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ADRIANA FRANCO MURTA
A IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA:
RASTROS DAS DIFERENÇAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA
Novembro de 2007
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ADRIANA FRANCO MURTA
A IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA:
RASTROS DAS DIFERENÇAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Letras da Universidade Federal
de São João del-Rei, como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Teoria Literária e
Crítica da Cultura
Linha de Pesquisa: Literatura e Memória
Cultural
Orientador: Profª. Drª. Suely da Fonseca
Quintana
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA
Novembro de 2007
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ADRIANA FRANCO MURTA
A IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA:
RASTROS DAS DIFERENÇAS
Banca Examinadora:
Profª Drª Suely da Fonseca Quintana- UFSJ
Orientadora
Profª. Drª. Maria Nazareth Soares Fonseca- PUC-MG
Profª. Drª Eliana da Conceição Tolentino – UFSJ
Profª. Drª Magda Velloso Fernandes de Tolentino
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
Teoria Literária e Crítica da Cultura
Novembro de 2007
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Ao meu filho Alexandre, razão e força da minha vida.
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AGRADECIMENTOS
À Profª Suely, exemplo de dedicação, sabedoria, compreensão e coragem.
Ao meu marido, André Júlio, pelo amor, companheirismo, compreensão e pelos
dias de boas conversas.
Aos meus pais e irmãos, minhas raízes.
Aos meus avós, fonte de toda sabedoria.
À Josi, comadre e amiga em todas as horas.
À Clara, Gisa, João e Roberto pela inspiração.
Aos meus amigos do mestrado da turma de 2005 pelos momentos
compartilhados.
À FAPEMIG pelo financiamento da pesquisa.
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RESUMO
O ponto central deste trabalho é a discussão teórica sobre o conceito de
Antropofagia tomado como operador de análise, considerando tanto su
abrangência crítica como os limites teóricos encontrados ao longo do
desenvolvimento da pesquisa, com o objetivo de ressaltar a natureza heterogênea
da identidade cultural brasileira à luz desse conceito.
Fazendo uma análise dos embates culturais, ocorridos no processo de
colonização, propomos uma crítica do que constituiria a origem cultural brasileira,
utilizando uma perspectiva literária. Enquanto conceito, a Antropofagia é capaz de
ampliar os vários sentidos que buscam explicar a formação cultural brasileira e,
conseqüentemente, ampliar a concepção de identidade, marcando um lugar
crítico próprio.
Partiremos, portanto da Literatura para analisarmos os processos decorrentes da
dinâmica operada nesse embate cultural e seus desdobramentos na constituição
da identidade. Com o Modernismo Brasileiro se instaura a possibilidade de reler a
cultura, através de uma nova concepção crítica, a qual articula o nacional e o
universal, pensando a identidade como diferença e dessacralizando, dessa forma,
a função da literatura que até então fundava uma origem para nossa cultura,
como aconteceu, por exemplo, com a estética do Romantismo.
Como suporte teórico comparativo será utilizado o conceito de transculturação
narrativa, de Angel Rama, o qual contribuiu para ampliar o limite do conceito de
Antropofagia, quando se trata de investigar o local, o universal e a visão de
mundo transformada pela modernidade e pela globalização.
As questões temáticas relacionadas com os vestígios ou os rastros, no sentido
derridiano, deixados por esse choque cultural, presentes nos livros Macunaíma
(1928), de Mário de Andrade, Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo
Ribeiro e Maíra (1974) de Darcy Ribeiro serão analisadas a partir dessa
perspectiva cultural heterogênea, com a qual buscaremos ressaltar, justamente,
as nuances na concepção da identidade cultural brasileira.
Palavras-chave: Antropofagia, Identidade Cultural e Transculturação.
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SUMMARY
The main aim of this paper is the theoretical discussion about the concept of
Anthropophagi which is the basis of the analysis, taking into account not only its
critical realm but the theoretical limits found throughout the research, aiming at
highlighting the heterogeneous resource of the Brazilian cultural identity based on
this concept.
By analyzing the cultural clashes occurred in the process of colonization, it is
suggested a criticism about what would constitute the origin of the Brazilian
culture, using a literary perspective. As a concept, the Anthropophagi is able of
widening the different meanings which try to explain the Brazilian cultural
formation and, consequently, widen the conception of identity, assuring its own
critical place.
Bearing in mind the literature, the processes caused by the dynamic occurred in
these cultural clashes and its influences in the formation of the identity are going to
be analyzed. Along with the Brazilian Modernism the possibility of rereading the
culture is inserted through a new critical conception which controls the national
and universal, considering the identity as a difference and demystifying the
function of the literature which had been considered as the origin of our culture,
similar to what happened to the esthetic of Romanticism.
As a comparative theoretical support, the concept of narrative transculturation by
Angel Rama is going to be used, which contributes to enlarge the limit of the
concept of Anthropophagi, considering the investigation of the place, the universal
and the understanding of the world which was changed by modernity and
globalization.
The thematic questionings related to the remains or traces, in the Derridanian
views, left behind by this cultural shock, found in the books Macunaíma (1928), by
Mário de Andrade, Viva o povo brasileiro (1984), by João Ubaldo Ribeiro and
Maíra (1974), by Darcy Ribeiro are going to be analyzed based on this
heterogeneous cultural perspective in which we will try to highlight exactly the
details in the formation of the Brazilian cultural identity.
Key words: Anthropophagi, cultural identity, transculturation
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SUMÁRIO
Introdução.............................................................................................................09
Capítulo I- Antropofagia: um conceito em transformação...............................15
Capítulo II- A antropofagia do povo brasileiro..................................................45
Capítulo III- Antropofagia e transculturação narrativa: formulações de
identidade.............................................................................................................70
Considerações Finais..........................................................................................97
Referências Bibliográficas................................................................................107
Bibliografria Geral..............................................................................................109
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INTRODUÇÃO
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O objetivo principal desse trabalho é pesquisar a constituição do
conceito de Antropofagia, trazendo-o para o contexto literário brasileiro e
desenvolvendo uma análise cultural acerca da identidade dos povos que sofreram
a mistura propiciada pela colonização.
Antropofagia é um termo de origem antropológica que designa a dieta
alimentar de algumas tribos indígenas, as quais possuem entre seus hábitos
comer carne humana. Também pode significar o ritual onde os membros dessas
tribos devoravam seus deuses para absorver suas virtudes. Ao ser incorporado
pelo vocabulário do Modernismo Brasileiro, principalmente pela corrente
primitivista da qual fazia parte Oswald de Andrade, a Antropofagia passa a
significar um processo de linguagem, pelo qual a palavra do colonizador é
devorada, digerida e transformada em uma linguagem nova dentro da qual é
introduzida uma estética que procurava subverter os antigos moldes literários
acadêmicos. O vocábulo tornou-se corrente a partir do Manifesto Antropófago, de
1928, cuja proposta veio se incorporar e complementar o ideário difundido pelo
Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924, cuja prerrogativa era a de se criar uma
poesia para exportação. A Antropofagia era uma das correntes mais radicais do
nacionalismo modernista e tinha como proposta a descida às fontes genuínas,
ainda intocadas pelo legado da civilização para captar inspiração e alcançar uma
síntese cultural própria; seria uma forma de transformação do tabu em totem. A
antropofagia propunha ainda a devoração do Outro para absorvê-lo, assimilando,
dessa maneira, algumas características das estéticas estrangeiras.
O nosso Movimento Modernista foi amplamente influenciado pelas
Vanguardas
Européias,
principalmente
o
Futurismo,
o
Dadaísmo
e
o
Expressionismo e tiveram, portanto, no Brasil, pontos de convergência entre si. O
Movimento Modernista Brasileiro teve diversas vertentes, mas todas elas tinham
como temática principal o questionamento da cultura herdada. Ficou conhecido
por seu caráter de ruptura com modelos passadistas difundido pela escola
européia e procurou inaugurar uma consciência crítica diante da cultura brasileira.
Pensar sobre nossa produção literária, a partir de um lugar crítico, é abrir caminho
para a possibilidade de exprimir a identidade cultural brasileira. Na revisão do
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Movimento Modernista, na comemoração dos vinte anos da Semana de Arte de
1922, Mário de Andrade proferiu uma conferência, na qual reconheceu as três
grandes contribuições que o modernismo trouxe às artes: “o direito permanente à
pesquisa estética”; “a atualização da inteligência artística brasileira” e “a
estabilização de uma consciência criadora nacional”.
Dessa forma, a renovação estética permanente deveria se consolidar
através do aproveitamento das vanguardas, deglutindo-as antropofagicamente, de
forma autônoma, trazendo para o panorama brasileiro uma nova forma de pensar
e conceber a cultura. A Antropofagia, enquanto conceito, é capaz de inaugurar um
lugar crítico no qual podemos expressar os impactos dos processos de embate
cultural encontrados na formação da identidade nacional. Essa construção se
torna fruto de uma consciência que, longe de ser passiva, colaborando com a
política do “bom selvalgem”, está mais próxima de se posicionar criticamente
diante do legado cultural herdado, construindo uma identidade heterogênea.
A partir daí a Antropofagia pode ser tomada enquanto conceito que
opera dentro da lógica de negociação entre as culturas, no sentido de buscar no
estrangeiro características que fazem parte da cultura brasileira ao mesmo tempo
em que reconhece traços próprios da cultura local.
O conceito de Antropofagia foi analisado a partir de uma perspectiva
cultural cujo significado amplia a visão que podemos depreender dos processos
de colonização. O termo antropofagia empresta seu sentido originário que vem da
antropologia e se desloca para o campo cultural e literário. Para sustentarmos
esse deslocamento utilizamos a abordagem antropológica de Claude Lévi-Strauss
em seu livro O cru e o cozido, e sua análise acerca dos mitos primitivos, bem
como a leitura e a reapropriação modernista desses termos. A partir dessa
releitura e desse deslocamento podemos entender como o termo cultural se torna
um conceito operacional.
Para a análise do conceito e sua funcionalidade no âmbito literáriocultural utilizamos três narrativas que constituem os seguintes corpus de análise:
Macunaíma, de Mário de Andrade,Viva o povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro
e Maíra, de Darcy Ribeiro.
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A partir das análise empreendidas, incorporamos também os conceitos
de transculturação e de transculturação narrativa. A transculturação é um conceito
elaborado por Fernando Ortiz, em 1940, para designar o processo de mestiçagem
que ocorre em toda América Latina. A partir desse conceito cultural, que se
aproxima também da Antropofagia, Angel Rama elabora, por volta de 1980, o
conceito de transculturação narrativa. Esta concepção do crítico uruguaio amplia
a questão do embate cultural para o campo literário contribuindo para a análise
que pretendemos desenvolver ao longo desse trabalho.
Outros suportes teóricos a que recorremos e que compõe a pesquisa a
respeito da Antropofagia são os livros: Uma literatura Antropofágica e Totens e
tabus da modernidade brasileira, ambos de Lúcia Helena. No primeiro livro a
autora traça uma tradição antropofágica brasileira que começa com Gregório de
Matos, passando por Augusto dos Anjos até chegar na antropofagia oswaldiana.
O segundo livro nos possibilitou um entendimento mais amplo da produção
oswaldiana no contexto do movimento antropófago. Além da abordagem feita por
Heloísa Toller Gomes no artigo intitulado “Antropofagia”, onde ela procura traçar o
percursso através do qual a antropofagia se tornou um conceito operacional.
Os livros O tupi e o alaúde e Literatura e identidade nacional,
respectivamente das autoras Gilda de Melo e Souza e Zilá Bernd, orientaram
nossas análises no sentido de ampliar as leituras de Macunaíma, com as
exposiçãos de Souza e, do entendimento da própria questão identitária no
contexto literário nacional, como argumenta Bernd.
Assim, no livro de Mário de Andrade, procuramos verificar como é
operado o processo de antropofagia cultural e, a partir do encontro entre culturas,
como se revela a multiplicidade étnica da identidade do herói brasileiro
Macunaíma que não possui nenhum caráter.
Em Viva o povo brasileiro utilizamos o conceito de transculturação,
assim como o de Antropofagia, para analisar o processo de embate cultural e
suas conseqüências. No romance é retratado o processo de construção de uma
consciência crítica empreendido pela heroína Maria da Fé. Essa personagem
mestiça, resgata suas origens e tradições, em busca de conhecimentos que
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possam transformar a dura realidade, de injustiças e desigualdades, instituída
pelo processo de colonização. A antropofagia no romance será abordada
enquanto metáfora para a transformação dessa realidade em um processo
constante de lutas e revoltas.
No romance de Darcy Ribeiro, Maíra, investigamos como o embate
entre culturas se configurou apenas como perda. A Antropofagia nesse momento,
será utilizada como uma metáfora da destruição. A dificuldade do protagonista da
história, o índio convertido Isaías, era lidar com o encontro entre a cultura do
civilizado e a dos índígenas. Essa crise de identidade contribui para o
desaparecimento de sua tribo. Isaías, ao não conseguir assumir o papel destinado
a ele na tribo, nem tampouco utilizar seu conhecimento do mundo caraíba, traz a
destruição e a morte de sua tribo. A narrativa do romance nos revela, também, os
processos de transculturação narrativa empregados pelo autor para escrever essa
cultura que sofreu o impacto cultural.
Procuramos analisar nos livros, a partir da concepção do conceito de
Antropofagia que propõe a devoração crítica da herança estrangeira, os embates
culturais a que foram submetidos todos os protagonistas. Em Macunaíma
buscamos compreender o percurso antropofágico a partir de seu final utópico. Em
Viva o povo brasileiro, esse processo é tomado a partir da possibilidade da
tomada de consciência e de transformação da realidade e em Maíra esse
processo aponta para a destruição e para impossibilidade de continuidade de uma
identidade múltipla.
Para tratar dessas temáticas, a dissertação está estruturada em três
capítulos. No primeiro, tratamos de como a antropofagia, termo antropológico, se
tornou passível de operar análises acerca da questão da herança colonial.
Passaremos pelos conceitos de totem e tabu empreendidos por Freud no exame
das culturas primitivas, bem como pelo estudo de Lévi-Strauss. A partir do
Modernismo Brasileiro demonstraremos a contribuição deixada pela antropofagia
oswaldiana para finalmente observar e analisar a trajetória de Macunaíma.
No segundo capítulo, observaremos o processo de transculturação
sofrido pelo povo brasileiro, no romance de João Ubaldo Ribeiro, e de como a
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antropofagia opera na tomada de consciência desse povo que foi silenciado pela
voz do colonizador. E, por fim, analisamos a travessia empreendida por Isaías,
em Maíra, que procura reencontrar sua identidade perdida. Avaliamos ainda como
a narrativa se constrói para revelar a fragmentação da construção de uma cultura.
A justificativa para esse estudo, que utiliza a Antropofagia enquanto
conceito operacional, e se apoia ainda na transculturação e na transculturação
narrativa, é procurar contribuir com essa abordagem cultural que mantém diálogo
com as atuais discussões acerca da dependência cultural dos países periféricos e
suplementar os recentes trabalhos respaldados pelos Estudos Culturais.
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CAPÍTULO I- ANTROPOFAGIA: UM CONCEITO EM
TRANSFORMAÇÃO
As marcas se reinscrevem sempre num tecido antigo
que é preciso continuar a desfazer sempre. Nesse
sentido, descontruir é também descoser.
Silviano Santiago
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O percurso, através do qual a Antropofagia se tornou um conceito
operacional, nos indica as transformações nas reflexões sobre a concepção de
identidade, ampliando os vários sentidos de formação da cultura e da literatura.
Enquanto conceito, a Antropofagia é capaz de marcar o lugar crítico da cultura
brasileira como se fosse um ritual inevitável de culturas que sofreram a mistura
propiciada pela colonização.
O embate entre culturas distintas começa a partir do processo de
colonização quando se procura instaurar a cultura estrangeira no âmbito dos
processos simbólicos da cultura nativa. A partir daí, busca-se entender os
conflitos na formação da identidade cultural brasileira que se estabelece dentro de
uma negociação constante e uma contínua modificação na atualização da
identidade desses povos.
A Antropofagia, portanto, torna-se um conceito capaz de expressar o
impacto dos processos colonizadores na formação da identidade brasileira.
Podemos entender a antropofagia como um termo que reconhece a alteridade na
medida em que este parte do pressuposto da devoração da cultura do outro.
Sendo um conceito que atualmente caracteriza a possibilidade de expressar a
identidade de uma nação periférica, partiremos daí para examinamos os
problemas de dependência cultural e de nacionalidade literária. Para tratar desses
aspectos nos apropriamos da abordagem de Heloísa Toller Gomes (2005), em
seu artigo intitulado Antropofagia, que faz parte do livro Conceitos de Literatura e
Cultura, organizado por Eurídice Figueiredo.
A palavra “antropofagia” significa o ato de comer carne humana e
geralmente é confundida com a prática do canibal que implica em um animal
qualquer devorar outro de mesma espécie. O canibal antropófago, contudo, é
aquele homem que tem como comportamento, comer carne humana, e pode
implicar também a idéia do ritual que as tribos realizavam para absorver as
virtudes de seus deuses-Totem. O tema do canibalismo no mundo ocidental
sempre causou desconcerto entre artistas e filósofos, que procuraram se inspirar
em suas fantasias talhando figuras assustadoras. Prova disso são os diversos
livros e filmes que têm a figura do canibal como protagonista: Hannibal, O silêncio
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dos inocentes, O cozinheiro, como alguns exemplos. De acordo com Gomes, a
idéia de “'caldeirão do antropófago' incorporou-se com facilidade ao arsenal de
noções racistas com que o Ocidente eurocêntrico preconcebia e supunha ser o
outro, conferindo-lhe invarialvelmente o que podemos chamar de alteridade
negativa” (Gomes, 2005, p. 45). Esse tipo de concepção racista desconsidera
totalmente a cultura tribal.
Claude Lévi-Strauss, quando estuda a estrutura social e os
procedimentos que manifestam as leis de um grupo indígena brasileiro e parte
dos próprios mitos indígenas para fazê-lo, opera um descentramento, aliás, a
própria Etnologia só teve condições de nascer como ciência no momento em que
esse descentramento aconteceu.
A dificuldade metodológica encontrada pelo autor para estudar o mito é
decorrente de que não se pode partir de categorias de um princípio cartesiano
para analisar estruturas que se formam no interior de uma civilização totalmente
diversa daquela proposta pelo racionalismo ocidental- a cultura indígena. É
preciso, dessa maneira, fundar uma mito-lógica que discuta a formação dessa
sociedade e os princípios que a regem, não em sua totalidade:
A análise mítica não tem, nem pode ter, por objeto mostrar como
os homens pensam. No caso particular que nos interessa aqui, é
no mínimo duvidoso que os indígenas do Brasil central realmente
concebam, além dos relatos míticos que os fascinam, os sistemas
de relações aos quais os reduzimos. E quando por meio desses
mitos, validamos certas expressões arcaicas ou figuradas de
nossa própria língua popular, a mesma constatação se impõe, já
que é de fora, e segundo as regras de uma mitologia estrangeira,
que uma tomada de consciência retroativa se opera de nossa
parte. Não pretendemos, portanto, mostrar como os homens
pensam os mitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e à
sua revelia.” (Lévi-Strauss, 1991, p. 21)
Nisso consiste justamente o descentramento operado pelo etnólogo. A
música, nesse sentido, é eleita como uma metodologia que respeita a formação e
transformação desses mitos. A estrutura dos mitos se revela por meio de uma
partitura, pois ambas são linguagens que transcendem o plano da linguagem
articulada.
A oposição, que o autor de O Cru e o Cozido (1991) faz entre natureza
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e cultura, nos impõe que categorias estrangeiras sempre invadem o tecido que
compõe o corpo de uma sociedade. O “cru” é um elemento natural, o “cozido”
cultural, assim também o é o ”totem” que nos remete ao primitivo e o “tabu” ao
civilizado. A complexa organização da linguagem tanto mítica como musical,
aproxima o parentesco entre essa duas linguagens. Essa complexidade é sempre
demonstrada a partir de instrumentos externos que os explicam:
A música expõe ao indivíduo seu enraizamento fisiológico, a
mitologia faz o mesmo com seu enraizamento social. Uma nos
pega pelas entranhas, a outra, digamos assim, “pelo grupo”. E
para fazer isso, utilizam máquinas culturais extremamente sutis,
os instrumentos musicais e os esquemas míticos. (Lévi-Strauss,
1991, p. 35)
No capítulo intitulado “Abertura”, o autor utiliza o mito bororo como mito
de referência e justifica que esse nome não tem razão de ser na medida em que
este mito já é uma transformação mais ou menos elaborada de outros mitos e
ocupa uma posição irregular no interior do grupo, portanto, o ponto de partida de
sua análise é aleatório uma vez que “os princípios de organização da matéria
mítica estão contidos nela e só se revelarão progressivamente” (Lévi-Strauss,
1991, p. 13). Este recorte mítico feito por Lévi-Strauss é decorrente da própria
impossibilidade da totalidade mítica. A própria estrutura do mito não possui centro
nem autor e dessa maneira é necessário abandonar o discurso filosófico em favor
de uma linguagem mitológica. É dessa maneira, portanto, que o olhar para as
culturas distintas deve ser dirigido, considerando a formação da estrutura dessas
sociedade de forma endógena, ou seja, de dentro da própria estrutura, um olhar
descentrado, por assim dizer.
Inicialmente o termo “antropofagia” era usado para designar um ritual.
Os povos primitivos sempre foram objeto de discussão da Antropologia que
procurava detectar seus comportamentos em grupo e a maneira pela qual
concebiam o mundo. Suas cerimônias eram rituais sagrados que os colocavam
em contato com seus Deuses. A apropriação desses conceitos antropológicos e o
deslocamento feito pelo Modernismo no âmbito literário estabelece os rituais dos
primitivos como processo de linguagem, ou seja, enquanto os primitivos
devoravam seu deus-Totem em rituais totêmicos, os modernistas primitivistas
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devoravam o estrangeiro e concebiam uma nova poesia em um processo
digestivo da linguagem.
A Antropofagia, dessa forma, propunha-se, como renovação ritual, a
devoração das culturas primitivas, para absorvê-las e no encontro com a própria
origem, a transformação do tabu em totem. Para entendermos melhor essa
transformação, recorreremos a Freud (1996) e seu trabalho intitulado Totem e
Tabu. Segundo o autor, nas sociedades primitivas existem sistemas totêmicos
nos quais são consideradas faltas gravíssimas a transgressão desses sistemas. O
totemismo, dentro dessas sociedades, pode ser encarado tanto em seu aspecto
religioso como em seu aspecto social. Cada clã possui um totem, geralmente um
animal, que é cultuado e considerado com supersticioso respeito. Os homens
dessas classes acreditam existir entre eles e seu totem uma relação íntima e
inteiramente especial. Dentro desse sistema os membros do mesmo clã estão
ligados por obrigações mútuas e comuns e se consideram todos membros da
mesma família, possuidores de um só tipo de sangue, descendente direto de seu
Deus-totem. Freud explicita que “Totem” é, por um lado, o nome de grupo e, por
outro, um nome indicativo de ancestralidade. O culto e a devoção destinados a
esses animais totêmicos em cerimoniais são, dessa forma, manifestações e
expressões que mantêm a relação com o animal antepassado. Assim, o aspecto
religioso atribuído ao totemismo, consiste nas relações de respeito e proteção
mútua entre um homem e seu totem. Como acreditam realmente que o totem é
seu ancestral, os homens seguem rigorosamente as normas que proíbem matar
ou comer o totem. São proibidos também de tocá-los ou mesmo olhá-los.
Qualquer violação desses tabus que protegem o totem serão punidos por doença
grave ou morte. Se um animal totêmico é encontrado morto ele é pranteado e
enterrado como um membro do clã que tivesse morrido. A morte desses animais
totêmicos só será permitida através de rituais específicos em cerimônias
especiais. Em contrapartida o clã espera receber cuidados da parte de seu totem
que presta auxílio na doença e transmite advertências ao seu clã. As cerimônias
realizadas para o devoramento do totem são rituais dentro dos quais os
integrantes do clã adquirem santidade, reforçam sua identificação com o totem e
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uns com os outros. Na celebração da ocasião cerimonial onde os membros do clã
matam seu animal totêmico e o devoram cru, os homens se vestem semelhantes
ao totem e imitam-no em sons e movimentos, como se procurassem acentuar a
identidade com ele. Esse ato, que é individualmente proibido, é justificável apenas
pela participação de todo o clã, não podendo ninguém ausentar-se da matança e
da refeição. O luto pelo animal morto é obrigatório, imposto pelo temor de uma
ameaça tabu e é seguido por uma explosão de instintos liberados, quer dizer, no
festival o excesso é permitido, até obrigatório, a ruptura solene de uma proibição.
O sentimento festivo é produzido pela liberdade de fazer o que via de regra é
proibido.
De acordo com Freud, um animal específico foi colocado em lugar do
pai, como totem:
(...) a psicanálise revelou que o animal totêmico é, na realidade,
um substituto do pai e isto entra de acordo com o fato contraditório
de que, embora a morte do animal seja em regra proibida, sua
matança, no entanto, é uma ocasião festiva- com o fato de que ele
é morto e, entretanto, pranteado. (Freud, 1996, p. 144-145)
O autor busca como referência um certo tipo de organização primitiva e recorre à
celebração da refeição totêmica para auxiliar na resposta à essa aproximação
feita entre o totem e o pai. Um grupo de irmãos que foram expulsos, uma vez que
o pai tinha a primazia do ato sexual sobre todas as fêmeas, resolveram se unir,
matar e devorar esse pai, colocando fim a horda patriarcal. Essa figurai foi, sem
dúvida, um temido e invejado modelo para cada um do grupo de irmãos e pelo ato
de devorá-lo realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma
parte de sua força. A cerimônia de parricídio inaugural é, dessa forma, uma
repetição cerimonial da “morte do pai”:
A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da
humanidade, seria assim uma repetição, e uma comemoração
desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas
coisas: da organização social, das restrições morais e da religião.
