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O perigo? É o medo.
Dizem que Einstein, preocupado com o acirramento dos
conflitos na política internacional, comentou, certa feita, com
um amigo, a gravidade de seus temores, com o acesso à tecnologia nuclear, diante da possibilidade de uma destruição do
mundo. “A espécie humana pode acabar!” – teria exclamado.
Mas o seu interlocutor, pensando nos horrores de que a civilização fora capaz durante a ii Guerra, reagiu assim: “E por que isso
o incomoda tanto”?
O sofrimento deforma e corta as esperanças. Hitler, ele próprio, teria se vingado da humanidade por causa de humilhações
que sofreu na infância. É também verdade que se aprende com a
dor e que a sensibilidade necessita dela para crescer e amadurecer. Gente fria e indiferente teve, com frequência, uma biografia
protegida e bem aquinhoada pela riqueza e pela saúde. Nunca
se sabe, quando uma criança nasce, quem tirará proveito ou
malefício das agruras do nosso sistema de vida. Trata-se de um
mistério.
João Carneiro, por inteligência ou doçura de caráter, desenvolvera um modo absolutamente seu de lidar com os infortúnios. Saíra-se com sucesso. Pai de um casal de filhos, proporcionou-lhes uma casa confortável para que desfrutassem na
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infância, sem sobressaltos, de uma escolaridade acima da média
(os dois formados e bem encaminhados) e uma segurança construída à base de dedicação, rígida disciplina, alguma sorte e vigilância nos negócios. Era o oposto do que possuíra. Fora povoado
de incertezas na infância e na juventude, pouca comida e ausência de socorro e de família, tirando a mãe que, por razões que
nunca chegou a entender, colocou-o no planeta.
De madrugada, respeitando o sono da mulher e dos outros,
levantava-se, ia ao banheiro e passava pela sala só para se certificar de que os móveis e objetos continuavam no lugar. Não confessava nem a si mesmo, embora não ignorasse que agia assim para
examinar o aparador, sobre o qual, destacando-se no ambiente,
com um lugar de honra, um microscópio de 1952, perfeitamente
novo, apesar da idade, ostentava a sua presença estranha. Meio
peça de museu, meio homenagem a outro tempo ou a alguém,
era a sua forma de demarcar um território.
O que realizava a cada dia voltou a realizar, só que desta vez
com uma sensação de algo prestes a acontecer, um sentimento
que reconhecia com dificuldade.
Confessava que, ao tornar-se consciente do fenômeno,
experimentava uma pontada de pavor. Era como se aquilo que
há muito procurara, estivesse preparado para assaltá-lo. Olhou
para o microscópio com um suspiro. Muitas vezes se debruçara
sobre as suas lentes e examinara lâminas, numa atitude de explorador, atrás de revelações que nem sabia verbalizar. Agia como
um investigador, sem as qualificações de cientista, por curiosidade; e, por curiosidade, acumulara conhecimentos não desprezíveis sobre a eficiência dos sistemas óticos. Nas mãos de um técnico hábil, proporcionam possibilidades de informações sobre a
natureza dos micro-organismos. Por que se afeiçoara à leitura
de artigos especializados, aprendera procedimentos e não delegava a tarefa dos exames de urina e de sangue, quando a família
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necessitava. O presente, ganho aos dez anos, representou em suas
mãos um meio de progresso e um guia. Hoje diria, sem exagerar, que extraíra dele o máximo de proveito. Rompera, digamos
assim, com as expectativas de quem lhe oferecera o mimo.
A mãe lhe garantiu o sustento. Lavava roupa para fora.
Trabalhava muito. Não parava. No pouco tempo que lhe sobrava
não se estendia em comentários, bons ou maus, sobre o passado.
Por isso, assistiu em silêncio quando ele chegou a casa com o
embrulho e o abriu. Limitou-se a lhe medir as reações. Apesar da
existência marcada pela brutalidade, possuía uma sensibilidade,
sua por temperamento, que não perdera. Depois, ao perceber
que o filho se valia do instrumento para aprofundar-se nas lições
da escola, não abandonou a atitude de reserva. Para uma pessoa
de mentalidade simples, o interesse prometia sem estampar um
contrato de compromisso.
Havia motivos, além dos de ordem afetiva, para que se
fechasse a sete chaves, sem expansões, negativas ou positivas: a
situação financeira. Microscópio sugeria atividades caras, estudos de ricos que nem de perto lhe chegavam perto das ambições.
Na precariedade em que viviam, cedera-lhe o quarto e dormia no
sofá da sala. Dava-lhe o que possuía de melhor e evitava o futuro.
Não ia além para não se decepcionar.
João tinha consciência da crueza do quadro em que viviam.
O regalo, se não atendia aos anseios secretos para um menino de
dez anos, ergueu horizontes que, sem ele, não descortinariam.
