o pai fica irredutível, pois não pretende perdoar tão cedo a filha ingrata que abandonou a
família para fugir com um homem causando-lhe vergonha. Teresinha arranja até uma casa (
com fama de mal assombrada ) para a família ficar, mas o pai, ainda assim, não pretende
perdoá-la. Todos concordaram e, em pouco tempo, puseram os pés na estrada. Unem-se a
Alexandre e Luzia e resolvem também ir para a Meruoca.
Saem de madrugada. Na metade da serra, levando tia Zefa numa rede, iam Alexandre e
outros homens. Raulino, amigo de Luzia, ia guiando o grupo. Luzia-Homem e Teresinha
caminham um pouco à frente. De repente, Luzia ouve os gritos de Teresinha. Corre até perto
dela e vê Crapiúna, que fugira da cadeia durante o banho dos presos, e tentava vingar-se de
Teresinha, maior responsável por sua prisão. Luzia não deixou o soldado aproximar-se da
183
amiga e interveio de forma incisiva. Crapiúna, com sua vingança não concretizada, investiu
contra Luzia travando-se um corpo a corpo. Crapiúna, mesmo depois de dizer para Luzia que
não tinha coragem de machucá-la, tentava estuprar a moça que, enquanto se defendia, cravou
as unhas no rosto do soldado. Ferido, física e moralmente, Crapiúna desfechou um golpe de
faca no peito de Luzia-Homem, ao mesmo tempo em que, cego, pois Luzia arrancara um de
seus olhos, o soldado (tarado e ladrão) rolou, aos gritos, pelo barranco, indo parar no fundo de
um precipício.
Quando Raulino e os outros chegaram ao local, a moça já estava morta, caída, à beira da grota, com
os cabelos na água. Nada mais puderam fazer a não ser encomendar a alma da corajosa LuziaHomem, com uma expressão mística do sertão: “Jesus seja contigo! Jesus, Maria e José. “
Crítica
Sobre Luzia-Homem de Domingos Olímpio muitas observações devem ser feitas.
Porém, sem esquecer jamais o que a obra em si representa para o povo do Ceará. É um retrato
fiel da situação do homem do sertão. Luzia-Homem não é “homem” nem “Luzia”, é gente do
sertão na incessante luta pela vida. Luzia, na verdade, nem vive, ela luta com todas as forças,
como seus companheiros, pela sobrevivência igualando-se aos bichos da região. Reside talvez
aí, o tom Naturalista do romance; o homem que age como animal, a “besta humana”, como o
próprio Crapiúna.
Única publicação de Domingos Olímpio, pois O Almirante, O Uirapuru e alguns
contos e crônicas não foram publicados, Luzia-Homem (1903) foi feito, apesar da conotação
romântica que cerca a personagem principal, nos moldes naturalistas. Mesmo não sendo o
primeiro romance a tratar da seca e dos retirantes em sua luta por uma vida melhor, o texto de
Domingos Olímpio é considerado o marco inicial desse tipo de temática.
O texto possui características importantes demarcadoras do Naturalismo intrigante de
Zola. A luta pela melhora das condições sociais, o trabalho subumano, quase escravo, o
homem determinado pelo ambiente que o cerca, os vícios do ser humano e o “pathos”
(presente em Crapiúna), as personagens de classe totalmente inferior, contrário do
Romantismo classicamente burguês.
É importante notar também, a postura moderada de Domingos Olímpio que, em vez de
fazer um Naturalismo-Modelo, como outros o fizeram, valendo-se da “bestialidade” humana
para dar ênfase aos contornos eróticos, preferiu um tom mais regionalista e mais preocupado
com o problema social. A sensualidade de Luzia-Homem não é o mais importante, mas o que
ela é faz ou pensa.
Agiu de forma brilhante também quando fez de Luzia-Homem , em dados momentos,
um tipo de personagem “extraída” de um romance romântico, podendo tal recurso remeter
simplesmente ao artificialismo, muito presente nas obras românticas. seria um tipo de ironia a
autores como Alencar e Macedo.
O romance Luzia-Homem, narrado em 3a pessoa, é, sem dúvida, uma análise
comportamental do homem em seu meio. A luta pela comida ou pela vida, da parte de LuziaHomem, dos retirantes ou do próprio Crapiúna (antagonista em conflito, pois não sabemos
direito o que sente por Luzia) comprovam quão instintivos eles podem ser. A paixão de
Crapiúna por Luzia é uma temática de cunho realista, porém, dominada pela égide do
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Naturalismo, numa observação constante do homem, bestializado, e dos dramas sociais e
particulares causados pela “maldição” do povo nordestino, a seca.
35 - CAPITÃES DA AREIA – Jorge Amado
Autor e Obra
Nasceu em 1912, em Itabuna, Bahia. É um dos escritores mais populares
do país, sendo um romancista baiano por excelência. Seus primeiros textos ( Cacau/1933;
Jubiabá/1935; Mar Morto/1936; Capitães da Areia/1937 e Terras do sem-fim/1943 ),
primeira fase, constituem francas denúncias sociais e correspondem ao período de intensa
participação política do autor pelo Partido Comunista Brasileiro. A partir de 1958, com o
romance Gabriela, cravo e canela tem início uma nova fase, a segunda, da sua produção
literária, em que predominam a crítica aos costumes e a sátira, que passam a ter bastante
aceitação popular, pois é o momento dos textos Dona Flor e seus dois maridos/1967 e Tenda
dos Milagres/1969 dentre outros.
Momento
Pertencente ao Segundo momento modernista ( 1930 a 1945 ), Jorge Amado será também
marcado pela crítica social, ou seja, escreverá textos que terão como principal finalidade
denunciar e criticar as diversas injustiças do Brasil e do Nordeste como por exemplo a Seca,
o Coronelismo, a Prostituição e outros defeitos de nosso país. A Geração de 30 ficará
marcada também por esse tipo de texto, tanto que o maior representante será Graciliano
Ramos com os romances Vidas Secas, Angústia e São Bernardo. Assim, se tivermos que
enquadrar Jorge Amado e sua obra, devemos inseri-lo exatamente nesta geração, mas sem
esquecermos de sua contemporaneidade, pois os assuntos de que tratava ainda hoje afetam a
sociedade brasileira. O que temos, então, é um momento de preocupação social, o que acabará
marcando a obra de autores como Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moares,
grandes nomes da poesia.
Resumo
O livro começa com notícias de jornal falando sobre os Capitães da Areia, o mais
temido grupo de assaltantes que a Bahia já conheceu. O mais impressionante, segundo o
jornal, é que são apenas crianças, mas verdadeiros delinqüentes que precisam ser presos e
passar por um corretivo no reformatório municipal.
Sob a lua num velho trapiche abandonado
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O Trapiche
Nesta parte temos a apresentação do casarão, o local onde os Capitães da Areia vivem,
um casarão antigo e escondido entre as dunas, perto do Cais do porto. Também passamos a
conhecer o líder do grupo, o menino Pedro Bala, que tem esse nome porque o pai, que ele
desconhece, morreu alvejado por um tiro no meio de uma greve operária.
Noite dos Capitães da Areia
O leitor é apresentado a todos os membros do grupo ( mais de 50 meninos de rua )
havendo destaque especial para as figuras de: Sem Perna ( moleque, piadista e mau ); Gato (
malandro, jogador de baralho que tem como passatempo derrubar as negrinhas no areal vai
virar gigolô ); Professor ( rouba livros, gosta de literatura e desenho e conta histórias para os
outros, é o intelectual da turma, planeja os roubos ); Boa Vida ( malandro completo, tocador
de viola e meio tarado ); João Grande ( amigo mais próximo de Bala, corpulento e de bom
coração); Pirulito ( menino de boa índole, que rouba por necessidade e sonha em ser padre )
;Volta Seca ( moleque de origem nordestina, afilhado de Lampião, sonha com o dia em que
poderá entrar para o bando do padrinho ).
Ponto das Pitangueiras
Os Capitães da Areia são contratados para um serviço, pegar um embrulho na casa de
gente rica, na verdade de um cara que estava faturando a mulher de um amigo e não sabia
como recuperar as cartas de amor que a mulher possuía. Pedro Bala e seus amigos entram na
casa, pegam o embrulho e cumprem a missão.
O Carrossel
Chega à cidade um carrossel de propriedade do Sr. Nhôzinho. Os meninos ficam
maravilhados. Sem Pernas e Volta Seca são convidados para trabalhar no carrossel. Pe.
Pedro, um padre que sempre protegeu os Capitães da Areia, vai ao trapiche para convidá-los
para um passeio no parque. Vão todos, e no parque, uma velha da sociedade desdenha do
padre e de seus amigos pobres, diz que vai se queixar ao bispo.
Docas
Pedro Bala, Pirulito e Boa Vida brincam nas docas. Nesse momento, o narrador mostra a
Bahia em todos os seus aspectos ( negros trabalhando, se divertindo , candomblé, os
estivadores, a malandragem , o lado social da burguesia sustentada pelo cacau, a pesca e as
greves trabalhistas ). Pedro Bala fica sabendo de sua origem, o pai era estivador e acabou
amando uma moça rica, que abandonou a família para viver com ele no morro. Depois da
morte da mãe e do pai ( levou um tiro porque era sindicalista ) Bala transformou-se em
menino de rua, organizou o grupo, colocou pra fora o ex-chefe e passou a comandar os
Capitães da Areia. Bala vai para o Cantoá ( zona de terreiros ) e depois vota ao trapiche,
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pensando na vida. No meio do caminho, no areal encontra um negrinha, o desejo é muito, a
negrinha é uma beleza! Tenta estuprá-la, negociam. Tudo dá certo, mas a negrinha o
amaldiçoa. Chega ao trapiche, mas não dorme, pensa na vida.
Aventura de Ogum
Pedro Bala recebe a missão de resgatar o santo de D. Aninha, uma macumbeira, que a
policia acabou de tomar e levar presos para a delegacia. O santo está dentro da delegacia e
Bala inventa uma história par ser preso e resgatar o santo. Depois de muitos problemas
consegue. Todos admiram a coragem e a astúcia de Pedro Bala.
Deus sorri como um Negrinho
Reflexão de Pedro Bala e do Narrador sobre a sociedade, sobre Deus e sobre as injustiças
do mundo. Pirulito passa a ser enfocado pelo narrador porque parece, segundo o mesmo e
segundo Padre João, o único que pode se salvar em meio àquele monte de delinqüentes. O
Padre pensa em torná-lo sacristão, mas terá que enfrentar a própria Igreja. A narrativa
prossegue sobre a tentação de Pirulito de roubar uma pequena imagem de Cristo criança em
uma loja que nunca é comprada e fica sempre naquela vitrine. Pirulito, depois de muito se
martirizar, acaba levando a imagem. Pirulito imagina que foi nossa Senhora que o ofertou. O
menino Jesus parece sorrir aconchegado ao seu peito.
Família
Este episódio trata da dica dada por Boa Vida sobre a casa de uma família rica que seria
moleza ser roubada se o Sem Pernas ( que fingia muito bem ) conseguisse enganar a todos
passando uns dias na casa. Sem Pernas representa muito bem e engana a todos. Aos poucos,
foi tomando o lugar do filho do casal ( Augusto ) que havia morrido ainda jovem. Sem
Pernas, depois de anos sem carinho, agora estava se apegando ao casal, D. Ester e Seu Raul ao
ser tratado com carinho e mordomias. Mas, sentou-se traindo os Capitães da Areia. Abandona
tudo e vota para o trapiche. O assalto é feito, mas a família nem se importa com o que foi
roubado, apenas quer notícias do segundo filho querido que saiu uma tarde e nunca mais
voltou . Saí uma nota no jornal. Sem pernas sofre quando lhe lêem a notícia.
Manhã como um quadro
Pedro Bala e Professor caminham pela cidade e tentam ganhar dinheiro com o talento de
professor. Ele desenha um casal e ganha um trocado. Depois desenha um homem que vinha
passando com jeito de poeta. O homem dá-lhe um cartão e diz que pode fazer alguma coisa
por ele no futuro. Feito o retrato, o homem dá-lhe uma piteira dourada, orgulho maior do
professor. No trapiche, professor se irrita com Bala que diz que ele devia procurar logo o
homem, pois não aceita, mas parece que do meio deles tudo o que pode sair é mais um ladrão.
A vida continua em sua mesmice.
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Alastrim
Padre Pedro é chamado à Diocese porque encobriu um caso de varíola. Almiro, um dos
meninos, que era bicha, ficou doente de bexiga ( varíola ), e mesmo contando com a ajuda do
padre para se esconder, foi mandado para o lazareto, de onde diziam que era um passo para a
cova. A Diocese descobriu que o padre já sabia, por isso foi denunciado, pois era proibido
manter em casa alguém com a doença. Padre Pedro tenta convencer o bispo de sua inocência
justificando com a missão que tem de salvar os Capitães da Areia, mas o bispo tem coração
duro e humilha o padre. Pedro fica arrasado. Almiro morre e Boa Vida fica doente. Para não
contaminar os outros, Boa Vida abandona o trapiche. Tempos depois, reaparece, ossudo e
marcado pela doença.
Destino
Num bar, Pedro Bala e os outros falam sobre a vida de pobre ( doença, miséria etc. ) Um
homem diz que vida de pobre é só desgraça e sempre será assim. Bala diz que o destino um
dia pode mudar. Os Capitães da Areia orgulham-se dele.
Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos
Filha de Bexiguento
O leitor gora conhece Dora, filha de um casal que morreu de bexiga. Dora fica sozinha,
cuidando do irmão mais novo, Cara de Fuinha. Dora é magra, bem feita, coxas grossas, tem
cabelos loiros e olhos bonitos enfeitando um rosto simpático. Corajosa, abandona o Morro e
vai pedir emprego na cidade. Onde chega é enxotada porque pode ter contraído a doença.
Pede emprego em uma casa onde a mãe havia trabalhado. Enquanto a velha resolve, o filho
da mesma não pára de olhar para os peitos de Dora, que mesmo com seus treze anos, já tem
alguns atrativos. O menino já pensa nas noites que pode passar com ela, divertindo-se como já
fizera uma vez com outra empregada, mas quando sabem que Dora é filha de bexiguentos, a
velha a expulsa. Dora encontra, na rua, Professor e João Grande, que a levam para o trapiche.
Quando chegam ao casarão, na mesma hora, os tarados, principalmente Boa Vida e Sem
Pernas, querem “derrubar “ a menina. Professor não deixa, protege Dora e o irmão com o
próprio corpo e enfrenta os outros. Bala chega e dá razão aos tarados, mas depois que vê o
choro de Dora e percebe que é apenas uma menina também enfrenta os outros e diz que
ninguém deve tocá-la. Todos obedecem. Dora entra para o grupo.
Dora, Mãe e Dora Noiva
Dora vai-se adaptando à vida no trapiche e ao estilo dos Capitães da Areia, passa a ser um
deles. Um dia, aparece de calça comprida e camiseta como um menino e diz que está pronta
para ir para ir à rua roubar como os outros. Bala tira uma onda: - Tu tá engraçada! “. Aos
poucos todos vão aceitando, pois cada um deles tem um tipo de carência afetiva que Dora vai
aos poucos suprindo com seu jeito meigo e dedicado. Costura a roupa do Gato, cuida da ferida
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de Sem Perna, ajuda o Boa Vida, compreende o Pirulito na sua vocação, coisa que ninguém
fazia, pois todos riam dele. Dora passou a ser para os Capitães da Areia a irmã mais velha que
nunca tiveram e para a maioria deles um tipo de mãe, atenciosa com a qual sempre sonharam.
Mas nem todos a viam assim. Professor via em Dora a possibilidade de um amor. Dora via
Pedro Bala como um tipo de herói desde o momento em que chegara. A vida segue sem
novidade até o dia em que Pedro Bala leva uma surra dos meninos do outros bando, o bando
de Ezequiel. Bala chega muito ferido. Dora cuida dele e a atração entre os dois é visível.
Disfarçam. Depois de alguns cuidados, deitam nas dunas e ficam olhando as estrelas. Bala
conta sua história, chegara ali com cinco anos... Dora lhe contou coisa do morro. Riram
inocentemente. Dormiram de mãos dadas, como dois irmão. Pedro Bala, por sua vez, pensava
em Dora como uma noiva.
Reformatório e Orfanato
Este episódio começa com as manchetes de jornal informando: PRESO O CHEFE DOS
CAPITÃES DA AREIA . Pedro Bala agora está preso e vai para o reformatório , de onde
diziam todos que só sairia morto. O que houve foi que, em um dos assaltos que o grupo
resolveu fazer, ao entrarem num quarto da casa, o filho do dono, que não estava dormindo,
trancou-os por fora. A polícia foi chamada e todos foram presos, inclusive Dora, fato que
chocou a opinião pública. Dora disse à imprensa que era noiva de Pedro Bala e que iriam se
casar. Estavam com eles ainda Gato, Sem Perna e João Grande. Mas na hora da prisão, Pedro
Bala espertamente conseguiu desviar a atenção dos guardas para si. O que fez com que os
outros conseguissem fugir. Bala foi para o reformatório e Dora para um orfanato. No trapiche,
após a leitura da notícia pelo Professor, todos disseram: Temos que salvar o Bala! Enquanto
isso, no Reformatório, Pedro Bala é submetido a todo tipo de sofrimento na tentativa de que
revelassem onde ficava o esconderijo dos Capitães da Areia, mas é inútil. Ele sofre apanha,
fica sem comer e é trancado na cafua ( solitária ) mas não diz uma palavra. Faz amizade com
um dos reformandos, consegue cigarros e entra em contato com os amigos que ficam do lado
de fora. Arma um plano e foge, deixando o diretor furioso. No dia seguinte, a notícia agora é
outra: O CHEFE DOS CAPITÃES DA AREIA CONSEGUE FUGIR DO
REFORMATÓRIO. A entrevista furiosa do diretor causa riso em todos, inclusive no Padre
Pedro que está visitando o trapiche.
Pedro Bala arma um plano para salvar Dora. Entram sem que ninguém perceba pela
enfermaria onde Dora está internada. Ela está com febre, mas seu aspecto melhora logo que
vê seu amado. Conseguem tirá-la sem problemas, pois a enfermaria é comandada por freiras.
Descem por uma ladeira. Dora vai segurando a mão de bala. Volta Seca segura um punhal.
Ninguém impede a fuga.
Noite de Grande Paz e Dora Esposa
A febre derrubou Dora e ela não pode correr com os Capitães da Areia, não corre com
seus irmãos, com seus filhos. Todos esperam e temem por sua saúde. A paz envolve o
trapiche. D. Aninha, a macumbeira, é chamada para tentar tirar a febre de Dora. Padre Pedro
também é chamado. Dora continua doente.
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No meio da noite, Dora tem uma melhora e chama Pedro Bala. Diz que o ama e que já
que fugiu do orfanato e é moça agora pode ser mulher dele. Chama-o para o colchão. Pedro
reluta, pois ela está doente. Ela insiste. Ele entende que pode ser a primeira vez e também a
última. Fazem amor. Agora são marido e mulher. Depois disso, com uma expressão de
felicidade, Dora morre, segurando a mão de Pedro Bala. O amor é sempre doce e bom,
mesmo quando a morte está próxima. Nos corações dos dois meninos não há mais nenhum
medo. Somente paz, a paz da noite da Bahia.
Os Capitães da Areia chama o Querido-de-Deus, um amigo capoeirista que tem um barco
e pedem para que ele leve o corpo de Dora para junto de Iemanjá. O padre concorda, pois se o
enterro saísse do trapiche, todos iam saber onde os meninos se escondiam. Pedro Bala não
solta o corpo da amada. Professor o consola. O saveiro entra no mar silencioso.
Como uma estrela de loira cabeleira
Dizem no cais da Bahia que quando um homem valente morre vira estrela no céu. O que
ninguém nunca disse foi se mulher também virava estrela, pois Rosa Pameirão e Maria
Cabaçu viraram santas nos terreiros de macumba. Pedro Bala pulou no mar querendo morrer
junto com Dora. Ele olha para o céu vê uma estrela que nunca vira. Alegra-se e esta
felicidade ilumina o seu rosto, pois sabe que Dora brilhará sempre para ele entre mil estrelas
no céu da cidade negra. O saveiro de Querido-de-Deus o recolhe.
Canção da Bahia, Canção da Liberdade
Vocações
Muito tempo depois da morte de Dora, sua presença e sua ausência são marcantes nas
noites do trapiche. Professor entrou no casarão e não acendeu sua vela, não abriu um livro,
não contou nenhuma história. Olhava o trapiche como quem olha uma moldura sem quadro.
Toda vida do trapiche havia acabado junto com a vida de Dora. Chegou para Bala e disse que
ia embora. Travara relações com o homem da piteira dourada que disse que ele tinha futuro.
“De que adianta essa vida da gente? Só pancada da polícia quando pegam a gente. Todo
mundo diz que um dia pode mudar...Padre José Pedro, João de Adão, tu mesmo. Agora vou
mudar a minha... Vou estudar com um pintor do Rio. Um dia vou mostrar como é a vida da
gente...Faço o retrato de todo mundo... “ Pedro Bala o entende e autoriza. Acorda todo mundo
e informa a decisão de Professor. Todos batem palmas para o futuro pintor, que um dia
deixaria o acadêmico para pintar sozinho e impressionaria o país. No dia seguinte, levam-no
à estação. Nunca ninguém viu tanta gente se despedindo de um passageiro de terceira classe.
Uma voz chamou o Professor. Por outro lado, a voz de Deus chamava Pirulito. Ele se
preparava há tempos, mas não tinha coragem e faltava-lhe a oportunidade. Deus amansa os
corações... Padre Pedro é chamado novamente à Diocese. Vai com medo. Desta vez, o
superior dos Capuchinhos está com ele. O bispo diz-lhe que ele acaba de ganhar uma
paróquia, que é um pouco distante, fica no sertão ( morada dos cangaceiros ), mas onde se
podia fazer um bom trabalho assistencial. O Padre gosta da notícia, pois a gente pobre do
sertão e do cangaço também precisa de Deus. Aceita com gosto. Mas antes de sair, o Frei
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Capuchinho o chama e diz que ficou sabendo que dentre os Capitães havia um que tinha
vocação... Pedro o informa que o capuchinho lhe diz que se quiser levar o menino a Igreja o
acolhe sem problemas. Chamado é chamado.
Dias depois, os capitães d areia levam Padre Pedro à estação, está de partida. Com eles
está Pirulito, já vestido de capuchinho e com um ar sereno de quem encontrou o caminho
certo. O padre vai embora com lágrimas nos olhos.
Tempos depois, entra no trapiche o Boa Vida, vestido como um malandro profissional,
violão debaixo do braço, agora faz modinhas. Inimigo da riqueza e do trabalho, amigo das
festas, da música e do corpo das cabrochas, jogador de capoeira, navalhista e ladrão se preciso
for, mas de bom coração, principalmente para os amigos. Os capitães da Areia sempre amarão
Boa Vida como Boa Vida amou e admirou o Querido-de-Deus.
Um dia, Pedro Bala e Sem Pernas vão passando pelas ruas da cidade, em busca de
alguma bolsa, e escutam a voz de Pirulito, pregando para as crianças pobres. Admiram-no.
Sem Pernas parece ouvir a voz do ódio, ódio dos policias e das injustiças que sofreu. Pedro
bala escuta a voz de seu pai morrendo, a voz da Luta.
Canção de Amor da Vitalina
Gato contou que era vitalina, que morava praticamente só e que tinha um monte de
dinheiro. Sem pernas armou novamente o seu plano ( ele sabia fingir como ninguém que era
uma criança carente ). Quando chegou à casa da vitalina com sua conversa de órfão e aleijado,
a vitalina sensibilizou-se. Mas não era a voz da bondade que falava dentro dela, era a voz do
sexo que dava seus últimos latidos. Um dia aquilo já acontecera, mas seu irmão descobrira e
expulsara o menino... Mas o irmão agora estava morto e aquele menino ali, sozinho, tão
carente... Mandou-o entrar. Banho e comida e o Sem Pernas era outro. Fixou dormindo num
colchão perto da cozinha. À noite, a vitalina atacou o Sem Pernas, mas ele já esperava. A
vitalina apertava o seu sexo contra o do menino, botava a mão dele em seu corpo, mas quando
o Sem Pernas quis tudo ela não deixou. E Sem Pernas passou a odiar aquela coisa incompleta
que acontecia todas as noites. Queria ir embora, abandonar o plano do roubo, mas não
conseguia Estava preso ao sexo, ao desejo de ir até o fim, mas quando? De dia, tratava mal a
solteirona, ela chorava. Dizia que ia embora, mas nunca ia. Prisão. Sem Pernas durante o dia
se odeia, a odeia e odeia o mundo todo. À noite, é quase-feliz nos braços da vitalina. Pedro
Bala cobra uma ação de Sem Pernas. Ele se resolve, analisa tudo e o roubo é feito, exatamente
quando a vitalina o esperava pra mais uma noite de amor incompleto. Sem Pernas não
aparece. Ela se contorce, tem um ataque. Enquanto isso, Sem Pernas ri, relatando sua
aventura, mas por dentro há um desejo que impede seu sono, que lhe dá raiva.
Na rabada de um trem
Navios chegam a Ilhéus carregados de prostitutas. Mulheres que vêm de toda a Bahia, de
Aracaju, de Recife e até do Rio de Janeiro. Os cabarés tomam de conta de Ilhéus. O gato
agora é quase um homem. Arrumado engana a qualquer um. Conversa com Pedro Bala e diz
que vai com Dalva pra Ilhéus, lá vai ganhar a vida. Tomava atitude de homem. Desde
pequenos que os Capitães da Areia eram homens. Tinham sido sempre iguais a homens.
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Agora os mais velhos iam seguindo o seu destino. Boa Vida tocava violão pela cidade, sai até
nos jornais. Pirulito é frade num convento. Agora é o Gato que parte, mesmo para ser gigolô
pelo mundo. Diz que um dia vai enricar. Só Pedro Bala não sabe aonde ir. Dentro em pouco
passará o comando dos Capitães da Areia para outro. O que fazer? Não é um intelectual como
o Professor... A vontade é ir por aí na rabada de um trem.,..
Mas quem vai na rabada de um trem é Volta Seca, que resolveu passar uns tempos com
os Maloqueiros de Aracaju. Tomou essa decisão depois que foi preso e surrado pela polícia da
Bahia. Quando saiu descobriu a sua vocação: matar soldado de polícia. Pulou num vagão de
cargas na estação e começou sua viagem. O sertão comove os olhos de Volta Seca. O trem
corre devagar e ele pensa na vida e no padrinho que é dono de todo o sertão, pensa em
Lampião, em conhecê-lo pessoalmente... O trem pára no meio da caatinga. É um assalto.
Lampião entra no vagão, rende todos com seu homens e começa a limpeza. O coração de
Volta Seca pula de alegria e, ao ficar frente a frente com Virgulino, ele o chama de padrinho e
lhe conta a história contada por sua mãe. Lampião o observa com seus óculos escuros e diz
que ele é apenas uma criança, não pode entrar para o bando. Volta Seca diz que já brigou com
soldado de polícia. Lampião manda que lhe dêem um fuzil. Volta Seca mata dois soldados
friamente e os cangaceiros dizem ao chefe: - Esse menino é dos bons! Lampião fica
orgulhoso. Volta Seca faz dois riscos no fuzil, os primeiros de muitos que ainda viriam...
Como um trapezista de circo
Um dia, durante u assalto a um casarão da rua Rui Barbosa, Pedro Bala e Sem Pernas são
surpreendidos pela polícia. Correm. Sem pernas fica encurralado. A cena é de humor negro.
Sem Pernas corre, do jeito que pode, os guardas se divertem. O menino já estava cheio de
ódio. Odiava a cidade, odiava a vida e os homens. Uma vez uma mulher foi boa para ele, mas
na verdade não fora com ele mas com o filho que perdera, que voltou na figura dele. Outra
vez uma mulher se deitara com ele, segurava seu sexo e se aproveitava dele par recolher as
migalhas de amor que nunca tivera. Nunca ninguém o tinha amado pelo que era: menino
abandonado, aleijado e triste. Muita gente o tinha odiado. Ele também odiava a todos.
Encurralado num cartão Postal da cidade, pára, ri com todo a força do seu ódio, cospe na cara
de um que se aproxima estendendo os braços e se atira de costas no espaço, como se fosse um
trapezista de circo. Arrebenta-se nas pedras como um trapezista que não conseguiu alcançar o
outro trapézio.
Noticias de Jornal
Novamente, os jornais falam dos Capites da Areia. O Jornal da Tarde publica um
telegrama do rio dando notícia sobre a exposição de um pintor desconhecido que é uma
grande promessa de sucesso. Um trecho da notícia fala das qualidades e defeitos do novo
pintor social: “... um detalhe notaram todos que foram a essa estranha exposição de cenas e
retratos de meninos pobres. É que todos os sentimentos bons estão sempre representados na
figura de uma menina magra de cabelos loiros faces febris. E que todos os sentimentos maus
estão representados por um homem de sobretudo negro e um ar de viajante. Que representará
para um psicanalista a repetição quase inconsciente dessas figuras em todos os quadros? Sabe-
192
se que o pintor João José tem um história ... “. Outro jornal dava conta da prisão e do
recambiamento de Gato, vigarista baiano que cidade nenhuma queria ficar com ele. A
POLÏCIA DE BELMONT DEVOLVE O VIGARISTA GATO. Noutra parte do jornal, Boa
Vida estava sendo procurado por ter aberto a cabeça de um homem importante com uma
garrafada. E por último, a notícia mais estarrecedora: UMA CRIANÇA NO BANDO DE
LAMPIÃO. Um dos mais temíveis cangaceiros do sertão era penas um menino de dezesseis
anos e que, provavelmente, pertencera ao famoso grupo de delinqüentes Capitães da Areia. A
notícia se estendia narrando os mais diversos crimes do jovem cangaceiro. Volta Seca foi
julgado e condenado a trinta anos por quinze mortes comprovadas, embora já possuísse em
seu fuzil sessenta marcas, lembradas pelo jornal como sendo uma para cada homem morto.
No dia do julgamento, o promotor público foi tão eloqüente que todo o júri chorou. E o
público ficou indignado porque o cangaceiro menino tinha apenas o rosto sombrio e cheio de
uma estranha calma.
Companheiros
O livro agora ganha um contorno assumidamente político. Pedro Bala e João Grande são
procurados no trapiche por João de Adão ( líder sindical da s docas ) e um estudante chamado
Alberto que tem ligações com a Esquerda. Pedro Bala é convidado a fazer parte de um
movimento que engrossa fileiras e protege o direito de greve do portuários e dos ferroviários.
A missão de Pedro Bala e dos capitães é evitar que os fura-greves enfraqueçam o movimento
dos trabalhadores. Bala divide o grupo em três e no momento em que os fura-greves começam
a chegar para trabalhar os Capitães da Areia metem a chibata nos homens comandados por um
americano. A greve não é furada e Pedro Bala, com a ajuda de João Grande e Barandão,
ganha respeito dentro do movimento político. Passam a colaborar sempre como tropa de
choque a favor das forças de Esquerda.
Os atabaques ressoam como clarins de Guerra
Pedro Bala, a cada dia ganha mais conceito junto aos sindicalistas e junto ao estudante
Alberto, elo forte da esquerda. Bala encontra Gato que diz estar de partida para o Aracaju,
onde o açúcar passou a dar dinheiro. A Revolução chama Pedro Bala como Deus chamou
Pirulito. Era uma voz poderosa dentro dele, como a voz do mar. A chance de mudar o destino
dos pobres. Pedro Bala foi aceito na organização no mesmo dia em que João Grande
embarcou como marinheiro num cargueiro cruzador. O destino deles agora é outro. O destino
mudou seus caminhos. Ordens superiores chegam ao trapiche para que Alberto ficasse com os
Capitães da Areia e Pedro Bala fosse organizar os Índios Maloqueiros de Aracaju
transformando-os também em brigada. Isso talvez ajudasse a mudar o destino das outras
crianças abandonadas do país. Pedro Bala reúne os amigo no trapiche, chama Barandão e diz
a todos que ele agora é o novo chefe. Todos se sensibilizam. Batem palmas para o ex-chefe.
De punho cerrado, todos gritam o nome de Pedro Bala. Na noite misteriosa das macumbas, os
atabaques ressoam como clarins de guerra. “Companheiros, vamos pra luta... “
Uma Pátria e uma Família
193
Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais ilegais, de mão em mão, noticiavam a
procura de um militante proletário, o camarada Pedro Bala, perseguido pela polícia de cinco
estados, como chefe de partidos ilegais, organizador de greves e perigoso inimigo da ordem
estabelecida. ( a Direita ). No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar ( repressão,
ditadura ) estes mesmos jornais clamavam pela liberdade de Pedro Bala, líder de sua classe
que se encontrava preso em uma colônia penal.
E no dia em que ele fugiu, em todos os lares pobres, na hora pobre do jantar, rostos se
iluminaram ao saber da notícia. E mesmo com todo o terror que tomava de conta da cidade e
do país, qualquer daquelas casas estaria de portas abertas para receber Pedro Bala, fugitivo
maior da polícia, pois uma Revolução ( seja qual for ) é sempre uma pátria e uma família.
36 - O Quinze – Rachel de Queiroz
Autor e Obra
Primeira mulher a pertencer a Academia Brasileira de Letras. Nasceu em Fortaleza,
Ceará, em 1910. Em 1917 mudou-se para o Rio de Janeiro em virtude da seca que assolava a
região. Depois de algum tempo, retorna para Fortaleza, mas antes, passa por Belém, no Pará.
O pai teve enorme influência sobre ela. Foi educada espartanamente (de forma rígida).
Aos três anos fazia ginástica e aos quatro, já montava cavalo. Tomava banho nos açudes. O
pai era jurista, a mãe tinha educação refinada, por isso, aos quinze anos lia Balzac
(Romantismo) e Zola (Naturalismo). Aos 16, estreou em jornal publicando poemas e crônicas,
além de um romance de folhetins História de um Nome - em “O Ceará”. Sob o pseudônimo
de Rita de Queluz, ela colaborava no recém - lançado jornal de Demócrito Rocha que, naquele
ano de 1928, publicava em uma página literária - Modernos e Passadistas - a produção de
escritores locais, ao lado de Guilherme de Almeida, Peregrino Júnior e outros. Colaborou
ainda com a revista O Cruzeiro.
Recebida com entusiasmo pela crítica, quando publicou, em 1930, o romance O
Quinze (documentando a brutal realidade da seca, da fome e da criação), aos 19 anos de
idade. Dois anos depois do livro de estréia, a escritora lança João Miguel (1932 - retrata ainda
a seca, o coronelismo e os impulsos passionais). Em 1937, Rachel nos presenteia com
Caminhos de Pedras. Uma nova experiência de ficção ocorre em 1939 - As três Marias. Em
1975 quando os críticos apostavam que a exímia cronista havia absorvido o romancista,
Rachel de Queiroz lança Dôra, Doralina (romance feminino que mantém lado a lado o
Nordeste e o Rio de Janeiro; mundo rural e mundo urbano). Anos depois, em 1992, o público
é agraciado com Memorial de Maria Moura uma história de amor e aventuras.
Em 1998, Rachel volta com o lançamento do livro, Tantos Anos que foi engendrado
em parceria com sua irmã Maria Luiza Queiroz. Trata-se de uma obra que, segundo a crítica,
inaugura as primeiras letras e não tem o compromisso existente nas primeiras publicações.
Longe de ser um livro autobiográfico é, na verdade, um livro no qual duas adolescentes
relembram fatos de sua infância, sentimentos esquecidos, sofrimentos e alegrias marcantes.
Seu último livro foi Não me deixes, lançado em 2003.
194
Momento
Com o livro O Quinze ( 1930), Rachel de Queiroz deve ser enquadrada corretamente na
Segunda Geração modernista, pois a temática trabalhada, a seca impiedosa, capaz de expulsar
as famílias de suas terras, acaba por aproxima-la do grande marco da estética, o livro A
Bagaceira, de José Américo de Almeida, lançado em 1928, que passou a servir de base para
todos os representantes da Fase Social do Modernismo. O livro O Quinze também apresenta
os mesmos traços de Vidas Secas, obra mais importante desse período, e que faz de
Graciliano Ramos o maior nome da prosa regionalista. Destaque-se ainda a participação de
prosadores como José Lins do Rego, Érico Veríssimo e Cyro dos Anjos. Lembremos que esta
Geração Social não se restringe apenas ao romance , pois na poesia encontraremos nomes
como Carlos Drummond de Andrade ( Rosa do Povo ), Vinícius de Moraes e Cecília
Meireles, todos com preocupação social.
Resumo
Contado com alternância no foco narrativo ( às vezes a história é de Chico Bento e sua
família, às vezes a história é sobre o amor mal resolvido entre Conceição e Vicente ), o livro
começa com mãe Inácia fazendo orações pedindo a Deus para o inverno começar. Com ela
está Conceição, sua neta, moça de 22 anos que ali passava férias, era professora, por isso
estava lendo àquelas horas, e lia muito, mesmo à luz de lamparinas.
A grande seca de 1915 começa. O narrador, às vezes falando de Conceição ( comparada
com a própria autora ), às vezes falando de Chico Bento, apresenta a luta corajosa de Vicente,
primo de Conceição, na tentativa de salvar o máximo de gado possível. Vicente lamenta a
sorte da família de Chico Bento, homem pobre, vaqueiro de D. Maroca, das Aroeiras,(
lugarejo muito utilizado pela autora em sus obras).
Vicente, morador de Quixadá, viaja para visitar a prima e a tia no sertão ( Logradouro ),
pois deseja adquirir veneno para as doenças do gado. Ao chegar, encontra-se com a prima.
Dão-se muito bem, mas não assumem a paixão mútua que os consome desde a adolescência.
Conversam sobre a seca, sobre a família, o irmão importante de Vicente e suas irmãs. Em
outro sítio, Chico Bento olha o sertão, a seca se abate sobre o gado, já magro. A dona da
fazenda manda-lhe soltar o gado, pois ao menos terão a sorte de talvez sobreviver.
Já em casa, Vicente recebe a visita de Chico Bento que lhe propõe uma troca, mais gado
por um animal de carga. Com pena do vaqueiro e do gado, Vicente aceita. Depois disso,
Chico Bento reúne suas coisas, a família, composta por mulher ( Cordulina), cinco filhos e
uma cunhada, e começa a vagar pelo sertão, pois não tem mais o que comer nem onde morar.
Querem ir para Fortaleza. Não encontram passagens no trem. A saída é ir por terra.
Na estação de Quixadá, Conceição e D. Inácia preparam para embarcar para Fortaleza.
Todos procuram escapar da seca. Vicente e Conceição se despedem, sempre com a sensação
de algo mais a dizer. Ele não pensa em abandonar o gado e a terra, embora seu coração
desejasse estar com a prima. A velha viaja com uma dor imensa no coração, saudade.
A pé, por dentro do sertão, guiados pela cachorra Limpa-trilho, seguia a família de
Chico Bento. Cordulina, Mocinha, Pedro, Josias, Duquinha e mais dois meninos. A fome unia
195
o couro da barriga com as tripas, e as tripas encostavam na espinha. No terceiro dia de
viagem, encontram uma família que vai começar a comer uma vaca putrefata. Chico Bento
fica penalizado e dá o resto de carne seca e farinha que ainda possuem.. Cordulina prevenida,
pergunta o que iriam comer no dia seguinte. Chico Bento lhe responde: “Sei lá, Deus ajuda!”.
( solidariedade sertaneja ).
Vicente pensa na vida, no irmão formado, cheio de “não me toques”” , que sua mãe
adorava, na vida difícil da fazenda, em Conceição... tão perto e tão distante. Enquanto isso,
Chico Bento e sua família continuam a travessia infame. Os filhos pedindo comida e ele sem
ter o que fazer. Em um momento de desespero, estirou a mão e pediu esmola. Não ganhou
nada. Assim, trocou uma rede por farinha e rapadura.
Mocinha, também querendo ajudar, ajudou emprego em uma casa de família. Eugênia, a
dona da casa, reclamaria muito dias depois: “essa sem-vergonha só quer é namorar! Vive de
dente de fora pros homens e não liga pra nada. “
Em um momento de descuido de Chico Bento, durante a caminhada, Josias, um dos
meninos maiores, ficou para trás, entrou em um cercado e encontrou um pedaço de mandioca;
descascou a raiz no dente e comeu um pedaço. Em pouco tempo, Josias estava doente, deitado
em uma cama de trapos, a barriga inchada e os lábios arroxeados, envenenado por mandioca
“braba”.
“Um dos outros pequenos, sentado numa trave, chupando o dedo, olhava o irmão. E o
Pedro, o mais velho, do lado oposto, de vez em quando tangia com a mão alguma mosca que
tentava pousar no rosto do doentinho”. ( p.39). Chamaram uma rezadeira ( traço cultural ),
mas não adiantou. Josias morreu, a barriga inchada como um balão que encheu demais.
Em Fortaleza, Conceição dedicava-se de corpo e alma aos retirantes da seca que eram
colocados em um lugar chamado “Campo de Concentração”, talvez por influência do
panorama de guerra que se processava na época. No campo, Conceição tem notícia do povo
do sertão, principalmente do primo, que levou toda a família para Quixadá, mas continuou na
fazenda cuidando do resto do gado que já estava para morrer. Soube também de um boato
sobre um “chamego” de Vicente com uma mulata das Aroeiras. Conceição ficou furiosa. “O
Vicente, todo santinho, é pior do que os outros!” , dizia ela para a avó Inácia. Era visível o
ciúme que sentia do rapaz, mas não dava o braço a torcer.
A família de Chico Bento continuava o seu suplício, parando em vilarejos, pedindo
comida e trabalho, sofrendo humilhações. A fome era o pior inimigo. Chico Bento, olhando
família, lembrava de Cordulina, gorda, toda faceira, no dia do casamento. Depois, via-a
,magra, ossuda, suja, com o Duquinha no colo, “só o osso e a pele”... De repente, ouviu um
barulho de uma cabra. Chico Bento avançou para o bicho com uma faca, matou a criaçãozinha
e todos já estavam pensando no banquete que teriam depois de dias de fome sem fim; os olhos
brilhavam.
De repente, também, pareceu o dono da cabra, chamando Chico Bento de ladrão, de
cabra-sem-vergonha. Tomou a cabra ainda suja de sangue e enrolou no couro colocando-a nas
costas. Chico Bento caiu no chão de joelhos implorando por um pedaço de carne para a
mulher e os filhos. O homem, pouco apiedado, jogou-lhe as tripas do animal. Chico Bento e a
família comeram as vísceras do animal. Tostadas na brasa, sem sal, sujas de terra e sangue
porque não havia água para nada.
196
Em seguida, depois de um comentário sobre a vida de Mocinha, que não parava em casa
nenhuma porque tinha um “chama” para a estação, a família prosseguiu no seu caminho de
sofrimento.
Um dia, quando D. Inácia fazia seus bordados, Vicente chegou pra visitar a prima.
Conceição tinha ido ao Campo de Concentração com socorros para os enfermos. Continuam
conversando e a jovem chega. Falam de vários assuntos, mas principalmente da seca e das
histórias horríveis criadas por ela. “Um negro, lá pras bandas de Morada Nova, matou um
menino, salgou e ficou comendo os pedaços, aos poucos. “( p. 55 )
Os primos ficam melancólicos quando a jovem lembra das “aventuras”atribuídas a
Vicente. A jovem passa a pensar nas diferenças existentes entre ela e o primo, pois um
“abismo” parecia abrir-se entre eles num malentendido sem fim.
Chico Bento, olhando ao redor, faz uma triste constatação: Pedro, o menino mais velho,
se perdera. Chegam ao Acarape e vão falar com o delegado. O delgado o recebe mal, mas
depois reconhece no retirante o seu compadre de antigamente. A esposa do delegado dá-lhes
comida e roupas. O delegado arranja passagens para Fortaleza. A família perdera dois
membros: Josias e Pedro.
Chegam a Fortaleza e vão para o Campo de Concentração. Chico Bento diz: “Posso até
morrer, mas pelo menos não morrerei sozinho”. São acolhidos por Conceição. Todos estão
sujos e magros usando a máscara da miséria. Conceição lembrou-se do dia em que ela e
Vicente tornaram-se padrinhos de uma das crianças, o Duquinha, Mas a criança, outro dia
gorda e sadia, agora parecia uma visagem. Chico Bento Explica como chegaram até ali.
Conceição diz que vai procurar um lugar melhor para eles. Recebem a ração do dia.
Em outro ponto, temos a volta de Vicente para casa, onde é recebido pelas irmãs. Matam
as saudades, falam trivialidades. O mais interessante é que Vicente passa a reparar nos olhos e
no sorriso gracioso de Mariinha Garcia, amiga de suas irmãs. Vicente volta a tomar conta da
fazenda, alguns animais já morreram. Vicente bebe com alguns amigos e uma trova popular
parece confirmar o futuro de Vicente e Conceição. “palmatória quebra dedo/ chicote vira
vergão/ cacete quebra costela/ mas não quebra opinião.”
Chico Bento conversa com D. Inácia e Conceição. Conta-lhes sobre a morte de Josias e o
sumiço de Pedro. Relata o caso da cabra e os delírios por conta da fome. Conceição fica de
arranjar-lhe um emprego qualquer no Tauape. Conceição senta em uma espreguiçadeira
pensando naquilo tudo. Chega uma carta de Lourdinha agradecendo os vestidos e falando da
tristeza de Vicente por alguma coisa que a prima lhe fez.
Chico Bento consegue emprego no Tauape. Trabalhou desgraçadamente, o dia inteiro,
mas quando viu o tilintar das moedas no final do dia, sentiu-se bem. Em casa, os meninos
arrebatam as compras de suas mãos. Cordulina avisa a Chico Bento que Conceição passou o
dia pedindo o Duquinha. Chico reluta um pouco, mas percebem a verdade “Se é de morrer, é
melhor dar para a madrinha “. Cordulina entrega o filho. Conceição se dedica ao afilhado
esquálido o qual vai conquistando aos poucos.
Chico Bento diz a Conceição que quer ir embora dali para o Maranhão, para o Acre, para
qualquer outra terra. Conceição sugere São Paulo. A família concorda e a moça consegue as
passagens. Chico Bento embarca com a família. Pessoas estranham Conceição chorando por
aquela família tão pobre.
197
Vicente passeia com a irmã, Lourdinha pela caatinga e a moça passa mal, o sol é
escaldante. Vicente entristece com a inutilidade de seu esforço em relação à seca sem fim.
Restava apenas a fé em Deus e em Nossa Senhora. Vicente pensa em Conceição, pensa em
rapta-la, viver com ela, esquecê-la... A rede mastigava a sua cantiguinha seca... As irmãs
notam o abatimento do rapaz, cuidam dele.
Mês de outubro, festa de São Francisco. Mãe Inácia pergunta a Conceição por que ele
não se casava, em vez de estudar tanto. Conceição se dedica mais ainda aos retirantes. Um
dia, uma mulher bate à porta pedindo esmola para a criança muito doente que está com ela.
Mãe inácia ajuda, mas pede para a mulher ir buscar a mãe da criança, imediatamente, pois o
menino era usado para pedir esmolas. A mulher sai. O menino, de tão doente, morre pouco
depois. Quando a mãe aparece e vê o filho morto, começa a brigar com a outra mulher,
importando-se muito mais com a perda das esmolas futuras que com a vida da criança. Inácia
fica transtornada.
Dezembro chega trazendo as primeiras chuvas. Todos se alegram. Vicente comemora a
possível salvação do gado. Enquanto isso, a amizade entre Mariinha Garcia aumentava
levando consigo dois namoros: o de Lourdinha e Clóvis ( irmão de Mariinha ) e o pretenso
namoro de Vicente e Mariinha ), mesmo que o rapaz não soubesse...
Vicente descobriu o plano das irmãs: queriam casá-lo com a amiga. Discutem. Vicente
deixa claro que não pode pensar em namoro e nem em casar. Há muito trabalho, e além do
mais “de que vale querer bem a uma pessoa se sai tudo tão diferente”.
Desde as primeiras chuvas, D. Inácia iniciou os preparativos para a viagem de volta, para
o Logradouro, de onde nunca deveria ter saído, não fosse a imposição da seca. Conceição
reclama da partida da velha. D. Inácia quer levar o menino. Conceição não deixa. Despede-se
da avó, manda lembranças para todos. Durante a viagem, D. Inácia, em Baturité, deu de cara
com Mocinha, a cunhada de Chico Bento, mais acabada ainda e para completar com um filho
nos braços. D. Inácia, apiedada, arranja-lhe dinheiro e comida para aquele instante. Oferecelhe a casa no Logradouro, era melhor que ser “mulher da vida”. A jovem não pensava em
voltar. O trem seguiu viagem. Chega em Quixadá, todos, com exceção de Vicente, a esperam,
pois também era o casamento de Lourdinha. D. Inácia fica inteirada de todos os
acontecimentos. O inverno ainda não é garantido e isso fará com que as pessoas esperem uns
três meses para começar a fartura dos plantios.
Três anos depois, todos se encontram em uma bela quermesse de Natal. Lourdinha,
Clóvis, Vicente, Conceição e outros amigos festejam entre si. Conceição, paquerada pelo
novo dentista da cidade, observa a felicidade ambulante de Lourdinha e Clóvis. Conceição diz
ao jovem dentista que “nasceu para viver só”. Duquinha aparece pedindo dinheiro para
comprar um navio de papel. Conceição alegra-se por ter criado um filho também. Vicente
aparece e Duquinha toma-lhe a benção. Vicente dá um “boa noite” para a prima e arranca
esporeando o cavalo. Conceição vê o primo desaparecendo como um fantasma por dentro dos
serrotes.
Crítica
O romance O Quinze, de Raquel de Queirós, é um dos ligados ao grupo de ficcionistas
nordestinos que trazem o romance-social dentro do espírito da literatura modernista, regionalista.
198
Focaliza a seca de 1915, que a autora conheceu através do relato dos mais velhos. Possui cenas e
episódios característicos da região, com a procissão de pedir chuva, são traços descritivos da condição
do retirante. O sentido reivindicatório, entretanto não traz soluções prontas, preferindo apontar os
males da região através de observação narrativa. O Quinze é a primeira obra de cunho sócio-regional,
depois de A Bagaceira, que consolida a ficção nordestina. É o livro de estréia da escritora, então com
20 anos, Sua linguagem é natural, direta, coloquial, simples, sóbria, condicionada ao assunto e á
região, própria da linguagem moderna brasileira. A estas características deve-se ao não
envelhecimento da obra, pois sua matéria está isenta do peso da idade. A obra apresenta a seca do
nordeste e a fome como conseqüência, não trazendo ou tentando dar uma lição, mas como imagem da
vida. Não percebe-se uma total separação entre ricos e pobres, e esta fusão é feita através da
personagem Conceição que pertence realmente aos dois mundos. Evitando assim o perigo dos
romances sociais na divisão entre "bons pobres" e "maus ricos", não condicionando inocentes ou
culpados.
37 - O Guarani – José de Alencar
O próprio José de Alencar, especialista em prefácios esclarecedores, nos revela que “ o
guarani” significa “o indígena brasileiro”, aludindo seguramente a Peri, , em sentido mais
amplo, como o representante fiel do aborígine brasileiro. Num sentido mais restrito, a
palavra quer dizer “junco silvestre”, exatamente o tipo de vegetação que nasce na margem dos
rios, que se dobra com o vento, mas não se deixa arrancar.
O Romantismo
O Romantismo foi um movimento artístico e filosófico surgido nas últimas décadas do
século XVIII na Europa que perdurou por grande parte do século XIX. Caracterizou-se como
uma visão de mundo contrária ao racionalismo que marcou o período neoclássico e buscou
um nacionalismo que viria a consolidar os estados nacionais na Europa. Inicialmente apenas
uma atitude, um estado de espírito, o Romantismo toma mais tarde a forma de um movimento
e o espírito romântico passa a designar toda uma visão de mundo centrada no indivíduo. Os
autores românticos voltaram-se cada vez mais para si mesmos, retratando o drama humano,
amores trágicos, ideais utópicos e desejos de escapismo. Se o século XVIII foi marcado pela
objetividade, pelo Iluminismo e pela razão, o início do século XIX seria marcado pelo lirismo,
pela subjetividade, pela emoção e pelo eu.
O Romantismo no Brasil...
Em 1836, com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, o Romantismo instala-se
no Brasil. Isso fez com que houvesse uma divisão de nossa escola romântica em obras de
Prosa ( romance, conto e crônica) e Poesia, havendo posteriormente, o englobamento do
gênero Dramático, o teatro de Martins Pena. O Romantismo, porém, dividia-se em
vertentes: Indianista ( Iracema e Ubirajara ); Histórica ( Guerra dos Mascates ); Urbana (
Senhora e Lucíola ) e Sertanista ( O sertanejo, O cabeleira e Inocência).
