As Quatro Dimensões da “Americanidade”: Estudo Antropogeográfico do
Continente Americano
Profº Dr. Eli Alves Penha
ENCE/IBGE-UERJ
Simpósio- EsyP-8
“As nações não existem apenas
para si mesmas, mas
para promover o bem-estar e a satisfação da Humanidade,
pelo intercâmbio benevolente e pelo exemplo” (Abraham
Lincoln, 1864).
Introdução
No contexto atual em que se retomam as discussões em torno das idéias de união
interamericana, consubstanciada na Associação de Livre Comércio das Américas (Alca),
sob a liderança dos Estados Unidos, coloca-se em questão a heterogeneidade das
formações regionais do continente americano que se apresentam em suas variadas
configurações: histórica, geográfica, econômica, política e cultural. Como geógrafo me
interessa discutir as diferentes formas de regionalização do continente sem pretender ser
exaustivo, mas recuperando as concepções clássicas da noção de antropogeografia1
pois ela revela nuances complexas que podem contribuir para enriquecer o debate
relativo á diversidade regional do nosso continente.
Inicialmente, cabe colocar uma questão: existe um ethos americano, extensivo a
todo o continente. Essa questão é pertinente, pois se no passado o termo “americano”
correspondia a todos os naturais do continente, na atualidade ele é adjetivado, pois pode
ter muitas conotações: latino-americanos, hispano-americanos, luso-americanos, angloamericanos etc. Isoladamente, o termo América é referido aos estadunidenses, quase
que exclusivamente.
Considerando estes aspectos, o presente trabalho pretende colocar em discussão
a pertinência da construção de uma identidade comum a todos os “americanos” a partir
da noção de “americanidade", definida em função de um sentimento de pertencimento à
1
Na concepção de Friedrich Ratzel, a antropogeografia é resultado de uma tríplice repartição: influência do meio;
distribuição das sociedades humanas sobre o globo; e a formação dos territórios (Ratzel, F. 1898).
1
América. Apesar da existência de um passado colonial comum a todos os "americanos”,
as formas de manifestação da “americanidade” apresentam-se diferenciadas que serão
investigada a partir de dois níveis de análise.
O primeiro diz respeito à formação cultural das sociedades americanas,
considerando a composição étnica formada a partir das matrizes européia, ameríndia e
africana. O estudo do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro sobre as “Três Américas”
(“povos testemunhos”, “povos transplantados” e “povos integrados”), será utilizado como
ferramenta analítica para uma melhor compreensão do tema.
O segundo nível de análise detém-se na
regionalização do continente,
considerando em destaque: a Economia do multiculturalismo norte-americano; a História
dos “povos testemunhos” do México e Peru, a Geografia do integracionismo brasileiro e
cubano; e a Política e Cultura dos “povos transplantados” dos países da Prata e Jamaica.
A obra de Wladimir Lênin “As três fontes constitutivas do marxismo”, que expressou a
concepção de uma unidade continental
como espaço geográfico dos movimentos
sociais da Europa, servirá como referência teórica para essa discussão.
Somos todos americanos? Unidade Continental e Diversidade Regional nas
Américas
No filme “América”, editado em 1924 e dirigido por D. Grifitte a independência dos
Estados Unidos é contada enaltecendo o ressurgimento da noção de “América” em que o
novo Estado seria a expressão da concepção de um modelo de organização político e
social- o federalismo- com capacidade, não só para abarcar novos espaços como
também para funcionar como um elemento catalisador dos anseios por autonomia
política de todo o continente. Nesse sentido, pode-se dizer que o pioneirismo
estadunidense com a independência das treze colônias reinventou o significado de
“América”, pelo menos no sentido de unidade contra um inimigo comum, representado
pelo colonialismo europeu.
Assim, a “América” dos tempos de Colombo, assentada sobre a imaginação dos
antigos exploradores europeus que esperavam encontrar aqui um “novo mundo” cheio
de riquezas e livre das privações e das restrições características do “velho mundo”
2
reaparece sob a forma de um projeto político de caráter endógeno criado pelo novo
“homem americano” que nasce deste processo. No filme, Grifitte mostra que o processo
de ruptura ocorreu com o consórcio dos próprios habitantes das treze colônias sem
participação dos “ameríndios” nativos e dos negros que não tinham direitos políticos
reconhecidos, pois eram escravizados.
