Capítulo 2: Análise Crítica da Produção Científica
As impressões da viagem epistemológica
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Os trabalhos descritos por este capítulo tiveram o objetivo essencial de elaborar
aquelas que parecem ser algumas das mais importantes questões epistemológicas do
geoprocessamento.
No contexto da metáfora de uma viagem epistemológica ao geoprocessamento, este
capítulo se consubstancia no relato da viagem, ou seja, pela elaboração das impressões que se
originam desta viagem epistemológica. Trata-se, portanto, da articulação das impressões da
viagem em torno das questões que melhor expressam os aspectos do desenvolvimento
técnico-científico do geoprocessamento, à volta dos quais não há sinais manifestos de
consenso entre as diversas perspectivas que os contemplam.
A diretriz desta investigação epistemológica resulta instruída e inspirada pelo quadro
metodológico elaborado e apresentado no capítulo anterior, que vem a ser, a rigor, um quaseguia desta viagem metafórica.
O objeto do estudo desta viagem investigativa, ou seja, o território do conhecimento
por ela percorrido, contempla uma parte da produção científica que dá corpo ao saber sobre o
geoprocessamento.
Sempre em presença da percepção de que a intenção desta viagem, ou seja, desta
investigação, é a de levantar questões epistemológicas sobre o geoprocessamento, espera-se
que, com este trabalho, resulte estimulada uma maior e mais profícua reflexão acerca do
sentido e da natureza do conhecimento que vem sendo construído pelos estudos substanciais
desta tecnologia.
2.1 – A análise crítica e a elaboração das perguntas que formam o questionário
Em consonância com o que já foi descrito no capítulo anterior, uma segunda leitura
mais amiúde da produção científica selecionada, efetuada à luz da definição das seis questões
epistemológicas, tentou articular as idéias que permitiam dar corpo às convergências e
divergências que dispensavam ao geoprocessamento a impressão de uma ciência ou
tecnologia em construção.
Tratou-se, portanto, de levar estas questões às fontes consultadas para nelas apurar
uma impressão prévia que permitisse a elaboração das perguntas que seriam apresentadas, via
questionário qualitativo, ao diálogo com a comunidade científica.
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A natureza essencial de cada pergunta resulta da análise crítica que deu subsídio à
elaboração do capítulo 2, e que objetivou, em sua essência, apresentar questões à realidade da
construção do conhecimento sobre geoprocessamento, de uma forma que se pode considerar
inspirada pelo que faz a teoria crítica qualificada por Milton Santos:
"Toda teoria é crítica, porque não é fixa, não é imóvel, não é eterna. E o
que faz uma teoria? Sua tarefa essencial é propor questões à realidade. Os
conceitos são questões postas à realidade. Quando quero conhecer a
realidade, eu apresento questões que são historicamente datadas, e é esse
processo de análise que também constitui a crítica do presente e das
respectivas idéias." (Santos, 2000b, p.47)
As seções subseqüentes – 2.2 a 2.7 – reportam as reflexões que foram promovidas para
a elaboração das perguntas que compuseram o questionário da pesquisa.
As questões e as perguntas objetivaram levar para um diálogo com a comunidade
científica do geoprocessamento, a discussão acerca da pertinência e do impacto na construção
do conhecimento que hoje se promove.
Parece oportuno reafirmar que as perguntas e respostas da pesquisa encontram-se
apresentadas na íntegra no anexo B, bem como, que o cotejo das respostas que substancia o
diálogo estabelecido pela comunidade encontra-se apresentado no capítulo 3 desta
dissertação.
2.2 - A fundamentação epistemológica do geoprocessamento
A ciência do geoprocessamento não descortina um objeto de estudo tão singular, a
ponto de lhe permitir ser compreendida como uma disciplina científica cujo corpo de
conhecimentos lhe seja absolutamente particular. Em realidade, a questão do objeto do
geoprocessamento é bastante mais complexa.