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O romance indianista representa no Romantismo brasileiro, parte de um projeto de
valorização da cultura nacional através de uma postura nacionalista que coloca o índio
como símbolo nacional e expressa características como heroísmo, coragem e pureza,
retomando o Mito do Bom Selvagem, de Jean Jackes Russeau. Valoriza também a
exuberância das nossas matas tropicais mostrando o poder da Natureza sobre o homem.
O autor e sua obra
José Martiniano de Alencar (1º. de maio de 1829), o maior romancista da era romântica,
formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo e foi deputado em várias legislaturas.
Brilhou como crítico, parlamentar, jurisconsulto, publicista e literato. Pelo que se registra nos
anais da crítica da Arte em geral, não existe obra mais brasileira nem de maior resplendor
selvático do que O Guarani, cuja leitura inspirou ao maestro Carlos Gomes a famosa ópera
que tem o nome do romance, cuja fama excedeu aos limites da costa brasileira sendo
representada na Itália, na França, na Alemanha e até no Japão. Grande romancista, fez
incursões também no teatro onde escreveu peças de relativo êxito como O Demônio Familiar
. Ardente jornalista, nada lhe passou aos olhos que não intimasse a pena.De 1867 a 1868 foi
Ministro da Justiça. Faleceu no Rio de Janeiro, a 12 de dezembro de 1877, levando consigo
uma grande mágoa, a de não ter sido Senador como lhe fora o pai, tudo por uma rixa com o
imperador Pedro II que nunca simpatizou com Alencar. Quanto a este fato, perdeu a Política,
mas ganhou a literatura Brasileira. Graças a Deus!
Famoso por ser abrangente e mais ainda por ser brilhante, Alencar escreveu sobre o
homem e sobre o Brasil, cotejando diversos cenários e tipos humanos, desde o índio
selvagem ao branco valoroso, do sertanejo impertinente ao gaúcho ufanista, do severo
colono ao cavalheiro elegante, da mulher do campo à dama elegante dos salões que
retratava a fina flor da burguesia oitocentista. Escolhido pelo próprio Machado de Assis, na
fundação da ABL(1897), passou a ocupar a cadeira 23. É autor dos seguintes romances:
Cinco Minutos(1855); A Viuvinha; O Guarani (1857);As Minas de Prata (1862); Diva
(1864); Lucíola (1865); Iracema (1865); O Gaúcho(1870) ; A Pata da Gazela (1870); O
Tronco do Ipê (1871); Sonhos de Ouro (1872); Ubirajara (1875); Senhora (1876); A Guerra
dos Mascates (1877); Encarnação (1893) e O Sertanejo ( 1877). Crônica: Ao correr da pena.
Teatro: O crédito; Verso e reverso; O demônio familiar; As asas de um anjo; Mãe; A
expiação; O jesuíta. Crítica: Carta sobre a Confederaçaõ dos Tamoios,1856; Ao imperador:
Cartas políticas de Erasmo; O sistema representativo. Autobiografia: Como e por que sou
romancista, 1873.
Análise
No ano de 1604, tem início a narrativa. D. Antônio de Mariz, não querendo sujeitar-se
ao mando Espanhol, refugia-se no interior do estado do Rio de Janeiro, erguendo sua morada
próximo ao rio Paquequer. O romance tem inicio exatamente com a descrição desse lugar.
Assim, o nobre português, construído à moda medieval, orgulhoso por poder manter seu
juramento de fidelidade à bandeira portuguesa, vive em companhia de sua esposa Lauriana,
200
seu filho D. Diogo, e sua filhas Cecília e Isabel, duas beldades próprias do romantismo, com
o detalhe de, além de representarem a dicotomia beleza brasileira X beleza européia, uma
delas (Isabel) ser tratada como “sobrinha”, mesmo sendo filha natural de D. Antônio. Um
segredo de família.
Ao longo da narrativa, principalmente pelo tom diletante que apresenta, novas
personagens serão apresentadas como Loredano e Álvaro de Sá, que viverão sob a marca da
rivalidade. O importante é que Álvaro será apaixonado por Isabel, mas será compromissado
com Cecília, mais por vontade de D. Antônio que por sua própria vontade. Nesse ponto da
narrativa, o leitor conhece Peri, índio valoroso e fiel que será apaixonado por Cecília. Peri
demonstra coragem e destreza caçando com astúcia uma onça feroz. O Grande inimigo de
Peri é Loredano (na verdade um frade renegado que usava um nome falso) que pretende matar
D. Antônio e casar-se com Cecília por quem era corroído de desejo e capaz de qualquer
atrocidade. Loredano conta com a ajuda de dois malfeitores:Rui Soeiro e Bento Simões, que
são ludibriados pela promessa de riqueza que Loredano lhes faz, pois dizia-se conhecedor do
mapa das “minas de prata” de Robério Dias, tesouro lendário sonhado por todos os
aventureiros da região.
O ponto crítico dessa primeira parte (e até do romance) deve-se ao dia em que o filho de
D. Antônio, Diogo, mata acidentalmente uma índia da tribo dos Aimorés, e a tribo jura
vingança. D. Antônio tem medo do ataque iminente Com o desenrolar dos fatos, o narrador
ocupa-se mais da vida do índio Peri. Em torno de sua figura, todos os fatos e personagens
serão explorados. Peri vai-se tornando, aos poucos, o protagonista da história porque, a cada
instante, dando mostras de sua coragem e de seu altruísmo sem limites, salvará diversas vezes
a menina Cecília de todo os perigos. Também aos poucos Peri irá descobrindo os planos
diabólicos de Loredano, seu segundo rival no amor por Cecília, já que Álvaro tem um
compromisso com ela..
"Peri" é o titulo da segunda parte. Na segunda parte, depois de um flash-back que nos
coloca no ano anterior (1603), é revelada ao leitor a verdadeira história de Loredano ou
Ângelo di Luca, frei inescrupuloso que, em segredo de confissão, conseguira o caminho para
as minas de prata de Robério Dias. Abandona imediatamente a batina e arquiteta um plano
para apossar-se dos bens de D. Antônio de Mariz e também de sua bela filha Cecília, por
quem nutre um desejo descontrolado. Hospedando-se na casa de D. Antônio, seu plano se
torna cada vez mais fácil de se realizar. Da mesma forma, o leitor saberá um pouco mais sobre
o índio Peri. Na verdade, esse foi o primeiro ato heróico de Peri como salvador e guardião de
Cecília.
A família de D. Antonio passeava tranqüilamente pela mata e, de repente, uma
gigantesca pedra rolou em direção à formosa donzela. Peri, com sua força descomunal, segura
a pedra e salva Cecília de uma morte horrível. A partir de então, Peri é tido como o salvador
providencial de Cecília passando a gozar do respeito de D. Antônio e de toda a família da
jovem. Intrigantemente, o sentimento que toma de conta de Peri, o amor de aspecto pagão,
confunde-se com a religiosidade própria do romantismo, porque o índio tem a imagem de
201
Cecília como a imagem da própria Virgem Maria. Piorando seus sentimentos, a filha de D.
Antônio, inicialmente o despreza e magoa. Por isso, o apelido Ceci, na língua indígena, quer
dizer a que magoa. Posteriormente, a jovem voluntariosa e mimada passa a perceber a
nobreza dos sentimentos de Peri e tem início o verdadeiro idílio amoroso que construirá o
destino dos dois.
Disputando o amor de Cecília com Álvaro, com quem a jovem era compromissada,
Loredano tenta assassiná-lo, mas Peri o impede salvando a vida do cavalheiro, sem exigir
nada em troca. Álvaro passa a admirar a índole de Peri. Enquanto isso, percebendo a paixão
de Isabel por Álvaro, Cecília deixa o caminho livre para a “prima”, armando um encontro
entre os dois, e dando-lhe de presente o bracelete que Álvaro lhe presenteara. Num entrave
familiar e doméstico, Peri, a despeito de todo o seu heroísmo, de todas as vezes que salvou
Cecília e sua família, deve ir embora de vez, pois D. Lauriana exige do marido que mande o
índio embora, pois é exatamente ele que pode colocar em risco a vida de todos que ali estão.
Nesse momento, todas as façanhas do índio, antes desconhecidas, são reveladas, e por
seu heroísmo e sua fidelidade, Peri continua a ser estimado por D. Antônio de Mariz que sabe
que pode confiar a ele a segurança de seus bens mais preciosos: a vida e a honra de
Cecília. Esta parte do livro se encerra com a jovem Cecília entoando uma bela xácara
portuguesa, que falava da história impossível de amor entre uma jovem cristã e um rapaz
de origem mourisca. Coincidentemente, a xácara se assemelha à própria historia de Cecília e
Peri.
Na terceira parte, que traz o subtítulo de "Os Aimorés", inimigos comuns de todos que
ali estão, Loredano, cada vez mais descontrolado, começa a pôr em pratica seu plano
fatídico. No entanto, a sagacidade de Peri é suficiente para barrar-lhe as intenções. Peri dá
cabo de Bento Simões e Rui Soeiro, tornando mais fraco e desesperado o inescrupuloso e
depravado frade. É também o momento em que se aproxima a grande batalha, a inevitável
vingança, os índios aimorés.
Exasperados pelo desejo de vingança, os índios cercam a casa de D. Antônio que já não
possui o mesmo contingente e nem a mesma força para impedi-los fica muito apreensivo.
Mais uma vez o corajoso índio arma um plano para salvar a família de sua amada. Com o
curare ( transferência de conhecimento) envenena seu próprio corpo e se entrega aos aimorés,
pois sabia que eram antropófagos. Na hora que o devorassem morreriam todos. Nisso, numa
postura sacrificial, assinalada pelos teóricos de Alencar, o índio salvaria Cecília e toda a
família de sua amada.
Agora, Peri é quem precisará ser salvo. O jovem Álvaro, que já havia sido salvo por Peri,
vai em seu auxílio. Arrebata Peri das mãos dos violentos aimorés e o leva de volta para a casa
de D. Antônio de Mariz. Conhecida a verdade sobre Lauredano, frustrando seu diabólico
plano, o traidor é condenado à fogueira. Quando Álvaro sai numa caravana em busca de
mantimentos é morto pelos índios aimorés. Peri, devolvendo a gentileza, toma seu corpo das
mãos dos aimorés e o leva, mesmo morto, para a casa de D. Antônio para que não fosse
202
devorado pelos violentos antropófagos. Lá, Isabel, que o amava com todas as forças de seu
coração, e por isso não saberia viver sem ele, toma uma porção de veneno e morre pensando,
de forma shakespeareana, em encontrar-se com seu amado em outra vida.
Vendo-se praticamente derrotado, refém do ódio e da investida massacrante dos índios
aimorés, D. Antônio incumbe Peri de salvar Cecília levando-a em segurança para a casa de
sua tia no Rio de Janeiro. Antes, porém, Peri é batizado num ritual “católico” tornando-se
cristão, recebendo o nome de Antônio, e passando a gozar de mais respeito ainda na
concepção daquela arruinada família portuguesa. Desmaiada, porque é forte em Cecília a
propensão à catalepsia, marca de muitas personagens femininas do Romantismo(ver Noites
na Taverna) , Cecília é levada por Peri. Seguem numa frágil canoa rio abaixo, dando para ver
e ouvir ao longe a explosão que transformara a casa de D. Antônio numa enorme bola
incandescente. O próprio D. Antônio, num gesto corajoso e honrado por não querer ver a si e
aos seus devorados pelos aimorés, deu ele mesmo um tiro no paiol das munições, destruindo
todos ali e até os índios que já invadiam sua suntuosa casa.
Lá fora, distante dali, a frágil canoa vai descendo, lentamente, o rio, pois Peri precisa
cumprir a sua missão e honrar sua palavra: levar a filha de D. Antônio de Mariz ao seu
destino. Eis o dilema final. A jovem Cecília quer ficar ao lado do índio, pois agora sabe que o
ama. O índio, também apaixonado, está preso ao compromisso de tirar a jovem daquele lugar.
Sabe também que lá aonde ela vai (Rio de Janeiro) ele não será bem vindo.
A chuva impiedosa cai sobre a frágil canoa. O rio começa a transbordar, como na lenda
de Tamandaré. O casal se abriga no topo de uma palmeira. Peri arranca a palmeira e os dois
desaparecem no horizonte, gerando uma incógnita sobre o seu verdadeiro destino. Peri
cumpriu sua palavra e levou Cecília para a Corte? Perderam-se os dois? O mais provável é
que ficaram juntos e viveram seu amor, dando inicio a uma nova raça, o povo brasileiro.
Observações!
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8.
Romance indianistadivulgado em folhetim, em 1857.
Romance de “fundação”, de tonalidade histórica.
Personagens de caráter definido (BEM X MAL).
Conflito étnico e cultural. (Isabel e Peri)
Conflito entre o mito cristão (Noé) e o mito pagão (Tamandaré).
Medievalismo ( Loredano é morto numa fogueira)
Valorização da Natureza.
Serviu de inspiração para a criação dos protagonistas do romance Ana Terra, de Érico
Veríssimo. Alencar foi o primeiro autor a escrever sobre o Rio Grande do Sul. (O
Gaúcho).
9. Relação intratextual, do autor com ele mesmo, pois o romance As Minas de Prata
tem origem no romance O Guarani.
10. Relação intertextual com o índio Pedro Missioneiro, de Ana Terra
11. Final em aberto de teor apocalíptico.
203
12. D. Antônio é uma personagem real, é um dos fundadores do Rio de Janeiro.
38 - Aves de arribação – Antônio Sales
O título não deve ter uma apreciação apenas regionalista, pois serve para ilustrar o que
de fato acontecerá ao final do romance quando, numa postura migratória, o casal, de tal
forma apaixonado, mas sem nenhuma conotação romântica, bate em retirada para ser feliz em
“clima mais ameno”, como fazem as avoantes. Em suma, este é um romance realista de leve
tonalidade regional.
O Realismo no Ceará
No Ceará, temos como início do Realismo/Naturalismo, basicamente, a década de 1880,
quando ainda no Clube Literário, agremiação que congregava autores “de
transição”(românticos e realistas), surgirão os primeiros escritos do Realismo cearense. O
nosso Realismo reflete a mesma movimentação artística e cultural que acontecia no Rio de
Janeiro ou mesmo na França, de onde vinham as maiores influências, aqui divulgadas pela
Academia Francesa, onde figuravam nomes como Araripe Jr., Rocha Lima e Capistrano
de Abreu.
No Clube Literário surgem também os primeiros textos de Oliveira Paiva, aquele que
viria a ser um dos nossos maiores realistas. Lembremos que foi no suplemento A quinzena
(1887) que foram publicados os seus primeiros contos, destacando dentre estes O ar do vento,
Ave-Maria! e A melhor cartada.
Depois dos textos realistas de Oliveira Paiva, vieram os contos e romances de Adolfo
Caminha ( A Normalista /O Bom Crioulo), Rodolfo Teófilo (A Fome e Violação), Papi
Júnior (O Simas), Antônio Sales ( Aves de Arribação, 1903) e Domingos Olímpio, (LuziaHomem,1903). Não esqueçamos também os textos de Gustavo Barroso ( Alma sertaneja) e
Herman Lima (Tigipió) que, mesmo lançados nos anos de 1920, também são realistas.
Nesse período, de realistas, parnasianos e simbolistas, é que veremos surgir, pelas
mãos de Antônio Sales, a nossa agremiação máxima, a Padaria Espiritual (1892), cujo
papel foi determinante para a valorização da literatura em nosso estado. Sânzio de Azevedo
observa o vanguardismo cearense ao dizer que nossos poetas realistas oscilavam entre um
romantismo tardio e um parnasianismo incipiente, num momento em que encontraremos
inclusive verdadeiros simbolistas, como Lopes Filho com o livro Phantos, 1893. Por isso,
Sânzio de Azevedo, afirma que o nosso Simbolismo é, intrigantemente, anterior ao
Parnasianismo.
De grande valor, então, é a Padaria Espiritual bem como a obra de seus
representantes máximos Antônio Sales e Adolfo Caminha, pois salvos, à época do
Romantismo, os nomes de Juvenal Galeno, poeta romântico popular e regionalista, e José
de Alencar, o mais brasileiro dos cearenses, a nossa literatura estaria fadada a ser
eternamente provinciana. A Padaria mudou completamente essa história.
Autor e obra
204
Antônio Sales nasceu em Parazinho, no município de Paracuru, a 13 de junho de 1868.
Fez seus primeiros estudos em sua terra natal, depois na Vila de Soure, hoje denominada
Caucaia. Parou os estudos e foi, aos 14 anos, enfrentar a vida difícil no comércio de Fortaleza
durante oito anos para ajudar a família. Seu pai era cego e a família, realmente necessitada.
Em 1888, as coisas começam a melhorar quando consegue um cargo na Intendência de
Socorros Públicos de Fortaleza. Caminhou para o jornalismo e para a Literatura, pois
assunto não lhe faltava. Fez importantes amizades e ingressou na Política. Depois de
participar do Clube Literário, de João Lopes, fundou, em 1892, a Padaria Espiritual, maior
agremiação literária do Ceará. Em 1890, publica seus primeiros poemas em Versos
Diversos. Em 1902, Aves de Arribação sai em folhetim. Em 1897 foi para o Rio de Janeiro,
onde trabalhou no Tesouro Nacional e no jornal Correio da Manhã. Conheceu Machado de
Assis e toda a intelectualidade brasileira daquele período, ajudando, inclusive, na fundação
da ABL. Em 1920, volta para o Ceará, aplaudido pelo sucesso do livro Minha Terra..
Reorganiza, em 1922, com amigos, a Academia Cearense de Letras, e goza de grande
prestígio, principalmente por ter fundado em 1892 a Padaria Espiritual. Morre em 1940, no
dia 14 de novembro, em sua modesta casa no Bairro Jacarecanga, próximo ao Liceu do Ceará.
Suas principais obras são: Poesia: Versos Diversos(1890); Trovas do Norte(1895);
Poesias(1902); Panteon(1919); Águas passadas; Minha Terra(1919). Prosa: O Babaquara;
Aves de Arribação (1903/1914); Estrada de Damasco (inacabado); Retratos e Lembranças
(1938). Teatro: O Matapau (Comédia); A política é a mesma. Crítica: As letras; Alocução.
Infantil: Fábulas Brasileiras(1944).
Análise
O romance tem início com o narrador nos falando sobre uns consertos que estão sendo
feitos na casa do vigário de Ipuçaba por ocasião da chegada de seu sobrinho, Alípio Flávio
de Campos, promotor de justiça, nomeado para aquela comarca. Padre Balbino, o tio de
Alípio, substituiu um dia o Padre Serrão, que também já morara naquele casarão, presente de
uma velha rica à matriz de nossa Senhora dos Remédios.
No passado, Serrão sempre fora um padre apegado ao dinheiro, pregando a caridade sem
praticá-la. Para completar, acabou entrando na política, aliando-se a João Ferreira, chefe do
Partido Conservador, homem de passado sujo, capaz de trair até mesmo o velho José
Herculano, homem bom que tanto o ajudara quando da sua chegada.
Atualmente, depois de derrotar José Herculano, João Ferreira tornou-se o completo
“mandão de aldeia”, exercendo a sua dominação pelo terror, espalhado ao redor de si por
meio de calúnias, perseguições e ameaças. Ao lado desse homem terrível, prosperou
rapidamente o padre Serrão. Quando veio a República, o chefe dos dois partidos foram
ironicamente postos de lado para dar lugar a novas figuras designadas pelos Centro
Republicano de Fortaleza. O padre Serrão morreu um dia e deixou tudo para um sobrinho
inútil.
Veio o novo vigário, o padre Balbino, que não quis nem conversa com o João Ferreira.
Isso gerou uma certa empatia com o velho José Herculano. Em pouco tempo, e pela escolha
acertada das amizades, o novo vigário tornou-se muito popular e bem quisto por todos povo.
205
Mas sob a sua simplicidade havia uma cabeça muito dura e um coração medroso
(psicologismo).
À tardinha, embaixo de uma enorme mungubeira, formava-se sempre uma rodinha de
conversa, e o padre, de chambre e gorro de veludo, vinha fumar o seu cigarro. O primeiro a
chegar era o coletor de impostos Asclepiades Orestes de Pinto que teve seus filhos batizados
pelo vigário. Tinha ares de praciano por conta de uma viagem que fizera ao Rio de Janeiro,
por isso se sentia diferente dos demais. Sempre que ia falar começava dizendo assim:
“Quando eu estive no Rio de Janeiro...”
Conversavam, sobre tudo; sobre o que passava bem próximo e ao longe. Falavam de
superstição, de gente que adivinhava se chovia ou não. Os demais assuntos eram temperados
pela vida alheia. Falaram finalmente da chegada do promotor Alípio, lá pelo dia 20. Bateram
as trindades, o vigário se retirou para orar. Distante, o sino convidava para a reflexão. De
várias partes do velho palacete voavam morcegos.
Véspera da chegada do promotor Alípio, que gozava de muito respeito na Fortaleza e no
Recife, mas destacava-se principalmente pelo dom da oratória e por alguns trabalhos
literários. Era autor de um livro, Pingentes, que fora prefaciado pelo ilustríssimo Tobias
Barreto, um dos maiores juristas da época. Sobre a sua vida, apenas o vigário sabia alguma
coisa. Fato certo é que devia ao tio a sua formatura, pois durante anos não passou de um
vagabundo, afastado dos estudos, fazendo literatura e polemicando nos jornais. Só terminou a
faculdade porque lhe morrera o pai e isso o tocou bastante.
Um grande almoço foi preparado em homenagem ao promotor. Asclepiades cuidava com
interesse dessa recepção. Mandaram-lhe Sanhaçu, o melhor cavalo da região, para que
entrasse na cidade com a devida importância. Próximo ao meio-dia, o promotor apontou na
estrada ladeado pelo juiz e pelo padre Balbino. Vinha brioso e elegante; terno de flanela clara,
botas de couro amarelo, chapéu de palha, montado no imponente Sanhaçu.
O Dr. Alípio, depois de chegar, foi apresentado a todos. O vigário apresentou o sobrinho
à jovem Florzinha, filha do Asclepiades, portanto sua afilhada. Era uma moça de “tez muito
clara, olhos inocentes, maneiras tímidas de adolescente envergonhada das suas formas e dos
seu vestido comprido”.
Fizeram um brinde ao promotor Alípio. Pouco depois, servia-se o almoço. Chegou a hora
dos discursos. Alípio falou por último, demonstrando profundo agradecimento. Terminou sua
fala com uma frase de fogo e um largo gesto dramático. Palmas frenéticas ressoaram no
ambiente. O público feminino foi ao delírio com a beleza e os gestos educados do praciano.
Veio o jantar e uma das convidadas chamou especialmente a atenção do promotor: era a
professora Bilinha.. “Muito morena, quase trigueira, dentes magníficos, esbelta e flexuosa,
seria formosa se a boca fosse menor e o nariz não tivesse o arrebite petulante que lhe dava um
ar menos distinto, porém mais provocante”.p.25
Alípio comparou-a logo com Florzinha. A música aumentava e convidava para a dança, a
Quadrilhada. Alípio dançou com a professora. Depois, dançou com Florzinha. Revezou-as na
dança até de madrugada. Admirava as duas. Procurava fundi-las completando uma mulher
ideal (donjuanismo). A inocência de uma, a sensualidade da outra. Estava claro que ele, como
poeta e como homem, devia cortejar as duas.
Percebia-se ali muito da índole do belo promotor. Ao sair da faculdade, Alípio já dizia:
“Estudar para quê? Isto é o país da pomada! Com esta lingüinha e este jeitinho que vocês
206
sabem, preciso lá estudar!”p.28. Sempre freqüentara as grandes rodas sociais e tornara-se
íntimo de muita gente importante. Confiava intimamente no seu destino. Era, na verdade um
pícaro.
Convidado uma vez a participar de um grupo Positivista, respondia que era nietzschiano
demais para aquele puritanismo cívico e besta. “Gozar e subir, eis o meu fim!”(alpinismo
social) Seus meios eram os que as circunstâncias ditarem. Com este pensamento chegara a
Fortaleza. Lá, recebeu o convite do Coronel Chico Herculano, filho do velho José
Herculano, para ser promotor de Ipuçaba.
Oito dias depois de sua chegada, admirava-se de ainda não estar entediado daquele lugar.
Passava o dia galopando, banhando-se nos rios e lendo. À noite, dedicava-se aos namoros.
Bilinha e Florzinha aguçavam-lhe os sentidos.
Mas o Asclepiades, pai de Florzinha, desde que soubera de sua vinda, concebera em sua
cabeça a idéia de casar a filha com o bacharel. Sua obsessão era ter um genro diplomado.
Alípio era o noivo sonhado por ele. Alípio também pensava em Florzinha: “Tinha graça se eu
fosse enrabichar-me por aquela matutinha! É chic o diabinho! Boa pele, lindos olhos, bons
dentes e uma boca!Corpo delicioso!”p.32
Pouco depois, foi encontrar Matias, o “poeta da terra”, como dizia o tio. Matias levava
ali uma vida aborrecida e nula. Educado em um colégio de Sobral, mostrava mesmo aptidões
literárias. Mas só era valorizado fora de Ipuçaba. Na sua cidade não passava de um mandrião,
um inútil, sustentado pela mãe. Nos momentos de maior necessidade, diziam, ele desaparecia.
Não para buscar trabalho ou ajuda, mas para não enfrentar a realidade, a necessidade, muito
bem, administrada por sua mãe, D. Joaninha, mulher trabalhadeira, um exemplo. O filho era
um covarde. Evitava certos caminhos para não encontrar determinadas pessoas, pois lhes
devia dinheiro.
Conversando com Alípio, disse o que achava de seus versos: razoáveis. Alípio perguntalhe sobre Florzinha. Matias desconversava, pois era no fundo, a sua grande paixão. Alípio dizlhe, porém, que ele parece apaixonado é pela professora Bilinha, pela forma como fala dela.
Matias fica irritado. Conversam banalidades – coisas de homem. De um jeito ou de outro,
Alípio falara a verdade. Embora gostasse de Florzinha, foi pensando na professora que fizera
alguns de seus poemas. “Sou um bobo!”, dizia Matias para si mesmo.
Domingo, dia de feira, era o dia que o povo escolhia para se encontrar e botar os assuntos
em dia. Era dali, da feira, que saiam as maiores resoluções e as piores conversas. Toda a vida
mercantil se concentrava naquele ponto. E era grande a influência da feira sobre a vida moral
das pessoas. Todas as questões públicas e privadas eram ali discutidas. A feira era uma
espécie de imprensa falada, redigida livremente por todos os inquilinos.
A verdadeira vox populi. A primeira coisa que uma pessoa ganhava ao penetrar na feira,
no seu mar de olhos e ouvidos, era um apelido. Alípio não sabia, mas já tinha o seu: Frango
Suro. Na boca daquela gente, o que corria agora eram as novas sobre o namoro do Frango
Suro com a professora Bilinha. Quando saia da casa da professora dizia-se que ia consolar a
outra... a Florzinha. Era a perspectiva de um escândalo, um escândalo com traços de uma
grande comédia burlesca.
A vida seguia insípida até que um dia, na feira, Zé Pipoca, jagunço perigoso de João
Ferreira, apareceu armado de faca e cacete se sentindo o dono do lugar. A policia chegou e
deu-lhe um corretivo. João Ferreira tentou intervir, mas polícia não permitiu a soltura do
207
elemento, pois o memso havia ferido um soldado. O domingo luminoso encerrou com a
impressão daquele sangrento episódio.
Alípio e Matias passaram a freqüentar igualmente a casa de Bilinha. A desculpa era o
víspora (tipo de bingo com cartelas de 5x5) que ali voltou a se jogar animadamente. Por
ocasião das partidas, Benvinda, uma vizinha tagarela da professora, era a animação de todos,
com seu vocabulário chulo e seus modos ignorantes.
D. Helena, esposa de Chico Herculano, adoece e Bilinha se oferece para lhe fazer
companhia. O velho coronel passa o tempo todo dando em cima da professora. Assim, no seu
canto, apenas querendo ajudar, Bilinha sofria, principalmente por saber do tipo de descontrole
que causava nos homens. Tinha atração por cafajestes. Achava que aquilo devia vir da mãe,
mulher da vida, de passado manchado, mas que parecia ter muito gosto em ver a filha
enveredar pelo mesmo caminho. Estaria no seu sangue o verme da desonra? “ O mau sangue
que lhe corria nas veias assustara-a a sérios perigos”p.55 Sem família, sem fortuna, marcada
pelo ferrete do pecado...” (Esta é uma das poucas apreciações deterministas do narrador).
Bilinha procura conversar com Florzinha, mas a menina é ríspida com a professora, tudo
por conta do que já andavam dizendo sobre os dois, ela e o promotor. Alípio, por sua vez, não
perde oportunidade de dar em cima de Bilinha sempre que a encontra. D. Helena se
restabelece. Chico Herculano não desiste da professora e tenta agarrá-la à força. Bilinha
consegue escapar e foge para deitar-se. No quarto, chora silenciosamente.
Florzinha conversa com Mariana, a negra que ajudou a criá-la. Mariana, aos poucos, vai
dizendo à menina as conversas que anda ouvindo. O que dizem é que ela vai casar. “ na feira é
só no que se fala. “Todo mundo faz caçoada de ti com desse dotô novo que vem aqui”.p.66.
Florzinha começou a chorar, pois sabia que logo, logo, a canalha escreveria seu nome nas
paredes como era de costume na hora de anarquizar alguém. (Esse é um registro importante
sobre a pixação no Ceará).
Alípio aparece para cear na casa de Asclepiades. Florzinha não sai do quarto. Em seu
intimo crescia uma aversão àquele homem. Lembrou-se que sempre ouvira, desde criança,
uma prevenção sistemática contra as pessoas educadas nas grandes cidades. Todo praciano era
suspeito, portador de vícios e maus costumes trazidos da cidade. (Esse é o mito do bom
selvagem de Russeau professado por José de Alencar em seu nacionalismo e na maioria de
suas obras).
Florzinha conversa com sua mãe sobre as maledicências. O pior é que o povo, ás vezes,
tem razão. Enquanto isso, Alípio passava por perto da casa da professora numa ponta de
esperança de desfrutá-la. Sem nenhum resultado, acendeu um charuto e foi direto para as
“casinhas do açude...” (Subentende-se que seja um eufemismo para um prostíbulo ali da
cidade).
Corria o mês de abril, o “mês das águas mil”, e o solo se transformava. A beleza da
natureza leva o narrador a dissertar sobre a variedade dos pássaros que habitam o
sertão.(sabiá, calo-de-campina, bem-te-vi, bom-é, piririguá, bico-de-latão, cancão,papagaio,
xexéu e azulão) sempre comparando os passarinhos com o ser humano.
O Capitão Galdino, tio de Florzinha, veio visitar os parentes. Alípio estava por lá.
Galdino tinha dois filhos: Cazuza e Luizinha. Era o que Florzinha precisava para esquecer
um pouco aquela conversa toda. O tio era muito engraçado. Alípio, do seu jeito, também era,
e isso o fazia menos mau (volta a idéia do pícaro). O narrador, com a sua onisciência, fala
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sobre os homens: “os homens engraçados nunca são muito felizes em amores porque sua
índole brincalhona prejudica as afeiçoes profundas. Ás vezes, mais ganha quem faz chorar do
que quem faz rir.”p.79
Enquanto isso, era assustador o progresso do “casamento” de Florzinha entre os
moradores de Ipuçaba. Galdino convida Florzinha para ir passear na fazenda e ver a prima.
Ela aceita imediatamente. Asclepiades detestou a idéia. Foram rápidas as despedidas. Alípio
despediu-se de Florzinha com um olhar significativo. Galdino convida Alio para passar uns
dias na fazenda. O promotor disse que qualquer dia iria mesmo. Florzinha foi para o sertão.
Alípio sentiu algo de estranho no primeiro dia que ficou sem ver Florzinha. Sua vaidade
fora arranhada pela indiferença da moça. Doeu-lhe, mas só por um instante. “O sentimento é
inimigo da força”.p.87 (Discurso de feição realista e racionalista) Durante uma conversa
Alípio conversa bastante com Matias. Matias pergunta a ele se a mulher é, por acaso, um
objeto de prazer. Alípio diz que é um animal igual ao homem, mas que tem manias
sentimentais. As mulheres querem ser fortes, fazerem-se iguais, mas vivem com
sentimentalidades. (Em jogo, considerações sobre naturalismo, realismo e romantismo).
Não queria mais pensar em Florzinha. Para que insistir nesse namoro sem
conseqüências? Ela que passasse muito bem por lá pelas bandas do sertão. Vamos à senhora
Bilinha! Essa sim era pessoa com quem podia se divertir um pouco nesse vale de lágrimas!
Bilinha, de sua parte, não descansava a guarda e mantinha-se vigilante contra o praciano. Não
queria ter o mesmo fim de sua mãe.
Certa noite, no velho costume de jogar o víspora, não apareceu ninguém para o jogo. E
eram mais de sete horas. Alípio chegou e foi logo fazendo elogios à professora. Para ela,
aquilo que se armava era um verdadeiro bote. Ele dizia que ela estava irresistível. Ela fugia da
conversa. E assim foi até o momento em que a Benvinda bateu na porta acompanhada do
marido. Fez-se um café. Demoraram pouco. Chico Herculano também acabou passando por
ali. Alípio resolve humilhar Chico Herculano falando de coisas cultas, de grandes intelectuais
que o pobre coronel nuca ouvira falar. Depois, para humilhar mais ainda passou misturar os
nomes de grandes personalidades, pensadores e poetas, com nomes de perfumistas, modistas,
barbeiros etc. deixando o coronel atordoado. Bilinha achou muita graça naquilo, mas
repreendeu-o com os olhos. A mãe de Bilinha chamou-a. A presença dos dois tornou-se
insuportável para todos. Saíram. Apertaram as mãos com indiferença. Disputavam a mesma
presa, estava claro. De quem seria a vitória?
Continuam as disputas entre as facções políticas de Ipuçaba. De um lado José Ferreira, do
outro o grupo de Chico Herculano. Alípio ainda não sabe que rumo tomar. Vez por outra lhe
comunicam das fofocas envolvendo o nome dele e o da professora. Ele diz que não liga. É
coisa de cidade pequena. Alguns pais tiraram até os filhos da escola. Alípio, irritado, diz que
seu interesse ou não na professora não é da conta de ninguém.
O narrador disserta sobre conduta amoral das pessoas da cidade e sua mania de fuçar a
vida alheia. Alípio pensou de novo em ir embora. Lembrou o segredo para a sua vitória:
egoísmo, ceticismo e audácia. Alípio lembrou do convite do Capitão Galdino para passar uns
dias na fazenda. Pensou em Florzinha.
Nessa noite, porém, com um desejo brutal, foi para a casa da professora. D. Maria Lina,
mãe de Bilinha, torcia em seu íntimo para que Alípio desonrasse a sua filha. Pensava; “O
doutorzinho tem pinta no olho, havia de quebrar-lhe a castanha do dente.”p.108. (Esse
209
pensamento da mãe em relação à desonra da filha é uma das coisas mais importantes da obra
segundo os críticos)
O jogo segue animado até que uma chuva forte se anuncia. Todos se retiraram. Alípio e
Bilinha ficam sós na sala. A velha Maria Lina esconde-se em seu quarto, de ouvidos atentos.
O tempo passava e nada. A velha caminhou até a sala e não havia ninguém. Olhou atrás da
porta e o chapéu do promotor ainda estava lá. Abriu a porta e viu que a escola, que ficava bem
na frente da casa, ainda estava com a porta entreaberta. Os dois estariam lá dentro com
certeza. Aproximou-se e ouviu alguns sussurros denunciadores... Sorriu ironicamente e disse a
si mesma: “Ah!Ah! Mulher de nossa raça não mente fogo!...Eu sabia que havia de cair
também, mesmo com a tua proa e com a tua sabença....Já não hás de sentir tanto desprezo e
tanta vergonha de tua mãe. Agora falaremos de igual para igual”p.110
O dia seguinte para Bilinha foi de dor e arrependimento. Caíra, com certeza, mas a
desgraça física não era nada perto da desgraça moral. “O vampiro mordera e fugira e ela
acordara sozinha no seu leito como uma enferma, abandonada, perdida, perdida.” p.112 Ao
final, acreditava ela também que tudo deveria ter sido mesmo assim. “Desgraçado sangue!
maldito destino!. Antes que conversasse com mãe, a própria velha, com ar demoníaco, veio
dizer-lhe alguma verdades. “Só o que lhe digo é que se cumpriram as minhas palavras:
quando os meus males forem velhos, os de alguém serão novos.”p.113. Uma menininha veio
ter aula e Bilinha sentiu-se indigna de tomar-lhe a lição.
A partir daquele momento, não quis mais ver o promotor. Pensou no dilema da cultura e
da ignorância. Será que os bons sentimentos não moram nas pessoas cultas? Será que a
bondade, a pureza de coração, tem a ver com a ignorância? Lembra de uma amiga de infância
bem mais imoral que ela que cresceu, casou, tem um lar, marido e filhos e nem passou por
aquilo tudo. Que destino desgraçado teria ela?
De sua parte, Alípio sentia um pouco de remorso. Em seguida, dizia apenas “O mal está
feito”. Não havia mais o que fazer. “Fiz o que faria qualquer outro homem. Se não fosse eu
seria o fulano ou o sicrano”p.118 Continua a discussão política. Casimiro diz a Alípio que
unindo-se a João Ferreira ele logo seria deputado federal. Alípio diz que prefere o víspora na
casa da professora. Segue exatamente para lá. Benvinda encontra Alípio do lado de fora e
passa-lhe um corretivo. Diz-lhe que ele só veio àquela terra para “desencabeçar” as filhas
alheias. Alípio se esconde na escola esperando Bilinha, mas ela não aparece.
Alípio adoece, febre, dor de garganta e outras mazelas. A noticia da enfermidade corre
rapidamente as ruas da cidade. Asclepiades fica sabendo e vem logo com a seguinte idéia:
Levemo-lo para a Varjota! Faria de um tudo para levar o futuro genro para passar uns dias na
fazenda do capitão Galdino, onde estava Florzinha. Idéia brilhante! Alípio, assustado e quase
afônico, consentiu com docilidade.
Levado numa liteira qual imperador romano, foi carregado pelo sertão até a Varjota.
Todos no caminho já sabiam que ali dentro viajava o “noivo de Florzinha”. O modo de vida e
a beleza do sertão causaram muito boa impressão em Alípio. Mas aquilo poderia ser apenas
por causa da doença. Uma planta raspa em sua mão deixando espinhos e um filete de sangue.
Imediatamente o homem se transformou odiando tudo aquilo. Descansam em baixo de uma
grande árvore que provava com seu porte a supremacia da natureza.
Chegam à Varjota. O promotor é recebido com honra pelos donos da casa, os filhos e a
bela Florzinha. Em seguida, serviram um régio almoço. As moças riam-se muito dos modos
210
do praciano. Cazuza, o filho de Galdino, não gostava muito daquela visita. Asclepiades
exultava. Os dois sob o mesmo teto já era meio caminho andado.
Talvez por causa da penosa viagem, em vez de melhorar, o doente piorou. A febre voltou
e a voz desapareceu. Três dias depois veio uma melhora significativa. Matias apareceu na
fazenda. Florzinha alegrava-se com a presença do poeta. Amores de infância ... Mas não
revelava isso a ninguém.
Um dia, quando Luizinha brigava com ela por tratar mal o Matias, Florinha respondeu:
“Pois casa com ele, minha prima!”. Mal sabia ela que o futuro sozinho se encarregaria disso.
Asclepiades insiste em saber de Luizinha que ela saiba o que Florzinha sente pelo promotor.
Casimiro vai á fazenda e chega trazendo noticias da cidade. Uma das noticias é que um
cavalariano de Pernambuco andava rondando a casa da professora, apaixonado por ela.
Alípio fica com ciúmes. Conversam sobre política. Vem a noite. No seu quarto, Alípio
imagina o que fazem e o que conversam Luizinha e Florzinha no quarto ao lado. O narrador
analisa a conduta das mulheres chamando-as de “uma cosia sempre a mesma e sempre nova”.
Luzinha achava que Florzinha e Matias não se amavam. Apaixonava-se pouco a pouco pelo
poeta. Florzinha percebeu essa inclinação, mas não havia muito o que fazer. Sofreu calada.
Seu dilema era que não lutava pelo que queria e nem tona a certeza de ser mesmo querida por
alguém. Diziam que ele gostava de Bilinha. Diziam também que ele não iria embora sem
antes pedir a mão de Florzinha. Que se cumprisse a sua sorte.
Dois dias mais tarde Alípio estava curado. Barbeado e bem vestido, nem parecia aquele
doente que havia chegado. Todos brindam à saúde recobrada pelo promotor. Matias, Cazuza e
Luzinha conversam ali próximo. Florzinha não integrava o grupo, estava conversando com
Alípio. Elogiada por ele, enrubescia. Asclepiades exultava, conversava até com Matias, pois
não via nele mais nenhum perigo para seus planos. Alípio e Florzinha não passavam dos
olhares, mais dele que dela. Entre Luzinha e Matias o namoro ia-se estabelecendo. O amor,
carente de uma palavra nunca dita, morria aos poucos no coração de Florzinha e Matias. A
vida é assim. Falta de coragem. Alípio e Matias passeavam às vezes em busca de sonetos.
Falavam das meninas. Alípio diz que imagina Florzinha cheia de vestidos decotados e jóias
caras. Matias não gosta. (O sertão é valorizado a partir da pureza de seus representantes).
Na volta, já com a família, Alípio percebe como Cazuza está arredio. A mãe diz que ele é
assim mesmo. No dia seguinte, Alípio sai para caçar. Durante a caçada, encontra o ponto do
riacho onde as jovens tomam banho. Escondido, pôde apreciar a nudez das duas primas, duas
Naiades, mas Florzinha superava as expectativas. “ Simultaneamente as banhistas tiraram os
casacos; desacolchetaram as saias de chita que lhes escorreram lentamente pelos quadris; (...)
Por fim, as mãos começaram a desabotoar o corpinho, e os seios alvorejaram através da renda
das camisas.”p.163 (Na maneira sensualista como Alípio olha para a nudez inocente das
jovens, reforçado pelo narrador, há um traço naturalista).
Alípio percebe que Neco, um moleque ali da fazenda, também observava. Ameaça o
menino. Voltou para a casa desconfiado e arranjou uma desculpa para a sua demora. Nos dias
que se seguiram, Alípio mostrou-se francamente enamorado por Florzinha, para delírio total
de Asclepiades. Por várias vezes saiu para caçar nas bandas do rio. Na fazenda, ninguém
entendia o riso safado do Neco quando o promotor passava...
Totalmente restabelecido Alípio marcara várias vezes seu regresso a Ipuçaba, mas nada
de partir. Florzinha, por sus vez, não sabia mais nada sobre os seus sentimentos. Afastada de
211
Matias e empurrada para Alípio. Todos esperavam uma declaração formal do promotor.
Alípio partiu e nada de pedido de casamento.
O dia do julgamento de Zé Pipoca se aproximava. Novos convites surgiam para a política.
Alípio diz que vai primeiro à capital da província. Na volta, deve casar-se com a filha do
promotor. Casimiro, seu maior confidente, fica admirado e pergunta sobre a história dele com
a professora. Ele diz que aquilo não foi nada. Tem inicio o julgamento de Zé Pipoca, e como
era de se esperar, em pouco tempo, o meliante foi absolvido por 9 votos a 3. Os bandidos e
seus defensores ( dá na mesma) foram jantar na casa do João Ferreira.
Alípio cria coragem e finalmente vai falar com Bilinha. Ela, ressentida, pergunta de seu
noivado. Ele não dá importância. Ele reclama que adoeceu e ela nem se importou. Ela diz que
mandou a Benvinda saber noticias, mas todos ironizaram a coitada. Bilinha chora. Com sua
conversa de sempre o promotor vai abandando a raiva da moça. Em seu íntimo, Alipio pensa
em permitir o casamento de Bilinha com Florêncio para que outro assuma o que de fato ele
fez. Ela pergunta bobamente pelo noivado,. Ele não confirma. Diz que pensa primeiro na
viagem que vai fazer. Ela faz um pedido: quer que ele consiga uma transferência dela para
Fortaleza. Ele diz que fará o possível. Maria Lina toma café com o casal. Em seguida, vai para
o quarto cachimbar, deixando os dois sozinhos outra vez...
No dia seguinte, a parede de Chico Herculano aparece pixada com os dizeres parce
sepultis, significando a derrocada do chefe político da região. Era o fracasso definitivo do seu
partido. A luta que indicava a vitória certa da República estava se definindo. O próprio João
Ferreira, antes monarquista confesso, agora defendia com unhas e dentes o generalíssimo. O
resultado do julgamento do Zé Pipoca parecia ser a única animação mais grave no momento.
Alípio, na verdade, era o único que não se decidia, tanto no campo político quanto no
sentimental: “Queria se fazer de ferro, mas não passava de um pixote em namoro”, dizia o
Casimiro.
Casimiro conversa com Alípio e este lhe revela um detalhe incrível: Bilinha, na verdade,
era viúva. Foi casada com um sujeito que viajara para Manaus e lá morrera. Era uma brilhante
mentira, mas que servia no momento aos interesses de Alípio. Casimiro acreditou.
No meio da conversa surge o Asclepiades que estava furioso porque ele ainda não visitara
sua família depois de voltar do sertão. Alípio, espertamente, foi logo se desculpando por ainda
ter ido visitá-los. Em seguida o narrador tece considerações comparando Recife e Ipuçaba,
falando das mulheres, de sua inutilidade e de seu ócio, os bêbados na rua etc. Num discurso
onisciente, o narrador coloca sua opinião através dos pensamentos de Alípio, falando sobre o
atraso da gente de Ipuçaba. “Ipuçaba era uma ruína povoada de gente triste, vencida de
desalento e preguiça ”p.186 A comparação continua mais adiante chegando inclusive a uma
análise sobre o Direito brasileiro: “Uma coisa anacrônica por antecipação no Brasil,
prematura e até nociva à expansão das energias morais e industriais do povo”p.186. Elogia
Tobias Barreto e outros pensadores forenses, mas assevera: “De que serve todo esse Direito
de encenação e de teoria numa terra onde, a começar pelos próprios magistrados, todos estão
sempre inclinados para violência e para a injustiça?” “ Como há de um povo respeitar
códigos que não sabe ler?”p.187. Percebe-se, seguramente, a influência do narrador nas
palavras de Alípio. Isso não o exime de sua índole um tanto duvidosa.
Depois desse ataque de falso moralismo, Alípio vai falar com Benvinda ela lhe passa um
grande sermão sobre o que fizera com Bilinha e tentava agora limpar-se entregando-a a outro,
212
o Florzinha. Alípio joga-lhe também a conversa sobre a viuvez de Bilinha... A fofoqueira
acredita. O leitor fica sabendo a verdadeira história do Florêncio ou Florencanti. A mulher o
largara para viver com alguns estudantes em uma república. Tempos depois, a mulher adoece
e Florêncio leva-a para casa novamente e perdoa-a. A mulher morre e ele manda fazer um
enterro luxuoso. Sua história faz surgir um poema denominado Florenciada, feito por um
amigo da cidade de Afogados.
À noite, Alípio foi visitar D. Claudina, sendo muito bem tratado na condição de noivo de
Florzinha. Em sua mente, o desejo de ir visitar logo Bilinha. Ao chegar a casa da professora é
surpreendido por Benvinda que novamente o repreende: “ Então, doutor, é assim que cumpre
os seus juramentos? Não o supunha tão mau. Que vai fazer nessa casa? Rematar a desgraçada
dessa pobrezinha, não é assim? Pense na sua noiva!”p.192
Alípio teve crise de consciência. A frase de Benvinda lhe martelava o cérebro. “Pense na
sua noiva!”. A imagem de Florzinha também passou a se materializar perante seus olhos. Ali
próximo, Florêncio, exímio violonista, cantava um lamento amoroso. “Eu me via ligado nos
teus encantos/ por grilhões poderosos e fatais/ mal te vira, mulher, eu já te amava/ se te rias de
mim, te amava mais”.p.195.
A crise de Alípio só aumentava. Cada vez mais resolvido a partir, dizia a si mesmo que
primeiro debandaria para a capital, depois, se fosse o caso, voltaria para pedir a mão de
Florzinha . Nada era certo. O certo era ir embora.
O narrador faz um encadeamento entre a crise interior vivida pelas personagens,
principalmente Alípio, e a própria crise instalada na política da época. A situação é tão irônica
que o maior confidente de Florêncio passa a ser o próprio Alípio. Florêncio lhe diz que
descobriu que Bilinha tem um grande segredo. Qual será? Alípio desconversa.
Dias depois, Galdino, o pai de Luisinha, volta da Varjota trazendo Florzinha. Na fazenda
ficou Luisinha, com uma baita dor de dente, e Matias praticamente noivos. Florzinha, apesar
de estar em casa, leva o tempo a chorar e ninguém sabe a causa. Algum tempo depois, meio
culpado, faz uma visita aos pais da menina, que estava indisposta e não quis vê-lo. Em casa,
revelou ao tio (padre Balbino) que só pediria Florzinha em casamento quando voltasse da
capital.
Chegou uma carta da Varjota para o Capitão Galdino. Sua esposa explicava que o filho,
Cazuza, estava prestes a embarcar para o Amazonas, e o motivo era a paixão que sentia por
Florzinha, algo que nunca foi correspondido. Amava a prima e não agüentava vê-la esperando
eternamente por aquele praciano... Galdino se sente incomodado, mas não há muito o que
fazer. Falou com a irmã sobre o casamento de Florzinha e Alípio e ambos se mostravam
contrários àquela união. Mas nada mudaria a cabeça de Asclepiades.
Enquanto isso, D. Joaninha, mãe de Matias, faz uma visita a Florzinha. A menina não
parece muito feliz. Sentia-se triste também pelo que causava ao primo, mesmo sem querer.”
Um pressentimento de misteriosas desgraças povoava-lhe a mente” p.207 Mais aflita que
Florzinha estava D. Claudina. Consolaram-se.
D. Claudina conversa com a filha e diz que estava ao seu lado em qualquer decisão.
Florzinha diz que gostaria de voltar para o colégio e nunca mais tornar ali. Choraram. A
jovem, boa filha aos olhos daquela educação tão antiga, acertou com a mãe que obedeceria ao
capricho do pai, mas com a condição de ser mandada ao colégio interno se o casamento não
se realizasse. À tarde, Alípio recebe um recado de Bilinha, exigindo falar-lhe imediatamente,
213
pois Florêncio vai procurá-la e estava pronto para pedi-la. Na verdade, era ela que não se
resolvia com uma pontinha de esperança de ser “assumida” pelo promotor. Passou a noite
esperando. Na madrugada chorou copiosamente.
Na hora da visita de Florêncio, Bilinha que antes queria dizer toda a verdade, aceita
mansamente o pedido, contanto que seja o mais rápido possível e ele consiga a sua
transferência para ensinar em outro local.
Florêncio, imitando Asclepiades, sai avisando a todo mundo que recebeu o “sim” de
Bilinha. Todos o cumprimentavam com uma ponta de ironia, e um sorriso sardônico: aquele
era ”um homem feliz!” .
Alípio, estranhando ele mesmo esse distanciamento da amante, passara a sentir, desde a
doença, uma certa transformação em seus pensamentos. Teria sido aquela temporada em
contanto com a natureza? A visão daquele corpozinho virginal e formoso escravizara para
sempre os seus sentimentos. Tornara-se um homem diferente por causa do sentimento
verdadeiro que agora experimentava. Pensava em desposá-la e aproveitar aquele laço do
destino. A carne da pecadora já não tinha sabor próprio.... Foi almoçar na casa da noiva, onde
o pai da mesma não cabia em si de contentamento. (Lembremos que o que parece uma
verdadeira mudança na índole de Alípio , na verdade, é mais uma peça pregada pelo narrador,
pois sabemos como o promotor muda de opinião rapidamente).
Desinteressadamente, o narrador nos presenteia com um toque intencionalmente
regionalista (não muito forte no livro, mas o suficiente para gerar uma polêmica entre os
críticos). No diálogo entre Asclepiades e Alípio percebe-se a intenção do narrador em revelar
o drama dos sertanejos, a seca, capaz de fazê-lo abandonar suas terras e ir embora em busca
de melhoria, como fizeram muitos cearenses indo para o Amazonas trabalhar nos seringais.