(Freud, 1996, p. 145)
Odiavam o pai, mas também amavam-no e admiravam-no. Após terem
se livrado dele, satisfazendo seu ódio e seu desejo de identificação, o sentimento
de remorso, decorrente do ato, viria à tona, assim como a culpa sentida por todo o
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grupo que sacrifica seu totem. Podemos perceber que do sentimento de culpa
filial, foram criados os dois tabus fundamentais do totemismo: o homicídio e o
incesto, leis sagradas do sangue e que, sendo transgredidas, são os únicos
crimes considerados pelas sociedades primitivas.
Em seu aspecto social, o totemismo consiste nas relações entre os
integrantes de um mesmo clã e com membros de outros clãs. Os membros de um
clã totêmico são irmãos e irmãs e são obrigados a ajudar-se e proteger-se
mutuamente. Se um membro de um clã é assassinado por outro de clã diferente,
então toda a classe do morto deve se reunir em um pedido de satisfação do
sangue que foi derramado. A restrição de tabu neste caso corresponde a
proibição dos membros do mesmo grupo totêmico de se casarem entre si ou ter
relações sexuais uns com os outros. Os laços totêmicos são mais fortes do que
os laços familiares, como fundamentados pela lógica ocidental de conceber a
civilização.
O tabu, por sua vez, é uma condição que se adquire como um código
de leis que se impõem por conta própria, não se baseando em nenhuma ordem
religiosa, ou seja, desenvolve-se nas normas do costume e da tradição e
finalmente da lei. A violação de um tabu transforma o próprio transgressor em
tabu, nesse sentido, a palavra tabu denota tudo, seja uma pessoa, um lugar, uma
coisa ou uma condição transitória. Também quer dizer o conjunto de restrições a
que uma pessoa é submetida de acordo com o atributo desse tabu. Esse sistema
formado pelo tabu compõe a expressão do clã totêmico e de toda suas atitudes
mentais e simbólicas.
Dessa forma, os “selvagens”, como explicita Freud, se comportam da
mesma maneira que seus reis se comportavam para que recebam as dádivas e
os poderes sobre a chuva e sol, o vento e o clima. Contudo os tabus relacionados
aos reis, constitui a mais alta honra e proteção para eles ao mesmo tempo em
que estão também submetidos à castigo pela sua exaltação. Ser elevado e
exaltado, significa também seguir regras e submeter-se a castigos, assim: “O tabu
não somente escolhe o rei e o exalta acima do comum dos mortais mas também
torna a sua existência um tormento e um fardo insuportável, reduzindo-o a uma
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servidão muito pior que a de seus súditos.” (Freud, 1996, p. 65)
Assim, a transformação do tabu em totem, como preconizou Oswald de
Andrade, é considerada como uma volta ao passado em que o homem ainda não
estaria submetido por leis sociais. A volta ao homem primitivo por excelência, a
volta ao totem e sua ancestralidade, ou seja, a “antropofagia como antídoto da
peste dos povos cultos, pelo desrecalque de uma tradição profundamente inibida
nas origens de nossa cultura em seus primeiros contatos com a colonização.”
(Helena, 1985, p. 175). A totemização do tabu se refere à questão do pai primevo,
transfigurado no colonizador e seu parricídio que, metaforicamente, ilustra a
revolta do colonizado. O parricídio, que as sociedades primitivas realizavam em
suas cerimônias, é metamorfoseado em uma devoração do colonizador, o
“inimigo sacro” com todo seu acervo de distorções, na ameaça ainda viva da
dependência cultural. A antropofagia como totemizadora dos tabus colonizadores
que indica o desejo de uma mudança do percurso dos acontecimentos sociais e
artísticos brasileiros, nesse sentido: “a antropofagia, é uma forma de deglutir o
interdito que provocou o recalcamento de legítimas origens nacionais.” (Helena,
1985, p. 177).
A transformação do tabu em totem nos remete à carnavalização, uma
vez que opera-se uma subversão na estrutura hierárquica, dentro da qual Oswald
estabelece que a sociedade brasileira deveria se transformar em um matriarcado
diferentemente do patriarcalismo luso-europeu, repressor e culposo. “A alegria é a
prova dos nove. No matriarcado de Pindorama.” (Oswald apud Teles, 1985, p.
358). A carnavalização antropofágica ocorre quando, a partir do parricídio
inaugural, metáfora que representa a devoração da palavra, do texto do pai, o
estatuto do poder do colonizador é destronado. O discurso antropofágico opera
dentro do sistema carnavalizante e penetra dentro da ideologia da seriedade, do
bom senso e do bom gosto, preconizado pelas leis do colonizador,
desconstruindo-o e trazendo à tona o dizer velado do “outro” que o poder reprime.
O riso carnavalizante é uma linha contra ideológica, do “muito riso, pouco siso”,
que se configura a partir desse discurso dialógico, onde não há uma verdade
única, mas uma “pluralidade de centros de consciência não redutíveis a um
23
denominador ideológico comum.” ( Helena, 1983,p. 34).
Nesse sentido, o parricídio inaugural, ou seja, a morte do pai pode ser
interpretada também como a morte da origem. O mito ocupa sempre uma posição
irregular no interior de um grupo, na medida em que não existe unidade ou origem
absoluta desse mito. O mito de referência de uma tribo, por exemplo, já é em si
uma transformação avançada de outros mitos. Ele já está impregnado de outros
referenciais absorvidos com o passar do tempo. Jacques Derrida (2002), filósofo
argelino nos aponta para a ausência de autores para a formação da narrativa
mítica, uma vez que sua transmissão era exclusivamente oral, sendo seu conjunto
pertencente à ordem do discurso. Quando uma tribo cultua determinado mito
totêmico, ela manifesta aquilo que deve se repetir, que deve voltar, pois o que
volta significa, e só volta porque significa. Dessa forma, a comunidade pode
atualizar em si o sentimento da própria existência e da própria identidade. Esse
jogo da repetição, segundo Derrida em estudo da etnologia de Lévi-Strauss, diz
respeito a uma nostalgia da origem que precisa ser trazida para o presente como
forma de recuperar essa origem perdida.
Os termos “antropofagia” e “antropófago” tornaram-se correntes no
vocabulário brasileiro a partir de 1928 quando Oswald de Andrade lançou seu
explosivo
“Manifesto
Antropófago”
como
gesto
fundador
do
Movimento
Antropófago e da Revista de Antropofagia. A preocupação da Antropofagia estava
em desvendar os enlaces profundos da nossa cultura, ainda incógnitos, com um
pensamento de devoração crítica do legado cultural universal. Partindo da crítica
à civilização européia (colonialista), propunha Oswald a volta às origens para
buscar na pureza do primitivo um modo de viver. A volta à felicidade idílica do
Brasil pré-cabralino supunha a liberação do homem não só do jogo da civilização,
mas também da religião imposta pelo colonizador, das leis, do comércio, enfim de
todo o sistema ocidental-burguês.
No “Manifesto Pau-Brasil” (1924) Oswald de Andrade propunha uma
poesia para exportação, capaz de conciliar a floresta e a escola em uma proposta
temática: “Temos a base dupla e presente- a floresta e a escola. A raça crédula e
dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá
24
de erva-doce. Um misto de 'dorme nenê que o bicho vem pegá' e de equações.”
(Oswald apud Teles, 1983, p. 330). Valorizava assim, a interrelação da cultura
brasileira em seus primórdios, pré-colonial, com um pensamento de renovação e
revisão, articulando o elemento estrangeiro ao local sem o viço da tradição
doutoral trazida pela escola européia. “Não há luta na terra de vocações
acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros./ Uma única luta- a luta pelo
caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a “Poesia Pau-Brasil”, de
exportação.” (Ibidem, p. 327).
A “Poesia Pau-Brasil” propõe também a valorização de possibilidades
lingüísticas reais do português falado no Brasil, contra a erudição e a cópia
naturalista: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A
contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.” (Oswald
apud Teles, 1983, p. 327), e ainda: “O contrapeso da originalidade nativa para
inutilizar a adesão acadêmica.” (p. 330). No Manifesto, Oswald favorecia uma
volta ao sentido puro das formas e dos materiais, considerados do ponto de vista
de sua realidade anterior a fatos da cultura. Os fatos exaltados no texto são, como
é apontado por Benedito Nunes no livro O Modernismo, organizado por Affonso
Ávila (1975), fatos pictóricos, folclóricos, históricos e étnicos, econômicos,
culinários e lingüísticos de que se compõe a originalidade nativa, como matéria
prima exportável: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre
nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.(...) A formação
étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá o ouro e a dança.”
(Oswald apud Teles, 1983, p.326)
A volta ao material bruto, como volta ao sentido puro da poesia paubrasil, mostra de que forma Oswald extraía do primitivismo cubista, influências
para construção de suas idéias:
(...), dentro da perspectiva sentimental e intelectual, irônica e
ingênua que se adotara, acompanhou contudo esteticamente, até
pela inocência construtiva que o Manifesto considerou uma
tendência da sensibilidade moderna, a simplicidade formal que
fizera do Cubismo um primitivismo de forma externa. (Nunes,
1975, p. 52)
As
Vanguardas
Européias
influenciaram
amplamente
nosso
25
Modernismo. Embora as idéias tenham tido uma mesma origem de pensamento,
a França, os “ismos” originados nas Vanguardas possuem suas particularidades e
uma maneira própria de conceberem a renovação artística e literária. Assim como
as correntes européias tiveram variados movimentos de renovação, retratados
nos diversos manifestos publicados, o Modernismo Brasileiro também encontra-se
difundido por diferentes frentes de pensamentos e concepções e encontraram nas
letras sua maior expressão dentro das revoluções artísticas. Embora o nosso
Modernismo tenha eclodido de diferentes formas em todo Brasil, o movimento
brasileiro teve em comum o questionamento da herança cultural recebida. A
maneira pela qual o Modernismo se formou em diversos cantos é conseqüência
de como as Vanguardas influenciaram os grupos que pretendiam se afirmar
nesse contexto de renovação e como eles concebiam o seu papel social, o papel
do Estado e a função da arte como legitimadora desses valores. É com esse
caráter de contradição e transformação dentro do movimento que o primitivismo
também se mostra de diferentes formas.
Mário de Andrade, diferentemente de Oswald, explora mais o caráter
psicológico,
da
emoção
e
do
sentimento
espontâneo
difundido
pelo
Expressionismo e pelo Dadaísmo. Os expressionistas afirmavam que os
elementos se expressavam por si mesmos, sem nenhum controle intencionado
pelo artista. Se o mundo interior é obscuro e alógico, assim também deveria ser
sua expressão. Assim, tudo que se assemelha aos sonhos, aos mitos e tudo o
que há de primitivo nas artes ou tudo o que pode escapar ao controle lógico do
homem, podem ser identificados e exprimidos pelos sentidos de maneira
espontânea. O expressionismo via a destruição do mundo, mas anunciava que do
caos se organizaria uma estrutura superior que seria a verdadeira beleza. De
certa forma, a presença do mito no primitivismo modernista recupera um pouco
dos aspectos primitivos do expressionismo. Com a obra dadá o que prevalece é a
improvisação, desordem, dúvida, predomínio da percepção e oposição a qualquer
tipo de equilíbrio. No Prefácio Interessantíssimo (1921) encontramos: “Está
fundado o Desvairismo/ Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo
o que meu inconsciente me grita.” (Mário apud Teles, 1983, 299), e ainda quando
26
mostra a ambigüidade no projeto de desconstrução/construção que lhe é
característico: “O nosso primitivismo representa uma nova fase construtiva. A nós
compete esquematizar, metodizar as lições do passado.” (p. 301).
Se Oswald dessacraliza o discurso ideológico clássico, Mário utiliza
uma narrativa mítica com uma poética tradicional e tem como arsenal o
estabelecimento de uma nova função do significante poético, ou seja, ele “elabora
sua narrativa ao nível da estruturação do mito, sem expulsar desta,
conseqüentemente, nem a latência do inconsciente, nem a determinação do
vivido” (Helena, 1983, p. 76). O que ele utiliza em seu acervo narrativo é uma
ambigüidade e uma densidade poética que abriga manifestações heterogêneas.
Ele canta contra a vida urbana burguesa explorando o subconsciente articulando
em sua poesia a reorganização desse caos através da ironia e de suas narrativas
mítica que se aproximam da oralidade. Mário e Oswald de Andrade possuem
como elo comum, entretanto, a oposição aos cânones da poesia anterior ao
Modernismo como evolução da forma artística.
Dessa forma, as correntes de vanguarda deram ao primitivismo a idéia
de polêmica, inclusive a futurista que preconiza a ruptura com as tradições e
convenções do passado. A utilização do “pensamento selvagem”, difundido pela
pesquisa etnográfica que relativiza os valores da civilização ocidental e o
desenvolvimento da Antropologia e da Psicologia do inconsciente, destronizam a
validade absoluta dos padrões artísticos, sociais, éticos e políticos do pensamento
civilizado, sintetizando a prerrogativa central do Modernismo:
Associando-se ao conceito polêmico e à metáfora, o primitivismo
de Mário e Oswald de Andrade- o nosso primitivismo nativo, único
achado da geração de 22, a juízo do segundo- que condensou,
independentemente das diferenças que separam as poéticas
desses dois autores, a visão pura do cubismo, a “imaginação sem
fios” do Futurismo, a agressividade dadaísta e a tensão surrealista
entre consciente e inconsciente- sintetizava o conjunto das idéias
e dos processos que constituíram a perspectiva estética central do
Modernismo. (Nunes,1975, p. 53).
Mais tarde, o “Manifesto Antropófago” (1928) traz novos pressupostos
complementando a idéia inicial da “Poesia Pau-Brasil”. De acepção bastante
crítica,
podemos
perceber
que
no
“Manifesto
Antropófago”
a
descida
27
antropofágica preocupava-se com revoluções de toda espécie na voraz
abrangência de seu projeto que procura abocanhar todas as áreas. Revolução
literária, política, religiosa, social. Tudo isso ao mesmo tempo: “Queremos a
revolução Caraíba. Maior que Revolução Francesa. A unificação de todas as
revoltas eficazes na direção do homem.” (Oswald apud Teles, 1985, p. 354).
Imbuído de uma postura sempre contestadora e algumas vezes irônica,
questionava os resíduos culturais recalcados pela história de nossa colonização:
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de
Dom João VI: - Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes
que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso
expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria
da Fonte. (Oswald apud Teles, 1985, p. 360).
A divulgação do Manifesto em 1928 na Revista de Antropofagia, nesta
data sob a direção de Antônio Alcântara Machado e a gerência de Raul Bopp, foi
explosiva e demonstrava um tom de indefinição do grupo que, em sua primeira
fase (primeira dentição), ainda procurava apenas romper com os velhos padrões
através de uma estética do choque: “Contra todas as catequeses./ Contra o Padre
Vieira. Autor de nosso primeiro empréstimo para ganhar comissão./ Contra as
elites vegetais. Contra a memória fonte do costume. A experiência pessoal
renovada.” (Oswald apud Teles, 1985, p. 353-359)
O texto do Manifesto também mostra o caráter antropológico de seu
projeto e recorre ao homem natural do Brasil Caraíba: “Só a antropofagia nos une.
Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” (Oswald apud Teles, 1985, p.
353), e ainda, “O contato com o Brasil Caraíba./ O homem natural.” (p. 354). “A
ciência codificação da magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu
em Totem.” (p. 355).
A antropofagia oswaldiana conecta-se claramente com questões do
Brasil pré-colonial e não é apenas uma importação vanguardista. A concepção
antropofágica indica-nos um devoramento crítico da cultura estrangeira e sua
adaptação ao panorama brasileiro. Lúcia Helena defende o projeto antropofágico
de Oswald como uma proposta alegorizante:
A alegoria do canibalismo se apresenta entre nós como tentativa
de reagir à dependência cultural e de dispor a literatura moderna
28
brasileira a um movimento de rebeldia e independência contra os
cânones artísticos e culturais vigentes em nossa sociedade até
então. (Helena, 1985, p. 157)
Ser primitivista era, dessa maneira, inicialmente ser produtor de uma
Poesia Pau-Brasil, de exportação, na qual o nacionalismo estaria articulado à
renovação vanguardista para, posteriormente, deglutir a sabedoria acadêmica a
partir de um intercâmbio com as conquistas européias, com uma compreensão
nada xenófoba do nacional. A renovação estética permanente deveria, portanto,
se consolidar através do aproveitamento das Vanguardas, deglutindo-as
antropofagicamente, de forma autônoma, e adaptando-as ao panorama brasileiro.
A revisão da história pátria seria relida através do colonizado, ou seja, o indígena
deixa de ser falado e fala em seu próprio nome.
O Manifesto Antropófago avalia ainda os estragos de uma civilização
que sofrera com os modelos culturais impostos pelo patriarcalismo luso-europeu,
passando sua arte a ser uma imitação grotesca de padrões culturais e de
comportamentos que nos são estrangeiros: “Foi porque nunca tivemos
gramáticas, nem coleções de velhos vegetais./ Contra todos os importadores de
consciência enlatada.” (Oswald apud Teles, 1985, p. 354)
A antropofagia,
portanto, exibe como solução para os impasses culturais brasileiros o
devoramento, a deglutição e a digestão de nosso legado cultural europeu, visto
como inescapável. Isto significa a radical negação de todos os padrões
hierárquicos estabelecidos, pois no processo digestivo opera-se a absorção do
inimigo, do estrangeiro que, para Oswald, são sacros: “Absorção do inimigo sacro.
Para transformá-lo em totem.” (Ibidem, p. 359). Nisto consistiria a originalidade
brasileira:
Do ponto de vista estético, o Movimento Antropófago valoriza
nossos elementos nativos e primitivos em combinação com a
assimilação das tendências modernas do pensamento europeu.
Na conjunção de realidade natural, social, histórica brasileira com
o instrumento teórico e estético das vanguardas, a Antropofagia
surge com uma proposta original e inédita: é a metáfora central a
partir da qual entender e expressar o Brasil, reavaliando o seu
passado e incorporando-o criativamente ao presente, na projeção
e no projeto de um futuro utopicamente livre. (Gomes, 2005, p. 48)
29
O
conceito
de
“Antropofagia”,
dessa
maneira,
passa
a
ser
operacionalizado como termo capaz de ilustrar nossa complexa realidade e
herança de colonizados. Dessa forma, esse conceito estabelece a possibilidade
de questionar toda uma estrutura política, econômica e cultural aqui implantada
pelo colonizador, na qual se formara a sociedade patriarcal brasileira, com seus
padrões repressivos de conduta. O legado da Antropofagia oswaldiana, sobrevive,
dessa forma, a seu tempo e amplia seu sentido para além da literatura e das artes
plástica, onde foi concebida inicialmente, abrindo caminho para se pensar a
identidade brasileira em sua complexidade em uma nova concepção crítica da
cultura através do qual articulavam o nacional e o universal. O Tropicalismo e o
Cinema Novo foram atingidos por esse legado em um momento decisivo de
revolução no Brasil, em que o campo cultural se tornou alvo de protestos e
críticas.
O índio, que era núcleo da metáfora central da Antropofagia
oswaldiana, era retratado como um personagem emblemático, figurado e mítico,
assim como o fora no Romantismo. Contudo, o índio romântico era aquele “bom
selvagem” de Rousseau, que tudo acatava e assimilava passivamente e as
narrativas que decorrem desse processo aparecem como glórias nacionais, na
tentativa de velar e adaptar-se ao colonizador, como, por exemplo, em O Guarani
(1855), de José de Alencar. Já o índio oswaldiano é aquele “mau selvagem”, de
um indianismo às avessas, que fora influenciado por Montaigne, que reage e
exerce sua crítica, a devoração, desabusada contra as imposturas do civilizado:
“O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior
e exterior. A reação contra o homem vestido.” (Oswald apud Teles, 1985, p. 354).
A antropofagia, dessa forma, rejeitava a visão ufanista e utópica do indianismo
romântico: “Contra o índio de tocheiro.” (Ibidem, p. 358). No entanto, Oswald ao
partir de um índio que nada se assemelhava ao real, também o idealiza, uma vez
que ele rechaça a figura do negro, apagando assim a diversidade. No Manifesto,
Oswald defende a primazia do utópico: “Contra a realidade social, vestida e
opressora, cadastrada por Freud- a realidade sem complexos, sem loucura, sem
prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindororama.” (Oswald apud
30
Teles, 1985, p. 354). Não foi por acaso que Mário de Andrade se afastou das
prerrogativas desse primitivismo radical, que acaba por homogeneizar a
identidade cultural brasileira, fazendo se configurar dentro do Movimento
Modernista variadas vertentes de pensamentos, dentro dos quais o nacionalismo
é concebido.
A influência vanguardista dentro do Movimento funciona como uma
mediação entre a vida intelectual européia e a cultura nacional, buscando
aspectos que atendem à nossa realidade de colonizados. Dessa forma, o
pensamento mítico-irracional foi aproveitado das Vanguardas Européias no que
tange à valorização do inconsciente e a negação do racionalismo. Quer dizer,
nosso imaginário de Brasil é racionalmente ilustrado através do mito, que é
irracional, articulando nacional e cultural.
Assim, a partir do primitivismo, podemos entender a tentativa de
instaurar uma identidade nacional que procura no mito as razões para se
consolidar enquanto cultura também dotada de história e tradição. É uma
Antropofagia mítica no qual em Cobra Norato (1931) de Raul Bopp, por exemplo,
o mito local é apropriado como referência ao passado ainda intocado pela
civilização. Um passado mítico e atemporal no qual se faz presente a
possibilidade de exprimir uma cultura com características próprias e múltiplas.
O mito amazônico é reapropriado pelo autor modernista dando
contornos próprios a essa obra que se tornou uma referência da antropofagia. O
poema conta a história de Honorato que vestido com couro de uma cobra
percorre os perigos da floresta para encontrar sua amada, filha da rainha Luzia. O
mito é variante do mito da Boiúna, um monstro das águas, temido por sua
maldade, porque aterrorizava os navegadores, naufragando as embarcações. A
mãe de Honorato ficara grávida da Boiúna, dando à luz um casal de gêmeos. A
mãe abandona as crianças no rio, para evitar a maldição do monstro. A menina
herdou o gênio mau da Boiúna, enquanto Honorato era de bom caráter. Cansado
das maldades da irmã, ele a assassina, ficando enfeitiçado para sempre.
Honorato, um moço muito bonito que abandonava seu couro de cobra para
dançar nos bailes pela madrugada, era um rapaz bom e gentil, nunca foi capaz de
31
desonrar as moças. Pedia sempre que lhe desencantassem dando-lhe uma
machadada na cabeça e jogando três gotas de leite em sua boca monstruosa de
cobra. Mas temendo a assustadora feição, mesmo sabendo que não lhes faria
mal, as pessoas que se arriscavam a desencantar a cobra corriam. Apenas um
valente soldado foi capaz de proceder até o fim, desencantando Honorato para
sempre do feitiço.
De acordo com Câmara Cascudo (1976) o mito da Cobra Norato é um
dos mitos mais populares das tradições paraenses cuja região foi constituída por
uma intensa miscigenação. A massa indígena misturada ao elemento colonial
português tais como os beirões, minhotos e açorianos, produz o mestiço indolusitano ou “mameluco”. A pluralidade corpórea contida no mito é um índice de
influência estrangeira, contudo o episódio guarda pouquíssimo da alma indígena
do Brasil. É um conto mítico de alta percentagem mestiça. Dessa forma, a
antropofagia deglutia o estrangeiro misturando-o e transformando-o em um
elemento (supostamente) novo, mas jamais puro.
A apropriação de um mito já transformado e o deslocamento dessa
linguagem mítica feita pelo modernista Raul Bopp é uma forma de rever
criticamente as propostas de uma literatura de raízes brasileiras e discutir uma
das vertentes que colocam o nacionalismo articulado com o universal. Não é
apenas uma forma de registrar a cultura popular, recontando uma lenda, mas sim
inserir a discussão da cultura na contemporaneidade modernista. O mito contém
em si fundamentos universais tais como a designação da dicotomia bem/mal que,
no poema, é retratada na figura de Honorato, o qual nos remete para o bem. O
assassinato de sua irmã faz com que triunfe o bem sobre o mal transformando
Honorato em um herói. Com isso, o processo de apropriação do mito é
atravessado pela racionalidade que se configura no fazer poético de Raul Bopp,
ou seja, o tratamento que é dado à linguagem advém da perspectiva modernista
que procura na cultura local subsídios para reformular questões acerca da
nacionalidade brasileira. Através do processo antropofágico, que funciona como
um elemento que opera no campo do primitivismo, do qual faz parte o mito, a
poesia Pau-Brasil esboça, de forma crítica, uma nova maneira de se conceber a
32
cultura brasileira.
No poema, o mundo amazônico que está sendo representado é um
mundo onde predomina a lama que é a mistura da água com a terra, onde todas
as criaturas ainda são recém-nascidas: “Raízes desdentadas mastigam lodo.”
(Bopp, 1976, p. 13)/ “Um fio de água atrasada lambe a lama.” (p. 7). Dessa forma,
as imagens poéticas a que recorre o autor, nos mostram o início da criação do
mundo como uma metáfora da própria criação do poema, do fazer poético. A
apropriação pelo poeta traduz um novo mito de criação de uma das origens da
cultura nacional, principalmente pelas imagens da linguagem poética. Um mundo
onde existe a figura recorrente do sapo, anfíbio capaz de viver na água e na terra:
“Sapos beiçudos espiam no escuro.” (Bopp, 1976, p. 7).
