Revista Observatório da Diversidade Cultural
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ARTES
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Relações contemporâneas:
moda e cultura, o designer Ronaldo Fraga e suas coleções literárias
Adriana Dornas1
Marcelina das Graças de Almeida2
Resumo
A sociedade contemporânea demanda a criação de padrões e tendências de consumo, exigindo
dos criativos um despojamento permissível às artes e aos produtos industriais. Neste sentido,
o artigo pretende compreender a dinâmica criativa do designer de moda Ronaldo Fraga em
sua originalidade, além de tentar destacar as características que o faz representativo no
mundo da moda. Foram analisadas duas coleções bem como a análise da produção intelectual
relacionada ao perfil do profissional. Conclui-se que atuação de Fraga tem sido de inovação,
explorando os traços culturais da sociedade brasileira, recriando e ressaltando aspectos que
demonstram os valores e a identidade que marcam a mesma.
Palavras-Chave: design brasileiro, moda, diversidade cultural
Abstract
Contemporary society demands the creation of patterns and consumer trends, requiring from
creatives an allowable stripping to arts and industrial products. In this sense, the article seeks
to understand the creative dynamics of the fashion designer Ronaldo Fraga in its originality,
and try to highlight the features that makes him representative in the fashion world. We
analyzed two collections and his intellectual production related to the professional profile. It
concludes that Fraga’s actions have been innovative, exploring the cultural traits of Brazilian
society, andrecreating and highlighting aspects that demonstrate the values and the identity
that mark itself.
Keywords: brazilian design, fashion, cultural diversity
1 Mestre em Design e docente na Escola de Design, UEMG. E-mail: [email protected].
2 Doutora em Historia e docente na Escola de Design,UEMG. E-mail: [email protected] .
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INTRODUÇÃO
Ao analisar o percurso da sociedade contemporânea no quesito consumo de produtos
industrializados, observa-se uma tendência na aceitação de soluções estético-técnicofuncionais, em geral, evidenciados pela história e cultura de seus designers. Obviamente,
tais requisitos não são os únicos, especialmente em países como Brasil, onde houve um forte
apelo da industrialização advinda de países emergentes. Tal fato é confirmado por Moraes, ao
ressaltar o desempenho das multinacionais em solo brasileiro, levando-o à industrialização e
distanciando-o das referências do design local. O autor relembra a frenética busca de soluções
projetuais industrializáveis concomitante com a baixa estima do design brasileiro, ocasionado
especialmente no período do regime governamental militar. Por sua vez, na década de 1980,
chamada de pós-militar, o designer prenunciava erguer a bandeira “contra a indiferença das
multinacionais com suas estratégias de lucro fácil e falta de apreço pela causa do design local”
(MORAES, 2013, p. 78).
Para Roizenbruch (2009), em meados da década de 1990, o design brasileiro se vê inserido
na pós-modernidade e globalização. Vê-se claramente a absorção do domínio cultural e das
questões identitárias na dinâmica de criação, reforçando a produção e originalidade dos
designers locais.
Laraia (2001) afirma que cultura é um processo cumulativo e o homem é o resultado do meio
cultural em que foi socializado. Por isso, ele torna-se herdeiro desse processo que é proveniente
de experiências adquiridas ao longo de muitas gerações que o antecederam, desenvolvendo a
partir daí valores próprios.
O resultado criativo advindo desse contexto culminará, sob o ponto de vista de Lahire (2006),
em sua maioria, na formação do produto com influências culturais sintetizadas, subjetivas
e sutis. Ele acredita que a fraca ou forte legitimidade que um campo cultural proporciona
pode ser delimitado pelo aprofundamento ou não que o designer faz, mas, em geral, isso
não acontece na íntegra. Isto porque conceitualmente cultura é algo construído, somado e
variante – o que por si só já impossibilita a imposição de formas.
Neste contexto, o design que, até então, tinha a função de concretizar “uma ideia em forma
de projetos ou modelos” (LÖBACH, 2001, p. 16) encontra-se influenciado por uma história ou
cultura, assumindo formas múltiplas e mutáveis, “fruto de uma sociedade pós-moderna que
associa o local e o global”, caraterizando-se como multicultural (ROIZENBRUCH, 2009, p. 33).