A noção de “América” ressurge, portanto, como um projeto dos antigos
colonizadores de origem britânica, de formação protestante e dispondo de um vasto
fundo territorial a ser explorado e ocupado por povos de todas as partes da Europa, mas
condicionado á política do novo Estado. A própria idéia de “fronteira em movimento” ou o
“destino manifesto” em direção ao Oceano Pacífico fortaleceu essa concepção
expansionista e de “liberdade”, no sentido da constituição de um espaço elástico e
prospectivo (Turner, 1893). Essas características também contribuíram para forjar o
sentido de identidade nacional do povo estadunidense em que os Estados Unidos da
América passam a ser a expressão máxima do “novo mundo” que ressurge sem a tutela
européia e, ao mesmo tempo, como sinônimo de liberdade e de progresso.
A derrota da esquadra espanhola no mar do caribe para os estadunidenses, em
fins do século XIX, propiciou uma maior correlação entre o país (EUA) e a nacionalidade
(americano), já que mais uma vez os europeus são derrotados, reafirmando-se os
propósitos da Doutrina Monroe.
Divulgada em 1823, a “Doutrina Monroe” e seu
postulado “a América para os americanos” buscava articular o continente americano
como um sistema de Estados independentes, sob a liderança econômica e política dos
Estados Unidos.
Contudo, cabe perguntar: a atuação dos Estados Unidos na defesa e difusão dos
ideais de liberdade e progresso em todo o continente representou a afirmação de um
sentimento de “americanidade” - de comunhão de valores comuns no espaço continental
– ou a de “americanização” do continente – no sentido da imposição dos valores da
sociedade estadunidense? Essa é uma questão bastante (in) pertinente para se entender
a complexa questão da noção de “americanidade”2 considerando-a um expediente válido
na compreensão dos processos de integração continental. Podemos examinar a questão
2
Americanidade pode ser entendida como “uma dimensão mais ampla de partilha de identidades
que se abre em outras leituras possíveis da questão da integração continental” (Cuccioletta, 2001,
p. 3).
3
a partir de dois prismas de análise: um do ponto de vista antropogeográfico e outro
geopolítico.
Do ponto de vista antropogeográfico, o continente americano constitui uma
unidade devido a sua contigüidade territorial, do Alaska à Terra do Fogo. Esta unidade
física, contudo, não corresponde uma estrutura sócio-política unificada e nem tampouco
uma coexistência ativa e interatuante. Ao contrário, a unidade física contrasta com a
formação política do continente que, longe de iniciar-se e evoluir por métodos
solidamente continentais forjou-se sobre uma base precipuamente provinciana e regional
formando ilhas sociológicas de colonização inglesa, espanhola, portuguesa
cujos
interesses sempre se manifestaram de maneira irreconciliáveis, permeados de conflitos
de toda ordem. Segundo Gilberto Freire:
“A América nasceu e se formou sociologicamente como um grupo de
ilhas que, por motivações de natureza econômica foram agrupando-se em
ilhas maiores ou menores por meio de confederações como a angloamericana, ou de reinos ou impérios como o luso-brasileiro, ou repúblicas
como hispano-americanas. De modo que dentro de nossa configuração
continental permanece a diversidade sociológica de ilhas que ainda
somos”.(Freire, 1966:48).
Estas “ilhas sociológicas” a que Gilberto freire se refere surge como resultado da
fragmentação resultado do colonialismo europeu. Com exceção da “ilha Brasil”, a
América Britânica foi fraturada em dois Estados de dimensões continentais, a América
Hispânica fragmentou-se em inúmeras unidades políticas, após as vitórias de San Martin
e Simon Bolívar.
Simon Bolívar, de origem venezuelana, liderou a libertação de cinco países
submetidos ao do domínio espanhol: Venezuela, Colômbia, Bolívia, Peru e Equador. Por
isso é chamado de “o George Washington” da América Latina e também de “pai da
independência sul-americana”. A meta de Bolívar era a de criar os Estados Unidos
Meridionais, reunidos em uma confederação (1815 e 1824), que ia do México até a
Argentina, para se opor aos Estados Unidos Setentrionais.
