Quando sua vida estava arruinada, sua família morta, sua
fazenda destruída, Jó se ajoelhou no chão e gritou para o
céu: “Por quê, Senhor? Por que eu?” E a voz trovejante de
Deus respondeu: “É que há algo em você que me irrita.”
Stephen King
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Ah, glorioso, mais glorioso dos gloriosos! E mais uma vez glorioso!
O sol espalha calor e luz dourada no rosto e nos braços de
Lucy. Novas folhas claras brotam tão rápido que ela quase pode
ouvir os pequenos suspiros que fazem enquanto se abrem. Pássaros piam e gorjeiam, como trabalhadores urbanos procurando
parceiros em potencial. Algumas nuvens vacilantes pontuam o
doce céu azul. O mundo cambaleia, bêbado de felicidade.
Lucy quase ri alto. Que dia prodigioso. O dia mais prodigioso de todos, desde o comecinho dos tempos.
Ela não percebe o quanto ela própria acrescenta à sua perfeição. Será o vestido de verão estampado de rosas, que a brisa
sopra e vira para cima contra suas pernas? Ou o simples fato de
que a própria Lucy é perfeita como uma rosa, uma flor recém-aberta — tão perfeita que a gente pode imaginar o sol quebrando todas as regras da imparcialidade para brilhar só em cima
dela.
Que paraíso, ela pensa. Que felicidade! Quem quer que esteja encarregado do clima hoje conseguiu (para variar) alcançar
a perfeição.
Seu passo é leve. A distância do ponto de ônibus até o trabalho é curta. Ela sorri, um quase sorriso de menina-mulher que
ilumina seus traços adoráveis. O sol pinta luzes suaves em suas
maçãs do rosto e boca bem formada, ilumina seu cabelo claro.
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Ela sonha com os meses de verão por vir, as conversas inteligentes, os longos fins de tarde rosados, as possibilidades de amor.
Sua juventude, seu sorriso, sua felicidade, tudo se junta, nesse
momento, para torná-la a mulher mais irresistível da Terra.
Um rapaz anda a alguma distância atrás dela. Se ele já não
tivesse decidido não se apaixonar — por ela ou por qualquer
outra pessoa, nunca mais — poderia correr para alcançá-la. Em
vez disso, ele diminui o ritmo e se afasta, sem gostar dela, por
nenhum bom motivo.
Lucy saltita um pouco, feliz. Ela passa por um chafariz e
se inclina para dentro do borrifo, deliciada com seus arco-íris
cintilantes. Então apruma-se e continua a andar, cantarolando
uma pequena oração como uma esperança, um feitiço particular: “Querido Deus”, ela reza, “eu gostaria de me apaixonar.”
Mas espere... o que é isso? Que sorte! Deus (que quase nunca se dá ao trabalho de escutar as pessoas) ouve sua oração. A
oração de Lucy!
Transportado por sua beleza, decide atendê-la ele mesmo.
Que milagre! Muito mais do que glorioso! O próprio Deus
está prestes a se apaixonar.
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— Acorde!
Deus está sonhando com água. Em seu sonho há um chafariz e uma garota nua e (é claro) ele. A água está quente, a garota,
a fim; sua pele é macia. Ele estica uma das mãos para acariciar
seu seio, mas em vez disso enrosca os dedos em volta de um
braço magro...
— Acorde. — Uma ponta de impaciência acompanha a
­ordem.
Ah, Jesus. É aquele sinistro Sr. B — seu assistente, secretário
particular, o chato pessoal de Deus. E, que surpresa. Os óculos
de B escorregaram para a ponta de seu nariz e ele está de cara
fechada.
Deus está acordado. Ele abre um olho.
— O que foi?
— Vá até a janela.
Sua cabeça dói.
— Me fala logo.
— Levante-se. Pés no chão. Ande até a janela. Olhe lá para
fora.
Com um suspiro enorme, o cérebro turvo e lento como pudim, o garoto se senta, coloca os pés no chão, se levanta, balança por um instante e passa uma das mãos pelo cabelo (que
ele pode notar, com irritação, que migrou para um lado de sua
cabeça, como se tivesse ficado estagnado depois de um vento
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forte). Gemendo, ele se vira e anda, cansado, até a janela, seus
pés descalços e frios. O barulho da água é mais alto do que no
sonho. Para sua surpresa, há água onde a rua costumava ficar, e
por um momento ele se sente bastante aliviado pelo fato de seu
quarto não ficar no andar térreo do prédio.
— Água — diz ele, com interesse.
— Sim, água. — Os modos do Sr. B são mansos, mas ele
treme com sentimentos contidos.