Nesse sentido, pretende-se apresentar a dinâmica criativa do designer de moda de Minas
Gerais Ronaldo Fraga, em duas coleções que utilizam a obra de dois reconhecidos escritores
mineiros, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Guimarães Rosa (1908-1967). Além de
demonstrar como, em várias coleções, ele estabelece um diálogo com a cultura brasileira.
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Design, Cultura e Identidade: relações contemporâneas
No que diz respeito ao uso dos elementos culturais na dinâmica da criação no design, é
importante ressaltar que a transferência de signos é feita através das informações passadas e
das presentes no meio social. Lahire (2006) entende que essa transferência gera características
muito próprias e sutis nos elementos criados.
Por outro lado Santana (2001, p. 170) mostra que, de um modo geral, o homem, diante
de suas necessidades de autoafirmação, tende a modificar algumas bases dessa herança,
tornando a cultura possível de mutação. Para ela, cultura é “um produto da atividade
humana”, portanto, não é estática. Finalmente, para Laraia (2001), cultura é um processo
cumulativo e o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Por isso, ele
torna-se herdeiro desse processo proveniente de experiências adquiridas ao longo de muitas
gerações que o antecederam.
Para o autor, no final do século XVIII, o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar
o conjunto de aspectos espirituais de certa comunidade, enquanto a palavra Civilisation (de
origem francesa), referia-se às realizações materiais de um povo. Estes termos foram então
sintetizados pela primeira vez por Edward Tylor (1832-1917), no vocábulo inglês Culture, palavra
utilizada para definir um conceito complexo que incluiria conhecimentos, crenças, moral, leis,
costumes, expressões artísticas, ou qualquer outro tipo de hábito que um indivíduo poderia
adquirir como integrante de uma sociedade, criando uma simbologia cultural.
Podemos destacar que o sujeito pós-moderno desenvolve-se justamente a partir da
desestabilização entre a relação do eu com a sociedade. Assim, esse sujeito define-se
como não tendo uma identidade fixa, essencial ou imutável. “A identidade torna-se uma
‘celebração móvel’ formada e transformada continuamente em relação às formas pelas
quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL,
2000, p. 16).
No Brasil, por exemplo, essa modificação é em parte ocasionada pela pluralidade de origens
sociais e étnicas, característica da formação histórica do país e de sua dinâmica sociocultural.
Ribeiro (1995) vem reforçar: a identidade étnica e a configuração cultural do Brasil vieram se
formando “destribalizando índios, desafricanizando negros e deseuropeisando brancos”. Desta
maneira, podemos perceber na afirmação anterior que a formação multicultural, multireligiosa
e multiétnica do país levou a um sincretismo que se vê presente na base da cultura brasileira.
Assim, essa multiculturalidade aparece em cenários onde a pluralidade de origens sociais e
étnicas são inúmeras (RIBEIRO, 1995, p. 179).
Em um ambiente multicultural, as interferências entre culturas devem ser encaradas como
parte de um processo natural do seu amadurecimento; todavia, a coexistência de culturas não
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deve ser vista como busca do predomínio ou da sobreposição de umas em relação a outras. A
inter-relação entre diversas culturas, que é a fusão entre diferentes tradições culturais, pode
ser vista como uma forma natural de evolução das sociedades, promovendo a criatividade,
produzindo novas formas de cultura e até mesmo contestando as identidades do passado.
Ono (2004) considera que as influências multiculturais de uma sociedade geram uma cultura
material capaz de criar produtos com significados particulares que refletem os valores e
referências culturais dessa sociedade.
Diante do exposto, refletir sobre a influência das multiculturas na dinâmica criativa do
design brasileiro hoje torna-se pertinente, afinal, parte-se do pressuposto que a sociedade
contemporânea tem perdido seus referenciais de identidade através do processo de
globalização, o que a leva, por outro lado, a uma busca ávida por produtos cuja identidade e
cultura possam estar explicitadas.
O antropólogo Keesing (1974), em seus estudos sobre a cultura, considera que é possível
entendê-la sob duas correntes: 1) aquela que considera cultura como um sistema adaptativo,
ou seja, padrões de comportamento sociais transmitidos e adaptados em comunidades
humanas de acordo com os estilos de vida; 2) uma teoria idealista dividida em: cultura como
sistema cognitivo, ou seja, um sistema de conhecimento; cultura como sistemas estruturais
onde se define cultura como um sistema simbólico que é a criação acumulada da mente
humana; cultura como sistema simbólico onde cultura é um sistema de símbolos e significados
compartilhados pelos membros de uma sociedade.