Para muitos historiadores, a idéia de se criar uma confederação hispanoamericana fracassou pela oposição surgida entre Bolívar e o General San Martin,
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responsável pela libertação na Argentina, Chile e Peru. San Martin era contrário á idéia
de República e preferia o modelo de Império na América hispânica, pois, para ele, a
situação rural na região favorecia o seccesionismo e, portanto, conspirava contra a
unidade do continente. Essa posição de San Martin, aliada à indefinição da posição do
Peru na composição da confederação hispano-americana, desagradou a Simon Bolívar.
O desentendimento gerado por essas questões, ficou patente no encontro que tiveram
em Guaiaquil, no Equador, em 26/06/1822, o que resultou no fim do projeto de unidade
política da região.
Do ponto de vista geopolítico, o projeto de Bolívar apesar de fracassado no seu
objetivo principal de unidade da América Hispânica, contribuiu para criar um
antagonismo fundamental no continente que, posteriormente, influenciaria outras
iniciativas de liderança regional como as desencadeadas pelo México, entre 1830 e
1840. Contudo, a guerra desse país contra os Estados Unidos deflagrada pela anexação
do Texas (1846-48) enfraqueceu a posição mexicana e transferiu a iniciativa para a
América do Sul nas décadas seguintes – o Congresso de Santiago (1856) e o de Lima
(1848 e 1864-5), porém sem resultados práticos. Os Estados Unidos e o Brasil foram
excluídos desses congressos: O primeiro, por conta de seu expansionismo territorial e o
Brasil, por conta de seu intervencionismo na Prata, política considerada contrária à
solidariedade continental.
Na segunda metade do século XIX, a expressão “América Latina” se consolida
como manifestação da oposição em relação à América Anglo-Saxônica, representada
pelos Estados Unidos e seus interesses de domínio continental. Na verdade, o termo
expressou um movimento conjunto: de um lado, a iniciativa francesa de se aproximar dos
“latino-americanos”, isolando os ingleses e estadunidenses ao invadir o México em 1867
e, posteriormente agregando o Haiti à Ibero-América, e de outro a incorporação do
Brasil à América Hispânica. De qualquer modo, a noção de América Latina passa a
prevalecer como um aspecto estrutural da clivagem continental.
Sob essa ótica, o termo “América Latina” passou a ser visto como forma de
resistência e também como baluarte para justificar os interesses irreconciliáveis com a
América Anglo-saxônica, sobretudo a partir do “Corolário Roosevelt” e sua política do
“big stick”, de intervencionismo na América Central e Caribe. No entanto, apesar de se
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originar como um espaço de luta em oposição ao imperialismo ianque, os latinoamericanos não conseguiram definir um sentido de unidade regional substantiva.
A derrota do hispano-americanismo, em fins do século XIX, reanimou os
interesses estadunidenses de promoverem uma maior integração no continente
respaldado pela sua ascensão como grande potência econômica. Ancorado na Doutrina
Monroe, os Estados Unidos definem uma estratégia de integração motivado por seus
interesses em construção da esfera de sua influência no continente, consubstanciado na
idéia de pan-americanismo.
O pan-americanismo
é um princípio que preconizava a aproximação cultural,
política, econômica e comercial entre os países do “Novo Mundo”, como forma de
preservar a solidariedade e a integridade continental contra qualquer ingerência de
potências externas ao continente. O que na verdade, expressava as potencialidades da
economia dos Estados Unidos como substituto dos capitais europeus no continente.
Para o Brasil, em particular, o pan-americanismo reforçava uma tendência de
aproximação com os Estados Unidos que já vinha se delineando ainda no finalzinho do
Império. Com a República, o novo regime abria as portas para um melhor entendimento
diplomático do país com as repúblicas americanas. Na perspectiva do Barão de Rio
Branco, então chanceler do Brasil, o pan-americanismo serviria para dirimir os conflitos
fronteiriços com os países vizinhos sul-americanos e europeus, no caso das Guianas, no
contexto de demarcação das fronteiras. Ao mesmo tempo, possibilitava aumentar a
influência geopolítica do Brasil na América Latina - e, ao mesmo tempo, aproximar-se
dos Estados Unidos (Andrade, 1950:67).