Descartou cedo como a mãe previra os projetos de maior ousadia, forçado a interromper os estudos para colaborar com as despesas. Não concluiu o ginásio. Toda a sua formação se resumiu às
contribuições de uma excelente professora do primário e a uma
seriedade desenvolvida por uma noção de que, no que lhe ofereciam, tinha de extrair o possível e o impossível, dentro de suas
limitações. Ambição desmedida atrapalha; falta dela, também
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– ensinava a mãe. Graças a isso, aprendeu as regras da língua,
escrita e falada, e as exercitava com paixão. Aos outros, menos
instruídos, despertava admiração pela maneira como articulava
os argumentos. Não se furtava a dividir esses saberes com boa
vontade, quando solicitado.
O primeiro emprego foi numa loja especializada em aparelhos e artefatos – de ótica. Varria o chão e limpava as prateleiras. Em seguida (porque se interessava), cresceu. Passou aos
instrumentos em exposição, os que ficavam nas vitrines e nos
balcões, sob a tampa de vidro. Em tudo demonstrava meticulosidade. Sobressaía em relação aos colegas muitas vezes estabanados. Um dia, numa joalheria da Rua da Alfândega, observou que
o joalheiro usava uma flanela macia no polimento das pedras.
Dirigiu-se a ele e perguntou aonde a obtinha. Chegou à firma
com um pequeno estoque. Tratava-se de uma colaboração que
não passou despercebida.
O sucesso se construiu aos poucos e se desdobrou com naturalidade. Os patrões, na hora da aposentadoria, ofereceram-lhe
o negócio. Juntou os tostões com um colega, outro empregado
(aliás, o seu único amigo) e botou o nome na razão social da
empresa.
Equipamentos de ótica, ao contrário da impressão que transmitem, não são inanimados. Metade da humanidade ficaria cega,
se a ciência não houvesse aperfeiçoado o uso dos cristais e não
os pendurasse dentro de duas hastes sobre o nariz para neutralizar o que os músculos ou nervos, cansados, já não atingem. Não
haveria fotografia, cinema, lunetas, sondagens astronômicas,
microbiologia, se os avanços de suas possibilidades, numa incrível aventura da mente, não se amparassem neles e no seu apoio
silencioso, solícito, cada vez maior e bem sucedido. Graças a
semelhantes invenções, os homens, pequenos, se fazem grandes,
sobem degraus de ambição e percebem paradoxos da existência,
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nos diferentes territórios pelos quais transita. Sem se pretender
filósofo, nem se alegrar com isso, João se sentia como uma espécie de ponte entre a abundância, os seus sucessos, e a carência, os
vazios que o cercaram e que preencheu, tijolo por tijolo, sobre o
oceano do nada. Por isso, nos momentos de tristeza quando se
via só, apesar de bem acompanhado, voltava à atividade principal, a de pôr o olho sobre a lente e estudar a intensidade das ações
que, não obstante diminutas, compunham de qualquer forma
este estranho quadro do universo onde nos movemos. Gostaria
às vezes, num devaneio, de articular o auditivo ao ótico para auscultar, em visões delirantes, o que o infinitamente pequeno tinha
a dizer de suas angústias e se possuía modos de expressá-las. Na
maior parte do tempo, no entanto, cercava-se de silêncio, refugiava-se nele, repetindo, imitando, de certa maneira, a energia
muda que movimentava os seus focos de investigação.
Aliás, quanto menos falasse de algumas feridas, menos sangravam, era uma regra que procurou transmitir aos filhos, a partir do exemplo pessoal. Dar voz ao sofrimento significava materializar o infortúnio uma, duas, quantas vezes fossem as quantidades, enquanto a palavra, obcecada e tirânica, não resistisse às
tentações do verbo. Contrariava assim, por sua conta, as teorias
em voga e aqueles que pagam para se fazer ouvir. Cada um sabe
como conduzir os seus impulsos. Não julgava ninguém. O seu
modo de organizá-los era esse.
Com os anos de dedicação, a “Ótica do João”, assim chamada
pelos fregueses mais assíduos, se transformou em referência
dentro da área, o ponto obrigatório, o lugar ao qual recorriam
médicos, fotógrafos e até empresas atrás de aconselhamento a
aparelhamento. Treinados no principal, os empregados aprenderam a receber e a informar, sempre solícitos. Nos temas de profundidade, estavam autorizados a convocá-lo. Mais de um nome
consagrado na ciência admirou-se do fenômeno de um homem
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de precária instrução escolar haver avançado tanto na constituição de um acervo de conhecimentos tão especializados. Aquele
tipo de comércio, como os demais, enfrentaria, cedo ou tarde, a
concorrência dos grandes conglomerados e multinacionais, com
as suas tropas de vendedores, panfletos de publicidade, preços
competitivos e disposição para dominar e se apropriar do mercado. Não podendo vencê-lo, tentaram contratá-lo com ofertas e
salários altos. Necessitavam de um indivíduo com as suas características para treinar pessoal e interferir nas situações delicadas.