Entretanto sob o ponto de vista da simbologia, Arantes (1981) afirma que os elementos culturais
não significam nada se tratados individualmente, ou seja, só se tornam legítimos quando se
conceituam participantes de um grupo. As variadas compreensões destes elementos inseridos
nestes grupos são chamadas de eventos culturais. A partir daí, a cultura torna-se atividade
concreta, passando por um jogo político divergente de segmentos sociais, adequando-se ao
contexto de cultura como produto.
Assim, Hall (2000) entende que uma identidade:
[...] é formada na interação entre o ‘eu’ e a sociedade. O sujeito ainda tem um
núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado
num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades
que os mundos oferecem.(HALL, 2000, p. 11)
Deste modo, o conceito de identidade transita entre o interior do indivíduo e o exterior que
o influencia. O indivíduo, com sua identidade própria, é composto não de uma única, mas de
várias identidades. À medida que os sistemas formadores de identidade cultural se multiplicam
os indivíduos se esforçam para se identificar de forma única dentro de uma “identidade
possível” (HALL, 2000, p. 12).
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Por outro lado, Berger (1998, p. 112) afirma que “[...] as identidades são atribuídas
pela sociedade”. Neste caso, é preciso que a sociedade as sustente com regularidade.
Um indivíduo não pode ser humano sozinho e, aparentemente, não pode apegar-se a
qualquer identidade sem o amparo da sociedade. As concepções estabilizam os sujeitos e
os mundos culturais. Santos ressalta que a identidade de um povo não é rígida ou imutável;
ela se constrói e se modifica na sequência de um constante processo de transformação
(SANTOS, 2005).
A diversidade cultural aparece em cenários onde a pluralidade de origens sociais e étnicas
caracterizam a formação de um ambiente e da dinâmica sociocultural de uma sociedade.
Num ambiente como esse, as interferências entre culturas são entendidas como parte de um
processo natural do seu amadurecimento. No entanto, a coexistência de culturas não deve ser
vista como busca do predomínio ou da sobreposição de umas em relação às outras. A interrelação da diversidade é a fusão entre diferentes tradições culturais e pode ser vista como
uma forma natural de evolução das sociedades, promovendo a criatividade, produzindo novas
formas de cultura e até mesmo contestando as identidades do passado (HALL, 2000).
Na realidade, a identidade não é consequência direta da diferença cultural, mas das interações
dos grupos sociais e dos procedimentos que estes utilizam para apresentar tais diferenciações.
O território local passa então a representar os limites físicos de uma determinada identidade
cultural, cujas fronteiras são construídas socialmente. (FLORES, 2002)
O próprio conceito de território refere-se a uma identidade cultural coletiva. Segundo Teófilo
(2002), território
[...] tende a ser uma microrregião com claros sinais de identidade coletiva
compreendendo um número de municípios que mantenha uma ampla
convergência em termos de expectativas de desenvolvimento, articulado
com novos mercados, e que promova uma forte integração econômica, e
social, ao nível local (TEÓFILO, 2002, p. 47).
Semprini (1999) destaca que o território multicultural é, antes de tudo, um espaço de sentido
onde circundam símbolos de uma sociedade. Um país pode ser considerado território
multicultural quando formado por diversos povos e culturas que convivem e trocam
informações. Barbosa (1998) caracteriza esse cenário de multicultura ativa.
O resultado disso são produções com forte apelo cultural oriundos das comunidades que
os produzem em seus respectivos territórios. Todavia, é importante ressaltar que tais
favorecimentos criativos precisam ser trabalhados com cautela; afinal, é necessário aterse à originalidade e riqueza de significados dessas culturas. Para Krucken (2009), esse é um
caminho muitas vezes seguido por diversas áreas. O design, por exemplo, tende a unir técnica
e conhecimento em projetos repletos de elementos culturais e simbólicos.
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Kistmann (2001) pondera que o design contemporâneo pode ser denominado como híbrido;
isto porque ele se reporta, da mesma forma, ao processo moderno de produção e às bases
tradicionais típicas das culturas locais. A autora ressalta que a aproximação do tradicional e
do moderno não é um consenso, permanecendo em constante discussão, principalmente por
ainda existirem produtos com essa configuração que não tenham resolvido totalmente seus
processos produtivos.