Na rua, Alípio e Asclepiades passam por Bilinha. O promotor a ignora, virando o rosto.
Florêncio fica muito contente com isso. Diz ao promotor que a professora (uma tipa) está
noiva do Florêncio.
O último capítulo começa com Florzinha fazendo crochê embaixo de uma mangueira. Ao
seu lado, a velha Mariana cachimbava, pessoas passam olhando para a menina. Todos
queriam ver “a noiva do doutor”. Ela virara o assunto de todas as conversações. O narrador
fala também da transformação que se opera na sua índole de menina-moça. O sofrimento
amadurece. Acerca das reflexões da jovem sobre o seu destino o narrador faz comparações
com a Bíblia, principalmente com a parte que apresenta a influência da serpente sobre Eva,
lembrando-nos sobre o pecado original e a expulsão do Paraíso.
Mas a tentação aos poucos lhe modificava as convicções. “A garra do tentador transmitialhe o pólen de fogo...” Já não se imaginava trancada num convento. Vem agora um aspecto
naturalista mesmo enfraquecido pela elegância da metáfora. Volta o traço regionalista e nova
consideração sobre a seca. ” Mas em redor dela a natureza agonizava nos paroxismos dos fins
das águas. (...) Um tom neutro e soturno dominava o oriente, enquanto o poente, todo em
fogo, corroia os contornos caprichosos dos formidáveis torrões de nuvens por cujas seteiras se
derramava a luz como jorros de metal em fusão” p. 220
Florzinha, na verdade, sentia falta do praciano. As tardes eram passadas nas conversas em
roda, das quais a menina se distanciava um pouco botando culpa no sereno. Todos
perguntavam quando o noivo voltaria. Diziam pela cidade que Bilinha também partira para
Fortaleza... Florzinha reparou naquela estranha coincidência. Pensou na possibilidade de
214
encontrarem-se e a outra lhe arrebatar o noivo. Sentia ciúmes. O pior seria ficar para trás,
enganada como uma criança inocente, abandonada á crítica cruel daquela sociedade imunda,
faminta por um escândalo.
O tempo passava e levava com ele a beleza de Florzinha. Foram meses de espera.
Finalmente veio carta do noivo, mas sem data de regresso. Mariana dava-lhe noticias das
maledicências do povo sobre aquela demora. “A convicção do seu abandono apossava-se dela
como a desgraçada certeza de um mal incurável”.p.223.
Veio outra carta. Nela o noivo dizia que não encontrava uma boa colocação em Fortaleza.
Era preciso uma viagem ao Rio de Janeiro. O vigário também escreveu falando de sua
transferência para capital. Tão cedo voltaria a Ipuçaba. Um empregado levaria as suas coisas.
Era outro que abandonava a cidade. Chega o casamento de Luizinha e Matias. Florzinha não
comparece. O narrador fala de novo sobre a seca. “ O Aracati (...) vinha agitar as cinzas
mortuárias da vegetação “ p.223. Florzinha continuava esperando...
Os dias passavam mortalmente longos... e Florzinha pensava no dia em que acordaria
sem nenhuma esperança pensava: “ O noivo e a amante tinham-se ido em busca de climas
mais amenos e propícios, fugindo de plaga em plaga, como aves de arribação. Apenas ela
ficara naquele triste lar, acompanhada de sonhos fantasmas, esperando o dia em que seria
conduzida, mutilada em seu coração, inválida de amor e virgem, para a cela fria de um
convento.
Observações!
1. Romance realista de teor regionalista.
2. Presença de Realismo (Alípio), Naturalismo (Bilinha) e Romantismo (Florzinha).
3. Contexto das oligarquias. João Ferreira representa uma crítica do autor ao governo de
Tomás Acioli, conhecido como o Babaquara.
4. Anticlericalismo (Pe. Serrão) e Adultério ( Florêncio Cavalcante), bases do
Realismo, são introduzidos no romance de forma artificial.
5. Alípio, por conta de seu alpinismo social e sua conduta sensualista (Gozar e subir,
este é o meu fim) acaba sendo comparado a anti-heróis como Leonardo Algibebe,
Secundino, Basílio e Macunaíma.
6. O autor foi criticado por errar o nome das personagens e pelo artificialismo dos
diálogos.
7. A seca no romance, segundo alguns críticos, é algo mais hipotético que real.
8. Alguns críticos vêem semehanças entre este romance e o livros Madame Bovary e A
Normalista.
9. Matias, segundo alguns criticos, é o alter ego do autor.
10. Existe um conflito entre Sertão e Cidade, como em Patativa do Assaré.
11. As personagens, em sua maioria são tipos: coletor de impostos, promotor, jagunço,
coronel etc.
12. A feira é personificada e vira um tipo de antagonista.
13. Antônio Sales destacou-se na Padaria não como romancista, mas como poeta
parnasiano.
215
14. O capítulo sobre passarinhos pode atrair uma comparação com o sabiá do livro Dias
e Dias.
39 - Poesias Incompletas – Antônio Girão Barroso
Como se observa no “Último poema” do livro, Antônio Girão Barroso, mais de uma vez,
deixou textos incompletos, chegando inclusive a pedir a algum amigo que completasse um
poema por ele começado. Logo, subentende-se desse título, alem da idéia primeira de que
nada está completamente explicitado, que a Poesia é exatamente aquilo que, mesmo através
da incompletude, da subjetividade e da imprecisão, chega mais perto de exprimir nossos
incompreendidos sentimentos.
Autor e obra
Como ele mesmo costumava dizer, Antônio Girão Barroso nasceu em 1914, “quase por
acaso” em Araripe (Ce), pois a família, fugindo do clima de guerra advindo da Sedição de
Juazeiro, abandonou a cidade do Crato e foi para Araripe, terra mais calma. Depois, o menino
viajou, a cavalo, dentro de um embornal, de Araripe para Iguatu. Em seguida, pegaram um
trem para Fortaleza. Morou em Aracati, Lavras da Mangabeira e Icó. Depois de alguns anos
em Icó, o pai achou melhor que ele fosse estudar em Fortaleza, na companhia do irmão
Magdaleno, estudante do Liceu do Ceará. Passou a morar em uma casa de cômodos chamada
Hotel Avenida, localizado na esquina da Guilherme Rocha com Barão do Rio Branco, em
frente ao Café Poty, onde costumava merendar. Houve um incêndio nesse hotel, o maior
incêndio de Fortaleza até aquela época. Por causa desse incêndio, foi criado o Corpo de
Bombeiros. Em 1930, era aluno do Liceu do Ceará.
Admite que era mais da pândega, da bagaceira, não era muito de estudar. Abandonou os
estudos por dois anos. Estudou na Fênix Caixeiral e depois, determinado, voltou ao Liceu do
Ceará. Em 1938, passou um ano como soldado no 23º. Batalhão de Caçadores. Veio a Guerra,
deu baixa. Em 1940, entrou, por vestibular, para a Faculdade de Direito, onde foi aluno
exemplar. Em 1942, participou de um congresso da UNE, no Rio de Janeiro, e viu várias
vezes Getúlio Vargas fumando charuto na sacada do Catete. Conheceu Oswald de Andrade,
Mário de Andrade e outros grandes nomes do modernismo admirando autores como Manuel
Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Foi jornalista atuante criando vários jornais: O
Lábaro, O progresso, o Metralha e o 5 de Julho, o mais político de todos. Fundou e dirigiu
o Partido Socialista Brasileiro.
Criou a UEE (União Estadual dos Estudantes); o Salão de Abril, em 1943 e a SCAP,
estes últimos voltados para as artes plásticas. Criou a PROPAG, primeira agência de
publicidade do Ceará. Participou, em 1948, do I congresso de Poesia, onde conheceu um
jovem chamado José Sarney, poeta razoável, que um dia seria presidente da República. Nunca
foi apresentado a Antônio Sales, mas conheceu Orson Welles ( Cidadão Kane e Its all true),
mestre do cinema de seu tempo.
Casou com uma sobrinha-neta de Domingos Olímpio, Alba Aragão Cavalcante. É pai do
teatrólogo Oswald Barroso, grande nome do Grupo Siriará. Fez concurso e tornou-se
216
professor da Faculdade de Economia (FEAC) e, depois da Faculdade de Direito. Foi mentor
intelectual de grupos como o SIN e o Siriará, ajudando inclusive na escolha dos nomes.
Morreu em 11 de dezembro de 1990, em Fortaleza. Obras: Alguns Poemas (1938), Os
Hóspedes (1946), Novos poemas (1950), Antologia de Poetas Cearenses Contemporâneos
(1965), 30 poemas para ajudar(1968), Universos(1972), Dois tempos(1981), Poesias
Incompletas (1994). Crítica: As artes plásticas no Ceará; Modernismo e Concretismo no
Ceará (1978); Discurso contra o método.
A relação com o Grupo Clã
Autor de compleição modernista, Antônio Girão Barroso fundou o Grupo Clã na
companhia de Arthur Eduardo Benevides, Moreira Campos, Eduardo Campos, Milton Dias,
Aluisio Medeiros etc. Mas deixemos que o próprio autor nos fale dessa relação.
“Minha ligação maior é com o chamado Grupo Clã, cujo nome inventei. Havia em São
Paulo um Clube dos Artistas Modernos, que dava a sigla CLAM, com m de Maria no fim.
Quer dizer, o nome não tem nada de original. Eu dizia:”Rapaz, que nome bom””. Aí imaginei
Clam. Imaginei criar um grupo com esse nome, mas seria sigla de Clube, em vez de Artistas,
Clube de Arte Moderna. Artista é negócio mais restrito e Arte é mais abrangente, mais geral.
Não chegou a ser fundado, mas ficou a sigla, que era clam com m de Maria. Com a reforma
ortográfica, passou a ser com til. Depois foi criado o Clube de Literatura e Artes. Não tinha
mais o til, era CLA, simplesmente. Em dezembro de 46, no I Congresso Cearense de
Escritores, lancei o número Zero de Clã. Mas a primeira edição de Clã foi de 43, Três
Discursos. Eu, Eduardo Campos e Mario Sobreira de Andrade (Mario de Andrade do Norte).
A gente se reunia em bares, cafés... A revista veio depois”.
No Grupo Clã produziu poesia e prosa, mas dedicou-se bastante à crítica de cinema,
sendo nosso primeiro crítico. Trouxe o Concretismo para o Ceará com José Alcides Pinto,
Horácio Dídimo, Zenon Barreto, J. Figueiredo e Pedro Henrique Saraiva Leão.
Análise
I – Alguns Poemas -1938
ESTAÇÃO DE TREM
A Manuel Bandeira
Lá-e-vem o trem
lá-e-vem
com seu apito tão fino
vem danado pra chegá
Pacatú-b-a-bá
Pacatú-b-a-bá
Corre, menina
teu pai chegou
o trem das nove
não já apitou?
Banana seca é o pau que rola.
217
Lá-e-vem o trem
lá-e-vem
com seu apito tão fino
vem danado pra chegá
Pacatú-b-a-bá
Pacatú-b-a-bá
Donde vem esse povo?
Vem do Ceará!
Pacatú-b-a-bá
Pacatú-b-a-bá
Seu moço, me dê uma esmola
Pelo santo amor de Deus...
Esse cego ta fazendo verso?
O trem vinha puxando noventa
Ah trem espritado!
Um bando de colegiais
tão fazendo sururu na vila.
Tem um bebendo até cachaça
o Acarape é tão perto
cachaça é quase de graça
contudo ele já gastou seiscentos réis...
Fiu...
O trem partiu
Pacatuba sumiu.
(Mas que vontade de voltar...)
Pacatú-b-a-bá
Comentário:
O que mais se percebe nesse primeiro poema é a influência de Manuel Bandeira,
melhor poeta do Modernismo na opinião de AGB. Bandeira tem papel preponderante em sua
produção poética por vários motivos, mas o maior deles foi uma defesa acalorada que Manuel
Bandeira fez de seu primeiro livro de poesia, ironizado por um poeta leviano de Minas Gerais,
um tal de Rosário Fusco. Destaque-se imediatamente além do dinamismo modernista, a
velocidade, a liberdade formal, o tom coloquialíssimo de expressões como “Banana seca é
o pau que rola” ou “Ah trem espritado”. Prosaico a não poder mais, segue Bandeira até no
ritmo. Enquanto MB apregoava ludicamente “Café-com-pão! Café-com-pão! ” AGB repete
“Pacatú-b-a-bá” com a mesma finalidade: sugerir o balanço delicioso do trem que cruzava o
sertão, em tempo de fartura, tempos que não voltam mais...pois há um certo saudosismo em
Mas que vontade de voltar...
II – Os Hóspedes – 1946
218
POETA MODERNO ARRANJA NAMORADA
a Aluisio Medeiros
Meu coração, bate devagar
Pode bater devagarinzinho
Não se espante não meu bem
Que um dia hei de encontrar
Sozinho por um caminho
Me trazendo muitas flores
Muitas flores pra “moi”
O meu amor – derradeira
Esperança da minha vida.
Quanta rosa feiticeira
Não trará meu amorzinho!
Que me comoverei todo
Lhe direi coisas divinas
Coisas de sarapantar
Ele olhará pra mim
Me dirá que me quer bem
Um bem mesmo de matar.
Mas eu não quero o madrigal dele não
Quero o meu, pois pretendo fazer poesia
Poesia antiga não, quero poesia moderna
Mas das bem modernas,
Ele achará aquilo pau,
Eu ficarei triste,
Meu amor me console
Tenha pena do meu penar.
Comentário:
Abordando paradoxalmente a temática amorosa ao lado do senso poético modernista,
numa postura de amadurecimento, utilizada por Vinicius de Moraes e difundida pelo
ecletismo do Pós-modernismo e sua revisão da poesia, AGB começa brincando com as
palavras no neologismo devagarinzinho ou no barbarismo de “flores para moi” não negando o
velho francesismo fortalezense. Toante em alguns pontos, sua rima, na verdade, não tem
compromisso formal, soa mais como brincadeira, tanto é que lembra Macunaíma, do ícone
Mário de Andrade em “Lhe direi coisas divinas/ coisas de sarapantar”. Por último, exige de si
mesmo uma poesia modernista, “das bem modernas” a ponto talvez de o amor, o
sentimentalismo, não ser mais nenhum empecilho, pois haja o que houver, passe o tempo e a
escola que passar, o ser humano será sempre o mesmo, um sofredor de amor, por isso o eulírico suplica, num trocadilho mais que apropriado, “tenha pena do meu penar”.
III – Novos Poemas – 1950
A MUSA
Pequeninas mãos, os gestos presos ao corpo, a
(adolescência triste
A musa era ingrata, que ingrata, escondendo as
(palavras de libertação.
Meu verso, trôpego, e o amor rareando nas tardes
( de azul e açucena.
219
A te buscar, Musa, esquecida numa pétala de rosa
(quase vermelha.
Sim, contavas-me histórias, e reparava na tua boca
(que mordia pêssegos
inexistentes. A lua derramava lágrimas roubadas
( de mim e eu sofria
por não te beijar naquela noite. Musa, eu dizia,
não mais o amargo das palavras
Só gestos inocentes e a adolescência triste e
( sem memória.
(...)
Hoje, suicido-me diariamente às quatro horas
( da tarde, ponho o punhal
No coração, ligo o rádio e escuto a tua voz que
( vem de tão perto
E tão distante, vinte anos, talvez, e
( misericordiosamente
tu pedes-me para não morrer, e eu não morro,
(Musa.
Estou aqui para te cantar, o verso é ruim, mas
( eu me despeço dele
E vou dormir quieto como um rapaz sem
(namorada, sem pensar em você.
Perdida na lembrança, você é um sinal e nada
(mais
Da vida que se foi ao som de uma valsa
(antiga, lembras-te?
Comentário:
Ambientado em Icó, e feito basicamente com versos bárbaros, A Musa é o poema
preferido de AGB ( Talvez nunca saibamos o verdadeiro motivo), A Musa revela um pouco
mais sobre os sentimentos e o neo-romantismo desse autor. O título nos remete a uma feição
clássica, não necessariamente parnasiana, mas clássica no sentido temático, da inspiração para
escrever. Há uma idealização da figura feminina a ponto de o sentimentalismo transbordar
marcado por um sofrimento duradouro. Reveste-se de simbolismo em sinestesias elegantes
como “tardes de azul e açucena” e “ boca que mordia pêssegos”. Segue o pessimismo
exagerado de um escapismo surreal de “suicido-me diariamente às quatro horas da tarde”. A
nota simbolista retorna na imagem da Vida “que se foi ao som de uma valsa antiga” e da
pergunta em aberto: “lembras-te?”
IV – 30 poemas para ajudar -1964
No tempo de eu
No tempo de tu
No tempo de ele
No tempo de nós
No tempo de vós
No tempo de eles
Seu mano, a poesia era um fato
220
TINHA BILAC
Comentário:
Nesse poema, AGB numa postura um tanto contraditória para um modenrista, uma vez
que execravam os parnasianos, desde a leitura do poema Os Sapos, de Manuel Bandeira,
escreve, através da função metalinguistica, a angústia dos anos 30, 40, 50 e 60 sobre quem
seria o maior poeta brasileiro. No passado (séc. XIX) era mesmo Bilac, e AGB reconhece
isso. Mas quem seria o grande poeta de seu tempo. Só o futuro iria revelar: Carlos
Drummond de Andrade.
V – Universos – 1972
Eram três pessoas distintas, mas uma só, na
[ verdade.
Eu, o Floro e o Assis.
Três corpos numa alma só.
(O povo dizia que nós éramos
Três amizades perfeitas.
E meninos de futuro, sim senhor)
Depois veio o tempo mau
O tempo que tudo leva
E levou o Floro pro céu
O Assis ficou na terra
Eu não sei onde fiquei!
Comentário:
Este é um poema sobre amizade, tipo de poema que se faz para os amigos. Nesse caso,
quase uma elegia, pois envolve a idéia de morte. Começando com um verso bárbaro (mais
de 12 sílabas métricas), depois avaliando a intensidade da amizade dos três, vem o Tempo
mau como metáfora da Morte desconsertando a amizade que parecia tão perfeita. Ao final, a
ausência do amigo falecido é tão forte que o eu-lírico, numa perspectiva dantesca (Céu e
Inferno), não sabe nem onde ficou, de tão abalado que estava.
Observações!
1. Autor de compleição Modernista, pois seu livro é de 1938 e antes disso ele já
escrevia.
2. Inlfuência de autores modernistas como Mário de Andrade, Oswald de
Andrade e , principalmente, Manuel Bandeira.
3. Presença de paródia e de poema-piada.
4. Versos livres, brancos e assimétricos predominam.
5. Utilização de versos bárbaros (mais de 12 sílabas).
6. Presença do Concretismo dos irmãos Campos (Augusto e Haroldo).
221
7. A melancolia e a análise da vida são os elementos mais fortes do texto.
8. Conflito entre o Lírico e o Antilírico (Poeta modernista arranja namorada).
9. Relações com Futurismo, Dinamismo e Dadaísmo.
10. Aspectos sociais em muitos dos poemas.
11. Aspectos infantis em alguns poemas.
40 –
41 - Cordéis e outros poemas – Patativa do Assaré
O título se explica, única e simplesmente, pelo fato de ter sido dividido o livro em duas
partes “quase” distintas. A primeira, onde predomina o teor narrativo do cordel, e a
segunda na qual se observa uma carga maior de lirismo, a poesia mesmo.
222
Autor e obra
Antônio Gonçalves da Silva (1909 - 2002) nasceu na Serra de Santana, em Assaré,
cidade miúda do interior do Ceará. Era o segundo filho de Pedro Gonçalves da Silva e Maria
Pereira da Silva tendo no sobrenome a simplicidade que para sempre lhe seria peculiar. Em
1913 ficou cego de um dos olhos por conta de uma doença. Vai para a escola, pela primeira
vez, aos doze anos, e só freqüenta quatro meses do ano de 1921. Desde então, sua luta é
grande com as “letras", como ele mesmo dizia. Em 1922, ignorando as neuroses
modernistas, tornou-se versejador de festas. Em 1925, vendeu uma ovelha e comprou uma
viola, dando início às suas atividades de compositor, cantor e improvisador. Em 1926 teve um
poema publicado no Correio do Ceará. Em 1928, vai a Belém e lá, o jornalista José Carvalho
de Brito coloca-lhe o apelido de Patativa. Em 1929, apresenta-se na Casa de Juvenal
Galeno (autor de Lendas e canções populares). Era o encontro dos dois maiores poetas
populares do Ceará. Em 1936, casa-se com Belarmina Paes Cidrão, a D. Belinha com quem
teria 14 filhos. Em 1956, seu primeiro livro, Inspiração Nordestina, é publicado. Em 1978
publicou o livro Cante Lá que Eu Canto Cá. (Em 1979 iniciou, com Poemas e Canções, a
gravação de sua discografia, entre os quais se destacam Canto Nordestino,1989 e 88 Anos de
Poesia,1997). Em 1988, lançou Ispinho e Fulô. Em 1991, lançou Balceiro onde constam
vários poetas de Assaré. Em 1993 participa da novela Renascer. Em 1994 publica o livro
Aqui tem coisa. Em 1999, finalmente, acontece a inauguração do Memorial Patativa do
Assaré. Seu último livro, Cordéis-Patativa do Assaré , é também de 1999.
Um pouco mais sobre essa ave...
Processo criativo:
“Ah, isso aí só quem pode lhe responder é a natureza. O próprio poeta não pode não, ele não
sabe o segredo. Porque tudo isso é uma benção de Deus. De qualquer coisinha eu crio aquilo
que eu quero. Muitas vezes, é só uma simples brincadeira, mas no entanto, encerra uma
verdade inegável e é isso aí que muita gente não entende, eu dentro da cultura popular, eu
exponho muita coisa. “ (Sábado, suplemento cultural do Jornal O Povo, 28 de fevereiro de 98)
Não era muito afeito a Futurismos e Concretismos:
“ Isso não é poesia do meu mundo, não. Eu não gosto porque ela não tem a arte da
versificação, não tem medida, ela não tem a sílaba predominante, ela não tem nem sequer a
rima que é o que mais embeleza a poesia” (Sábado, suplemento cultural do Jornal O Povo, 28
de fevereiro de 98)
Sobre seus poemas musicados:
“ A sensação de quem o ouve pela primeira vez, como eu, é de estar diante de um criador
consciente que vive uma riquíssima realidade cultural, atualíssima em seu contexto, da qual
extrai as ferramentas necessárias para sua expressão, colocando, lado alado, tradição e
223
experimentação. Isto o torna um artista sintonizado com seu meio e com seu tempo” ( Ana
Maria Kieffer, pesquisadora de música, em Sábado, suplemento cultural do Jornal O Povo, 25
de outubro de 97)
A consciência de seu trabalho e de sua humanidade leva a um epitáfio:
Reconheço que estou no fim
e sei que a terra me come
mas fica vivo o meu nome
para os que gostam de mim.
Análise
I - Cordéis – Parte onde encontramos, na sua maioria, textos de cunho notadamente
narrativos.
A triste partida
Setembro passou
Outubro e Novembro
Já tamo em Dezembro
Meu Deus, que é de nós,
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz
A treze do mês
Ele fez experiênça
Perdeu sua crença
Nas pedras de sal,
Mas noutra esperança
Com gosto se agarra
Pensando na barra
Do alegre Natal
Rompeu-se o Natal
Porém barra não veio
O sol bem vermeio
Nasceu muito além
Na copa da mata
Buzina a cigarra
Ninguém vê a barra
Pois barra não tem
Sem chuva na terra
Descamba Janeiro,
Depois fevereiro
E o mesmo verão
224
Entonce o nortista
Pensando consigo
Diz: "isso é castigo
não chove mais não"
Apela pra Março
Que é o mês preferido
Do santo querido
Sinhô São José
Mas nada de chuva
Tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito
O resto da fé
Agora pensando
Ele segue outra tria
Chamando a famia
Começa a dizer
Eu vendo meu burro
Meu jegue e o cavalo
Nóis vamo a São Paulo
Viver ou morrer
Nóis vamo a São Paulo
Que a coisa tá feia
Por terras alheia
Nós vamos vagar
Se o nosso destino
Não for tão mesquinho
Ai pro mesmo cantinho
Nós torna a voltar
E vende seu burro
Jumento e o cavalo
Inté mesmo o galo
Venderam também
Pois logo aparece
Feliz fazendeiro
Por pouco dinheiro
Lhe compra o que tem
Em um caminhão
Ele joga a famia
Chegou o triste dia
Já vai viajar
A seca terríve
Que tudo devora
Lhe bota pra fora
Da terra natal
225
O carro já corre
No topo da serra
Oiando pra terra
Seu berço, seu lar
Aquele nortista
Partido de pena
De longe acena
Adeus meu lugar
No dia seguinte
Já tudo enfadado
E o carro embalado
Veloz a correr
Tão triste, coitado
Falando saudoso
Com seu filho choroso
Iscrama a dizer
De pena e saudade
Papai sei que morro
Meu pobre cachorro
Quem dá de comer?
Já outro pergunta
Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer
E a linda pequena
Tremendo de medo
"Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?"
Meu Deus, meu Deus
Meu pé de roseira
Coitado, ele seca
E minha boneca
Também lá ficou
E assim vão deixando
Com choro e gemido
Do berço querido
Céu lindo e azul
O pai, pesaroso
Nos fio pensando
E o carro rodando
Na estrada do Sul
Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Percura um patrão
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
226
Do caro torrão
Trabaia dois ano,
Três ano e mais ano
E sempre nos prano
De um dia vortar
Mas nunca ele pode
Só vive devendo
E assim vai sofrendo
É sofrer sem parar
Se arguma notíça
Das banda do norte
Tem ele por sorte
O gosto de ouvir
Lhe bate no peito
Saudade de móio
E as água nos óio
Começa a cair
Do mundo afastado
Ali vive preso
Sofrendo desprezo
Devendo ao patrão
O tempo rolando
Vai dia e vem dia
E aquela famia
Não vorta mais não
Distante da terra
Tão seca mas boa
Exposto à garoa
A lama e o paul
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul
Num tom melancólico, em versos de cinco sílabas, oitavados, o eu-lírico narra o drama
da migração sertaneja. O tempo passa e a chuva não vem. O homem do sertão, apegado à
cultura popular, observa a cigarra, sinal de seca, faz simpatias e reza para São José, mas não
chove. Sua saída é ir para São Paulo. O momento da partida é realmente triste,
principalmente na sutileza do relacionamento das crianças com seus animais de estimação e
seus brinquedos. Vão, mas sempre com a esperança de voltar. Em terra alheia, recebem
tratamento ruim e escravizam-se de tal forma que não vêem mais nenhuma chance de
retornar. É por conta disso que sempre se emocionam e enchem os olhos d´água toda vez que
algo lhes lembra a terra querida. Destaque para a idéia constante de perda, a fala comum do
sertão em “meu pé de fulô” e um paulismo inconsciente na utilização de paul rimando
naturalmente com Sul.
227
Alguns poemas importantes:
Padre Henrique e o Dragão da Maldade: História de um padre ético, justo e bom, auxiliar
de D. Helder Câmara, em Pernambuco, que é amigo dos trabalhadores. Por causa de sua
postura, é perseguido, torturado e morto pelo regime militar.
História de Abílio e seu cachorro Jupi: História de bom proveito ou “narrativa exemplar”,
nos moldes de José do Egito, sobre irmãos ruins que tentam matar o mais novo e são por ele
perdoados. O texto encerra nos moldes dos contos de fadas com um singelo final feliz para
todos havendo inclusive três irmãs lindas para os três irmãos. Encerra o poema com um
acróstico cheio de religiosidade.
As façanhas de João Mole: História bem humorada do homem moleirão que um dia toma
coragem e bota moral em casa. Depois de muito apanhar da mulher e da sogra, mete a chibata
nas duas, vira o valentão da cidade e entra para o bando de Lampião.
Vicença e Sofia ou o castigo de mãe: Um rapaz muito simples resolve se casar, mas a
escolha não agrada muito sua mãe, pois a noiva, Vicença, era negra, “preta feito um tição”. O
jovem argumenta, mas a mãe fica irredutível. O tempo todo a velha louva o outro irmão que
escolheu uma noiva branca e linda chamada Sofia. Um dia, depois de muito humilhar
Vicença, a velha pega Sofia com outro homem, botando chifre no marido. A decepção é
muito grande e a velha descobre que sua melhor nora era a Vicença, honesta e trabalhadeira, e
não a safada da Sofia.
Brosogó, Militão e o Diabo: História de cunho anedótico que apresenta, interessantemente, o
Diabo como um personagem bom, um ser justo e sensível que passa a proteger um homem
que, um dia, desinteressadamente, lhe acendeu velas.
ABC do Nordeste Flagelado: Denúncia dos problemas sociais, principalmente a seca, mas
que apresenta também a frustração, às vezes inconsciente, de um semi-analfabeto valendo-se,
vez em quando desse mesmo mote, o ABC... X a Ignorância. A prova é que nesse e em outros
textos o eu-lírico geralmente dialoga com alguém que é doto ressaltando a idéia de Educação
como um privilégio, algo para poucos.
II - Poemas – Textos de cunho notadamente lírico.
Cante lá, que eu canto cá
Poeta, cantô de rua
Que na cidade nasceu
Cante a cidade que é sua
Que eu canto o sertão que é meu.
228
Se aí você tem estudo,
Aqui, Deus me ensinou tudo
Sem de livro precisá
Por favô, não mexa aqui,
Que eu também não mexo aí,
Cante lá, que eu canto cá.
Você teve inducação,
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisas do sertão
Não tem boa esperiença
Nunca fez uma paioça
Nunca trabaiou na roça
Não pode conhecê bem
Pois nesta penosa vida
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem.
Pra gente cantá o sertão
Precisa nele morá
Tê armoço de fejão
E a janta de mucunzá
Vivê pobre, sem dinhêro
Socado dentro do mato
De apragata currelepe
Pisando inriba do estrepe
Brocando a unha-de-gato.
Repare que a minha vida
É deferente da sua
A sua rima pulida
Nasceu no salão da rua
Já eu sou bem deferente
Meu verso é como a simente
Que nasce inriba do chão
Não tenho estudo nem arte
A minha rima faz parte
Das obra da criação.
Mas porém, eu não invejo
O grande tesôro seu,
Os livros do seu colejo
Onde você aprendeu
Pra gente aqui sê poeta
É fazê rima compreta
Não precisa professô;
Basta vê no mês de maio
Um poema em cada gaio
Um verso em cada fulô.
Seu verso é uma mistura
É um tá sarapaté
Que quem tem poca leitura
Lê, mais não sabe o que é.
Tem tanta coisa incantada
Tanta deusa, tanta fada,
Tanto mistéro e condão
E ôtros negoço impossíve
Eu canto as coisa visive
229
Do meu querido sertão.
Canto as fulô e os abróio
Com todas coisa daqui
Pra toda parte que eu óio
Vejo um verso se buli.
Se as vez andando no vale
Atrás de curá meus male
Quero repará pra serra
Assim que eu óio pra cima
Vejo um diluve de rima
Caindo inriba da terra.
Você, vaidoso e facêro
Toda vez que qué fumá
Tira do borso um isquero
Do mais bonito metá.
Eu que não posso com isso
Puxo por meu artifiço
Arranjado por aqui
Feito de chifre de gado
Cheio de argodão queimado
Boa pedra e bom fuzi.
Eu não posso lhe invejá
Nem você invejá eu
O que Deus lhe deu por lá
Aqui Deus também me deu.
Pois minha boa muié,
Me estima com munta fé
Me abraça, beja e qué bem
E ninguém pode negá
Que das coisas naturá
Tem ela o que a sua tem.
Aqui findo esta verdade
Toda cheia de razão:
Fique na sua cidade
Que eu fico no meu sertão.
Já lhe mostrei um ispêio
Já lhe dei grande conseio
Que você deve tomá.
Por favor, não mexa aqui
Que eu também não mexo aí,
Cante lá, que eu canto cá.
Apresenta uma pseudo-peleja entre o poeta sertanejo e o poeta da cidade, reforçando o
tom regional e o aspecto telúrico contidos em sua obra. O eu-lírico, estabelece paradoxos
entre a visão de mundo cabocla, de sabedoria divina, e a visão de mundo citadina, de uma
ciência pautada no conhecimento livresco. Nisso, a poesia é quem mais diferencia os dois
elementos, sendo o poeta do sertão (Cá) superior ao poeta da cidade (Lá).
Ainda:
A terra é naturá
230
Feito com todas as liberdades fonéticas que a fala do sertão permite, trata principalmente
das dádivas da natureza, retiradas injustamente do homem do sertão pelos coronéis, pelos
homens ambiciosos. É na verdade um lamento por um pouco de justiça, por uma porção de
terra, ao menos, onde se possa viver.
Observações!
1. Predomínio da métrica popular (redondilhas maior e menor)
2. A Poesia se mostra através da Natureza.
3. Muito forte o telurismo do autor.
4. Tom regionalista (sertão x cidade)
5. Conflito entre educação e ignorãncia
6. Predomínio do verso de sete sílabas.
7. Patativa é o maior poeta popular do século XIX, antes dele era Juvenal Galeno.
8. Análise social e política.
9. Maturidade poética é o Cante lá que eu canto cá.
10. Participou da novela Renascer
11. Intertextualidade com a Canção do Exílio (lá e cá) etc..
12. Poemas narrativos (primeira parte) e líricos (segunda).
42 - Entre a boca da noite e a madrugada – Milton Dias
O título
Nesse título de cunho popular, em particular, o cronista Milton Dias deixa transparecer
um de seus marcadores mais fortes, a consciência agônica do passar do tempo. O título
sugere, ao mesmo tempo, que muitas coisas acontecem ou que nada está previsto para
acontecer. Com a leitura dos textos, descobre-se que ao menos alguém não dorme, o cronista,
que busca em álbuns, cartas e agendas velhas suas lembranças. Em seguida, escreve sobre
todas elas.
Autor e obra
José Milton de Vasconcelos Dias nasceu em Ipú, em 29 de abril de 1919. Mudou-se
para a cidade de Massapê e lá passou a maior parte de sua infância e adolescência. Foi para
Fortaleza e estudou no Liceu do Ceará. Graduado pela Universidade Federal do Ceará,
bacharelou-se em Direito. Atuou como professor tanto em seu estado como em São Paulo.
Exerceu as funções de Secretário da UFC e técnico de educação. Foi professor de literatura
francesa. Na França, exerceu atividades ligadas à educação no Instituto Nacional Pedagógico
de Paris, onde se dedicou aos seus estudos de literatura francesa. Membro da Academia
Cearense de Letras também foi agraciado pelo governo francês com a Ordem das Palmas
Acadêmicas, um prêmio pela sua dedicação à divulgação da cultura francesa. Foi cronista e
contista, mas com grande paixão pelo teatro.
231
Faleceu em Fortaleza, em 1983, um ano após a publicação de seu último livro em
vida, A Capitoa. Postumamente, foi lançado Relembranças , em 1985, uma coletânea de suas
melhores crônicas organizada pela Editora UFC e pela Fundação Milton Dias. Obras: SeteEstrelo (1960); As Cunhãs (1966); A Ilha do Homem Só (1966), Entre a Boca da Noite e a
Madrugada (1971); Cartas Sem Respostas (1974); Viagem no Arco-Íris (1974); As Outras
Cunhãs (1977); A Capitoa (1982); Relembranças (1985).
A Crônica
A crônica é um gênero híbrido, meio estranho, semi-jornalístico, chamado até de
gênero menor. Sua origem tem a ver com o tempo ( kronos ) e nela tudo o que mais importa é
o olhar sobre a vida comum, o flagrante do cotidiano relatado com o lirismo que lhe é
peculiar podendo ser alegre ou melancólica, mas acima de tudo humana. Parafraseando
Antônio Cândido ( o maior crítico da América Latina) a crônica é assim porque não tem
pretensões de durar, é filha do jornal e da máquina de escrever, e nela tudo acaba depressa,
nós é que demoramos com o que nela havia escrito. Ou seja, mesmo que o jornal vá para o
lixo no dia seguinte, o recado que o autor colocou em seu texto deve ficar por muito tempo
dando voltas em nossa cabeça.
Tipologia da Crônica
A crônica é um gênero híbrido, meio estranho, semi-jornalístico, chamado até de
gênero menor. Sua origem tem a ver com o tempo ( kronos ) e nela tudo o que mais importa é
o olhar sobre a vida comum, o flagrante do cotidiano relatado com o lirismo que lhe é
peculiar podendo ser alegre ou melancólica, mas acima de tudo humana. Parafraseando
Antônio Cândido ( o maior crítico da América Latina) a crônica é assim porque não tem
pretensões de durar, é filha do jornal e da máquina de escrever, e nela tudo acaba depressa,
nós é que demoramos com o que nela havia escrito. Ou seja, mesmo que o jornal vá para o
lixo no dia seguinte, o recado que o autor colocou em seu texto deve ficar por muito tempo
dando voltas em nossa cabeça.
A crônica possui uma classificação particular que, muitas vezes, é exigida nos
vestibulares. Vejamos:
a) crônica narrativa, que se centra em pequenos episódios envolvendo o narrador ou
personagens criados por ele;
b) crônica filosófica, composta com reflexões de cunho metafísico;
c) crônica lírica, um tipo de poema-em-prosa caracterizada pelo extravasamento de uma
visão do artista ante o espetáculo da vida;
d) crônica humorística, com o conteúdo feito de piadas ou qualquer outro texto de tom
anedótico;
e) crônica descritiva, onde se caracterizam fatos ou pessoas em situações diariamente
comuns;
f) crônica metalingüística, que faz uma reflexão sobre a linguagem, principalmente a
respeito do ato de escrever;
232
g) crônica argumentativa, que levanta questionamentos sobre os mais diversos problemas
sociais;
h) crônica histórica, relato de fatos históricos, muito em voga no passado, mas desusada na
atualidade.
No Brasil, são grandes nomes da crônica: José de Alencar, Machado de Assis, Olavo
Bilac, Rubem Braga, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz,
Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto, Luís Fernando Veríssimo e José Simão.
Análise
Entre a Boca da Noite e a Madrugada
I - Os Bichos
A primeira parte do livro apresenta um conjunto de cinco textos que, brilhantemente
engendrados pelo autor, têm como idéia central o seu relacionamento com os animais. Em
Milton Dias, sendo impossível negar, os animais têm a função de preencher um pouco de
sua solidão. Assim, os textos falam de animais de estimação ou não que, de alguma forma,
também fazem parte das lembranças e da vida do autor.
Textos: Os Golinhas; Louro e o Gato; Touro, na 0084; Guardai-vos da Rainha; Acácias,
Gatos e Pássaros.
1 - Guardai-vos da Rainha
Crônica sobre Minas Gerais, sobre Drummond, sobre as maravilhas das cidades
mineiras. Na verdade, a crônica trata de um passeio que o cronista fez de charrete, puxada por
uma égua de nome Rainha que fez o descabimento de defecar em cima dele. Por isso, o
cronista faz a advertência. De qualquer forma, é bom que estejais prevenidos, guardai-vos da
Rainha. Destaque para a alusão do cronista a um do spoemas mais fmaosos de Drummond: “
E AGORA, JOSÉ! Você que ir para Minas, Minas não há mais! José , e agora?”
2- Touro na 0084
Crônica típica de Milton Dias, aquelas chamadas de estórias por sua proximidade com o
conto. O que temos é a história de Inocêncio Pereira que, depois de muito sofrer na vida e na
firma onde trabalhava, tem a chance de mudar completmaente sua sina. Inocêncio era
explorado no trabalho, o tempo todo criticado pelo patrão e pelos colegas. Tinha um amigo
chamado Vivaldo, companheiro de trabalho, famoso por apelidar todos na fábrica. Inocêncio
sempre que podia jogava na loteria e no jogo-do-bicho tentando mudar sua sorte, mas suas
apostas nunca davam certo. Um dia, pediu a um amigo que jogasse uma milhar para ele:
Touro na 0084. Mais tarde, no trabalho, recebeu um telefonema no qual uma pessoa dizia
que avisasse ao Vivaldo que dera Touro na 0084. Inocêncio sabia que era o jogo dele. Veiolhe uma coragem, ninguém sabe de onde, e ele começou a escuhambar os colegas de trabalho
233
e o patrão dizendo que iria embora, que nunca mais precisaria daquele emprego. De repente,
chega o Vivaldo todo sorridente dizendo que tudo não passara de um trote. Inocêncio Cospe
Fogo empalideceu, perdeu o prumo. Quis falar, mas não conseguiu. Atarantado, olhou ao
redor, mas só encontrou os mesmo olhares de sempre, dessa vez piores, cheios de
cumplicidade naquela brincadeira tão cruel. E assim seguiu a vida de Inocêncio Cospe Fogo,
na mesma miséria, na mesma rotina, tendo que encarar diariamente os colegas e o patrão.
II - O Tempo
Uma das maiores categorias do conhecimento humano, principalmente da Física e da
Filosofia, o tempo é trabalhado na dimensão paradoxal da crônica; momento efêmero em que
se escreve sobre o cotidiano e momento eterno do agonismo humano. Nesse conjunto de oito
textos, o autor tenta nos mostrar o verdadeiro valor das coisas e sua compreensão a partir da
importância que o tempo pode ter ou não para nós.
Textos: Madrugada I; Madrugada II: Madrugada III: Antes que maio termine:
No outono: Domingo à tarde; Domingo à tarde, outrora: Tarde antiga.
Antes que maio termine
Outra crônica representativa dos momentos angustiantes em que o cronista parece não ter
sobre o que escrever. Olhando a janela ele começa o exercício de superação ao ver no céu uma
nuvem típica de uma manhã de maio. O texto segue com um caráter de prece na qual o cronista
conversa com Deus, pedindo para Ele retardar mais aquela manhã ou, pelo menos, fazer outra
igual. Valoriza o Ceará dizendo que manhã igual não existe nem na Grécia, nem em Paris, nem na
Itália, nem no Rio de Janeiro. Fala das mulheres, de forma geral, e pede para ter outra manhã
daquelas.
Domingo à tarde
Domingo, à tarde, em qualquer lugar do mundo, ao que parece, é um dia, no mínimo,
melancólico, por isso, um dia de tédio inevitável e universal. Na verdade, um domingo, à tarde,
só nos anuncia que o dia seguinte, segunda-feira, já esta chegando, e que é hora de começar tudo
de novo, de seguir com nossa estressante rotina. No domigo à tarde, o cronista reexamina suas
lembranças: o sino da matriz anunciando a missa; as moças passeando, os rapazes procurando as
moças, os meninos e as meninas brincando e namorando. Todos aproveitam os últimos momentos
daquela semana que se vai. O cronista lembra de Recife, do rio Capibaribe, de musicas antigas,
musicas de Zequinha de Abreu, com suas antigas valsas, e tudo isso toma conta da cabeça do
autor. Logo o cronista retorna às suas tardes de domingo, no Rio de Janeiro e em Paris, tempos
bons, assim como no interior cearense (Massapé) repositório de suas lembranças.
III - As Mulheres
234
Na parte intitulada As mulheres, como não poderia deixar de ser, o cronista elege como
tema central o ser mais intrigante, maravilhoso e estranho de todos, a mulher. Assim, ele nos
conta das muitas mulheres de sua vida, algumas simples conhecidas, como Das Dores e
Jurema, algumas até da família, como a prima Ana Gerviz; outras muito mais que isso como
Nevinha, um amor mal resolvido das bandas de Salvador. E há outras que extrapolam a noção
de amizade, sendo colocadas como seres humanos cuja perda foi irreparável para ele e para a
sociedade em geral, no caso a Profa. Alba Frota, a quem o cronista teve o privilégio de
conhecer e adorar.
Textos: Alba; Jurema; Das Dores; Ana Gerviz I; Ana Gerviz II; Ana Gerviz III; Nevinha.
Alba
Filosoficamente, o autor introduz seu texto refletindo sobre as conseqüências das
perdas em nossas vidas, principalmente as amizades. Chega à conclusão de que a Morte é a
única verdade absoluta em nossa existência depois que perde a amiga Alba Frota,
companheira de todas as horas, deseja e estimada por todos (“Amiga”, com “a” maiúsculo).
A Profa. Alba Frota, morta no acidente que também matou, de forma inexplicável, o
presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, nunca foi solitária, pois, na casa grande,
nunca lhe faltaram amigos para uma boa conversa, para um comentário de um livro seu mais
recente. Tratada pelos amigos como “Donzela”, Alba escutou de Milton somente um pedido,
que logicamente teve de negar: que ela não morresse antes dele.
Na lembrança do cronista, resta somente o valor do ato de ouvir, dom invejável em
Alba Frota, como o de ajudar o próximo (pois só ela arranjaria um violão para um
apaixonado desesperado em meio a uma serenata na janela de sua amada). Somente a eterna
Alba Frota, companheira de todas as horas. “ parece que o tempo está fazendo o seu trablho
em contrário – anda a avivar lembrança, em vez de apagar, como de costume. Ainda bem.
Ana Gerviz I
Na mesma Santana do Acaraú onde nasceu, cresceu e se criou, faleceu Ana Gerviz
Araújo. Morreu calmamente, como um passarinho em uma madrugada tranqüila e fresca,
depois de vários dias sob os cuidados de uma sobrinha pobre e conversadeira. Em vida, não
encontrava mais conforto nem em suas orações. A prima do cronista, durante a vida sempre
gozou de boa saúde, mas à beira da morte era outra mulher: gorda, vistosa, e decadente pois o
passar da vida não perdoou nem memso a contadora de causos do sertão. Por tudo que
representou na vida de Milton, a história de Ana não caberia jamais em uma só crônica.
Por isso, o autor lhe fez não apenas uma, mas três crônicas de profundo lirismo.
IV - Os Homens
Nos mesmos moldes do bloco anterior de crônicas (As mulheres), o cronista nos
apresenta um grupo de homens que, de alguma forma, foram significativos em sua vida.
Encabeçando essa lista seguramente temos a figura do avô, um dos mais fortes temas de
Milton Dias. Em seguida, há outros homens, de outros espaços, que preenchem seu caderno
235
de lembranças, seja pela amizade que tiveram (Valdir), seja pela maneira engraçada como se
apresentam (Sirioco). Ressalte-se ainda a singularidade do Salmo do homem só, um perfil
literário do próprio autor, que escolheu a solidão como motivadora de seus textos.
Textos: Avô; Sirioco; O Menino Valdir; Matoso - Pai e Filho; Salmo do Homem Só.
O avô
Narrativa emblemática de um dos maiores temas da obra de Milton Dias, a figura
importantissma do avô, que acabara de completar 90 anos. Mas ninguém lhe dava tantos
anos, principalmente pela vivacidade que pulsava em seus olhos. E são exatamente estes olhos
que despertam no cronista a curiosidade das histórias vistas, do sertão percorrido, dos rios
apreciados. Nascido em Santana, município cearense, João Batista de Araújo Vasconcelos
mandou-se para o Amazonas por causa das dificuldades financeiras. Assim que chegou, caiu
de amores por uma prima de nome Virgilina. O amor não era admitido pelos pais da menina,
devido aos poucos recursos e a pouca idade do rapaz. Em Santana do Acaraú, os dois
começaram vida nova: a casa comercial, o envolvimento inevitável com a política, os filhos,
os netos. Por volta de 1976, O avô de Milton abandona a política e muda-se com a mulher e
os filhos para Massapê, onde, aos 67 anos, morreu sua esposa. Volta para Santana do Acaraú,
e, agora, sentado na calçada, na frente da casa grande, conta estórias com seus olhos vivos,
por muitos e muitos anos enquanto Deus permitir.
Sirioco
Esta crônica tem início mostrando aos leitores uma curiosa família composta de duas
irmãs solteironas e um irmão, viúvo, que ficou cuidando do filho que escapou do parto fatal
que vitimou sua esposa. Foi entre Salomé, Ana e Zé que se criou o pequeno Valdemar, mas
tarde apelidado de Sirioco. Muito manhoso e extremamente engraçado, o menino era
chamado vez por outra para animar as visitas em sua casa com as graças que sempre fazia. O
tempo passou. Sirioco cresceu e caiu no mundo. Depois de três anos, reaparece o menino na
casa do narrador com as mesmas características de antes, agora com o projeto ambicioso de ir
para São Paulo. Tempos depois, retorna a Santana contando as novidades da viagem, Diz
agora que vai para o Pará, e lá vai ganhar muito dinheiro. O narrador, depois disso, nos revela
que há poucos dias uma grande surpresa lhe aconteceu: chegou à sua sala de jantar um frade.
Era o Valdemar. Sirioco, depois de sofrer fome e miséria por onde passou, fez votos de vestirse com o hábito de franciscano, destacando-se a pé para Canindé a cumprir sua promessa. “ E
com um pouco de dinheiro que arrumou, comprou a vestimenta – que ele chamava mortalha –
e se atacou a pé para Canindé, cumprindo promessa.
V - Mar, Sertão, Rosas e Outras
No último bloco de crônicas, de uma forma bem mais eclética, o cronista nos apresenta
uma série de textos em que se destacam metáforas sobre a Vida e a Morte (Não é doce morrer
no Mar), sobre o poder regenerador que Massapê tem em sua vida (Vou-me embora pro
Sertão ) seus momentos de fuga, seu repositório de saudades, sobre a instância suprema a
que chegamos na busca de nosso último repouso ( Réquiem). Destaca-se a última crônica em
236
que o narrador faz um tipo de contabilidade afetiva da vida para nos conscientizar de que
tudo passa nesse mundo, mesmo o que há de ruim, mas que para suportar tudo isso, mas Até
quando? Precizamos valorizar o que há de bom (família, amigos, uma pessoa especial...). Sem
isso, o que seria de nós?
Textos: Não é doce morrer no Mar; Vou-me embora pro Sertão; Rosas da Madrugada;
Réquiem; Até quando?
Não é doce morrer no o mar
Depreende-se do caráter extremamente afirmativo do título a mistura entre o
circunstancial (o afogamento) e o filosófico (os desejos em geral). O narrador nos diz que, se
quisermos fazer um bom exame de consciência, se quisermos nos conhecer mais
verdadeiramente, e há pessoas que não ligam para isso, nada melhor que um exercício de
afogamento, no mar, num rio ou num lago. Não recomenda uma piscina pela falta de
naturalidade do resevatório, mas e for o último caso, que seja.
Diz que este exercício deve acontecer preferencialmente num domingo de sol
radiante, depois de uma noite de sábado muito agradável, pois nesta hora o mar tão cantado
por inúmeros poetas surpreenderá com sua natureza misteriosa. No entanto, quando a morte
estiver próxima, o desespero chegará e a vida será vista passar em um instante.
Para falar de afogamento - depois do salvamento (passado o clima da tragédia) - o
narrador nos recomenda o poema “Vida”, de Antônio Girão Barroso, até que se chegue à
conclusão de que não é doce morrer no mar, pois louco é quem acredita em “cantiga de
baiano poeta”.
Vou-me embora pro sertão
Na verdade, uma paráfrase do poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, do escritor
modernista Manuel Bandeira, o narrador revela seu desejo de rever o sertão. Recordações e
lembranças, como o jogo de gamão na casa de seu Guilherme, embalam os pensamentos do
cronista. Mas ele promete que na semana seguinte regressará para Massapê, lá para Bandeira
Branca, o sítio onde cresceu. Esquece-se de Fortaleza, de Paris, de Ouro Preto, de tudo que é
cidade. Somente no sertão ele pode juntar seu pensamento. Saudade ele não levará, pois lá irá
encontrá-la, num tipo de abandono voluntário de certos ambientes. Nessa crônica, fica bem
nítida a importância que o sertão (Massapê) tem na vida e na obra do autor, lá é seu porto
seguro, sua Pasárgada, tão ideal quanto a de Manuel Bandeira.
Observações!
1. Não ignorando os registros da Bíblia e outros textos apócrifos, a Crônica oficializa-se a partir
do Humanismo, denominada crônica histórica, sendo bastante pródiga no período da
Expansão Ultramarina. Ex. Carta a El-Rei., de Pero Vaz de Caminha.
2. Em Portugal, a crônica histórica ganha um contorno literário com Fernão Lopes. Ex. Crônica
do Rei D. Pedro, de Portugal (A morte de Inês de Castro)
237
3. No Brasil, foi bastante valorizada no Romantismo e principalmente no Realismo. Maiores
nomes: José de Alencar, Machado de Assis e Olavo Bilac.
4. Na terceira fase do Modernismo (1945) houve um grande resgate do Conto e da Crônica. Os
maiores nomes da crônica foram: Rubem Braga, Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta,
Nelson Rodrigues e Paulo Mendes Campos.
5. Carlos Drummond de Andrade e Rachel de Queiroz foram respectivamente poeta e
romancista que se destacaram na Crônica nos dias atuais.