As outras nações da América Latina reagiram de forma diferenciada ao princípio
pan-americanistas. De um lado, o ativismo diplomático da Argentina, estimulado pela sua
opulência econômica, procurava se consolidar como potência regional, incrementando
suas relações com os países do continente americano, a nível bilateral e multilateral. Os
outros países, por sua vez, buscavam definir princípios de convivência política e jurídica.
face à nova projeção dos Estados Unidos com suas políticas intervencionistas no Caribe
e na América Central.
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Na prática, o pan-americanismo concretizou-se através das diversas conferências,
de iniciativa dos Estados unidos, que preconizavam o estabelecimento de planos de
arbitragem e solução pacífica de quaisquer disputas entre as nações americanas, bem
como possibilitar melhorias nas relações comerciais.
A primeira conferência foi em Washington (1889-90), seguidas da Cidade do
México (1901-2), do Rio de Janeiro (19060) de Buenos Aires (1910) e de Havana (1928).
A conferência de Petrópolis (1947) que criou o TIAR (Tratado Interamericano de
Assistência Recíproca) e a de Bogotá (1948), que originou a OEA (Organização dos
Estados Americanos) expressaram a determinação dos Estados Unidos em liderar o
processo de união interamericana e, ao mesmo tempo, de exercer influência geopolítica
decisiva nos assuntos continentais.
Ao contrário do hispano-americanismo, a perspectiva pan-americanista foi e tem
sido respaldada por convergências de interesses econômicos e ideológicos de longo
prazo e que tendem a subsumir as clivagens sociais e políticas, e que hoje se manifesta
na integração comercial do continente, materializada pela Alca. Ou seja, surge como um
projeto de longo prazo dos Estados unidos, abarcando os interesses econômicos de
setores das elites das nações americanas, sem levar em consideração as diferenciações
sócio-espaciais dos países do continente.
Em contrapartida, os movimentos recentes ocorridos na América latina liderados
por Hugo Chavez da Venezuela e Evo Morales da Bolívia, em franca oposição a essa
tradicional concepção comercial e unilateral colocam em evidência a necessidade de se
repensar as diferentes concepções de identidade continental e regional. Essas
diferenciações vão ocorrer em função das distintas formas de implementação das
políticas culturais pelo Estado e pelas ações públicas voltadas para a construção da
etnicidade enquanto categoria política (Zarur: 2006),.
Nesse sentido, enquanto os Estados Unidos conservou o modelo inglês de um
Estado, vários povos e nações, o Brasil procurou preservar o paradigma de um só povo,
nação e estado, inspirado no modelo republicano francês. Na América-hispânica, por sua
vez, várias situações vão coexistir. Desde o sistema de segregação herdado dos
espanhóis, como se observa nas populações indígenas dos altiplanos, passando pelos
povos transplantados da Argentina e Uruguai, até as áreas de “plantations” como na
7
Colômbia, Cuba e Venezuela, cujo modelo está mais próximo dos brasileiros.
caracterizar essas diferenciações em
Podemos
quatro unidades regionais, segundo suas
características antropogeográficas mais marcantes:
A “Economia” do Multiculturalismo Estadunidense
Nos Estados Unidos a crença na democracia e no progresso como valores universais,
associado a um amplo território em vias de ser ocupado atraiu uma variedade de povos da
Europa e Ásia, que somados aos índios, negros e anglo-saxões que lá viviam contribuíram
para formar o caldo cultural, denominado por eles de “melting pot”, formado pelos imigrantes
europeus assimilados pelos ideais de democracia, progresso, valores éticos e religiosos,
ditados pelos “founding fathers” anglo-saxões, denominados “wasp” (white, anglo-saxões,
protestant people).
A esperança de uma cultura continental de modernização assimiladora, baseada no
“credo americano” de liberdade e de capitalismo, foi contraposta aos “nacionalismos
estreitos” da Europa e do resto do mundo. A América (EUA), a síntese do “homem novo”,
amante da liberdade, do progresso, e ciente dos seus direitos individuais, era a terra de
imigrantes e de minorias que se enquadravam nesta fórmula do bem-estar coletivo. É desta
forma que os Estados Unidos se apresentaram para o mundo, como exemplo de
assimilação da “miscigenação de raças”.