Podemos perceber que no campo atual do design, identidade, cultura, diversidade cultural e
globalização ocupam uma posição ímpar no cenário atual e, assim, podemos destacar:
O percurso feito pelo design brasileiro dentro de um cenário de reconhecida
multiculturalidade legitima-o, portanto, como um laboratório a ser conhecido
e levado em consideração por todos os que querem prospectar novos modelos
no âmbito da disciplina do design, dentro da segunda modernidade e dentro
do controverso fenômeno de globalização mundial. Procurar entender o
paradigma brasileiro, com toda sua energia e pluralidade intrínsecas, é, em
hipótese, uma maneira de refletir sobre as novas e possíveis estradas para o
design no mundo global (MORAES, 2013, p. 78).
Pode-se dizer que o conceito de design na modernidade tornou-se muito complexo, levando
os produtos a se adaptarem às diversidades. Nessa perspectiva, ele vem mediar produção e
consumo, tradição e cultura, inovação e qualidade.
ESTUDO DE CASO – Ronaldo Fraga: representante de um Brasil
não caricato
A seguir será brevemente apresentada à trajetória artístico-profissional de Ronaldo Fraga no
cenário brasileiro, seus trabalhos e algumas de suas experiências criativas. Posteriormente
faremos uma descrição do estudo de caso propriamente dito, e da influência multicultural
brasileira em sua obra, e por fim, destacamos duas de suas coleções de inverno 2005 e verão
2006∕7. Podemos perceber uma grande expressividade e originalidade em seu traço, o que o
faz conhecido pela pesquisa em seu trabalho e principalmente o olhar atento e de preocupação
em destacar personalidades e características da cultura brasileira.
O critério do estudo de caso se apoiou em menor proporção no entendimento da obra do
designer, no que diz respeito às formas de inspiração/criação, materiais utilizados, técnicas
de acabamento da costura, mas nos debruçamos principalmente nos conceitos desenvolvidos
nestas duas coleções. O requisito de escolha foi sua significância na trajetória da marca Ronaldo
Fraga, bem como, a aproximação dos critérios conceituais dos dois trabalhos, que podemos
chamar de: Duas Coleções Literárias, pois o próprio designer destaca: “moda e literatura são
dois instrumentos para escrever, e contar a história” (FRAGA, 2012, p. 73).
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Breve histórico sobre a vida e obra de Ronaldo Fraga
Ronaldo Fraga nasceu em Belo Horizonte no dia 27 de outubro de 1966 e é formado pelo curso
de estilismo da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, com pós-graduação na Parson’s
School of Design de Nova York e vários cursos livres na Saint Martins School de Londres. Em
1997, no evento promovido pelo Phytoervas e MTV, ganha o prêmio de Estilista Revelação de
1997, apresentando a coleção “Álbum de Família” e “Em nome do Bispo”. Em 2001, estreou
no São Paulo Fashion Week, com a coleção “Rute-Salomão”, uma estória de amor fictícia entre
um judeu ortodoxo e uma cristã; a partir daí passa a ser reconhecido como um estilista com
grande contribuição para a moda brasileira.
Uma marca em todos os seus trabalhos é estabelecer um diálogo entre cultura, principalmente
a brasileira, com o mundo contemporâneo, em toda a sua complexidade. Ao longo de sua
carreira, estabeleceu uma ligação com projetos sociais e projetos de geração de emprego
e renda com cooperativas e comunidades diversas. Sua primeira coleção recebeu o nome
de “Eu amo coração galinha” e foi promovida no inverno de 1996; desde então vem, com
regularidade, exibindo seu talento e criatividade. Suas coleções infringem as normas
estilísticas vigentes e a proposta de suas roupas ultrapassam os códigos comuns que exaltam
a sexualidade, as tendências fáceis, o mundo comercial e mundano. As coleções de Fraga
propõem discussões mais profundas sobre o lugar da moda no contexto da diversidade
cultural brasileira. O mesmo acredita que:
[...] escolher um objeto de pesquisa para uma coleção de moda pode
ser como definir um tema ou uma “estória” para cinema, teatro, ópera,
quermesse ou enredo para escola de samba. Quase sempre, na busca por
narrativas para a moda, mergulha no universo da literatura e da música
brasileira, da cultura popular e nas histórias absurdas do homem comum.