Pois delicadamente, e sem briga (aliás, nunca brigava, muito
menos com fornecedores, de quem dependia), preferiu continuar
como estava – só e independente. Ganhava o bastante para as
imposições do cotidiano e se habituara a desfrutar da autoridade
sobre o seu destino. Não se imaginaria obedecendo à arrogância
de um chefe despreparado, na flor da idade, de terno e gravata,
cujo único propósito seria retirá-lo do ofício. O período das tentativas ficara para trás. Cansou-se de dizer não. Finalmente, se
acomodaram.
A sensação que o acometeu, se não surgia de cara nova, vinha
com roupas que não reconhecia. Era como se um cisto, depois
de anos, começasse a latejar, como se a saúde, estável e perfeita,
acendesse sinais de alarme. Sobre os augúrios, guardava uma
postura de desconfiança. Afinal, não acordava pela primeira vez
com uma impressão de urgência. Nas oportunidades anteriores,
com um pouco de autoanálise, não demorara a desemaranhar os
sentimentos e separar desejo de realidade. Do que lera e do que
aprendera, convencera-se de que os traumas, ainda que sufocados, emergiam por meio de aparições, fantasmas que despertavam e assediavam a mente. O que não entendia como direito,
nem por isso desaparecia do universo interior, manifestando-se
nos lapsos ou nas intuições, de acordo com as teorias de Freud.
Acreditava nisso. Não entrava com facilidade, por conseguinte,
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no ambiente do sobrenatural e costumava rejeitar explicações
que não se orientavam pela marca do positivo, bem mais confiável. Não quer dizer que atacasse os sensitivos aos quais conferia
um crédito, certo de que na vida, de fato, tudo é possível.
A diferença desta feita, como notou, consistia na forma. A
imagem do pai, conservada desde o último encontro que tiveram,
entrou-lhe na alma. Embora nunca mais se houvessem cruzado,
nem na morte, que lhe chegou ao conhecimento por terceiros,
na loja, o nó da ligação nunca se rompeu. Lembrava-se da notícia curta, dura, que o surpreendera como um soco no estômago,
quando um homem que o procurava (e que os empregados
tomaram como um cliente), disparou, sem subterfúgios, dando a
entender que não podia mais se conter. Um evento natural, previsível e imaginado como um momento a chegar para qualquer
um, mesmo assim caiu-lhe como um choque, uma surpresa, uma
pancada na moleira.
– Há muito estou para vir aqui, mas, preso a uma coisa e
outra, fiquei lhe devendo a visita. Peço desculpas...
O homem hesitou. Sentia que subestimara a intensidade do
impacto. A coisa se passara há cerca de um mês e longe, bem
longe dali.
Trajando um terno marrom surrado, não transmitia confiança e nem assim João duvidou do que afirmava. Mal começou a falar e um clima de verdade se instalou. O movimento em
torno não se alterou, apenas os dois, de pé, um atrás do outro
na frente do balcão, pareciam empenhar-se numa negociação
desigual, de troca inviável. Apesar da timidez com que tratava as
questões ligadas ao pai, João necessitava de mais, não deixaria o
estranho sair sem extrair pelo menos um panorama, um esboço
de uma existência ao mesmo tempo próxima e distante da sua.
Desse contato com o visitante do qual ignorava tudo, recolheu algumas luzes.
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Novamente, era como se confirmasse, como se as suspeitas
que desenvolvera ao longo dos anos possuíssem fundamento. No
lugar de exílio que reservara para si, no norte do país, o pai reconstruíra família e fora fiel a ela. Gerara uma filha que, sem dúvida,
também se casara e engravidara. Não havia nomes, endereços,
fotos, registros, cartas, nada que concretizasse as coisas, que lhes
incutisse sopro, substância, nada além de pedaços com os quais,
dali por diante, apenas sonharia. O homem se mostrara cuidadoso. Soltava as notícias por doses homeopáticas. Convidou-o
a casa e declinou. Alegou pressa, outros compromissos, desculpas. Pensou num jantar num restaurante ao lado e também tergiversou. Possuía uma filha no subúrbio e prometera encontrá
-la. Limitou-se a permanecer de pé e aguardar que as emoções,
transtornando o rosto do interlocutor, se acalmassem para pedir
licença e partir. E tão aflito, com efeito, aquele ficou que lhe varreu
da mente exigir detalhes. Quando se despediram e sumiu na multidão na rua em frente, aí sim, João bateu na testa, desconsolado.
Com a família, à mesa de jantar, enquanto contava o episódio, compreendeu duas coisas. Ninguém, entre os seus, sem
intenção de desrespeitá-lo, valorizava um parente tornado
distante pelo afastamento e pelo comportamento duro e frio.
Ouviram o relato e continuaram em silêncio, econômicos nas
manifestações de espanto. A mulher, num gesto de solidariedade,
depositou a mão sobre a sua e a alisou. Os filhos se entreolharam.