A partir do momento que esta auto-imagem se mostrou uma farsa, sobretudo em
relação aos negros, o discurso passou a ser a difusão da imagem de uma sociedade
integrada, em termos dos valores, que englobava a diversidade étnica e cultural. Nesta
versão, os direitos dos grupos étnicos passaram a ser reconhecidos politicamente, mesmo
assim desde que subordinados à comunidade política e cultural, que se sobrepõe ao
conjunto de mitos, memórias e símbolos da nação norte-americana (Smith, 1994:185).
Nesse sentido, o etnicismo se tornou um dos princípios organizacionais básicos,
embora informal, da sociedade americana, porém não de modo a prejudicar a fidelidade
dominante de cada cidadão para com a América, para com os seus valores, heróis, pelos
mitos revolucionários e pela sua constituição.
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A partir da segunda metade do século XX, o progresso material e a intensa difusão,
através dos meios de comunicação do “modo de vida americano” como terra das
oportunidades, do “self made man”, propiciou uma enorme movimentação de pessoas das
outras regiões do mundo em direção aos Estados Unidos, num dos períodos mais longos e
sustentados de migração “espontânea” da história do país. Impulsionadas pela pobreza, pelo
subdesenvolvimento econômico, pela guerra civil, pelos conflitos regionais, etc, as
populações mais pobres do mundo acabam por acreditar na “mensagem” do consumismo e
se mudam para lá, de onde vem o “bem” e onde as chances de sobrevivência são maiores.
Uma conseqüência dessas migrações foi a mudança drástica na “mistura étnica” da
população dos Estados Unidos, formando grandes
“encraves” minoritários que, somados
aos já existentes no interior da sociedade americana, levou a uma pluralização de culturas
nacionais e de identidades nacionais. A lógica de “um Estado, vários povos e nações”
consubstanciou-se na idéia de “multiculturalismo”, difundido por alguns setores políticos
como forma de garantir a inserção destes segmentos
no conjunto da sociedade. São
exemplos as cotas raciais e a criação de mercados específicos para estes novos segmentos,
formando um moto contínuo de absorção, segregação e integração social, mediante uma
perspectiva de mercado étnico e cultural (Hall, 1999:82).
O multiculturalismo, construído a partir da premissa de que cada “raça” possui uma
cultura e uma visão de mundo, transformou-se em um conceito central do discurso político
dos Estados Unidos. Ele permite definir um equilíbrio ou um armistício entre os grupos
étnicos e os setores sociais que compõem o conjunto da sociedade estadunidense. O
mercado aparece como o elemento estabilizador e integrador entre os vários grupos,
cabendo ao Estado, garantir a coesão interna a partir de seu apoio á diversidade. Ao
valorizar os aspectos econômicos das relações sociais em correspondência aos processos
de integração econômica global, o multiculturalismo se transforma na tradução para a
etnicidade do neoliberalismo econômico (Zarur, 2006:2-3).
A “História” dos Povos Testemunhos
9
Na concepção de Darcy Ribeiro, a formação dos “povos testemunhos” foi construída
tendo como parâmetro principal os laços identitários anteriores à colonização européia. O
México - e a civilização Asteca- e o Peru - e a civilização Inca-, seriam os dois arquétipos
deste modelo. Formados essencialmente por povos de origem pré-colombianas, estas
sociedades estão premidas entre a tradição e a modernidade de uma forma mais explícita e
dramática que as verificadas nos outros modelos de formação nacional. As minorias étnicas
destes países, mais vinculadas aos ambientes europeus e norte-americanos incorporam a
modernidade e os seus ideais de forma mais intensa. Essa minoria, adestrada e preparada
para os valores prevalecentes da cultura ocidental moderna, consome com voracidade os
valores da modernidade: o mercado e a liberdade. As populações indígenas, caboclas, mulata
e negra, erram pelo mundo rural e pelas periferias das grandes cidades à deriva da economia
de subsistência e marginal na economia de mercado (Ortiz, 1993).
A falência do modelo neoliberal na América Latina e os resultados dramáticos na vida
da população deram margem para o surgimento de movimentos indigenistas, sobretudo no
México e na Bolívia. Nessa última, cumpre destacar a eleição para presidente do líder
cocaleiro e indígena Evo Morales que, ao assumir o governo declarou:
Ser bolivariano para mim é responder a um movimento latino-americano de
libertação, tomando os princípios, os mandamentos de Bolívar e incorporando a
luta indígena, o tema da identidade. Recuperar as formas de vivência em
coletividade, em comunidade, essas formas de vivência em harmonia com a
“natureza”.