6. Maior nome da crônica na atualidade: Luis Fernando Veríssimo. Mentiras que os homens
contam.
7. Maiores nomes da crônica no Ceará: Milton Dias com As cunhãs e Relembranças e Airton
Monte com o livro Moça com flor na boca.
8. As crônicas são muitoricas em intertextualdiade,princpalmente a que diz Não é doce morrer
no mar...
9. Milton Dias é memorialista e proustiano na maioria de suas crônicas.
10. Seus textos mais importantes são As Cunhãs e Relembranças.
43 - Três peças escolhidas – Eduardo Campos
O título
Como o titulo diz, estas três peças são mesmo escolhidas. Escolhidas pelo autor para
representar o seu pensamento social, seu engajamento, sua preocupação. O leitor embarca em
uma viagem pelos subúrbios miseráveis de Fortaleza (Pirambu, Lagamar etc.) onde as
diferenças sociais nunca são resolvidas e onde a coletividade é sempre a maior pauta de
observação. Leitor de russos e franceses, suas peças têm muito do senso crítico brechtiano,
máximo da dramaturgia social alemã.
O Teatro Clássico
Não ignorando o que se passava no Oriente, mais especificamente em China e Japão,
onde o teatro é uma atividade milenar (marionetes, No e Kabuki), podemos dizer que os
gregos recriaram o teatro ao adaptarem para a realidade helênica, os rituais egípcios, de
homenagem aos deuses Osíris e Isis. Tendo início de forma ritualística, de cunho notadamente
religioso, o teatro grego se consolidou, na idéia mesma de espetáculo, por causa das festas de
homenagem ao deus Baco ou Dionisius, deus do vinho, da orgia, da bebedeira, da
metamorfose, da farsa e, por isso, deus do teatro.A cada nova safra de uva, era realizada uma
festa, A Festa das Flores, em agradecimento ao deus, através de procissões e jogos de rua, os
"Ditirambos", que se tornaram cada vez mais elaborados, recebendo a denominação de Coro.
Na verdade, muito próximos da idéia dos “blocos” carnavalescos de hoje, com “diretor” e
tudo mais.
238
Nessas “procissões”, os participantes se embriagavam, cantavam, dançavam e imitavam
diversas cenas das muitas peripécias de Baco. Nas procissões urbanas, se reuniam
aproximadamente até vinte mil pessoas. Nas festas mais afastadas, entre a gente campesina, o
público era bem menor. O primeiro “diretor” de Coro foi Théspis, que foi convidado pelo rei
Pisístrato para dirigir a procissão de Atenas. Théspis desenvolveu, então, o uso de máscaras
para a representação das ações, pois, em razão do grande número de pessoas, tornou-se
impossível que todos escutassem o que era relatado. Assim, dependendo do desenho na
máscara e da quantidade de cera, podiam visualizar o sentimento daquela cena através das
máscaras. As máscaras eram feitas com cera (cum cera) ou sem cera (sin cera), dependendo
do efeito pretendido. Diz-se, por conta disso, que uma pessoa sincera era aquela que não
adotava o mascaramento, ou seja, que não mentia, que não enganava.
O "Coro" era composto pelos narradores da história, que através de sua representação
(trejeitos, pantomimas, canções e danças), relatavam as ações daquela personagem. Tornavase um intermediário entre o ator e a platéia, e trazia os pensamentos e sentimentos à tona,
além de conduzir também à conclusão da peça. Havia, dentro do Coro, o Corifeu, um membro
do Coro que se comunicava com a platéia com um pouco mais de autonomia, o maior deles
foi Thespis. Em um dos ditirambos, Théspis saiu de dentro do coro e subiu em um tablado
respondendo, de fora, ao que dizia o Coro, fazendo surgir a estrutura dialogada. Por causa
disso, tornou-se, também, o primeiro grande ator da história do Teatro. Com a evolução do
gênero dramático, em Grécia e Roma surgiram concursos para escolher as melhores peças.
Dentro do ideário clássico, destacaram-se os textos trágicos (Dor) e os textos cômicos (Riso).
Porém, tanto a Tragédia quanto a Comédia eram utilizadas para “ensinar” determinados
valores aos espectadores, como o temor aos deuses, a predestinação, o lugar de cada um na
sociedade etc. Essa passou a ser a maior função do teatro grego.
Autores
Os Tragediógrafos – Especialistas em fazer tragédias.
Muitas das tragédias escritas se perderam e, na atualidade, são três os tragediográfos
conhecidos e considerados importantes: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.
Ésquilo (525 a 456 a.C.. aproximadamente)
Principal texto: Prometeu acorrentado. (Ainda: As suplicantes e Os persas)
Tema principal que tratava: contava fatos sobre os deuses e os mitos.
Sófocles (496 a 406 a.C. aproximadamente)
Principal texto: Édipo Rei. (Ainda: Antígona e Electra)
Tema principal que tratava: a predestinação e a vida dos nobres.
Eurípides (484 a 406 a.C aproximadamente)
Principal texto: As troianas (Ainda: Écuba e Medéia)
Tema principal que tratava: dos renegados, dos vencidos (pai do drama ocidental)
Os comediógrafos – Especialistas em escrever comédias.
239
Aristófanes (445 a.C.? – 386 a.C.)
Dramaturgo grego considerado o maior representante da comédia grega clássica.
Textos: Lisístrata, As Vespas e As rãs.
Menandro (c. 342 a.C. - 291 a.C.)
Famoso à época, mas suas peças não sobrevieram.
Os Romanos
Como não podia deixar de ser, enquanto os gregos preocupavam-se notadamente com o
espírito, com a mente, com a Filosofia e a Democracia, os romanos, adeptos da diversão e dos
esportes sangrentos, apegavam-se naturalmente à comédia. Seus maiores comediógrafos
foram Plauto e Terêncio.
Tito Maccio Plauto – De origem humilde, viveu no segundo século antes de Cristo.
Texto: Anfitrião; Menaechmi (Os sósias); Aululária (A panela)
Terêncio Públio Afro - Jovem cartaginês escravizado pelo poeta Lucano, que em seguida o
libertou.
Texto: O Eunuco; Andra e A Sogra.
Teatro em Portugal
Gil Vicente - (1465 – 1536?)
O desenvolvimento do teatro em Portugal foi muito mais lento que na Espanha. As
primeiras peças a serem representadas foram de cunho estritamente religioso, consistindo em
mistérios e atos sacramentais.O primeiro grande autor do teatro Português, na verdade o
criador do teatro luso, foi Gil Vicente com mais de 50 autos, moralidades e farsas.Em sua
Farsa dos Almocreves, em 1526, fala inclusive do Brasil. Peças: O monologo do vaqueiro; O
juiz da Beira e a fará de Inês Pereira..
Almeida Garrett - (Porto, 1799 – Lisboa, 1854)
Precedido por grandes nomes como Luís Vaz de Camões ( Auto do Rei Seleuco e Auto
de Filodemo) e Sá de Miranda ( O s Estrangeiros), João Batista de Sá Leitão de Almeida
Garrett foi um grande escritor e dramaturgo romântico, que fundou o Conservatório Geral
de Arte Dramática, edificou o Teatro Nacional D. Maria II em Lisboa e organizou a InspeçãoGeral dos Teatros, revolucionando por completo a política cultural portuguesa a partir de
1836, no rescaldo das Guerras Liberais. Frei Luís de Sousa é a sua maior realização na
dramaturgia.
O Teatro no Brasil
240
No Brasil, o teatro surgiu mesmo de forma um tanto “mascarada” , pois tinha como
objetivo a propagação da fé religiosa. O iniciador desse teatro “pedagógico” foi o padre
espanhol José de Anchieta, que escreveu alguns autos ( peças de cunho religioso) visando à
catequização dos índios. Também queria com seus textos a integração mias pacífica entre
portugueses, índios e espanhóis. Um grande Exemplo disso é o Auto de São Lourenço, texto
escrito em tupi-guarani, português e espanhol. O primeiro teatro surgido no Brasil foi a Casa
da Ópera (RJ), quando o Brasil ainda era Vice-reino. Incendiou-se em 1769, e por isso a rua
onde ficava passou a se chamar Rua do Fogo. As peças ali apresentadas eram do português
Antônio José da Silva, o Judeu, e consistiam mais em traduções de grandes óperas italianas.
No final do século XVIII foi construído um teatro com o nome de Casa da Comédia. Outras
capitais fizeram o mesmo. A Bahia foi pioneira, pois já tinha um teatro desde 1760.
Durante mais de dois séculos a atividade teatral brasileira sobreviveu de mistérios, autos
e moralidades cristãs até que em 1808, com a vinda da família real para o Brasil, um surto de
cultura e desenvolvimento tomou conta da colônia. Isso porque, durante os séculos XVII e
XVIII, (tempo de Gregório de Mattos e Tiradentes) o país esteve envolvido com seu processo
de colonização e em batalhas de defesa de território. O Real teatro de São João foi
oficialmente inaugurado a 12 de outubro de 1813, com a presença do príncipe regente (D.
João) e sua esposa, D,. Carolina Joaquina, constando no programa o drama lírico O juramento
dos Nunes, de inspiração mitológica. O teatro passou a ser uma instituição nacional, mas não
nacionalista, pois o Brasil pertencia a Portugal. D. Pedro I deu bastante importância às
atividades teatrais e era figura constante nas apresentações. No final do primeiro reinado,
graças ao aparecimento do primeiro ator-empresário brasileiro, João Caetano dos Santos, o
teatro passou a desvincular-se da preponderância lusitana. Mesmo assim, podemos dizer que a
“transferência” da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, foi seguramente algo que
trouxe inegável progresso para o teatro e para o próprio país naquela época, algo que se
consolidaria com a nossa Independência, em 1822.
O ator João Caetano formou, em 1833, uma companhia brasileira. Seu nome está
vinculado a dois acontecimentos fundamentais da história da dramaturgia nacional: a estréia,
em 13 de março de 1838, da peça Antônio José ou O Poeta e a Inquisição, de autoria de
Gonçalves de Magalhães, a primeira tragédia escrita por um brasileiro e a única de
assunto nacional; e, em 4 de outubro de 1838, a estréia da peça O Juiz de Paz na Roça, de
autoria de Martins Pena, chamado na época de o "Molière brasileiro", que abriu o filão da
comédia de costumes, o gênero mais característico da tradição cênica brasileira.
Gonçalves de Magalhães, ao voltar da Europa em 1867, introduziu no Brasil a influência
romântica, que iria nortear escritores, poetas e dramaturgos. Gonçalves Dias (poeta
romântico) é um dos mais representativos autores dessa época, e sua peça Leonor de
Mendonça teve altos méritos, sendo até hoje representada. Alguns romancistas, como
Machado de Assis (Lição de Botânica), Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar (O
demônio Familiar), e poetas como Álvares de Azevedo e Castro Alves , também escreveram
peças teatrais no século XIX.
O século XX despontou com um sólido teatro de variedades, mescla do varieté francês e
das revistas portuguesas. As companhias estrangeiras continuavam a vir ao Brasil, com suas
encenações trágicas e suas óperas bem ao gosto refinado da burguesia. O teatro ainda não
241
recebera as influências dos movimentos modernos que proliferavam na Europa desde a virada
do século.
Essa modernidade só chegou ao teatro brasileiro com as peças de Oswald de Andrade, A
Morta e O Rei da Vela(1937), mas só encenada na década de 1960 por José Celso Martinez
Corrêa, ícone do teatro contemporâneo. Mas é a partir da encenação de Vestido de Noiva, de
Nelson Rodrigues, que nasce o moderno teatro brasileiro, não somente do ponto-de-vista da
dramaturgia, mas também da encenação e de muitos outros critérios. Daí para diante,
surgiram muitos grupos e companhias de teatro. Os grupos mais significativos, a partir da
década de 1940, foram: Os Comediantes, o TBC, o Teatro Oficina, o Teatro de Arena, o
Teatro dos Sete, a Companhia Celi-Autran-Carrero, entre outros. E quando as coisas pareciam
ir bem para o teatro brasileiro, a Ditadura Militar (anos 60) veio impor a censura prévia a
autores e atores, forçando nossas atividades teatrais a um retrocesso ou estacionamento
produtivo. Mesmo assim, em um tipo de “teatro engajado”, feito de ironias e duplo sentido,
ainda surgiriam textos como Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de Holanda.
Com o fim da Ditadura Militar, o teatro conseguiu respirar um pouco, mesmo que a
“paixão” tivesse diminuído em muito com a consolidação do Cinema enquanto
entretenimento somado à supremacia da Televisão. Ainda assim, é preciso lembrar que o
Teatro foi, é e sempre será uma das melhores formas de expressão do agonismo humano, um
método pelo qual muito aprendemos e sempre poderemos ensinar.
Coisas de Teatro
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Outra denominação do Gênero Dramático, o Teatro tem como fundamento a
representação da ação, ou seja, encenar os dramas do ser humano divertindo-o,
emocionando-o ou ensinando-o.

Na Grécia antiga surgiram os primeiros concursos de teatro. A população passava dias
vendo peças de teatro. Havia peças com até três dias de duração.
Dramaturgo é a pessoa que escreve peças de teatro.
Teatrólogo é a pessoa que se dedica ao estudo do Teatro como um gênero.
Diretor é o disciplinador dos atores, é aquele que ensaia o texto dando-lhe sua
concepção.
Uma peça tem, geralmente, três atos, mas pode ser de Ato único.
Um ato tem, em média, 30 minutos.
Quadros são subdivisões dos atos.
Esquete é uma peça de pouco mais de 15 minutos.
A Equipe técnica é composta por: cenógrafos (preparam o espaço da cena),
figurinistas (cuidam das roupas utilizadas na peça),iluminador (responsabiliza-se
pela iluminação da peça), sonoplasta (cuida da trilha sonora e dos efeitos sonoros da
peça).
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242
O Teatro Cearense
Icó – O mais antigo
O Teatro da Ribeira dos Icós, órgão da Prefeitura Municipal de Icó, é o mais antigo teatro
do Ceará. Inaugurado em 1860 e remanescente da fase áurea da cidade como centro de
atividade econômica baseada na criação do gado, no cultivo das vazantes do rio Salgado e no
comércio, durante o final do século XVIII até meados do século XIX, o prédio foi tombado
em 1983 pelo Estado como patrimônio histórico e artístico. O amplo espaço diante e ao lado
do qual está implantado o teatro forma um conjunto arquitetônico composto pela antiga Casa
da Câmara e Cadeia, o Sobrado do Barão do Crato e a Igreja do Bonfim. A praça situada
defronte a essas edificações ficou conhecida como o Largo do Théberge (atual Praça Sete de
Setembro), em alusão ao médico francês Pedro Théberge (1811/1864), idealizador do teatro e
um dos nossos mais importantes historiadores, autor do livro Esboço Histórico Sobre a
Província do Ceará, publicado em 1869 por iniciativa de seu filho, Henrique Théberge, e
reeditado em 1973, pela Imprensa Oficial.
José de Alencar – O imponente
As primeiras determinações referentes à criação em Fortaleza de um teatro vinculado ao
Estado datam de 1858, quando o então vice-presidente da Província do Ceará providencia a
compra de um terreno na praça Pedro II, em frente à Catedral, para que nele seja construída
uma casa de espetáculos.
A idéia não vingou mas ressurge em 1864, por iniciativa do Presidente da Província,
Bento Figueiredo Júnior, que decide construir um teatro oficial na então Praça do
Patrocínio, atual Praça José de Alencar. A pedra fundamental desse novo teatro, cujo nome
seria Santa Teresa, chega a ser fixada, mas novamente o empreendimento não se concretiza.
Em 1872, volta-se a cogitar a idéia de um teatro estatal. Adolfo Herbster e José Pompeu de
Albuquerque Cavalcante seriam os construtores. Este projeto de engenharia, no entanto,
também foi frustrado. Em 1894, outra vez a praça do Patrocínio, agora denominada Marquês
de Herval, é o local escolhido para sediar o teatro que o Estado continua tentando construir.
O então Presidente do Ceará, José Freire Bezerril Fontenele toma a iniciativa de autorizar a
instalação dos alicerces no centro da praça. Seu sucessor, Antônio Pinto Nogueira Acioly,
em 1896, empreende esforços no sentido de impedir a continuidade desse processo de
construção e no ano seguinte promove concurso de projetos para que o teatro seja erguido
noutro local. Entretanto, somente em meados de 1904, quando reassume o comando do
Estado, para um novo quadriênio, Acioly promulga lei relativa à construção do teatro que, a
partir de 1908, passou a ser construído não no centro da então Praça Marquês de Herval,
como anteriormente se previa, mas num dos lados da praça, no lugar onde hoje está o prédio,
à época situado entre a Escola Normal (atual sede do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional) e o Batalhão de Segurança do Estado (terreno em que funcionou o Centro
de Saúde, demolido na reforma de 1974 para dar lugar aos jardins laterais do TJA). Em junho
de 1908, as obras do novo espaço cênico que daí em diante seria denominado Theatro José
de Alencar foram iniciadas, sob o comando de Raimundo Borges Filho. A estrutura de ferro
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veio de Glasgow, na Escócia, para ser montada em Fortaleza, segundo modelo concebido por
engenheiros da Firma Walter MacFarlane. Ao tenente da Arma de Artilharia do Exército,
Bernardo José de Melo, coube a concepção da parte do edifício em alvenaria. A cenotécnica
ficou a cargo do arquiteto mineiro Herculano Ramos, que em seus trabalhos contou com a
colaboração de Gustavo Barroso, então aluno do Liceu, aprendiz de cenografia.
A 23 de setembro, finalmente, ocorre a primeira montagem teatral, com a encenação de O
Dote, texto de Arthur Azevedo montado pela Companhia da atriz Lucilía Perez, oriunda do
Rio de Janeiro. A temporada de dramas, dramalhões, comédias e burletas prolongou-se até
novembro, com as peças As Doutoras, de Franca Júnior e A Dama das Camélias, de
Alexandre Dumas Filho, dentre outras do repertório de 42 títulos. Protagonizam o elenco,
além de Lucília Perez, o galã Antônio Ramos e a consagrada Gabriela Montani.
Nessa época, sob a coordenação de Faustino de Albuquerque Souza, seu primeiro
diretor, o José de Alencar, subordinado à Secretaria do Interior e Justiça, começa a pôr em
prática um rigoroso regulamento interno, que, entre normas e sanções, chega a prever
censuras, repreensões e multas para artistas que por gestos ou entonações desvirtuem o
pensamento dos autores ou ofendam a moral e o decoro. Aos espectadores, era proibido fumar
em qualquer das dependências do teatro, como também conservar o chapéu na cabeça durante
as representações. Outra proibição dizia respeito à atuação de cambistas que deveriam ser
presos, se comprovada a infração. O regulamento prevê ainda a realização no TJA de bailes
carnavalescos e a contratação de um médico para dar plantão durante as récitas, a fim de
socorrer
eventualmente
algum
componente
de
elenco.
Ao longo de noventa e quatro anos, com reformas e restaurações, esse mesmo povo que a
geral do TJA tão bem sintetiza soube preservar esse centro cultural do Ceará, tombado como
monumento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1964. Porque
o cearense sabe que o Theatro José de Alencar é uma herança não da oligarquia Acioly que o
construiu e o inaugurou, oligarquia que o povo ajudou a derrubar em 1912, mas um espaço
público, um legado da nossa história que os governos devem gerenciar em nome do Estado,
que pertence a todos nós.
Ricardo Guilherme - Dramaturgo e Teatrólogo cearense
O Grande nome do Teatro Cearense
O autor
Manuel Eduardo Pinheiro Campos nasceu em 1923, em Guaiúba, então distrito de
Pacatuba. Estreou em 1943, com o livro de contos Águas Mortas. Seguiram-se, neste gênero,
em 1946 Face Iluminada, em 1949 A Viagem Definitiva, em 1965 Os Grandes Espantos, em
1967 As Danações, em 1968 O Abutre e Outras Estórias (constituído por uma seleção dos
presumíveis melhores contos), em 1970 O Tropel das Coisas, em 1980 Dia da Caça, em 1993
O Escrivão das Malfeitorias, em 1998 A Borboleta Acorrentada e em 1999 O Pranto Insólito.
Exímio polígrafo, fez peças de teatro, livros de folclore, romances, ensaios, biografias,
memórias, além de grande número de produções especiais para o rádio e televisão. Seus
principais romances são O Chão dos Mortos e A Véspera do Dilúvio. Durante dez anos dirigiu
244
a Academia Cearense de Letras; foi Secretário de Cultura do Estado, Presidente do Conselho
Estadual de Cultura, e é Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará. Figura
em antologias nacionais e internacionais de contos. É bacharel em Ciências Jurídicas e
Sociais. Iniciou-se nas letras escrevendo, dirigindo e representando peças de teatro. Sua peça
O Morro do Ouro foi representada 350 vezes; A Rosa do Lagamar, mais de 500. Sua obra
teatral foi reunida em dois volumes, contendo O Demônio e a Rosa, O Anjo, Os Deserdados,
A Máscara e a Face, Nós, as Testemunhas, no primeiro, A Donzela Desprezada, O
Julgamento dos Animais, O Andarilho, além das já mencionadas. As três peças mais
importantes têm como título Trilogia dos dramas urbanos. Seus textos já foram incluídos em
diversas antologias estrangeiras.
A obra
Teatro: 1o. Texto teatral: O criador de mentiras (1940)..
Primeira Fase (aprendizagem)
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O homem que queria ser doido
Falta uma estrela no céu
Veneno
Pedacinho de céu
A mulher que venceu
Um olhar sobre a terra
As aventuras do mocinho Dali
Segunda Fase (maturidade)
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O demônio e a rosa – 1948
O anjo – 1955
Nós as testemunhas - 1958
O Morro do ouro* – 1963/1965
Os deserdados – 1967
A máscara e a face – 1956/1985
O julgamento dos animais -1981
A Farsa do cangaceiro astucioso – 1985
A rosa do lagamar* -1964/1985
A donzela desprezada* - 1995
A última ceia do general- 2004
Obs. As obras com asterisco formam a Trilogia dos Dramas Urbanos.
Conto
• Águas Mortas (1943)
• Face Iluminada (1946)
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• A viagem definitiva
• Os grandes espantos
Romance
• Chão dos mortos
• A véspera do dilúvio
Novelas de rádio



Inspiração
Aos pés do tirano
Sobras do Mal
Crítica e Ensaio
• Medicina Popular
• Estudos de Folclore Brasileiro e Cearense
Resumo das peças
I - O morro do ouro
O Morro do Ouro é, na verdade, uma das primeiras favelas de Fortaleza, localizada nas
imediações do Colégio Liceu do Ceará, por trás do Presídio feminino Auri Moura Costa. O
lugar surgiu nos anos 50, da mesma forma que o Pirambu, o Lagamar, o Morro do Mucuripe e
o Beco do Papoco. No passado, o lugar funcionava como aterro sanitário, por isso o nome do
bairro tem a ver com o “garimpo” das coisas que eram extraídas do lixo e que poderiam ainda
ser utilizadas pela gente de vida miserável.
A peça tem início no quarto de Madalena, com Zé Valentão só de cueca se coçando no
meio do barraco e mandando Madalena, que ainda está deitada na cama, fechar as pernas”.
Ele diz para sua amante que a polícia quase o pegou. Tiveram de fugir porque não dava para
enfrentar os policiais, armados de fuzil. Zé Valentão é contrabandista, Negocia cigarros,
uísque, sandálias e calcinhas de nylon (americanização). Madalena fica com raiva porque ele
não trouxe nenhuma calcinha para ela. Ele diz que se um dia tivesse de ser preso não seria por
tão pouco. Confidencia que seu sonho é um dia aparecer na capa do jornal. Diz que até fim do
mês vai ser noticia de primeira página...
Madalena pergunta por que só “no outro” mês. Valentão diz que não é devoto, não vai nem
à missa, mas em maio, ele não “faz feio” com Nossa Senhora. Madalena diz que isso é
superstição. Valentão manda que ela ligue o rádio e comece a fazer ginástica, pois está
ficando barriguda. Ela fica furiosa. Valentão vai embora, mas diz que ela se cuide, que ele não
quer nem saber dela dando trela para outro macho.
Do lado de fora, seu Ezequiel, cambista do jogo-do-bicho, que dorme embaixo de uma
mesa, e seu Patrício, português dono de uma pequena venda, discutem sobre o jogo do dia
anterior. Ezequiel tem mania de incentivar as pessoas ao jogo a partir dos sonhos que tem, ou
pelo menos diz ter. Geralmente as pessoas perdem e ele, cada vez mais, cai no descrédito dos
moradores. Um aleijado, que geme o tempo todo, se aproxima dos outros e vem trazendo a
246
esposa. A mulher dele vai direto fazer uma “fezinha” no jogo com o seu Ezequiel. Madalena,
por insistência, conta um pouco da sua vida, de como se degradou. Diz que seu problema foi
querer ser mulher antes da hora (bom recado para as meninas de hoje).
Dois homens chegam (1 e 2), um deles traz uma máquina de costura na cabeça, se
aproximam do local onde todos estão reunidos. Procuram por uma certa Maria da Conceição,
pois precisam entregar a máquina de costura, presente do Dr. Gervásio, candidato nas
próximas eleições. Madalena se interessa pela máquina. O homem diz que eles podem
negociar... (Também sou eleitora qualificada...tenho título...E além do titulo, algumas
vantagens facilmente apreciáveis....) p.31 Uma música é ofertada a Madalena pelo altofalante. A máquina fica no barraco de Madalena, por enquanto. Os homens saem. Chega um
grupo de senhoras bem vestidas, são assistentes sociais da Aldeota (Monitora, Brigite e
Suzette). Visitam o Morro do Ouro para ver como é a vida das pessoas necessitadas. (Vejam o
colorido da pobreza! Sintam a expressão de miséria!p.34). A monitora começa um tipo de
entrevista, que chamam de inquérito, com a mulher do aleijado. A entrevista cai no ridículo,
pois a boa vida das entrevistadoras entra em choque com a vida miserável das entrevistadas.
A mulher do aleijado diz que seu nome é esse mesmo, “mulher do aleijado”. A lavadeira
mulata que vai passando pergunta se as moças são estrangeiras, se ainda não perceberam que
ali não tem água encanada. Brigite se admira da quantidade de filhos que a lavadeira tem. Ela
diz que a única maneira de evitar era ela dormir numa casa e o marido em outra.
Entra em cena, a jovem Margarida que traz uma carta endereçada a Madalena. A
monitora briga com Margarida porque ela está fumando. Madalena pega o cigarro, traga e
joga a fumaça na cara da monitora. Madalena se apresenta audaciosa (Eu sou a quenga do
Morro do Ouro, a mulher mais falada da zona... ) a monitora chama as suas entrevistadoras e
vai embora o quanto antes.
O homem que trouxe máquina volta. Quer um particular com Madalena. Vão para o
quarto. Na hora dos “finalmentes” para Madalena ganhar a máquina ela lembra da carta. Pede
um tempinho. Começa a ler e se desespera. Na carta, sua mãe, D. Elvira, avisa que está
chegando e que não vê a hora de encontrar sua filhinha querida, sua santinha, que veio
trabalhar na cidade. Madalena não sabe o que fazer. Expulsa o homem de seu barraco e vai
falar com Patrício, pede que lhe ajude. O bodegueiro diz que ela se acalme. Madalena
confidencia um segredo; “Nunca tive medo de coisa nenhuma, nem do Cão. Patrício, eu só
tenho medo de uma coisa: do olhar de minha mãe. Como dói!” p. 44
O segundo ato começa com uma batida policial. Um investigador e alguns policiais
mandam a lavadeira parar e tentam fazer uma revista. Na verdade, querem descobrir alguma
coisa sobre Zé Valentão, onde se esconde, onde coloca toda a moamba que arranja. Madalena,
em seu quarto, conversa com Esmeralda, a costureira, e tenta remodelar alguns vestidos para
que fiquem sem decote. A costureira diz que homem se baba por duas coisas: peito e perna
(Será?). Madalena diz que daquele momento em diante, tudo que quer é ser uma senhora de
respeito exatamente porque sua mãe está chegando e ela não pode saber no que foi que sua
filha se transformou. Seguem cada um no seu dilema. A polícia continua por lá esperando Zé
Valentão aparecer. Madalena espera que sua mãe chegue.
De repente, entra em cena o Boi Surubi. O cortejo do boi é animado. O puxador é Zé
Valentão, que vem dentro do boi. O policial desconfia do boi. Boi pesado... dança devagar...
O boi vai se retirando... O policial grita: Pára! Pára tudo! Pede que levantem o boi, pois quer
247
ver o que tem dentro. Zé Valentão ainda reluta, mas tem de obedecer. Logo, começam a cair
de dentro do boi, aos montes, sandálias japonesas, uísque., roupas de náilon. Zé Valentão
corre. Alguns policiais correm atrás. (Eita!) Nessa hora, chega com mala e tudo a velha
Elvira. O policial quer revistá-la. A velha endoida. Diz que não vai abrir a mala de jeito
nenhum, que não é nenhum bandido. Madalena vê a mãe chegando. Corre até ela e diz ao
policial que ali só tem gente direita. Ninguém ali tem culpa dos erros dos outros. As duas
entram e a mãe se admira de ver a filha morando com tanta decência. Diz que está orgulhosa,
principalmente porque a defendeu. Diz a filha que se ajoelhe. Juntas, agradecem a Padre
Cícero.
Dia seguinte, Elvira já está no meio do mundo. Madalena procura por ela. Entra no
boteco do velho Patrício e ele lhe faz uma proposta. Diz que ela abandone Zé Valentão e fique
com ele. Tenta beijá-la à força. Ela diz que quer ser uma pessoa decente ou pelo menos fazer
com que a mãe dela pense isso, não quer decepcionar a velha que já está no fim da vida. Ele
diz que concorda. Madalena o beija na testa. Elvira entra e vê tudo. Diz um monte de coisas
com o bodegueiro, pois se ele quer alguma cosia com Madalena precisará primeiro fazer uma
grande reforma no seu botequim. Em, seguida, Elvira anuncia a todos que vai fazer uma
novena para o Padre Cícero para agradecer por ter mantido sua filha pura e virtuosa.
Determina que, enquanto durar a novena o boteco está proibido de vender cachaça, no
máximo uns refrescos.
Entra em cena o Dr. Gervásio, acompanhado dos homens 1 e 2, seus cabos eleitorais.
Elvira pergunta se ele é político mesmo ou fabricante de máquinas. Ele diz que tem um
projeto muito bom para o Morro do Ouro. Conversam sobre a legalidade ou não da novena,
no meio da rua... Será que ela tem autorização... Elvira diz que não precisa de autorização
para nada. Ela mesma se autoriza. Gervásio considera a possibilidade de ser candidato do
Morro do Ouro, diz que se ganhar vai morar ali para sentir os problemas do povo de perto.
O homem 1 sai para soltar um foguete. Viva o Dr. Gervásio! O candidato 1001. O pai da
pobreza! No meio da bagunça toda, retorna a monitora. Com ela, Brigite e Suzette. Olha
assustada para Madalena, que vem trazendo duas velas para o santo. A monitora se assusta
quando Madalena diz que está ajudando na novena. A monitora diz que nunca viu tamanha
transformação. Elvira diz que se ela veio da parte do Demônio que ela se retire. Todos estão
mudados com a novena, até o Dr. Gervásio. Mais foguetes são lançados. A monitora
atordoada diz às pesquisadoras que escrevam nos seus cadernos: MILAGRE! MILAGRE! No
Morro do Ouro.
No último ato, todo o lugar está transformado, inclusive as pessoas. No meio do cenário,
um lindo altar. Ao lado, um quadro de Padre Cícero. É noite. Velas acesas. A irradiadora, de
vez em quando, toca algum hino cristão. Seu Patrício vende refrescos e doces. Ezequiel, o
cambista, agora de barba crescida parecendo um apóstolo ou profeta vende santinhos e
medalhas. Margarida, sua noiva, que andava quase nua, agora traja um vestido semelhante a
um hábito de monge franciscano. Ele diz para que não o chame de Seu Fortuna, o seu
apelido, mas só de Ezequiel, é “da regra”, vendedor de santo ter nome bíblico. O povo
começa a chegar. No meio de todos, a Monitora, com um grupo maior ainda, vem mostrando
o milagre que aconteceu naquele lugar. A mulher diz que só viu coisa parecida em filme
mexicano. Vai trazer todas as amigas dela da Aldeota para passear ali. Dr. Gervásio chega,
248
seus ajudantes trazem a mesma máquina (ninguém sabe desse detalhe) para ser leiloada
naquela noite.
Zé Valentão vem chegando escondido. Procura não ser percebido. Vai direto para o
barraco de Madalena. Quando ela chega se depara com o amante. Ele a ridiculariza. Que
diabos de vestido era aquele. “Já é sua fantasia para o carnaval?” p. 84 Madalena tenta
explicar que não é mais a mesma pessoa, desde que sua mãe chegou. Ele não liga. Zé
Valentão, indignado, conta-lhe uma pequena história sobre coragem e influência. Diz a
Madalena que aquilo tudo era por causa do vestido que ela estava usando. Manda que tire o
vestido. Ela se recusa. Ele diz que ela vá lá fora e grite para todos que é a rapariga do Zé
Valentão. Ela diz que não tem mais jeito para ser puta. Ele a arrasta para fora e manda que
grite no meio de todos. Ela resiste, mas começa a dizer as primeiras palavras... Do lado de
fora, todos torcem contra... As pessoas formam agora um tipo de coro (Senhor, salvai a
pecadora) como numa missa.
Zé Valentão continua esculhambando a todos, pois foi traído por muita gente, pelo
delegado, pelo deputado e agora pela amante. Vai para cima de Madalena e rasga-lhe o
vestido. Ela fica quase nua e tenta se cobrir com o que sobrou de sua roupa. Valentão tranca a
porta e deixa-a do lado de fora passando vergonha. Todos abaixam os olhos e saem. Elvira se
aproxima da filha. Zé Valentão começa a cantar uma música que ele mesmo inventara (Eu sei
que tu voltas pro meu lado...) Silêncio. Ele abre a porta pensando em encontrar Madalena.
Ninguém mais está ali. Sente-se abandonado e grita desesperado como uma criança:
MADALENA! MADALENA!
O Morro do ouro retrata o “cotidiano” e, mesmo sendo escrita há mais de 30 anos, ainda
hoje se aplica a rotineira saga daquela gente, além dos clichês políticos cheios de promessas
sem valor, o contraste entre o prazer mundano e a religião e outras coisas da realidade.
II – A Rosa do Lagamar
Rosa é a mulher honesta, trabalhadeira e zeladora dos bons costumes. Cresceu e viveu no
Lagamar, uma das tantas favelas de Fortaleza. Graças ao seu esforço, ao seu trabalho como
boleira e confeiteira, conseguiu criar e educar sua filha Maria Galante, loira moça a quem
não deseja a mesma vida difícil que teve. Depois de tanto trabalho, conseguiu sair do
Lagamar e comprar um terreno razoável na Aldeota e construir uma modesta casa, onde
trabalha vendendo marmitas e fazendo bolos e cafés que serve aos trabalhadores do bairro. A
peça começa, então, com a mãe ouvindo um sonho bobo que a filha teve. Um sonho de
“amor”, algo em que Rosa não acredita mais...Na verdade, Rosa vive sempre na expectativa
de que Crispim volte e passe a viver com ela e a filha. Na sala mantém um retrato do
“capitão” Crispim como se fosse um tipo de altar.
Chega por ali o Dr. Severiano, homem público, que veio especialmente para tentar
comprar a casa de Rosa. Ao seu lado, vem um tipo de puxa-saca, um tal de Vasques,
namorado de Maria Galante. Rosa não simpatiza com ele. O texto segue sem maiores
novidades. Dr. Severiano chega e conversa com Vasques. Severiano pede a ele que sonde a
dona do terreno para saber se ela não tem interesse em vender. Vasques diz a Maria que pensa
em casar-se com ela. Rosa chega nessa hora e Vasques diz que sonho justamente com a volta
de Crispim... Nessa hora chega Emília, passadeira de roupa da região, vem muito bem vestida
249
numa roupa de gente rica. Todos sabem que ela tem mania de vestir as roupas que leva para
engomar.Rosa conversa com Emilia sobre a ausência de Crispim, 10 anos sem um homem
dentro de casa. Rosa já mandou mais de vinte cartas, mas “abriu-se o chão e o homem
desapareceu” . Emilia diz que ela devia era mandar botar baralho. Madame Sophia já tinha
adivinhado uma vez.... Vem novamente o Dr Severiano, dessa vez acompanhado da mulher.
Discute com a esposa e recita ironicamente uma trovinha popular de Juvenal Galeno (minha
jangada de vela/ que vento queres levar/ tu queres vento de terra/ou queres vento de mar?
A mulher reclama do marido. Olha ao redor e quer saber onde será a piscina. Sonha com
os jantares “chiquérrimos” que dará à noite. Entram para conversar com Rosa. A mulher de
Severiano não aceita nem mesmo o banco que Rosa lhe oferece para sentar. Também não quer
café, diz que está de regime. Severiano vai direto ao assunto e diz que quer comprar o terreno
de Rosa. Oferece-lhe 30 mil cruzeiros. Rosa não aceita. Julieta a ironiza. Rosa fica muito
contrariada, grita com a filha e diz que aquilo tudo só está acontecendo porque ela é uma
mulher sozinha., não tem um homem para defendê-la. Dirige-se ao pequeno altar e arranca as
folhas do jarro.Em seguida, joga o retrato do marido no meio da rua. Rosa senta por ali,
desanimada. Nessa hora, o Vasques entra correndo e diz que acaba de chegar um navio de
guerra e que o maquinista do barco era o Crispim. Rosa chama a filha e manda buscar o
retrato do marido. Em seus olhos, um novo alento...Rosa chora de tanta alegria.
No segundo ato, é preparada uma grande festa, com todo tipo de comida, principalmente
suco de maracujá, o preferido de Crispim Trabalham o dia inteiro, principalmente Rosa, que
não para de pensar na volta de seu amado. Novamente aparece Emília que, ao aparecer para
ajudar, faz comentário irônicos achando que Crispim não virá. Um vigia que está na festa
aconselha que Rosa venda a casa, pois conhece D. Julieta e sabe que ela fará de tudo para que
rosa saia dali. Conversam sobre o Brasil, sobre lei e sobre justiça. Rosa é sempre otimista.
Não aceita vender sua casa porque precisará voltar para o Lagamar. “Caranguejo é que anda
para trás”. Rosa não queria voltar a ser a Rsa do Lagamar. Rosa recrimina Emília por usar o
vestido de uma de suas clientes. Antes de sair, Emilia diz a Rosa que vá dormir, que Crispim
não virá mais. Rosa mantém-se esperançosa. Vasques se despede de Maria Galante. A filha
chama a mãe para dormir, mas Rosa fica na sala. Quando o sono começa a chegar, uma voz
ronca na porta. Crispim chega. Rosa corre para os braços de seu “capitão” e lhe fala da festa.
Conta-lhe sobre a proposta de venda da casa. Crispim diz que é uma boa bolada, tinha mais
era que vender. Rosa se contraria. Rosa diz que fez o suco de maracujá que ele tanto gostava.
Ele diz que não bebe mais refresco de maracujá, agora só bebe, conhaque, martini,uísque.
Rosa diz que ele não bebia. Ele diz que a culpa é do rádio que ficava dizendo: “Beba Martini!
Beba uísque!”. Ordena a Rosa que lhe dê algo para beber. Ela diz que vai pegar um copo. Ele
diz que toma na garrafa mesmo. Rosa tenta impedir, ele a empurra e começa a humilhá-la.
Rosa diz que está decepcionada. Ele diz que não esperava encontrar uma mulher tão acabada.
Diz que só bebendo seria capaz de suportá-la.. Fala de outras mulheres mais novas que ela
Rosa o coloca para fora do quarto aos gritos. A filha acorda e pergunta se é o seu pai,. Rosa
diz que não, que não era o seu pai, que seu pai era um “homem” completamente diferente
daquilo que acabava de sair. Uma semana se passa. Chega o dia do casamento de Maria
Galante e Vasques . Dr. Severiano vem novamente conversar com Rosa. Diz que tem uma
nova proposta. Oferece-lhe 40 mil. Ela recusa. Ele diz que fez a sua tentativa, mas que ela vai
sair de qualquer maneira, pois seu terreno, na verdade, pertencia à prefeitura, estava em área
250
imprópria. Rosa não acredita. Severiano lhe oferece 60 mil, sua última oferta. Em seguida,
sai. Chega o Vasquez. As mulheres brigam com ele, pois , dava azar o noivo ver a noiva antes
do casamento. Maria Galante está linda. Só tem um problema: o vestido foi arranjado por
Emília, era de uma de suas clientes. Problemas à vista. De repente, os gritos de Emília. Era a
polícia. O subdelegado Beltrão dá logo uma mãozada nos peitos do Vasques. Uma mulher
que vem com eles vê Maria Galante e diz que aquele é o vestido da mulher do deputado.
Rosa, que estava na casa, chega e pergunta o que está acontecendo.O policial exige que Maria
tire o vestido. Rosa diz a Maria que tire aquela roupa. Os homens viram de costas. O vestido
fica no chão, mas a jovem desaparece com o noivo. Nessa hora chega um oficial de justiça.
Diz ele que tem uma notificação para Rosa, vem a mando do Tribunal de Justiça do Estado.
Rosa se recusa a assinar o papel. Ele diz que será pior. Quando vai saindo, Rosa e Emília,
que serviria como testemunha de Rosa, dizem o verdadeiro motivo de não terem assinado o
documento: elas não sabiam escrever.
O último ato começa com Rosa dizendo a Emília que não quer nem ver o Vasques e nem
a filha Maria Galante, pois ele era um safado, com história de casamento, de intenção séria,
quando na verdade queriam era fugir. Emília diz que a vida é assim mesmo, que ali pela
Aldeota moça pobre não se casa, se amiga. Diz também que a desgraça de tudo é a novela da
televisão, a fita de cinema... Rosa diz que a Aldeota é um lugar que “arrota decência”...
quando, na verdade, não é nada disso. Emília diz que mulher se perde em qualquer lugar.
Emília agora fala da pior notícia: Maria andava sentindo uns enjôos...não podia ser coisa de
sete dias. Rosa fica mais furiosa ainda. Maria Galante se próxima e fica escondida. Rosa diz a
Emília que Crispim veio na noite da festa e que foi uma grande decepção. Maria ouve tudo.
Rosa continua pensando nos acontecimentos: marido safado, filha perdida e, agora, perderia
sua casa. Vasques se aproxima de Maria. Continuam escondidos. Rosa diz a Emilia que
consente em ver a filha. Maria corre e se abraça com a mãe. Rosa fica impassível. Rosa diz
que falará com o padre Andrade e tudo se resolverá. Outra notícia ruim: Vasques já é
casado. Rosa não sabe mais o que dizer. Olha ao redor e diz de forma triste que já teve uma
filha, mas que morreu, seu nome era Maria Galante. O casal se retira. Rosa chora. Chega um
vigia. Diz a todos que o juiz já despachou a sentença contra D. Rosa. O despejo será hoje à
tarde. “É assim, atrás do pobre anda um bicho”. Severiano está de volta. Quer falar com Rosa.
Emília diz a Rosa que se ela tivesse ficado no Lagamar nada daquilo estaria acontecendo.
Severiano estende um envelope para Rosa e diz que é apenas uma colaboração, uma ajuda, já
que ela vai sair sempre. Rosa recusa. Diz que vai voltar para o Lagamar, pois difícil mesmo é
ser a Rosa da Aldeota. Rosa diz a todos que aquele dinheiro não lhe traria de volta o marido e
nem lhe devolveria a honra da filha. “Eu terei de ser sempre a Rosa do Lagamar”., desabafa.
Chega o oficial de Justiça e diz a Rosa que ela precisa se retirar. Ela pede a ele que
permita que ela durma só mais uma noite em casa, quer contar os caibros e as telhas, um
hábito besta da solidão. Ele diz que não, que quando cumpre ordens não tem coração. Emília
esculhamba o oficial de justiça. Chegam o subdelegado e um bando de policiais. Os homens
começam a retirar as coisas de Rosa de dentro da casa. Um bando de trabalhadores se
aproximam protestando contra o delegado. Os soldados ficam a postos para evitar o tumulto.
Maria Galante volta, diz que quer ficar com sua mãe. Um soldado a impede. A casa é lacrada.
Rosa fica sentada do lado de fora em meio aos seus poucos moveis, como se ela mesma fosse
251
apenas um pedaço de madeira (coisificação), dizendo: “Mas ... os móveis... as coisas ... não
ficam? Responda! Responda! Não ficam?”
III – A Donzela desprezada
A história começa com o despertar de Amelinha, personagem central da peça, que fica
irritada porque a mãe a acordou. Valdelice, a mãe, diz que é isso mesmo, que filha gerada nas
entranhas de viúva fica assim: imperiosa, desobediente. Valdelice diz que ela levante, que está
quase na hora da coroação. Ela vai ser a rainha do Partido Azul, a cor do céu, a cor do manto
da Virgem Maria. Contrariada, a menina diz que devia ser a rainha do Partido Encarnado, que
é sangue e desespero. Amelinha se levanta e vai para a barraca da cartomante Lolita, quer
tirar uma dúvida sobre o dia em que Lolita leu a sua sorte. Ela quer ter a certeza se o homem
dito pela cartomante será mesmo dela, se quer de fato se casar. A cartomante foge do
assunto.Toma mais de seu elixir, uma bebida forte na qual se viciou. Amelinha atira as cartas
no chão e sai culpando a cartomante: Por causa do seu baralho é que me perdi! Lolita , agora,
entende o que houve. Diz que ela não fale alto, pois alguém pode escutá-la. Amelinha grita
mais alto ainda, chama até sua mãe e pede, aos gritos, que todos olhem que a rainha do
partido azul acaba de perder a honra. Valdelice chega. Dois homens escutam aquilo e saem
comentando. Valdelice se recusa a entender e lamenta. Amelinha diz que o rapaz não teve
culpa, pois ela mesma foi quem cedeu. Valdelice cai na real, mas não aceita que a filha seja a
culpada. Diz que a filha foi seduzida. Diz que vai pegar o libertino, vai pegar o sedutor. Um
dos homens se aproxima e diz que o rapaz com quem Amelinha mais conversava era o
Edmundo, o motorista do caminhão da entrega sistemática de gás. O outro diz que o certo é
levar o caso logo para a polícia. Amelinha insiste em ser a culpada. A mãe diz que ela está
enfeitiçada. Valdelice diz que vai querer a polícia no caso. Um dos homens diz que vai
providenciar. Lolita bebe mais elixir. Valdelice pede à cartomante que leia as cartas para ela.
Tem muito medo de perder o emprego como zeladora da paróquia. Por conta da festa dos
partidos, fogos estouram de vez em quando. Amelinha tranca-se em casa; todos têm medo que
ela se mate. Valdelice consegue falar com a filha e diz que não vai permitir que a filha da
zeladora da igreja seja desmoralizada. E o catecismo, e as missas e os conselhos do vigário?
Onde foram parar?! A mãe convence a filha a ir à delegacia. Amelinha continua defendendo
Edmundo. A mãe arruma a filha. A polícia chega. O agente vai logo dizendo: Acontece essa
infelicidade logo no dia da coroação? Conversam com o agente e ele diz que pintem mais a
moça, carreguem na pintura, pois vão à delegacia. O agente também orienta que ela deve
mentir para implicar bastante o sedutor. Nada de moleza. Manda tirar o laço do cabelo da
jovem, quem perde a honra não se importa com enfeite. Precisavam impressionar o delegado,
mas não com a cara de anjo de procissão. Assanha os cabelos e amassa a roupa de Amelinha.
Para todos os efeitos ela foi seduzida pelo indivíduo. Valdelice diz que ele evite o escândalo.
O agente diz que o escândalo é indispensável! Lolita, depois de outro gole, diz que não sabe
onde meteu o valete de copas. Nada de encontrar a carta. Faltando uma carta nada se ajeita,
nem no jogo nem na vida. Entra em cena o Edmundo, Exibe o valete e atira a carta sobre a
mesa.
O segundo ato se passa na delegacia. O agente leva o caso ao permanente, que não parece
muito interessado, pois a moça era de maior...O agente diz que tem dinheiro na parada, o
252
negócio era arranjar um marido para a jovem, era coisa para mais de 50 mil. Ele se faz de
honesto, mas logo aceita. Em seguida o permanente conversa com as duas mulheres e orienta
Amelinha. Valdelice diz que se ela não mentir será pior para todos. Pressionam a moça e ela
começa a mudar de atitude. Chega o delegado que fica bastante interessado no caso e
imediatamente liga para os jornais. O delegado pressiona. Valdelice diz à filha que Edmundo
casará com outra e ela ficará sozinha se não fizer nada. Amelinha se rende. “Vai ser então
como os senhores querem”. Conta tudo com detalhes, inclusive o que não aconteceu. Até a
mãe se espanta com tanta mentira. Os policias vibram com o depoimento da vítima. Querem
pegar o sedutor o quanto antes. Só faltam os jornalistas. Aquilo tinha de ir para os jornais.
Seria primeira página. O delegado manda prender Edmundo. Valdelice diz que tinha uma
idéia errada da polícia, mas está vendo que “Sem confirmar na lei não há salvação”. Entra em
cena o repórter Benedito, tipo inescrupuloso que faz tudo por uma boa matéria. Ao saber do
caso com detalhes ele diz: “Deus que me perdoe, mas como gosto da infelicidade dos
outros”. Começa a trabalhar. Chamam o fotógrafo que vai em busca do melhor ângulo da
donzela desprezada. Amelinha conta a história que sairá nos jornais. E haja mentira. Diz que
foi levada por Edmundo no caminhão do gás, feito um botijão” e num lugar bonito foi
seduzida e violada. A mãe sabe que a história é mentira. Mas não há mais nada a fazer.
Amelinha é arrumada de um modo a causar impacto, uma fotografia como uma virgem
contrita deve sair ao lado de outra na qual ela deve parecer uma moça infortunada que não
chegará sequer ao pés do padre quanto mais a um casamento. Amelinha, depois de tanta
mentira já pergunta: Será que eu vou sair bonita no jornal? Lembra de um crime passional que
aconteceu na vizinhança (Pirambu) e a foto era enorme... Edmundo chega trazido pela policia.
È interrogado pelo agente e pelo delegado. Assume parte do erro mas diz que a moça também
teve culpa. Ela que o procurou. O delegado ironiza e humilha o rapaz. Fazem uma acareação,
e Amelinha mente mais ainda. Implicando bastante o rapaz. Fora da sala, Amelinha pergunta
a todos se não merece dez pela encenação.
O último ato começa com Lolita procurando suas cartas, está com um cliente. Depois de
uns goles dos seu elixir, passa mal e desaba. O homem acha que ela morreu. Chama um
amigo e diz que devem ligar para o jornal, pois eles pagam muito bem nesses casos,
principalmente quando é de morte. Pessoas chegam, perguntam se ligaram para a ambulância.
Eles dizem que não porque eles não dão nenhum prêmio.; Enquanto isso, Amelinha se prepara
para uma nova sessão de fotos, ignora até o passamento de Lolita. Os fotógrafos chegam e o
repórter não quer conversa com Amelinha e Valdelice. Estão eufóricos pois há tempos não
morria uma cartomante. A notícia vai ser uma bomba. Benedito diz que quer uma foto sexy da
morta. Levanta-lhe a saia e bate foto das coxas. O botequineiro intervém e diz que a morta
deve ser respeitada. Benedito diz que ele deixe de sentimentalismo. Chama uma testemunha e
diz que conte o fato e que não tenha medo de aumentar, pois quando se aumenta fica melhor
ainda. Quanto mais molho na história, melhor. E a testemunha mente mesmo. Notícia:
GARRAFADA MISTERIOSA TIRA A VIDA DA CARTOMANTE. Fotógrafo lembra que
ainda não há a certeza da morte. Benedito diz que ela vai morrer sim, principalmente pela
demora da ambulância. Valdelice e Amelinha estão revoltadas, pois foram totalmente
ignoradas pelo repórter. Chega o médico. Diz que Lolita está bem e que logo se restabelecerá.
Benedito lamenta que aquele não era mesmo seu dia de sorte. Valdelice chega e exige do
fotógrafo que faça as fotos de sua filha. Benedito, injuriado, esculhamba Valdelice que não
253
entende que a vez da filha dela já passou, que aquilo é noticia antiga, não interessa mais. O
jornal vive de novidade, do fato do dia – é preciso um fato novo... Amelinha aparece e diz em
tom grave: Estou grávida! Valdelice fica assustada. Benedito já se anima. “Por que não disse
isso antes” Começa tudo de novo... Vai contando minha filha... Começam as fotos. Notícia:
GRANDE REVELAÇÂO DA DONZELA DESPREZADA: ESTOU GRÀVIDA DE DOIS
MESES! – No auge da reportagem, Amelinha pára. Diz que não quer mais continuar com
aquilo. Está fazendo um papel que não é o dela. A mãe insiste que o apoio do jornal é valioso.