Quanto a si, ainda que as lacunas fossem muitas, não lhe custaria
completá-las com o próprio poder de dedução. Ninguém mencionou casamento, netos, que tipo de mulher dividiu com o pai a
existência, se foi feliz, se conhecia o passado e o relacionamento
anterior do marido. Contudo, um homem não se conserva longe
e só por tanto tempo. Natural, para um negociante (e isso sabia,
um que trabalhava com materiais de construção), que a estabilidade financeira se completasse com a afetiva. Havia dinheiro
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envolvido, por menor que fosse a herança. O mensageiro mediu
as palavras para não despertar cobiças, certo de que o amigo, o
associado, talvez o sócio, temesse disputas após o desenlace. Em
algum lugar de sua consciência, para não aumentar as injustiças, um impulso de ordem moral o obrigou a procurá-lo e contar sobre o falecimento. Talvez não houvesse obtido autorização
para tanto.
Rapidamente, mencionando o fato como um detalhe sem
importância, falou sobre uma filha que o substituíra nas ternuras paternas. O impacto que a informação provocou no outro
sufocou a curiosidade. Ele se controlou para dar a impressão
de não se interessar pelo assunto, quando na verdade, uma vez
tomando conhecimento do mesmo, não mais descansou. Sofreu
com a impossibilidade de fazer fosse o que fosse para chegar à
pessoa na qual, como nas suas veias, corria um sangue semelhante. Calculou-lhe a idade, o temperamento, se doce, se áspero,
enquanto lhe crescia a vontade de que se entendessem e constituíssem um grupo de parentesco verdadeiro. No seu universo
interior, a irmã colocou-se no lugar do pai. Pegava-se desenhando
traços, perfis femininos, no papel. Infelizmente, os punhais do
abandono se apresentam surpreendentes. Depois de uma fase
na qual tocou a vida sem novidades, no dia a dia do trabalho,
despertou com as palpitações da pressa. Às dúvidas, sucederam
sinais de insatisfação. Começou a criticar-se pela inapetência,
pela impotência, por continuar sem iniciativas que rompessem
com o estado de coisas.
Despertada pela escuridão e pelo silêncio, Rita notou-se
sozinha há algum tempo e se levantou da cama. Seguiu para o
lugar de hábito e se sentou no outro lado da mesa, depois de assar
uma torrada e oferecê-la para acompanhar o café.
João continuava mudo e com o olhar perdido. No entanto,
disse:
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– Vou procurar o Dr. Adamastor. Preciso de um checkup.
Gostaria de viver mais algum tempo. Temo sofrer perturbações.
Ela permaneceu quieta. Mais uma vez, acariciou-lhe a mão
com suavidade.
Não minimizava a gravidade dos fatos. A violência das emoções se mostrava de tal ordem que o modo de poucas palavras do
marido adquiria um peso novo, como se, de fato, o pior pudesse
acontecer.
– É boa ideia – concordou, por fim. – Não custa verificar
como a máquina funciona. Tudo que possa nos tranquilizar vale
a pena. Marque uma hora e converse com ele.
João se tratava há anos com esse médico. Eram quase amigos.
Em certos campos, trocavam informações de igual para igual. O
Dr. Adamastor confiava nas suas observações sobre instrumentos que surgiam, ainda que nem sempre dissessem respeito a
aparelhos de ótica. Ia além de sua especialidade nesses interesses
comuns. “Você devia ter estudado medicina”, dizia, surpreso com
a capacidade do cliente de avaliar as invenções recém-lançadas.
Adquirira com ele o microscópio que comprara para a filha, fazia
óculos na sua loja e respeitava a atitude compenetrada, rara, com
que o mesmo realizava as transações. Além disso, dispunha de
consultório no Centro, numa rua próxima, e dividiam de vez em
quando uma garrafa de cerveja num bar, no final do expediente,
para evitar os instantes mais carregados de trânsito.
João ergueu pessoalmente os portões de ferro da loja e acendeu as luzes antes que os empregados chegassem. Orientou a
faxineira para que se esmerasse nos locais de maior movimento.
Examinou o fluxo do caixa do dia anterior e reservou os cheques
para depositá-los na primeira hora do expediente bancário. A
sensação estranha, de peso, não o abandonava. Reforçava a decisão de consultar o médico. Precisou de esforço para se concentrar
no serviço, quando tantos pensamentos lhe invadiam a mente.
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Não se queixava. Tomava os episódios da sua biografia como
ingredientes naturais, como um terremoto ou um maremoto que
atinge uma cidade e não tem de avisar previamente aos moradores. Havia feito da aceitação um dos degraus de seus sucessos.
Nada diferente disso devia abalá-lo. Por que se achava assim, com
um gosto de tragédia, logo quando reconhecia a iminência de uma
oportunidade nova? Estaria talvez envelhecendo, fraquejando...
O sócio, desconfiado, tomou como traços de abatimento as
rugas que lhe apareciam na testa e que se lhe afiguraram mais
carregadas do que antes.
– Como foi a noite, amigo? Tudo bem?
– Sim, tudo bem... A mulher, os filhos, os negócios, não me
preocupam.