Em 1998 foi eleito Hugo Chávez na Venezuela, que tem como principal item de sua
política exterior a construção de uma União Latino-Americana e que é atualmente o principal
divulgador das idéias bolivarianas. O denominador comum entre Chaves e Morales é um
projeto político de integração continental, de cunho nacionalista e socializante, de valorização
das culturas locais e dos povos indígenas da América. Ou seja, a valorização da História dos
povos testemunhos da América pré-colombiana.
.
A “Política e Cultura” dos Povos Transplantados
10
As sociedades “transplantadas”, tal como denominada
por Ribeiro (1983),
se
manifestam nos territórios onde o processo de colonização apresentou a origem nacional
predominante dos povoadores. A Jamaica, com a imigração forçada dos negros africanos e a
Argentina e Uruguai, com o elemento europeu, seriam os exemplos mais expressivos deste
modelo. No caso destes dois últimos, o
progresso foi sustentado pelas atividades agro-
exportadora e a vida social reproduziu o estilo de vida europeu nas suas cidades. Os índios e
os mestiços ficaram alijados deste processo de modernização e tornaram-se “invisíveis” na
difusão da imagem que se projetou destes países. A crise econômica que assolou a
Argentina, recentemente, trouxe a tona estes segmentos da sociedade que, na sua totalidade,
estavam entre os mais afetados pela crise, televisionada insistentemente pelas cadeias de
notícias.
A situação da Argentina é um exemplo dramático de que como a crise econômica tende
a invadir outros segmentos da vida social do país, tanto do ponto de vista institucional, como
cultural. Aí cabe mencionar a quantidade de cidadãos argentinos que buscam solução para a
crise se apegando a valores culturais de caráter transnacional, facilitado pelas suas origens
européias. A emissão de um segundo passaporte passou a ser visto como fato corriqueiro
entre a população de origem européia do país.
Sob essa ótica, pode-se dizer que o processo de globalização na América Latina vai se
ocorrer num contexto de
modernidade ainda incipiente, no sentido da concretização dos
ideais de liberdade e progresso material pleno e, no plano institucional, com a presença de um
Estado-nação inacabado, incapaz de estabelecer um grau de resistência e de adequação
necessária à interlocução entre o nacional/global.
A “Geografia” do Integracionismo Brasileiro
No terceiro caso, a sociedade “integrada”, está o exemplo brasileiro, visto por Darcy
Ribeiro como um modelo original de sociedade nas Américas. Para ele, o fator central que
caracteriza a nossa formação étnica é a perspectiva integracionista das raças e culturas que
são assimiladas, por ser o país constituído de um povo ainda em formação. A matriz cultural
não é regional porque a mestiçagem foi plasmada, indistintamente em todo o território
11
nacional. Iniciou-se com os caboclos e mulatos lusitanizados pela língua, pela visão de mundo
e promovendo, simultaneamente, sua integração na forma de Estado-Nação. Esta forma,
segundo ele, já estava madura quando recebe grande contingente de imigrantes europeus,
árabes e japoneses, o que possibilitou ir assimilando todos eles na condição de brasileiros
genéricos (Ribeiro, 1983:448).
Para ele, apesar da má vontade de alguns imigrantes para com o povo original, eles
não se constituíram em “enclaves”, como se observa em outras sociedades da América. Isso
porque os imigrantes não teriam consistência suficiente para se apresentar como uma etnia
disputante ao domínio da sociedade.
Sendo uma sociedade singular, fruto da mestiçagem, os brasileiros constituíram-se num
dos povos mais homogêneos, lingüista e culturalmente e, também, um dos mais integrados.
Falam a mesma língua, sem dialetos, e não há sentimentos separatistas fortes. Concluindo,
argumenta que o Brasil é, portanto,
uma sociedade aberta para o futuro cujo principal
problema não é a questão étnica ou cultural, mas, sim, a questão das classes sociais que nos
ligam com o passado colonial opondo ricos e pobres, opressores e oprimidos (idem, p. 449).
Obviamente que esta visão foi extremamente idealizada, pois as estatísticas sociais
mostram que a integração social, pelos menos no mercado de trabalho, ainda é bem restrita
para os grupos étnicos chamados de minoritários (índios e negros).