A floresta que se transforma, que está nascendo, ainda se encontra na
escuridão e espera-se que no final reascenda a luz de um novo dia. A busca do
herói pela sua amada, filha da rainha Luzia, que no final é encontrada e cujo
nome possui o radical “luz”, nos faz pensar sobre uma certa tendência moderna
de depositar as esperanças no futuro. A linguagem atemporal do mito é passível
de nos remeter ao futuro e ao passado. Esse deslocamento no tempo é possível
graças ao caráter de ruptura propiciado pelas Vanguardas, ou seja, a
possibilidade de aquisição da linguagem mítica no contexto modernista, advém de
sua influência principalmente futurista e expressionista que se lançam ao mesmo
tempo para um passado idílico e para um futuro ideal.
Assim, a reapropriação de um mito amazônico, pelo modernista Raul
Bopp, pode ser entendida como uma volta ao passado primitivo, anterior às
divisões políticas, no limiar das terras do Sem Fim “Um dia eu hei de morar nas
terras do Sem-fim (Bopp, 1976, p. 5), onde procura buscar a tradição local outrora
reprimida.
Aliado a uma linguagem de cunho popular o poema Cobra Norato,
portanto, é uma expressão do pressuposto básico da poesia Pau-Brasil. A
descida às fontes genuínas das raízes de nossa terra, a transformação do tabu
em totem e a recuperação de um mito cujas fontes são múltiplas, demonstram o
processo heterogêneo da formação cultural brasileira. Nesse sentido, a
33
Antropofagia pressupõe a alteridade, com a deglutição do estrangeiro,
participando do universal e do nacional mas, mesmo assim, traz à tona o
diferencial da literatura brasileira, descentrando todo referencial metafísico da
razão européia. Essa origem, uma vez sendo submetida à mistura de raças, típica
de países colonizados, ou seja, imbuindo na literatura local o legado cultural
universal, não é passível de ser delimitada. O que poderemos procurar é algo que
antecede a escrita ou a oralidade.
A “arquiescritura”, conceito cunhado pelo filósofo argelino Jacques
Derrida, do qual podemos nos apossar, é a escritura primeira que precede
qualquer historicidade ou busca de sentido. Ela não está presente na estrutura
metafísica da razão, é anterior a isso e está suspensa à espera de uma cadeia de
significantes onde poderá se fazer presente, suplementando e atribuindo um
sentido a essa cadeia. Pelo fato da arquiescritura estar ausente, nessa estrutura
que pressupõe um centro, ela acaba por deslocar esse centro e existir como
diferença. “A arquiescritura é a inscrição da marca-da-diferença” (Santiago, 1976,
p. 11), ou seja, o sentido deve esperar ser dito ou escrito para se habitar a si
próprio. Dessa forma a escritura começa quando a origem, ou poderíamos dizer o
autor, já não existe, ou melhor, a escritura em si já não possui uma origem. O
mito, poderíamos entender, nesse sentido, não possui autores, ele é uma
bricolagem de referências e de transformações de outros mitos. Em Cobra Norato
o mito não possui uma unidade ou origem absoluta, o que carrega são marcas de
outros discursos cujos significados fundamentam-se em um jogo de substituições,
sendo a falta de um centro ou a falta de um autor, a condição deste jogo: “O foco
ou a fonte são sempre sombras ou virtualidades inapreensíveis, inatualizáveis e
em primeiro lugar inexistentes”. (Derrida, 2002, p. 241).
Derrida, ao estudar a Etnologia em Lévi-Strauss, mostra-nos a
impossibilidade de transcender ou romper com determinada razão metafísica,
uma vez que se utiliza dos preceitos básicos, dos conceitos, dos princípios, para
desconstruir tal razão: “(...) não podemos enunciar nenhuma proposição
destruidora que não se tenha já visto obrigada a escorregar para a forma, para a
lógica e para as postulações implícitas daquilo mesmo que gostaria de contestar.”
34
(Derrida, 2002, p. 233). A partir dessa prerrogativa, Derrida nos mostra a
tendência do conceito arquiescritura de subverter essa impossibilidade, uma vez
que este antecede qualquer discurso pré-estabelecido, fazendo do suplemento a
diferença que marca uma periferia, ou seja, no nosso caso, a literatura brasileira.
Periferia que pode ser entendida como a falta de um discurso centrado, ou seja,
ao descentrar a idéia de homogeneidade, não se pode mais ter a presença de
uma suposta origem.
Em Macunaíma (1928),
Mário de Andrade deixa entrever em sua
narrativa, os rastros, os vestígios de uma identidade que se apresenta de forma
bastante múltipla. O momento de ruptura inaugurado pelo Modernismo instaura
uma possibilidade que desloca a estabilidade identitária, que desde os séculos
XVIII e XIX eram fixas em estruturas seguras, para um quadro de particularismos
criando, assim, laços que transcendem o nacional. A proposta do ideário estético
de Mário de Andrade é marcada por uma configuração nitidamente cosmopolita,
que nos mostra São Paulo como uma grande metrópole industrializada, com
ânsias cada vez mais modernizantes de entrar no ritmo do desenvolvimento
mundial, ao mesmo tempo em que reflete os particularismos de cada canto do
Brasil.
Em Macunaíma (1928), Mário nos revela tanto os assombros da capital
São Paulo quanto as fronteiras de Guarajá-Mirim entre Mato Grosso e Amazonas
e ainda Itamaracá de Pernambuco onde o herói foi chupar manga-jasmim, depois
tomar leite de vaca zebu em Barbacena, e na Ilha do Bananal, em Goiás, foi se
esconder no oco de um formigueiro. Essa geografia que Mário cria é fantástica e
não segue a lógica dos roteiros possíveis. O itinerário de Macunaíma na busca
por Muiraquitã é uma justaposição de elementos próprios da camada popular. De
acordo com Gilda de Mello e Souza, Mário de Andrade, portanto:
(com sua) embrulhada geográfica proposital, tinha por objetivo
criar uma espécie de geografia, fauna e flora lendárias que
libertando-se das contingências regionais, funcionasse como um
elemento unificador da grande “pátria tão despatriada”. (Souza,
1979, p. 38)
Seguindo com análise feita por Gilda de Mello em o Tupi e o Alaúde, a
35
autora interpreta a rapsódia de Mário de Andrade a partir da bricolagem, tal como
propôs Lévi-Strauss, cuja matéria-prima para a composição da obra é retirada dos
“destroços de velhos sistemas”, como o da música popular. O modelo que
compõe a narrativa de Macunaíma e sua busca por Muiraquitã, o precioso
amuleto perdido, advém de uma estrutura que compõe também a música popular.
Estudioso da música, Mário utiliza desse recurso para compor sua
rapsódia que se estrutura a partir de um todo proveniente de uma forma clássica
que é constituída por vários elemento populares, assim como uma suite que
possui uma forma universal e seus vários elementos que são absorvidos da
cultura popular, Macunaíma é um todo que carrega em sua composição
elementos do populário e até mesmo dos espaços do teatro indiano, chinês e
medieval. Dentro de uma suite, existem vários tipos de cantos, como o choro e a
valsa, por exemplo. A autora se vale de uma relação na composição de
Macunaíma com as manifestações populares indígenas ou africanas que
guardam forte influência européia: “... independentemente dos mascaramentos
sucessivos que emprestam à narrativa um aspecto selvagem, o seu núcleo
central permanece firmemente europeu.” ( Souza, 1979, p. 74)
A indeterminação temporal e a “embrulhada” geográfica, cronológica e
espacial que estrutura a narrativa de Macunaíma, substitui o vir-a-ser pela
coexistência das diferenças. A própria denominação de nosso herói ter nenhum
caráter reflete já a consciência crítica do Movimento Modernista Brasileiro de
representar a cultura brasileira como uma forma de arte heterogênea e tão
diversificada como são as diferentes formas de conceber a cultura.
A substituição da aparência original de Macunaíma, negro e
selvagem, pela figura bela e aristocrática do herói europeu que o
nosso folclore herdou, traduz com admirável eficiência a
incapacidade brasileira de se afirmar com autonomia em relação
ao mundo ocidental. (Souza, 1979, p. 75)
As vanguardas procuram questionar a supremacia do ocidente e se
valem de estratégias literárias para subveter esse valores. Como a antropofagia
cultural que abre as portas para se discutir a possibilidade de se exprimir a cultura
de forma particular e universal, unindo as cores locais aos cenários universais. De
36
acordo com Souza, Macunaíma instaura um percurso carnavalizado daquela
trajetória do herói cavaleiresco dos romances de cavalaria, onde a nobreza, a
coragem, a lealdade, a verdade e a justiça são exaltados. Em Macunaíma o que
se encontra é um herói às avessas. Essa veia carnavalizante que observamos na
poética de Mário, é analisada também por Lúcia Helena que se constrói:
pelo cruzamento incessante da mitologia dos taulipangues, dos
caxinayás, dos indígenas da amazônia em geral (...), com o
panorama cultural da São Paulo sua contemporânea; do linguajar
cheio de neologismos que se misturam à paródia dos cronistas e
do português pseudamente culto, conforme se vê claramente na
“Carta pra Icamiabas”; além da miscigenação impossível de um
herói que nasce do medo da noite, tem um irmão preto e um índio,
e se transforma num príncipe lindo. (Helena, 1985, p. 27)
Em seu estudo sobre a poética de Dostoiévski, Bakhtin (2002) revelanos a polifonia existente em Os irmãos Karamázov. Segundo ele, a polifonia
consiste no fato de que as várias vozes permanecem independentes e
representam várias teorias filosóficas autônomas mutuamente contraditórias, que
são defendidas pelos heróis dostoievskianos, expressando assim as diferentes
posições ideológicas dos sujeitos no mundo. Dessa forma, existe uma
constitutividade das vozes imanentes às obras literárias e estas dizem respeito
aos diferentes elementos históricos, sociais e lingüísticos que perpassam as
enunciações do discurso literário. Nesse sentido, essas vozes são sempre vozes
sociais que são incorporadas ao imaginário de sentidos na ficção. O herói
carnavalizado destrona os padrões hierárquicos que até então constituíam a
literatura brasileira, através, por exemplo, da utilização de recursos de narrativas
populares encontradas nos relatos orais. O esquema mitológico subverte aquele
velho esquema lógico racional da tradição européia.
Em sua narrativa, Mário de Andrade utiliza tanto o mito indígena como
o africano para representar o caráter heterogêneo da constituição da identidade
brasileira. A denominação do nosso herói ter nenhum caráter, nos mostra uma
identidade inacabada e a consciência critica do autor em rechaçar uma
hegemonia na constituição identitária que vinha se firmando ao longo de nossa
história. A trajetória do nosso anti-herói desconstrói a existência de uma essência
37
brasileira imutável, fugindo, dessa maneira, de um único quadro de referência.
As viagens inauguradas por Macunaíma, denotam, metaforicamente, a
busca por conhecimento, a busca da própria identidade que, ao fracassar no
encontro de sua origem, nos mostra a heterogeneidade de sua constituição. É no
percurso desse viajante que se constrói sua história e suas diversas facetas vão
delineando sua identidade múltipla. Seus diversos caráteres são, na verdade, as
marcas, os rastros das várias raças que constituem o povo brasileiro.
Em sua jornada em busca do amuleto que representa a busca de sua
identidade perdida- a muiraquitã, Macunaíma vive sob a tensão de dois pólos, o
brasileiro e o europeu, o “tupi tangendo um alaúde”. Em sua primeira vitória sobre
Piamã, quando recupera a muiraquitã, Macunaíma se sente livre para voltar à sua
querência, ao Uraricoera. Neste momento os valores primitivos são exaltados.
Contudo, o contato com a civilização modifica o herói que é atraído pelos valores
europeus. A escolha de Macunaíma por uma portuguesa em detrimento da nativa,
nos mostra a perigosa atração da Europa, pois é quando vai ao encontro da
portuguesa que Macunaíma morre. É justamente nesse momento que o herói
perde novamente seu amuleto, que já parecia não ter tanto valor, uma vez que
ele traz consigo revólveres ingleses e relógios importados. Na vingança de Vei
por Macunaíma não ter aceitado casar-se com nenhuma de suas filhas, ela
procura modernizar seus métodos de castigo, acompanhando o progresso da
época. Já no Uraricoera, a Uiara que está disfarçada de moça, possui traços
lusitanos e atraí o herói para o fundo do Uraricoera:
Que beleza que ela era!...Morena e coradinha que-nem a cara do
dia e feito o dia que vive cercado de noite, ela enrolava a cara nos
cabelos curtos negros como as asas da graúna. Tinha no perfil
duro um narizinho tão mimoso que nem servia pra respirar.
Porém como ela só se mostrava de frente e fastava sem virar
Macunaíma não via o buraco no cangote por onde a pérfida
respirava. (Macunaíma, 2000, p. 155)
As marcas européias na narrativa, de acordo com Souza (1979), como
o príncipe encantado em que se transforma Macunaíma, os traços lusitanos da
Uiara, são “um símbolo intencional da nossa flutuação cultural” (Souza, 1979, p.
75), quer dizer, a mistura das diversas influências em nossa cultura faz com que a
38
constituição de nossa identidade não se conforme com um único quadro de
referência. Não somos tão somente nativos, nem tampouco possuimos apenas
referências européias, somos a mistura de tudo isso, digeridos e transformados
em uma mistura única, em um diferente.
O pensamento do rastro, proposto por Jacques Derrida, é capaz de nos
orientar nessa constatação, pois este pensamento não se conforma à lógica da
identidade, uma vez que esta busca sempre um retorno à origem simples como
função da presença plena e aquele é não somente a desaparição da origem plena
mas a constatação que a origem sequer existiu. O rastro, dessa forma,
caracteriza uma transformação da origem, ou seja, não há um rastro originário. O
rastro é a própria différance. Este termo, significa para o filósofo francês, um
efeito que produz um movimento no jogo da significação onde cada elemento dito
no presente se relaciona com as marcas do elemento passado e já guarda em si
marcas de sua relação com o elemento futuro, não deixando, portanto, se fechar
em um significado último e totalizante.
As facetas de Macunaíma são, nesse sentido, os diversos rastros
culturais que vão se configurando nas identidades do heróis sem nenhum caráter.
Aquele que nasce preto retinto e filho do medo da noite, irmão de um índio e outro
irmão preto e que se transforma num príncipe branco de olhos azuis. A obra de
Mário de Andrade capta a voz do excluído, da diferença, superando a velha
ideologia do caráter universal brasileiro. Os vários caráteres que se suplementam
formam a cada momento um outro diferente que está sempre em transformação.
A lógica da identidade, portanto, exibe um impasse quando tenta
localizar uma origem pautada na prerrogativa de que preencherá determinada
totalidade, ou seja, a identidade cultural brasileira não se fecha em um sentido
último que possa ser passível de conceitualização. A todo momento podem ser
inscritas marcas de diferenças que se suplementam no contexto em que se
inscrevem, deixando ainda espaço para que uma nova significação possa ser resignificada infinitamente. Quando se tenta fundar uma origem, todas as marcas
das diferenças são apagadas. A origem pressupõe uma centralidade, uma
verdade última. A intenção de Derrida é pensar a escritura sem referente, não
39
trabalhando com o núcleo original, mas com a “secundariedade originária”, onde
se inscrevem as diferenças: “... pensar um ponto originário, centrado, é recalcar a
différance e o suplemento e, nesse sentido, limitar o jogo das significações.”
(Santiago, 1976, p. 71).
Deve-se, portanto, pensar a identidade não como uma entidade
acabada, morta, mas como diferenças que se suplementam, que estão ausentes
numa estrutura sempre incompleta. O pensamento descentrado não privilegia a
supremacia da origem que finda em uma verdade, assim: “A ausência de centro e
de origem é substituída por um signo flutuante- o suplemento- que se desloca
numa determinada estrutura para suprir essa ausência e ocupar seu lugar
temporariamente.” (Ibidem, p. 88). A volta de Macunaíma para a beira do
Uraricoera e seu desgosto ao perceber que ali já não havia mais ninguém nem
tampouco era como quando partiu para as aventuras da cidade grande, pois a
única coisa que encontra é a miséria e a fome, demonstram a agonia do herói e a
impossibilidade de se chegar a um final conclusivo sobre a formação da
identidade brasileira. A solução encontrada por ele então foi subir para o céu e se
transformar na constelação da Ursa Maior. Um final mítico que indica um retorno
ao mito que providencia uma explicação para a falta de uma identidade fixa ao
herói de nossa gente. Essa saída utópica reforça a prerrogativa de que a
identidade de povos colonizados nunca é fixa, mas está sempre em
transformação como algo movediço que escorrega pelas definições de conceitos
pré estabelecidos.
No Brasil, a busca pela identificação começa quando, liberto dos
grilhões da colonização e da escravidão, a literatura se volta para o interior do
país em busca de uma exteriorização nativista. Dessa forma, o romance
fundacional do nosso Romantismo, pretendia inaugurar a identidade brasileira
através da elevação do autóctone. José de Alencar procura exprimir o nacional
com seus romances: O Guarani (1855), Iracema (1865), O Gaúcho (1870),
Ubirajara (1874). Essa tentativa, no entanto, nos leva a crer na identidade como
um ideário, ou seja, como expressão de uma identidade homogênea. É a partir o
Modernismo Brasileiro que se configura a possibilidade da diversidade cultural. O
40
discurso ficcional perde a certeza de se representar o nacional como identidade
fixa em alegorias do Brasil moderno como Macunaíma. A força da terra, ou seja,
da nação concebida como território, é muito marcante na literatura romântica e
continua de forma mais consciente e subversiva, como já apontamos, na crítica
brasileira posterior.
A literatura quando atua em favor da união da comunidade em torno de
seus mitos fundadores, inventando ou ocultando o outro, o índio no caso do
Brasil, possui uma função sacralizadora. O nosso Romantismo pode ser
reconhecido enquanto divulgador de uma continuidade linear e homogênea que
reproduz e funda um imaginário mítico ou uma ideologia geradora de uma palavra
exclusiva que conseqüentemente apaga as diferenças dentro da nossa literatura.
Em contrapartida entendemos que a função exercida por uma literatura
dessacralizante, ao contrário, procura desvelar as vozes excluídas por esse
discurso homogêneo de uma continuidade do mesmo.
Esse embate entre a constituição de uma literatura nacional brasileira
pode ser explicitado a partir dos livros O seqüestro do Barroco na Formação da
Literatura brasileira, de Haroldo de Campos, onde ele defende a inserção do
barroco na literatura brasileira enquanto diferença dentro de nossa literatura no
plano dos valores estéticos; e o livro de Antonio Candido, Formação da Literatura
brasileira que parte do pressuposto
que o nacionalismo artístico é fruto de
condições históricas que surge enquanto necessidade de conscientização
nacional.
A tese de Candido é a de que a formação da literatura brasileira é
constituída a partir de um sistema literário, dentro do qual as obras estão ligadas
por um denominador comum, que permitem reconhecer as notas dominantes de
uma fase que inclui aspectos internos, como língua, temas e imagens, e aspectos
externos, orgânicos, onde o social e o psíquicos estão em destaque. Dessa
maneira, o Barroco, com Gregório de Matos não existiu literariamente, em
perspectiva histórica, embora tenha permanecido dentro da tradição local da
Bahia, pois não influiu e não contribuiu para a formação de nosso sistema
literário. Para o autor, é a partir da Independência que a Literatura se empenha
41
em construir um país livre. O nacionalismo artístico se torna fruto de condições
históricas
e
aparece
no
mundo
contemporâneo
como
elemento
de
autoconsciência, no esforço de glorificar os valores locais ao mesmo tempo em
que traduz a universalidade da obra.
Haroldo de Campos, no entanto, reivindica o lugar do barroco na
literatura nacional pela sua possibilidade de instaurar a diferença cultural como
um valor a ser considerado na formação de nossa literatura. O barroco é a não
infância, pois ele já chega adulto no Brasil. Ele não nasce e se desenvolve em
terreno nacional, mas surge já com um alto nível de rebuscamento literário.
Portanto, não ter infância, implica não ter origem, aliás a diferença é tida como
mais um elemento entre outros que configuram as origens culturais brasileiras.
Quer dizer, falar o código Barroco, na literatura do Brasil colônia, significava tentar
extrair a diferença da transformação e continuidade do mesmo. As sátiras morais
gregorianas eram um dizer alternativo que desconstrói a ideologia da metafísica
ocidental da presença. Enquanto Candido se concentrava em estabelecer e
identificar um logos, uma origem da formação de nossa literatura, roubando o
barroco de seu sistema literário, Campos nos aponta para uma antitradição que
passa pelas frestas da historiografia tradicional e reconhece outros percursos
marginais, demonstrando, dessa forma, a função que a literatura pode adquirir de
dessacralizar o discurso oficial.
A partir daí, a formação cultural e literária pode ser estudada com a
marca da diferença identitária que se instaura no processo mesmo dessa
construção. O Romantismo, ao valorizar temas locais e elevar o índio como
símbolo do surgimento do brasileiro ao mesmo tempo em que o inventa, quer
dizer, o índio idealizado pelo Romantismo é um índio que foi construído por um
discurso dominante, procura fundar uma origem homogênea, pautada na
metafísica ocidental da presença. Essa construção, entretanto, não comporta os
componentes ideológicos presentes no apagamento das diferenças, da violência
cultural por aqueles que escrevem essa cultura.
Pensando no conceito de dialogismo de Mikhail Bakhtin, pode-se
instaurar uma problematização da escrita romântica e seus procedimentos de
42
apagar as marcas da heterogeneidade cultural e identitárias brasileiras. Essa
condição dialógica, afirma o autor russo, está presente em todo texto e é tecido
polifonicamente por fios dialógicos de vozes que polemizam entre si, se
completam ou respondem umas às outras. Mais do que uma teoria acerca da
linguagem, Bakhtin possui uma concepção sobre as relações da linguagem com
os processos sociais. Com sua visão interacionista, ele critica o subjetivismo
idealista e o objetivismo abstrato, instaurando a possibilidade de o indivíduo não
ser determinado pelo meio. Assim, o dialogismo é um princípio constitutivo da
linguagem e não somente de condições históricas como afirma Candido.
O teórico russo, avaliou a complexidade das relações da linguagem
com os processos sociais que se condicionam mutuamente. A comunicação deve
ser compreendida sempre em seu contexto histórico e social de realização. A
linguagem é, dessa forma, um fenômeno ideológico por natureza e a palavra é
sempre marcada pelo embate de vozes sociais de interação verbal. Sua
compreensão acerca da linguagem é também uma compreensão de mundo, é
uma filosofia da linguagem. As vozes, dentro dessa perspectiva polifônica,
representam os diferentes elementos ideológicos, sociais e históricos, logo, o
barroco, sendo analisado a partir de uma perspectiva dialógica, pode surgir como
um outro elemento capaz de constituir a literatura brasileira.
Com o Modernismo, teremos um redirecionamento crítico com relação
a construção identitária proposta pelo Romantismo, que tende à homogeneização,
apagando, dessa forma, as diversas vozes que compõem o tecido cultural
brasileiro. No Romantismo o dono da terra era elevado como símbolo nacional
nos romances fundacionais de José de Alencar, por exemplo. O índio, dessa
forma,
era
ilustrado
como
um
símbolo
idealizado
em
detrimento
do
reconhecimento da contribuição do negro na formação da identidade nacional,
pois este além de não ser dono original da terra ainda carregava o estigma da
escravidão. A possibilidade trazida por essa nova concepção crítica da cultura
brasileira através do qual os primitivistas articulavam o nacional e o universal,
abre caminho para se pensar essa função dessacralizadora da literatura e uma
certa tradição antropofágica da literatura brasileira, dentro da qual, o barroco de
43
Gregório de Matos passa a fazer parte.
Lúcia Helena (1983) em seu livro Uma Literatura Antropofágica,
concebe uma outra interpretação para a antropofagia considerando-a como ethos
de um ângulo da cultura brasileira e que se manifesta desde a literatura do
período colonial. A outra interpretação é aquela que já dissertamos anteriormente
e indica uma vertente da cultura que se instala na literatura primitivista
modernista.
Para a autora, Gregório de Matos é o primeiro escritor antropófago da
literatura brasileira, é “o autor de nossa primeira linhagem de 'macunaímas', os
heróis sem nenhum caráter, caldeados na paródia das raças, das vozes múltiplas,
das ideologias miscigenadas.” (Helena,1983, p. 26). O gesto antropofágico, que
pode ser encontrado nas sátiras gregorianas, de devoração do colonizador para
incorporar criticamente seu acervo estrangeiro, através da paródia, constrói um
discurso literário de “dicção autonomamente brasileira”.
Em Gregório de Matos, o discurso literário procede como a devoração
da palavra que representa, a nível estético, o estatuto do poder do colonizador. O
“parricídio inaugural” funciona como a devoração do texto do pai, do colonizador.
O que procede em Gregório é que ele utiliza a carnavalização antropofágica como
instrumento para sua obra poética, carnavalização esta que retratamos quando
descrevemos e explicitamos a transformação do tabu em totem. A carnavalização,
nesse sentido é um procedimento de linguagem que dessacraliza e “destroniza o
que, por si, consiste em ser superorganizado, o soneto, a ordem clássica e o
poder.” (Helena, 1983,p. 33). Dessa forma, as várias vozes se entrecruzam em
um sistema dialógico de comunicação, onde não há verdade única e
predominante, no seio da própria estruturação, do poder, da força autoritária.