Deus se esforça para dar um sentido à cena. Por que há
água nas ruas? Ele fez isso acontecer? Certamente não. Estava
dormindo.
— Olhe aqui.
Ele olha.
— O que você vê?
Fora do quarto há um grande banheiro, completo, com privada, pia, piso de mármore branco, banheira vitoriana grande.
Banheira.
A banheira! Deus se lembra agora; ele estava preparando
um banho de banheira e então, enquanto esperava que enchesse, ele se deitou. Só por um momento. Deve ter adormecido. E
enquanto dormia, sonhando com aquela garota linda, a garota
no chafariz, a banheira transbordou.
— Ah.
— Ah? Só ah?
— Vou fechar a torneira.
— Eu fechei a torneira.
— Ótimo. — O garoto volta para a cama e desaba.
O Sr. B se vira para Deus com sua combinação costumeira
de resignação e raiva.
— Não acha que deveria fazer algo a respeito da bagunça
que causou? — Do lado de fora da janela, a água corre pelas ruas.
— Vou fazer — resmunga ele, já semiadormecido. — Mais
tarde.
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— Mais tarde, não, agora.
Mas Deus puxou um travesseiro por cima da cabeça, sinalizando (com bastante determinação) que não adiantava r­ eclamar.
O Sr. B solta fumaça. Deus está sonhando com sexo ensa­
boado com a namorada de mentirinha enquanto o resto do
mundo se afoga no banho. No banho dele.
É sempre assim. Dia após dia, ano após ano, década após
década. Sem parar, sem parar, sem parar. O Sr. B (mais do que
um assistente pessoal, menos do que uma figura paterna — um
quebra-galho, talvez, um facilitador, secretário) suspira e volta
a sua mesa para verificar a correspondência, a qual (apesar de
ser resolvida diariamente) tem uma tendência a se empilhar em
enormes torres oscilantes. Ele vai escolher uma ou duas orações
e tentar tomar uma atitude urgente. Não as mostra para Deus,
pois a capacidade de concentração do garoto é mínima, na melhor das hipóteses.
De vez em quando, uma voz salta da torrente de orações e o
comove pela simples virtude de sua sinceridade. Querido Deus,
eu gostaria de me apaixonar.
Uma oraçãozinha pouco exigente. Vinda exatamente do
tipo de garota doce que ele gostaria de ajudar, para começar
— assegurando-se de que nunca botasse os olhos (ou qualquer
outra coisa) nela.
Mas Deus tem um nariz de perdigueiro para garotas deslumbrantes e, antes que o Sr. B possa esconder a oração, o garoto
está fora da cama e espiando por cima de seu ombro, farejando
a oração como se fosse uma trufa, praticamente a inalando em
sua ansiedade para botar as mãos...
— Quem é ela?
— Ninguém. Uma anã. Baixa, peluda, velha. Um troll. Ela
resmunga, ela ronca, ela fede.
Mas é tarde demais. Ele a viu. Ele observa Lucy em seu vestido de verão conforme ela anda pela luz mesclada da manhã
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— a luz dele —, seus quadris redondos balançando, seu cabelo
claro em brasas. Ela é primorosa. Impecável.
Nesse exato instante, há um clarão ofuscante de luz. É tão
intenso que por um momento o mundo desaparece.
— Vou ficar com ela — diz Deus.
Quando o Sr. B consegue abrir os olhos mais uma vez, a expressão no rosto de Deus faz seu coração afundar. São 12 partes
de amor abstrato, 83 partes de desejo sexual e 10,5 milhões de
partes de determinação cega. Ah, por favor, o Sr. B pensa, não
uma humana. Não outra humana.
Ele é tomado de desespero. A paixão de Deus por humanas
sempre leva à catástrofe, à perturbação meteorológica de proporções épicas. O que há de errado com o garoto que ele não
consegue ficar de pau duro por alguma bela deusa? Por quê, ah,
por que ele não pode procurar um relacionamento sensato, que
não vá terminar em desastre?
O Sr. B queria chorar. Tentar convencer Deus do contrário
ao que ele queria é tão útil quanto tentar argumentar com uma
lula. Ele vai correr atrás de Lucy até seu tesão acabar ou até
que alguma enorme perturbação geológica a apague da face da
Terra. O Sr. B já conhece essa história. Terremotos, tsunamis,
tornados. A notável incapacidade única de Deus de aprender
com os próprios erros: mais um traço maravilhoso que ele passou adiante para suas criações.
Feliz agora, o garoto volta para a cama, onde cochila, criando situações obscenas em torno da namorada que ainda não
encontrou.
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Quando sua vida estava arruinada, sua família