E nada arrancou por acréscimo, antes que João lhe pedisse,
sem chamar atenção, que assumisse o comando por volta de quatro da tarde, pois necessitava se ausentar.
– Fique livre, amigo. Eu me encarrego. Cuide-se.
Estranhou a solicitude do sócio. Parecia prever os problemas.
“Serei assim tão transparente?” Mas não exteriorizou reações.
Por volta de quatro e meia, entrou, de fato, no consultório.
Teve de esperar na antessala para ser atendido. Como não marcara hora, teria de se encaixar num intervalo. Já imaginava a lista
de exames, ultrassonografias, tomografias, sangue, urina, etc.
com que em geral Adamastor fundava os seus pareceres clínicos.
Não gastaria dinheiro com sangue, urina e fezes. Conhecia os
procedimentos e os realizava por conta própria.
O médico era um colega, um companheiro com quem, nem
sabia exatamente como, costumava se abrir. O que não falava em
casa ou no trabalho, discutia nas consultas, feitas mais pela possibilidade do contato humano do que para os problemas físicos,
que, no entanto, com a idade, também surgiam com assiduidade.
Adamastor possuía a capacidade de acalmá-lo. Transformava as
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arestas erguidas em incidentes concretos e, quando se separavam, havia mudado a dimensão das coisas.
– E aí, meu caro! – saudou-o na soleira da porta, impecável no
jaleco branco. Fez questão de lhe apertar a mão. – Logo lhe atendo.
Sem formação de psicólogo, dispunha de um talento extraordinário para ouvir e orientar as pessoas. Detectara, de imediato
(o que a João não passou despercebido), a sombra de novidade
que lhe obscurecia a paz.
Foi uma boa consulta, como precisava. Além da lista de exames, depois de auscultá-lo e ouvir os batimentos do coração, não
acrescentou informações e não revelou cuidados.
– Cada idade tem benefícios e malefícios – disse, para acalmá-lo. – Por isso, cada paciente é um caso. O médico deve verificar os números, taxa por taxa, como um padrão de conduta. À
primeira vista, não vejo motivos de inquietação. Vamos tomar
um chope. Na sua próxima visita, com tudo em mão, tiraremos
as conclusões.
No bar, realmente conversaram. O barulho ajudava, embora
mal conseguissem distinguir o que diziam. Servia para diminuir
o peso dos tormentos.
Adamastor conhecia João Carneiro, mais até do que a sua
família. A mãe lavadeira, o pai que sumira como se houvesse
fugido para outro planeta, depois de conquistá-lo definitivamente com um presente, e o que se seguira, os anos de esforço
e os sucessos com a compra da ótica e seus avanços. Não desvalorizava as sensibilidades do cliente e não agia como outros,
incluindo a mulher e os filhos, para os quais o princípio da paternidade ausente se transformara num tabu. Não cedia à tentação
dos julgamentos morais, o que contribuía para que os temas, discutidos, se esclarecessem, pelo menos até certo ponto.
– Os homens não são perfeitos. Nós queremos que sejam.
Isso alimenta as nossas decepções. E as decepções impedem
que, nos naufrágios, salvemos os sobreviventes. Quem não se
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decepciona, perdoa, tira proveito dos acontecimentos. É o que
admiro em você, meu camarada. Se não podemos ficar com uma
perna, fiquemos com a outra. Acabamos aprendendo a caminhar
com uma só. Por que não?
Sem o jaleco, misturava-se na cena, enquanto sorvia a
bebida em pequenos goles e lhe dizia verdades. Era, com efeito,
o que desejava ouvir.
João disse que uma irmã surgira no horizonte e, por uma
razão que não conseguia entender, não lhe saía do espírito.
– Procure-a – insistiu o outro.
– Como? Ignoro completamente o seu destino. Não tenho
endereço, nem o nome do lugar onde cresceu e onde criou raízes.
Provavelmente está casada e com filhos.
– Corra atrás. Hoje, ninguém escapa de uma investigação.
Existem detetives, sistemas de comunicação, avisos que circulam
na internet... Saia em campo. Com o pai, era diferente. Respeitoulhe as opções sem lhe conhecer os motivos. Mostrou grandeza
e dignidade à distância, à espera. Mas a irmã ajudará a esclarecer os pormenores. Fará o que ele não fez. Lembre-se que, na
sua idade, o relógio avança acelerado. Em último caso, recorra à
televisão. Use esses programas que juntam pessoas e aproximam
casais. Eles se interessarão e colocarão apelos no ar. Cá entre nós,
é possível que nunca tenha ouvido o seu nome. Abra-se para os
espectadores. Chegou a hora de agir. Não se esqueça de que vieram do mesmo laboratório, de uma forma comum. Silêncio aqui,
silêncio lá. Quem deseja esconder uma parte, deseja esconder a
outra... Se você foi vítima dos fatos, ela também.
Sem imaginar a extensão do que sugeria Adamastor, acendeu-lhe, mesmo assim, uma luz em neon. A urgência não diminuiu. Aumentou.