Amelinha começa a dizer que não está grávida. Entra em cena bruscamente Edmundo.
Empurra o fotógrafo, derrubando a máquina. Grita com todos. Diz que há muito tempo eles
jogam no chão a honra daquela moça. Benedito argumenta a liberdade de imprensa.
Valdelice diz a Edmundo que ele botou tudo a perder, pois ela perderá até o emprego na
igreja. Amelinha abraça-se ao seu amor e diz que se arrepende de ter mentido. Edmundo diz
que daquela história toda uma coisa pelo menos é verdadeira, o caminhão de gás que está
esperando lá fora... se ela quiser ir. Dirige-se ao caminhão. Amelinha corre em casa e volta
com o buquet e o vestido de festa. Edmundo toma-a nos braços e segue para a o caminhão.
Valdelice fica transtornada. O caminhão parte. Ela fica perguntando aos homens ao redor se
foi o caminhão do gás que partiu. Encerra dizendo: Que Deus me proteja. Que Deus proteja
minha filha!.
Observações!
1. Teatro de denúncia na melhor linha social e neo-realista.
2. Influência dos realistas russos e do alemão Bertold Brecht.(Santa Joana dos
matadouros)
3. Apresentação dos dramas individuais e coletivos.
4. O Morro do Ouro guarda semelhança com O romance O Cortiço, de Aluisio
Azevedo (Madalena e Zé Valentão lembram Rita Baiana e Firmo )
5. As peças acontecem respectivamente no Morro do Ouro, na Aldeota e no
Pirambu numa tentativa de mostrar a Fortaleza que ninguém vê.
6. As três peças lidam com elementos místicos pagãos e/ou cristãos: rezas,
novenas, cartomantes etc.
7. Nas três peças as mulheres são o ponto dominante. Uma figura feminina é a
responsável pelo protagonismo no texto..
8. Nas três peças nós temos filhas que decepcionaram a mãe.
9. Nas três peças, o homem, principalmente o pai, é figura sem importância ou
ausente.
10. O papel da mídia, do sensacionalismo no jornalismo, é abordado direta o
indiretamente nas três peças, mas no texto 3 (A donzela desprezada) tornou-se
um do maiores temas.
11. Seus textos lutam contra o que chamou de indiferentismo social.
12. Nas três peças existe um processo de coisificação do ser humano.
13. As injustiças sociais e a falta de humanidade são dois grandes temas do
autor.
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14. As três peças apresentam o homem com o poder de interferir no meio O
Morro do ouro) ou sendo massacrado por ele (A Rosa do Lagamar).
15. O falso puritanismo das agentes sociais e do próprio povo contrasta com a
miséria da gente ao redor.
16. Uma das cenas mais ricas e engraçadas culturalmente do texto é a do
Bumba-meu-boi.
17. Em Eduardo Campos, tudo é passível de ser modificado ( O poder de Elvira
em O morro do ouro) é uma prova disso..
44 - O mundo de Flora – Angela Gutierrez
O título
Em primeiro lugar, o titulo nos sugere um olhar sobre determinado mundo, um mundo
especial, o mundo da jovem Flora. Nessa perspectiva espacial, devemos observar que esse
olhar é, no mínimo, perscrutador, um olhar feminino, desvendado por letra de mulher,
temática preferida da autora. Seus livros A canção da menina (poesia), Avis rara e O mundo
de Flora são a maior prova disso.
Autora e obra
Angela Maria Rossas Mota de Gutiérrez nasceu em Fortaleza e, como a maioria das
mulheres, não costuma revelar a idade. Discípula fiel de Moreira Campos, seu professor
,amigo e mestre, tornou-se amiga-irmã de Natércia Campos. É doutora em Letras pela UFMG
e professora do Departamento de Literatura da UFC, e do Mestrado em Letras. Atualmente
coordena a Casa de José de Alencar mais um pólo cultural da UFC. Integra o Conselho de
Arte e Cultura e o Conselho Consultivo da Sociedade Amigos da Biblioteca ao lado de
Regina Fiúza, Adísia Sá, Eduardo Campos, dentre outros. Foi membro do Conselho Estadual
de Educação durante o governo de Lúcio Alcântara, seu colega na ACL. Membro da
Academia Cearense de Letras, ocupa a cadeira no. 18, de José Cardoso de Moura Brasil.
Conselheirista ferrenha é estudiosa de Euclides da cunha, Guimarães Rosa e Machado de
Assis. Seu romance O mundo de Flora foi lançado em 1990, a que se seguiu Avis Rara. Tem
alguns conto na antologia O talento cearense em conto onde figura o texto Ressurreição.
Estudiosa de Literatura Brasileira e Americana, das mais conceituadas, tem um ensaio (O
romance possível da América Latina) sobre a obra do grande autor peruano Mario Vargas
Llosa. Em 2006, publicou Luzes de Paris e o Fogo de Canudos, um tipo de “continuação” do
Mundo de Flora. Obras: O pó de pirlimpimpim (Conto); Ressurreição (conto); O mundo de
Flora (romance); Canção da menina (Poesia); Avis Rara (Conto); O romance possível da
América Latina (crítica); As luzes de Paris e o fogo de Canudos (romance); Livreto de
cordéis.
Momento
255
A idéia de Pós-modernismo surgiu pela primeira vez no mundo hispânico, na década de
1930, uma geração antes de seu aparecimento na Inglaterra ou nos EUA. Perry Anderson,
conhecido pelos seus estudos dos fenômenos culturais e políticos contemporâneos, em "As
Origens da Pós-Modernidade" (1999), conta que foi um amigo de Unamuno e Ortega,
Frederico de Onís, que imprimiu o termo pela primeira vez, embora descrevendo um refluxo
conservador dentro do próprio modernismo. Mas coube ao filósofo francês Jean-François
Lyotard, com a publicação "A Condição Pós-Moderna" (1979), a expansão do uso do
conceito. Em sua origem, pós-modernismo significava a perda da historicidade e o fim da
"grande narrativa" - o que no campo estético significou o fim de uma tradição de mudança e
ruptura, o apagamento da fronteira entre alta cultura e da cultura de massa e a prática da
apropriação e da citação de obras do passado. A densa obra de Frederic Jameson1[1] "PósModernismo" (1991), enumera como ícones desse movimento: na arte, Andy Warhol e a pop
art, o fotorrealismo e o neo-expressionismo; na música, John Cage, mas também a síntese
dos estilos clássico e "popular" que se vê em compositores como Philip Glass e Terry Riley e,
também, o punk rock e a new wave"; no cinema, Godard; na literatura, William Burroughs,
Thomas Pynchon e Ishmael Reed, de um lado, "e o nouveau roman francês e sua sucessão",
do outro. Na arquitetura, entretanto, seus problemas teóricos são mais consistentemente
articulados e as modificações da produção estética são mais visíveis. Angela Gutierrez é uma
autora Pós-modernista.
Divisão 1 – Critério espacial
I - Casarão – Fatos que acontecem no casarão sombrio do bisavô Tomé Romeu. Na verdade,
uma brincadeira sonora com o nome do bisavô da autora Tomás Pompeu.
II - Matosinhos – Fatos que acontecem no sitio onde a menina Flora passa a morar.
Matosinhos, hoje, é o bairro do Mondubim, onde existia o sitio Ângela, em homenagem à
autora.
III - Cidade – Fatos ocorridos principalmente, em Fortaleza, nos quais se pode observar o
tom de narrativa de costumes emprestado ao romance.
Divisão 2 – Critério diegético (Indículos)
Indicação da autora para que os fatos sejam lidos na ordem em que vinham sendo
escritos.
I - Flora no Espelho de Papel
II - Papéis amarelos de Flora
III - Labirinto da memória
IV - Estórias, causos, missivas e outros que tais
V - Conversas fiadas e outras nem tanto
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Análise
A narrativa tem início com a fala de Flora, adulta, acamada, desenganada,
desesperançada repensando sua vida. Ao longe parece ouvir Carinhoso (Ah, se tu soubesses
como eu sou tão carinhoso e tanto, tanto que te quero... – Música de Pixinguinha que este
ano completa 90 anos). As dores são muitas, o remédio as faz suportáveis. Mas, até quando?
Tem então, a dolorosa idéia de escrever, de contar sua vida. “Para quem escrever? Para mim
mesma? Alguém lerá estas páginas? Suas atitudes são suspeitas. Tomou uma dose de
calmantes e pediu que não lhe acordassem. Tem na cabeça o tempo exato em que o marido
chegará, dali a 6 horas. O que estaria planejando? São três horas...
Flora caminha pelo quarto com dificuldade, olha o espelho antigo e vê o rosto de uma
mulher de 33 anos. Vê ali o declínio de sua beleza. Olhando fixamente o espelho psyqué,
onde coisas sempre são reveladas, ela começa a lembrar de sua infância... e escreve. Lembrou
de sua avó, que sempre lhe falar do cortejo da velhice. Olhou para o passado, a infância no
casarão e viu a si mesma. Abre-se a primeira página do espelho de papel.
Vem, a propósito, uma descrição do velho casarão sombrio, casarão da família, onde o
bisavô era um tipo de rei, um soberano, guarda e mantenedor das tradições familiares. Para a
pequena Flora, de 5 anos, ele, na verdade, era um tipo de deus. (Assim deve ser todo avô que
conta histórias para aos netos). O único lugar mais claro da casa era a sala de almoço, onde
havia sinais de vida mesmo com a ajuda do telefone e do rádio.
Toda noite era uma batalha para dormir. Os olhos da menina corriam o quarto e fixavamse no escuro com medo dos demônios que a noite sempre esconde. O quarto escuro era o
palco desses medos, fantasmas infantis que um dia desapareceriam. Por enquanto, ela se
enrolava o mais que podia. O coração batia forte... até o sono chegar...
Na casa havia muitos habitantes. O quadro do bisavô na parede, o avô, contador de
histórias, a avó que adorava o avô, senha Maria Amélia, empregada antiga da casa, e os filhos
Branca, Nívea, Flora e Romeu. Flora Morena é a mãe da pequena Florzinha, ou Flô, que é
quem nos conta a história ,com a ajuda de outros especiais narradores ( o avô, os amigos etc.)
O Dr. Carlos, brilhante aluno do Dr. Oswaldo Cruz é chamado para cuidar de uma
indisposição de D. Flora. Ao chegar, Carlos se apaixona pela prima Nívea. Outras
personagens passam a ser analisadas, por exemplo a charadista Alaíde Vernon. Uma prolepse
nos antecipa a discussão sobre a dádiva da maternidade. Como uma mulher sofre ao saber que
nunca será mãe.
A charadista Alaíde Vernon, depois de um casamento frustrado com o também charadista
Gerson Barata, passara a ser motivo de chacota, depois da morte repentina do marido, pois
ali todos sabiam que o homem morrera de fraqueza, e havia indícios fortíssimos da
fogosidade de Alaíde. À boca pequena falou-se em tuberculose. Por seu lado, comentava-se a
potência de D. Alaíde. ... O certo é que Alaíde, que nunca ligou muito para o pretendente,
vestiu-se de preto, depois de roxo, e orgulhou-se de ser viúva.
O tempo passava e as coisas se modificavam. Carlos viajou ao Rio de Janeiro, voltou
diferente, não se acostumava ao casarão. Saía à noite sem a companhia de Nívea. Mudava
também a cidade. A velha Igreja da Sé estava sendo derrubada para dar lugar a uma catedral
nova, torres altas, estilo gótico, ogivas etc. Flora, a narradora, nasce, exatamente com a nova
catedral. D.Flora morre. O corpo foi velado em câmara ardente. Branca, a tia de Flora também
257
morre. A menina tinha 5 anos. Não discutiu pois sabia que quem morre desaparece e que
“para morrer é só ta vivo”p.26.
Flora se sente mal, pois pressentira a morte de Tia Branca. “Será que ela morreu
porque eu disse que ela ia morrer?”.Outras pessoas morrem (Miss Colbert, Dayre Colbert) e a
morte passa a ser uma realidade com a qual a menina já contava. Houve também o caso do
Prof. Quadrado, admirador explícito de Tia Branca. Anos depois, quando ele morreu de
tuberculose ela passou a guardar luto e ainda mandou ampliar o retrato que possuía do
professor apaixonado. Uma adoração que só agora Flora entendia.
É um tempo de costumes, de tradição social, como os bancos reservados, locais
pertencentes às famílias em certos lugares ( nas igrejas, no passeio público etc.) onde só
aquelas pessoas podiam sentar. Havia, então, o banco das Romeu, dos Rodrigues, dos Boris
etc. Os relógios eram acertados pela Coluna da Hora, como faziam os ingleses com o Big
Ben.
O narrador, nesse momento em 3ª. pessoa, lembra do dia em que o almoço era galinha e
dera muito trabalho para capturar e matar a ave. A menina viu todo o processo e, na hora de
comer, recusou-se a devorar aquele “pedaço de bicho morto”. P.33. Pensou em outros
animais. Fez força para esquecer. Comeu apenas arroz, feijão e macarrão. (influência de
Clarice Lispector – Galinha de Domingo). Enquanto isso, a avó dizia: Flô. Flõ! Sempre com
os olhos maiores do que a barriga. Havia um priminho chamado João que cantava indiferente
à posição social (bisneto do Senador) “Malica bela, tu cagaste na panela, foste tu, pocaiona,
foste tu”.
Por falar no bisavô, que era Senador, na verdade fora padre, um padre apaixonado por
uma bela jovem chamada Carolina. Deixou de ser padre para viver aquele amor. Tinha
incrivelmente o apoio da avó da menina. Foi um alvoroço. (Uma lembrança dentro da outra,
pois nisso a narradora retorna a meados do século XIX).
Em seguida, um momento clássico de polifonia narrativa quando Flora pede a mãe que
lhe conte a história do “Prinspe e da princesa”. Ela contou o tipo de história, na verdade um
conto de fadas, do tipo que um dia, todos nos já ouvimos. Chega carta do cardeal Bantault
tentando demover Branca de sua idéia de fazer-se freira. A carta é transcrita na íntegra.
(heterogenia). Branca não entra para o convento e aceita os argumentos do cardeal.
Em “Da porta de casa para dentro”, a narradora centra o seu olhar na figura do avô,
quando ele ainda era menino, vira sair dali, do casarão, o enterro pomposo da mãe. Sua
história é comparada com a história de Maria Antonieta, rainha da França. A vida segue e
Flora, já com cinco anos, costumava encarar a caveira que ficava em cima da estante do avô.
Atravessava perigosamente as ruas para comprar bombons com o irmão. Bombons na
mercearia do seu Miguel, que não costumava lavar as mãos.
Num rico momento de intertextualidade, temos a história do poeta Adalberto, que vez
em quando fazia poemas para Flora. Atormentado com a idéia fixa de que outros poetas
roubavam as idéias dele, de sua cabeça, por exemplo o palhaço. p.44. O poema, na verdade,
pertence ao Pe. Antônio Tomás, “Príncipe dos Poetas Cearenses”.
Outro capítulo intrigante mostra o enterro do pai do Dr. Romeu, O Senador, ex-padre,
bisavô de Flora. É nítida a relação intertextual com a vida do Pe. Martiniano de Alencar
(Senador do Império e pai do jovem escritor José de Alencar). É mostrada a ordem de prisão
dada ao Dr. Tomé Romeu por ter publicado um artigo contra o equívoco que parecia ser o
258
Novo Regime. Em seguida, nos diz da intervenção pessoal de Rui Barbosa para a obtenção
de um habeas corpus para o Dr. Tomé Romeu que não escreveu em seu artigo nada mais que
um direito oriundo da nossa constituição.
A narradora apresenta um outro momento rico em tradição oral ao transcrever o refrão
da história da menina dos cabelos de capim (texto da p.48) Uma das histórias contadas por
senha Amélia. Eram três as contadoras de histórias: Amélia, Cota (descendente de reis
africanos) e Luiza.
Novamente, a narradora se dedica à figura do avô, no dia em que ele se apresentara no
Colégio Militar para dar aulas. Os alunos prepararam uma recepção à base de vaias, mas a
autoridade e a serenidade do Dr. Tomé Romeu impediram qualquer manifestação de rebeldia.
O livro apresenta, nesse momento, o inicio de um contraste lingüístico, uma variação
dialetal, que acometeu o país em fins do século XIX até os anos 80. Inicialmente, as citações
ou referências são dadas em francês ou mesmo com algumas expressões latinas. Depois, o
francês começa a dar lugar ao inglês, muito bem demonstrado no capitulo Methodo Stott.
P.51. ( essa variação lingüística marca, na verdade, a transição da belle epoque para o inicio
da americanização ).
A jovem Flora, acompanhada dos pais, deixa o casarão e vai morar num sítio, num lugar
denominado Matosinhos, um bairro afastado do centro. Ali a vida era outra, pois havia um
contato muito maior com a natureza, com os pássaros, com a lagoa sangrando, o que lhe dava
muito susto. (Como podia uma lagoa sangrar...) Flora tem nitidamente um sério problema
com a linguagem conotativa. Ao final do dia, o pai tocava violão, havia frutas estranhas como
jenipapo. Flora experimentava o mundo. Deu de cara com a morte; um anjinho que era levado
sem mexer os olhos. Aquilo lhe doeu dias e dias, noites e noites... Flora sempre insistiu para
que lhe contassem histórias. A Luiza lhe respondia: Quem conta história de dia cria rabo de
cutia. P.58
Flora crescia e ganhava personalidade. Defendeu com muita coragem o Chicuto, um
menino franzino apelidado de amarelo empambado, mesmo que os dois nem soubessem o que
queria dizer. Dias depois, Chicuto morreu afogado na lagoa, mais ou menos como o
Francisco, que morreu no açude, no ramance A casa. No dia seguinte, o pai levava o filho
morto numa rede. A menina não teve permissão para olhar.
Nesse momento, a narradora relembra de forma lúdica todos os folguedos e jogos de seu
tempo de criança. Havia bumba-meu-boi, esconde-esconde, chicote-queimado, passarin no
ninho, cobra no buraco (a mais perigosa), adivinhações, brincadeiras de roda. Algumas
cantigas são transcritas nessa hora. (p.65) No sítio, as horas eram marcadas pela passagem do
trem ( o trem do almoço, o trem da merenda, o trem da janta).
Um dia, Flô ficou sabendo que ia “ficar no canto”. Na hora, não entendeu, como sempre,
até que lhe disseram que um novo bebê nasceria e ela seria posta de lado, pois é assim que
acontece quando nasce uma menina onde já tem outra. Flô se apegou com Deus de todo jeito
pedindo para que fosse um menino. E assim foi.
A narradora alterna os tempos de sua narrativa, fazendo uma reflexão sobre um episódio
passado na Paraíba, Verde-caninha. Um homem que matou outro só porque o mesmo vira e
ironizara a cor da calcinha de sua esposa em um dia de muito vento. Relaciona isso com o
costume dos rapazes de seu tempo, em Fortaleza, que ficavam na parada do bonde apenas
esperando que as moças descessem para ver-lhes os tornozelos.
259
Este episódio serve de preâmbulo para outros fatos como a queima de Judas e o desastre
acontecido com a negra Adelaide, que saíra de casa toda arrumada para comprar os
mantimentos e fora praticamente linchada pela população só porque estava arrumada e
penteada. Uma negra que só queria ser as pregas ...
O episódio é contado com um genial toque de oralidade, com a repetição deliciosa do aí,
muito usado quando se tenta contar exatamente como se deu um fato, em terras cearenses.
Destaque então para as vaias e para a molecagem (muitas vezes preconceituosas) do povo
cearense. Há um discurso contra o preconceito, nos moldes de Patativa do Assaré (Vicença e
Sofia).
Abre-se agora um capitulo especial sobre os doidos que habitam Fortaleza na época da
narradora. De tantos ela lembra de alguns que eram doidos de pedra ou doidos de vera:
Tetéu, Verdura, Coto Preto e Tiquim, doido bom, comerciante falido, marido traído, deu no
que deu. Este momento assemelha-se ao conto O Alienista, de Machado de Assis.
Flora ia crescendo e lendo. Lia de tudo, revistas velhas, bulas de remédio, livros de
história do Brasil. Odiava mortalmente Deodoro da Fonseca, que expulsara o bom velhinho
Imperador... Nesse instante, a narradora deixa transparecer que Flora, em criança, tinha certas
premonições. O pai explica a menina que aquilo era um deja vu, a sensação do “já visto”.
Flora, a partir de então, tentava impedir que as coisas acontecessem da forma como o dejá vu
previa. p82
Novos episódios vão constituindo a vida e a cabeça da menina. O namoro do irmão como
uma menina de Matosinhos (tão grandes, tão bestas!), tanto que “levou os pais” no colégio. O
fato de ter os pés um pouco abertos e também de ser mijona foram horríveis de superar aos 7
anos, mas o tempo ia passando e ela ia conseguindo. Por esse tempo seu mundo é povoado
pela narrativa de Monteiro Lobato e o que mais lhe fascina é o pó de pirlimpimpim da
Emília, sua grande colega nessas viagens.p85
Narrando um pouco a vida de uma família ali próximo, a família de seu Caludo e de
Margarida, a narradora deixa transparecer um dos gostos de Angela Gutierrez, o cinema, pois
compara as personagens com Rett Butler, e Tara como Matosinhos, numa relação com o
romance e o filme E o vento levou(?)
Em seguida, a narradora confessa que sempre achou o mundo dos meninos muito mais
interessante. Os meninos sempre tinham o que fazer, brincavam de tudo e com liberdade:
praia, bila, pelada, carretilha, bola de meia, arraia, figurinha, caçar calango etc. Enquanto a
vida de uma menina é cheia de não-pode. Mas uma coisa a compensava: seus livros, que lia
embaixo de uma velha mangueira, e ali ela podia tudo, muito mais que os meninos.
Seguem alguns episódios “domésticos” e o que mais se destaca é o dia em que Flora
(contrariando a prática da época) foi para a casa de praia de seu tio e lá, brincando pelas
dunas, viu atrás de uma moita, um homem com tudo de fora (era teso, escuro e peludo p.99) E
o homem ria. Correu para casa desesperada. Teve vergonha de contar aos primos o que
aconteceu. Psiu!
Noutro evento “sobrenatural”, a narradora conta sobre o dia em que viu “Nossa senhora”.
(Relacione com Pedro Misisoneiro e Peri). Fala também do dia em que viu um cachorro viralata que atravessou o altar atrapalhando a missa. Pe Clemente desceu as escadas e deu um
tremendo ponta-pé no cachorro. Em seguida, ironicamente, retomou a oração dizendo:
calmamente “orate, frates!”
260
Outros episódios são narrados como o do chofer que não queria seguir a Coluna da Hora,
mas o Big Bem; o gosto de Flora por manga rosa; o dia em que bateu na cara de uma outra
menina. Teve nojo, teve medo, depois ficou com vontade de pedir perdão à menina. “ Queria
não ter visto aqueles olhos de medo” p101.
Às vezes, Flora pedia ao avô para contar episódios curiosos de seu tempo (anedotas),
como “caso da gravata”, quando enfrentou um valentão por causa de uma gravata e o valentão
teve medo dele. Flora continuava lendo embaixo da velha mangueira, e vivendo as emoções
de cada personagem. “ Vivia vidas e mortes alheias” p108. “Lágrimas sofridas quando morria
algum de meus heróis ou minhas heroínas”.
Na casa, diz a narradora, os nomes de batismo vinham como herança. Se nasciam
meninos, levavam o nome de José, Tomé ou do pai. Se nasciam meninas, eram chamadas de
Branca (Virgem), Nívea(Libra) ou Flora (Aquário), cada uma com sua particularidade. As
Brancas eram delicadas e religiosas; as Níveas eram tristes e contemplativas; as Floras
eram imaginativas, voluntariosas e gostavam de ler e escrever.
Outras personagens vão surgindo como o velho Chagas, um senhor muito sábio em
medicina popular, pois sabia remédio para todo tipo de doença. Outro episódio engraçado
foi a visita de um ministro que do final do compromisso com o povo, depois dos abraços
afetuosos dos eleitores teve a sua cartola roubada.
Flora vai crescendo com seus dramas, diferenciando amigos de conhecidos. Uns vão a
nossa casa, outros a gente encontra na rua. Segue pensando na morte, em sua própria
morte, na tristeza de sua mãe.... treina francês e vai vivendo suas rixas, brigando com a
Zitinha, pois não dava para perdoar ofensas.
Vem um dado importante que nos dá uma dimensão temporal: “Getúlio matou-se”. Era
agosto de 1954. Flora se alegra: Feriado!Feriado! Depois entristece ao ver a tristeza do pai,
depois de acompanhar a leitura emocionada da carta do suicida: Saio da vida para entrar na
História”. P.124
Flora foi estudar no colégio das freiras e lá sentia pena ao ver as pequenas órfãs passarem
com seus vestidinhos quadriculados, sempre de cabeças baixas, não se podia conversar com
elas. A menina ficava imaginando se elas, à noite, choravam seus mortos e tinham medo da
solidão. Enquanto o tempo avança, a menina, magra de cambitos finos, enrolava os cabelos
com os dedos diante do espelho para vê-los enrolar, mas não adiantava, continuava parecendo
uma índia branca, um cigarro, branca e comprida, esqueleto da moçanaria. Enquanto a
magricela tinha vergonha dos próprios cambitos, a nova miss Brasil era escolhida.
Primeira comunhão de Flora. Ela estava triste porque o pai esquecera de chamar o
fotógrafo, coisas da vida pré-adolescente. Sua avó já ensinava: A vida é simples, para que
complicar? Viva o dia de hoje, amanhã é outro dia...(...) Não deixe ninguém pegar na sua
munheca” p.131. Segue a isso, o debut de sua irmã “ do meio”, Branca. Festa de 15 anos. O
pai consola Flora dizendo que um dia ela também vestiria um vestido de tule e rendas para
dançar valsa com ele.
Na escola, Flora entra numa enrascada ao dizer na frente de todos que seu partido, o
partido encarnado, arranjara mais dinheiro que o partido azul. Era mentira. Precisou pedir
dinheiro a um grande comerciante e ainda não deu para cobrir a quantia. A madre superiora,
de forma tendenciosa, foi bondosa e considerou empatada a competição, uma tradição
261
eclesiástica daquela época. (pode ser observada também na peça A Donzela desprezada, do
mestre Eduardo Campos).
Flora fica sabendo sobre as coca-colas e seus amores, os marinheiros americanos (Ver
um conto de Rachel de Queiroz intitulado Tangerine Girl). È muito bom. Flora pergunta
como eles se entendiam, por causa da diferença de idioma. Dizem-lhe que quando casar ela
também se entenderia naquele sentido até com japonês. Flora ia crescendo e se modificando.
Perguntavam-lhe se ela estava namorando, ela se chateava. “Toda menina que enjôa da
boneca é sinal que o amor já chegou no coração”.(Luiz Gonzaga) p.136. Chegava aos 13 anos.
Examinava-se diante do espelho. Pensava no dia em que viessem as regras. Sabia que de
repente “o meu dia ia chegar”, dizia a si mesma.
Provando a não linearidade da narrativa ( pelo uso do fluxo da consciência), é contado
sobre a fundação do Grêmio litero-musical Uirapuru, em 1930. Um aluno que tentou recitar
Bocage, um poeta considerado imoral pela gente inculta, e o padre Diretor não permitiu
aquela afronta. Foi uma única reunião. O aluno era da família Tomé Romeu.
A narradora lembra do poeta Cravo Meira, admirador inconfundível de Tia Branca, a
quem dedicava poemas até sua morte. Branca sempre o desdenhara, mas no fundo gostava
daquela adoração. Tia Branca era a heroína preferida de Flora. Sua vida era literáriaquase. (A prova dessa paixão pela Tia Branca está no último livro da autora As luzes de paris
e o fogo de Canudos, um retrocesso que fala sobre a vida de Branca).
21 de abril de 1960. Nasce a nova capital do Brasil. JK realizava um sonho. Flora, a
cada dia, ganhava mais corpo. Intrigantemente, revoltava-se até com os elogios. O irmão dizia
que ela estava ficando “doida de albano” p.141. Noutra alusão à política, é transcrito um
fragmento da música feita para a campanha de Jânio Quadros. “ O homem da vassoura vem
aí!” . Novamente, a narradora fala da catedral que nunca era inaugurada. (Só iria acontecer,
oficialmente, em 1978).
25 de agosto de 1961. Flora começa a escrever um diário como Anne Frank. Flora era
agora uma moça. Foi ao cinema pela primeira vez e decidiu que ali seria a sombra de sua
mangueira, entrava naquela sala como quem entra no útero da mãe, um novo território de
ilusões, a Sétima Arte.
A narradora fala sobre o dia mais feliz de sua vida, o dia de seu casamento, no dia em que
descobriu que estava amando Diego. Por conta disso, é transcrito um poema apaixonado.p.
144. Depois, é transcrita uma carta do pai de Flora na qual ele fala sobre família, cinema e
literatura principalmente sobre Guimãres Rosa, paixão dos dois, do pai e da filha. “Existe é
homem humano. Travessia”p.145 (Fala de Riobaldo em Grande sertão: veredas).
1º. de abril de 1964. O governo convoca os reservistas, o clima começa a esquentar,
internamente o país está um caos. Flora, cada vez mais apaixonada escreve cartas para Diego.
O país vive um dos seus momentos mais compicados. Flora pensa apenas nos torturados, nos
desaparecidos, num Brasil que “ tem mais flores” e escreve. Apaixona-se pela música de
Chico Buarque e se encanta com a banda que passa “Cantando coisas de amor”. A moça lia
e o tempo corria. Estamos em 1968. Carta de Flora a Diego com o primeiro convite de
casamento que acabara de ser impresso. Casaram. Diego disse que ela estava parecendo uma
espanhola. “os cabelos negros e fartos, partidos ao meio e presos em mechas na nuca. Os
véus saíam de dois pentes enfeitado de pérola “ p. 150. No louco torvelinho da memória as
lembranças iam e vinham. Umas eram consentidas outras não.
262
O ano é 1970. O Brasil acabara de ganhar a copa do mundo. Jairzinho, Tostão, Rivelino
e Pelé são a alegria do povo. A 30 de outubro de 1970 nasce Diego Fernandes Filho. É
enxertado no texto um fragmento do registro de nascimento exatamente como estava no
cartório. Uma carta em espanhol assinala mais uma vez a variação lingüística do romance
(Francês, Inglês, Latim, Espanhol) A inserção desses textos dá ao romance um caráter
inovador mais contemporâneo ainda. Lembrmeos que a parte em espanhol vem sempre
quando trata de aspectos sentimentais e amorosos de Flora.
Em seguida, a narrativa segue sem a participação da narradora apenas com telegramas,
certidão de nascimento, cartas etc. que dão ao leitor ciência de tudo o que se passa. Pouco
tempo depois, num dos momentos mais dramáticos do romance, o filho de Flora morre. Um
poema nos moldes de Augusto dos Anjos reitera o “lamento por um filho morto”. É uma das
partes mais sofridas do livro.
Novo ritual, dessa vez o pior de todos para Flora e Diego, o enterro do pequeno
“Quéchua” ( Expressão que além de ser um dialeto peruano, designa um deus da cultura
Inca, um tipo de deus do sol). Flora se ressente com “o ritual ridículo e de mau gosto da
morte”. De volta, em casa, tudo era desordem. “ O quarto parecia maior sem o pequeno berço
de ferro que a bisavó mandara buscar na Europa”. Sobre a cama, o gasto boneco de pelúcia,
com seu olhar azul, inerte a esperava” – Boneco malvado, me dá meu menino se não eu te
dou um tapa. P.157. Uma expressão latina diz tudo que passa Consummatum est. (Está tudo
acabado). A frase dirigida ao bichinho de pelúcia, na verdade, representa uma das constantes
atitudes de Flora de amenização das agruras, um quase eufemismo, ou seja, um tipo de
desdramatização da realidade.
Em seguida, em A chave dos Lusíadas, a narradora, num completo exercício do fluxo da
consciência, nos deixa transparecer o grande objetivo de contar a sua vida em um livro.
Evoca Machado de Assis em Dom Casmurro, nada mais que a tentativa de “atar as duas
pontas da vida”. A infância, o crescimento, o amor, a vida com Diego... o fim da vida... que
começou com uma simples dor no joelho. Agora, todos os ossos passam a doer. A doença
progredindo rapidamente... Aos 33 anos, tempo em que a doença fica mais forte, Flora
demonstrou a dor que realmente sentia.
Em Medo, a narradora disserta sobre o sentimento máximo de humanização. Demonstra,
aos poucos, a irreversibilidade da doença e a consciência da morte a aproximar-se. “Quem
sentiria falta de Flô?” Coitada da Flô”. Em seguida, como um Brás Cubas de saias, a
frustração de não ter deixado “nada”. Sempre fora assim, escrevia e escondia. Relia e
escondia ainda mais escondido com a amarga sensação de haver abortado. Tentara
poesia,conto, até um esboço de romance” p.162.
A partir desse fragmento sobre o seu nada literário, lembrou-se do caderno em que
escrevera seus primeiros versos, Desejo de poesia, e vivia guardando dentro da gaveta,
escondido durante anos como uma mãe que esconde o filho feio, o filho deformado, não por
não amá-lo, mas só para livrá-lo da zombaria dos outros (no caso, os leitores e críticos).
Nisso, vem uma “receita de poesia”. Coloca-se um pedaço de Fernando Pessoa...mistura-se
com umas linhas de Cecília Meireles e uma coisinha do I Juca Pirama, de Gonçalves Dias (
relacionemos com Ana Miranda) e agita-se, agita-se...E pronto! Eis uma Baudelaire
Tupiniquim. P.163.
263
Ao final do que estava “dentro da gente”, o leitor tem acesso ao que seria o livro que
Diego iria ler quando chegasse, às 9 horas. (Tradições da Província ou Histórias do meu avô)
inclusive com o nome dos capítulos (I - História da escola de medicina; II – Histórias de
briga; III – Histórias do consultório; IV – Outras histórias).
Sem poder usar mais o pó de pirlimpimpim, já é adulta, tem de ouvir os conselhos da
médica estrangeira No more sun! Como, se a paciente vivia na terra da luz, de sol todo dia,
até quando chovia?!
As crises se agravaram e Flora, nos dias domingueiros, ou nas idas à praia se contentava
em dar um mergulho, à tardinha, no mar morno, em noites de vento de agosto. O mar com
“águas escuras” ainda a assustava.
Lembrou-se que há tempos não ia ao cemitério... e quando foi, para visitar o túmulo do
filho morto, deparou-se com um capinzinho verde que saia dentre aos cantos da lápide. Teve
vontade de arrancar, mas a maciez do capim lembrou-lhe os fios macios do cabelo do filho e
desistiu. Nisso, retornou à infância ao aludir à história da menina dos cabelos de capim ao
repetir a cantiga da menina que fora enterrada viva por sua sorte madrasta (
Intertextualidade encontrada no romance A casa e no poema Negra Fulô, de Jorge de
Lima): “Capineiro de meu pai/mão me corte o cabelo/minha mãe me penteou/ minha
madrasta me enterrou/pelo figo da figueira/que o sabiá beliscou”p.169.
A narradora reflete sobre a importância da nova catedral, puro estilo gótico, o orgulho da
cidade, feita para resistir ao tempo. E ela, Flor, feita para murchar? Abate-se. A morte se
aproxima. Agora, graças a um outro narrador, outro lapso da memória, surge a história
contada há muito tempo sobre um coronel vingativo que não tolerava a petulância de
forasteiros que vinham ao seu sítio para botar os olhos em suas três lindas filhas. Uma vez, ele
fez um cristão beber tanta água que o homem quase morreu. Chegou dizendo que queria um
copo d‟água, só para ver as filhas do coronel. Nunca mais inventou que estava com sede para
ver ninguém. Homem muito educado o coronel. Pense num homem bom. “Não era capaz de
matar uma barata”, mas com ele era assim. P. 173
Em “a Flô na casa do sem jeito” o leitor tem a confirmação de que a narradora tem uma
doença muito grave. “Pobre Flô, morrendo todo dia sua morte sem glória, em solitárias
batalhas noturnas contra o impiedoso inimigo sem capa e sem espada, sem rosto, a manejar
invisíveis punhais (...) a lâmina certeira penetrando a carne desesperada e tocando os ossos
medrosos. P. 173
Flora lamenta a ausência do vaqueiro velho que lhe contava histórias e lhe chamava de
“santa”. Agora que ele não pode falar mais, quem fala é ela. As histórias ao menos ajudariam
a esquecer a dor que doía tanto... Nisso, um relato detalhado sobre a doença e a dor que lhe
impregnava o corpo, cortando-lhe a carne como um punhal atravessando as carnes e indo até
os ossos.
Em O fio da meada, num misto de Dom casmurro com Memórias póstumas uma
apropriação: Não tive filhos, não deixarei para ninguém e o legado da nossa miséria.
P.175 Vem uma analise e o dia sonhado, da obra vislumbrada, de heroína que pensou em ser.
Nada mais restava.
Noutro capitulo machadiano (Cantiga de esponsais) o medo volta a ser a grande marca.
Seguem as divagações, pois Frota diz que se sente como o velho sertanejo sem paciência, do
conto de Moreira Campos (O preso). Muitos outros autores são evocados nesse delírio
264
intertextual como Monteiro Lobato ( O sítio do pica-pau-amarelo), Machado de Assis (
Quincas Borba – O Humanitismo), Flaubert ( Madame Bovary) , Camilo Castelo Branco (
Amor de Perdição) etc.
O capítulo é dedicado especialmente ao marido, a quem a autora recomenda: “ Não me
procure mais aqui Diego, remexa na estante que foi minha vida. (...) Queime tudo que a
minha mão tiver escrito. Guarde apenas as linhas que a minha mãe de pietá inspirou. São
pedaços da Flora de vinte aos, mas ainda doem nesta tua Flora. Só essas linhas guardadas e
nada mais. “ p.177
Em seus últimos momentos, a narradora espigou-se e olhou detidamente o espelho.
Adotou o semblante nobre e desassombrado do velho bisavô. O espelho, de forma clariceana
(epifania), devolveu-lhe a imagem corajosa da mulher que a menina um dia sonhara ser.
Volta o delírio extremis literário como um cisne em seu último canto a evocar Dante, Lobato,
Açores de Azevedo, Alencar, João Cabral, Bandeira Vargas, Guimarães Rosa... Eram
seus últimos suspiros.
Exatamente às nove horas, Diego senta ao lado de Flora, a morte ritualizada pela esposa,
provavelmente desde o início, no preparar do quarto, na disposição das coisas, nos
comprimidos “exagerados”, a palavra dor... suicídio? Provavelmente. (Dados como a frase de
Getúlio, a idade simbólica de 33 anos são elementos muito fortes para que se pense em uma
overdose de remédios).
Atordoado, desanimado e cansado, Diego começa a ler as páginas floridas deixadas pela
esposa, o espelho de papel que, para atar as duas pontas da vida, quis morrer assim, “ num
dia assim” com tudo planejado, inclusive a hora em que ele chegaria. Com as páginas contra o
peito, Diego começa a ler o texto em que Flora “atava”com o fio da memória, a vida e o
tempo, numa circularidade graciosa comum a tudo quanto existe: “São três horas da tarde...”
ironizando o poema de Garcia Lorca, Son las cinco de la tarde” como no início. (FIM)
E como aquelas pessoas sentimentais, que se sensibilizam com o chororô nos filmes e
romances dramáticos, nos quais a heroína acaba morrendo, penalizada, a autora, de forma
não muito apropriada, escreve um segundo final, como se quisesse nos dizer: Minha gente,
não fiquem tristes não. Tudo que aconteceu aqui é só ficção. A Flora morreu, mas foi só
no papel. Voltem para a realidade, a vida continua. Depois eu escrevo outro livro. A
prova disso é que ela encerra com o maneirismo popular Entrou pela perna do pato/saiu ela
perna do pinto/ e o Senhor rei mandou dizer/que contasse mais cinco. (FIM finalmente).
Observações!
1. Visão e protagonismo femininos
2. Memorialismo
3. Proustianismo
4. Fatos da História usados para dar verossimilhança
5. Valorização da idéia de Infância
6. Psicologismo
7. Valorização de traços culturais (tradicionalismo)
8. Francesismos (Belle Epoque)
9. Variação lingüística (inglês, francês, italiano, alemão.)
265
10. Inserts cinematográficos, aspecto fotográfico.
11. Polifonia inconstante (narradores cambiantes)
12. Linguagem coloquial
13. Capítulos relâmpagos à 1922
14. Intertextualidade (Alencar, Machado de Assis, Clarice, Mreira Campos, Victor Hugo,
Guimarães Rosa etc.)
15. Mostra uma Fortaleza mais nobre e seus muitos costumes (tradicionalismo).
16. Recurso da colagem ou apropriação.
45 - Dias e Dias – Ana Miranda
Sugerindo imediatamente uma relação temporal, o que temos, na verdade, é a intenção
de retratar o conteúdo do livro: a vida do poeta maranhense Gonçalves Dias e o tempo de
espera da jovem que o ama. Outra coisa importante é que o título nos permite achar que
existem dois Gonçalves, o poeta Gonçalves Dias e o homem Antônio G. Dias, humanizado
o tempo todo pelo olhar apaixonado e tímido de Feliciana.
Autora e obra
Ana Miranda nasceu em Fortaleza, 1951, e ainda criança mudou-se para Brasília e em
seguida para o Rio de Janeiro (1959-1969). Em 1978, iniciou na vida literária com um livro
de poesia, Anjos e Demônios. Seus primeiros livros são do gênero lírico. Escreveu em
1989/1990 o romance Boca do Inferno, uma biografia literária de Gregório de Matos,
ganhando o Prêmio Jabuti de autor revelação. Publicou em seguida O retrato do Rei (1991),
ambientado na primeira metade do século XVIII, e A última quimera (1995), em torno de
Augusto dos Anjos e da vida carioca no começo do século XX, e Sem pecado (1993),
romance de atualidade. Muitos de seus romances são de enlevo histórico, como Boca do
Inferno e Desmundo, uma tendência dos últimos anos na América Latina. Outros são
puramente ficcionais como Sem pecado e Caderno de sonhos (2000). Em 1998, escreveu Que
seja em segredo, um livro de poemas freiráticos. Em 1999, editou seu primeiro livro de
contos: Noturnos. Em 2003, seu livro Dias e Dias , sobre o poeta Gonçalves Dias e seu
tempo, fez com que fosse novamente premiada. Escreve roteiros para televisão e cinema,
ensaios e resenhas críticas para jornais do eixo Rio-São Paulo, além de realizar palestras em
universidades e outras instituições culturais. Atualmente, mora no Ceará, conseguindo fazer o
que José de Alencar não fez: voltar para a terra natal depois de muito sucesso. Hoje, mora em
Aquiraz, bem próximo ao mar, apreciando todos os dias as jangadas e as palhas de carnaúba,
onde cantava a jandaia. Obras: Anjos e demônios (poesia) – 1978; Boca do Inferno (1990);
Sem pecado (1993); A última quimera (1995) ; Desmundo(1996); Amrik (1997); Que seja em
segredo(1998); Clarice(1999); Noturnos (1999) – contos; Caderno de sonhos (2000); Dias e
Dias (2002).
O momento
266
A idéia de "pós-modernismo" surgiu pela primeira vez no mundo hispânico, na década de 1930,
uma geração antes de seu aparecimento na Inglaterra ou nos EUA. Perry Anderson, conhecido pelos
seus estudos dos fenômenos culturais e políticos contemporâneos, em "As Origens da PósModernidade" (1999), conta que foi um amigo de Unamuno e Ortega, Frederico de Onís, que
imprimiu o termo pela primeira vez, embora descrevendo um refluxo conservador dentro do próprio
modernismo. Mas coube ao filósofo francês Jean-François Lyotard, com a publicação "A Condição
Pós-Moderna" (1979), a expansão do uso do conceito. Em sua origem, pós-modernismo significava a
perda da historicidade e o fim da "grande narrativa" - o que no campo estético significou o fim de uma
tradição de mudança e ruptura, o apagamento da fronteira entre alta cultura e da cultura de massa e a
prática da apropriação e da citação de obras do passado. A densa obra de Frederic Jameson "PósModernismo" (1991), enumera como ícones desse movimento: na arte, Andy Warhol e a pop art, o
fotorrealismo e o neo-expressionismo; na música, John Cage, mas também a síntese dos estilos
clássico e "popular" que se vê em compositores como Philip Glass e Terry Riley e, também, o punk
rock e a new wave"; no cinema, Godard; na literatura, William Burroughs, Thomas Pynchon e
Ishmael Reed, de um lado, "e o nouveau roman francês e sua sucessão", do outro. Na arquitetura,
entretanto, seus problemas teóricos são mais consistentemente articulados e as modificações da
produção estética são mais visíveis. Ana Miranda é também uma autora Pós-modernista.
Análise ( Em parceria com o Prof. Lucineudo Machado)
I - A Volúpia da Saudade
Passando-se o romance, principalmente em Caxias, no Maranhão, o enredo de Dias
& Dias tem início com a protagonista, em São Luís, no porto, esperando pelo navio que
supostamente traria o seu grande amor. Nas mãos, um poema, os versos que Antonio
escrevera para seus olhos, em 1836, quando ela tinha apenas 12 anos e ele 13 anos, uma
diferença insignificante. Feliciana, protagonista e narradora, nos revela que a bela Maria
Luíza, sua amiga e esposa de Alexandre Teófilo (a quem Antonio sempre escreve cartas
contando o que se passa em sua vida), acredita não ser para Feliciana o poema, e lhe diz isso,
já que ela nem ao menos tinha os olhos verdes. Antônio, desde a mais tenra idade, devotavase à poesia. Filho bastardo de um português, vivia com o pai, João Manuel, e a madrasta, D.
Adelaide, na rua do Cisco, uma das ruas mais pobres de Caxias. Sua verdadeira mãe era uma
negra com quem se envolveu o pai de Antonio. Na cidade, os costumes dos índios criavam
mitos na mente das crianças e dos adultos. Feliciana, que não imaginava o que realmente
signifcavam os índios para o Brasil, passou a admirá-los depois de ler os poemas de Antônio.
Um dos mais importantes era o “I – Juca – Pirama”.
João Manuel, pai de Antônio, oriundo da região de Trás-os-Montes, veio para o
Brasil para trabalhar como tendeiro, dono de comércio, sendo muito bem sucedido em sua
profissão para a relaidade da época. Foi na venda de seu João Manuel que Feliciana teve os
primeiros e talvez únicos contatos com seu amado, que cuidava da contabilidade da
mercearia. Antônio nasceu em um momento conturbado da história do Brasil, momento em
que os portugueses já haviam se apossado efetivamente do nosso território brasileiro. Bem
antes de Antonio nascer, um tempo de miséria assolou as terras do Maranhão. Era um tempo
de revolução que, abafada por portugueses que adoravam D. João VI, teimavam em não
267
aceitar o julgo do Império. Apesar de toda a pressão, a independência veio de qualquer jeito,
em 1822. A situação era tão ruim que, na época, na cidade de Caxias, quem fosse a favor da
Independência era imediatmente preso e deportado, mandado par ao Exílio (Portugal ou As
ilhas)..
O pai de Feliciana odiava a um coronel de nome Fidié, militar inflexivel que
combatia os revoltosos, no caso, o povo do Maranhão, do Ceará e do Piauí. Em 1° de agosto
de 1823, os racionalistas invadiram a vila, ocasião em que Fidié poderia ter dado acabado
com a família de Antonio, antes mesmo de ele nascer, mas não o fez. O pai do poeta era fiel
ao referido coronel, era partidário de D. João, motivo da intriga entre as famílias. Na festa de
comemoração pela histórica invasão, o pai de Feliciana conhece a mãe da narradora, com
quem se casaria tempos depois. Feliciana lembra que, quando aconteceu a invasão, seu João
Manuel foi-se esconder em um sítio com a mãe de Antonio, já grávida, que acabou dando o
filho à luz em uma pequena casa de taipa. Em seguida, João Manuel foi para Portugal,
retornando dois anos depois para estabelecer-se como comerciante em Caxias. Tempos
depois, por exigências sociais, separa-se da amásia negra, (que foi embora e nunca mais deu
notícia) para casar com D. Adelaide, que cuidou logo de ter filhos legítimos com ele. Daquele
momento em diante, Antônio passou a ser um menino retraído, discriminado pela madrasta e
sozinho. Entregou-se totalmente à Poesia, algo que seria a sua redenção.
Antônio, muito afeito aos livros, recebeu de seu pai uma educação refinada, algo que
conquistou dia após dia no trabalho minucioso que fazia e no trato com os papéis. João
Manuel percebeu que ali havia um homem de letras. Primeiramente, colocou-o para estudar
com o professor Abreu, depois com o caixeiro da loja. Quando criança, Antonio foi
relativamente feliz, lembra a narradora. Sempre com o hábito de ler, enfrentava o preconceito
de D. Adelaide. O pai, compreendendo o espírito do filho, tirou-o do trabalho pesado e
mandou-o para estudar com o professor Sabino, que ficou adimirado com o potencial do
menino, um menino que se divertia com os livros, sempre a acompanhá-lo por dias e dias.
Não ligando muito para o que pensava Maria Luíza, sua grande conselheira e
amiga, Feliciana acredita que aquele lindo poema (Olhos Verdes) fora mesmo feito para os
seus olhos, embora os seus olhos parecessem mais com a cor amarelada das águas barrentas
dos rios do Maranhão.
II - Um Sabiá na Gaiola
Feliciana sonhava em aprender as letras. Com a ajuda de sua tia-madrasta,
Natalícia, que na verdade era amante de seu pai, ela conseguiu relaizar. Outro grande desejo
desejo da jovem era sair de casa, ao menos viajar, sair pelo mundo. Desde a morte de sua
mãe, vivia trancada em casa, como um sabiá na gaiola. A mãe morreu quando ela ainda era
muito jovem. Tinha todo o carinho do pai, mas a presença disciplinadora de Natalícia foi
fundamental em sua criação. Homem caseiro, o pai de Feliciana era afeito à política e a caçar
sabiás. Esse passatempo o aproximou do professor Adelino, que passa a acompanhá-lo na
caça dos pássaros aos domingos. Aos poucos, Feliciana percebe os galanteios do professor,
mas o ignora abertamente. Sabia ela que ele até que até poderia ser um bom homem para
casar, mas não com ela. Então, que fosse com uma de suas inúmeras primas, cujo único
objetivo na vida era arranjar um marido. Com ela, de jeito nenhum.
268
Um dia, o professor, que não era muito de festas, pois vivia da casa de Feliciana para
a sua, lendo livros e sonhando com sua amada, resolveu pedir ao pai da menina permissão
para namorá-la. O professor foi prontamente atendido. Devido às suas qualidades de homem
correto e por considerar o pai que a idade da filha já estava um pouco avançada para casar,
resolveu, mesmo que ela não demonstrasse interesse, tratar do casamento da filha. Deram-se
os preparativos: Natalícia cozinhava enquanto D. Formosa costurava detidamente o vestido
da noiva.
No dia da festa, o dia do noivado, louças novas foram retiradas dos armários, a casa
foi arrumada. Tudo pronto e uma noiva trancada em seu quarto com seus dilemas. Recusou-se
a descer para o jantar. Cedendo aos pedidos de Natalícia, Feliciana cumprimentou o noivo
com olhos baixos e revelou-se descontente com o álbum que ganhou de presente do professor,
com dedicatória em latim, que ela preferia ter sido em Português. Irritado com a desfeita da
filha, o pai de Feliciana desfez na hora o casório, mandando Feliciana de volta ao quarto,
dando-lhe, como castigo, dois bolos de palmatória em cada mão. Em seguida, aconselhou ao
professor que fosse embora, que fosse em busca de uma noiva que o merecesse de verdade.
III - Ficções do Ideal
Nesse ínterim, Antonio viajou para Coimbra. Foi completar seus estudos. Feliciana
viu o poeta passar na rua e ele não a olhou nem de relance. No coração da menina, somente
dor. Quando viu seu amor partir, talvez para nunca mais voltar, a menina correu para dentro
de casa a vasculhar seus lençóis e fronhas em busca dos versos no papel de embrulho. Logo a
tristeza da moça melhorou. Mais alguns dias e dias, e a vida de Feliciana quase voltou ao
normal, pois, por dentro, ela ainda estava ferida. Considerando-se não tão feia, ela não
compreendia por que Antônio nunca olhara para ela. Em poucos dias, uma grande surpresa.