A sátira gregoriana funciona como um todo polifônico e dialógico,
próprio da literatura carnavalizante, que desloca o conteúdo formal para uma
estrutura irônica onde a palavra do outro é assumida, deglutida e transformada
numa fala dessacralizada. O plágio, dessa forma, era prática comum na época de
Gregório como forma de contestação da voz hierárquica do colonizador.
Pudemos perceber, nesse capítulo, a evolução do termo antropofagia e
44
sua possibilidade, enquanto conceito, de averiguar como se compõe a identidade
brasileira em sua multiplicidade e heterogeneidade assim como são concebidos o
tecido cultural de um país colonizado.
Nos capítulos que se seguem mostraremos como a literatura ocupa
sua função dessacralizadora dentro de um sistema ocidental de valores. As vozes
que ouviremos a seguir são vozes de próprio povo que colonizado, agora grita em
favor de seus valores ou chora em conseqüência de suas cicatrizes.
45
CAPÍTULO II- A ANTROPOFAGIA DO POVO BRASILEIRO
Viva nós!, Viva o povo!
46
No capítulo anterior, pudemos acompanhar o processo pelo qual a
antropofagia se torna um conceito que instaura a possibilidade de analisar a
identidade cultural brasileira em suas diversas facetas e transformações. Em
Macunaíma, nos deparamos com um final no qual nosso herói se transforma em
estrela,
demonstrando
que
a
identidade
é
uma
entidade
de
difícil
conceitualização, explicável também através de narrativas míticas, assim como
em Cobra Norato. A inconclusão a que chega Macunaíma, ao perceber sua falta
de origem e conseqüentemente sua falta de caráter, reflete a gama de etnias que
compõem a cultura brasileira.
A dificuldade em definir origem e identidade nos países colonizados e
as preocupações que circundam essa problematização são questionamentos que
surgem de forma consciente a partir do Modernismo que se preocupa em rever de
forma crítica a colonização. A partir daí, a abertura possibilitada por esse
movimento de contestação, ruptura, questionamento e crítica fundamentados na
atualização da inteligência e da consciência nacional, impõe um novo olhar sobre
as questões culturais e funda, a partir da Antropofagia, um conceito através do
qual exprimir essa diversidade cultural.
Baseado na Antropologia, Fernando Ortiz inaugura um termo em 1940
que se refere a todo fenômeno do embate entre culturas- a transculturação,
embora o termo seja utilizado fundamentalmente para designar a constituição do
povo cubano, cultura de origem do autor, a transculturação tornou-se referência
obrigatória, por analogia, para qualquer reflexão acerca da colonização na
América.
De acordo com Lívia de Freitas Reis (2005) em seu artigo
Transculturação e Transculturação Narrativa, Ortiz preocupa-se em adquirir um
novo vocábulo que seja capaz de definir o encontro múltiplo e variado de povos,
etnias, raças, e sobretudo de culturas e economias distintas que estão em choque
permanentes em Cuba. A transculturação, nesse sentido, é um termo capaz de
abarcar o movimento constante em que se encontram povos e culturas e não uma
visão limitada de mestiçagem racial. Esse movimento ou processo se constitui de
três momentos: a aculturação, desculturação parcial e a neoculturação. O
47
primeiro se refere à aquisição de uma cultura diferente, mas implica também a
perda ou desligamento de uma cultura precedente que nos remete a uma
desculturação parcial. Necessariamente há uma conseqüente aquisição de novos
fenômenos culturais a que pode-se chamar neoculturação. Esse processo foi
observado por Ortiz a partir de seu interesse principalmente pelas culturas negras
que, transplantados da África, foram obrigados a viver em terras estrangeiras.
Segundo Ortiz (1983), em Contrapunteo del azúcar y del tabaco, era
preciso adquirir uma nova terminologia, ainda carente no campo dos estudos
sociais, que definisse de maneira mais completa, a complexa formação do povo
cubano. O termo transculturação, nesse sentido, se torna capaz de expressar a
intensa dinâmica cultural e econômica pela qual a sociedade cubana sempre
esteve submetida. A história de Cuba é formada a partir de todas as suas
transculturações. Desde o primeiro embate causado na transculturação do
período paleolítico, a idade da pedra lascada, para o período neolítico, idade da
pedra polida, e a desaparição dessas sociedades por não acomodarem o impacto
causado pela nova cultura castelhana, passando pela forte corrente de migrantes
brancos que foram transplantados da península ibérica para uma nova terra, até
os negros de raças e culturas distintas que eram trazidos à força de toda costa
africana, além de algumas migrações de indianos, judeus, lusitanos, franceses,
norteamericanos e povos da raça amarela. Cada um desses povos traziam seus
acervos de referências que se reajustavam à nova terra: a aculturação e
desculturação à neoculturação, para no fim da síntese essa mistura caracterizarse em transculturação.
A análise de Ortiz constata que o trânsito cultural em Cuba foi tão
intenso que esta mistura de raças e culturas supera qualquer fenômeno histórico,
embora a questão cultural seja vital na historiografia de qualquer nação. A causa
dessa superação é a de que a formação do povo cubano é diretamente
influenciada pelas complexas categorias que compõem a estrutura social e
cultural de cada um desses povos que pisam o território cubano. Dessa forma, os
fenômenos econômicos se confundem às expressões culturais.
Conseqüência disso é o salto da era da pedra polida que foi marcada
48
pela destruição dos povos autóctones e sua cultura para o período Renascentista.
O que ocorre em Cuba é que todo seu povo foi destruído e tiveram de ser
transmigrados tanto o dominador quanto o dominado, quer dizer, a partir do
século XVI, todos os povos e culturas que se encontravam em Cuba eram de
origem desgarrada, que carregavam consigo o trauma do desenraizamento e da
rude transplantação para uma cultura nova, ainda em criação.
En un dia se pasaron en Cuba varias edades; se diría que miles
de "años-cultura", si fuera admisible una tal métrica para la
cronologia de los pueblos. Si estas Indias de América fueron
Nuevo Mundo para los pueblos europeos, Europa fue Mundo
Novísimo para los pueblos americanos. (Ortiz, 1983, p. 88)
Dessa maneira homens, economias e culturas estão em um constante
processo dinâmico, sempre de trocas e sempre provisório. Tanto brancos como
negros foram transplantados rudemente em Cuba, porém estes ainda se
encontravam socialmente na condição de escravos. Assim, tanto dominador
quanto dominado viviam amedrontados nas novas terras para qual foram
transmigrados. Terror do oprimido pelo castigo e do opressor pela rebelião que
poderia se dissipar em resposta à essa opressão. Todos sofriam com o processo
doloroso de transculturação em um novo ambiente cultural.
O interesse desta contextualização do termo de Fernando Ortiz para
nossa proposta de trabalho, consiste na semelhança com o conceito de
Antropofagia que procura atribuir a um povo colonizado as nuances das
transformações na concepção de identidade desses povos. No caso do Brasil,
assim como em Cuba, os componentes culturais africanos foram incorporados
aos dos índios da terra e ainda aos brancos colonizadores. Em Cuba, contudo, os
aspectos econômicos são intimamente relacionados com a cultura do açúcar e do
tabaco ilustrados por Ortiz como os dois principais produtos econômicos do país.
No
decorrer
do
capítulo
mostraremos
como
o
processo
de
transculturação, ou seja, o embate cultural característico dos países que sofreram
com a dominação e a transplantação de novos referenciais culturais e sociais, é
percebido nas personagens de João Ubaldo Ribeiro e como é possível aproximar
este conceito que por analogia pode ser estendido à América Latina, ao conceito
49
de Antropofagia ao qual atribuímos e propomos a possibilidade de demonstrar as
circunstâncias formadoras do povo brasileiro. Assim como Cuba, o Brasil também
possui suas particularidades e também é carente de um termo que possa exprimir
com maior posicionamento crítico a constituição de seu sistema cultural. A mistura
e a negociação entre esses elementos e esses povos constituem a complexa
formação da identidade de um povo.
De acordo com Alfredo Bosi (1992), a idéia de colonização, de uma
maneira geral, é sempre atrelada ao ideal de conquista de novos bens materiais.
Qualquer ciclo de colonização fortalece a esfera econômica e a política, assim
como a produção dos meios de vida e as relações de poder. Não é por acaso que
a palavra conquista é substituída por descobrimento na medida em que, o valor
atribuído a essas emigrações deve ser sempre no sentido positivo, uma vez que o
processo civilizatório é parte do projeto universalizante dos povos colonizadores.
Assim, as narrativas que decorrem desse processo de colonização no Brasil
ilustram a exploração e o abuso do índio e do africano pelo português, tanto no
nível econômico quanto no que concerne aos sistemas simbólicos e de valores
enraizados desses povos.
Dito isto, este capítulo tem como objetivo averiguar o movimento na
constituição da identidade brasileira proporcionado pelo embate cultural entre
povos distintos no romance épico de João Ubaldo Ribeiro (1984), Viva o Povo
Brasileiro1 (VPB), a partir de um olhar cultural no qual a Antropofagia oferece
sustentação teórica na aquisição desse olhar.
A saga de 673 páginas nos conta uma anti-história nos tempos de
colônia e escravidão no Brasil de modo que a voz dos excluídos ganha força
paralelamente ao discurso oficial que constituía a elite dominante da época. É
interessante nos valer do termo dialogia que designa a convivência entre vozes
que dialogam e polemizam entre si sem, contudo, uma silenciar a outra. A
identidade, nesse sentido, é revista através de vários lugares, quer dizer, a
Antropofagia nos fornece a possibilidade de autorizar variados discursos ou
diferentes versões para um mesmo assunto ampliando o campo de visão e
1 A partir desse momento, usaremos a nomeclatura VPB para designar o romance Viva o Povo Brasileiro
50
entendimento da nossa constituição cultural. O significado de cada versão
suplementa um ao outro compondo uma cadeia de significações tão complexas
como a própria formação da identidade, como afirma Bakhtin:
Duas afirmações de mesmo peso sobre o mesmo assunto, desde
que se encontrem reunidas, não se podem alinhar numa fileira
como dois objetos; devem, sim, criar um contexto interno, isto é,
devem entrar em uma relação de significação. ( Bakhtin, 1983, p.
464-465).
Assim, o que percebemos é uma rede, um jogo de significações
proporcionado por um pensamento descentrado, em que outras vozes e
interpretações são incorporadas ao discurso oficial e que nos permite rever a
História enquanto legitimadora de uma Verdade última. Na epígrafe do romance o
autor já nos alerta que "O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só
existem histórias", quer dizer, essas histórias são contadas por diferentes
personagens, que possuem diferentes referências éticas, morais, étnicas,
religiosas, econômicas, proporcionando ao leitor um panorama muito mais amplo
de um momento da história do Brasil. Percebemos também que na epígrafe a
palavra "história" não é escrita com letra maiúscula, o que sustenta a hipótese de
que o discurso Histórico não é o único ou o Verdadeiro, mas apenas mais uma
história dentre as diversas que podemos extrair de um mesmo contexto. A
verdade, portanto, é que não existe uma Verdade. Nesse sentido, a proposta de
texto dialógico, inaugurada por Bakhtin, nos aponta para a possibilidade de
exprimir a identidade cultural brasileira em sua forma heterogênea de
manifestação uma vez que encontramos no texto de João Ubaldo variados pontos
de vista ideológicos, sociais, religiosos que compõem histórias paralelas àquelas
legitimadas pelo discurso oficial. No romance podemos perceber dois Brasis: um
oficial onde ecoa a fala autorizada das elites, o outro não oficial no qual é o povo
quem fala e desvela as verdades contidas no saber popular caracterizando, dessa
maneira, uma anti-história.
Essa outra voz que é desvelada pelo autor cumpre uma função
dessacralizadora da história do Brasil, uma vez que essa dessacralização
possibilita emergir do discurso oficial a diferença que marca a periferia, a margem,
51
aquilo que não está no centro. Zilá Bernd (1992) caracteriza a obra de João
Ubaldo como uma importante referência no contexto literário brasileiro e suas
relações com as obras que dominavam o cenário literário dentro do qual existia
uma valorização da historiografia tradicional. Aquela historiografia que funda uma
origem na formação de nossa literatura e apaga as diferenças. As letras que
sempre ocuparam um lugar de autoridade na formação de qualquer sociedade
elitizam seu poder legitimador para instaurar um verdade incontestável. Dessa
maneira, o relato oral advindos das camadas populares sempre foi ocultado dessa
legitimidade autoritária da palavra escrita. O que o autor de VPB faz é instituir a
autoridade da fala velada do povo oprimido que reflete sua história. Dessa forma,
quem conta a trajetória do povo e suas relações com o poder no contexto da
colonização é o próprio colonizado.
Ao contrário da função que sacraliza o discurso histórico excluindo a
diferença de uma continuidade do mesmo, já que o discurso sacralizante oculta o
outro ou inventa o outro, como já tivemos a oportunidade de mostrar no capítulo
anterior, a dessacralização possibilita o encontro com a alteridade, quer dizer,
além do reconhecimento do outro, este fala em seu próprio nome.
Ao reativar essa voz que fora excluída, o autor realça o caráter
heterogêneo da formação cultural brasileira revalorizando os componentes
indígena e africano. Os mitos, as tradições orais e os ritos religiosos que são
descritos durante a narrativa, resgatam fragmentos da história que foi velada. Os
rituais afro da Bahia, onde acontece a trama, nos terreiros de candomblé, revela o
mundo dos negros, o mundo da noite, tempo desconhecido para os brancos
aristocratas que encontram na luz do dia o tempo da produção, do trabalho. O
autor revaloriza os aspectos indígenas e negros, sem romantizá-los, folclorizando
seus rituais e dissimulando um discurso de mão única que "privilegia a dimensão
exótica da cultura do outro" (Bernd, 1983, p. 82).
Dadinha, negra que na ocasião dos seus cem anos resolve transmitir
sua sabedoria e sua verdade enquanto testemunha dos escravos, guarda consigo
a memória de seu povo e de sua tradição. Dona de uma sabedoria popular é
respeitada por sua gente e é capaz de proferir o futuro. Descendente de uma
52
linhagem de "cabocos" (caboclo na linguagem popular), neta de Vu e bisneta do
caboco Capiroba, que tinha entre seus hábitos a antropofagia, é conhecedora da
vida e da natureza e fala dentro da narrativa com a autoridade que lhe é conferida
pelo autor e pelos seus:
(...)Pestenção nas santidades: todos os santos, muntcho bem,
muncho bem, Santo Antônio, a Santa da Conceição, muntcho
bem, mas se valha mais do santo de sua cor, lembrando que
negro escravo cativo não usa nem baeta de holanda nem cordão
de ouro, tenção nas coisas, é só ver. São Solomão lutador, a reza
vai, bata parma aí, bata parma: hum, fecha-te corpo, guarda-te
irmão, na santa arca de Solomão, aprendeu? São Elesbão, São
Benedito Urumilá, Santa Figênia, vá lembrando mais, tchobém.
Olho grande, a pessoa joga água fria, reza com pinhão roxo ou
vassourinha mofina, faz cruz, faz cruz, vai fazendo cruz: Deus te
fez Deus te criou, Deus te livre das vista que mal te olhou, com
dois te botaram, com três eu tiro, com os poderes de Deus, da
Vilge Maria e de Zezus de Nazaré, seu filho concebido sem
mágoa e sem pecado. (...) (VPB, p. 76)
Capiroba, cafuso (negro com índio) nativo que habitava as terras de
Vera Cruz de Itaparica por volta de 1647, apreciava comer holandeses e
desenvolve esse gosto depois de muito provar portugueses catequistas. Os
holandeses têm a carne mais saborosa e na espreita, na tocaia de como quem
caça animais, Capiroba captura dois holandeses que foram abandonados no meio
da floresta pelos seus comandantes, a fim de engordá-los para o abate- Zernike e
Eijkman, que para o caboco são Sinique e Aquimã, pois o antropófago tem
dificuldades em distinguir como podem ter nomes diferentes, uma vez que
aqueles animais eram apenas comida:
Ah, então eram coisas diferentes, como se dava isto? O caboco
comparou os dois com um olhar experiente. Mesmo tamanho,
mesmos cabelos, mesma roupa, mesmos sons animalescos,
provavelmente o mesmo gosto. Não se podia dizer que um fosse
um aquimã e outro fosse um sinique, não havia diferença que
justificasse duas palavras. Seriam nomes então, eles tinham
nomes. (VPB, p. 51)
É interessante notarmos ainda como são marcadas as formas de
contatos culturais. O estranhamento causado pelos gritos de Zernike a fim de se
identificar, causam em Capiroba curiosidade e em um esforço de entendimento
acaba chegando à conclusão de que possuem nomes diferentes. Em
53
contrapartida, o holandês procura o mínimo de compreensão do caboco, quando
ele repete seu nome "Aquimã", na esperança que ele pudesse ser um aliado
convertido: "Seria aquele selvagem um entre os muitos que Schkopp tinha aliado
aos flamengos? Certamente seria, havia reconhecido o nome de seu
companheiro." (VPB, p. 51).
Esse estranhamento entre diferentes culturas tem seu reflexo desde a
chegada dos primeiros europeus na América e o surgimento dos primeiros textos
fundadores sobre o Brasil com sua função sacralizadora, cuja narrativa inventa
e/ou oculta o outro ilustrando uma visão estrangeira dos povos autóctones e de
suas práticas. Exemplo disso são as várias tentativas da cultura ocidental em
compreender a prática antropofágica que são rituais importantíssimos na
formação desses sociedade mas são corrompidos e concebidos pelo estrangeiro
como barbárie e violência. Essas noções racistas que são atribuídas ao outro faz
parte desse embate no impacto entre centro e periferia que constituem constantes
problematizações dentro da literatura brasileira que é formada sob a cartilha do
sistema colonial. Quer dizer, a literatura se torna um importante instrumento na
configuração e na denominação de um povo, desde o Romantismo, passando
pelo Modernismo até a literatura mais contemporânea como é o caso de Viva o
Povo Brasileiro.
A preferência do caboco pela carne holandesa em oposição à carne
portuguesa e espanhola nos remete à idéia da preferência também pelo
colonizador. Existe uma ironia na seleção empreendida pelo ato antropofágico de
eleger o melhor para se comer, quer dizer, o canibal antropófago, em rituais
cerimoniais, elegia apenas aquele homem que fosse valente e virtuoso para, ao
devorá-lo, absorver suas qualidades. A escolha pela carne flamenga trazia
satisfação e leveza ao estômago. Era mais fácil e agradável digeri-la do que a
carne sebenta de paladar rude dos verdadeiros colonizadores:
O flamengo tinha o gosto um pouco brando, a carne um tico pálida
e adocicada, mas tão tenra e suave, tão leve no estômago, tão
estimada pelas crianças, prestando-se tão versatilmente a todo
uso culinário, que cedo todos deram de preferi-lo a qualquer outro
alimento, até mesmo o caboco Capiroba, cujo paladar, antes rude,
se tornou de tal sorte afeito à carne flamenga que às vezes
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chegava mesmo a ter engulhos, só de pensar em certos
portugueses e espanhóis que em outros tempos havia comido,
principalmente padres e funcionários da Coroa, os quais lhe
evocavam agora uma memória oleosa, quase sebenta, de grande
morrinha e invencível graveolência. (VPB, p. 44)
No cercadinho onde acontecia a engorda, Sinique esbravejava, pois
não queria comer a carne de seu companheiro Aquimã, o que resultou no
desinteresse do caboco por sua carne, já que lhe pareceu escandaloso e covarde.
Vu, filha do caboco Capiroba, com iminente interesse pela presa, resolve que iria
fazer com ele o que o caboco fazia com as mulheres. Das várias visitas ao
cercadinho a caboca Vu principia uma linhagem de descendentes que é marcada
com um sinal de estrela na testa. Da prática da Antropofagia e dos seguidos
estupros ao holandês Sinique, as raças se entrecruzam dando início a mistura tão
característica da cultura brasileira.
Mais tarde, já por volta de 1827 a neta da negra Dadinha, a cativa
Vévé, que na denominação africana se chama Daê, é estuprada pelo Barão Perilo
Ambrósio. Metaforicamente, podemos entender esse estupro e o fruto que dele
resulta, a heroína do romance Maria da Fé (Dafé), no sentido em que
pretendemos empregar a Antropofagia, como símbolo da mistura de etnias e da
luta pela afirmação de um povo oprimido em seus valores culturais. A
Antropofagia, nesse sentido, é um conceito que se estabelece com a marca da
violência desde os atos antropofágicos até a colonização. Contudo, essa violência
empreendida pelos povos autóctones só são violência do ponto de vista do
colonizador. A antropofagia sempre foi um ritual cerimonial presente nas tribos
nativas. Um ritual que fazia parte das práticas cotidianas desse povos. A marca
da violência atribuída a antropofagia, portanto, é de denominação estrangeira. É o
branco civilizado quem violenta o sentido originário desse tipo de ritual, violando
seus verdadeiros atributos. Assim, o conceito que inicialmente remetia à violência
para os brancos, é transformado em conceito cultural que marca, pelo contrário, a
violência do colonizador, do senhor.
A marca da violência que é caracterizada desde o encontro entre
culturas distintas pode derivar conseqüências que apontam para dois sentidos.
55
Um que nos remete para aquele bom selvalgem, passivo, submisso, que tudo
aceita e que portanto, sucumbe, como veremos em Maíra, de Darcy Ribeiro. Em
um segundo sentido, a violência deflagra no outro a revolta, a ação, a busca de
identidade. A violência que se transforma em criação. Nesse sentido, o conceito
de Antropofagia que surge do embate cultural e é motivado pela violência do
colonizador, se torna intrumento de transformação. Quer dizer, do estupro (da
negra Daê) surge um novo marcado pela violência (Dafé) e que se torna um
elemento de transformação. Esse elemento novo, quando pensado a partir da
ótica do conceito de Ortiz, é aquele neoculturado que reside no processo contínuo
da síntese da transculturação, ou seja, no processo de transculturação o povo
autóctone recebe o colonizador com toda sua referência cultural que será
misturada à cultura local. Conseqüentemente, tanto o dominador como o
dominado perderão parte de seu acervo referencial para, a partir de toda essa
mistura, emergir um manancial de novos fenômenos sociais capazes de
transformar o contexto atual. A antropofogia, também enquanto conceito
operacional, traz consigo a necessidade de deglutir a gama de referências
culturais da descendência desse povo brasileiro para que na digestão todo esse
conhecimento seja transformado e utilizado como instrumento para ação.
A devoração do outro (o estupro), sua absorção e transformação em
uma cultura misturada nos remete a mestiça Dafé, que possui traços europeus,
como seus olhos verdes, bem como a marca de sua descendência autóctone, a
estrela na testa. Esses vestígios são traços, ou rastros, no sentido derridiano, que
demonstram como a identidade se constitui através de marcas de diferenças.
Dentro do pensamento derridiano, podemos buscar o termo différance para
ressaltarmos a simbologia dessas característica da personagem dentro desse
contexto da construção da identidade brasileira.
Este termo, différance, é de fundamental importância no entendimento
do pensamento de Derrida e nos ajudará a compreender a razão pela qual o
conceito de identidade se torna escorregadio e difícil de ser delimitado.
Nascimento (2001) atenta para o fato de que a tradução do termo francês para
português poderia ser “diferensa”, uma vez que a marca que registra a diferença
56
está na grafia, na escrita e não na fala. Não sendo uma palavra, nem um
conceito, a différance é um efeito que produz um movimento no jogo da
significação onde cada elemento dito no presente se relaciona com as marcas do
elemento passado e já guarda em si marcas de sua relação com o elemento
futuro, não deixando, portanto, se fechar em um significado último e totalizante.
Essa marca de uma inscrição “arcaica” é o rastro e este ocupa o lugar de uma
origem ou de uma não origem já que “a arquiescritura é a inscrição da marcada
diferença. Se esta é a origem do sentido em geral, isso nos revela que não existe
uma origem absoluta do sentido” (Santiago, 1976, p. 11).
A origem pressupõe uma centralidade, uma verdade última que se
manifestaria por meio de cópias, simulacros. A intenção de Derrida é pensar a
escritura sem referente, não trabalhando com o núcleo original, mas com a
“secundariedade originária”, onde se inscrevem as diferenças: “... pensar um
ponto originário, centrado, é recalcar a différance e o suplemento e, nesse
sentido, limitar o jogo das significações.” (Ibidem, p. 71)
Derrida sustenta seu argumento dentro de uma perspectiva filosófica
pautada na escritura e na tentativa de subverter aquela velha soberania da
palavra escrita em detrimento da oralidade. A nossa apropriação aqui vale-se de
que a lógica da identidade pressupõe uma origem que já não é mais passível de
ser delimitada, uma vez que Maria da Fé é filha de um Barão com descendências
européias e de uma negra cativa descendente da Caboca Vu e Sinique, um
holandês e ainda possui o ancestral cafuso, o caboco Capiroba que é uma
mistura de negro com índio. Quer dizer, a origem aqui nem é questionada, o que
se busca é a construção da identidade desse povo que foi rechaçado e
depreciado, busca-se a formação de uma consciência que passa por uma
questão nacional. O que ocorre com esse povo é uma transculturação, no sentido
em Ortiz emprega o conceito, operando trocas constantes e criando um outro
diferente. O filho de Maria da Fé, Lourenço, quando interpelado pelo pai Patrício
Macário responde:
Faço revolução, meu pai- respondeu Lourenço.- Desde minha
mãe, desde antes de minha mãe até, que buscamos uma
consciência do que somos. Antes, não sabíamos nem que
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estávamos buscando alguma coisa, apenas nos revoltávamos.