Nos dias subsequentes, trabalhou nos intervalos, entre um
exame e outro, até retornar ao consultório com os resultados.
Avançara num lado. Na parte pessoal, como num velho hábito,
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esperou, sem saber por onde começar. Procurou cartórios, confrontou registros – e nada.
Alguém comentou que o Canal 9, na TV, dispunha de um
programa sobre conflitos familiares. Conseguiu um flagrante
num segmento anunciado dramaticamente com o título de “ELE
PROCURA...” e lá compareceu com a sua reivindicação. Não lhe
deram muita importância. Como se achava presente assistiu. A
parte principal girou em torno de um casal de idades díspares,
uma história de abandono sexual e afetivo, puxado por uma
segunda história sobre lesbianismo entre duas jovens e a oposição
dos pais. Teve de confessar que não gostou. Nada do que viu lhe
dizia respeito. Um homem tímido, de aspecto sombrio, dos inúmeros que atravessam a existência e não se consideram especiais,
não atrairia as atenções da produção. Retornou a casa frustrado,
descrente das possibilidades de sucesso da empreitada. Se a irmã
tivesse assistido, sem dúvida desligaria o aparelho, constrangida e
envergonhada. De qualquer modo, aguardou. Precisaria do acaso
para avançar. Enquanto isso administrava os dias.
Adamastor deu força e parabéns pela coragem, enquanto
coçava a cabeça sem gostar do que decifrava na papelada dos
exames. Uma artéria apresentava sinais de fadiga, com obstruções preocupantes. Teriam de cuidar disso.
– Eu sabia – disse para o médico. – Alguma coisa me avisava. Meu prazo de validade expirou. Quanto tempo me resta?
Logo agora me acontece uma coisa dessas.
O médico procurou tranquilizá-lo.
– É doença da época. Hoje, muita gente sofre de problemas
circulatórios.
Felizmente, a ciência contava com recursos e não os deixaria na mão. Cirurgia só em último caso. Antes, recorreriam
aos remédios. Acompanhariam a evolução da enfermidade. Não
havia razões de desespero.
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Neste dia, perambulou sem rumo pelas ruas do Centro. Não
dispôs de ânimo para propor um chope, não quis submeter o
amigo à sua tristeza. Estava novamente sujeito à ansiedade. A
imagem do microscópio na sala de jantar surgiu com uma nitidez extraordinária, como se acenasse, como se o convidasse a
partilhar em conjunto alguns momentos. Através de suas lentes
mergulharia no infinitamente pequeno para fugir do infinitamente grande. Rita não estranhou, habituada a acessos como
aquele quando o marido chegava, mal cumprimentava e se refugiava dentro de si mesmo. Podia sentir que havia novidades,
mas não se tocou. Confiava na forma de organização da família,
construída sobre um terreno de escombros. A solidez do prédio
apaziguava o espírito e restauraria a paz. Fora-se o tempo em que
se preocupava com a ótica e as oscilações financeiras do negócio.
O temperamento de João, conservador nos seus movimentos,
assegurava-lhe o bom andamento. Era a irmã, este personagem
que se materializou do nada, que o perturbava e lhe provocava
estragos, estava certa disso. Sem um ruído na casa, virou-se para
o lado e dormiu. Segundos antes de cair no sono, pensou: “Ele
superará”.
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A casa de Rita funcionava como se fosse um templo no qual
a sala de jantar e as dependências de João representavam o altar.
Os filhos se movimentavam, quando crianças, sabendo que, em
primeiro lugar, estava o pai. Ao longo da vida, guardavam as
inquietações para não incomodá-lo. Abriam-se com a mãe; não
com ele. A figura conservadora e introvertida do chefe de família, ao mesmo tempo solícito, sempre que convocado, manteve-se,
assim, alheia a um conjunto de pequenos dramas e dissabores que
se desenrolaram muitas vezes sem atingi-lo. A recíproca se mostrava verdadeira. João considerava dispensável submetê-los aos
malefícios de “paixões inúteis”, como as que surgiam nos negócios ou aquelas que às vezes, imaginárias ou não, roubavam-lhe
o sono, dizendo respeito a certos temas inexplicáveis de sua existência. Partilhava-os com a mulher, quando sentia o revolver das
águas na quase sempre equilibrada superfície de seu cotidiano.
Não por ele, por ela, os filhos tomaram conhecimento do que lhe
acontecera na infância e das lutas que travara para se impor sobre
as adversidades do mundo. E não por seu intermédio construíram
a barreira de condenações ao avô, a quem repudiavam, sem, não
obstante, expor em circunstância nenhuma (também por falta de
oportunidade) a intensidade do sentimento. Saberem que se fora,
só os abalou na medida em que estavam conscientes do impacto
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que a notícia causaria, mesmo que tentassem evitá-lo. Rita, por
seu turno, era uma mulher doce, solidária. Compenetrou-se de
que o marido precisava dela desde que o conhecera, ainda antes
do casamento, e nunca o decepcionou. Sentir-se necessária representava a base, a substância de seu amor. Sabia que não precisava
interferir nos temas do comércio, onde ele tinha facilidades de
temperamento para ir além, impor-se e crescer. Realmente, isso
se verificou. Nos anos de sua convivência, a economia doméstica
subiu de status, do momento em que apertavam o cinto para o
patamar seguinte, de conforto sem luxo.