Entretanto, a idéia de sociedade aberta atribuída por ele ao Brasil, impede uma
exacerbação das segmentações étnicas. Esta perspectiva integracionista do Brasil, segundo
ele, contrasta com os povos testemunhos do México e do Altiplano Andino, e com as
sociedades transplantada dos Estados Unidos, Canadá, Argentina e Uruguai. Apesar dessa
especificidade de formação nacional em relação aos outros povos, as características da
geografia brasileira, expressa pela grande extensão territorial do país, constitui-se num fator
de presença significativa no ambiente regional do sub-continente sul-americano. As fronteiras
terrestres do Brasil se extendem ao longo dos países andinos, platinos e caribenhos,
favorecendo o estabelecimento de políticas de integração física, econômica e cultural. O
Mercosul é um bom exemplo dessa política.
A característica marcante do Brasil, em relação aos outros países do continente é,
portanto, a sua geografia. A posição de um país de “fronteiras” ficou evidente nesse encontro
do presidente lula com Bush para tratar de assuntos ligados a produção de biocombustível
12
que tem sido apontado por muitos setores sociais como a “nova fronteira” da matriz energética
mundial. Essa posição foi reconhecida pelo próprio presidente dos Estados unidos inclusive
como contraponto ao presidente Chaves e o uso político que tem feito do petróleo
venezuelano como elemento de barganha política na região.
Conclusão
Como conclusão, gostaria de destacar alguns pontos que me parecem relevantes para
um melhor enquadramento da problemática em questão, a saber, as diferentes formas de
percepção da “americanidade” pelos povos da América e as diversas formas de
regionalização do continente que sugerem um direcionamento em torno de uma convergência
de interesses ou então, ao contrário, para uma maior fragmentação. No primeiro caso, as
duas frentes históricas do monroismo e do bolivarianismo se manifestam hoje encabeçada por
George Bush e Hugo Chaves. Ambas combinam-se e contrapõe-se, apontando para um
projeto de unidade com restrições em função do conteúdo das propostas.
Na primeira, temos os Estados Unidos com a sua missão de integrar comercialmente os
países do continente, mas, ao mesmo tempo, ergue um muro na fronteira com o México para
impedir a entrada de imigrantes latino-americanos. De outro lado, Hugo Chaves e seu projeto
de unificar os povos da América Hispânica como meio de resgatar a dívida social das
populações indígenas e mestiças que estiveram sempre marginalizadas do processo de
desenvolvimento econômico nacional. Da mesma forma que no século XIX, as duas propostas
são antagônicas e conduzem a um projeto de integração excludente, pois não contemplam
todos os países do continente (a começar pelos próprios propositores).
A recente visita do presidente dos Estados Unidos George Bush a alguns países da
América do Sul (Brasil, Uruguai e Colômbia), em março de 2007, revelou as imensas fraturas
existentes no continente. No mesmo período da viagem de Bush, Hugo Chaves foi à Bolívia e
a Argentina. No encontro com Kirshner o presidente venezuelano ressaltou que aquele
era
um momento histórico no processo de integração sul-americana, pois revivia o famoso
encontro de Guaiaquil de 1822.
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Como ponto final, gostaria de registrar que esse exercício de regionalização do
continente americano é uma tentativa de compreender o conteúdo histórico e cultural das
diferenciações regionais e, ao mesmo tempo, de compreensão dos discursos e projetos
voltados para a integração continental. Em todos eles há um elo comum que é a busca da
unidade na diversidade, embora em suas distintas proposições que revela os elementos mais
característicos presentes no conteúdo de cada uma das propostas e discursos. As quatro
dimensões da americanidade, portanto, expressam-se através do discurso de integração
continental através do comercio, pelos
Estados Unidos, em que esse se projeta
incontestavelmente pela pujança de sua economia em todo o continente. Pelo projeto
bolivariano de Chaves e Evo Morales voltado para a integração dos povos do altiplano
(Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela). No cone sul a política e cultura dos povos
da Prata, que se diferenciam pela preservação dos valores políticos e culturais da Europa. E a
geografia brasileira que se manifesta na extensão de seu território e na “fronteira”.
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As Quatro Dimensões da “Americanidade”