Mas à medida que o tempo passou, acumulamos sabedoria pela
prática e pelo pensamento e hoje sabemos que buscamos essa
consciência. (VPB, p. 607)
O núcleo da narrativa de João Ubaldo se encontra na questão do povo
brasileiro. A partir dos discursos promovidos pelas elites dominantes e pelos
integrantes de uma Irmandade fundada na Casa da Farinha, podemos distinguir
duas denominações para o povo. Segundo Amleto Ferreira, que pode representar
a burguesia ascendente da época e esconde sua descendência mestiça
ilustrando toda hipocrisia e mediocridade dessa classe, o povo:
Seguramente não é essa massa rude, de iletrados, enfermiços,
encarquilhados, impaludados, mestiços e negros. A isso não se
pode chamar um povo, não era isso o que mostraríamos a um
estrangeiro como exemplo do nosso povo. O nosso povo é um de
nós, ou seja, um como os próprios europeus. As classes
trabalhadoras não podem passar disso, não serão jamais povo.
Povo é raça, é cultura, é civilização, é afirmação, é nacionalidade,
não é rebotalho dessa mesma nacionalidade. (VPB, p. 245)
Esse segmento da sociedade, da qual Amleto Ferreira faz parte,
representa os interesses da elite e não tem a menor intenção de dar voz ou lugar
dentro da sociedade aos que fazem parte e ajudam a construi-la. Amleto é um
personagem que encarna passivamente um estilo importado de vida. Aqui
podemos recuperar as prerrogativas do Manifesto da Poesia Pau Brasil que vai
contra toda elite de "consciência enlatada". Os letrados da época assimilavam e
reproduziam palavras mal digeridas da cultura estrangeira e velavam, imbuídos
de uma legitimidade arrogante, a presença de tudo aquilo que era nativo no
Brasil. A passividade com que o estrangeirismo era reproduzido entre essa
classe, os modos de vida superluxuosos, a desigualdade, a escravidão, tudo isso
desperta um sentimento de que é preciso fazer justiça. Toda essa consciência
gerada a partir do ato antropofágico de devorar o outro produz um diferente capaz
de transformar essa continuidade.
Bonifácio Odulfo, filho de Amleto Ferreira e sua esposa Henriqueta,
filha do Barão de Pirapuama, quando chegam à Portugal comentam como é
maravilhosa a vida em uma “verdadeira” civilização: "Como é bom andar por ruas
58
decentes, sem jamais ver um negro ou um esmolambado como na Bahia, entre
pessoas que falam corretamente e está a ver-se que têm um mínimo de cultura,
até as mais pobres." (VPB, p. 469). A maneira de falar da brasileira, num estilo
português, retrata essa assimilação importada da consciência de que trata o
Manifesto de Oswald de Andrade: "Já falas como uma portuguesa, é admirável
como tens talento para essas coisas!(...) Mas nunca falei lá muito à brasileira."
(Ibidem) e ainda sugerem que o hábito é de família: "Isto é verdade, sempre
tiveste uma maneira de falar muito distinta, foi uma das coisas que primeiro me
atraiu em ti. E teu pai, o velho barão, fala exatamente como um português"
(Ibidem). Continuando o diálogo do casal, relembram a boa formação do barão:
"Disto ele sempre fez questão. Costuma dizer que, pela voz, sempre saberão que
ele nunca andou no meio dos pretos e que se formou em Coimbra."(Ibidem). A
questão da língua é fator também importante nesse processo de aculturação pela
qual passa o povo autóctone quando colonizado. Em um discurso de exaltação do
povo brasileiro, Maria da Fé argumenta:
Ninguém nos perguntou nada, até o dom da linguagem vocês
querem nos tomar, pela ignorância e pela tirania da fala que
empregam, e que é a única que consideram correta, embora não
sirva senão pra disfarçar a mentira com guisas de verdade e
ocultar o nosso espírito. (VPB, p. 564)
A valorização de uma língua tipicamente brasileira, foi defendida
também pelos Modernistas. Mário de Andrade, em carta resposta a Carlos
Drummond de Andrade sugere: "(...) e lá vai toda curvada coxeando. Gosto do
coxeando, tão nosso, tão mais expressivo de movimento continuado que o a
coxear dos portugueses... “(Andrade, 1982, p. 22), e ainda: “acolá, Que palavra
horrível! Só se emprega em livros didáticos. Deixemos isso para Portugal.”
(Ibidem p. 20). Mário defende que a solidariedade era um meio de absorver a
cultura popular. “Puxar conversa” era para ele uma forma de apreender
solidariamente os “erros” que a escola européia julgou serem abomináveis. “A
contribuição milionária de todos os erros!”, afirma Oswald em seu manifesto.
Assim, os modernistas operavam um descentramento que contribuiu na
configuração das várias etnias que explodem a almejada cultura nacional em
59
vários estilhaços. O romance histórico, de João Ubaldo, retrata momentos
decisivos em nossa sociedade, de modo que o discurso proferido pelas classes
dominantes em prol de uma sociedade branca, acorda sentimentos nas classes
mais pobres.
É dessa classe que uma outra noção de povo surge. A partir do olhar
dos subalternos, a origem do povo brasileiro se encontra na reunião de negros
que compartilham de uma mesma tradição, de uma mesma língua. Na canastra
de Júlio Dandão existem segredos capazes de revelar a identidade desse povo e
em uma reunião na Casa da Farinha, lugar próximo à Senzala da Armação do
Bom Jesus, é fundada a Irmandade do Povo Brasileiro que tem como saudação:
"Viva nós!, Viva o povo!".
Maria da Fé, cobiça fazer justiça depois de ter presenciado o
assassinato de sua mãe Vevé e argumenta que é o povo quem trabalha, quem
sustenta as regalia dos senhores, criando animais, cozendo, tecendo e que,
portanto é o povo quem deve mandar em sua terra. Dafé volta para casa em
Itaparica, depois de ter passado alguns anos no internato da Professora D.
Jesuína aprendendo os ofícios designados às mulheres na época além do estudo.
No dia em que Vevé havia morrido, Dafé insistira para ir pescar com a mãe, ofício
que a cativa fazia muito bem, mas era discriminada. Admirou muito a mãe
naquele dia por tamanho talento que devia ser empregado em tão digno trabalho.
Depois daquele dia em que sua mãe foi violada e morta, Maria da Fé se entregou
a uma vida dedicada a procurar justiça. O orgulho de seu povo, de sua terra, de
sua histórias cresciam junto com a curiosidade de saber mais de suas origem, de
suas tradições. Nego Leleu responde a uma indagação da neta:
Caboco Capiroba? E nunca teve nenhuns cabocos Capirobas,
menina, nunca teve nada disso, isso é tudo lenda! Mas será
possível que eu te mando para escola com pensionato, te boto
com a melhor professora, te pago todos os livros para que tu
tenha conhecimento e tu agora resolve crescer como rabo de
cavalo, desaprender, se preparar pra ser uma nega véia, em vez
de gente? Que caboco Capiroba, nem caroba capiboca! É pra isso
que tu estudou? Foi pra isso? ( VPB, p. 377)
É interessante perceber como as mulheres tem uma função decisiva no
60
romance. Desde Vu que mantém sob seu domínio o corpo do holandês, passando
por Vevé que embora marginalizada exerce uma função predominantemente
masculina, até a heroína Maria da Fé. O papel dessas mulheres na saga aponta
para um questionamento da sociedade patriarcal que sempre imperou no sistema
ocidental e se dirige para a construção de uma identidade revolucionária. A
libertação do povo oprimido começa a partir de Maria da Fé que carrega consigo
as marcas dessa opressão. A moça, que já estava predestinada à luta desde as
palavras proferidas pela negra Dadinha, encontra sua missão depois da violenta
morte da mãe.
Vu é quem inicia a subversão da história da dominação quando decide
que o holandês "Sinique" iria ser utilizado para seu prazer e essa subversão
continua na revolucionária figura de Maria da Fé, que através de seus feitos torna
possível recuperar uma tradição autóctone que vem desde Capiroba e suas
práticas antropofágicas. Utilizando mais uma vez dos preceitos da antropofagia
oswaldiana, podemos utilizar de suas argumentações sobre o que seria o
Matriarcado de Pindorama, que diferentemente do patriarcado, subverte os
valores impostos por uma cultura ocidental dominante, quer dizer, o ritual primitivo
é resgatado por Oswald de Andrade a fim de reelaborar o valor oposto e
transformá-lo em valor favorável. A partir da leitura feita por Lúcia Helena (1985)
de um importante artigo de Oswald, A crise da filosofia messiânica, texto que trata
da antropofagia em seu processo ritualístico e o modo de pensar o mundo a partir
desse primitivismo, que marcaria uma fase constituinte de toda humanidade,
podemos entender o que é o Matriarcado de Pindorama. Embora Lúcia Helena
ressalte uma certa ingenuidade na leitura de Oswald e suas influências marxistas,
freudianas, entre outras, nosso interesse aqui é demonstrar como se dá a
subversão dos valores impostos pelo patriarcalismo ocidental dentro da sociedade
que Oswald preconizou como sendo um Matriarcado.
Enquanto a cultura patriarcal é de designação messiânica, cuja
sociedade está dividida em classes e o poder é pátrio, ou seja, o poder se
concentra na autoridade paterna, que é a lei maior da família, o Matriarcado
antropofágico o filho é de direito materno e a sociedade se constitui sem divisão
61
de classes nem tão pouco possui Estado. O solo no Matriarcado é uma
propriedade comum e a herança é tupi, já no Patriarcado a propriedade é privada
e a cultura messiânica traz consigo uma ordem econômica que implica na
escravização de seu povo. A posição defendida por Oswald é a de negar essa
cultura civilizada cristã e reconstruir o projeto cultural nativo a partir da devoração
da cultura colonizadora, quer dizer, totemizar o tabu.
No artigo de Oswald, a interpretação do pensamento selvagem e a
interpretação do papel do intelectual nas questões culturais brasileiras, são
entrecruzados. Dessa forma a letra do matriarcado surge como uma palavra
revolucionária, antipatriarcal, como discurso de uma prática textual fágica. A
paródia oswaldiana devora a palavra do colonizador, do pai e subverte o discurso
instituído, operando uma sacralização às avessas.
Oswald, a partir de uma devoração positiva, pretende extrair o homem
natural tecnicizado da cultura messiânica produzida pelo homem civilizado e da
cultura antropofágica produzida pelo homem primitivo. A servidão humana
transforma o Matriarcado em Patriarcado e origina a divisão de trabalho e a
organização social em classes. Cabe à técnica resgatar o homem da crise que a
sociedade de classes impõe, restituindo a idade do ócio, ou seja, o homem é
libertado do trabalho pela máquina e Oswald prevê, com isso, a volta da era
Matriarcal, a sonhada sociedade sem classes. A técnica seria usada como forma
de libertar o homem do trabalho alienante.
Assim, a heroína do romance procura libertar seu povo dessa
sociedade que segrega e exclui. Seu papel é o de instaurar uma sociedade mais
justa, na qual seus filhos possam sair da alienação empreendida pelo trabalho
escravo. Maria da Fé é a mãe dessa pátria. Nesse sentido, a partir da procura por
justiça empreendida por essa personagem na narrativa de Viva o Povo Brasileiro,
a fala velada do outro oprimido (do índio e do negro) é manifestada. Assim
também acontece quando na narrativa dos rituais e manifestações populares a
história desses povos é ilustrada. Os rituais descritos pelo autor, que denotam
forte tendência mítica, são uma forma narrativa alternativa de retratar esse outro
Brasil com uma história não oficial. O maravilhoso enquanto estratégia narrativa,
62
aproxima os espaços reais com o passado. O maravilhoso remete à fé, à
esperança do povo da terra e através dessa crença "o povo transpõe
naturalmente suas noções de relatividade e de maravilhoso em sua visão da
realidade" (Alexis apud Bernd, 2003, p. 83)
Na primeiro encontro na Casa da Farinha, onde Júlio Dandão,
Feliciano, o negro Budião e Zé Pinto se reuniram, o clima de mistério e fantasia
em que passa a cena, mostra-nos como Dandão é uma figura que representa
aquela função de transmitir a oralidade, a figura que detém o conhecimento, os
segredos daquele povo. Sua figura pode ser comparada àqueles velhos africanos
que possuíam também a sabedoria de seu povo e a transmitia de geração à
geração. Dandão fumava um cachimbo tão extraordinário nunca antes visto pelos
outros três vistantes. A fumaça azulada que saia de todos os furos de sua cabeça
o envolvia e criava um clima ainda maior de magia. Budião, Zé Pinto e Feliciano
ainda não entendiam o que faziam ali diante daquela figura emblemática, mas
sabiam que entenderiam. A passagem de conhecimento nesse momento é
totalmente relacionada com a crença, com a fé. Dandão começa falando da
importância de reconhecer um ao outro, reconhecer os seu, para que possam
agir, sem se curvar. Fala também da importância da saudação dentro desse
contexto de reconhecimento mútuo e repentinamente revela que a saudação
deles é: "viva nós!". Continuando com sua sabedoria, Dandão fala de como
devem ser:
O que devia ser não é a mesma coisa para senhores e escravos.
Sendo nós outros que não eles, explicou, então o que deve ser
para nós não deve ser para eles e assim cabe a nós ser o que
achamos que devemos ser, porque somente nós é que pensamos
que devemos ser isso que queremos ser. E comentou ainda,
exibindo os dentes quase alegremente, que no tempo de seus
ancestrais se matava gente ordinária para que fosse levar recados
ao outros mundos. (VPB, p. 209).
Diz que vai mostrar um segredo guardado por ele sozinho durante
muito tempo, pois todos que sabiam desse segredo já haviam morrido e só
sobrou ele com essa missão de guarda. Vira a mão para trás e pega um surrão
que continha dentro dele uma canastra de madeira e metal que abriu e enfiou sua
63
mão dizendo que dentro daquela caixa havia conhecimentos ainda incompletos:
Estes segredos- disse sem tirar a mão da tampa- são parte de um
grande conhecimento, conhecimento este que ainda não está
completo, mesmo porque nenhum conhecimento fica completo
nunca, faz parte dele que sempre se queira que ele fique
completo. E faz parte dele também, por ser segredo e somente
para certas pessoas, que cada um que saiba dele trabalhe para
que ele fique completo. Se todos trabalharem, geração por
geração, este é o conhecimento que vai vencer. (VPB, p. 211)
Enquanto falava e contava os segredos, Júlio Dandão ia crescendo,
ficando cada vez maior entre seus rolos de fumaça, ficou também de todas as
cores e expressões, virou uma paisagem e puxou seguido um segredo atrás do
outro.
Outro interessante momento que o autor recorre ao maravilhoso e
explora a crença e a fé dos personagens que estão em busca de conhecimento é
quando Patrício Macário está na casa de Rita Popó à procura de Maria da Fé e
em busca de compreender suas origens. O ritual pelo qual passa Patrício Macário
depende muito de sua fé, de sua crença nas diversas verdades do mundo. Sua
experiência de experimentar o peixe Baiacu- peixe venenoso de sabor inigualável
e carne alvíssima, comida de rei, mas que se não tiver o devido preparo, pode
matar- foi tão mágica e tão reveladora como o foi a revelação dos segredos na
Casa da Farinha. Neste momento da narrativa o tempo e o espaço são suspensos
e Macário é capaz de conhecer seu filho, saber que Maria da Fé havia virado
lenda e ainda receber de herança antigos objetos que contavam sua história,
inclusive a velha canastra que passou pela heroína e agora deveria ficar com ele.
E em seu transe:
Alçou-se no ar em direção ao Infinito, onde se achou num lugar
escuro em que todas as cores tinham cores, não havia calor mas
não fazia frio e todas as distâncias podiam ser cobertas pelo
pensamento. Pensamento este que moldava tudo, embora não
como queria, mas como devia, embora o que devia fosse o que
quisesse, embora, indo para onde queria, fosse para onde era
necessário que fosse. Ah, meninos e meninas, que coisas tão
bonitas estão aqui passando, por que não se vêem essas coisas?
Me devolveram os olhos de menino e assim posso ser sábio. Me
deram asas e assim posso navegar entre as estrelas e pressentir
o Absoluto e ter Fé, não só por dom como por conquista. As
64
almas, as almas, as almas! As almas! Eu! Nós! Todos! Eu! As
almas! Nós e eu! A alma! (VPB, p. 609-610)
Explorando esse caráter do maravilhoso, o escritor resgata fragmentos
da história contida no inconsciente da comunidade que se revelam através desse
saber intuitivo contido nas tradições orais e nos mitos. A substituição da voz do
narrador pela voz do próprio personagem, dessacraliza o saber legitimado
revelando um outro saber. As diversas incorporações por entidade da cultura do
Candomblé trazem para a cena o conhecimento antepassado que deve perpetuar
para as próximas gerações. O caboco Capiroba e o caboco Sinique que falam
através dos negros iniciados, como, por exemplo, Dadinha, proferem discursos de
seu povo, de conhecimento popular:
Veneno, não comer. Peçonha, não comer nem beber. Quizila, não
comer. Peixe niquim não tocar, peixe beatriz não pisar. Água de
tofo, velenho com memendro, cocó, tramonha, trovisco, baiacu,
tudo, tudo, minha filha. Rosangar...Coitado! Não comer na má
companhia, tento nisso! Não comer comida feita poramigo que foi
inimigo, muita atenção! Ah! Ah! Ah! Tuí-tuí-tuí!santo Calendê
evém aí, meu povo, é no dia 23, esse menino, faz o edê do
homem, esse menino, lobara Exu Lonan, vém cá, vem cá, Aloriê!
(VPB, p. 75)
Ainda temos outras recorrência do autor ao maravilhoso quando Zé
Popó está na guerra do Paraguai e sua visão da batalha é ilustrada através da
convocação dos Orixás para lutar, percebemos que seu referencial simbólico está
pautado em sua iniciação com o Candomblé, fonte de sua cultura. Mesmo a
guerra de homens não sendo deles, os Orixás são convocados por Oxalá, pai dos
homens e que tudo vê. Oxóssi, caçador da madrugada, rei das matas, senhor da
astúcia, imbatível no arco e flecha; Xangô, senhor do raio, atirador de pedras,
Ogum, senhor da ferramenta, singular no combate, cujo nome é a própria guerra;
Iansã, senhora dos ventos e das tempestades, rainha dos espíritos, valente e
ousada como os tufões, de bravura irresistível; todos invocados para ganhar
aquela batalha de homens.
Esse encontro entre culturas distintas necessita de uma negociação em
ambas as formas de manifestação para que possam coexistir no mesmo espaço.
Dessa forma a identidade do povo brasileiro vai sendo "forjada a partir da
65
reconciliação e negociação das diferentes formações culturais que estão em sua
origem." ( Bernd, 2003, p. 98)
Outro personagem interessante para discutirmos a questão da
identidade é Patrício Macário que no reencontro com suas raízes descobre sua
verdadeira feição. Filho de Amleto Ferreira, portanto mestiço, o personagem vive
das glórias conquistadas na Guerra do Paraguai e adquire patente apenas pelo
seu prestígio. Numa noite inesperada se depara com um terreiro onde os negros
realizavam seus rituais. Curioso com o acontecimento resolve observar e, sendo
reconhecido pelo companheiro de guerra Zé Popó, se aproxima do grupo.
Descobre, assim, que possui a mesma alma da Caboca Vu e que era sua
predestinação encontrar-se com a alma que fora do caboco Capiroba e encarnara
em Maria da Fé. Os dois se amam e cada qual segue seu caminho. A partir daí,
P. Macário cada vez mais não concorda com as práticas realizadas pelos
governantes. Numa discussão com seu irmão Bonifácio Odulfo contesta:
Não se trata de monarquia ou república, trata-se de perceber que
não vamos eternamente poder abafar a voz dos despossuídos,
oprimidos e injustiçados, que são a grande maioria, através de
ações militares. Trata-se de estabelecer um regime que, em lugar
de procurar solidificar as vantagens de seus sequazes no poder,
procure compreender que o país só poderá ser grande na medida
em que não mantiver seu povo marginalizado, escravizado,
ignorante e faminto. (VPB, p. 581)
Decide, assim, voltar para a ilha de Itaparica, terra onde ele havia
nascido, procurar por um vestígio que o levasse até seu passado. No terreiro de
Rita Popó ele chega e a negra está disposta a ajudá-lo desde que
compreendesse que o mundo pode ser visto de muitas formas e que a magia não
é feita de fora pra dentro, mas de dentro pra fora, por isso é importante ter fé. O
ritual pelo qual passa Patrício Macário é mágico e pouco a pouco ele vai
adquirindo uma sabedoria a partir daquela experiência de encontro consigo
mesmo. Descobre que tem um filho com Maria da Fé e que ela morrera, mas
deixou viva na memória de seu povo seus ensinamentos. Recebe de herança da
heroína a velha canastra que continha um vasto conhecimento adquirido durante
anos e que só pode ser daquele que mereça tamanha sabedoria.
66
Na festa de seus cem anos, Patrício Macário é homenageado por toda
Itaparica, onde se recolheu aos seus estudos e se dedicou em escrever suas
memórias. Sua história pessoal, se chegasse ao domínio público, revelaria uma
história muito diversa daquela que é cultuada pelo discurso oficial. Ao final de
suas palavras de agradecimento que mal davam para se ouvir, Patrício Macário
morre sem saber, contudo, que sua canastra havia sido roubada. A sua violação,
no entanto revela um futuro ainda muito sangrento e cruel para o povo que sofre
desde os primórdios de sua história. À procura de sua identidade, Macário acaba
por descobrir todo conhecimento que o povo de onde descende acumulou. Na
descoberta de que sua alma era genuinamente nativa, a alma da caboca Vu, o
personagem se entrega às suas raízes e se dedica à cultuá-las.
A tese das almas, que é retratada no livro, nos revela que essa almas
que pairam à espera de serem reencarnadas novamente são as almas do povo
brasileiro. Mesmo não possuindo
memória,
elas
acumulam
em
si
os
conhecimentos adquiridos em cada encarnação. Maria da Fé, que possui a alma
do velho caboco Capiroba, dedica sua vida a fazer justiça e para encontrar o
espírito do homem. Sua alma possui um conhecimento que a impulsiona em
busca de seus objetivos:
No caso dela (Mª da Fé), o trabalho era lutar contra essa
opressão e essa injustiça, procurar compreendê-la e compreender
quais os remédios contra ela e como administrá-los. No caso dela,
mais ainda, seu sentido de responsabilidade a levava a entregar à
essa luta não a vida, mas a alma. Tampouco sabia como isso
acontecia, mas sabia, era esse o compromisso dela. (VPB, p. 511)
Observamos também, que a alma do caboco Sinique, embora tenha
pertencido a um holandês, guarda a memória da formação do povo brasileiro em
toda sua miscigenação. Caboco respeitado e conhecido nos terreiros de
candomblé, Sinique possui o conhecimento do passado e o divulga; passado este
que deve sempre ser lembrado e cultuado.
Esse outro discurso empreendido pelo segmento oprimido da nossa
sociedade nos mostra que à margem da cultura letrada está impressa uma outra
história que foi gerada em meio a esse contexto de dominação. Naquele espaço
que nos aponta para raças cruzadas e populações de diversas origens a ponto de
67
sua linguagem ser tão mestiça quanto seu povo, como nos mostra João Ubaldo
Ribeiro. Um ritual de candomblé, assim como a ladainha à Virgem Maria, são
manifestações populares, não importando sua raiz étnica ou suas filiações
remotas, mesmo porque origem não é determinação.
Contudo, é apenas a partir do século XX que o imperialismo ocidental,
em um surto de autocrítica, repensa a arte popular e começa a olhar com simpatia
as formações simbólicas do homem colonizado.
O percurso desse olhar que surge também enquanto discurso crítico e
pode ser entendido a partir do conceito que estamos propondo nesse trabalho- a
Antropofagia. É no limiar da cultura letrada e da razão européia que surge a
necessidade de se afirmar enquanto país dotado de tradição, história e cultura.
A metafísica ocidental sempre ocupou o lugar central no que concerne
ao discurso racional e foi divulgada pela Europa como verdade absoluta e última.
Essa filosofia que sempre foi imposta para o mundo começa a ser contestada a
partir da passagem do século XIX para o século XX e das transformações que daí
surgiram. O descentramento, no sentido derridiano, possibilita a quebra dessa
razão binária e lógica na qual existe uma hierarquia de valores. No caso da
América Latina, a abertura possibilitada pelo descentramento promove variados
discursos críticos que colaboram na construção de um imaginário nacional e
cultural agora produzidos a partir das vozes dos países colonizados. Ao ser
construída uma realidade utópica para nossa existência, o discurso latinoamericano surge para mostrar a realidade “real” a partir do nosso olhar enquanto
colonizados.
Nesse processo de reivindicação de um lugar próprio construído a
partir da experiência de trocas culturais possibilitadas pelo processo de
colonização, o discurso latino-americano se constitui como um segundo texto que
necessariamente transcende aquele primeiro escrito pelos colonizadores. Dessa
forma a tradução do texto estrangeiro, do significante atribuído pelo autor
alienígena, é sempre revestido de uma visão global e nada inocente de forma que
aquele significante avança para um novo significado. A antropofagia, portanto,
nos permite deglutir esse texto oficial escrito pela massa letrada, digeri-lo
e
68
transformá-lo, de modo que a história é relida através do olhar do colonizado.
Em VPB, João Ubaldo nos mostra claramente esses dois discursos em
constante negociação, na coexistência das culturas, dos valores, da religião, das
etnias, da economia, revelando a voz das camadas que foram silenciadas durante
muito tempo em nossa história.