Morre o sr. João Manuel. Chamada por Natalícia, a doce menina pôde ver seu amado voltar
pela mesma rua que partiu. O motivo do regresso: seu pai morrera em São Luís. A notícia da
morte e o velório chegaram à dona Adelaide em um silêncio melancólico, mas sem lágrimas.
Nas ruas de Caxias o assunto era o mesmo. No velório, os convidados, entre eles Feliciana.
Dona Adelaide, a viúva vestida de preto, não parecia nem um pouco abatida. O padre e o
sacristão vieram benzer o corpo. Antônio tinha uns 15 anos.
Depois do velório, houve movimento na porta de dona Adelaide. Era Ferreiro
Bernardo, proprietário da casa onde morava a família de Antonio. Em em maio de 1938,
Antônio partiu de novo para São Luis na companhia de Bernardo. De lá, o poeta partiria para
Coimbra, onde escreve seu primeiro poema e onde passa a morar com os amigos Alexandre
Teófilo, João Duarte Lisboa e Joaquim Pereira Lopa.
Em Caxias, a narrativa se volta para Feliciana, que está no quarto de sua falecida mãe
brincando com caixas de botões e sonhando vestida de noiva, pronta para se casar com seu
amado poeta. No quarto, a menina encontra uma passagem que dá para o telhado da casa. Lá,
a olhar para as nuvens, vestida de noiva, a menina sonhadora desejava que sua vida fosse
como as nuvens, levada ao sopro do vento.
IV - A Balaiada
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Outra grande revolução surge em Caxias, nos anos de 1938, na vila da Manga. Tratase de uma rebelião popular chefiada pelo vaqueiro Cara Preta e seus companheiros. Tudo
começou quando Raimundo Gomes adentrou a cidade e soltou seu irmão que inocentemente
estava preso. Na ocasião, todos os outros presos escaparam e pelo sertão inteiro deflagraram
esta rebelião. Os chefes da revolução levaram os pobres da região a se rebelarem contra os
fazendeiros e portugueses. O intuito dos rebelados era a instauração da República. O pai de
Feliciana ajudou os pobres da Balaiada, que instituíram um governo provisório para o Brasil.
Para acabar com a revolução, vieram homens na chefia do brigadeiro Falcão.
Todos os rebeldes da Balaiada foram mortos. Dona Adelaide teve de fechar a casa
comercial devido ao clima de guerra ali instalado. Quando seu dinheiro acabou, a madrasta de
Antônio o mandou parar de estudar, pois “não ia prejudicar os filhos do casal para custear os
estudos de um bastardo”, o trabalho era a única saída. Foi então que Alexandre Teófilo
ofereceu moradia ao jovem poeta, que aceitava as dores da vida, já que seu sonho era
continuar estudando. Enquanto esteve a escrever a Alexandre Teófilo, Antônio relatava-lhe
suas amarguras e paixões da vida, como a que sentira ao ver a cantora de ópera Violeta
Gazzaroli. Retornando a Caxias em 1845, Antonio já era outro homem, mas Feliciana via em
seu amado os mesmo modos de antes, e por ele seu amor era o mesmo.
Antônio voltou à Caxias, no fim do mundo, para morar com os irmãos e dona
Adelaide que o humilhava constantemente. Para Feliciana, o regresso do poeta era sinônimo
de esperança. Certo dia, a menina foi ao teatro para ver Antônio recitar um de seus poemas.
Nesse instante aconteceu o primeiro encontro dos dois frente a frente. O impacto foi enorme
no coração da jovem sonhadora ( esse encontro é o máximo do platonismo amoroso).
V - A Mimosa Leviana
Em 1845, Antonio conheceu Ana Amélia, por quem se apaixonou. Nessa época,
crescia em Feliciana a curiosidade de saber o porquê de seu amado ter se apaixonado por tão
intrigante mulher. O que teria ela de tão especial a ponto de merecer aquele amor? Escreveu a
Maria Luíza pedindo-lhe que mandasse um retrato de Ana Amélia. A espera demorou dias,
mas enfim a fotografia chegou. A jovem se surpreendeu com a imagem que viu: Ana Amélia
vestia preto e estava pálida. Parecia ser uma mulher fina e educada. Vendo a beleza da jovem
na fotografia, agora Feliciana estendia o “poema fugitivo” escrito por Antônio.
Feliciana, que agora se olha nos inúmeros espelhos de sua casa, diz se odiar.
Capítulos depois, a narradora nos fala dos meses felizes que Antonio viveu na casa de seu
amigo Alexandre. O poeta retornaria ao Brasil, agora para o Rio de Janeiro. Ali chegando em
1846, hospedou-se em vários hotéis, conheceu mulheres diversas. Ele sempre escrevia cartas a
Alexandre. Em uma delas, confessa ao amigo suas inúmeras paixões de baile. Neste tempo
(Antônio já tinha 23 anos), professor Adelino chega à casa de Feliciana com um livro de
poesias intitulado Primeiro Cantos, de Antonio, agora conhecido com Gonçalves, Antonio
Gonçalves Dias. O primeiro poema do livro, Canção do Exílio, era a infância viva daquele
jovem.
Sabendo da notícia das inúmeras mulheres que o poeta tinha no Rio, Feliciana
decidiu ir ao encontro de Antonio, no Norte, idéia reprovada por seu pai. Agora famoso e
repleto de amizades influentes, no Rio de Janeiro, o poeta se torna uma autoridade política e
270
social. Quando esteve no Maranhão, foi direto para São Luis rever Ana Amélia, a quem ele
não via há cinco longos anos. A mãe da moça, D. Lourença Francisca, não via com bons
olhos os interesses do poeta que, enigmaticamente, lhe escreve cartas como que a dispensar o
compromisso com sua filha. Antonio chegou a pedir a Ana Amélia, em uma carta, que o
esquecesse. A moça ficou horrivelmente abalada.
Feliciana acredita que Antônio desistiu de Ana Amélia por respeito ao amigo
Alexandre Teófilo, primo da moça. Na verdade, o poeta esperava mesmo que Amélia o
procurasse para voltar, o que não aconteceu. Enquanto isso, Feliciana passou a viver num
mundo de fantasias, vendo-se já casada ao lado de Antonio, vivendo os dois no Ceará, para
onde, agora, ela planejava fugir, tudo em busca de seu imenso amor.
VI - Camelos no Ceará
O pai de Feliciana detestou a idéia da filha de viajar para o Ceará, jamais lhe
permitiria viajar sozinha. A menina apaixonada decidiu fugir e contou com a ajuda de
Natalícia, sua tia. Compradas as passagens, as duas viajam rumo à Fortaleza. Somente
professor Adelino estava ciente da fuga. A viagem foi longa. Durante o trajeto, Feliciana
passa a entender “o sentimento de adeus” de que Antônio tanta fala em suas poesias. É o
gosto de liberdade, o desejo de que o destino chegue logo, tudo isso velado com a descoberta
de paisagens, frutas e bichos jamais vistos antes. À noite, as duas se fartam em um
banquete oferecido pelo vigário de uma cidadezinha. Feliciana nunca tinha visto o mar.
Agora, montadas a cavalo, chegam as duas a São Luis, onde se hospedaram na casa de tios.
Depois de visitar Maria Luíza e de alguns dias de descanso, partiram novamente e, no dia 11
de maio daquele ano, chegaram ao porto do Ceará às duas horas da tarde. Foram se hospedar
na casa dos avós de Feliciana, que as receberam com uma triste notícia: Antonio desde março
estava no Amazonas, toda aquela viagem restara inutil..
Na verdade, ninguém sabia o paradeiro do poeta. O avô de Feliciana a levou até a
Escola Politécnica, onde um professor de Antonio revelou o paradeiro do artista: a Bahia. O
poeta rumou para lá depois que, em 1859, quiseram ridicularizá-lo em Pacatuba e Baturité.
Todos zombavam do poeta devido à história de “camelos no Ceará”. Foi então viver na Bahia,
mas tinha pretensão de seguir para o Rio de Janeiro. Casado ainda não estava, garantiu o
professor. No outro dia, o pai de Feliciana, furioso, veio buscar as suas mulheres. Na viagem
de volta, Feliciana já era outra mulher, mais experiente. Antônio, já no Rio de Janeiro,
publica os Últimos Contos, poemas onde pulsavam a memória e a infância do autor, que
desejava ver seus textos eternizados.
VII - O irracional sempre vence.
Em um baile, Antonio avista entre os rostos femininos o de uma mulher pálida e linda.
Era a mulher que futuramente levaria o poeta ao altar. Trata-se de Olímpia Coriolana, filha
de um conceituado médico da capital, esta que fez de tudo para conquistar o amor de Antonio,
que inicialmente não retribuiu as intenções. Mesmo sofrendo de tuberculose, Olímpia
escondeu sua doença de Antonio por muito tempo. Não agüentando mais viver de casa em
casa, não resistiu ao assédio da mulher e com ela se casou. Assim que soube da união de
271
Antônio, Amélia adoeceu de tristeza, mas logo se recuperou e casou-se também com o
primeiro que apareceu. Mas o marido de Amélia faliu e foi com ela morar em Portugal.
Aos poucos, Olímpia começa a mostrar sua verdadeira natureza. Passou a fazer-se de
vítima de Antonio que, segundo ela, traia sua confiança, quando na verdade era o contrário. O
poeta, por se deitar com Olímpia sem nenhum resguardo, também contraiu o mal que
acometia aquela mulher. Devido a tantos tormentos e mentiras, ele desejava morrer. Chegou
a viajar com a esposa e toda sua família para a Europa, (tudo às suas custas) em 1854.
Olímpia deu à luz a filha que esperava, Joana, que nasceu com muitos defeitos, o que piorou
ainda mais a vida de Antônio. De volta a Lisboa, Antonio encontra-se com Amélia, encontro
que reacendeu no poeta, agora com 32 anos, o amor e o desejo de escrever. Agora, ele
percebia o quanto fora louco em não querer casar com a mulher que tanto amou. Amélia, que
nunca foi feliz com seu marido, jamais perdoou ao poeta, vivendo sempre com o peito cheio
de mágoa.
Aos poucos, Feliciana reflete sobre o fato de toda sua vida ter sido dedicada a
Antonio. Perguntava-se se não seria hora de desistir e casar-se com Adelino. No fundo de
seus sentimentos, a jovem prefere que seu amado viva a se envolver com várias mulheres a se
apaixonar por uma só.
VIII - Anjo de Asas Cortadas
Antônio adoece, e sua desgraça, a doença, chega ao Brasil. Quando embarcou no
Rio de Janeiro, em 1862, para voltar ao Maranhão, acabou ficando no Recife. Antonio nunca
teve boa saúde, pois nunca largou o vício ao tabaco, dentre tantos outros que tinha. Ao
contrário de seu amado, Feliciana gozava sempre de boa saúde, salvo em casos de pequenas
doenças. Mas agora ela se perguntava: para que tão boa saúde, se seu maior bem ela não
tinha? De volta ao Brasil, torna-se deprimente o estado de saúde de Antonio, que viaja o
mundo em busca de cura para seus males aparentemente incuráveis. É um momento de muita
dor para a narradora, que acompanha o trajeto da morte de seu eterno amor através dos relatos
de Maria Luiza.
Estava o poeta em estado de miséria. Queria voltar para a Europa. Ele embarca em
um outro navio. Quando o barco chegou a Marselha, um passageiro havia falecido a bordo.
Em Paris, conclui-se que o morto era Antonio, e a notícia logo chegou a Recife. Todo o país
chorava a morte do jovem poeta romântico. Por todo o Brasil, muitas eram as homenagens ao
escritor. Feliciana, ao saber da notícia, desmaiou. Depois chorou copiosamente pedindo para
que a notícia da morte não fosse verdadeira. Queria ela escrever para homenagear seu amor,
mas ela só chorava. Tomada pela dor, chegava Feliciana a ver a imagem do poeta a passear
pela rua.
Dias e dias depois, Adelino chega à casa de Feliciana com a notícia de que Antônio
estava morto, “como um pinto na casca”. No papel que o professor trazia havia uma carta do
poeta falando de sua própria morte. Feliciana revela seu desejo de ter enviado cartas a seu
amado, muitas que ela até chegou a escrever, todas rasgadas e queimadas. Apenas uma
chegou a ser destino, por um engano.
Maria Luíza, em visita à terra de Feliciana, compartilha com a amiga a última carta
de Antônio a Alexandre. No texto, o poeta dava notícias de que não queria morrer em Paris.
272
Olímpia, durante muito tempo, foi vista entrando mais de uma vez na casa de um homem.
Estava acabada aquela união que se suportava por um fio. Naquela noite, Maria Luiza falou a
Feliciana do amor carnal. Estranhamente, numa mudança repentina, Feliciana decidiu que
experimentaria esse amor com o professor Adelino. E assim o fez. Foi à casa do professor e
pediu para que ele lhe mostrasse o amor carnal. Ele ainda relutou, mas diant da insitência da
jovem... não havia muito o que fazer.
―Vim conhecer o amor carnal, e ele disse que não podia, só se casasse comigo, e eu disse: Se
não fores tu, será outro. Ele estremeceu, levou-me para o quarto segurando minha mão com
sua mão quente, deitou-me na cama, ficou nu, levantou a minha saia, deitou em cima de mim,
beijou-me e sem dizer nehuma palavra mostrou-me o que era o amor carnal‖ p.228
IX - Uma Tempestade no Horizonte
Feliciana declama incessantemente os versos da Canção do Exílio. Agora ela tem um
sabiá que é só dela, o nome dele é Agapito. É o dia 3 de novembro e faz calor no cais onde
ela está a esperar por Antonio. Vários barcos estão ali. Ela observa a passagem feita com as
velas no mar.
Feliciana se sente naufragada em aflição. Diversas embarcações chegam, mas
nenhuma traz seu o amado poeta. Um menino acende o lampião no poste, toca o sino da
igreja. A pobre menina sente um arrepio no corpo. É noite. O cais está completamente
deserto. Chove. O coração de Feliciana bate como nunca. Ela se lembra de sua casa, de seus
parentes.
X - Epílogo
No dia seguinte sabe-se que a barca francesa Ville de Boulogne que trazia o poeta
Antonio Gonçalves Dias naufragou. Abandonado pela tripulação como um moribundo, o
corpo do poeta nunca foi encontrado, provavelmente tenha sido devorado por tubarões.
Muitas eram as versões sobre o fim de Antonio, mas ninguém sabia da verdade.
Restaram no porão do navio três malas do poeta e uma pequena caixa com charutos,
remédios, peças em ouro, um álbum, um dicionário de língua tupi e algumas fotos do escritor.
Ainda foram recuperados a sua tradução do livro A Noiva de Messina, do escritor romântico
alenão Friedrich Shiller, cadernos, livros e papéis avulsos. Dentre estes objetos... a carta
escrita por Feliciana.
Alpiste
Canção do Exílio
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
273
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossa, várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Comentário 1
Poema mais reproduzido da literatura brasileira. Representa o máximo do nacionalismo
romântico. Foi tão importante que um fragmento seu ajuda a compor o hino nacional
brasileiro. Em contrapartida, é o poema mais ironizado do Modernismo de 22.
Olhos Verdes
Eles verdes são:
E têm por usança
Na cor esperança
E nas obras não.
(Camões, Rimas).
São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
274
Uns olhos cor de esperança
Uns olhos por que morri;
Que, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais branda e mais forte.
Diz uma - vida, outra - morte;
Uma - loucura, outra - amor.
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflamam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração;
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
São uns olhos verdes, verdes,
Que pode também brilhar;
Não são de um verde embaçado,
Mas verdes da cor do padro,
Mas verdes da cor do mar.
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como se lê num espelho
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós, ó meus amigos
Se vos perguntam por mi,
275
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos da cor da esperança,
De uns olhos verdes que vi!
Que, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar;
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos,
Que, ai de mi!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!
Comentário 2
Poema feito a partir de uma glosa de Camões, indica a dor do homem depois que conheceu
uma bela mulher de olhos verdes. O verde, também nesse caso, não indica coisa boa, mas
sofrimento. Na ficção, foi escrito em 1836, mas na realidade a história não foi bem assim.
Olhos Verdes
Se são de esperança
Por que me afligem?
Se são de alegria
Por que eu choro?
Se são de sonho
Por que o medo?
Se são de vida
Por que me matam?
Vicente Jr.
46 - Dos valores do inimigo – Pedro Rodrigues Salgueiro
Esse título, um dos mais complexos, ou confusos da lista, nos sugere algo intrigante: que
mesmo os inimigos também têm o seu valor. Lembramo-nos por isso de eventos clássicos do
tipo como a bondade de Aquiles devolvendo o corpo de Heitor, filho de Príamo, na tomada
de Lirnesso, passagem da Ilíada, ou mesmo reconhecemos que determinados inimigos,
276
determinados vilões, dão um certo requinte a muitas narrativas. Muito pelo contrário seria ver,
num tribunal, um confronto entre o maior jurista do Ceará ( não digo o nome dele porque
ficaria mais gabola do que o que já é ) e um aluno recém formado em Direito. O pleito seria
sem graça. O inimigo não teria muito valor. Mas imagine, por exemplo, de um lado esse
grande jurista, e do outro, já cassado, o Dr. Roberto Jefferson... Seria uma verdadeira aula!
Uma briga que todos gostariam de ver, pois o inimigo, nessa hora, teria muito valor e não
poderia ser subestimado. Daí, chegamos a pensar que até mesmo o diabo, que tem papel
importante no drama escrito por Deus, também deve ter o seu valor nesse “teatro” do mundo.
O que é conto?
Tradicionalmente, o conto é marcado pela brevidade, por apresentar um certo
condensamento, ou seja, um evento único a ser narrado e até mesmo um número pequeno
de personagens em uma história que se desenvolve em espaço reduzido e em tempo exíguo.
Por conta disso, podemos entender por qual motivo, textos como O alienista, de Machado de
Assis, e A hora da estrela, de Clarice Lispector, ainda hoje geram polêmicas quanto ao seu
enquadramento. O Alienista, hoje, é um conto grande. E A hora da estrela é um romance
pequeno, quando o certo era chamá-los de novelas.
O maior problema mesmo está em diferenciar o conto da crônica, pois muitas de suas
características são iguais. Os dois pertencem à prosa, os dois são obras de ficção, os dois
empregam a conotação, os dois são marcados pela brevidade e também podem apresentar
crítica social ou existencial. Classicamente, devemos diferenciar da seguinte maneira: O
conto apresenta situações menos verossímeis que a crônica, pois é a crônica que se vale de
situações do nosso cotidiano, do nosso dia-a-dia. Em suma, quando lemos uma crônica de
Airton Monte, por ter nascido do nosso cotidiano, dizemos conosco: “Isso acontece”. Quando
lemos um conto de Pedro Salgueiro, por mais extraordinária que seja a situação, dizemos
“Isso pode acontecer”.
O autor e sua obra
Dada a dificuldade de material sobre o assunto, pois o Brasil tem mania de estudar a vida
de um autor apenas quando ele morre, graças à fibra ótica, podemos apresentá-lo. Pedro
Rodrigues Salgueiro nasceu em Tamboril, interior do Ceará, lá para as bandas de Crateús,
em 15 de novembro de 1964, um período bem conturbado para o nosso jovem país, talvez por
isso esteja sempre de olho no sobrenatural, mais uma fuga da realidade. Cursou várias
faculdades, dentre elas História e Pedagogia. Seu livro Brincar com Armas (2000) é um dos
mais famosos. Possui muitos contos publicados em suplementos literários, revistas e
antologias e, por isso, vem se tornando um autor bastante premiado. Autor de nossa
Literatura Contemporânea, tem como mestres Gabriel Garcia Marques ( Cem anos de
solidão ), Edgard Allan Poe ( Os crimes da rua Morgue ), Lygia Fagundes Telles (
Mistérios ) e Moreira Campos ( As corujas ), para começar. Assumidamente, gosta de
mistérios, do inexplicável, e de coisas fantásticas, o outro lado da vida, se existe, é algo que
muito o atrai. Quanto ao que faz, costuma dizer que “Não escolhemos um gênero, o gênero é
que nos escolhe”. Assim, Pedro Salgueiro foi escolhido pelo conto, um tipo de narrativa
277
breve que exige tanto talento quanto um romance. Obras: O peso do morto; Brincar com
armas; O espantalho e Dos valores do inimigo.
** Breve esclarecimento sobre a Literatura de teor Sobrenatural.
Denomina-se Literatura do Sobrenatural aquele tipo de texto que trata principalmente
de eventos insólitos, de coisas extraordinárias, incomuns em nosso dia-a-dia e que vêm
exatamente, no dizer de Tzvetan Todorov, subverter a nossa legalidade cotidiana. Divide-se
em subgêneros,dos quais destacamos:
Maravilhoso – Texto de teor ameno, apresenta o sobrenatural distanciado do medo, do que é
terrificante. Ex. Os feitos dos deuses da mitologia grega, os contos de fada e até os milagres
de Cristo e dos santos. Atualmente, podemos incluir Harry Potter e O senhor dos anéis.
Fantástico – Texto no qual eventos extraordinários parecem acontecer à nossa frente, mas
não temos a certeza de sua efetivação. Tem como base, segundo Todorov, a hesitação da
personagem e do leitor diante do fato extraordinário. Ex. A Vênus de Ille e O diabo
paixonado.
Estranho – Texto que apresenta o sobrenatural, inicialmente terrificante,mas que, ao final,
será elucidado, será explicado, acabando com o horror visto em toda a história. O maior
nome do gênero é o norte americano Edgar Allan Poe. Ex. Os crimes da rua Morgue e A
queda da casa dos Usher. Outro bom exemplo, por mais trivial que pareça, são as aventuras
do Scooby Doo, pois todo o medo que se instala no inicio é ironizado ao final com o
desmascaramento do fantasma.
Mistério – Texto que nasce do psicologismo para desaguar em uma não elucidação do evento,
ou seja, ao final, o motivo maior da narrativa continuará sendo uma grande interrogação. O
maior nome no Brasil é Lygia Fagundes Telles. Ex. Venha ver o pôr do sol e As formigas.
Policial (suspense) – Texto muito ligado à narrativa de Mistério, mas que guarda uma
relação com o gênero Estranho, pois ao ser iniciado com um crime, a elucidação dos fatos é o
seu maior objetivo. Edgard Allan Poe, por conta de sua personagem M. Dupan, é o precursor,
mas foi Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, quem mais desenvolveu o
gênero, popularizado também por Agatha Cristhie e Sidney Sheldon. Ex. O cão dos
Basquervilles e Um estudo em vermelho.
Ficção Científica – Texto que trata de situações extraordinárias, cidades futuristas e
inventos que vão além da imaginação e da realidade do ser humano de hoje. O precursor foi
Júlio Verne, com Viagem ao centro da terra e Vinte mil léguas submarinas. Os norte
americanos são os que mais desenvolvem esse tipo de texto. Um dos seus melhores nomes é
H.G Wells, com A ilha do Dr. Moureau.
Parte I - Acontecimentos
1. A Fotografia
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Este conto apresenta as lembranças de um homem que amou exageradamente uma mulher
chamada Laura. Ela o abandonou para ficar com outro. Três meses depois de ir embora,
voltou sozinha e ninguém nunca soube o porquê. A mulher morreu anos depois e a única
pista ficou sendo uma fotografia estranha do noivo. Mistério.
2. Destino
Muito parecido com A Fotografia, temos a história de uma jovem que enfrenta a família
para ficar com um marinheiro. A família cede e o casamento acontece. Viajam para a luade-mel, numa cidade próxima. Dois dias depois, a jovem regressa sozinha, em silêncio,
para nunca mais. Ninguém nunca soube o que houve entre os dois naqueles dois dias. O
que restou foi uma senhora de cabelos brancos que nunca mais saiu de casa e a história de
um marinheiro desaparecido. Mistério.
3. Esquecimento
Texto de inspiração psicótica. Temos a história de um estranho que, de forma alguma,
sabe onde colocou seu relógio. A coisa piora pois ele quer saber as horas, mas só aceita se
vierem daquele maldito relógio desaparecido. Quase enlouquecendo, desiste. No momento
de calçar os sapatos, sentindo algo metálico e frio nos dedos, encontra, sem querer, o que
queria. Uma estranha sensação se apodera de seu corpo. Psicológico.
4. Olho de cão
Homenagem ao cineasta Eusélio Oliveira, temos um texto que apresenta a perspectiva de
uma câmera, um ser que observa o momento em que criaturas noturnas colam cartazes nas
paredes do Benfica. Ao amanhecer, as pessoas tam,bem estranhas lêem os cartazes e têm
impressões diferentes. Uns choram, outros sorriem. Tudo volta ao normal. Mistério.
5. Rasga-mortalha
Homenagem a Moreira Campos ( talvez pelo conto As corujas ), o texto trata de uma
gente estranha e misteriosa que sempre se reúne em um casarão sombrio. Ninguém sabe o
que fazem. A curiosidade dos vizinhos continuará sempre aguçada. Mistério.
6. A passagem do dragão
Homenagem a Virgílio Maia ( não sei por qual motivo, mas o gosto de Virgílio Maia pela
heráldica já nos dá uma idéia ). O que temos é uma narrativa sobre o dia em que uma
equipe de pesquisadores estrangeiros e brasileiros chegou a Sobral com o intuito de
comprovar a Teoria da Relatividade, de Einstein. A estranheza do fato e do aspecto das
pessoas que chegavam, aumentada pela presença de carros pela primeira vez naquela
cidade tão distante dá o toque de extraordinário àquela situação. Às três da tarde, horário
do fenômeno, a passagem do dragão, o povo histérico e místico pensava no fim do mundo.
279
Depois de tudo acabado, a equipe desmontou o acampamento e foi embora para nunca
mais, deixando ali apenas uma estátua que ainda hoje as pessoas não sabem o que
significa. Mistério e Ficção Científica.
7. Brincar com armas
Conto cujo título dá nome a um outro livro de Salgueiro, o que temos é um tipo de
sugestão do sobrenatural. Trata da história de Magela, homem que acabara de limpar o
revólver colocando a arma em uma gaveta e as balas em outra. Depois disso,foi à casa de
um amigo. Enquanto isso, o narrador diz que o Diabo faz as coisas enquanto piscamos um
olho. Todo o clima sugere a presença do Diabo na narrativa. Voltando daquela visita,
Magela trouxe o amigo e pensava em assustá-lo. Ao entrarem no quarto, para se mostrar,
Magela aponta a arma e puxa o gatilho. A arma dispara e o amigo cai fulminado. O
homem se desespera, mas não tem mais jeito. Ao final, o narrador explica que, enquanto
Magela saiu, seu filho achou as balas e passou a coloca-las na boca. A mãe, assustada com
aquela situação não sabia por qual motivo aquelas balas estavam fora do lugar. Achou a
arma em outra gaveta e colocou as balas no lugar. Sem saber o que fazia, ajudava no
assassínio de um inocente. Tudo por irresponsabilidade,pois não devemos brincar com
armas. Fantástico-Estranho.
8. Pânico
Texto Hitchicoquiano. ( influência de Alfred Hitcock, mestre do suspense ) Conta a história
de uma repórter policial que chega, à noite, em casa e vai imediatamente tomar banho.. Já
propensa adormecendo, fosse pelos filmes que assistia ou pela quantidade de ladrões no
bairro, tenta se defender de uma estranha sombra que se aproxima com um objeto na mão
através da cortina do Box (cena de Psicose ). Pega rapidamente a sua arma e atira. Descobre
depois que era apenas um antigo namorado, com uma flor na mão, e que tinha estranhamente
enfeitado toda a sala com dezenas de fitas e faixas de Feliz Aniversário. Policial-Suspense.
9. A festa
Texto de teor sobrenatural. Temos a história de um casal que está hospedado na casa de
uma gentil senhora. É reveillon e todos dançam e bebem. Mas o casal não consegue se
adequar àquela tagarelice. Começam então a reparar que algumas pessoas com roupas e
semblantes mais ébrios caminhavam entre os convidados. Uma jovem de apareça triste os
percebe e avisa aos outros. Aos poucos, essas pessoas estranhas começam a desaparecer.
.O casal acha tudo muito estranho. No dia seguinte,quando a dona da casa passa a mostrar
fotos dos parentes, há muito falecidos, o casal repara que já conhecia aquelas pessoas da
festa de reveillon. Fantástico.
Parte II – Dos valores do inimigo
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10. O Olhar
Esse texto traz a história de uma vingança. Um homem, o narrador, desde pequeno
acalentava um desejo: matar o homem que esbofeteara seu pai,pois depois da vergonha
passada, o pai jamais levantara o olhar, morrendo de vergonha e tristeza. Por mais de vinte
anos esperou a vingança, e finalmente o dia chegou. Seu desafeto voltara para casa para
passar os últimos dias de sua vida. Certo dia, saindo de um bar, encontram-se. O homem
olha profundamente nos olhos do outro. Retira um a faca e enfia-lhe no peito vingando
finalmente a morte do pai. No entanto, o olhar sereno do outro na hora de morrer jamais
lhe sairá da memória. Psicológico.
11. A viagem
Como o título sugere, temos a história de um homem, paciente de um hospital, que
ansiava enormemente voltar para casa, para sua cidade, para aconchego de sua família,a
mercearia do avô. Caminha pelas ruas da cidade, não sabe onde esqueceu sua mala nem
por qual motivo as pessoas fingem não escutá-lo. Vagueia pela cidade e escuta ao longe o
sino da igreja. Estará ele ainda vivo ? Fantástico.
12. O peso do morto
Alusão certeira a Gabriel Garcia Marques ( Cem anos de solidão ), Drummond e
Moreira Campos, que também diziam “carregar consigo seus mortos”. Narra a história de
uma culpa, de um grande remorso. Em tom sobrenatural, o que temos é a história de um
homem que, em determinado ponto de sua vida, mata alguém. Daquele momento em
diante, rezando por sua própria morte, numa vigilância vingativa de vivos e mortos que
nunca chegam. Precisa aprender a conviver com seus mortos. Psicológico.
13. Dos valores do inimigo
Trata basicamente de um grupo de detentos que tentam escapar de uma prisão. Preparam
tudo, enchem-se de coragem, mas, na hora, a voz forte do guarda e os holofotes impedem
qualquer atitude. Resta-lhes voltar para as celas e esperar uma nova oportunidade, pois
naquele momento, o inimigo, no caso os policiais, foi mais esperto,mostrando seu valor, o
valor do inimigo. Psicológico.
14. Quase-noite
Texto de linha sobrenatural sobre premonição através de crianças. Depois de toda uma
preparação de como se dá o anoitecer, toda a beleza do fim do dia e seu insondável
mistério, um evento sobrenatural tem lugar. Uma tarde, próximo à hora do Ângelus, um
menino vê seu primo Isaías ( doente há alguns dias ) entre as plantas do quintal. No dia
seguinte, chega a notícia da morte do menino. Teria ele visto mesmo o primo antes de o
mesmo morrer? Nessas horas, como diz o narrador, tudo pode acontecer. Fantástico.
281
15. A Rosa encarnada
Conto que parece uma releitura de outro ( Pânico), o que temos é uma repórter policial
que ao chegar de uma sessão de fotos criminais, resolve ir ao banheiro porque estava a
ponto de urinar nas calças. Resolve então tomar um banho. Um barulho começou na
cozinha. O pânico tomou de conta dela. Perguntou quem era. Ouviu passos. Pela silhueta
na cortina do banheiro dava para ver que estranho visitante aproximava-se do box com
algo na mão. Tentando controlar o medo, pegou rapidamente a arma no bolso do paletó e
apertou o gatilho, uma, duas e três vezes. Depois que a fumaça da pólvora se dissipou,
puxou a cortina e viu apenas uma rosa encarnada numa poça de sangue. Saiu correndo
desesperada e quando teve coragem de voltar para novamente verificar o que acontecera,
pois poderia ter ferido alguém, encontrou a casa bem fechada do jeito de sempre, janelas
fechadas e, no chão do banheiro, nada de sangue, apenas aquela horripilante rosa
vermelha. Policial e Fantástico.
16. O menino do cabelo azul
Em nossa opinião, o melhor texto de Pedro Salgueiro, essa é a história de Bárbara, a mãe
que, de forma infeliz, perdeu o filho tragado pelas águas de um rio. Os gritos da mãe
chamando o filho foram para sempre ouvidos, e o menino, vez em quando, também era
vista jogando bila, caminhando por descampados, ou fazendo qualquer outra coisa sempre
com seu cabelo azul ao vento, as mesmas roupas do dia em que saíra para nadar com os
amigos e nunca mais voltara. Daquele dia em diante, Bárbara deu para correr pelas
estradas gritando pelo filho perdido. “ Todos os caixeiros viajantes,vendedores de rede e
espelhos, pedintes e errantes que passam há mais de trinta anos pela cidade, dão notícia
de um menino, rapaz, homem e agora senhor de barba branca e cabelos azuis, perguntando
sempre pelo povo de Santa Luzia do Antão, e em especial por Bárbara e seus filhos.”
Cada morador conta uma história sobre o homem do cabelo azul. Ninguém tem certeza de
nada. A explicação mais intrigante foi a de seu Cesário, de que “todo homem tem o seu
duplo, uma cópia fiel, sua, perdida pelo meio do mundo,e que,mesmo um morrendo o
outro fica vivo.” Muitos diziam tê-lo visto. Até mesmo o padre Amaro que jura ter visto
um homem de cabelo cor do céu que avançava na fila para comunhão e nunca chegava à
frente. Muitos o viram passeando perto da casa de D. Bárbara. No lugar, perto de um
flamboyant, no dia seguinte, as andorinhas amanheciam mortas. O que é verdade é que um
senhor, com um grande boné cobrindo quase toda a cabeça, a procurou no momento exato
em que lhe aprumavam o caixão com os pés para a porta no rumo do cemitério. O homem
acompanhou o cortejo. Muitos viram lágrimas rolarem de sua face, e só as mulheres
afirmam ter visto, por baixo do boné, mechas de cabelos azuis, antes de ele desaparecer,
deixando um rasto de andorinhas mortas pelo chão. Fantástico.
Parte III – Soluço antigo
17. Ausência
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Texto de teor sobrenatural sobre um velho que vive atormentado pela ausência da esposa e
de coisas que já passaram. Desde que a mulher morreu, trancou-se no quarto mal saindo
para comer ou para permitir que a filha mais nova faça uma limpeza. Tudo parou. Até as
cadeiras de balanço vivem relegadas a um canto da casa. O momento que ele sai e que a
filha aproveita para limpar o quarto. Na verdade, o velho só sairá do quarto quando um
“novo chamado” vier da cozinha. Psicológico.
18. A rua do cemitério
Texto interessante que apresenta uma visão irônica sobre a morte. Trata da história de uma
velhinha que, durante toda a sua vida, por morar na rua do cemitério, viu todo tipo de
enterro. Enterro de rico, enterro de pobre, enterro triste, enterro engraçado, enterro feio,
enterro bonito, enterro estranho.... O mais estranho foi o caso do Dr. Epifânio que queria
ser enterrado ao som de uma banda de música. Como a bandinha da cidade só sabia
marchas de carnaval, na hora do cortejo a desordem foi geral. Enquanto uns choravam,
outros ensaiavam alguns passos de carnaval. Outros choravam com os olhos e sambavam
com as pernas porque assim mandava a música. A velhinha se desespera principalmente
porque lembra do olhar de cada morto. Tem medo de quando for a sua vez que os mortos
estejam do outro lado esperando-a para olhar para ela da mesma forma que ela fazia. Já
pensou até em se queimar toda com a lamparina para que não a reconheçam quando ela
chegar lá. Psicológico.
19. Alegria Breve
Sem muitas alusões a Vergílio Ferreira (Portugal), este é um conto bastante interessante
sobre coisas que acontecem às pessoas perto de morrer. Nesse caso, temos história de seu
Arledo, um senhor bastante idoso que começou a demonstrar uma alegria estranha. Passou
a rir, a conversar com todos, a dizer palavras da moda misturadas a palavras que só ele
entendia. A família ficou assustada. Caduquice? Loucura? Estranhamente,deu no velho
uma vontade danada de soltar papagaio. A família tentou convencê-lo do contrário. O
velho resistiu e foi para as calçadas com as crianças, demorando-se na rua até as três da
tarde, quando voltava para almoçar. Só era entendido pelo filho mais novo, os sobrinhos e
os netos, todos da mesma idade. Um belo dia, antes que o vento assobiasse dentro da
noite, finou-se dizendo: “...Ah, velhice, essa fábrica de monstros...” Psicológico.
20. Em família
Texto digno de uma influência clariceana ( Laços de Família ). Temos a história de uma
família esfacelada depois da morte da matriarca. Depois do episódio, o que restou foram
fragmentos dos filhos que, de forma tosca, tentavam se organizar em torno do pai. A
tradição do almoço aos domingos desapareceu. Não havia mais motivo? Um mal estar
crescia entre eles. A mais nova, há anos alimentava uma rixa com o pai. O filho do meio
passava meses sem aparecer em casa. Se aparecia era bêbado, abraçando e beijando todo
283
mundo para pedir dinheiro emprestado. O mais interessante é que uma das irmãs, sem um
motivo aparente,tenta há muito tempo reunir todos em uma fotografia, sem jamais
conseguir, tentava reproduzir a foto amarelada que o velho guarda orgulhoso do tempo em
que eram todos crianças e a família era unida, numa felicidade que jamais será
fotografada outra vez. Psicológico.
21. Véspera
Muito parecido com “Alegria Breve”, esse conto fala da proximidade da morte e dos
efeitos que essa proximidade pode provocar. O tempo passa devagarinho. Alguns amigos
vinham visitá-lo e saiam cabisbaixos. A mulher lembrava de rixas antigas. A família, na
medida que a coisa ia piorando, confidenciava entre si que só a morte o livraria daquele
sofrimento... Mas uma certa manhã, o velho acordou alegre. Pediu um caldo forte e
conversou como se todas as suas dores tivessem desaparecido. Lembrou do passado, quis
dar uma volta no jardim.... A esposa D. Matilde saiu para telefonar e avisou ao resto da
família; disseram-lhe que não se animasse, pois podia ser apenas “a melhora da morte”,
que era sempre fatal na véspera... Previsão acertada. O doente conversou o dia inteiro, riu
bastante, foi dormir tarde e não acordou. A família reuniu-se num velório rápido,
enterrou-o às três da tarde, mais rápido ainda, como se temesse alguma reversão do
quadro... Psicológico.
22. Um velho
Em homenagem a Sânzio de Azevedo ( porque ajudou o autor em uma de suas dúvidas),
temos a história de um senhor que, ainda cheio de uma jovialidade que só ele sentia,
segue a sua viagem num ônibus quando uma moça lhe sorri. Surge nele uma vitalidade
alimentada por aquele sorriso. Mas a moça pergunta se ele quer sentar. Nessa hora, o
homem se sentiu mal, pigarreou, tentando driblar o tempo. Recusa o assento, mas o corpo
parece procurar pela cadeira, sentindo-se mais ridículo ainda quando a moça o ajuda a
sentar. Murchou de vez. As mãos, que até aquele sorriso da moça se mantinham firmes,
voltaram a tremer e ele sentiu uma paz tranqüila e triste. Era a velhice. Psicológico.
23. Soluço Antigo
Feito em homenagem ao nosso maior escritor de textos sobrenaturais, José Alcides Pinto,
esse conto extrapola a noção de brevidade típica do conto, de tal forma que resumi-lo seria
simplesmente ridículo. Só vai lendo. Fantástico.
24. Jeremias ou O vampiro da rua das flores
Na mesma linha de Bran Stocker ( Drácula ) e Dalton Trevisan ( O vampiro de Curitiba)
a narrativa alterna a incerteza de um passado ( a parte contada pelo pai ) com a verdade do
presente. Desde a época de seu pai, o velho Jeremias nunca mais saiu à calçada. Desde o
tempo em que o acusaram pelo sumiço de crianças naquela rua. Nunca provaram nada. Falam
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que ele cria cachorros e os devora quando crescem. Na vila não tem cão que mais dia menos
dia não desapareça. Não fica um. Tem mais de cem anos. Dizem que vagueia pelas calçadas
de madrugada. “A única certeza que se tem é de que ele é vivo, pois, apurando bem os
ouvidos, somos capazes de jurar ter escutado sua respiração pesada... além do choro de
crianças ou latido de cães que se ouve em noites de vento”. p. 102. Fantástico.
Crítica
Adepto da literatura de teor sobrenatural, um de nossos representantes na
contemporaneidade ( Comprovado em nossa dissertação de mestrado Aspectos do Fantástico
na Literatura Cearense, UFC,2002), Pedro Rodrigues Salgueiro, ao lado de Dimas Carvalho (
Fabulas Perversas ) é um dos contistas de que se vale a pena falar em nosso estado. Desde o
momento que se valeu de Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques, para escrever O
peso do morto já se podia falar que era um bom contista, pois escolheu logo uma das
melhores influências em termos de prosa e principalmente em termos de sobrenatural. Leitor
e ouvinte das conversas de Moreira Campos ( terceiro melhor contista do Brasil, pois
Machado e Clarice são inegáveis ): a homenagem Rasga Mortalha (PS), dialogando com As
Corujas (MC) era só mais uma rubrica na sua premiada trajetória.
Em seguida, ao valer-se do sobrenatural, das coisas vindas da cultura popular, à moda
Câmara Cascudo, foi mais feliz ainda. Pedro Salgueiro estilisticamente é um prosador
imagético, pois tenta incutir na cabeça do leitor, imediatamente, o plano onde se passa a
história. Assim, sua influência cinematográfica também é observada ( Olho de cão).
Sóbrio na linguagem, talvez não muito econômico, ou econômico demais ( Soluço
antigo), prova que tem domínio das palavras explorando-lhes bem o potencial, como sugeriu o
grande Valery. Trabalhando principalmente a Dor, elemento sumamente humano, Pedro
Salgueiro elege três grandes temas para o seu psicologismo ou suas temáticas
sobrenaturais: a velhice, a morte, o remorso e a vingança. Logicamente, encontramos
outros temas como a Loucura, as aparições, os eventos misteriosos e os amores mal
resolvidos, mas todos acabam se relacionando. Em suma, é um bom livro. Pode e deve ser
apreciado.
47 - O Gaúcho - José de Alencar
O título desse romance de Alencar já revela a nítida intenção do autor de retratar cenas e tipos
brasileiros, numa perspectiva regionalista de que foi não apenas o precursor, mas o maior
representante durante o Romantismo.
O Romantismo no Brasil...
Em 1836, com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, o Romantismo instala-se no Brasil.
Imediatamente, devemos entender que o Romantismo que se processava no Brasil de meados do
século XIX é, com alguns anos de atraso, o mesmo Romantismo que se processava na França, na
Alemanha e na Inglaterra daquele tempo. Seguramente, com algumas ressalvas como por exemplo o
aspecto gótico e satanista dos textos europeus. Sendo então um Romantismo muito diversificado,
introduzido em terras tropicais, tornou-se necessária uma adaptação. A escola dividiu-se em vertentes:
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históricas, indianistas, urbanas e regionalistas, além da divisão clássica da escola romântica em obras
de Prosa (romance, novela, conto e crônica) e Poesia, havendo posteriormente, o englobamento do
gênero Dramático, o teatro de Martins Pena. No nosso Romantismo, o autor que melhor desenvolveu
todas as vertentes foi José de Alencar. Daí ser o maior nome da escola romântica em seu tempo.
Vertentes: Indianista ( Iracema e Ubirajara ); Histórica ( Guerra dos Mascates, As minas de prata );
Urbana ( Senhora e Lucíola ) e Sertanista ( O sertanejo, Til e O tronco do Ipê).
O autor e sua obra
José Martiniano de Alencar, o maior romancista da era romântica, formou-se em Direito pela
Faculdade de São Paulo e foi deputado em várias legislaturas. Brilhou como crítico, parlamentar,
jurisconsulto, publicista e literato. Grande romancista, fez incursões também no teatro onde escreveu
peças de relativo êxito como O Demônio Familiar . Ardente jornalista, nada lhe passou aos olhos que
não intimasse a pena. Faleceu no Rio de Janeiro, a 12 de dezembro de 1877, levando consigo uma
grande mágoa, a de não ter sido senador como lhe fora o pai, tudo por uma rixa com o imperador
Pedro II que nunca simpatizou com Alencar.
O Gaúcho é um dos romances de Alencar que se localiza na fase denominada por ele “ infância da
nossa literatura” , exatamente no período de independência política do Brasil. Além de O Gaúcho ,
romance de tonalidade histórica e regionalista, muito mais esta que aquela, Alencar publicou diversos
outros livros, sendo, até hoje, um dos autores mais lidos da literatura brasileira. A crítica costuma
dividir os seus romances em quatro grupos:
a) romances urbanos: Cinco Minutos(1857), A Viuvinha, Diva, Lucíola, A pata da Gazela, Sonhos
D´ouro, Senhora (1875), Encarnação (póstumo) etc. cujo cenário é, basicamente a corte do Rio de
Janeiro;
b) romances históricos: As Minas de Prata , Guerra dos Mascates e Alfarrábios(1873);
c) romances regionalistas: O Gaúcho (1870), Til , O Tronco do Ipê e O sertanejo(1875);
d) romances indianistas: O Guarani(1857), Iracema e Ubirajara(1874).
Análise
Um dos últimos romances de José de Alencar, este livro traz a história de Manuel Canho, jovem
gaúcho, de 22 anos, quando muito, alto e robusto, de face bronzeada, representante fiel do homem do
Rio Grande; usa sempre um chapéu desabado que lhe cobre a fronte larga. É o típico campeador de
gado da região dos pampas. Mora em um rancho em Poncho-Verde, cidade histórica riograndense, às
margens do rio Ibicuí. Com ele vivem a mãe, Dona Francisca, senhora gorda de quarenta e cinco anos,
e uma irmã, Jacintinha, bela moça de quinze anos. O pai de Manuel, João Canho, era “amansador”
famoso na região, e além da destreza no trato com o gado, também é exímio domador de cavalos. João
Canho ensina o ofício ao filho, e adverte-lhe sobre a “dedicação e o amor que deve ter para com eles”.
Segundo o narrador, é o cavalo o grande amigo do homem pampeiro, o símbolo do homem
riograndense, juntos são como se fossem um corpo só...
Em um combate com um bando de castelhanos, João Canho é covardemente assassinado por ter
dado abrigo a um comerciante chamado Loureiro. Como os castelhanos estavam à procura desse
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homem, João não teve boa sorte, foi morto na frente da família por um castelhano chamado Barreda.
Manuel Canho, ainda menino, vê o pai ser ferido mortalmente, e aquilo passa a ser o motivo maior de
sua revolta contra o mundo, principalmente contra as mulheres, pois sua Mãe, dias depois da morte do
marido, aceita casar-se com Loureiro que, sensível aos encantos da viúva Francisca e sua situação,
sentindo-se também responsável pela morte do marido, oferece-se para substitui-lo.
Sem muita resistência, D. Francisca aceita, desagradando profundamente Manuel que passa a
odiar a mãe e o padrasto. Por esse tempo, Juca, o irmãozinho de Manuel, adoece e morre. Manuel, em
vez de chorar, fica feliz pelo irmão, pois acha que logo, ele também irá se juntar ao pai. Manuel Canho
cresce então arredio, brigando com todo mundo, desejando a morte do padrasto, atentando contra a
vida do velho Loureiro, mas sem nenhum sucesso.
Um dia, Loureiro manda arrear Morzelo, o cavalo predileto do finado João Canho, contrariando
em muito o menino. O cavalo parecia esperar por isso, pois ao simples toque das rosetas, Morzelo
disparou como uma bala, derrubando o cavaleiro e esmagando-o no chão duro e pedregoso. Loureiro
acabou morrendo e deixando Dona Francisca viúva mais uma vez. Manuel cresce e, como o pai, tornase grande domador de cavalos. Um dia, sem mais explicações, saiu de casa em busca do Barreda, com
o objetivo nítido de vingar a morte do pai. Era o começo de suas aventuras.
Dias depois, na vila de Jaguarão, conhece Catita, menina de doze anos, de cabelos negros e pele
queimada.( Interessantemente, o narrador não a descreve da forma exagerada com que costumam ser
descritas as mulheres do Romantismo) Catita tem, de fato, a sua beleza, mas há em suas atitudes um
algo mais a ser desvendado. Ao aparecer no alpendre, procurando pelo pai, um soldado lhe pergunta
se não gostaria de ser sua noiva. Catita caminha até o outro lado do alpendre, onde o Canho estava
sentado, aponta-o, dizendo: “É este que prefiro para noivo”. Irônica e profeticamente, o gaúcho
responde que “só quando Catita ficasse viúva”. Muitos riram, mas ela acha estranha a premonição do
gaúcho. (Em Teoria Literária, isso é denominado prolepse).
O gaúcho encontra o padrinho, Bento Gonçalves, herói da guerra platina, homem muito respeitado
por sua franqueza, generosidade e bravura. Conta-lhe que vai em busca de Barreda e pede sua bênção,
partindo para província de Entre-Rios. Lá, Manuel Canho se avista rapidamente com o chileno D.
Romero, um misto de mascate e aventureiro, que traz consigo uma égua muito bonita e arisca. O dono
desafia os presentes, afirmando que ninguém ali é capaz de montá-la. Convida a todos para ver a
“baia”, propaga, em voz alta, que o cavaleiro que a montar ficará com ela. Canho não sabe ainda que o
negócio maior de D. Romero, homem bonito de 25 anos, era a sedução...
O primeiro peão, que se habilita, cai rapidamente. Manuel, ouvindo toda a movimentação,
oferece dinheiro pela égua, mas o chileno repete que ele pode tê-la de graça, desde que a monte. Para
surpresa de todos, o gaúcho não só monta como faz amizade com o animal, tornando-se seu dono, mas
sente profunda antipatia pelo chileno. Dá à baia o nome de Morena e percebendo que deu cria há
pouco tempo, permite-lhe fazer o caminho de volta para encontrar o potrinho. Encontram pelo
caminho o caçador, Pedro Javardo, que quer tomar Morena, mas não o consegue. O animal recupera a
cria, e após despedidas calorosas, o gaúcho solta os dois na imensidão dos pampas. Mesmo livres,
Morena e seu potro retornam aos afagos do gaúcho. Para ele, homem e cavalo se completam, porque o
gaúcho - o centauro dos pampas, ser híbrido da mitologia, resulta da união de duas naturezas
incompletas: busto e corpo de cavalo, dois seres em uma figura só.
Finalmente, chegando à casa do assassino do pai, o velho Barreda, Manuel o encontra à beira da
morte, corroído por uma terrível febre. O gaúcho, que não pode assistir impassível ao sofrimento de
ninguém, adia o intento, decidindo ajudá-lo. Durante vários dias, cuida do doente, como faria a um
amigo. Dá-lhe sopas e remédios. Com o enfermo fora de perigo, deixa a casa, prometendo voltar logo
que ele se recupere.
Retorna a Poncho-Verde, revendo mãe e irmã, que ficam entusiasmadas com os animais,
principalmente o potrinho, a quem Manuel dera o nome do falecido irmão, Juca. Após três meses, o
gaúcho volta à casa de Barreda. Lá, identificando-se, diz-lhe a que vem. Lutam e Manuel o fere
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mortalmente, com a própria lança usada contra o pai. Vai embora sem o mínimo remorso, pois apenas
cumprira uma promessa de honra. Avisa ao padrinho Bento Gonçalves ter cumprido a sua jura e
coloca-se à disposição do mesmo.
Nos festejos de Nossa Senhora da Conceição, Manuel revê a bela Catita, que docemente lhe pede
o potrinho. Canho nega-lhe a prenda. A jovem pega o turbante que o gaúcho havia comprado para a
irmã e coloca-o na cabeça pensando que fosse para ela. Manuel Canho se retira sem pegá-lo de volta,
ofendido com a atitude mal educada da moça.
Manuel Canho retorna ao lar e se esmera na educação de Juca, que, tendo crescido, tem o porte
elegante da mãe. Um dia, fica sabendo, em uma estância próxima, que o coronel Bento Gonçalves
havia sido demitido do 4º corpo de cavalaria. Achando que o padrinho estava precisando dele, parte
para Jaguarão e de lá para Camacuã, onde fica a estância de Bento. Por causa da demissão, este
pretende dar início a manifestações populares em favor de sua causa.