(FRAGA, 2012, p. 269)
Para tanto, Fraga desfilou algumas de suas coleções no Chile (2006), no Japão (2008), na
Inglaterra (2009), no México (2010), na Colômbia (2010) e na Holanda (2011). Participou da
mostra When lives become form, no Museu de Arte Contemporânea de Tóquio, e do Festival
Cultural de Amsterdam (2011). Foi também eleito, em 2011, representante da moda no Conselho
do Ministério da Cultura e recebeu o prêmio Trip Transformadores, em reconhecimento ao
trabalho realizado pela valorização da cultura brasileira.
Duas coleções Literárias: quando se lê as roupas e se vestem palavras
A cada coleção Ronaldo Fraga faz novas pesquisas, refaz trajetórias e homenageia personagens,
anônimas ou conhecidas. Com o cruzamento entre memória afetiva e cultura, ele dá o tom de
seu trabalho, evocando canções, murmurando palavras, percorrendo o tempo, atravessando
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uma espécie de “passado” e “futuro”, não apenas num sentido de temporalidade, mas
principalmente, numa complexa tessitura daquilo que se foi, e do que virá. Assim, não é
diferente nas coleções apresentadas a seguir. E ao se explicar pela escolha dos dois nomes, o
próprio designer, diz: “nunca me lembro que eles eram mineiros. O meu grande interesse é
pela universalidade e atemporalidade do que foi construído por eles” (FRAGA, 2012, p. 73).
Coleção Todo mundo e ninguém – inverno 2005 - CDA
Esta coleção é baseada na obra de Carlos Drummond de Andrade, em todo seu universo
poético (o universo drummondiano, com sua escrita drummondiana) e faz alusão às suas
poesias, uma coleção romântica e delicada que apresenta, em sua confecção, volumes tímidos,
cortes enviesados, páginas pautadas, bebês em batismo, cartões postais, memórias de amor.
A roupa apresenta-se como um registro do tempo. As estampas são de manuscritos e bilhetes
do poeta Drummond, relógios de pulso, labirintos e galhos de jabuticabas. Os tecidos são
chevron, brocado de seda, filós, algodão, laise bordada, tweeds, tules e jeans brutos lavados,
em sua maioria, segundo o próprio designer, com cara de “extintos”.
A trilha sonora musical do desfile é o próprio Drummond acompanhado por Billy Forghieri
e a cenografia são páginas soltas de um caderno em brancas gigantescas que caem do teto
da passarela, escritas com a letra tão minúscula e marcante do escritor, confeccionadas por
Clarissa Neves. Os volumes são tímidos, retos e enviesados, são vestidos para dormir, para
casar, para o footing, dentre outros.
Podemos perceber que as roupas de Ronaldo Fraga são para homens, mulheres, ou crianças,
pessoas comuns, inventivas como o próprio designer. E como afirma Kalil (2007):
[...] suas roupas são pouco convencionais, cheias de referências infantis e
vagamente nostálgicas. Não entram neste universo a sexualidade explícita,
as tendências fáceis da moda, os apelos comerciais, nenhuma gota de
vulgaridade. Jamais numa passarela deste cidadão belo-horizontino vão
desfilar um decote exagerado, microssaias vertiginosas, fendas provocantes
(KALIL, 2007, p. 7)
A seguir apresentamos, na figura 1, algumas imagens do desfile da coleção inverno 2005.
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Figura 1 – Coleção Todo mundo e ninguém
Fonte: Fraga, 2012, p. 32, 33 e 34.
Coleção A cobra ri – uma história de Guimarães Rosa - verão 2006∕07
Esta coleção aproveita a data comemorativa de centenário da publicação Grande Sertão:
Veredas. Fraga afirma: Sempre fui enlouquecido pelo “universo roseano” e destaca que “o
universo de Guimarães é seco e por isso não existe a necessidade de desperdício de detalhes”
(FRAGA, 2012, p. 12).
A coleção aborda o tema do sertão que, embora seja um universo seco, é cheio de cores
e texturas. Os vestidos são curtos e os decotes profundos, os tecidos são de algodão e
cambraia. O designer usou elementos que remetem à beleza do sertão: pássaros azuis,
folhas, estrelas e lua no céu do sertão com muitos bordados e aplicações nos vestidos.
O pano de fundo é o amor de Riobaldo e Diadorim, aqui, o homem é representado mais
frágil que a mulher.