Em uma última perspectiva de análise do romance, podemos ainda
travar uma discussão em torno da construção do herói. A construção de uma
nação passa sempre pela afirmação de uma identidade nacional na qual
parâmetros simbólicos funcionam como “provas” da existência desse Estado, tais
como o Hino, a bandeira e os heróis que ajudam a construir uma grande Nação.
No livro de Ubaldo, a necessidade de se criarem novos heróis é ilustrada já nas
primeiras páginas a partir da morte acidental do alferes José Francisco Brandão
Galvão. Logo depois, em uma cena que desmascara o futuro Barão de
Pirapuama- que virou herói da Independência depois de ter sido encontrado ferido
por um comandante que não sabia que quem o salvara fora um negro que agora
se encontrava sem língua, sem voz, para revelar a verdadeira história- nos mostra
a construção de um herói branco, reconhecido pelos seus “grandes” feitos, como
nos aponta Zilá Bernd:
(...), a origem espúria da heroicidade de Perilo Ambrósio, o Barão
de Pirapuama, é desmascarada, numa manobra explícita do autor
de violar os textos históricos fundadores da nossa nacionalidade
os quais ignoram deliberadamente a participação de outras etnias
que não a branca nos feitos épico. (Bernd, 2003, p. 89)
Ainda pensando sempre em um contradiscurso que revela uma outra
face da história, a heroína Maria da Fé que advém das camadas populares e que
é vista como desordeira e bandida, procura reunir seu povo em prol da justiça e
da liberdade, revalorizando e reativando suas raízes e o orgulho de ser brasileiro.
Maria da Fé, que está disposta a dar sua alma por essa luta, revela um lado
antagônico dentro da narrativa, ela revela uma alternativa para a construção
identidade brasileira. Pautado em tendências mítica, que fazem da heroína uma
lenda viva, João Ubaldo exalta valores tais como dignidade, memória coletiva, o
espírito de revolta e luta contra a opressão em contraposição aos moralismos
69
oriundos das elites e negatividades como a falsidade, corrupção, alienação
cultural, mentalidade colonizada.
Assim, o livro capta as diversas contribuições das camadas populares
brasileiras que ajudam a forjar uma identidade cultural tão diversa e múltipla que,
ilustrado pelo fim mítico e inacabado da história, quando a canastra é aberta pelos
ladrões, fica evidente a incompletude da identidade e seu eterno movimento de
devir. O mesmo movimento constante que define a transculturação, quer dizer,
essa arqueologia da formação do povo brasileiro dos diversos grupos e
referenciais que se mesclam e estão sempre incompletos, como o próprio
conhecimento guardado na canastra.
70
CAPÍTULO III- ANTROPOFAGIA E TRANSCULTURAÇÃO
NARRATIVA: FORMULAÇÕES DE IDENTIDADE
Eu sou dois. Dois estão em mim.
Eu não sou eu, dentro de mim está ele.
Ele sou eu.
71
As variantes na concepção de identidade, com que nos deparamos
até agora e que giram em torno de sua construção dentro de diferentes contextos,
nos revelam como a Antropofagia, enquanto conceito teórico, se torna capaz de
marcar um lugar crítico no panorama mais amplo que se configura na
contemporaneidade. Entretanto, esta maneira de conceber a identidade cultural
brasileira, que neste trabalho se alia ao conceito de transculturação para formular
análises acerca do embate cultural, esbarra em obstáculos de diferentes níveis
para o uso irrestrito desse conceito de herança Modernista.
Do Modernismo nacionalista até à contemporaneidade, surgiram
diferentes abordagens que poderiam abranger o campo da crítica cultural. A partir
da década de 1960-70, o campo dos Estudos Culturais cresceu trazendo novos
paradigmas e leituras que pudessem argumentar em favor da produção cultural
dos países periféricos. No Brasil, conhecemos o termo “Entre-lugar”, de Silviano
Santiago, desenvolvido em 1978 que procura marcar um lugar crítico dentro da
cultura global. Preferiu-se o conceito de Antropofagia, no presente estudo, por
este termo ter origem na antropologia e, com isso, poderemos verificar o percurso
rasurado
na
formulação
dessa
concepção
que
abrange
as
questões
antropológicas, culturais e, até certo ponto, literárias do panorama brasileiro. A
base do pensamento antropofágico está construída sobre os pilares da
antropologia social, dentro da qual a questão indígena é abordada. A questão
indígena é bastante complexa, pois trata da cultura dos povos autóctones,
genuinamente nascidos na terra e que até hoje se encontram, de certa maneira,
segregados territorialmente. A temática indígena sempre foi abordada na história
literária do Brasil e, por esse motivo, buscamos em Maíra, livro que data de 1976,
um romance que pudesse falar dos índios na contemporaneidade e que tratasse
de seus rituais e de seus mitos, no encontro entre suas tradições e os embates
decorrentes da modernidade.
Não poderia ter melhor autor que Darcy Ribeiro, um antropólogo que
dedicou grande parte de sua vida, além de outras funções políticas, ao estudo
aprofundado de tribos indígenas brasileiras. O livro é o primeiro romance do autor
e efetua justamente a passagem da antropologia à literatura. Dessa forma,
72
encontraremos entre os rituais empreendidos pelas tribos a base de toda
formulação teórica da Antropofagia. As cerimônias sagradas, o culto aos
antepassados e às velhas tradições são relatadas pelo autor que, sendo
antropólogo, ilustra com toda beleza de imagens a devoção do povo mairum à
sua cultura. Em determinados momentos, a narrativa nos mostra a voz de Isaías
que se confunde com a própria voz de Darcy Ribeiro, como uma estratégia
narrativa que diminui a distância entre a fala do narrador-escritor da fala dos
personagens, “provocando uma maior unidade lingüística e artística” (Reis, 2005,
p. 472). Podemos perceber essa aproximação no capítulo intitulado “Egosum”,
onde é contada uma experiência do antropólogo quando teve contato com a tribo.
O velho Anacã é trazido para o mundo a partir da voz de Darcy que remonta
episódios de sua passagem na tribo e da amizade que cultivou com o chefe
indígena:
Mas nada disso vem ao caso. O importante aqui, agora, é lembrar
como cheguei a ver o Avá que era bororo e se chamava Tiago.
Assim o conheci. O vi uma vez, emplumando os ossinhos da filha
morta de bexiga. Estava muito consolado, declinando, no
compasso certo, uma ladainha em latim. Anacã, ao contrário,
nada tinha com funerais, nem era bororo, mas caapor.
Companheirão muito querido. Era baixinho, gordo, risonho. O
mais parecido com um intelectual que eu encontrei num índio.
(Maíra, p. 167)
Em Maíra, a narrativa aponta para outros caminhos no exame dos
processos identitários. O romance do antropólogo é pautado em uma desilusão
com a crise subjetiva pela qual passa Isaías e a construção identitária se torna tão
cindida a ponto de resultar na morte simbólica do protagonista e de todo seu
povo. Essa fragmentação é compreendida como uma impossibilidade de resolver
os problemas de dependência cultural no âmbito da narrativa. A escrita, em
Maíra, traz consigo a complexidade do que é a própria constituição da identidade
cultural brasileira. Nesse sentido, a utilização do conceito de “transculturação
narrativa”, de Angel Rama, será empregado aqui para analisarmos esse texto que
abrange uma problematização dentro das quais se fazem presentes as narrativas
latino-americanas. Se compreendermos a América Latina, espacialmente
periférica e temporalmente com uma entrada tardia na modernidade, podemos
73
depreender dessas culturas um papel de contestação perante a cultura
hegemônica. Assim, Rama procura rechaçar a literatura regionalista, de feição
utópica, exaltando uma literatura que pudesse exibir a renovação que a
modernidade exigia. Ele utiliza como exemplos quatro escritores latinoamericanos: Arguedas, Guimarães Rosa, Garcia Marquez e Juan Rulfo, que
procuraram trazer para o campo da narrativa as particularidades regionais ao
mesmo tempo em que tratam de temática universais.
A inventividade e a criatividade dos povos colonizados da América
Latina originam o que Angel Rama chama de transculturação narrativa. Com o
deslocamento do conceito antropológico/cultural elaborado por Fernando Ortiz,
para o âmbito literário, Rama introduz um conceito capaz de formular análises
dentro daquelas narrativas que decorrem do embate cultural. Rama (1989) estuda
os impactos do processo de modernização nas sociedade latino-americana e
como essas sociedade se adaptam, no âmbito literário, a essa modernização. Os
sistemas literários utilizam estratégias narrativas para construir um texto que seja
capaz de depor sobre os impactos causados pelo embate entre culturas, a que
ele chama de transculturação narrativa. Essas narrativas, portanto, são soluções
criativas exercidas pelos povos que passam pela transculturação numa tentativa
de estabelecer valores que favorecem a formação de sua identidade.
A transculturação, termo inaugurado por Fernando Ortiz, em 1940,
vale-se de três processos decorrentes do encontro entre culturas distintas.
Primeiro, na aculturação, o sujeito perde parte de suas referências simbólicas,
para depois, na desculturação adquirir novos acervos da cultura estrangeira e, no
rearranjo de todo esse processo se transformar em um neoculturado,
completando toda síntese da transculturação. A partir desse conceito de origem
antropológica/cultural, Rama introduz o conceito de "transculturação narrativa" no
âmbito literário. Dessa forma, a narrativa neoculturada é o resultado do processo
de acomodação dos referênciais estéticos das vanguardas aliados a um tipo de
vocabulário nativo, criando uma nova narrativa que é própria de determinada
cultura. Essa narrativa neoculturada se vale de três estratégias na produção de
uma literatura independente: a língua, a estruturação literária e a cosmovisão. A
74
mudança e o uso da língua são utilizados no fim do século XIX e início do XX,
como uma prova, um instrumento de independência. Aliando a forma culta e a
forma popular, quer dizer, utilizando a linguagem autóctone e encontrando um
correlato na língua oficial, a fala popular é legitimada e registra, dessa forma, a
diferença no idioma. A confiança na língua própria nativa permite que o texto
literário ganhe uma organicidade artística, quer dizer, utilizando os aspectos
internos da originalidade regional, faz surgir um novo independente que está em
compasso com as aspirações modernizantes da época. Em conformidade com as
prerrogativas vanguardistas o universal é associado ao local:
Si el principio de unificación textual y de construcción de una
lengua literaria privativa de la invención estética, puede responder
al espíritu racionalizador de la modernidad, compensatoriamente
la perspectiva lingüística desde la cual se lo asume restaura la
visión regional del mundo, prolonga su vigencia en una forma aun
más rica e interior que antes y así expande la cosmovisión
originária en un modo mejor ajustado, auténtico artísticamnete
solvente, de hecho modernizado, pero sin destrucción de
identidad. (Rama, 1989, p. 43)
A idéia de “plasticidade cultural” empreendida por Rama pode se
conformar ao pressuposto antropofágico que viemos desenvolvendo ao longo do
trabalho, ou seja, segundo Lívia de Feitas Reis (2005), existem critérios de
seleção empregados pelas sociedades latino-americanas na tentativa de criar
narrativas que não privilegiem uma cultura em detrimento da outra, uma vez que a
constituição cultural do povo latino é decorrente justamente dessa mistura de
etnias:
Para Rama, esta seleção obedece a um comportamento peculiar
das sociedades latino-americanas que, ao se tornarem
independentes, no processo de formação de sua identidade,
procuraram selecionar justamente os elementos que as
sociedades européias e americanas postergaram em seu
processo evolutivo, destacado-os de seus contextos para os
fazerem seus, numa operação arriscada e abstrata. (Reis, 2005,
p. 471)
A transculturação observada no embate entre culturas e o processo de
devoramento e mistura proporcionado pela Antropofagia, enquanto conceito
capaz de operar análises acerca dessa transculturação, nos mostra como
75
podemos perceber, na literatura, a assimilação e transformação de referenciais
estrangeiros no âmbito dos processos simbólicos nativos. Esse atrito cultural, de
onde decorrem perdas, seleções, assimilações e o remanejamento cultural,
possibilita aquilo que Ortiz denomina neoculturação. É o caso de Maíra (1976), de
Darcy Ribeiro que deixa entrever em seu texto as marcas causadas pelo embate
cultural e ainda nos mostra como a Antropofagia opera como uma metáfora da
destruição ao contrário do romance de João Ubaldo, Viva o povo brasileiro no
qual o atrito de culturas opostas impulsiona a motivação para uma transformação
da realidade.
O romance se estrutura em partes que se denominam Antífona,
Homilia, Canon e Corpus, com exceção da última parte, todas possuem nomes
com algum significado religioso. A ordem em que aparecem nos remete a uma
missa que contém um pequeno versículo que é recitado antes do salmo
“Antífona”, a pregação sobre o evangelho que é dita em estilo que seja familiar
para aquele que está ouvindo “Homilia” e a parte principal de uma missa “Canon”.
Aqui, já podemos perceber a estratégia narrativa utilizada pelo autor,
que organiza seu texto como se fosse uma missa cristã, mas cujo conteúdo trata
da história do mundo mítico do povo mairum. No primeiro momento, o narrador
anuncia os personagens, como que apresentando-os ao leitor. Narra os rituais da
tribo na cerimônia de sepultamento do chefe, que ocupa o mesmo tempo narrativo
no qual acontece a viagem de retorno de Isaías à aldeia, assim como os ritos de
passagem. Os planos temporais são superpostos, bem como os acontecimentos
desenvolvidos na narrativa. Essa primeira passagem, intitulada “Antífona”, revela
o início dos rituais de sepultamento de Anacã, e,
simultaneamente, revela
também a crise que principia em Isaías, ilustrando que, a partir desse momento, o
Avá deverá voltar e assumir sua função. A segunda parte, denominada “Homilia”,
conta todo mito de criação da tribo, fazendo alusão ao Avá que regressa e dará
continuidade a essa cultura. A volta de Isaías é uma travessia pela qual ele
passa, procurando recuperar sua identidade mairuna. Esse ato de contar os mitos
remete ao fato de que “Homilia” é a fala que se realiza antes do evangelho de
maneira que todos possam compreender o que está sendo pregado, ou seja, as
76
referências usadas devem ser familiares aos ouvintes. No caso, o mito conta a
história mairum para o povo mairum, assim como Isaías, nesse mesmo tempo,
vive um momento de introspecção para se reconhecer. Por fim, em “Canon”,
Anacã morre e Isaías chega à sua aldeia, tendo, portanto que assumir sua função
e dar seguimento à cultura de sua origem. Esse momento seria aquele que faz
referência à parte principal de uma missa, remetendo, dessa maneira, àquele
momento tão esperado e de maior importância para a tribo: quando o tuxauarã
chegaria e exporia os seus conhecimentos. No fim da segunda parte,
encontramos a passagem que revela a expectativa do povo mairum com a volta
de Avá, para depois do capítulo adiante iniciar a terceira parte do livro:
Nós mairuns teremos, afinal, nosso tuxauarã e, amanhã, nosso
tuxauareté verdadeiro. Muitas coisas aprenderemos com ele.
Muita coisas ouviremos de sua boca. Muitas coisas sobre o
mundo inteiro por onde Avá andou, conhecendo tudo. (Maíra, p.
189)2
Assim, através da narrativa surge uma cultura que era apenas
transmitida pela oralidade. O povo mairum que fora silenciado pela civilização se
torna presente novamente através da história resgatada pelo narrador. Essa
mistura do mundo cristão com o mundo mítico revela-nos o caráter plural que
condiciona Isaías a viver entre essas duas culturas, a do índio mairum, o Avá que
traria a preservação cultural para sua tribo e a cultura do branco recebida por
Isaías, que era a esperança como catequista da Ordem religiosa a que foi
submetido.
Em uma conversa entre os padres que se encontram na aldeia
podemos perceber como a missão cristã já não traz a certeza de difundir a
palavra do Senhor para o mundo primitivo e ainda nos mostra como Isaías era o
escolhido, em função de suas virtudes, para trazer essa palavra a seu povo,
embora tivesse causado grande decepção tanto na Ordem como em sua tribo:
-Sua conclusão é a impossibilidade total da conversão, não é,
padre Aquino? Ainda que chegássemos à certeza dessa
impossibilidade, valia a pena tentar. Sempre vale a pena arar o
campo de Deus, mesmo sabendo que só Ele pode fazer florir a fé.
2 Todas as referências ao livro Maíra serão formatadas da seguinte forma: o nome do romance, em itálico,
seguido da página.
77
Isso é o que eu penso. Sem nenhuma certeza. E talvez pense
assim porque não posso suportar a dúvida. Esta dúvida que está
roendo você. Atrás de tudo isso está a idéia maligna da futilidade
de nossa obra: edificamos na areia: quarenta anos de trabalho em
vão. (Maíra, p. 309)
Se procurarmos entender o que significa o nome de Isaías, veremos
que é o nome do profeta mais importante de Israel, é aquele que traria a
salvação, ao anunciar a vinda do Messias. Seu nome significa “Avé salva” ou “Avé
é a salvação”. Na tribo mairum, Isaías seria o próprio salvador de seu povo
garantindo a continuidade eterna de sua existência, contudo, Isaías não cumpre
seu papel e sucumbe diante do embate que assola sua identidade.
O nome Isaías é carregado de ambigüidade na narrativa, de tal forma
que o conceito de Antropofagia não é capaz de discutir. O limite desse conceito
teórico começa quando procuramos entender o embate cultural a partir da
narrativa. Com a mistura cultural, decorrente do processo de colonização, como
poderíamos narrar esse embate que se torna cada dia mais complexo? Os
processos de modernização pelos quais passam o mundo ampliam a maneira de
se conceber o local e o universal. A devoração crítica operada pela antropofagia
procurava ultrapassar os limites regionais ampliando a questão identitária para um
contexto universal. A poesia de exportação, preconizada no Manifesto da Poesia
Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, colocava o país em conformidade com a
modernidade da época. Contudo, o desenrolar do tão ansiado progresso requer
também um avanço do campo teórico. A transculturação narrativa, elaborada por
Rama3, atinge uma abrangência crítica capaz de abarcar as transformações dos
processos identitários decorrentes da mistura cultural.
Voltando ao significado do nome de Isaías na Bíblia, como sendo um
profeta que anunciava a vinda do Salvador do povo eleito, observa-se que, no
caso do nome do personagem, o significado se torna cada vez mais ambíguo.
Quando analisamos o nome a partir da transculturação narrativa, e sua função
3 Segundo Lívia de Freitas Reis (2005), o termo “transculturação narrativa” é desenvolvido por Angel
Rama no artigo “Los procesos de transculturación en la narrativa Latinoamericana”, de 1974, e
posteriormente no livro La transculturación narrativa en Latinoamérica, de 1982.
78
dentro do romance, constatamos que este perde seu estatuto de portador de um
saber absoluto, uma vez que existe uma transitividade no sentido e na função do
personagem. Enquanto Avá da cultura mairum, Isaías é o próprio salvador da
cultura e da vida do povo de sua tribo. Ele é aquele que identificaria o povo
mairum e os salvaria. Contudo, ele não anuncia a salvação, mas traz consigo a
morte. É interessante lembrarmos que Isaías não possui um nome de origem
tribal, ele é identificado apenas através de suas funções dentro da comunidade,
função esta que ele não cumpre. O nome Isaías se origina de seu contato com o
mundo ocidental-cristão e foi assimilado por ele na certeza de que pudesse um
dia se tornar padre. A falta de um nome indígena simboliza sua própria ausência,
enquanto membro da tribo, tornando-o sujeito aculturado.
Ao chegar a sua aldeia, a identificação da figura de Isaías se torna
incômoda na medida em que ele não chega como um verdadeiro tuxaua que deve
ser forte e viril, mas chega com um corpo curvado e fraco, aparentando no rosto
os anos que não exerceu a função de caçador e guerreiro:
A chegada é um rebuliço. É também uma surpresa muda, contida.
Toda a aldeia desce à praia para esperar, desde que um pontinho
negro se vê, movente, nas grandes águas azuis. Quando já estão
perto, Jaguar e Maxi, acompanhados logo por todos os jovens,
saem nadando ao encontro da canoinha. Cada um chega, toca a
canoa com a mão, como a uma coisa mágica, e vem nadando ao
seu lado, de frente e de costas, para ver, olhar e ver outra vez.
Tentam adivinhar o que significa, sob aquela forma, o tuxauarã e
sua Canindejub. (Maíra, p. 207)
A aculturação a que foi submetido Isaías revela a força que a religião
mantinha sobre o povo autóctone de determinada cultura. A luta dos catequistas
pela alma e pelo corpo do índio, travada desde o desembarque das primeiras
missões no Brasil, deflagra um aculturamento dos povos nativos muito bem
narrado em Maíra. A influência que a religião causava nos processos identitários
dessa cultura é demonstrada no romance com o apagamento de suas verdadeiras
origens ilustradas na fala deslocada e desenraizada de Isaías:
Todos os homens nascem em Jerusalém. Eu também? Padre
serei, ministro de Deus da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Mas gente, eu sou? Não, não sou ninguém. Melhor que seja
padre, assim poderei viver quieto e talvez até ajudar o próximo.
79
Isto é, se o próximo deixar que um índio de merda o abençoe, o
confesse, o perdoe. (Maíra, p. 19)
Haydée Ribeiro Coelho (1997) destaca uma outra possibilidade de
estruturação para o livro, que representaria o deslocamento de Isaías até sua
aldeia e os ritos realizados na cerimônia de sepultamento de Anacã que
acontecem de acordo com esse deslocamento. A medida que Isaías regressa, ele
vai lembrando de sua antiga cultura e remontando dessa maneira sua história. Ao
mesmo tempo, os rituais e os mitos que compõem a narrativa também contribuem
para essa construção da memória do povo mairum. Num primeiro momento
acontecem os ritos de passagem de meninos para homem assim como o próprio
rito de sepultamento. Essa primeira parte corresponde à volta de Isaías de Roma
até o Rio de Janeiro. Na segunda parte são descritos os mitos de criação ao
mesmo tempo em que o protagonista chega à Brasília onde acredita ser devolvido
à tribo que o criou. A partir daí, a travessia de Isaías é empreendida ao mesmo
tempo em que se narram os ritos e mitos remontando a sua história ao se projetar
para um futuro ainda incerto e para seu passado na construção de seu novo ser.
Dessa forma, a partir da narrativa e da travessia de Isaías, a história mairum é
recuperada:
O personagem, ao mudar de espaço, volta-se para o futuro,
caminhando para frente no espaço mas, paradoxalmente, para
trás, para o passado, em relação ao tempo. Ainda assim, ao
voltar-se para o passado, no tempo, está-se projetando no futuro,
na construção de uma nova ordem. (Coelho, 1997, p. 29)
É interessante ressaltarmos que o encontro com uma outra cultura, no
romance de Darcy Ribeiro, é realizado através do deslocamento de Isaías para
uma outra terra. Quer dizer, até aqui, o embate cultural era originado a partir da
colonização, e era visto de dentro do território nacional. Foram os portugueses,
holandeses e outra culturas que desembarcaram no Brasil. No entanto, Isaías é
quem vai para Roma para ser doutrinado. Pensar a cultura estrangeira a partir de
um olhar que se direciona de dentro para fora é diferente daquele olhar que vem
de fora para dentro. Na medida em que Isaías cresce em outra cultura, seu olhar
diante de seu povo adquire uma amplitude diferente. Ele agora vê o mundo que já
foi seu através da ótica do próprio estrangeiro que tem dificuldades em
80
compreender uma outra cultura diversa da sua:
Daqui de cima, de fora e de longe daquele meu mundinho mairum,
já meio esquecido, eu gozo e sofro repensando-o como fiz todos
esses anos. E ainda me espanto: por que nossa gente, tão singela
em tudo, tem tanto apego à coerência? Por que tanto empenho
em organizar as coisas e tudo dispor numa ordem simétrica? A
aldeia exibe no chão o mundo que levamos na cabeça: a banda
do nascente e a do poente, o lado de cima e o de baixo, a rua de
fora e a de dentro. Mas não é só na aldeia. Nela como em tudo
mais somos assim. (Maíra, p. 47)
Dessa forma, a narrativa de Maíra se reconstitui por diversas formas de
reorganizar o que um dia foi uma única origem da tribo mairum, ilustradas pelos
seus mitos de criação. à medida que Isaías é incapaz de retomar sua identidade
indígena, devido à aculturação sofrida, a origem e, conseqüentemente, a
continuidade de sua tribo são abaladas. O que Isaías encontra são apenas
vestígios do que um dia foi sua origem. A própria marca tribal no rosto do índio
convertido, Isaías, está desaparecendo, representando, metaforicamente, o
próprio desaparecimento da tribo e de suas origens.
O romance trata da morte, mas recupera a vida e a memória da tribo
mairum a partir da narrativa que se constitui dentro da viagem de retorno de
Isaías à sua antiga cultura, já que ele não se ordena padre e pretende recuperar a
identidade indígena. Durante seu regresso, a narrativa vai pouco a pouco
desvelando a história desse povo. As lembranças de Isaías sobre a tribo revelam
uma outra história que, contada a partir dos rituais e dos mitos que identificam o
povo mairum, desvela a identidade da tribo. São confrontados na narrativa esses
dois mundos, o do homem primitivo e do homem civilizado, travando um embate
entre essas diferentes culturas, representadas por Isaías que é também Avá e
pela expedição oficial que vai investigar a morte de uma branca,
parida de
gêmeos natimortos. A investigação oficial do agente Nonato é retratada nos
capítulos intitulados: “A morta”, “Nonato”, “Inquérito”, “Exumação”, “Incúria” e “Os
brabos”, onde se descrevem, baseados em fatos, a morte de Alma. Esses
capítulos são distribuídos ao longo das partes do romance , cujo nome já foram
mencionados anteriormente. Esse contraponto do mundo racional, civilizado,
ocidental mostra-nos o lado oficial da história do índio colonizado e caminha
81
paralelamente a narrativa mítica de uma outra verdade velada por esse discurso.