O líder Bento Gonçalves, nessas excursões mais perigosas, precisa sempre de um homem de
confiança para escoltá-lo. Ao ver o corajoso afilhado, sabe que pode contar com ele para qualquer
coisa. Nesse ínterim, um cavaleiro ronda o rancho de D. Francisca, cortejando Jacintinha. Era o
mascate Dom Romero. Como precisam de tecido e linha, D Francisca autoriza que este venha
demonstrar suas mercadorias. Seduzidas pela elegância e pela conversa do estrangeiro, acabam vendo
tudo o que trazia e, a partir de então, passa a ser bem-vindo na casa.
Na segunda semana, a serviço do padrinho, enquanto descansa na campanha, Manuel se depara
com Catita sobre uma mula enfurecida. O gaúcho salta no Juca, tentando alcançar a mula para lhe
tomar o freio. Há uma perseguição de uma forma que a menina pode acabar caindo em um
desfiladeiro. O cavalo continua correndo, mas a jovem desaparece. Subitamente, Catita pula na garupa
do cavalo de Manuel dando grandes risadas. Nem mesmo o Canho percebeu que a menina subira de
um salto para o galho de uma árvore próxima e, em seguida, salvou-se a si mesma pulando no costado
do Juca.
Depois do grande susto, o grupo de viajantes pára para descansar. O gaúcho fica sabendo que
Lucas Fernandes, o pai de Catita, conhecera seu pai, e por isso, nessa noite, conversam bastante, sob
os olhares faceiros da moça, agora com quinze anos. Manuel canho, no entanto, não lhe dá muita
atenção, pois o simples fato de conversar com alguém que conhecia seu pai já o fazia muito feliz.
Manuel Canho e Lucas, pai de Catita, lutam ao lado de Bento Gonçalves, tomando Porto Alegre
de assalto. Em seguida, retornam à vila de Piratinim. Durante o jantar, o furriel, com entusiasmo
revolucionário, vai contando suas proezas e bravatas para as mulheres. Catita, sem prestar atenção às
conversas do pai, dá umas olhadelas apaixonadas para o gaúcho. Félix, sobrinho de Lucas, que sob o
pretexto da revolução, vem para ver a amada Catita, fica enciumado com seus olhares para Manuel
Canho e passa a odiá-lo. Ainda naquela noite, Canho toma conhecimento de que Félix deseja matá-lo,
pois acredita que, enquanto o gaúcho viver, Catita não se interessará por ele.
Como mensageiro, escudeiro, bombeiro ou qualquer outra coisa que o padrinho precisasse,
Manuel serve a Bento Gonçalves, pois tinha-lhe grande adoração: era um homem como nenhum outro.
Logicamente, acompanham o gaúcho nessas aventuras os seus fiéis companheiros: Morzelo, Morena e
Juca.
Mais uma vez a serviço de Bento Gonçalves, Canho precisa chegar a casa de Neto com uma
mensagem do padrinho. Ao chegar, recebeu do caudilho a missão de reconhecer a posição e
importância exata da força de Silva Tavares, comandante inimigo, e espreitar seus movimentos. Partiu
então na função perigosíssima de bombeiro, um tipo de espião, um soldado avançado, que se destaca
no campo de batalha chegando antes da tropa. Cumpre muito bem sua tarefa mas, ao final, depois de
perseguido, viu que sua tropilha estava diminuída: Morzelo fora capturado.
Precisava chegar novamente à estância de Neto e dar-lhe as coordenadas dos inimigos, mas não
podia deixar para trás o cavalo de seu pai, fiel amigo de tantos anos. No caminho, encontrou o Chico
Baeta, que ainda estava com raiva dele por causa do jogo de baralho em que o gaúcho ganhara-lhe o
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dinheiro e a namorada, uma mocinha faceira chamada Missé, que muito se dera com a Catita. Canho,
simulando mais uma aposta, pediu-lhe que desse o recado a Neto, pois se o fizesse lhe devolveria a
namorada. Baeta aceitou na hora.
Depois de bater a campana por algum tempo, o gaúcho encontrou o Morzelo, já arquejando, em
seus últimos momentos. Só deu tempo o gaúcho agachar-se junto ao amigo. O cavalo olhou
profundamente em seus olhos num tipo particular de despedida, e morreu. Manuel Canho sofreu a
grande perda. Juca e Morena também demonstraram a sua dor. Canho reuniu forças e fez uma grande
cova ali próximo e colocou o amigo, cobrindo-lhe a sepultura com uma enorme cruz de madeira, “
como se fosse o túmulo de um cristão. Para Manuel aquele era um símbolo do que há de santo na
terra” p.119. ( Há no texto além da personificação, um grande senso de humanização dos cavalos)
Como um raio, no lusco-fusco da madrugada, Canho e sua tropilha caíram em cima dos assassinos
do Morzelo. O gaúcho soltava gritos espantosos; os cavalos relinchavam com ferocidade. Manuel os
tinha habituado a combater. Nessa hora, eram como cães ferozes. Depois de destroçarem dois dos
assassinos, o gaúcho acertou mais um terceiro, deixando livre apenas o Félix, mas em um estado que
melhor seria não ter sobrevivido. Marcara-o profundamente, no rosto, com um corte de cima a baixo,
vazando-lhe um dos olhos.
Na desenfreada carreira, acabaram novamente muito próximos do acampamento inimigo. Foi
então que soaram de lá vários tiros. Canho e sua tropilha fizeram meia volta e fugiram a toda
velocidade. No entanto, a Morena parecia não estar muito bem, pois a velocidade de sua corrida era
dobrada, como se algo tivesse acontecido. Na verdade, a Morena fora atingida. Quando o gaúcho
percebeu o que de fato se passara, até o Juca havia sumido. Já distante do perigo, a fiel companheira
de Canho caiu com um grave ferimento, do qual escorria muito sangue.
Para Manuel Canho, Morena fora atingida tentando salvá-lo, pois as balas tinham seu corpo como
endereço, mas graças à coragem da baia, ele escapara ileso. E onde andaria o Juca? Nessa hora, o
gaúcho deseja morrer junto de sua corajosa amiga. Alguém caminha naquela direção. Passado um
tempo. recobra a coragem, e resolve sair em busca de algo ou de alguém que consiga extrair a bala do
corpo de Morena, era sua única chance. (Alencar, talvez imitando o grande Alexandre Dummas em O
Conde de Montecristo, é mestre em criar personagens que se esgueiram pelas sombras...)
Tempos depois, rondando silenciosamente a vila, tudo que conseguiu foi um tipo de torquês que
usaria como pinça para fazer a dolorida extração. Na volta, encontrou Catita, acompanhada do Juca,
cuidando carinhosamente de Morena. A menina, ainda cedinho, dera de cara com o cavalo na hora em
que estava tomando banho no rio. O cavalo estava muito impaciente, quase pedindo para que ela o
seguisse. E a menina o fez. O gaúcho então entendeu que naquela mulher parecia haver algo de bom
sim, tanto que dessa vez fez questão de não desviar os olhos dos olhos dela quando se cruzaram.
Sorriram cúmplices. Uma tropa se aproxima.
Eram os amigos de Neto. Convidam-no para a grande peleja com os legalistas. Canho deixa claro
que só continuará a luta se Morena escapar. Nessa hora, com uma destreza fora do comum, enquanto
os homens conversavam, Catita fez o que nem o Gaúcho conseguira durante horas, extraiu com suas
pequeninas mãos a bala terrível que se alojara nas ancas da baia. Canho segurou as mãos da jovem em
agradecimento, e disse cheio de vigor aos amigos: - Sigam que eu já os alcanço. P. 125. Em seguida,
Canho enlaça Catita num abraço afetuoso e sai para a peleja contra os inimigos de Bento Gonçalves.
Naquela hora, algo de muito importante havia acontecido: o amor domara finalmente o Centauro dos
Pampas.
Catita fica sozinha protegendo Morena de uma matilha de chimarrões famintos. Os chimarrões
são cachorros-do-mato, carniceiros, que campeiam pelo pamapa em busca de animais mortos. Se não
estão mortos, matam-nos com suas mandíbulas potentes e destroçam tudo ao redor. Estavam ali,
atraídos pelo cheiro do sangue quente da Morena. A jovem abraça o corpo da égua e se sente feliz,
mesmo naquele perigo, pois se morresse naquela hora ao menos morreria por Manuel.
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Quando Manuel Canho voltou da batida contra o inimigo, tudo que encontrou foi um charco de
sangue, um pedaço do vestido de catita e uma pilha de ossos. Deu as duas como mortas e procurou
não pensar mais naquilo. Seguiu novamente para a luta. No caminho, acampou, e viu-se atormentado
em sonho pela cena desgraçada que sucedera com Catita e Morena. De repente, um vulto e uma voz
doce: - Manuel!
Só então o narrador nos revela a forma extraordinária como a baia salvara a si e à sua
companheira. Quando a matilha assassina se aproximou e um dos cães arrancou um pedaço do
vestido de Catita, Morena levantou-se e deu um violento coice em um dos animais jogando-o longe e
intimidando os demais. Catita, já montada, foi levada para longe pela égua, em retribuição a tudo que
fizera. Quando aos chimarrões, deixaram-nas em paz, ali próximo, ia passando uma ovelha com um
filhote, que acabaram servindo de pasto para a horda assassina.
Enquanto isso, Morena punha-se longe, mas levando consigo aquela que a salvara. Agora, para a
alegria das duas, amiga e namorada, encontraram finalmente o gaúcho. Muito emocionado, Manuel
beijou Catita docemente.p.130 Os inimigos apontaram ali perto. Morena e Catita fugiram. Juca e
Manuel, escondidos, zombaram durante horas da burrice dos exploradores.
No último capítulo, que se inicia com o nome de uma música do folclore riograndense, Canho, de
uma forma nunca vista, canta, dança e improvisa, respondendo aos requebros de Catita num tipo de
namoro cheio de provocações poéticas, acompanhadas pelo som de uma viola e pelas palmas dos
presentes. É também nesse momento que surge na festa a figura de Dom Romero (também uma alusão
a Don Juan) um mascate chileno galanteador que mexe bastante com a cabeça de Catita. Vaidosa, a
jovem fica entre o Canho e o chileno, passando a ser analisada pelo narrador de uma forma “quase
realista”. Mal bota os olhos em Dom Romero, Canho já o detesta, suspeitava, no mínimo, que já o
tinha visto.
Canho precisa voltar para a batalha. Vai ter com Catita, à janela, e pede à jovem que fuja com ele.
Ela se recusa. O Gaúcho diz profeticamente a Catita que um dia mataria aquele homem. Despede-se
decepcionado e com raiva. Félix, que vive oculto nas sombras, observa tudo e jura novamente matá-lo.
Félix agora tem em Missé, a namorada desprezada de Baeta, um tipo de aliada, pois agora ela também
quer o gaúcho. Com ódio, Felix quase esfaqueia Dom Romero, que vinha encontrar-se com Catita,
pensando que era o Canho.
Em missão de Bento Gonçalves, Manuel aproveita para ir falar com a mãe e a irmã. Lá, descobre
que a irmã está noiva. Fica muito feliz por ela, mas na hora do almoço descobre que o noivo era
também um certo Dom Romero por quem a jovem ficara perdidamente apaixonada. Furioso, levanta
da mesa dizendo que não vai haver casamento. Depois, conversando calmamente com a irmã, deixa
transparecer que se for da vontade dela e o tal Dom Romero mostrar-se homem de bem, apesar de já
suspeitar da índole do chileno, ele o traria para ser seu esposo. A menina se contenta.
Catita, depois de passar o diabo para conquistar Manuel Canho. Agora, como sugere o narrador,
numa análise de cunho realista sobre a índole da mulher, troca rapidamente de pretendente. Na missa,
fica toda envergonhada e aceita abertamente a paquera de Dom Romero, marcando um encontro com
ele à meia-noite. Félix observa tudo e sorri. O olho único que possui brilha mais que o normal.
À noite, embaixo da janela de Catita, Dom Romero consegue embebê-la com suas doces palavras.
Além de palavras, oferece-lhe um delicioso confeite de baunilha. Deu-lhe, na boca, os pedaços
suculentos do “inofensivo” doce. A jovem passou a sentir uma sonolência, uma certa tontura... mais
que depressa, o chileno passou para dentro do quarto da menina fechando a janela. Félix observa tudo.
Se contorce de ódio, de ciúme e de inveja, mas depois sorri. Em, desabalada carreira, foi avisar o
furriel, o pai de Catita, que montava guarda a poucos minutos dali. Quando o pai da jovem chegou
com uma tropa, o sedutor já havia sumido pelo telhado. Encontrou a filha com as vestes descompostas
e a atitude suspeita de quem perdera seu bem mais valioso. Empreenderam busca ao sedutor, mas o
homem, de fato, era muito esperto.
290
Tudo coincide com a volta de Manuel Canho, e sua chegada apenas complica o estado das coisas.
Catita, completamente mudada, diz-lhe abertamente que se enganou quanto a ele; que não o queria
mais; que amava outro homem, e que, de alguma forma, ela não era merecedora do amor do gaúcho. O
pai entra, envergonhado, e tenta matar a filha com a faca do gaúcho, tentando lavar-lhe a honra.
Manuel Canho o impede. Como um mito, Bento Gonçalves chega e leva o sobrinho para longe
daquele lugar. Mas Canho tem outros planos...
Canho. com seu potente cavalo, campeia o pampa infinito e busca nos vilarejos mais próximos o
indigesto sedutor. Encontra-o já dando o bote em uma outra moça, a quem já fizera promessa uma vez.
Silenciosamente, consegue atraí-lo e capturá-lo. Dom Romero é amarrado e colocado no costado do
cavalo como um saco qualquer ou um indigente. Canho retoma o caminho para a casa de Catita.
Enquanto isso, na casa de Lucas, o furriel, o velho não consegue parar de pensar no que aconteceu
à filha. Penaliza-se com certeza, mas a desonra é algo que fere fundo a alma de qualquer homem,
principalmente do homem dos pampas. Lembra da faca de Canho que ficara no quarto da menina e
alerta a esposa de que algo pode acontecer. Depois de pensar em tudo que aconteceu, principalmente
no que fizera com o gaúcho, Catita pensava em tirar a própria vida.
Na hora em que o velho arromba a porta, a menina esconde a faca. O pai entra exultante. Diz à
jovem que se vista, pois o casamento logo iria começar. Ela fica atordoada, não sabe o que pensar, mas
acha que, de alguma forma, sempre se sacrificando, o Gaúcho resolveu casar-se com ela para livrá-la
da desonra. Veste-se até com certo gosto. Em pouco tempo, montou-se o cenário do casório, missa e
festa. Dom Romero, tipo do homem que não tem nada a perder, adequa-se imediatamente à situação e
já pensa na noite de núpcias com a noiva, a quem acha mais linda a cada momento.
Antes do casamento, já vestida de noiva e com grande véu a cobrir-lhe o rosto dificultando-lhe a
visão, Catita imagina ir casar-se com Manuel, mas na hora em que o véu é levantado é que ela percebe
a vingança do gaúcho. Manuel trouxera o chileno para casar-se com ela, não apenas para diminuir-lhe
a humilhação, mas para vingar-se.
“A função durou até meia-noite e foi muito divertida. Dom Romero nadava em prazer; a única sombra
que podia anuviar o seu horizonte, era a turva fisionomia de Canho, e esta havia desaparecido desde o
começo da festa”. P.159
No quarto, Romero mostrou-se até paciente, mas Catita estava arredia,muito mais que
arrependida. No primeiro movimento do chileno para desfrutar da esposa, a jovem encontrou,
guardada sob a cama, a faca afiada do gaúcho. Investiu violentamente contra o “marido”, mal
conseguindo cortar-lhe a camisa. Romero, mais furioso ainda, vai para cima de Catita, que nessa hora
está indefesa. – Agora é minha! Mas uma sombra aparece no quarto e uma mão potentíssima segura o
chileno e o puxa para fora: era novamente o Gaúcho.
Manuel levou Dom Romero para um lugar distante da estância e lá, com uma frieza peculiar, disse
que iriam lutar até a morte. Lutaram durante alguns minutos e o brilho das facas dava a medida do
combate, à beira do abismo. No entanto, de forma covarde, Dom Romero sacou a pistola e atirou
contra o Canho. Desviando-se, ágil como um tigre, o gaúcho saltou sobre ele e subjugou-o debaixo de
sua bota. Em poucos minutos estrangulou o covarde sedutor numa sanha assassina da qual ele mesmo
se envergonhara. Romero foi parar no fundo do precipício.
Depois de tudo, o gaúcho sentou a um canto e chorou como nunca em sua vida. Depois, sufocou
o choro e convidou o Juca para saírem cavalgando sem destino, correr sem parar até que o inferno se
abra para nos devorar!!! Sentiu alguém se aproximar. Aos seus pés, estava Catita, ajoelhada,
implorando o perdão do homem a quem de fato amava, apesar do erro cometido. Arrastou-se aos pés
do gaúcho que se manteve indiferente.
Enquanto viviam esse drama do amor despedaçado e que podia ser reconstruído se houvesse ali
um perdão, algo que o gaúcho insistia em não dar, um temporal parece se aproximar. Enfurecido, o
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gaúcho suspendeu-lhe o corpo com nítida intenção de jogá-la também no precipício, onde repousava o
corpo do desgraçado amante. Nessa hora, o vento forte do Sul, o Pampeiro, chegou:
“O Pampeiro é a maior cólera da natureza; o raio, a tromba, o incêndio, a inundação, todas essas
terríveis convulsões dos elementos não passam de pequenas iras comparadas com sanha ingente do
ciclone que surge das regiões plutônicas como o gigante para escalar o céu”. P. 164
Desejando sair dali ou simplesmente pular com cavalo e tudo no abismo que se abria à sua frente,
o gaúcho tentava se livrar de Catita, que pulara na garupa da Morena . Mas as mãos delicadas e fortes
da jovem prendiam-se nele e ardiam em seu peito e ele não conseguia se soltar. De repente, num grito
estridente como se pedisse ao ciclone que o levasse, o gaúcho precipitou-se para frente insurgindo-se
contra o vento e o abismo.
Na beira do barranco, sempre nas sombras, viu-se o vulto de Félix, com uma faca na boca
tentando salvar-se já que não conseguia atingir mais o gaúcho... De repente, o pampeiro devorou tudo
o que havia no lugar.
“Ouviu-se um anseio, um estridor de ramos partidos, o baque de um corpo no fundo do algar (abismo),
o estrupido de um galope ao longe, e a voz formidável do ciclone cobriu todos esse pequenos rumores.
Súbito, porém, como se o filho do pampa só houvesse deixado as estepes nativas para buscar o gaúcho
e levá-lo ao deserto, a natureza quedou-se. Cadáver depois da tremenda agonia”. P. 166
Mestre dos finais em aberto, José de Alencar deixa ao leitor o desafio de construir o final desejável
para as personagens, mesmo que várias sejam as possibilidades.
1a. O tufão carregou em suas asas a Morena e o desgraçado casal a fim de que um dia resolvam
suas diferenças e sejam felizes. Isso se o corpo a cair no abismo tiver sido o corpo do covarde Felix.
2a. O tufão levou apenas o gaúcho em suas asas e o corpo a cair no abismo foi o de Catita,
merecedora de sua morte pela traição cometida contra o gaúcho. Lembre que essa era a primeira
intenção do gaúcho, jogá-la no precipício. Nesse caso o que teria sido feito de Félix?
Uma coisa é certa; o gaúcho escapou, pois o pampeiro veio para salvá-lo e “levá-lo ao deserto”
como diz explicitamente o narrador.
Crítica
Grande sucesso à época de sua publicação, O Gaúcho não passou ileso às críticas de estudiosos
posteriores a Alencar. Em primeiro lugar, o que se pode dizer de alguém que resolve escrever sobre
um lugar onde ele nunca esteve? Pois foi o que acontece. Alencar escreveu sobre os pampas, sobre o
Rio Grande, sem nuca ter estado lá. Fez seu texto a partir de estudos, de ma´terias de jornal, de
correspondências e de depoimentos de pessoas vindas de lá. Críticos como o professor Domício
Proença filho asseguram que este é um dos piores livros de José de Alencar, onde ele erra tanto os
nomes de certos lugares, quanto as denominações de certas coisas. Outro ponto a ser destacado é que,
diferentemente do que o título nos propõe, essa não é uma análise sobre o “gaúcho” como um tipo
social, mas a história de um gaúcho em particular, Manuel Canho, um homem diferente dos outros que
sofre o drama de um amor ao qual tem receio de se entregar. Mas o Romantismo não é assim mesmo?
Não se deve negar que as críticas têm bastante fundamento. No entanto, para um texto que o autor
fez sobre um lugar onde nuca esteve, valorizando elementos culturais próprios desse lugar como o
churrasco, o chimarrão, a bolandeira, a baia, a tirana etc. sua atitude deve ser elogiada, pois há pessoas
que, olhando para a terra onde vivem, não conseguem escrever, sobre a mesma, algumas míseras
linhas com um pouco de verdade.
292
Por isso, o que José de Alencar fez em O Gaúcho, abrindo margem para que se pensasse, pela
primeira vez, no romance de cunho regionalista, sua intenção deve ser, no mínimo, louvável.
48 - Moça com flor na boca – Airton Monte
A crônica
A crônica é um gênero híbrido, meio estranho, semi-jornalístico, chamado até de
gênero menor. Sua origem tem a ver com o tempo ( kronos ) e nela tudo o que mais importa é
o olhar sobre a vida comum, o flagrante do cotidiano relatado com o lirismo que lhe é
peculiar podendo ser alegre ou melancólica, mas acima de tudo humana. Parafraseando
Antônio Cândido ( o maior crítico da América Latina) a crônica é assim porque não tem
pretensões de durar, é filha do jornal e da máquina de escrever, underwood ou olivetti, e nela
tudo acaba depressa, nós é que demoramos com o que nela havia escrito, ou seja, mesmo que
o jornal vá para o lixo no dia seguinte, o recado que o autor colocou em seu texto deve ficar
por muito tempo dando voltas em nossa cabeça.
O autor e sua obra
Airton Monte nasceu em Fortaleza (1949) e nunca dela se mudou. Filho de Airton
Teixeira Monte e Valdeci Machado Monte, é médico psiquiatra, formado pela Universidade
Federal do Ceará. Cronista do jornal O Povo, comentarista de rádio, redator de televisão,
letrista, teatrólogo, é essencialmente poeta e contista. Iniciou-se na revista O Saco, onde
publicou alguns contos. Um dos fundadores do Grupo Siriará de Literatura. Estreou, no
gênero conto, com o volume O Grande Pânico (1979), o que lhe valeu muitos elogios.
Participou de algumas antologias: Os Novos Poetas do Ceará III, Antologia da Nova Poesia
Cearense, Verdeversos e 10 Contistas Cearenses. Obras: (contos) Homem Não Chora (1981)
e Alba Sangüínea (1983). Os Bailarinos. Crônica: Moça com flor na boca. Poesia: Memórias
de botequim. Inédito: A família Silva.
Análise de algumas crônicas
1. Moça com flor na boca
Nessa crônica o narrador faz um apanhado de uma série de eventos possíveis naquele
momento em que está escrevendo. Munido principalmente do olhar, um dos elementos
essenciais ao cronista, ele nos fala de coisas possíveis de nosso cotidiano; o nascimento de
uma criança ; um homem que mata o outro ; o marido que espanca a mulher; crianças
envenenadas pelos jogos violentos dos computadores ; filhinhos de papai queimando
mendigos ou índios ; amor virtual na internet , uma criança estuprada em algum lugar, longe
dos nossos olhos, mas dentro da nossa realidade. O narrador, incrivelmente, contrapõe todas
essas desgraças às poucas coisas que restam: um casal que faz amor à beira-mar ; as
vendedoras de flores, que levam ao mundo um pouco de poesia, e a imagem lírica e
“sensual” de uma “moça com flor na boca”, um sorriso de Babilônia, um sorriso de pecado,
293
capaz de fazer o poeta esquecer por alguns instantes todas as coisas ruins do dia-a-dia.
Intrigantemente, se analisarmos o lado crítico da crônica e do próprio autor, até a imagem
da moça com flor na boca pode ser algo ruim, se levarmos em consideração que ela é mais
uma das “moças da beira-mar”, vendendo não apenas as flores mas a si mesma a gringos ou
pervertidos com dinheiro.
P.S - Esta crônica, por dar título ao livro, pode ser utilizada. Lembremos do que aconteceu
com Dizem que os cães vêem coisas, de Moreira Campos, no outro vestibular.
2. Crônica surrealista
Como o próprio título diz, o que temos é a projeção de coisas e fatos improváveis,
intangíveis ou impensáveis, mas que mesmo longe do nosso cotidiano estejam sujeitas a
acontecer, principalmente se dependerem do nosso inconsciente. Um passo no escuro,
alguém que chega, alguém que vai e outras coisas “estranhas” como desde o enterro de anão (
que ninguém vê, mas existe ); um anjo bêbado caído na calçada com as asas sujas de vômito;
uma criança loura de tranças azuis ( relacione com um dos contos de Pedro Salgueiro ); um
pote de lágrimas no fim do arco-íris; uma princesa e um sapo passeando de braços dados ; a
mulher barbada do circo comprando lingerie; o botão de rosa enfeitando o morto ou um
simples gole de absinto ( a fada verde ) capaz de nos fazer ver tudo isso.
P.S – Além de uma certa relação intertextual com Pedro Salgueiro, em “O menino do cabelo
azul”, devemos observar que: se a crônica é feita de coisas comuns do nosso dia-a- dia, esse
seria um bom texto sobre coisas incomuns em nosso cotidiano.
3. Figuras urbanas
Outro flagrante bom do autor que bem demonstra o que é a crônica. O narrador analisa
uma estranha criatura, que vive sentada em um batente tendo ao lado um saco de plástico e
uma garrafinha de cachaça. Não parece com nada e com tudo ao mesmo tempo. Não é
mendigo, ( mas parece), nem louco, ( mas parece), nem profeta, ( mas parece). O que ele não
sabe é que, sem querer, poetiza as manhãs de quem o observa. Logicamente, uma “crônica de
linha social”.
P.S – Nesse texto, dotado de uma plasticidade incomum, Airton Monte produz uma de suas
melhores crônicas, pois ficamos diante de um quadro social, do nosso dia-a-dia, tão comum
que não nos assustamos com ele e por isso quase não nos preocupamos que exista.
4. Feliz aniversário, Fortaleza
Crônica-advertência de homenagem a Fortaleza, um dos mais fortes motivos de Airton Monte.
Nesse texto, o cronista demonstra uma clara preocupação com nossa cidade, uma preocupação
sincera sobre o crescimento desordenado ( a Beira-mar irrespirável e intransitável ) e a violência
constante ( assaltos e seqüestros vistos antes apenas pela televisão ). O cinismo do bolo diante do riso
ignorante da gente faminta, sem motivos para comemorar, apenas para comer e levar o resto nos
294
bolsos. Fortaleza é um simulacro (imitação grotesca) de si mesma, sinal de que um dia já prestou,
provavelmente nos anos 50 e 60, em “priscas eras”, como bem disse o autor.
P.S – Esse texto que apresenta a mesma postura de “A morte anunciada”, outra crônica do livro sobre
Fortaleza, provando que, vez por outra, com ou sem a intenção, o cronista acaba se reescrevendo, ou
seja, fazendo um diálogo com ele mesmo, uma relação intratextual.
5. Por que torcer Botafogo
Uma das melhores crônicas do livro, seguindo os passos de Sérgio Porto, também conhecido
como Stanislaw Ponte Preta, que tinha como grande assunto o futebol ( Flamengo x
Fluminense), o que temos é uma justificativa dada pelo autor sobre o seu “time do coração”.
São lembranças do pai, um dos motivos da escolha; da primeira bola que ganhou, comparada
ao toque do corpo de uma mulher, dentre outras declarações de amor ao time. Lembra Nelson
Rodrigues, que dizia que o “torcedor do Botafogo era masoquista do ludopédio”,pois quanto
mais o time apanha, dele se gosta mais. Para o narrador, torcer Botafogo não é para qualquer
um, pois exige, dentre outras coisa, uma paciência de Jó e um estoicismo de profeta.
P.S. – O texto é bom porque o cotidiano futebolístico do brasileiro fica em evidência. Se
somos representantes do futebol e do carnaval, nada melhor que uma boa crônica para
demonstrar isso. Esse texto é igual para todos, seja você torcedor do Fortaleza ou do Ceará,
do Ferroviário ou do Guarani de Sobral, a dor, quer dizer, a emoção é a mesma. Mas
lembremos que o cronista pelo menos tinha o Mané Garrincha ( Anjo das pernas tortas), e
nós? O que temos?
6. La belle dame sans merci
Em mais um bom texto do autor, o que temos é a preocupação comum e cotidiana do
ser humano com um problema dos mais universais: a morte. Aconteça o que acontecer,
nunca estaremos preparados. A partir do enterro da esposa de um amigo, o cronista começa a
pensar nEla, la belle dame sans merci, a Bela dama sem perdão, a Morte. Ao chegar em
casa, coloca-se no lugar do amigo e pensa em como seria infeliz se sua amada morresse.
Encerra o dia chorando feito uma criança.
P.S - Observemos que não apenas nessa crônica, mas em várias outras, o autor aborda, direta
ou indiretamente, o maior de todos os dramas humanos: a Morte. Isso acontece em Minha
Santa, Crônica Melancólica, A mulher de preto, Crônica surrealista, dentre outras.
7. Os olhos das crianças de Bagdá
Nesse outro texto bom do autor, o que temos é uma avaliação crítica e certeira de algo que tanto
nos incomoda na atualidade, o olhar assustado e triste das crianças que vivem em paises onde a
guerra é uma realidade, atraente para os noticiários e repulsiva para as nossas mentes. O narrador
está preocupado com o pouquinho de infância que está sendo roubada a cada instante. Os mesmos
olhos são vistos nas crianças de nossa cidade, largadas pelos sinais, com as pupilas reluzindo ódio e
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medo. Até quando veremos crianças com os mesmos olhos das crianças de Bagdá? Essa é a pergunta
indignada e preocupada do autor.
P.S. – Lembrando que a guerra impede os sonhos, não importando se em Bagdá (principal idéia do
texto), na Venezuela, atualmente em conflito, ou mesmo na guerra urbana que se alastra pelo nosso
país, não importando se na Rocinha ou no Lagamar, podemos dizer, sem utopias, de forma realista,
que esse olhar ainda vai se expandir. Talvez ninguém veja, nem imagine, o que é pior, mas a Literatura
me faz ver um grupo de soldados americanos matando impiedosamente vários homens. Ao lado,
vendo tudo, algumas crianças de 9 anos, filhos, irmãos e sobrinhos desses homens. Aquela imagem
ficará em suas retinas e o ódio crescerá em seus corações... Um dia, esses meninos de 9 terão 19, e
mais de 1000 motivos para levar esta guerra até o fim. Este é um olhar um tanto místico, meio
profético, bem visionário, capaz de nos contar das muitas desgraças que ainda virão.
Observações importantes!
11. A Crônica existe desde o Humanismo, denominada crônica histórica, e foi pródiga no período
da Expansão Ultramarina. Ex. Carta a El-Rei., de Pero Vaz de Caminha.
12. Em Portugal, a crônica histórica ganha um contorno literário com Fernão Lopes. Ex. Crônica
do Rei D. Pedro, de Portugal
13. No Brasil, foi bastante valorizada no Romantismo e principalmente no Realismo. Maiores
nomes: Machado de Assis e Olavo Bilac.
14. Na terceira fase do Modernismo(1945) houve um grande resgate do Conto e da Crônica. Os
maiores nomes da crônica foram: Rubem Braga, Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta,
Nelson Rodrigues e Paulo Mendes Campos.
15. Carlos Drummond de Andrade e Rachel de Queiroz foram respectivamente poeta e romancista
que se destacaram na Crônica nos dias atuais.
16. Maior nome da crônica na atualidade: Luis Fernando Veríssimo. Mentiras que os homens
contam.
17. Maior nome da crônica do Ceará: Milton Dias com As cunhãs e Relembranças.
18. Airton Monte mistura, às vezes, conto e crônica, num hibridismo salutar para os dias de hoje.
19. Airton Monte sofre grande influência de todos os grandes cronistas, mas principalmente de
Nelson Rodrigues.
20. Também é muito forte a presença de Vinicius de Moraes nas crônicas e nas motivações
poéticas de Airton Monte.
Crítica
Nesse volume de crônicas, passamos a conhecer um escritor dito “ da terra” , que
colabora basicamente em jornais, mas que já tinha algumas coisas publicadas, por exemplo o
livro de contos, O grande pânico (1979) . Em suas crônicas encontramos basicamente a
matéria primordial do gênero: o cotidiano. Em seguida encontramos o tempo, a vida, as
coisas da vida, a mulher, a família, os amigos, o trabalho, as paqueras, o bar, a cerveja,
as belezas e os problemas de Fortaleza, tudo o que for prosaico ( ou não, como uma “
crônica surrealista” ) e até mesmo o que fazemos questão de nem discutir ou saber: as
guerras e a morte.
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Atentemos também para a estreita relação do cronista com a Poesia ( O desertor da poesia ) e
com a obra de Vinicius de Moraes ( sua sensualidade patente), quando percebemos um criador de
metáforas dos melhores, em frases lindas como “ O domingo era como um cachorro dormindo aos
meus pés” . Para além dessas questões devemos observar, de forma crítica, os momentos em que
escrever, ao menos para um cronista, alguém que ganha dinheiro para escrever, acaba se
transformando em algo trabalhoso, ou penoso, principalmente quando lhe falta inspiração.
Em suma, é um bom escritor, aprimorando-se a cada dia nas crônicas que escreve, pois a prática o
levará à perfeição, e algumas de suas crônicas, nesse livro precisam ser retocadas.
49 - A Vinha dos Esquecidos – João Clímaco Bezerra
Numa perspectiva teológica, a partir da palavra “vinha”, o que temos é metaforicamente um lugarejo
meio “esquecido” por Deus. Esse título demonstra muito bem com o grande problema enfrentado por
uma das personagens centrais, Padre Anselmo, um sacerdote que se vê às voltas com uma série de
dramas particulares e ainda tem que pedir a Deus pelos seus paroquianos. A medida que as coisas
pioram, mais desesperado vai ficando o padre que não tem mais certeza se Deus olha mesmo por todos
ou parece esquecer de certas pessoas...
O Grupo Clã
Importante movimento literário ocorrido no Ceará nos anos 50, pois foi fundado já
em 1948, era composto por Aluísio Medeiros, Antonio Girão Barroso (historiador),
Antonio Martins Filho (idealizador da UFC), Artur Eduardo Benevides( príncipe dos
poetas cearenses ), Braga Montenegro (crítico), Eduardo Campos (teatrólogo), Fran
Martins, João Clímaco Bezerra ( romancista), José Stênio Lopes, Lúcia Fernandes
Martins, Milton Dias (cronista) , Moreira Campos (contista), Mozart Soriano Aderaldo e
Otacílio Colares.
Em fevereiro de 1948, sob a direção de Fran Martins, saiu o número 1 da Revista
Clã. Primeiramente publicada com recurso dos próprios autores sendo posteriormente
publicada pela Imprensa Universitária. Teve trinta números (o último é o 29, mas houve
um número zero, bem antes do primeiro exemplar). Era na verdade uma agremiação que
resultou não apenas numa revista, mas em um movimento intelectual dos mais
importantes do Ceará, como diziam no seu próprio programa:
“CLÃ não é, apenas, uma revista de literatura. É, antes, uma revista de todo o Ceará
mental. Aqui, na medida do possível, recolheremos o trabalho dos nossos homens de
letras e de pensamento, pois a pretensão que nos anima é sermos porta de saída da melhor
produção intelectual da gente cearense, de tal modo que ela possa aparecer lá fora, nítida
na sua pureza, numa demonstração convincente de que a gloriosa Província de Alencar
continua a viver, a se agitar, na procura sempre insatisfeita de rumos novos para a cultura
brasileira.” Revista Clã n° 0.
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O autor e sua obra
João Clímaco Bezerra nasceu em Lavras da Mangabeira, cidade vizinha ao rio Salgado
e próxima ao Cariri. Pertencente a uma família de negociantes e agricultores, sempre teve
apreço pela área do comércio. Por ironia, acabou como funcionário público e bacharel como a
maioria de seus colegas, dos quais destacamos Arthur Eduardo Benevides, Eduardo
Campos, Antônio Girão Barroso e Moreira Campos. Numa apresentação de sua novela
Longa é a noite, publicada na revista Clã, conhecemos melhor o autor; provavelmente por
suas próprias palavras. “ Escreve pouco e devagar, nem por isso acha que escreve bem. Vive
atormentado pela forma e corrige obstinadamente tudo o que escreve. (... ) Lê, de preferência,
os maus livros. Dão-lhe a certeza de escrever melhor e afastam o perigo das influências. (... )
Admira desde criança Eça de Queirós, em cujos livros aprendeu a ler, afirma com uma alta
dose de ironia. ( ... ) De Machado de Assis lê capítulos esparsos pelo menos três vezes por
semana, como quem toma injeção de cálcio ou vitamina. ( ... ) Já leu Angústia , de Graciliano
Ramos oito vezes e não se encabula de proclamar que ainda espera ler outras tantas. “(In.
Revista Clã no. 11). Seu romance de estréia foi Não há estrelas no céu, em 1948. Escreveu
também Sol Posto, mais um romance, e a novela Longa é a noite, uma de suas obras primas,
onde encontramos, segundo a crítica, um pouco de André Gidé ( romancista francês,
homossexual, de rígida educação religiosa, autor de Sinfonia Pastoral, ganhador do Prêmio
Nobel de Literatura em 194), embora o autor afirme que nunca o leu. Como ele mesmo dizia:
“ Sou um homem comum, sem grandes problemas e sem grandes sonhos. Um homem
tranqüilo que realiza a sua arte sem a mínima preocupação da posteridade”. Obra:
Romances: Não há estrelas no céu (1948); Sol posto; Os órfãos de Deus. Novela: Longa é a
noite. Crônicas: O homem e seu cachorro; O semeador de ausências. Ensaios: Juvenal
Galeno; Humberto de Campos.
Análise
O romance começa falando do Padre Anselmo que acorda assustado de um pesadelo.
Lembra-se da mãe, de seus conselhos. Pancadas na porta. Era o negro Zacarias que veio
chamá-lo porque a mãe estava nas últimas. Arrumou-se. Pensou em seus dilemas, em suas
crises de fé. Aquelas lembranças sempre vinham quando ia levar aos agonizantes a palavra de
Deus. No caminho,pensava na Morte. Incrivelmente, era algo que o fascinava. Como explicar
aquilo? Como dizer a alguém que gostava de ver gente morrendo?
“Queria vê-las sofrendo, debatendo-se contra o impossível; os olhos esbugalhados, a
respiração ofegante, o corpo inerte, o peito murcho”. Bela é a morte!
Dizia consigo. Avisou a Zacarias que a alma da velha Isaura já não era desse mundo. “É o
destino,meu filho. Todos nós vamos um dia... ninguém foge”
Alternando o ponto de vista, como diria Todorov, pois temos duas personagens
importantes, o narrador, em terceira pessoa, agora conta história de Zacarias. Rapaz
trabalhador, sem estudo, mas que tinha na vida apenas a mãe, ex-prostituta, que sempre fizera
298
de tudo pelo filho. Zacarias só não queria estudar.... mas tudo era culpa de um professor, Seu
Vitorino, que sempre lembrava que “Lugar de negro era na senzala. “. Depois de muita
humilhação, Zacarias defendeu-se de Vitorino com um canivete. Abandonou a escola para
sempre. O texto alterna, em flash-back, momentos do passado ligados à realidade. Zacarias
precisa fazer algo para dar um enterro decente a sua mãe. O padre ajuda. Seu Leandro,
“caso” de Isaura em outros tempos também colabora. Zacarias faz o que pode. Os vizinhos
ficam cuidando da morta. O filho bom de Isaura conseguira fazer da mãe alguém de respeito
naquele lugar. O passado não lhe condenava mais. O enterro foi bastante concorrido. No dia
seguinte, Zacarias chora lembrando do almoço que a mãe sempre lhe preparava para levar ao
trabalho na fábrica. Como iria ser dali por diante?
Anselmo passou a noite em claro rezando seu breviário e lembrando da mãe, dos
conselhos, das orações, das injustiças, a mãe era professora, e doía-lhe não ser escolhido o
melhor da classe. A mãe lhe dizia que as pessoas iriam achar que era proteção. No momento,
as crises estão menores, mas já questionou Deus até por não ter força para largar o cigarro.
Deus não o ajudava nem nisso! Um padre mais chegado lhe dizia que ele devia tentar “imitar”
e não “ser” o próprio Cristo. Olhos perdidos na noite, Anselmo tem medo de ir dormir e ser
acordado pelos sonhos de pavor. Rezava tanto, mas não conseguia a paz. Rezou,
compenetrado, a missa da pobre Isaura.
Zacarias, nos dias que seguiram, pensava mais ainda na vida. Pensava na mãe,lembrava
dos homens transando com ela, da cama de varas gemendo, dos homens brutos que ela tinha
de agüentar. Lembra do dia em que foi desafiado por uma “emboladeira”. Respondeu o
improviso de forma automática. Todos riram. A mãe não gostou. Foi seu primeiro contato
com a poesia.
Anselmo continua em sua auto-avaliação. Pensa repetidas vezes sobre seu papel na
Igreja, as mudanças na missa. As idéias de Tristão de Athayde, de Dom Helder ( padre
perseguido pela Igreja como comunista ) e do Padre Boff ( professador maior da Teologia da
Libertação ). Lembra que a missa, a oração não exige linguagem superior, mas acha que em
latim a coisa fica mais forte, mais bonita. Em português comum e simples talvez Deus nem
ouça. Entregava-se às suas rosas e abelhas, passatempo que adorava. Lembra de um pecado
seu da infância. Já ligado à Morte. Empurrara o carneirinho de um menino no precipício. O
animal morreu e o menino ficou sendo o culpado. Foi à igreja, rezou e confessou, mas não se
sentia perdoado. Passou a detestar animais de estimação. Um pecador! Um homem que não se
compadecia com a morte dos bichos, ao contrário , gostava de vê-los morrer, de ver sua
agonia. Seria a vitória da Morte?
Zacarias continua se lembrando de sua mãe, de como ela trabalhava e dava duro para
sustentá-lo. Lembrava que sua mãe lhe falara das estrelas.
“Só os valentes viram estrela: Lampião, Antônio Silvino. A mãe, antes de morrer, lhe dissera:
Você é um homem! Precisa de uma mulher. Se é de ficar por aí se arriscando, por que não
casa?” E ele respondia: “Vivo no trabalho, não tenho nem namorada. Quem diabo vai querer
um negro que fica ainda mais preto na beira da fornalha?” p.42
Lembra-se de algumas negrinhas que conheceu: Olinda, Helena...teria amado? Não sabia.
Lembra do velho Laurindo, que contava coisas de Canudos, de Conselheiro, de Padre
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Cícero, de Lampião e Antônio Silvino. Gostava daquelas histórias. Trancou-se no escuro e
deixou que a noite continuasse lá fora... ( A alusão a essas personagens dão ao romance um
aspecto regionalista que, embora fraco, deve ser considerado).
Padre Anselmo continua com o seu mundo de tormentos. Guardava para si um segredo
irrevelável por conta da tradição. Seu Inácio, homem rico da cidade, estuprara e matara uma
menina de doze anos, mas espertamente conseguiu se safar botando a culpa no pobre
Pedrinho, um jovem trabalhador e honesto. Rapaz de bem, recém-casado, que ia passando
pelo local em busca de alguma caça. A polícia o prendeu, foi julgado e condenado, mas Inácio
continuava livre,desfrutando a vida, jogando alegremente com o juiz e o delegado. Era um dos
grandes da cidade. Nada poderia mudar isso. Em certos momentos, quando o assassino
aparecia na igreja, o padre tentava persuadi-lo a dizer a verdade e salvar um inocente, mas ele
não se resolvia. Enquanto isso, Pedrinho e sua família morriam aos poucos. O padre
questionava Deus por isso. Sentia-se mais arrasado ainda quando visitava Pedrinho na cadeia.
Passa a refletir sobre a Igreja e seus ritos, seus princípios não eram os mesmos. A Igreja
mudara muito. Padre Anselmo é sempre ajudado por Zé Sacristão e a Negra Joana, já idosa,
que o criara desde criança.
Zacarias continua sentindo a falta da mãe, entrecortando tudo isso com seu trabalho na
fornalha da fábrica do seu Leandro. No caminho do trabalho, passou na padaria do seu
Antônio, para quem trabalhara na infância. Chegando à fábrica, o negro Justino, negro
esperto, pede para apitar a caldeira. Zacarias o admira. Justino era um menino-homem.
Pareciam-se. Lembrava do que a mãe dissera uma vez: “Sentimento de mulher passa logo. De
homem é mais demorado, mais sincero... Se é que homem tem sentimento.”p.56 Lembrou dos
pa~es de seu Antônio – Se a mãe fosse viva levaria um para ela.
Padre Anselmo recorda alguns ensinamentos e certos eventos da cidade, como a chegada
dos primeiros protestantes gerando um monte de polêmicas.
“Quem vender qualquer coisa aos protestantes está amaldiçoado, condenado aos infernos.
Deus não perdoa. E negam Nossa Senhora. A virgindade de Nossa Senhora. Um horror,meu
filho.”p.61
Lembra também da lição que recebeu de Frei Leôncio: “Eu não interrogo Deus, não (... )
Acho melhor dizer: seja feita a Vossa vontade.”p.64 Um cheiro de rosas vinha do jardim.
Cuidar de rosas e abelhas era do que mais gostava.
Zacarias lembra do dia em que foi à escola, graças ao esforço do Padre Anselmo. O padre
enfrentou muita gente para colocá-lo ali. Conversa com Justino sobre sua mãe, sobre o que ela
fazia. Enquanto sua mãe estava naquela vida ele não podia estudar, dizia. Justino também fala
de sua mãe: “Braba, mas boa”.
Padre Anselmo, sem conseguir dormir, repassava em sua vida a história das casas de sua
infância ( relacionar com Natércia Campos, A Casa ).
“As casas são, como as criaturas de Deus, testemunhas de dramas, de tristezas, de alegrias, de
sonhos. Apenas não falam”. P.71
300
Da última vez que se confessara, Frei Leôncio o advertira sobre o cansaço, que precisava
ir ao médico. Dizia-se apenas um pouco enferrujado. Lembrou de um amigo de seminário,
Luis Paiva, que botou na cabeça que um dia seria bispo e foi motivo de riso entre os
companheiros. Agora, das voltas que o mundo dá, estava diante de Dom Paiva, que o
surpreendera dizendo: “Eu é que devo beijar a sua mão. Você é o mais santo de todos”.p.73
As lágrimas desciam de seus olhos, pois ninguém sabia seu drama: era mau, matava com
prazer seus animais de estimação; sentia um estranho prazer quando ia dar a extrema unção
aos moribundos. O sofrimento deles parecia lhe fazer bem. Um pecador! Santo não! Tinha
outro problema: o pai morrera havia mais de cinqüenta anos, e não guardava dele a
mínima lembrança, nem física nem de gesto. Mais uma sombra na sua vida.
Na fábrica de seu Leandro, um grito de morte atravessou a sala das máquinas. Homens e
mulheres juntaram as coisas da pobre Zefa e desenvolveu-se todo aquele clima de morte. À
noite, no casebre da velha, os homens revezavam a garrafa de cachaça boca em boca. Um tal
de Clarindo chegara da capital com umas idéias de sindicato, greve e direitos trabalhistas. Os
demais estranhavam aquelas idéias, mas a morte da velha e seu desamparo já os fazia pensar.
No entanto,para a maioria, seu Leandro não era apenas um patrão comum, era um amigo,
quase um pai, ajudando a todos na hora da precisão. Zacarias, ali presente, estava triste.
Tomara alguns tragos e estava calado. Foi então que surgiu Maria, uma caboclinha linda,
batedora de algodão, roçando seu corpo no do negro, sorriu para ele e brincou. Zacarias
acariciou a mão da negrinha. Em sua cabeça passavam pensamentos leves, suaves, doces, e
ele externou tudo isso numa frase: Maria é um nome bonito!
Padre Anselmo, por sua vez, lutava para se adaptar à nova liturgia, às palavras da nova
Igreja; palavras como enfatizar, enfocar e conscientizar, estranhas na Igreja de antigamente.
Lembrou de D.Anunciada, uma professora que aparecera com umas novidades de Educação
Sexual. As senhoras pudicas da cidade trataram logo de expulsá-la. Ela reagia: O que é
melhor: aprender cientificamente ou aprender nas calçadas como imoralidade? Uma coisa que
mais hoje, mais amanhã todos irão saber!”p85. Os costumes estavam mesmo mudando. As
calças compridas e o cigarro tomavam conta do gosto das moças da cidade. Recebeu a visita
do Padre Pierre, um pregador da Igreja moderna a que tanto temia. Dizia que os casais
precisam se entender melhor, na perspectiva da alma e do corpo. “A esposa precisa satisfazer
o marido para que ele não busque na rua o que não encontra em casa.” Padre Anselmo suava
frio e tinha vergonha das palavras do colega no altar. Pierre celebrava como um artista,
parecia mais uma representação, pensava Anselmo e se assustava. ( E é que ele nem conhecia
o Padre Marcelo Rossi )
Zacarias saiu do velório de Zefa às quedas de bêbado. Maria o ajudava a ficar em pé.
Passaram perto do cemitério, falou-lhe de sua mãe. Ela o consolou dizendo que todos
morreremos. O sono vinha chegando. Uma esquisita vontade de deitar ao lado de Maria e
tirar-lhe a roupa, de possuí-la. Resolveu ir para casa tomar um banho e um café. Não podia
ficar bebendo daquele jeito e perder Maria. Ela voltou para o velório. Zacarias, depois do
banho, acompanhou a jovem e a mãe dela até em casa. Sentia-se leve na volta, como se a
bebedeira tivesse voltado... Na verdade, estava apaixonado.
Os sermões de Padre Pierre ficaram mais assustadores, mas estranhamente atrativos. As
famílias, ricas e pobres, vinham em peso. Anselmo o ouvia.
301
“Veja, padre, essa senhora mãe de seis filhos manda um recado. Quer saber se deve atender ao
pedido de seu marido. Ele quer possui-la contra a natureza. É possível? “Não se escandalize,
padre, com a minha resposta; porque eu digo que ela deve dar o prazer que o marido procura.
Assim como o marido deve sempre levar à mulher uma nova fonte de prazer.”p.100
De cabeça baixa, padre Anselmo deixou que as lágrimas lhe corressem pelo rosto. Em
casa, à noite, teve pesadelos. Não tinha por quem chamar, mãe nem pai, só a negra Joana o
socorreria. Chorou como nunca chorara antes.
Zacarias tinha muitas imagens na cabeça. Sua mãe morta; Zefa sendo levada ao
cemitério... mas a imagem que mexia com sua cabeça era a de Maria. Conversava sempre com
Justino. Lembrou do dia em que deixara o cego Odilon no meio do trilho depois que o velho
se insinuou maliciosamente para sua mãe. Não se arrependia disso. O cego mereceu. Pensa
sobre a vida; como as coisas mudam para quem estuda! Justino um dia sairia da fornalha para
um lugar melhor. Isso era certo!
Padre Anselmo rezava à virgem Maria para que o perdoasse e ajudasse, que lhe desse
coragem para contar o que sabia. Enquanto isso, Pedrinho sofria na cadeia. Inácio continuava
gozando de respeito na cidade. Estava preso ao segredo da confissão. Numa reunião com as
pessoas poderosas da cidade Anselmo diz que Pedrinho está muito doente e que precisa ser
tratado, de preferência em casa, pela esposa. O juiz e o delegado prometem pensar no assunto.
Dentro da noite, na porta de casa, Zacarias costuma tocar seu violão. Lembra da mãe e da
oração aprendida. “Com Deus me deito, com Deus me levanto... “ Lembra de quando vendia
pirulito. As beatas detestavam quando ele passava gritando: Pirulito! Pirulito! (... ) Pobre foi
feito para trabalhar. “ Uma mulher se aproxima. A lua está bonita. A mulher chega bem
perto dele. Vem dela um cheiro bom. Ela tem um corpo bonito. Falam de homens corajosos
que morreram e viraram estrela no céu; Delmiro Gouveia ( ideal do trabalho) e Lampião (
heroísmo e subversão ). Os cegos cantadores deviam estar todos lá no céu... A mulher foi
chegando...foram entrando... A mesma cama em que a mãe morrera agora recebia aquele dois
corpos. A mão da mulher descia no seu corpo. Ela gemia como uma gata no cio. “No seu
corpo Zacarias penetrou como se entrasse no céu. Virara estrela. Estava longe, muito
longe.”p.134
Padre Anselmo, indo visitar um moribundo, tem uma experiência difícil. Durante o sono,
misturado a pesadelos nos quais matava pequenos bichinhos de estimação, um misto de
erotismo e medo tomava conta de seus pensamentos... teve uma ejaculação noturna. Pobre
dele e pobre daquela gente. O sentimento de culpa é muito grande nessa hora, por isso a
comparação com O crime do Pe. Amaro (Eça de Queirós) é só o começo para percebermos
como é verdadeira a influência.