Ao conhecê-lo, aquele homem alto, magro, sisudo, de
imediato não lhe causou boa impressão. Pareceu-lhe sem alegria (qualidade que tanto apreciava), o mesmo sentimento que
despertou entre os seus familiares quando, não sem hesitação,
decidiu apresentá-lo e consolidar o compromisso. Uma pessoa
honesta e sem graça, disseram, quase em uníssono, somando-se
às opiniões dos pais, o seu casal de irmãos. O tempo não a levou
ao arrependimento. Aprendeu a conhecê-lo, a admirá-lo e a lhe
valorizar a sensibilidade. Difícil era o silêncio, mas até a este deu
uma dimensão de grandeza, porque dele nunca ouviu uma palavra de queixa que expressasse o sofrimento em relação à infância
e ao abandono do pai.
Uma vez, João sentou-se com o filho mais velho, Paulo, hoje
advogado, e iniciou-o no xadrez. Não era um jogador exímio.
Não se punha diante do tabuleiro com frequência. Contudo,
pelo tipo de razão que o caracterizava, baseada na minúcia, calculando os passos, raramente perdia.
Pois a primeira lição, ele a expressou assim:
– O xadrez é um jogo de inteligência. A sorte não entra no
movimento das peças. Para ganhar é preciso, primeiro, querer
ganhar. Sente-se com esta intenção e a metade do caminho estará
feita. O resto virá. Aliás, é uma regra para a vida. Em tudo, meu
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filho, é preciso querer. Quando não desejamos o bastante, o fracasso nos espreita.
O menino não se saiu vitorioso neste embate. Inteirou-se
das aberturas e da doutrina do equilíbrio entre prudência e ousadia nestes passos de iniciante. Mas guardou a lição. Na escola,
nos estudos, nas provas a que se submeteu, notou que se saía bem
quando o desejo se lhe impunha. Quando não, fracassava.
– Há situações que dependem da gente. Outras, não. Não
dependeu de mim ou de você o mundo que encontramos e com
o qual devemos lidar. E mesmo os nossos desejos estão em luta
com os nossos semelhantes que, muitas vezes, querem se apropriar do que aspiramos. No entanto, se não atendemos à condição primeira, querer ganhar, os outros nos atropelam.
O segundo ensinamento consistia em saber perder. A derrota desencadeava emoções e por isso lidar com elas devia entrar
no aprendizado.
– Muitas vezes – continuava – não notamos que estamos
na existência como soldados. Vivemos derrotas parciais, quer
durante o jogo, quer depois dele, porque o vitorioso, com excesso
de confiança, pode pôr a vantagem a perder. Portanto, não desista
antes do tempo e não desanime. Rejeite a angústia do perdedor.
Considere-se sempre em estado de alerta, à espera da próxima
oportunidade. Ela surge.
Rita escutava e pensava no privilégio de dividir os seus dias
com João.
Por alguma identificação consigo mesmo, ele manifestava
uma preferência pelo menino. Com a filha, desdobrava-se em
carinhos. Com ele, conservava uma relação pedagógica que,
medida, os aproximava. Pareciam amigos, os dois mais velhos,
zelando para que a garota contornasse as minas no caminho.
Transmitia ao filho o que a vida lhe ensinara. O pequeno desequilíbrio de tratamento não manchava a imagem de “perfeição”
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com que se pautara como se procurasse compensar (e corrigir) o
destino recebido.
Em João, nunca se aliviou a sensação de que algo continuava
faltando. Metera-se numa redoma onde nada transgredia, nem
no trabalho, nem na família. Amigos era outra história. Tirando o
médico e o sócio, que, não obstante, não lhe frequentavam a residência, ninguém jamais ousara se aproximar, talvez por receio de
tanta integridade que, por excesso, cheirava a hipocrisia.
Ele construíra uma vida, como se vê, com os tijolos da limitação. Uma única ideia (descobrir o pai, substituída de repente
por um desdobramento desta: a irmã) orientou-lhe os interesses. Imaginou um dia ser capaz de, como num diário, apagando
as lacunas, compor um romance. Faltou-lhe, entretanto, talento,
energia e disciplina para ir tão longe. Quando voltava os olhos
para si mesmo, encontrava um vácuo de proporções homéricas.
Não havia fatos gritantes, originais, atraentes, que justificassem
a literatura. Estancou nas primeiras duzentas páginas e as deixou de lado. Ninguém leria o calhamaço. Mais relatório do que
narrativa, nem como disfarce conseguira estruturar um relato
palatável. Os filhos, muito mais tarde, teriam talvez a curiosidade
em examiná-lo atrás de particularidades que quisessem esclarecer. Contudo, a tarefa de se debruçar sobre um texto e escrever,
levada adiante por tanto tempo, sugeria um aspecto que combinava com a sua maneira de conduzir e controlar os negócios.