Logo no início da narrativa de Maíra já podemos nos deparar com a
dificuldade de Isaías em lidar com sua identidade. Suas primeiras dúvidas
começam quando ele se vê no impasse de fazer ou não os votos para se tornar
padre. Ele se questiona como um índio convertido pode se dedicar às missões
com o objetivo de ser sacerdote de seu próprio povo, quer dizer:
Belga ou holandês pode catequizar índio. Espanhol e italiano e até
norte-americano pode pregar na Itália, na França, no Brasil, onde
quiser. Mas eu, índio mairum, posso ser sacerdote deles? Nunca!
No Brasil também não me tomarão por índio o tempo todo?
(Maíra, p. 19)
A dificuldade em aceitar sua essência mairum revela que Isaías está
sem disposição para enfrentar a vida e todas as dificuldades que podem existir.
Para o seminarista, fazer parte dessa tribo significa possuir costumes muito
enraizados, pois sendo um povo que independe de qualquer outra cultura para
manter suas tradições podem facilmente desaparecer: “Minha aldeia não é parte
de coisa nenhuma. É um povo em si, quer dizer, uma tribo com sua lingüinha, sua
religiãozinha, seus costumezinhos destinados a desaparecer.” (Maíra, p. 20)
Isaías e Avá, o civilizado e o primitivo, dois pólos em uma mesma
pessoa. Isaías é o seminarista que ainda criança foi levado a Roma para ser
catequizado e ordenado padre missionário. Era a esperança da Ordem que tinha
nele o fruto de quarenta anos de catequese. Avá do clã jaguar do povo mairum
era aquele que foi mandado para conhecer os segredos dos caraíbas, o tuxauarã,
o sucessor do tuxaua que em breve estaria sentado no baíto ao lado do pai, o
aroe Remui.
A continuidade desse povo depende, dessa forma, do Avá e do papel
que é destinado a ele. Anacã, o velho tuxaua da tribo mairum, já tendo cumprido
seu papel de chefe e conselheiro dos vivos, já pode morrer, ou melhor, ele precisa
morrer para que surja e cresça o novo tuxaua.
Anacã é enterrado e pranteado com todas as honras que merece um
importante chefe da tribo. Os homens pintam todo seu corpo de vermelho urucum
e do negro-azulado do jenipapo verde. Seu corpo é todo ornamentado com
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pulseiras, cocares, brincos, com as penas mais lindas e coloridas. Com dança
abrem sua cova que é rasa e lisa, para que o aroe Remui, chefe dos mortos, o
sepulte:
Os homens de todas as famílias da banda azul-ouí se revezam
abrindo, no chão duro de bate-pé do pátio de danças, a cova de
Anacã. Trabalham devagar, com paus de ponta endurecida a
fogo, que ressoam ao ferir a terra, marcando um ritmo lúgubre.
Abrem uma cova longa, perfeita, na medida exata do corpo de
Anacã, que está ali ao lado, mas tem só palmo-e-meio de fundura
e é limpa e lisa como uma caixa. (Maíra, p. 17)
Apenas os homens do clã oposto, os carcarás, se ocupam de levantar
o cadáver e pousá-lo na cova. Todos os homens então se sentam na posição
cerimonial e aguardam o pôr-do-sol, quando cada homem irá depositar um
punhado da terra que foi retirada da cova e afofada pelos meninos da tribo. Nesta
hora, que já não é dia e ainda não é noite, as mulheres chegam com grandes
porongos nas cabeças cheios de água pura, que serão depositados na sepultura
de Anacã e transformarão a terra em lama, onde, durante dias, se misturará à
carne podre do tuxaua. “Anacã está sepultado. Logo morrerá. A vida deve, agora,
renascer.” (Maíra, p. 18).
A importância desse chefe para a tribo mairum era muito grande, dele
dependia a continuidade dos mairuns e seu sucessor era ansiosamente
aguardado por todo povo. Contudo, o sucessor se encontra nitidamente dividido
entre ser Isaías da Ordem Missionária e ao mesmo tempo o Avá do povo mairum,
mas acredita que voltar para suas origens o tornará novamente um mairum:
Afinal, tudo está claro. Na verdade apenas representei e ainda
represento aqui um papel, segundo aprendi. Não sou, nunca fui
nem serei jamais Isaías. A única palavra de Deus que sairá de
mim, queimando a minha boca, é que eu sou Avá, o tuxauarã, e
que só me devo a minha gente jaguar da minha nação mairum.
(Maíra, p. 23).
Decidido e convencido de que voltar o fará novamente Avá, o índio
convertido pede dispensa antes de se ordenar padre e volta a sua tribo. Relembra
como seu povo é e como se comporta, pensando que terá de reaprender uma
porção de coisas, como por exemplo a rir, pois o povo mairum são aqueles que
riem, uma cara fechada e carrancuda é uma ofensa a eles.
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Nós mairuns somos os que riem. Rir é nosso modo de ser, de
viver. Preciso reaprender a rir. Uma cara dura, séria entre nós, é
uma espécie de ofensa a toda gente. Cada um passa pelo
carrancudo, olha e sorri, doce, tentando desfazer-lhe a rigidez da
cara. Somos os que sorriem, com os dentes brancos, grandes e
bons para rir, dos mairuns de verdade. Não os meus, coitado de
mim. (Maíra, p. 44-45)
A confusão na cabeça de Isaías é tão intensa, suas referências
simbólicas estão tão misturadas que ele não pode deixar de comparar o lugar
onde nasceu com os lugares onde esteve, como quando olha a mata sobre a qual
está sobrevoando e reconhece nela uma catedral romana ou pensa no canto dos
pássaros como as duas missas cantadas na floresta virgem, uma de manhã e
outra ao anoitecer. Essa mistura no texto nos mostra como o autor se vale de
estratégias narrativas, para desenhar em seu enredo a complexa ligação entre
culturas distintas, trazendo a obra para um campo de discussão universal. No
caminho vai rememorando os tortuosos caminhos que levam até sua aldeia de
maneira a utilizar um vocabulário muito peculiar e depois reza em latim:
Muitas estradinhas à-toa de passos de pés descalços cortam o
mato sujo das coivaras, no rumo das bocas da grande mata de ao
redor. Por muitas léguas ela se estende, silva et virgo, sem
nenhuma clareira maior que a da minha aldeiazinha.
Arbor uma nobilis:/ Silva talem nulla profert (...) (Maíra, p. 45)
Isaías relembra também a importância do baíto, a casa dos homens,
onde só entram mulheres e crianças na ocasião de alguma importante cerimônia.
Para os mairuns, o pátio onde se encontra o baíto é o centro do mundo, “o ponto
fixo ao redor do qual tudo se move, acontecendo. Ali naquele estufado do pátio da
minha aldeia se decidem todas as coisas realmente importantes.” (Maíra, p. 48).
De fato, o baíto é o ponto central da tribo, por onde passa um eixo imaginário
dividindo esta em duas metades. É curioso perceber que no momento em que
Isaías se encontra dividido entre suas duas identidades ele também percebe o
mundo mairum em sua dualidade:
Daqui de cima, olhando não lá pra fora, mas cá pra dentro, para o
fundo de mim, eu vejo o meu mundo. É aqui agora, que a minha
aldeia mairuna respira tal como foi e eu vi, há tantos anos. Eu a
vejo e revejo em cada detalhe, vejo até em ângulos que não se
pode ver, como a arrumação antiqüíssima das bandas e das
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famílias clânicas. Uma linha invisível parte a aldeia em duas
metades, a do nascente e a do poente. Cada uma delas com seus
clãs que têm de ir buscar mulher ou marido na banda oposta. Esta
partição da aldeia em metades retrata no chão a partição do
mundo, tal como o concebemos, sempre dividido em dois: o dia e
a noite, o claro e o escuro, o sol e a lua, o fogo e a água, o
vermelho e o azul e também o macho e a fêmea, o bom e o ruim,
o feio e o bonito. Uma banda da aldeia é do dia, da luz, do sol, do
fogo, do amarelo. É onde está a minha família jagua, entre muitas
outras. A outra banda é noturna, crepuscular, lunar, aquática,
azulona. É a das famílias recíprocas como a dos meus cunhados
os gaviõezinhos carcarás e de muitas outras gentes. Uma banda
diz da outra que ela é fêmea, ruim e feia. Não se decidiu ainda de
quem são esses defeitos. (...) Exceto eu, todos nós, os do
nascente, somos os mais bonitos, os mais fortes, os mais tudo.
(Maíra, p. 46)
A maneira com que Isaías vê agora sua tribo, já é uma visão de fora,
do Outro. A partir do momento em que ele sofreu a mistura de referências
culturais, ele adquiriu uma cosmovisão ampliada de sua antiga cultura. Para
Rama a cosmovisão é um terceiro tipo das operações transculturadoras que
funcionam no interior das narrativas, além da língua e da estruturação narrativa.
Passando pelo imaginário, a cosmovisão é “o espaço onde se consolidam os
valores e as ideologias e (é) ser reduto da resistência contra as influências
homogeinizadoras da modernização de origem estrangeira.” (Reis, 2005, p. 475)
A modernidade traz consigo arcabouços teóricos que desvelam um
universo que sempre existiu, mas que permaneceu oculto pelos modelos
homogeneizantes do Positivismo. Rama (1989) discute a transculturação no
contexto de modernização da passagem do século XIX ao XX, revendo a
influência das estéticas estrangeiras dentro do panorama regionalista que era
predominante nas culturas periféricas. A quebra do sistema lógico-racional, que
imperava até a chegada revolucionária das Vanguardas, deixa livre a verdadeira
matéria pertencente às culturas internas da América Latina. Dessa forma, o
narrador é mediador desse impasse e constrói um significado que é igualmente
problemático. A condição de Isaías, um ser que não é totalmente transculturado,
pois ele não utiliza o embate a seu favor, revela esse novo olhar acerca da
questão mítica. A narrativa transculturada de Darcy Ribeiro traz em seu bojo um
trabalho sobre o tradicional indígena e o modernizado ocidental. Quer dizer, o
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manejo dos mitos literários se distingue do pensar mítico, que é justamente a
causa do impasse de Isaías. Ele não pensa mais miticamente como o povo de
sua tribo, mas possui um conhecimento racional em função do tempo em que
passou no mundo cristão-ocidental:
Todos os dias fazem alguma coisa assim, caçadas de brincadeira,
pescaria de brincadeira. Caçoadas debochadas, palhaçadas.
Enquanto isto esperam a guerra que não vem, nem virá. Trabalhar
mesmo é só a gente madura e os velhos que trabalham. E pouco.
Exceto, talvez, as mulheres adultas que levam nas costas o peso
da vida para cuidar e alimentar tantos guerreiros preguiçosos.
(Maíra, p. 255-256)
Contudo, os referenciais da tribo continuam a ser os mesmos
referenciais míticos. A visão que eles têm de seu povo é aquela trazida por MaíraCoraci, o Deus filho, dentro no qual a tribo é um todo formada por ambas as
partes que se complementam uma a outra formando uma totalidade, um nós que
abriga a todos, uma nação mairum, com exceção de Isaías que não encontra seu
lugar na tribo. A crise pela qual passa, nos mostra o impasse desse ser
transculturado que já não tem mais lugar nem como missionário, nem como
tuxaua.
O futuro de Isaías enquanto Avá pode ficar comprometido, pois é o
tuxaua que reascende no povo mairum a alegria de viver, de comer, o prazer de
dançar, de cantar, de foder, a partir de cada festa e rito em que celebram sua
morte. Enquanto Anacã é cultivado e celebrado ele ainda é o tuxaua da tribo e
sua lenta morte representa o renascer de toda essa continuidade de hábitos e
costumes.
Também na aldeia, debaixo do peso do cheiro da morte de Anacã,
volta o alvoroço da alegria de viver. No pátio, a toda hora, jovens
dos diversos clãs treinam lançando javaris sobre homens de
palha. Outros se enlaçam nas lutas corpo-a-corpo, preparando-se
para as competições que virão. (Maíra, p. 33)
Quando Anacã finalmente morre para ele mesmo, para o povo mairum
e para todo universo, ele será pranteado com todas as honras. Restam agora
apenas seus ossos e o cheiro fortíssimo e dulcíssimo da carne inteiramente
putrefata. Homens e mulheres se colocam todos em posições e funções
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cerimoniais. Cada qual vestido com cocares, pulseiras, enfim os belos e coloridos
ornamentos usados nas grande festas. É interessante ressaltarmos essa intensa
ornamentação que os identificava enquanto tribo indígena mairuna, já que os
rituais cerimoniais são verdadeiros cultos aos antepassados reforçando, dessa
maneira, suas raízes e tradições e atualizando em si o sentimento de
pertencimento a essa comunidade.
Em
diversas
passagens,
esses
ornamentos
aparecem
como
importantes itens que compõem o significado geral das festas. O aroe, por
exemplo, que possui a sabedoria dos mortos, em um sepultamento é a figura
central. Ele fica de costas para o Sol e leva na cabeça um imenso cocar feito de
flechas emplumadas que saem de sua cabeça para cima e para trás,
representando os raios e luzes do sol. O sol para os mairuns é fonte de todo bem,
de toda vida. O lado nascente e belo é Maíra-Coraci, seu Deus. Cada membro da
tribo se caracteriza de acordo com as cores de seu clã, que se identifica com os
animais totêmicos: o clã jaguar, da casa dos onça e o clã dos Carcarás, os
gaviões. Em outro episódio, Jaguar e Maxi, que retornam de uma caçada
triunfante a um feroz jagaurum, um tigrão de cor negrenta, o pai de todas as
onças, se aproximam da sepultura de Anacã e se ajoelham para iniciar uma
cerimônia que fará do tuxaua o próprio tigre. Com o pelame negro e toda sua
grandeza cobrem a sepultura; a cabeça do felino é colocada onde está a cabeça
de Anacã, no nascente; o rabo, onde está seus pés, no poente, para que:
Os homens e mulheres se aproximam todos para passar a mão
na pele enorme, negra, luzidia, com seus lunares. Ela refaz ali no
centro do pátio um tigre imenso como a noite, de braços e patas
abertas com suas garras recurvas e com sua bocarra de presas
de marfim amarelo, enormes, sobre a tumba de Anacã, o
taxauambir do clã jaguar.(Maíra, p. 61)
Depois da festa cerimonial, do fim derradeiro de Anacã, que completa
seu ciclo prescrito de danças, de lutas, de competições e festas onde se come
muita carne, peixe e bebem bastante cauim, finalmente o chefe é sepultado. As
mulheres choraram no ritmo do maracá do aroe, ora quase gritando, ora baixo. É
hora de o povo mairum renascer, o novo tuxaua está a caminho e os mitos de
criação foram narrados, recriando o povo mairum. A partir daí, toda aldeia começa
87
se perguntar quando chegará o próximo tuxaua, aquele que possui a sabedoria
dos vivos para, assim, dar continuidade àquela nação.
Isaías, em seu retorno, também se questiona qual é o ser que ele leva
a seu povo. Ele volta para seu passado na esperança de encontrar seu eu que
teria sido formado se ele não tivesse saído da tribo. Volta contudo sem glória
sacerdotal, sem santidade, sem sabedoria, apenas com suas mãos inábeis para
um índio de verdade, com o coração aflito e a cabeça cheia de “ladainhas”: “Não
sou o soldado que regressa vitorioso ou derrotado. Não sou o exilado que retorna
com saudades da raiz. Sou o outro em busca do um. Sou o que resulto ser, ainda,
nesta luta por refazer os caminhos que me desfizeram.” (Maíra, p. 79)
Nesse momento, podemos perceber que não sabendo nomear sua
condição, Isaías é uma aculturado pela linguagem, assim como no momento em
que ele também não é capaz de responder às curiosidades de seu povo
transpondo seu conhecimento para trazer a salvação para sua tribo.
Valendo-se da afirmativa de Mário de Andrade, em Paulicéia
Desvairada, e considerando a análise de Gilda de Mello e Souza em sua
interpretação de Macunaíma, podemos considerar que Isaías é um “tupi tangendo
um alaúde”, que ele é um ser que adquire influências tanto estrangeiras quanto
aquelas referências herdadas de sua tribo.
Eu sou dois. Dois estão em mim. Eu não sou eu, dentro de mim
está ele. Ele sou eu. Eu sou ele, sou nós e assim havemos de
viver. O velho confessor não estará jamais no futuro, esperando
por mim, antes da missa para me esvaziar outra vez de mim. Eu
também não estarei jamais tremendo de medo dessa hora da
verdade dos outros. Agora viverei com a minha verdade, a minha
verdade entreverada. Deus do céu, meu pai e meu tio. Deus é
Deus e Maíra. Maíra é Deus. (Maíra, p. 81)
Entretanto, a multiplicidade em Macunaíma nos remete para a vida, na
esperança de encontrar, um dia, a identidade perdida. Em Isaías, essa
multiplicidade o torna um sujeito cindido e essa divisão não traz esperanças, mas
traz a perda total de sua identidade e conseqüentemente a morte. Aqui, o tupi se
distancia de tudo aquilo que pode integrá-lo novamente à sua cultura. No caso do
tupi como concebe o Modernismo, a multiplicidade traz muitas possibilidades de
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construção da identidade do sujeito e o torna vários em um só. No poema “Eu sou
trezentos...” de Mário de Andrade encontramos:
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
(...)
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo. (Andrade, s.d, p. 165)
A personagem de Darcy Ribeiro possui uma ambigüidade cultural que
o coloca nesse impasse identitário. O sujeito que retorna à sua querência não é o
mesmo que partiu há anos. Em sua saída, o povo mairum depositava em Avá a
esperança e o futuro da tribo, ele iria descobrir e desvendar os segredos dos
caraíbas, para em seu retorno colaborar trazendo para tribo toda sua glória. Isaías
é um homem desenraizado, transculturado que não consegue harmonizar essas
duas culturas diversas e usar essa ambigüidade a seu favor nem a favor de seu
povo: “Nada tenho com o menino de então, ou quase nada. Com o homem que eu
seria menos ainda. Sou apenas o desejo ardente de vir a ser um pouco do que
poderia ter sido, se não fossem tantos desencontros.” (Maíra, p. 80). Ele é um ser
transculturado que mesmo tendo contato com a civilização, essa não trouxe a ele
a condição de neoculturado, aquele novo que produziria ações capazes de
transformar a realidade. A narrativa nos mostra a fragmentação desse sujeito
transculturado.
Ao contrário de Maria da Fé, em Viva o povo brasileiro, o embate
cultural que sofreu Isaías não o transformou a ponto de ele agir em prol da
continuidade mairuna. Dessa forma, podemos pensar aqui na Antropofagia
enquanto metáfora da destruição. O índio vai para a cultura caraíba para absorver
seus segredos e trazê-los aos mairuns, contudo Isaías não assume seu papel na
tribo e com isso impossibilita sua continuidade. Vejamos como pouco a pouco seu
povo vai se desiludindo com o Avá.
Existe uma tensão entre a expectativa da tribo e o que ela espera do
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Avá e seu comportamento. Logo quando Isaías chega ao Iparanã, na missão de
Nossa Senhora do Ó, algumas índias velhas que se encontram ali, ao avistá-lo,
gritam seu nome em um frenesi insuportável. A presença de Isaías na missão é
impossível, ali é o lugar onde ele deveria ser o padre, no entanto ele é
reconhecido como Avá e por isso logo ele deve partir para a aldeia para assumir
seu lugar:
Hoje mal se sentam, olhando a fileira de meninas que avançam
entre os canteiros para a capela, quando vêem surgir quatro
velhas índias, maltrapilhas, que vivem na praia da Missão,
gritando:
– Avá, Avá Uruantãremui (Maíra, p. 181)
O velho aroe, em uma de suas visões, conta que regressa o Avá, o
futuro tuxaua, contudo ninguém deverá ir a seu encontro, ele deve sozinho
enfrentar as provações pela qual passa. É sua travessia. Disse que vem como
Avá, não como Isaías e que somente vencendo as provações poderá chegar ao
seu povo como deve. Todos ao redor sorriem contentes. Jaguar pensa que seu
tio, assumindo sua função como o verdadeiro tuxaua, ele Jaguar não precisará
nunca assumir o tuxauato. Depois vai de casa em casa contando a novidade,
descrevendo seu tio Avá. Ele é o herói perdido e traz consigo um ocasé enorme,
de balas explosivas que derrubam até casa de pedra. Também traz um arco de
aço para caçar anta, veado, caititu, toda caça boa: “Todos terão, maité, maité,
todos terão, agora, que pedir licença para navegar pelo Iparanã. Será preciso
pedir ao Avá, pedir, pedir implorando, para entrar no colar da lagoa.” (Maíra, p.
189).
O oxim da tribo, o feiticeiro, também viu o Avá regressar. Adivinhou que
ele volta como anhé, o Anti-Maíra. Volta também como tuxauarã e como
otxicônrigui, um otximcom muito poderoso, que é dono da morte e da doença,
mas não trará morte nem doença, só a cura, a vida e alegria. O povo da tribo não
entende o porquê de tantas previsões confusas. Não querem se preocupar,
querem apenas gozar da alegria que é o regresso de Avá para a comunidade.
Nesse momento, as explicações míticas, que até então eram incontestáveis e
diziam a verdade sobre o povo mairum, é abalada. O feiticeiro faz a previsão que
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Isaías era o Anti-Maíra, trazendo a morte, no entanto, o povo não acredita nessa
adivinhação, pois um verdadeiro tuxaurã é portador de alegria e vida. O que antes
era inabalável, era a origem mairuna, agora pode desaparecer com a volta de
Isaías.
Na sua chegada, o povo todo se anima. Todos querem tocar a canoa
que parece ser mágica; os homens começam um choro cerimonial seguido do
pranto das mulheres. Aquele momento da chegada, era tão aguardado que seria
a grande hora em que Isaías deveria falar a todos com toda sua autoridade de
tuxauarã:
É chegada a hora. Ele deve, agora, falar longamente. Falar duro e
forte como cabe ao tuxauarã. Falar de tudo o que seus olhos
viram, de tudo que seus olhos escutaram e de tudo que seu
espírito entendeu, durante todos estes longos anos, no grande
mundo dos brancos. (Maíra, p. 206-207)
As perguntas feitas ao Avá são de diferentes curiosidades. Ele fala do
mar e do oceano que são maiores que o céu, das grandes cidades que visitou,
dos arranhas-céu das modernas metrópoles. Descreve a quantidade de gente
branca que habita o mundo e como toda essa gente é alimentada com as
comidas encontradas nos mercados. Fala também da miséria, dos trens, navios,
aviões, dos rádios, da televisão e dos telefones. E fala das estações do ano, do
frio e da primavera. Mas mal consegue repertório adequado para atender a tantas
curiosidades dos mairuns. Mais tarde, as perguntas que surgem são mais
complexas, como por exemplo, se o Avá esteve com Maíra, se existem guerras o
tempo todo em algum lugar, como são os deuses dos brancos- e o Avá às vezes,
consegue esclarecê-las, ora inseguro, ora não. Contudo, a provação mais difícil é
quando os homens no baíto perguntam se a visão dos mairuns sobre o mundo lá
fora é correta ou não. A argüição era para aquele homem que foi mandado para
ver o mundo estrangeiro, dos inimigos. Isaías tenta evitar as discussões em vão.
São perguntas dos pacus, dos tracajás, dos quatis e dos onças, das quais o Avá
sai sem prestígio. Jaguar e Remui constatam que não se deve julgá-lo, que sua
essência está escondida atrás da “sina que impuseram os pajés-sacacas da
Missão”, e que com o tempo o Avá encontrará sua verdadeira essência: “Jaguar
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sai, só sabendo que para além do Avá visível, ele deve continuar vendo o
tuxauarã que, chegada a hora, de algum modo, se revelará no que é de verdade e
no que haverá de ser: o tuxauaretê.” (Maíra, p. 211)
A partir da narrativa e do confronto da linguagem esses dois mundos
são aproximados. Os conhecimentos de mundo dos personagens não os colocam
em contato uns com os outros, já que cada um possui sua cosmovisão. Por isso,
o que acontece não é o que os homens mairuns esperavam. O tempo vai
passando e o Avá não se adapta mais àquela vida. No início o povo esperava que
ele fosse pouco a pouco se reencontrando, mas a esperança vai se findando e o
comportamento de Isaías não é o mesmo que a tribo espera do Avá.
Maíra-Coraci, o criador do povo mairum, resolve sentir o mundo dele lá
embaixo na aldeia e escutar seu povinho. “Hoje quero entrar em alguém para
sentir o mundo outra vez, com o corpo e o espírito de gente-vivente. Quero ver
com os olhos que lhes dei.” (Maíra, p. 254). Faz isso entrando no corpo de seu
povo para sentir os odores, ver as cores, sentir o tesão, ouvir os sons de tudo que
criou. Sente a melancolia de Remui diante da vida e do Avá. Em Jaguar sente
toda virilidade e o gozo que é viver, em Tedju, que se incomoda com sua
presença, sente toda a amargura que é ser um oxim e em Avá constata seu
dilema.
