Organizações Sociais no Distrito Federal:
Uma perversa metamorfose!
Aldino Graef
Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental
Mutação e metamorfose são conceitos originários da biologia, mas podem ser perfeitamente
aplicados na análise da evolução das instituições públicas. Neste sentido, mutação
institucional é o fenômeno das mudanças lentas e graduais de certos tipos de instituições. É o
caso das autarquias que, ao longo dos 80 (oitenta) anos de existência deste tipo de instituição,
foram sofrendo um longo processo de mudanças. A natureza jurídica destas entidades
continua sendo a mesma, contudo, são hoje bem distintas.
Metamorfose, entretanto, é conceito que envolve mudanças estruturais e de forma, que fazem
surgir algo completamente distinto do anterior. É o que ocorre com o modelo institucionallegal das organizações sociais no Distrito Federal e em outros Estados. No DF, contudo, é
mais nítido e contundente.
Estamos falando da metamorfose do modelo original da Lei Federal nº 9.637, de 1998, que se
assenta no conceito de organização social como entidades de natureza comunitária, para um
modelo, ou modelos, de terceirização da gestão de órgãos ou unidades públicas de prestação
de serviços.
A Lei Federal citada não é muito clara em muitos aspectos e sua interpretação tem sido
dificultada em razão de suas imperfeições. No entanto, os artigos da Lei que trata dos
requisitos para a qualificação das entidades como organização social, especialmente no
concernente à composição do Conselho de Administração, evidencia a natureza comunitária
destas entidades ao exigir a participação do Poder Público (entre 20 e 40% dos membros do
CA) na sua gestão e, ainda, ao exigir que mais de 50% dos membros do Conselho de
Administração teriam que ser obrigatoriamente representantes do Poder público e da
sociedade civil. O que a Lei não deixou claro é que a sociedade civil, no caso, só poderia ser a
comunidade diretamente interessada ou beneficiária dos serviços prestados por aquela
organização. Mas, é algo implícito porque , caso contrário, o caráter de organização social ou
comunitária deixa de ter significado concreto.
É também esta característica de organização social, representativa de uma coletividade
beneficiária dos serviços por ela prestados, que elimina a figura da “terceirização da gestão”.
Como se está diante de uma organização representativa da comunidade interessada, portanto,
de uma forma de auto-organização comunitária, seria a própria comunidade gerindo e
prestando os serviços a si própria, não havendo, portanto, terceiros envolvidos na gestão. E,
neste caso, inaplicável a figura da licitação.
Em comunidades menores a auto-organização social é mais fácil de configurar. Organizações
de moradores, associações de bairros, comunidades escolares, associações de usuários de
serviços de saúde, e outras, são perfeitamente identificáveis como representação de uma
comunidade local. Em escala mais complexa, como uma grande cidade ou toda uma região,
esta auto-organização social é mais difícil e muito mais complexa. Mas, de um modo geral, os
serviços públicos são dirigidos a comunidades específicas e, conseqüentemente, a autoorganização social é, quase sempre, possível, desde que com a clara identificação da
comunidade beneficiária.
No caso do Distrito Federal a legislação local eliminou justamente os requisitos de
qualificação relacionados com a representação da sociedade civil local e a presença do Poder
Público, ou seja, do modelo de gestão compartilhada entre o Poder Público e a representação
da comunidade local beneficiária dos serviços públicos prestados. E, deste modo, as entidades
qualificadas não representam as comunidades beneficiárias e, portanto, a “organização social”
inexiste na prática.
Assim, por um processo de ‘metamorfose política e legal’ o Distrito Federal implantou a
“terceirização da gestão” de unidades prestadoras de serviços públicos. Basta ver a relação
das entidades qualificadas como organização social no DF. Na sua maioria são entidades de
outros estados da Federação que nada tem em comum com as comunidades locais. O hospital
de Santa Maria foi entregue para a Real Sociedade Espanhola, com sede na Bahia. Esta foi
inclusive beneficiada com uma alteração específica da lei local de OS para que pudesse ser
qualificada, insuficientes as alterações anteriores na Lei que já haviam mudado seu caráter.
Além disto, vários SESC foram qualificados como organização social, para atividades de
saúde e educação, o que evidencia o grau de deterioração do modelo em relação á lei federal.
O SESC é um serviço social autônomo vinculado ao sistema sindical patronal, de caráter
classista, financiado com receitas para-fiscais e que, por seus estatutos, presta serviços aos
empregados do setor de comércio, nada tendo em comum, portanto, com as comunidades das
diversas regiões do DF. Jamais poderia o SESC, muito menos de fora do DF, ser qualificado
como organização social.
A metamorfose do modelo institucional-legal do DF instituiu, gerou algo completamente
distinto da Lei Federal nº 9.637, de 1998. Na realidade, a legislação de OS do DF é um misto
de “terceirização da gestão pública” com a concessão de serviços públicos ao setor privado. O
caso do hospital de Santa Maria é neste sentido, emblemático. No entanto, a constituição
Federal estabelece que os serviços de saúde são um “dever do Estado”. Mas,
independentemente de qualquer interpretação do texto constitucional é evidente que tanto na
concessão como na terceirização é exigida a licitação para seleção do concessionário ou do
prestador de serviços. Portanto, a legislação de OS no DF não é outra coisa que uma fuga da
aplicação dos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade.
É interessante observar também o caso da Prefeitura de São Paulo que entregou toda a
prestação de serviços de saúde a entidades qualificadas como organizações sociais, o que por
si só é algo extremamente problemático, porque não só afronta o critério constitucional da
complementaridade do setor privado na prestação de serviços de saúde, como torna a
prestação dos serviços de saúde a cargo da Prefeitura Municipal da principal cidade do país na
dependência de negociações contratuais com entidades privadas. Além disto, as entidades
qualificadas não são entidades de natureza comunitária, isto é, refletindo formas de autoorganização social, em um modelo de gestão compartilhada com o Poder Público, conforme
prevê a Lei Federal nº 9.637, de 1998. Na maioria dos casos trata-se de entidades de fundo
religioso, o que, na área da saúde, pode trazer problemas de natureza ética dada a postura da
Igreja Católica em relação a vários aspectos relacionados com a legislação do Estado,
no país.
Assim, também a Prefeitura de São Paulo operou a metamorfose da legislação de
organizações sociais e implantou um modelo de concessões ou terceirização de serviços, com
a finalidade de fugir da aplicação dos princípios constitucionais da legalidade e da
impessoalidade. O mesmo caminho está sendo seguindo nas legislações da maioria dos
Estados que a vem adotando.
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