O calhamaço não encontrava explicações, o que significa que as
perguntas não se calavam e que as levaria até o fim.
O espetáculo daquele homem horas e horas dedicado a escolher palavras e reuni-las numa pintura de vastas proporções, esse
espetáculo foi tratado como em geral se tratavam as esquisitices do chefe da casa. Com respeito e discrição. Rita sentia uma
espécie de frustração ao longo dos anos por saber que nunca
lhe preencheria totalmente as falhas da infância. Preferiria, em
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alguns momentos, quando pensava no assunto, um marido queixoso e chorão a um companheiro conciliador e ao mesmo tempo
rígido consigo mesmo, de cujo interior jamais saíam lágrimas.
Não subestimava o tamanho da solidão com que se moldara –,
nada que a mulher e os filhos conseguissem neutralizar, apesar
do bom ambiente e do diálogo que prevalecia entre eles. Paulo
planejou, certa feita, uma transferência para outro estado, para
especializar-se – e não ousou abrir-se, nem efetivar as intenções,
consciente de que aquilo seria entendido como abandono, e a
quota de abandono na família já havia superado o volume dos
tamanhos aceitáveis.
A imobilidade de João (que, por justiça, é preciso dizer, não
se estendia à profissão) tinha um traço peculiar de expectativa. É
como se, para que o encontrassem, não devesse sair do lugar. Rita
não se perguntava por que, se dava a isso tanta importância, não
partira em busca, realizando investigações, até localizar o pai. Os
filhos se perguntavam. Ela sabia que o abandono se revelava de
tal monta que o futuro imediato, o que eventualmente aconteceria, nesse plano, representava uma ameaça. Não nos esqueçamos
de que o instrumento do dono da ótica, o microscópio, debruçava-se sobre o universo dos infinitamente pequenos, mas de
uma distância segura. Gente do seu tamanho, ou maior, comportava temeridades que receava discernir, como se lhe ameaçassem
a conduta, as escolhas consolidadas. Por isso, estranhou vê-lo
agitar-se e se inclinar em favor de um propósito, mesmo que já
não se tratasse do pai, e sim, agora, da irmã. Causas perdidas, que
ficassem no passado – gostava de aconselhar.
No dia em que apareceu no programa de tv, ela desabou.
Mais estranho e estabanado do que nunca, porque nervoso,
fez papel de bobo. O apresentador se aproveitou e desenrolou o
filme do melodrama, com pitadas de humor e acréscimos de tragédia, para deleite dos ouvintes. Avisara-o antes das normas que
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ali funcionavam. A roupa (ele se vestira de preto, um terno fora
de moda que lhe dava uma aparência de mais idoso e estranho do
que na verdade era) ajudara a fazê-lo de palhaço. Estava na frente
de alguém que se especializara em fazer graça de tudo. Um bomdia, dependendo do tom (animado ou depressivo), oferecia-lhe o
que precisava para extrair reações hilariantes. O homem possuía
vasta prática. Sabia o modo de entrar, como chamar os intervalos,
onde e como arregalar os olhos por trás dos óculos redondos, e
as formas de interromper o interlocutor para destacar o que pretendia. Gordo e de baixa estatura, com um cabelo crespo armado
por cabeleireiro, crescia em tamanho por mais arguto e ágil que
se mostrassem aqueles com os quais contracenava. Quando
soube que receberia o dono de uma ótica, de seus sessenta anos,
à procura do pai, pensou em providenciar uma fralda geriátrica e
obrigá-lo a vesti-la em público. Afinal, não chegou tão longe. As
pessoas talvez se compadecessem diante da infância atravessada
em penúria. Mesmo assim, atirou à queima-roupa:
– Diga-me uma coisa, aqui, só para mim, ao pé do ouvido.
Na escola, onde todos tinham pai e mãe, alguém como você
devia ser alvo de sadismo. Como costumava reagir?
João não achava como responder. Estava ali com uma intenção
específica e o apresentador desviava o tema para outra direção...
Antes que vislumbrasse uma saída, ignorou a indagação e disse:
– Desculpe-me, senhor. Agora, procuro minha irmã. Sei que
meu pai desenvolveu família em outro lugar. Gostaria de localizá-la, de conhecê-la, de falar com ela. É um interesse humano.
Isso me trouxe...
O ambiente se tornou tenso. Uma mulher de chapéu, na primeira fila, enxugou uma lágrima.
O apresentador sentiu o estrago e recuou:
– Vamos ajudá-lo. É uma história triste. Mas eu pergunto a
todos os presentes: e se essa irmã for uma megera? A minha, por
exemplo, Deus me livre!...
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O perigo? É o medo. Dizem que Einstein, preocupado com o