Numa perspectiva eivada pela intuição, a percepção mais ampla dá conta de uma
tentativa de estabelecer representações do espaço geográfico. Representações que em tudo
fazem lembrar a ciência da cartografia, à qual se fariam acrescidas as cada vez mais poderosas
capacidades de análise espacial de dados que os ambientes digitais facultam.
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A própria natureza etimológica do termo, que predomina como denominação mais
genérica desse campo de conhecimentos, traz em si a associação dos termos geo (que remete à
geografia e à questão do espaço geográfico) e processamento (que associa-se, em sua acepção
hodierna, à questão do processamento informático de dados). Numa inevitável perspectiva
simplista, o termo referencia-se ao processamento de dados geográficos, com o objetivo
presumível de representar um conhecimento sobre o espaço geográfico.
No entanto, representar um conhecimento sobre o espaço, não foi a razão da
existência da cartografia de sempre? Por que agora se chama geoprocessamento, e não
mais cartografia?
O principal impacto que parece ter ocorrido na transição da representação do espaço
da cartografia convencional para os ambientes informatizados de geoprocessamento é que eles
incorporaram a idéia de transformar-se num sistema de informações. Ganharam imensa
complexidade, e um maior poder de representação do conhecimento acerca do espaço.
A cartografia se constituía, em geral, por uma representação datada e estática, que
representava uma visão fixa da realidade. Feita com ciência, e com franca utilização de sua
linguagem própria, ela até podia ensejar uma percepção de processos espaciais, bem como de
uma série de informações latentes, ou seja, não manifestadas objetivamente pela
representação, mas isto, no entanto, ensejava um esforço grande na composição semiótica da
sua mensagem. Havia, efetivamente, uma limitação na transmissão das informações, que
resultava de sua natureza estática. Ademais, no que tange à forma de sua apresentação, em
folhas de carta, ou mesmo num conjunto delas, como no caso dos Atlas, não se podia observar
que a praticidade no uso fosse um de seus pontos favoráveis. Talvez sejam essas as razões
mais gerais para que a cartografia nunca tenha verdadeiramente alcançado uma disseminação
de uso compatível com seu papel na representação do conhecimento.
No entanto, ao se aclimatarem ao ambiente digital, as representações começaram a
explorar as possibilidades de se expressar numa apresentação dinâmica. Vale ressaltar que
não se está a falar de representar o movimento, o dinamismo do espaço, como vem tentando
fazer a chamada cartografia animada, mas sim de explorar o dinamismo da apresentação, ou
seja, de poder explorar, por exemplo, funções de Pan (deslocamento da representação na tela
de visualização) ou Zoom (ampliação ou redução da representação na tela de visualização).
O ambiente digital trouxe ainda a possibilidade de alterar, com simplicidade, a
combinação dos objetos cartográficos expostos na tela de visualização da representação,
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restrição que era natural à apresentação gráfica, em folhas de papel, que antes existia. Com
isso, a apresentação ganhou imensa flexibilidade, ampliando o leque de possibilidades na
apresentação/visualização da representação do espaço geográfico.
Para além disso, as possibilidades de combinar de forma eletiva a apresentação das
informações, que agora poderiam ser armazenadas em planos (níveis) de informação
diferentes, que seriam ativados ou não na apresentação, permitiu que não mais se restringisse
a coleta de dados às limitações de um ambiente gráfico convencional. Em outras palavras, isto
significa dizer que a partir de então, nos ambientes digitais, passou a ser possível coletar,
estruturar e arquivar uma quantidade de informações superior às possibilidades de
apresentação simultânea.
Desta forma, o usuário da representação passou a dispor do poder de selecionar e
combinar os planos de informação que comporiam a apresentação de seu interesse,
diferentemente da cartografia convencional, quando as informações vinham apresentadas
segundo uma solução estabelecida quando da composição da carta. Resultam criadas,
portanto, novas condições para a representação do conhecimento sobre o espaço. Há maiores
condições de armazenamento de dados, há maior flexibilidade para articulação destes dados,
há maior capacidade para produção de informações espaciais, bem como há, como se
descobriria naturalmente, na seqüência, uma imensa possibilidade de incorporação de
ferramentas de análise de dados a estes novos sistemas para apresentação das informações
sobre o espaço geográfico.