A principal peça da coleção é o vestido. A cartela de cores é dividida em três gamas: cores
do amanhecer (branco, amarelo, cor de giz, encardidos e pálidos), cores do dia (vermelho,
verde água, laranja e terra), cores da noite (azul marinho, turquesa e charuto). Nas estampas,
cobras e flores. E o próprio designer acrescenta: “o ponto central do desfile é a genialidade
de Guimarães Rosa em colocar o erudito alinhado ao popular com desenvoltura tal que faz
parecer que um nasceu para o outro” (FRAGA, 2012, p. 73). A direção de cenografia é de
Rodrigo Câmara e a trilha sonora Ronaldo Gino.
E para reforçar as palavras de Fraga, Mesquita afirma que, nesse sentido, é possível pensar
que, desde a primeira coleção “Eu amo coração de galinha” (inverno 1996) até “O cronista do
Brasil“ (verão 2011/12), Fraga consegue resgatar significados. A mesma autora acrescenta:
[...] o traço de Fraga multiplica os sentidos [...] inventa idiomas, demarca
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lugares, cria territórios e convida um povo para habitá-los. E depois se vai,
para desbravar outro universo. Expõe marcas de afetos, afagos, alegrias,
encontros, despedidas, fascínios, fragilidades, fissuras, gargalhadas, loucuras,
paixões, preciosidades, saudades, sonhos, ternuras e tristezas. Permeadas
por uma melancolia intensa e delicada ao mesmo tempo [...]. O conjunto
da obra e os diversos modos de sua apresentação – cadernos de criação,
desfiles, textos, vitrines de lojas e corpos vestidos – compõem suas paisagens
(MESQUITA, 2012, p. 15).
Assim a seguir apresentamos na figura 2, algumas imagens do desfile da coleção verão
2006-7:
Figura 2- Coleção A cobra ri – uma história de Guimarães Rosa
Fonte: Fraga, 2012. p. 54,56,58,59.
Como as imagens revelam e Kalil chama atenção: Ronaldo Fraga escapa de diversos padrões,
pois seus valores estéticos provêm da sua criação mineira associada à sua “proximidade com
os anjos e os santos das igrejas.” (KALIL, 2007, p. 9).
E neste diálogo Mesquita (2012) pondera:
Nesse território híbrido, Ronaldo trama espaços e culturas com tamanha
perspicácia que, mesmo sem essa pretensão, reivindica para a moda um
lugar irreversivelmente político, pois é sobre história, fronteiras e poderes
que essa geografia improvável nos fala (MESQUITA, 2012, p. 23).
Diante disso, observamos que as duas coleções apresentadas nos dão uma noção de identidade,
território e vasto simbolismo, demonstrando a enorme importância da linguagem no trabalho
deste designer de moda e, apesar da multiplicidade de significados, seu trabalho apresenta-se
como uma resposta possível de caminhos que, embora representem riscos e incertezas, auxilia
o enorme desafio de reforço das identidades neste mundo globalizado.
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Apontamentos finais
Pretendeu-se identificar os principais elementos expressivos que permeiam o design na
atualidade e, no caso particular, do trabalho de Ronaldo Fraga. A partir disto, foi feito um
estudo de caso da obra do designer, destacando as duas coleções do ano de 2000 e 2006, que
exploram dois personagens consagrados da cultura brasileira. Essa escolha foi fundamental
para consolidar o objeto principal desta pesquisa.
Percebeu-se que o Brasil possui uma pluralidade de origens sociais e étnicas que dão ao
designer um repertório que, uma vez apropriado, resulta em produtos diferenciados com forte
apelo cultural, pois o trabalho de Ronaldo Fraga traduz uma linguagem internacional, local, de
transformação e reinvenção, de pluralismo e hibridização, podendo assim ser uma fonte de
reflexão sobre a sociedade brasileira e mesmo latino-americana.
No trabalho de Ronaldo Fraga, percebemos que o mesmo tem procurado os caminhos
traçados pelas culturas que, aqui miscigenadas, desenvolveram linguagem própria de pura
brasilidade. Concluindo, acreditamos ser de suma importância que se dê um passo em direção
à contribuição cultural que cada projeto pode e deve representar, enquanto avanço e libertação
dessa mesma cultura, sendo possível tratar o design como matéria cultural, permeada por
contemporânea brasilidade.
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moda e cultura, o designer Ronaldo Fraga e suas coleções literárias