Zacarias se sente mal. Maria aparece na fábrica, mas ele não se sente à vontade para
conversar com a moça. Alice, a prostituta com quem dormira, também aparece por lá. Alice
estava praticamente vivendo na casa dele. Sentia-se profundamente incomodado. Gostava de
Maria, mas não conseguia expulsar Alice. Pensava no que fazer. Todos notam o seu estranho
comportamento.
Padre Anselmo continua cuidando de suas rosas. Para ele as rosas são como pessoas.
Dizia conversar com as rosas e até ouvi-las. A negra Joana sempre duvidava. Dizia que ele
estava ficando era doido! Ele ria.Algumas pessoas até diziam que padre Anselmo era santo e
302
que suas rosas faziam milagres. Encontrou Laura, esposa de Pedrinho, e disse a ela que
rezasse que Deus traria coisas boas. Saiu contente, teve saudades do tempo de menino.
Zacarias, sentado à porta de casa, pensava no que fazer com Alice. Não pagara o serviço.
Ela também não pedira. Na fábrica, fugia da caboclinha Maria. Por que não casava direitinho
com a Maria? Alice se aproximou. Seu vulto se confundiu com a noite e com Maria. O que
diria a caboclinha quando soubesse daquele chamego? Entraram.
Enfim uma notícia boa! Padre Anselmo recebe o recado de que Pedrinho poderia ir para
casa, apenas para se tratar, mas já era alguma coisa. Pegou o preso e caminharam para casa.
Laura abraçou o marido. A rua ficou em festa. Anselmo convidou a todos para rezarem um
terço. Depois, Pedrinho ficou em sua casa, com a esposa e seus filhos. Era mesmo uma coisa
boa.
Zacarias continuava arredio. Justino percebeu e se mostrava amigo. Zacarias queria se
abrir com o amigo,mas teve medo. Depois de algum tempo, resolveu falar sobre Alice. Justino
deu-lhe bons conselhos. Que mandasse a mulher embora e contasse tudo a Maria. Zacarias
ficou olhando o garoto Justino. Pensava como homem, ia trabalhar no escritório, ia ser gente...
Bateu-lhe no ombro orgulhoso e recompensado.
Há muito tempo Padre Anselmo não dormia tão bem. Acordou, fez a barba e foi para a
Igreja. Rememorava o caso de Pedrinho. Inácio um dia iria pagar. Mas quando? As coisas de
Deus são muito estranhas... Ao final, Deus haveria de perdoar a todos e redimir os puros e
arrependidos.
Zacarias demorou a ir para casa. Ficou rodando pela cidade, ganhava tempo. Não se
deixaria vencer novamente. Aproximou-se da casa com o passo vacilante, mas estava disposto
a cortar o mal pela raiz. Entrou e, sem muita conversa, foi logo direto ao assunto dizendo a
Alice que ela deveria voltar para casa. A jovem foi embora triste, dizendo apenas que o jantar
estava sobre o fogão. Demorou muito a dormir. Pensava em Alice. Choveu. Embalado pela
chuva, deixou-se conduzir pela sonolência.
Padre Anselmo continuava refletindo sobre a vocação. O que ele queria com aquilo? Por
que Deus o fazia pastor daquelas ovelhas. Logo ele, um pecador! As pessoas ao redor
pensavam diferente. Houve até o caso de mulher, Dona Aninha, que tomara um chá feito
com as rosas do Padre Anselmo e se curara de uma doença grave. Era um santo.
Zacarias passava a limpo seus pensamentos e suas atitudes. Sentia saudade de Alice, de suas mãos
e caricias. Mas sabia que amava Maria, a caboclinha com quem deveria se casar. Naquele dia puxaria
o apito da fábrica como um violão só para Maria ouvir.
Padre Anselmo conversava com suas rosas. Falava sobre sua infância, sobre a inocência da negra
Joana, sobre a injustiça cometida contra Pedrinho. Dentro em pouco, um incêndio começara na fábrica
fazendo com que duas histórias se cruzassem. A vida do padre ( devotado aos pobres e trabalhadores )
e a vida de Zacarias, um exemplar vivo, digno da gente que ambos representam, tinha muito em
comum. O padre chega ao local. Padre Anselmo não gostava de aglomeração. Escondeu-se pelos
cantos ajudando a um e a outro. Zacarias enfrentou o fogo corajosamente. Justino sabia que deixaria o
amigo sozinho. Dali para frente iria paro escritório. Nada de ruim aconteceria, seu Leandro estava ali,
zelando por todos, a vida continuava.
Zacarias iniciou o serviço de limpeza das caldeiras. Era ajudado por Jorginho, irmão de
Justino,pois Justino conseguira com o incêndio o tão sonhado lugar no escritório de seu
Leandro. Jorginho não era como o irmão, já se via. Era calado, sem jeito para o serviço,
pouco atencioso. Uma certa antipatia se estabeleceu entre Jorginho e Zacarias. Aquele ali
303
tinha pouco do irmão. Maria não aparecia. As mulheres voltavam para a fábrica, pois seu
Leandro dera férias para todas. A saudade do negro aumentava. Será que ela ao menos sabia
que ele tinha mandado Alice embora? O incêndio teria sido provocado certamente por algum
fumante. E tanto que seu Leandro avisara. Os mais velhos louvavam seu Leandro. Homem
bom estava ali. No tempo do pai dele, seu Enoque, negro comia duro. “ Não tinha boas
palavras, não . Errou: castigo. Pegado fumando: rua. Não havia contemplação.”p.206 Clarindo
surgiu novamente com aquela conversa de sindicato e falando em indenização. Os mais
velhos não gostaram. Seu Leandro o chamou e pediu que respeitasse ao menos o prejuízo que
estavam tendo. Disse que tudo o que podia estava fazendo pelos funcionários. Clarindo saiu
resmungando. Zacarias, depois de conversar com Justino e revelar-lhe até o episódio da Alice,
tomou uma importante decisão: falaria com Maria e pediria sua mão em casamento. Justino o
incentivou ainda mais. “E o negro sentiu-se feliz. Era como se tivesse falado com a própria
Maria. “Vira-se de repente saindo da igreja. A festa. A casinha cheia de gente. O violão
tocando, os amigos bebendo. E a cama de varas rangendo com a benção de Deus.”p.209. [
Em dados momentos, certas frases apresentam uma estrutura antitética, o profano ( a cama
de varas rangendo, o sexo ) em choque com o divino ( a bênção de Deus, o casamento ]
Padre Anselmo,finalmente, acordara tranqüilo. Rezou o terço pensando há quantos anos
ele estava ali, há quanto tempo erguera aquele pequeno altar dentro do quarto. Lembrou de
sua mãe. A negra Joana ressonando lá para dentro dava-lhe uma certa paz de espírito. Desde
menino tivera devoção por Nossa Senhora: “Äve Maria,cheia de graça... “ leu uma passagem
do evangelho sobre Mateus, um cobrador de impostos. Encerrou pensando nessa frase:
“Misericórdia é que eu quero e não sacrifício”. p.211 Em plena madrugada, ao abrir a porta
para sair encontrou Inácio. Aquele homem pervertido implorava pela absolvição de seus
pecados. Padre Anselmo disse que não podia absolvê-lo, só poderia fazê-lo se ele se
arrependesse de seu crime e assumisse a culpa daquele ato tão horrendo. Aconselhou-lhe que
fosse à casa do delegado e contasse tudo. Inácio perguntou se outro padre poderia absolvê-lo.
Anselmo disse que não adiantaria, pois a absolvição é conquistada pelo arrependimento, não
era apenas uma mudança de padre.
A fábrica votara a trabalhar. Os funcionários se mostravam aliviados e bastante
alegres. Zacarias alimentava a caldeira com gosto ao lado do irmão de Justino, que não tinha
mesmo o calibre do irmão que era um menino-homem. Jorginho reclamava do serviço.
Zacarias tentou ensinar alguma coisa através de uma trova:
Até nas flores se encontra
a diferença da sorte
umas enfeitam a vida
outras enfeitam a morte.
No escritório, Justino trabalhava num lugar mais leve porque lutara por isso, mesmo que
seu Leandro marcasse cerrado até na caligrafia do rapaz. Um dia Jorginho também
conseguiria, bastava querer. Zacarias estava mesmo feliz. Conversara com Maria, falou com
firmeza, na se desconcertou, contou toda a história. Depois criou coragem e disse a frase
certeira: “Quer se casar comigo?” Ela aceitou, mas ele precisava falar com a mãe dela. Ele
sentiu uma vontade enorme de beijá-la. A fábrica reiniciava o trabalho. A casinha voltaria a
304
ser habitada e cuidada por mãos femininas. Casariam no padre e no juiz. Casamento de gente
pobre, mas um casamento. Naturalmente, teriam filhos, uma razão mais forte para a vida.
Depois, contou tudo a Justino. Agora estava tudo bem. “ Justino está bem, Maria está bem, a
fábrica está bem. E hoje,no fim da tarde, darei o apito mais bonito da minha vida.”p.222
Padre Anselmo olhava a noite; uma noite em que as estrelas brilhavam mais e as rosas
cheiravam no jardim. Ele bendizia a Deus aquele instante de paz, de sossego e de solidão.
Pensou na vida, no ser humano. Belas eram as estrelas no céu e toda a natureza criada por
Deus. Mas o homem não reparava nisso, prendia-se a coisas materiais e sem nenhum motivo,
pois tudo nessa vida há de se resumir a sete palmos de terra. E os mortos? O que pensariam os
mortos no silêncio de suas sepulturas? Nada! “O corpo se transformava em pó, o mesmo pó
de onde viera.”p.222 Lembrou de muitas coisas, do dia em que em sonho, quase um delírio, o
diabo o tentara, o deslumbrara. “Que triste seria o homem sem visão de imortalidade. Que
triste se tudo acabasse depois da morte!”p.224
Padre Anselmo sente que os devaneios o dominam, mas não quer entregar-se ao sono.
Pensava em seu destino, no dia em que tivesse de prestar contas com Deus. “Pastor, onde
estão as tuas ovelhas?” Do céu ele as mostraria, pequeninas e humildes, diferentes cada uma,
mas suas. Sentia-se orgulhoso e recompensado agradecendo a Deus pela felicidade de ter
nascido, de ter sido um de seus ministros, o mais obscuro, o mais esquecido, o mais pobre,
mas um sacerdote, um dos chamados, um dos que atenderam o convite. Pensou em Pedrinho.
Talvez dormisse àquela hora nos braços de Laura sob as bênçãos de Deus. Abençoou-o
mesmo de longe com o sinal da cruz. Inácio também dormiria em paz ao lado de sua esposa?
Ou estaria dentro da noite atormentado pelo remorso? Lembrou da frase do bom-ladrão no
Gólgota ( Este é um livro com muitas relações intertextuais. Portanto, “Leia a Bíblia. Se não
passar no vestibular, pelo menos você se salva!”) .
A cidadezinha dormia, só padre Anselmo velava por todos. Será que Deus perdoará
Inácio? Será que o demônio assediará a alma de Pedrinho, para que faça uma vingança?
Viverá ele, Padre Anselmo, para descobrir o grande mistério de Deus? Lendo um trecho da
Imitação faz uma oração por todas as almas:
“Vela por elas, Senhor, pois só tu és o pastor. Eu sou uma alma penada que, dentro da noite
imensa, pela tua misericórdia, contempla as estrelas que brilham tão longe e aspira o perfume
das rosas que cheiram na madrugada.”
O romance encerra subentendendo uma resolução aparentemente feliz para as duas
personagens. Zacarias, depois de muito penar, acabará se casando com Maria, atitude
suficiente para conseguir o que mais procurava: uma mulher para amar, uma mulher para
fazer sexo e até para substituir a mãe nos serviços da casa.
Padre Anselmo,por sua vez, depois de tanto se recriminar, de tanto remoer suas culpas
e suas frustrações também se encaminha para a felicidade, alcançada depois de muita
reflexão ( o livro quase todo ) e de seu arrependimento pelos pequenos crimes da infância
( a parte em que fala do Gólgota ), o que nos faz pensar sobre a provável intervenção de
Deus. A não ser que tenha mesmo nos esquecido...
305
Crítica
Depois de Não há estrelas no céu e Longa é a noite, onde demonstrou grande talento para
a narrativa longa, João Clímaco entrou num processo de maturação, de burilamento da
forma e da estrutura romanesca, algo que seria constatado em seus últimos textos como A
vinha dos esquecidos (1980). Leitor de Gogol, Tolstoi, Dostoiévski e Graciliano Ramos, de
quem extraiu o tom regionalista, ou simplesmente sertanista de alguns textos, João Clímaco
adquiriu a sobriedade necessária aos grandes escritores, um tipo de economia funcional capaz
de dizer muitas coisas com o mínimo de palavras. Por conta disso, em certos momentos já
praticado em Longa é a noite, encontramos períodos bastante objetivos, sintéticos,
demasiadamente pontuados, com finalidade de não deixar margem a outro entendimento. É
o que percebemos na seguinte passagem do romance:
“ Acordou sufocado. Uma sensação esquisita de que duas mãos em garras apertavam-lhe o
pescoço, como tenazes. O suor escorria pelo peito e a sede o atormentava.Acendeu a luz e
estendeu-se na cama, relaxando o corpo. Não. Não sonhara.” p. 5
Destacada a leve influência de autores soviéticos ( no discurso sobre os direitos do
trabalhador), para os quais a função social da literatura deveria sempre ser destacada,
ressaltamos principalmente no conflito interior vivido pelo Padre Anselmo, um homem
vigiado por si mesmo, um reflexo de clássicos como O crime do Padre Amaro, de Eça de
Queirós, e Crime e Castigo de Dostoiveski, criando um Raskolnikov de batina, o que só
aumenta o psicologismo da obra.
Em nossa opinião, os conflitos de Padre Anselmo, principalmente os de ordem teológica,
a sua intrigante relação com a morte, representam o que há de mais talentoso em sua obra,
pois algo parecido só foi conseguido por Oliveira Paiva e Adolfo Caminha, em alguns de seus
contos, e Rodolfo Teófilo na novela Violação.
A alternância do olhar sobre as personagens, ainda que permaneça um narrador em
terceira pessoa, proporciona ao leitor uma duplicidade e uma estreita necessidade de fazer
comparações e estabelecer relações, na verdade, já subentendidas que proporcionam uma
leitura bem mais esclarecedora, por exemplo, o fato de as duas personagens ( Anselmo e
Zacarias ) não terem a imagem do pai e viverem sob a égide da figura feminina, a mãe de
ambos que,mesmo, mortas, conduzem, de certa forma, suas vidas.
A relação de ambos com a morte e com o sexo feminino é também muito interessante.
Para Anselmo a mulher representa o que a Bíblia lhe apresentou, a mãe, a provedora da
família, no sentido espiritual, e por isso sua base sentimental, orientando, reparando e guiando
esposo e filhos no caminho da salvação, metaforizando a própria Igreja católica, daí o uso do
breviário somado às lembranças.
No caso de Zacarias, pelo tipo de vida que leva, pela classe comum e menos
intelectualizada a que pertence, a figura feminina, cristalizada na imagem da mãe perdida,
soma conceitos de carinho, amor (Maria), ausência, sensualidade ( Alice) e a trivialidade, do
inevitável desejo de fazer sexo. Zacarias também tem outra necessidade: alguém para tomar
conta dos serviços da casa. Estranhamente, enquanto poucos homens procuram a salvação,
Zacarias , procurando apenas alguém para cuidar da casa, acaba encontrando o amor.
306
O romance alimenta também uma discussão sobre a Igreja Católica e suas novas idéias à
época ( Dom Helder e Leonardo Boff sintetizados no estranho Padre Pierre...) em choque
com o medievalismo dolorido tão atual ( Imitação constante do Cristo? ). Existe também um
discurso interessante sobre a facilidade com que a gente humilde e crente transforma
qualquer coisa em milagre e qualquer pessoa em santo conforme suas necessidades. Enquanto
o Padre Anselmo se martiriza e se acha um pecador, o povo o tem como um santo. Nesse
ponto, também encontramos uma discussão sobre melhorias, ou não, da vida das pessoas
trazidas pelo estudo, o que fez com que Justino melhore a sua posição na fábrica de seu
Leandro. Mas lembremos que Zacarias não tem estudo, é apenas funcionário da caldeira, e
nem por isso parece infeliz.
Digna de nota também é a maneira como os trabalhadores reagem às iniciativas de
Carlindo que os incita a lutar por seus direitos, sindicalizarem-se e fazerem greve, pois em
vez de aceitarem o discurso de tonalidade social ( próprio da literatura soviética como Almas
Mortas, de Gogol) simplesmente têm o patrão como um amigo e quase um pai. É mesmo uma
estranha relação ou uma grande ironia do autor sobre a ignorância do povo da cidade.
Em suma,além de traços que poderiam nos sugerir um certo regionalismo, ao menos de
leve, pois a obra não se pretende a isso, muito mais a uma análise de indivíduos,
encontramos ainda um discurso conflitante, capaz de nos fazer pensar sobre a vida, sobre o
mundo, sobre as pessoas, e principalmente sobre Deus, questionando, como fez Anselmo,
certas coisas, certas injustiças, como os momentos em que parecemos abandonados,
esquecidos, órfãos, em algum lugar, provavelmente numa vinha, clamando por alguém, sem
saber se um dia seremos atendidos...
50 - São Bernardo - Graciliano Ramos
Autor e Obra
Nasceu em Alagoas e faleceu em 1953 no Rio de Janeiro. É considerado por alguns críticos o
prosador mais importante da Segunda Geração Modernista. Suas obras embora tratem de problemas
sociais do Nordeste brasileiro, não se esgotam numa perspectiva apenas regionalista, pois apresentam
uma visão cr´tica das relações humanas que as torna de interesse universal. É autor de Vidas Secas,
um dos livros que melhor representa o regionalismo da Geração de 30. Obras: Romance: Caetés; São
Bernardo; Angústia; Vidas Secas . Contos: Insônia. Memórias: Infância; Memórias do Cárcere.
Infantil: Histórias de Alexandre.
Momento Literário
Pertencente à Segunda Geração do Modernismo, Graciliano Ramos estreou com Caetés. Adotou
uma postura modernista ao inclinar-se a uma perspectiva social, marca registrada dessa geração. Ao
lançar Vidas Secas, passou a figurar como um dos melhores representantes do regionalismo de 30. No
entanto, se analisarmos a sua obra como um todo, veremos que Graciliano Ramos não escreveu apenas
com a perspectiva social, mas também humana, principalmente no que diz respeito aos problemas da
condição humana atraindo um forte psicologismo. Romances como São Bernardo e Angústia
apresentam um Graciliano voltado para o texto de Memórias, de reminiscências, atitude que só ficaria
mais acentuada no final da segunda fase modernista com a produção de autores como Cyro dos Anjos
307
( A menina do sobrado e O Amanuense Belmiro ) e Pedro Nava ( Baú de Ossos ). Resumindo,
Graciliano Ramos, principalmente em São Bernardo e Angústia adota uma postura intimista,
memorialista e psicológica, mas ainda assim, pertence à Segunda Geração do Modernismo
brasileiro.
Resumo
Este é, sem dúvida, um dos romances mais densos da literatura brasileira. Uma das obras-primas
de Graciliano , é narrado em primeira pessoa por Paulo Honório , que se propõem a contar sua dura
vida em retrospectiva, de guia de cego a proprietário da Fazenda São Bernardo. Ele sente uma estranha
necessidade de escrever, numa tentativa de compreender, pelas palavras, não só os fatos de sua vida
como também a esposa, suas atitudes e seu modo de ver o mundo. A linguagem é seca e reduzida ao
essencial. Paulo Honório narra a difícil infância, da qual pouco se lembra excetuando o cego de que
foi guia e a preta velha que o acolheu. Chegou a ser preso por esfaquear João Fagundes por causa de
uma antiga amante.
Possuidor de fino tato para negócios, viveu de pequenos biscates pelo sertão até se aproveitar das
fraquezas de Luís Padilha - jogador compulsivo. Comprou-lhe a fazenda São Bernardo onde trabalhara
anos antes. Astucioso, desonesto, não hesitando em amedrontar ou corromper para conseguir o que
deseja, vê tudo e todos como objetos, cujo único valor é o lucro que deles possa obter. Trava um
embate com o vizinho Mendonça, antigo inimigo dos Padilhas , por demarcação de terra. Mendonça
estava avançando suas terras em cima de São Bernardo. Logo depois, Mendonça é morto enquanto
Honório está na cidade conversando com Padre Silveira sobre a construção de uma capela na sua
fazenda. São Bernardo vive um período de progresso. Diversificam-se as criações, invade terras
vizinhas, constrói açude e a capela.
Ergue uma escola em vista de obter favores do Governador. Chama Padilha para ser professor.
Estando a fazendo prosperando, Paulo Honório procura uma esposa a fim de garantir um herdeiro.
Procura uma mulher da mesma forma que trata as outras pessoas: como objetos. Idealiza uma mulher
morena, perto dos trinta anos, e a mais perto da sua vontade é Marcela, filha do juiz. Não obstante
conhece uma moça loura, da qual já haviam falado dela. Decide por escolher essa. A moça é
Madalena, professora da escola normal. Paulo Honório mostra as vantagens do negócio, o casamento,
e ela aceita. Não muito tempo depois de casado, começam os desentendimentos. Paulo Honório, no
início, acredita que ela com o tempo se acostumaria a sua vida. Madalena, mulher humanitária e de
opinião própria, não concorda com o modo como o marido trata os empregados, explorando-os.
Ela torna-se a única pessoa que Paulo Honório não consegue transformar em objeto. Dotada de
leve ideal socialista, Madalena representa um entrave na dominação de Honório. O fazendeiro,
sentindo que a mulher foge de suas mãos, passa a ter ciúmes mórbidos dela, encerrando-a num círculo
de repressões, ofensas e humilhações. O casal tem um filho mas a situação não se altera. Paulo
Honório não sente nada pela sua criança, e irrita-se com seus choros. A vida angustiada e o ciúme
exagerado de Paulo Honório acabam desesperando Madalena, levando-a ao suicídio. É acometido por
imenso vazio depois da morte da esposa.
Sua imagem o persegue. As lembranças persistem em seus pensamentos. Então, pouco a pouco, os
empregados abandonam São Bernardo. Os amigos já não freqüentam mais a casa. Uma queda nos
negócios leva a fazenda a ruína. Sozinho, Paulo Honório vê tudo destruído e, na solidão, procura
escrever a história da sua vida. Considera-se aleijado, por ter destruído a vida de todos ao seu redor.
308
Reflete a influência do meio quando afirma: "A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida
agreste, que me deu uma alma agreste."
Resumo 2
Paulo Honório, protagonista de São Bernardo, inicia a narrativa recordando-se de quando
convidara alguns de seus amigos para escreverem o livro de sua vida. "Padre Silveira ficaria
com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a
sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária
convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro."
Homem de dinamismo e objetividade fortemente acentuados, antevê uma empreitada de
sucesso ao pensar na venda de mil exemplares após os elogios na Gazeta. Não entrando em
acordo com os possíveis colaboradores, resolve ele mesmo escrever a sua história.
Continua com a seguinte auto-apresentação: "Declaro que me chamo Paulo Honório, peso
oitenta e nove quilos e completei cinqüenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as
sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo têm-me rendido muita
consideração." Segue narrando a difícil infância que teve e da qual mal se lembra, a não ser da
preta velha que vendia doces, e hoje acolhe em sua fazenda, e do cego de quem foi guia. De
forma fragmentária e em tom regionalista, os fatos de sua vida sucedem uns aos outros desde
a mocidade. Esteve preso por esfaquear João Fagundes por causa da Germana, antiga amante
sua que virou prostituta. Foi na cadeia que aprendeu a ler. Fez biscates viajando pelo sertão,
comercializando miudezas e sofrendo intempéries, fome e sede. Prosseguiu sem descanso na
luta pelo capital, pois seu objetivo na vida era adquirir a fazenda de São Bernardo e vê-la
produtiva. Acerta contas com o Pereira, agiota e político, tirando-lhe tudo. Contrata capangas,
entre os quais Casimiro Lopes, para cobrar do Dr. Sampaio o que este lhe devia. Casimiro
Lopes segue-o por toda a vida. É um caboclo ignorante e rude. Na opinião de Paulo Honório,
"um bicho do mato e fiel feito um cão de guarda". Decide fixar-se em Viçosa (AL), onde
nascera. Trava amizade com Luís Padilha, filho de Salustiano Padilha, já falecido e antigo
proprietário de São Bernardo. Quando criança Paulo Honório fora lavrador na fazenda. Luís
Padilha, um tipo franzino, entregara-se ao jogo e à bebida. A fazenda encontrava-se em
lastimável estado de abandono. Paulo Honório negocia com Padilha a compra da propriedade
por uma bagatela. "Não tenho remorsos." São suas palavras ao término da negociação. De
posse de São Bernardo, tem início uma disputa velada pela demarcação da propriedade entre
Paulo Honório e Mendonça, antigo inimigo de Salustiano Padilha. Mendonça seu vizinho,
avançara para as terras de São Bernardo. Mendonça é morto enquanto Paulo Honório está na
cidade conversando com Padre Silveira sobre a construção de uma capela na fazenda. Na
noite anterior Paulo Honório e Casimiro viram um empregado de Mendonça rondando a casa.
Conhece seu Ribeiro na Gazeta, na qual exerce a função de gerente. Convida-o para ser
contador e guarda-livros em São Bernardo. Seu Ribeiro, homem letrado de nobre caráter,
resolvia os problemas de toda a gente em sua terra natal antes da chegada do progresso.
Depois passou por grandes privações. Paulo Honório progride muito em cinco anos. Invade
terras vizinhas, desenvolve a pomicultura e a avicultura, constrói estrada de rodagem para
309
transportar os produtos produzidos em São Bernardo, constrói açude e capela. Costa Brito
elogia seus feitos na Gazeta em troca de paga. A fazenda possui serraria e descaroçador. A
mamona e o algodão lhe rendem bons lucros. Mantém um rebanho regular. Faz negociações
com o governo; João Nogueira é seu intermediador e advogado. Constrói escola na fazenda
em troca de favores. Visando sempre a produção da propriedade, acaba por estabelecer
relação de extremo autoritarismo com os empregados. As condições de vida destes são
lastimáveis: alimentam-se mal, sofrem moléstias e vivem em barracos úmidos. Espanca-os
quando julga necessário. Freqüentam a casa de Paulo Honório: João Nogueira, Gondim,
Padilha, Padre Silvestre, Dr. Magalhães. Há sempre influência da classe dominante sobre os
negócios. O Dr. Magalhães, juiz, foi o único poupado quando Paulo Honório invadiu as terras
circunvizinhas a São Bernardo. A determinada altura, com a fazenda já sob controle, Paulo
Honório decide casar-se. "Amanheci um dia pensando em casar. Não me preocupo com
amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é bicho esquisito, difícil de
governar. (...) o que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo."
Com o firme propósito de casar-se, idealiza uma mulher morena , forte e saudável, com
trinta anos. Pensa em todas as mulheres disponíveis que conhece e chega a conclusão de que
Marcela, a filha do juiz, está mais de acordo com sua fantasia.
Vai à casa do juiz e lá conhece uma mocinha loura, delicada loura, delicada, de lindos olhos
azuis, o oposto da mulher que imaginara. Compara Marcela com a loura e decide-se por esta.
Paulo Honório vai embora pensando na moça.
Passado um mês da visita ao juiz, após ter resolvido uma desavença com o Brito por tê-lo
difamado no jornal, e tendo ido à cidade em função deste problema, reconhece D. Glória que
senta-se ao seu lado, no bonde, de regresso a São Bernardo. Tratava-se da senhora que
acompanhara a mocinha loura, na ocasião da visita ao Dr. Magalhães, e por quem Paulo
Honório sentira-se enamorado. No percurso mantiveram longa conversa. D. Glória reveloulhe ser tia da tal moça. Ao chegarem à Estação, D. Glória apresentou-lhe a sobrinha, que se
chamava Madalena. Convidou-as a passarem um tempo em São Bernardo.
Através do Gondim, Paulo Honório obtém informações sobre Madalena: é excelente
professora, estudou em colégio normal. Moça muito culta e politizada. Trabalha no Cruzeiro.
Após tê-las convidado para jantarem em sua casa e já ter adquirido certa intimidade com as
duas mulheres, Paulo Honório resolve contar à D. Glória sobre a sua intenção de casar-se com
Madalena. Não obtendo aprovação da tia, vai diretamente à sobrinha tratar do assunto.
Madalena pede um tempo para pensar, o que Paulo Honório considera um desperdício.
Acabam por se entender e Madalena aceita o pedido.
Depois de oito dias casados começam os desentendimentos. Madalena, mulher humanitária
e de opinião própria, não concorda com o modo como o marido trata os empregados. Pagalhes muito pouco, são explorados. Paulo Honório enfurece-se com as opiniões da mulher e
com a demasiada generosidade dispendida por ela aos "necessitados" que trabalham em São
310
Bernardo. Remédios, comida, roupas... um absurdo, um desperdício. Mal consegue conter-se;
está possesso. Madalena tornara-se um ultraje a sua autoridade de proprietário.
As conversas na fazenda giram em torno de negócios e política partidária. A revolução está
prestes a estourar. Padilha, sendo um socialista convicto, prega idéias revolucionárias tanto na
escola em São Bernardo, onde é professor, quanto no jantar servido na casa da fazenda. Padre
Silveira mostra-se insatisfeito com os governantes atuais e simpatiza com a oposição.
Madalena também é a favor da justiça social. D. Glória chora com medo do comunismo.
Paulo Honório começa a achar que Madalena é comunista e, portanto, não tem religião, e
mulher sem religião é capaz de tudo. Vê em Padilha um possível amante de Madalena, pois
ambos são comunistas. Passa a ver todos os homens que freqüentam a casa, e até os
empregados, como possíveis amantes da mulher.
Paulo Honório está obcecado de ciúme por Madalena. As brigas entre o casal não cessam.
Ele avilta-lhe a correspondência, vigi-a diariamente, acorda sobressaltado à noite, vê amantes
por todos os lados. Madalena esvai-se em lágrimas e emagrece dia a dia.
Algumas vezes, enredados no drama familiar, tentaram reconciliar-se. Nessas vezes Paulo
Honório admitia que a esposa era boa demais, uma alma sensível; e ele, um bruto. Em vão. As
cismas retornam e culpa a mulher por também não ligar para o filho pequeno que chora
abandonado pelos cômodos da casa. Admite que nem ele próprio, o pai, tem apego à criança.
Uma noite Paulo Honório encontra parte de uma carta escrita por Madalena e vai tomar-lhe
satisfação. Está crente de que a carta é para outro homem. Vai à Capela e surpreende-se com a
esposa rezando. Ela que vivera às voltas com o trabalho, ajudando seu Ribeiro, que nunca
mostrara interesse por assuntos religiosos, conta-lhe que o motivo foi ter passado a vida
inteira sobre os livros, estudando. A pobre tia fazendo de tudo para que se formasse e
pudessem ter uma vida mais digna. Madalena diz a Paulo que a carta que tem nas mãos,
escreveu-a para ele, e a outra parte está sobre a bancada, no escritório. Retira-se. Paulo
Honório permanece ali, inerte, durante horas. Houve um tiro. Volta correndo para casa.
Madalena suicidou-se.
É acometido por imenso vazio depois da morte da esposa. Sua imagem o persegue. As
lembranças persistem em seus pensamentos. D. Glória, com quem Paulo Honório sempre
implicara, resolve partir apesar da insistência dele para que fique. Em seguida seu Ribeiro
demite-se, fazendo-o lastimar a perda de excelente homem. Padilha junta-se ao exército
revolucionário. Uns dez empregados o seguem.
Os amigos já não freqüentam mais a casa. O governo, com a revolução, está acuado. Cai o
partido de Paulo Honório. Fregueses quebram. Inimigos antigos voltam a ocupar-se com a
questão da demarcação das terras de São Bernardo. A crise é geral. A fazenda está decadente.
Paulo Honório sabe que pode tentar reerguê-la mas se pergunta: para quê?
311
Escrever a história de sua vida, a casa vazia, e a completa solidão em que vive, o faz refletir
sobre si mesmo e considerar o erro que cometeu, tomando o rumo que tomou. "Julgo que
desnorteei numa errada." É capaz de compreender agora em que homem mesquinho se tornou.
E Madalena, repleta de bons sentimentos, foi de encontro à aridez dele próprio. Fatalista
diante da impossibilidade de mudança, sente-se enclausurado em si mesmo. "Foi este modo
de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro,
nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos
enormes."
E finaliza: "Eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga,
encoste à mesa e descanse uns minutos."
Crítica
O social e o psicológico se fundem em São Bernardo para criar uma obra de profunda análise das
relações humanas. A narrativa, em primeira pessoa, gira em torno da vida de um fazendeiro, Paulo
Honório, que, tendo passado uma infância extremamente pobre, procura viver depois em função do
dinheiro e da riqueza que conseguiu obter.
Possuindo um fino tato para negócios e aproveitando-se das fraquezas de Luís Padilha, jogador
irresponsável, compra-lhe a fazenda São Bernardo, onde trabalhara anos antes, e faz dela uma fonte de
riquezas. Astucioso, desonesto, não hesitando em amedrontar ou corromper para conseguir o que
deseja, Paulo Honório vê tudo e todos como objetos cujo único valor é o lucro que possam lhe trazer.
Casa-se com Madalena, simples professora sem emprego que vive com uma tia velha, procurando
garantir assim um herdeiro para a São Bernardo. Mas Madalena, que vive em função de outros
valores, é a única pessoa que Paulo Honório não consegue transformar em objeto. Ela discute
freqüentemente sobre a condição de vida dos empregados da fazenda, despertando nele uma raiva
profunda e ao mesmo tempo uma confusão mental e incompreensão que o atormentam. Não a
compreende, pertencem a mundos diferentes. Nasce-lhe o filho, mas a situação não se altera. A vida
angustiada e o ciúme exagerado de Paulo Honório desesperam Madalena, levando-a ao suicídio.
Pouco a pouco, todos começam a abandonar São Bernardo. Uma queda os negócios leva a fazenda à
ruína. Sozinho, Paulo Honório vê tudo destruído e na solidão procura escrever a história da sua vida.
O romance, na verdade, é a narração de Paulo Honório, em retrospectiva sobre a vida que levou. E
ele sente uma estranha necessidade de escrever, numa tentativa de compreender pelas palavras, não só
os fatos de sua vida, mas também sua própria esposa, suas atitudes e seu modo de ver o mundo. A
medida que a narração avança, progride também a sua consciência com relação ao significado último
de sua existência, que é desanimador: “ Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma
pessoa a vida inteira sem saber para quê. Comer e dormir como um porco! ( ... ) Que estupidez! Não é
bom vir o diabo e levar tudo?”.
Em São Bernardo, o que temos é um balanço trágico de um homem que, perdido nos laços
confusos do sistema social, acabou por desumanizar-se para poder viver. “ A culpa foi minha, ou
antes a culpa foi dessa vida agreste que me deu uma alma agreste”.
51 - Primeiras Estórias – Guimarães Rosa
312
Publicada em 1962, reúne 21 contos.
Trata-se do primeiro conjunto de histórias compactas a seguir a linha do conto
tradicional, daí o "Primeiras" do título. O termo “estórias”, , designa algo mais
próximo da invenção, ficção.
No volume, aborda as diferentes faces do gênero: a psicológica, a fantástica, a
autobiográfica, a anedótica, a satírica, vazadas em diferentes tons: o cômico, o
trágico, o patético, o lírico, o sarcástico, o erudito, o popular. As estórias captam
episódios aparentemente banais. As ocorrências farejadas através dos
protagonistas transformam-se de uma espécie de milagre que surge do nada, do
que não se vê, como diz o próprio Guimarães Rosa; "Quando nada acontece, há
um milagre que não estamos vendo". Este milagre pode ser então, responsável
pela poesia extraída dos fatos mais corriqueiros, pela beleza de pensar no
cotidiano e não apenas vivê-lo, pelo amor que se pode ter pelas coisas da terra,
pelo homem simples, pelo mistério da vida. Dos "causos " narrados brotam
encanto e magia frutos da sensibilidade de um poeta deslumbrado com a
paisagem natural e/ou recriada de Minas Gerais.
I - "As margens da alegria" : Um menino descobre a vida, em ciclos alternados
de alegria (viagem de avião, deslumbramento pela flora, e fauna) e tristeza
(morte do peru e derrubada de uma árvore).
II - "Famigerado" : O jagunço Damázio Siqueira atormenta-se com um
problema vocabular: ouviu a palavra "famigerado" de um moço do governo e vai
procurar o farmacêutico, pessoa letrada do lugar, para saber se tal termo era um
insulto contra ele, jagunço.
III - "Sorôco, sua mãe, sua filha": Um trem aguarda a chegada da mãe e da
filha de Sorôco, para conduzi - las ao manicômio de Barbacena. Durante o trajeto
até a estação, levadas por Sorôco , elas começam surpreendentemente a cantar.
Quando o trem parte, Sorôco volta para casa cantando a mesma canção, e os
amigos da cidadezinha , solidariamente, cantam junto.
IV - "A menina e lá". Nhinhinha possuía dotes paranormais : seus desejos, por
mais estranhos que fossem, sempre se realizavam. Isolados na roça, seus
parentes guardam em segredo o fenômeno, para dele tirar proveito. As reticentes
falas da menina tinham caráter de premonição: por exemplo, o pai reclamara da
impiedosa seca. Nhinhinha "quis" um arco-íris, que se fez no céu, depois de
alentadora chuva. Quando ela pede um caixãozinho cor-de-rosa com enfeites
brilhantes ninguém percebe que o que ela queria era morrer...
V - "Os irmão Dagobé". O valentão Damastor Dagobé, depois de muito
ridicularizar Liojorge, é morto por ele. No arraial, todos dão como certa a
vingança dos outros Dagobé : Doricão , Dismundo e Derval. A expectativa da
revanche cresce quando Liojorge comunica a intenção de participar do enterro de
Damastor. Para surpresa de todos, os irmãos não só concordam, como justificam
a atitude de Liojorge, dizendo que Damastor teve o fim que mereceu.
313
VI - "A terceira margem do rio". Um homem abandona família e sociedade,
para viver à deriva numa canoa, no meio de um grande rio. Com o tempo, todos,
menos o filho primogênito, desistem de apelar para o seu retorno e se mudam do
lugar. O filho, por vínculo de amor, esforça-se para compreender o gesto paterno:
por isso, ali permanece por muitos anos. Já de cabelos brancos e tomado por
intensa culpa, ele decide substituir o pai na canoa e comunica-lhe sua decisão.
Quando o pai faz menção de se aproximar, o filho se apavora e foge, para viver o
resto de seus dias ruminando seu "falimento" e sua covardia.
VII - "Pirlimpsiquice". Um grupo de colegiais ensaia um drama para apresentálo na festa do colégio. No dia da apresentação, há um imprevisto, e um dos atores
se vê obrigado a faltar. Como não havia mais possibilidade de se adiar a
apresentação, os adolescentes improvisam uma comédia, que é entusiasticamente
bem recebida pela platéia.
VIII - "Nenhum, nenhuma". Uma criança, não se sabe se em sonho ou
realidade, passa férias numa fazenda, em companhia de um casal de noivos, de
um homem triste e de uma velha velhíssima, de quem a noiva cuidava. O casal
interrompe o noivado, e o menino, que conhecera o Amor observando-os, volta
para a casa paterna. Lá chegando, explode sua fúria diante dos pais ao notar que
eles se suportavam, pois tinham transformado seu casamento num desastre
confortável.
IX - "Fatalidade". Zé Centeralfe procura o delegado de uma cidadezinha,
queixando-se de que Herculinão Socó vivia cantando sua esposa. A situação
tornara-se tão insuportável que o casal mudara de arraial. Não adiantou: o
Herculinão foi atrás. O delegado, misto de filósofo, justiceiro e poeta, depois de
ouvir pacientemente a queixa, procura o conquistador e, sem a mínima hesitação,
mata-o, justificando o fato como necessário, em nome da paz e do bem-estar do
universo.
X - "Seqüência". Uma vaca fugitiva retorna a sua fazenda de origem. Decidido a
resgatá-la, um vaqueiro persegue-a com incomum denodo. Ao chegar à fazenda
para onde a vaca retornara, o vaqueiro descobre que havia outro motivo para sua
determinação: a filha do fazendeiro, com quem o rapaz se casa.
XI - "O espelho". Um sujeito se coloca diante de um espelho, procurando
reeducar seu olhar. apagando as imagens do seu rosto externo. A progressão
desses exercícios lhe permite, daí a algum tempo, conhecer sua fisionomia mais
pura, a que revela a imagem de sua essência.
XII - "Nada e a nossa condição". O fazendeiro Tio Man 'Antônio, com a morte
da esposa e o casamento das filhas, sente-se envelhecido e solitário. Decide
vender o gado, distribuindo o dinheiro entre as filhas e genros. A seguir, divide
sua fazenda em lotes e os distribui entre os empregados, estipulando em
testamento uma condição que só deveria ser revelada quando morresse. Quando
o fato ocorre, os empregados colocam seu corpo na mesa da sala da casa-grande
e incendeiam a casa: a insólita cerimônia de cremação era seu último desejo.
314
XIII - "O cavalo que bebia cerveja". Giovânio era um velho italiano de hábitos
excêntricos: comia caramujo e dava cerveja para cavalo. Isso o tornara alvo da
atenção do delegado e de funcionários do Consulado, que convocam o empregado
da chácara de "seo Giovânio", Reivalino, para um interrogatório. Notando que o
empregado ficava cada vez mais ressabiado e curioso, o italiano resolve então
abrir a sua casa para Reivalino e para o delegado: dentro havia um cavalo branco
empalhado. Passado um tempo, outra surpresa: Giovânio leva Reivalino até a
sala, onde o corpo de seu irmão Josepe , desfigurado pela guerra, jazia no chão.
Reivalino é incumbido de enterrá-lo, conforme a tradição cristã. Com isso,
afeiçoa-se cada vez mais ao patrão, a ponto de ser nomeado seu herdeiro quando
o italiano morre.
XIV - "Um moço muito branco". Os habitantes de Serro Frio, numa noite de
novembro de 1872, têm a impressão de que um disco voador atravessou o
espaço, depois de um terremoto. Após esses eventos, aparece na fazenda de
Hilário Cordeiro um moço muito branco, portando roupas maltrapilhas. Com seu
ar angelical, impõe-se como um ser superior, capaz de prodígios: os negócios de
Hilário Cordeiro, o fazendeiro que o acolheu, têm uma guinada espantosamente
positiva. Depois de fatos igualmente miraculosos, o moço desaparece do memo
modo que chegara.
XV - "Luas-de-mel". Joaquim Norberto e Sa- Maria Andreza recebem em sua
fazenda um casal fugitivo, versão sertaneja de Romeu e Julieta. Certos de que os
capangas do pai da moça virão resgatá-la, todos se preparam para um
enfrentamento: a casa da fazenda transforma-se num castelo fortificado. É nesse
clima de tensão que se celebra o casamento dos jovens, a que se segue a lua-demel, que acontece em dose dupla: dos noivos e do velho casal de anfitriões, cujo
amor fora reavivado com o fato. Na manhã seguinte, a expectativa se esvazia
com a chegada do irmão da donzela, que propõe solução satisfatória para o caso.
XVI - "Partida do audaz navegante". Quatro crianças, três irmãs e um primo,
brincam dentro de casa, aguardando o término da chuva. A caçula, Brejeirinha ,
brinca com o que lhe dava mais prazer: as palavras. Inventa uma estória do tipo
Simbad , o marujo, que ganha novos elementos quando todos vão brincar no
quintal, à beira de um riacho. Liberando sua fantasia, Brejeirinha transforma um
excremento de gado no "audaz navegante", colocando-o para navegar riacho
abaixo.
XVII - "A benfazeja". Mula- Marmela era mulher de Mumbungo , sujeito
perverso que se excitava com o sangue de suas vítimas. Esse vampiro tinha um
filho, Retrupé , cujo prazer só diferia do do pai quanto à faixa etária das vítimas:
preferia as mais frescas. Apesar de amar seu homem e ser correspondida, MulaMarmela não hesitara em matá-lo e depois cegar Retrupé, de quem se torna guia.
Passado algum tempo, resolve assassiná-lo: percebe que esta seria a única
maneira de refrear o instinto de lobisomem do rapaz.
XVIII - "Darandina". Um sujeito bem- vestido rouba uma caneta, é
surpreendido e, para escapar dos que o perseguem, escala uma palmeira. Uma
multidão acompanha atentamente os esforços das autoridades, que procuram
convencer o rapaz a descer. Resistindo, ele diz frases desconexas e tira toda a
315
roupa, revelando notável equilíbrio físico. A sessão de nudismo leva um médico a
nova tentativa de diálogo. Ao se aproximar, o médico percebe que o sujeito
voltara à normalidade e que, envergonhado, pedia socorro. A multidão, sentindose ludibriada, não aceita essa sanidade repentina e se dispõe a linchá-lo. Sentindo
o risco, o sujeito berra um grito de louvor à liberdade, motivo bastante para a
multidão ovacioná-lo e carregá-lo nos ombros.
XIX - "Substância". O fazendeiro Sionésio apaixona-se por sua empregada
Maria Exita , que fora abandonada pela família e criada pela peneireira Nhatiaga .
Na fazenda, o ofício de Maria Exita era o de quebrar polvilho, trabalho duro mas
que a moça realizava com prazer e competência. Embora preocupado com a
ascendência da moça, Sionésio sente que a paixão é maior que o preconceito e
pede-a em casamento.
XX - "Tarantão, meu patrão". O fazendeiro João - de - Barros - Dinis Robertes tem uma surpreendente explosão de vitalidade em sua velhice caduca.
Como se fora um Quixote, determina-se a matar seu médico: o Magrinho, seu
sobrinho - neto. Ao longo da viagem rumo à cidade, recruta um bando de
desocupados, ciganos e jagunços, que acatam sua liderança, pelo carisma natural
do velho. Chegando à "frente de batalha", Tarantão percebe que era dia de festa:
uma das filhas de Magrinho fazia aniversário. O susto inicial, provocado pela
invasão do "exército", transforma-se em alívio quando o velho discursa, dizendo
de seu apreço pela família e pelos novos amigos, colecionados ao longo da última
cavalgada.
XXI - "Os cimos". O menino da primeira estória revela agora a face do
sofrimento, causado pela doença da Mãe, fato que apressa sua viagem de volta à
casa paterna. Os últimos dias de férias são de preocupação. O Menino só relaxava
quando via, todas as manhãs e sempre à mesma hora, um tucano se aproximar
da casa dos rios, onde se hospedava. Num processo de sublimação, desencadeado
pela beleza da ave, o Menino ganha energia para resistir e para transferir à Mãe
uma carga de fluidos mentais positivos, que lhe permitam superar a doença.
Quando o Tio o procura para comunicar a melhora da Mãe, o Menino experimenta
momentos de êxtase, pois só ele sabia do motivo da cura.
Dez contos têm o foco narrativo centrado na terceira pessoa:
I-" As margens da alegria"; II-" Famigerado" ;III- "Sorôco, sua mãe, sua filha";
IV-"A menina de lá"; V-" Os irmãos Dagobé"; VIII-" Nenhum , nenhuma"; X"Seqüência "; XIV-"Um moço muito branco"; XIX-" Substância" e XXI-"Os
cismos".
As onze estórias restantes são relatadas em primeira pessoa: VI-"A terceira
margem do rio"; VII- " Pirlimpsiquice"; IX-" Fatalidade "; XI-"O espelho"; XII"Nada e a nossa condição"; XIII-"O cavalo que bebia cerveja"; XV-" Luas de mel";
XVI-" Partida do audaz navegante"; XVII-"A benfazeja"; XVIII-" Darandina " e XX"Tarantão, meu patrão".
316
Dessas onze estórias, apenas duas apresentam o narrador como protagonista: "O
espelho" e "Pirlimpsiquice"; nas outras, o relato é feito por um espectador
privilegiado, que presencia a ação e registra suas impressões a respeito do que
assiste. O narrador pode ser também um personagem secundário da estória, com
laços de parentesco ou e amizade com o protagonista. Quanto ao emprego dos
tempos verbais, nota-se que, na maior parte das estórias, o relato se faz através
de uma mistura do pretérito perfeito com o pretérito imperfeito do indicativo.
A maioria das estórias se passa em ambiente rural não especificado, em sítios e
fazendas; algumas têm como cenário pequenos lugarejos, arraiais ou vilas. Os ambientes
são apresentados com poucos mas precisos toques: moldura de altos morros, vastos
horizontes, grandes rios, pastos extensos, escassas lavouras. Duas estórias, no entanto "O espelho" e "Darandina" -, transcorrem em cidades, pressupostas até como grandes
centros urbanos, pelo fato de mencionarem a existência de secretarias de governo,
hospício, corpo de bombeiros, jornalistas, parques de diversões, prédios de repartições
públicas e outros serviços tipicamente urbanos. PERSONAGENS Embora variem muito
quanto à faixa etária e experiência de vida, as personagens se ligam por um aspecto
comum: suas reações psicossociais extrapolam o limite da normalidade. São crianças e
adolescentes superdotados, santos, bandidos, gurus sertanejos, vampiros e,
principalmente, loucos: sete estórias apresentam personagens com este traço.
Crítica
Análise da obra
O livro Primeiras estórias faz parte do terceiro tempo do Modernismo brasileiro e foi
publicado em 1962. As 21 estórias, portanto, são narrativas preocupadas em tematizar,
simbolicamente, os segredos da existência humana. Trata-se do primeiro conjunto de histórias
compactas a seguir a linha do conto tradicional, daí o "Primeiras" do título. O escritos
acrescenta, logo após, o termo estória, tomando-o emprestado do inglês, em oposição ao
termo História, designando algo mais próximo da invenção, ficção. Na obra há a intenção de
apresentar fábulas para as crianças do futuro. À primeira vista, a leitura de Primeiras Estórias
pode, falsamente, parecer difícil e a linguagem soar erudita e ininteligível, mas essa é uma
avaliação precipitada. Na verdade, o autor busca recuperar na escrita, a fala das personagens
do sertão mineiro; a poesia presente nas imagens, sons e estruturas de uma linguagem que está
à margem da norma estabelecida pelos padrões urbanos. Quanto ao emprego dos tempos
verbais, nota-se que, na maior parte das estórias, o relato se faz através de uma mistura do
pretérito perfeito com o pretérito imperfeito do indicativo. A obra aborda as diferentes faces
do gênero: a psicológica, a fantástica, a autobiográfica, a anedótica, a satírica, vazadas em
diferentes tons: o cômico, o trágico, o patético, o lírico, o sarcástico, o erudito, o popular. As
personagens embora variem muito quanto à faixa etária e experiência de vida, elas se ligam
por um aspecto comum: suas reações psicossociais extrapolam o limite da normalidade. São
crianças e adolescentes superdotados, santos, bandidos, gurus sertanejos, vampiros e,
principalmente, loucos: sete estórias apresentam personagens com este traço. A relação com a
morte e com o desejo de imortalidade está presente em toda a obra de Guimarães Rosa, mas
317
talvez com mais intensidade em "Primeiras Estórias". Em cada um dos contos deste livro o
narrador configura sua experiência de forma diferente, atravessando estágios emocionais
distintos, conforme o ponto do percurso em que se encontra. Tanto em As Margens da
Alegria, quanto em Os Cimos, contos extremos do livro, ele se identifica profundamente com
o protagonista, como se ele espelhasse sua própria trajetória, sua infância, como se assim
universalizasse, de certa forma, essa travessia. Ou seja, ele tenta perceber o que há de comum
na infância de cada menino, nessas delicadas passagens, em seus estados de alma, nos
dolorosos conflitos, nas fascinantes descobertas. Os personagens de Rosa parecem caminhar
pelas veredas da memória, vagar pelos labirintos de sua psique, ser guiados pelos fios das
experiências por eles vividas e não completamente elaboradas no plano da consciência. Eles
são movidos pela necessidade de transmitir suas vivências, para melhor compreendê-las e
ordená-las em sua mente consciente. Diante do tempo transcorrido, os protagonistas rosianos
mantêm uma constante atitude interrogativa.
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Apresentação - Literatura Fantástica