Remui, o velho aroe, lamenta que aquele que chegou na aldeia não é o
mesmo que ele vira descendo as águas do Iparanã. Ele chegou sem alma,
roubada pelos caraíbas e está falando a palavra do outro:
Este Avá era minha esperança. Era ele que ia nos salvar da
perdição que vem aí. Era ele que voltaria, trazendo para nós todos
os grandes segredos dos caraíbas. Ele viria levantar a nação
mairum. Mas veio vazio. Nada nos trouxe, nem a ele mesmo nos
trouxe. Perdemos com ele até nosso tuxauarã que teria sido um
tuxauareté. Voltou vazio, esvaziado. É como se tivessem tirado a
pele dele. É como se o tivessem virado ao revés, pondo o dentro
para fora e o de fora para dentro. Mas foi pior o que lhe fizeram.
Tiraram o seu espírito. Isto que está aí é o que resta de um
homem que perdeu a alma. (Maíra, p. 217)
Outro que também não compreende o comportamento de Isaías é
Teidju, o feiticeiro da aldeia. Todos os mairuns sentem repulsa pelo oxim, eles
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têm medo, menos o Avá que quer sempre puxar conversa. O oxim vive separado
do resto da tribo e nunca ninguém quer falar com ele. Só suportam sua presença
porque não sabem viver sem um oxim, que purifica a carne de caça que comem.
O oxim é uma espécie de totem que deve ser evitado, pois quem conviver com
ele poderá também ficar almadiçoado. Isaías, no entanto conversa sempre com
ele, se sente à vontade em sua companhia, não se comportando da maneira
como esperam os mairuns. Ele ignora que o povo mairum não perdoa a um oxim
ser um oxim, embora não possam passar sem ele. Jaguar, que serviria para ser
um verdadeiro tuxaua, olha com firmeza para o oxim e nunca fala com ele, mas o
Avá não. Este sempre vai ter conversas com ele, que também estranha: “O que
nunca tinha acontecido era alguém querer conviver comigo, com um oxim, puxar
conversa, rir. Cair aqui em casa todo dia. Este está ruim da cuca, muito ruim
mesmo deve estar este Avá.” (Maíra, p. 226)
Quando Maíra entra em Jaguar, sente um verdadeiro corpo mairum,
forte e viril, cheio de vida. E escuta dele que não quer ser o tuxauarã, que é seu
tio Avá quem deve cumprir essa missão. Pensou no que seu tio Remui disse
sobre ter que esperar quando o verdadeiro Avá estivesse visível aos olhos do
povo mairum: “Não quero pensar, nem entender, não quero lembrar, não quero
saber nada disto. É verdade que ninguém vê um tuxaua no Avá, exceto eu. Nem
eu mesmo vejo bem, nem imagino que ele tenha lá dentro de si a força de um
tuxauareté.” (Maíra, p. 243)
Como Isaías não assume seu papel de tuxaua fazendo renascer e
levantar a nação mairum, todo povo se decepciona. Nem mesmo seu papel de
marido é assumido com Inimá. O desaparecimento da tribo acontece com a morte
simbólica do Avá e a própria morte de uma outra personagem. Alma é uma moça
branca que sofre com o tormento de não saber qual caminho seguir na vida, ela ,
assim como Isaías, passa por uma crise de identidade. Já esteve envolvida com
drogas e prostituição e agora deseja tomar os caminhos do Senhor. Queria muito
ir para as missões com um grupo de irmãs de caridade francesas para poder
ajudar pelo menos com seus conhecimentos de Psicologia. É confusa e
arrependida de seus atos e chega à aldeia dos mairuns com a ajuda de Isaías. Ao
93
chegarem todo povo pensa que aquela moça é a mulher do Avá, a Canindejub,
mulher branca, mas não sabem em que clã ela se encaixaria ou quem são seus
irmãos e quem poderia sururucar com ela sem cometer incesto. Era identificada
também como Mosaingar, que representa o ventre de Deus, parida dos gêmeos
do Pai que criaram o mundo mairum. Alma fica grávida de gêmeos, mas eles
nascem mortos e ela também morre. Existe um capítulo especialmente dedicado
às dúvidas de Alma com relação ao seu parto que se intitula Monsangair. A
Monsangair é uma espécie de Nossa Senhora do povo mairum, a que pare,
contudo, gêmeos que criaram a nação mairuna. De certa forma, Alma também
poderia ter dado continuidade à cultura mairuna, se não tivesse efetivamente
morrido.
Isaías explica para a tribo que ela é como se fosse sua irmã e é levada
para sua casa. Na viagem até a tribo os dois conversaram muito, cada um sobre
sua experiência de vida. Alma conclui que:
Nada há de comum entre a sua história anterior e esses dias de
espera dos tempos que virão. Que tempos? Ela adivinha que, de
alguma forma, Isaías está morrendo e ela está nascendo e viceversa. Cada um deles se transfigura. Só se pergunta: renascendo
como? Renascendo para quê? Se já não creio no que me trouxe
aqui, aonde vou? A que vou? Por que sigo? (Maíra, p. 194)
Existe muita curiosidade das mulheres quanto a Alma. Ficam
encantadas com os pelos grossos que saem de seu corpo, nas axilas e nos púbis,
quando vão tomar banho no rio. Alma se adapta muito bem ao povo mairum e
vive de acordo com suas tradições. Vive na casa de Isaías, contudo ela não é de
nenhum clã, vive como uma mirixorã. Estas são escolhidas entre as meninas mais
bonitas e quando declaradas como tal não podem nuncar tomar marido, ficam
como que suspensas no ar, são de todos os homens. Se distinguem pelos longos
cabelos inteiros, ao contrário das outras mulheres que possuem franjas na testa.
São as mulheres que melhor sururucam e podem ficar com os maridos das outras
mulheres sem que estas fiquem com ciúmes. Quando os maridos estão tristes,
falam logo para ir ter uma alegria com uma mirixorã. Na concepção da tribo elas
são até mais mulheres que as outras, são o orgulho da beleza mairum. Portanto,
ser uma mirixorã era uma honra.
94
A essa altura, depois de meses na aldeia, Alma vive como quer, adora
ser a Canindejub, a arara-amarela enquanto que a meninada da aldeia chama
Isaías de sarigüê, o pai dos gambás:
Que faço aqui? Não creio nada mais do que me trouxe. Aquela
ilusão minha era doença, penso. Aqui, me curei. Acabou-se a
angústia. Gosto da vida que levo. Não para salvar ninguém, isto
não ambiciono. Simplesmente para viver. Viver nesse ritmo
molenga e bom da vidinha mairuna: rede-e-bubuia. (Maíra, p. 266)
Alma se preocupa agora com sua gravidez. Que será dela? Quando
chegar sua hora saberá parir feito as mulheres mairunas, que logo depois se
põem a trabalhar e a cuidar de seus maridos que sentem a dor do parto? Mas de
quem ela iria cuidar se não tem marido? Nem mesmo sabe de quem é seu filho.
Será de Teró? De Jaguar? Queria que fosse de Jaguar, pois gosta dele. Alma,
contudo não chega a conhecer os filhos gêmeos que nasceram mortos e ela
própria também morre. A causa de sua morte não é desvendada pela
investigação e o romance não tem solução, quer dizer, não há saída para os
impasse do embate cultural através da narrativa.
O romance de Darcy Ribeiro, nesse sentido, pode representar uma
narrativa transcuturada, no sentido em que concebe Angel Rama, de que há uma
vazão criativa dos países colonizados na tentativa de escrever sua história. O
romance, portanto, seria aquilo que podemos chamar de neoculturado, resultado
desse impacto cultural que beneficia-se desse embate e cria uma narrativa
literária transculturada. Para Rama (1989), baseando-se no conceito de Fernando
Ortiz, assim como nos processos culturais de transculturação, na literatura
também se dá a aculturação, desculturação e neoculturação, ou seja:
Implica en primer término una "parcial desculturación" que puede
alcanzar diversos grados y afectar variadas zonas tanto de la
cultura como del ejercicio literario, aunque acarretando siempre
pérdida de componentes considerados obsoletos en segundo
término implica incorporaciones peocedentes de la cultura externa
y en tercero un esfurszo de recomposición manejando los
elementos superviventes de la cultura originaria y los que vienen
de fuera. (Rama, 1989, p. 38).
Segundo Lívia de Freitas Reis (2005), a transculturação narrativa está
95
relacionada com a nova narrativa como os textos de ficção "produzidos ao longo
da década de 60 que, à sua maneira, também buscaram falar uma linguagem
nova para expressar a identidade de um continente jovem e desconhecido" (Reis,
2005, p. 469). Dessa forma, o romance de Darcy Ribeiro pode ser entendido
como fruto desse contexto em que os escritores buscam ajustar a linguagem local
com o legado modernizante.
Outro exemplo que podemos extrair do texto de Darcy Ribeiro, que
revela essa narrativa transculturada, é no momento em que Isaías, cindido entre
seus dois pólos, o de civilizado e de índio primitivo reza:
Meu Deus Pai, criador do céu e da terra
Meu Deus Filho, Jesus Cristo, Nosso Senhor
Morto na Cruz, por vontade do Pai, para nos salvar
(Salvar quem se houvera salvo sem o Teu santo sangue)
Meu pobre Anjo das Trevas, servo rebelde do Senhor
Minha Nossa Senhora: útero de Deus.
Meu Deus-Pai, mairum: Maíra-Monan
(Com seu membro imenso crescendo debaixo da terra, como uma
raíz para todas as mulheres)
Meu Deus-Filho: Maíra-Coraci, Sol luminoso.
Micura, Teu irmão fétido: gambá-sarigüê
Mosaingar: homem-mulher, ventre de Deus
Deus Pai, Deus Filhos, Arcanjo Decaído
Maria Santíssima, Açucena do Senhor
Maíra-Manon, Maíra-Coraci,Micura
Mosaigar: parida dos gêmeos de Deus
Meu Deus de tantas caras, eu que tanto creio como descreio,
peço a cada um e a todos; rezo e peço humildemente;
Quando eu não chegue lá, se não for deTua vontade
Que eu só cheguelà, se esta é Tua vontade
Mas, se chegar, que eu possa ser um entre todos
Indistinguível. Indiferenciável. Inconfundível.
Um índio mairum dentro do povo mairum. (Maíra, p. 80-81)
O ato de narrar apresenta os processos de antropofagia e
transculturação. Os vestígios encontrados na narrativas que nos trazem as
marcas dessa transculturação, estão presentes no texto, na escrita, embora
encontramos essas marcas também no personagem de Isaías. Contudo, as
cicatrizes tribais que ele traz em seu rosto, estão desaparecendo, e podem ser
interpretadas com o próprio desaparecimento da cultura onde nasceu. Sua morte
simbólica é, dessa maneira, mais representativa do que se ele tivesse realmente
96
uma morte física, podendo ser substituído e assim sua cultura mairuna talvez
nunca tivesse desaparecido.
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Considerando a Antropofagia enquanto operador de análise, que nos
emprestou possibilidades de leituras críticas, dentro de uma perspectiva cultural,
com a qual iniciamos esse trabalho, verificamos que esse conceito possui seus
limites de aplicação. A crítica literária brasileira sempre buscou formular conceitos
que fossem portadores das problemáticas que giram em torno da dependência
cultural. Desde a virada do século XIX para o XX o nacionalismo literário buscava
argumentos para expressar uma identidade cultural que fosse independente dos
modelos e da estética européia anterior a isso.
Com o Movimento Modernista, o Brasil viveu um momento de ruptura
em busca de uma arte que pudesse assumir um lugar nos cenários universais,
muito embora já houvesse a necessidade de uma arte engajada. Em Os Sertões,
Euclides da Cunha denuncia toda miséria e sofrimento do sertanejo nordestino ao
transcender a interação Terra-Homem, movido por um pensamento social que
refletia os problemas nacionais, ou seja, as questões já levantadas pelos prémodernistas são retomadas e ampliadas pelos modernista de 1922.
A importância atribuída às questões acerca da identidade cultural, a partir
do fim do século XVIII, advém, principalmente, da modernização. A era moderna é
marcada pela aceleração e expansão das indústrias e do mercado o que
possibilita o acesso às mercadorias e à troca de bens culturais. Com a aceleração
da modernização e a técnica empregada pelos meios de comunicação, a
homogeneização se torna evidente. Existe assim, uma concentração de poder
nas mãos dos monopólios econômicos. Se antes éramos subjugados às leis
culturais da tradição européia, hoje estamos fadados ao consumo dos produtos
difundidos pelos setores empresariais, que têm penetração de venda mundial.
Já no princípio do século XIX, no que concerne ao Brasil, a busca pela
identidade nacional se baseava na libertação da cultura européia que foi imposta
desde a colonização e amordaçava a expressão popular. Santiago (2004) marca
três grandes momentos da necessidade de delinear uma identidade nacional a
partir da República: o paradigma da inferioridade frente ao europeu, a
transformação da crítica nos anos 1920 e a ampliação social no regionalismo dos
99
anos 1930.
Em primeiro lugar, o autor estabelece um primeiro paradigma, a partir
de Joaquim Nabuco, em seu livro de memórias - Minha Formação. Neste, Nabuco
mostra seu desinteresse para com a vida social e política do Brasil, afirmando que
os grandes acontecimentos estão sendo encenados nos “grandes palcos
europeus”. Seu interesse para fora do Brasil, possibilitado pelo telégrafo, advém
da observação do estrangeiro para aprendermos com ele os modernos modelos
de expressão artística. Nabuco era eurocêntrico, mas o coração não lhe deixava
sair da pátria. Dessa forma, existiria uma dupla saudade: a da ausência dos
centros europeus e, se estivesse do outro lado do mar, a saudade da pátria.
José Alencar, nessa mesma época, escreve seus romances
fundacionais, que marcam, nesse momento, uma identidade genuinamente
brasileira, elevando os autóctones e idealizando-os. Nabuco, porém, não achava
que a identidade histórica de jovens nações se encontraria ali onde esperavam
encontrá-las os nativistas. Para o escritor eurocêntrico, ela está fora do tempo
histórico nacional e fora do espaço pátrio e por isso é lacunar e eurocêntrica. Seu
lugar é então na “ausência”, determinada por um movimento de tropismo, ou seja,
deve-se sempre buscar referências fora do Brasil para construir uma identidade
cultural.
A partir dos anos de 1920, os modernistas, com inspirações estéticas e
ideológicas que marcariam a identidade brasileira livre do modelo europeu,
estabelecem um ideário que poderíamos denominar ideário de Nabuco às
avessas. Mário de Andrade, um dos precursores do movimento, dissocia a
saudade de Nabuco do público e do privado. Para o modernista, a saudade
deveria ser um sentimento de âmbito apenas privado, ou seja, saudade só nas
relações pessoais, nada de sentir saudades da pátria. Ele ainda prega a conversa
descomprometida com as pessoas, num gesto de solidariedade. “Puxar
conversa”, para Mário, era uma forma de apreender os “erros” que a escola
européia julgou serem abomináveis. Esse descentramento operado pelos
intelectuais modernistas contribuem na configuração das várias etnias, que
povoam o Brasil, e abre caminho para se pensar a identidade de forma tão
100
heterogênea como são as próprias manifestações culturais. Surge, nesse
movimento, o termo Antropofagia, de base antropológica, o qual expressava os
processos primitivos que estavam nas raízes de nossa identidade, ao mesmo
tempo em que os modernistas o utilizavam como metáfora devoradora, para
deglutir o legado europeu.
A partir dos anos 30, o Brasil passa a ser marcado pelos regionalismos
que possibilitam denunciar as condições de vida de acordo com as necessidades
de cada região: a seca e a miséria no nordeste, o tradicionalismo e os problemas
de fronteira do Rio Grande do Sul. Se nos anos 20 a produção artística se
fundamenta disciplinarmente na cultura, nos anos 30 o foco será dado
economicamente, influenciado pelas idéias de cunho marxista. A partir daqui as
produções culturais assumem uma forte tendência de temática social que jamais
será abandonada.
A problemática que gira em torno da noção de origem, pensada em sua
verticalidade e hierarquia, e que utiliza das imagens de raízes, sempre esteve
ligada às questões de identidade e de dependência cultural. A metáfora orgânica,
de que se vale Antonio Candido, procurava formular nossa identidade literária a
partir da prerrogativa de que nossa literatura é galho da literatura européia. Em
seu livro Formação da literatura brasileira, Candido estabelece uma visão
historicista e linear na formação de nossa literatura. Para o autor é a partir do
Romantismo que se formará todo sistema literário brasileiro. O estilo marcaria a
origem da expressão cultural brasileira na medida em que, seria a partir do
Romantismo que as cores locais se tornariam mais intensas, estabelecendo uma
dominante comum que marcaria toda nossa história literária. Essa continuidade
do mesmo, contudo, é contestada por Haroldo de Campos que reivindica e
procura estabelecer a "diferença" dentro da literatura brasileira.
O mesmo autor, em seu texto, “Da razão antropofágica: diálogo e
diferença na cultura brasileira" (1992), concebe a Antropofagia como conceito
filosófico-existencial para expressar as confluências universais e locais no
contexto globalizado da economia mundial, uma vez que a partir do mundo
generalizado das comunicações, que configura o signo literário universal em signo
101
ideológico, observamos uma relação dialógica da comunicação intersubjetiva, ou
seja, o que se percebe é um entrecruzamento de discursos, um diálogo que se
faz necessário e não “xenofobia monológica”, forças em atrito dialético e não
reação de causa e efeito, de modo que todo país não desenvolvido não
necessariamente produziria uma literatura subdesenvolvida, o que significaria
restringir a pluralidade de uma civilização ao mesmo modelo da sociedade
industrial.
A Antropofagia, enquanto conceito teórico que possibilita relacionar as
questões
de
dependência
cultural
e
nacionalidade
literária,
pode
ser
compreendida, portanto, a partir da noção de carnavalização. Este termo,
inaugurado por Bakhtin e resgatado por Oswald de Andrade, opera uma
subversão na hierarquia binária colonizador/colonizado que até então imperava
em toda perspectiva de leitura da crítica literária. Com a ruptura de 1922, os
modernistas,
principalmente
os
primitivistas,
proporcionaram
uma
nova
concepção crítica a partir da qual o conceito “heterogêneo” passa a ser
supervalorizado, considerando, dessa forma, as diversas alteridades que
compõem a cultura brasileira.
Dentro da crítica latinoamericana que se desenvolve principalmente a
partir das décadas de 1960-70, a narrativa fantástica e a estética do maravilhoso
colaboram na formulação e afirmação dessa cultura colonizada que fora oprimida
em seus valores, bem como as narrativas transculturadas que contribuem no
fortalecimento da identidade desses povos.
As questões que englobam o nacional e o universal se tornam mais
densas quando falamos de América Latina, uma vez que as culturas latinoamericanas carregam consigo o viço da colonização e o estigma de uma
economia subdesenvolvida, refletindo e marcando, dessa forma, suas produções
culturais. As relações de trabalho, assim como as relações entre países
economicamente
subdesenvolvidos
e
países
desenvolvidos,
influenciam
dialeticamente as produções culturais. A supremacia do econômico impera
também nas relações de produção intelectual de determinada época, uma vez
que esta está ligada aos predecessores que a transmitem e estes são
102
determinados (predestinados) pela lei da divisão do trabalho. Assim, mesmo um
país subdesenvolvido pode inaugurar uma filosofia ou, em matéria de trabalho
literário, o novo pode surgir a partir de uma economia atrasada. Esta relação
dialética entre poder econômico e produção cultural reflete em outras relações
como entre patrimônio cultural universal e peculiaridades locais que inaugura uma
interdependência universal de nações. Dessa forma, de acordo com Campos
(1992), a partir da Antropofagia, pode-se pensar o nacional em relacionamento
dialógico e dialético com o universal, passando a ser operacionalizado como
termo capaz de ilustrar nossa complexa realidade e herança de colonizados. O
conceito estabelece a possibilidade de questionar toda uma estrutura política,
econômica e cultural aqui implantada pelo colonizador com seus padrões
repressivos de conduta.
O bem material e comercial se torna mais valoroso do que o dono da
terra. Dessa forma o açúcar e o pau-brasil eliminaram o índio das terras do Brasil.
Ânsias modernizantes e métodos retrógrados dominaram as práticas políticas do
povo brasileiro. Alfredo Bosi (1992) destaca o Brasil-Colônia como uma formação
econômico social na qual eram predominantes os latifundiários e seus interesses
mercantis voltados para a Europa, dentre os quais se destacavam os traficantes
de escravos africanos. A força de trabalho era predominantemente desses
escravos e o autor destaca a expressão “escravismo colonial” como nosso
sistema econômico, de modo que os escravos só tinham como alternativa a fuga
para os quilombos. A estrutura política concentra-se entre as oligarquias rurais
mas são submetidos à centralização da Coroa.
As narrativas que surgem desse processo de colonização ilustram a
exploração e o abuso do índio e do africano pelo português tanto no nível
econômico quanto no que concerne aos sistemas simbólico e de valores
enraizados desses povos, no entanto também aparecem como glórias nacionais,
na tentativa de velar e adaptar-se ao colonizado. Existe um dinamismo na
condição colonial que é necessária para a própria sobrevivência do sistema. Os
catequistas jesuítas que vieram em missão de converter nossos índios ao
catolicismo, precisaram se munir de referenciais indígenas para trazer-lhes
103
argumentos que pudessem conduzí-los ao caminho da igreja. A simples
transposição de valores europeus de nada valeria sem a necessária adaptação ao
panorama indígena.
De qualquer forma, podemos perceber uma manifestação que se
destaca à margem de todo o discurso colonizador. Essas manifestações estão
sendo escritas hoje, possibilitadas pelo olhar descentrado, imprimindo uma cultura
que foi gerada em meio a um povo pobre e dominado que foi portador, quando
não agente direto das expressões que aparecem como primitivas ou de
“fronteira”. Naquele espaço que nos aponta para etnias cruzadas e populações de
diversas origens a ponto de sua linguagem ser tão mestiça quanto seu povo. Um
ritual de candomblé, assim como a ladainha à Virgem Maria são manifestações
populares, não importando sua raiz étnica ou suas filiações remotas, mesmo
porque origem não é determinação. Essas manifestações atualizam na
comunidade o sentimento de pertencimento e de identificação. Contudo, é apenas
a partir do século XX que o imperialismo ocidental, em um surto de autocrítica,
repensa a arte popular e começa a olhar com simpatia as formações simbólicas
do homem colonizado.
É nos anos de 1960-1970, no entanto, que a crítica literária vive um
momento de maior sintetização. A modernização exigia conceitos teóricos que
pudessem exprimir a complexidade dos processos de transculturação a que eram
submetidos os países periféricos. O termo de cunho antropológico/cultural do
cubano Fernando Ortiz, de 1940, que expressa todo fenômeno da mestiçagem e
que pode ser estendido, por analogia, a toda América Latina, foi apropriado por
Angel Rama, por volta dos anos 70-80, e aplicado às narrativas literárias
produzidas
pelos
países
que
procuravam
expressar
os
problemas
de
dependência cultural. O termo "transculturação narrativa", dessa forma, conserva
uma estreita relação entre a modernização e a expressão cultural dos países
periféricos.
Conhecemos, no Brasil, o termo, entre-lugar, cunhado por Silviano
Santiago em 1978 que atua no campo da crítica. O conceito, no entanto, não
engloba os impactos dos processos de embate cultural no âmbito narrativo. Em
104
seu artigo “O entre-lugar do discurso latino-americano”, o autor desenvolve a idéia
de que o discurso desses países periféricos ocupa um entre-lugar, uma vez que
foi operado um descentramento do discurso não só filosófico, mas político,
econômico, técnico etc. A metafísica ocidental sempre ocupou o lugar central no
que concerne ao discurso racional e foi divulgada pela Europa como verdade
absoluta e última. Essa filosofia que sempre foi importada para o mundo começa
a se abalar a partir do século XX ou da modernidade a partir das transformações
que com ele surge. O descentramento, termo proferido pelo filósofo Jacques
Derrida em sua teoria da desconstrução, possibilita a quebra dessa razão binária
e lógica na qual existe uma hierarquia de valores. No caso da América Latina, a
abertura possibilitada pelo descentramento promove variados discursos críticos
que colaboram na construção de um imaginário nacional e cultural agora
produzidos a partir das vozes dos países colonizados. Se foi construída uma
realidade utópica para nossa existência, o discurso latino americano surge para
mostrar a realidade “real” a partir do nosso olhar enquanto colonizados.
Na pesquisa desenvolvida durante a dissertação pode-se perceber que
o texto literário é atravessado por esses diversos olhares críticos, sociais e
culturais. A trajetória do herói Macunaíma em busca da identidade perdida e seu
fim utópico, que o leva para o céu, demonstram que sua busca, embora seja
mítica, marca a possibilidade de encontro da própria origem.
Em uma mesma perspectiva antropofágica, a revolta deflagrada pelo
povo brasileiro, ao adquirir a consciência de sua condição, amplia o sentido da
mistura cultural como forma de transformação. A identidade, aqui, se constrói a
partir das várias marcas deixadas pelo encontro cultural, das várias origens, das
várias almas.
Em, Maíra, entretanto, a questão se torna mais complexa porque a
própria narrativa não procura uma saída para o confronto étnico e cultural, nem
pela utopia, nem pela revolução. Isaías, por ser aculturado, não é capaz de voltar
a sua origem e recuperar sua identidade, nem tampouco é capaz de usufruir da
cultura do branco para transformar qualquer que seja a realidade.
Assim, em cada um desses momentos, pode-se depreender a idéia de
105
que falar em identidade e origem requer um olhar tão abrangente como a própria
concepção de heterogêneo e multiplicidade. O olhar diante da cultura deve, dessa
maneira, passar por diversos campos que se entrecruzam e, como diria Derrida,
se suplementam. Na medida em não podemos instituir uma única origem cultural,
menos ainda podemos pretender que nosso povo brasileiro possua apenas uma
forma de constituição da identidade cultural.
106
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a identidade cultural brasileira: rastros das diferenças