Processando dados sobre o espaço geográfico, os ambientes computacionais de
geoprocessamento ampliaram a produção de informações necessárias à representação,
representando e descrevendo de maneira mais fina o funcionamento do sistema do real (o
espaço geográfico), agora refletido pelo sistema de informações em que haviam se
transformado as representações. (Sandron, 2002, p.45)
O crescimento do poder de representar
Uma outra possibilidade que resulta da transformação das representações em sistemas
de informações é a incorporação das bases de dados literais. Na prática, esta incorporação não
se viabilizou apenas pelo ambiente computacional de geoprocessamento. Sempre foi possível
a associação de informações literais a pontos definidos nos mapas, mesmo num ambiente
gráfico muito restrito como o dos mapas impressos. Os guias de cidade em que uma
convenção de uma igreja, por exemplo, encontra-se associada a um número, a partir do qual é
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possível identificar numa dada tabela o nome da igreja, bem como as demais informações
literais básicas sobre ela, não é nada de absolutamente novo ou pouco usual. A diferença é
que o ambiente dos sistemas de informações tornou esta associação poderosa e simples de ser
utilizada. O poder de representação cresceu enormemente, mas na essência, segue sendo uma
representação.
Esta perspectiva geral, no entanto, não parece ter maior apelo junto aos responsáveis
pela conceituação do que vem a ser geoprocessamento. A rigor, o próprio termo
geoprocessamento não se faz consensual no contexto da produção científica. Já há diversos
trabalhos que se propõem a discutir e confrontar perspectivas diversas, a despeito da maioria
destes trabalhos terem em foco, mais propriamente, os Sistemas de Informações Geográficas SIG, que são, para todos os efeitos, apenas uma parte da tecnologia que se associa ao conceito
de estabelecimento de representações do espaço geográfico.
William Huxhold, ao comentar uma definição de SIG dada por Burrough, observa que
há tantas definições de SIG quantas são as disciplinas envolvidas em seu uso, e ainda que, em
realidade, os SIG são um conjunto de ferramentas que os profissionais destas disciplinas usam
para aprimorar seus processos de trabalho. (Huxhold, 1991, p.25) A se considerar que
praticamente todas as atividades humanas têm a si associadas uma dimensão espacial, parece
plausível considerar que grande parte delas se interessem pela apreciação desta dimensão,
desde que disponham de conhecimento e de ferramentas adequadas para esta empreitada.
A impressão que se desenvolve à luz da apreciação de grande parte da produção
científica do geoprocessamento dá conta de que, até a incorporação dos ambientes gráficos
computacionais à ciência da representação do espaço, diversas destas disciplinas tinham
grandes dificuldades em lidar com esta dimensão em suas próprias atividades. As
representações convencionais, das quais a cartografia aparece com destaque, não pareciam
desfrutar do apelo que têm os ambientes de geoprocessamento.
Como resultado da flexibilidade na produção de informações e do natural apelo
tecnológico que os ambientes gráficos computacionais exercem, o que parece haver, portanto,
é uma expansão do conhecimento acerca do papel das representações do espaço, ou mesmo
uma descoberta, por várias disciplinas, da possibilidade de representar espacialmente
informações que são importantes ao conhecimento de sua própria fenomenologia.
Passa a haver, desta forma, uma série de atividades e disciplinas neófitas no processo
de uso das representações do espaço, o que torna plausível a percepção de que os sistemas de
geoprocessamento se constituem numa tecnologia essencialmente nova. Mas será que é
mesmo uma tecnologia realmente nova? Será que a geologia, por exemplo, que sempre se
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serviu das representações do espaço, acha o geoprocessamento atual tão revolucionário em
relação à cartografia, como o entendem, por exemplo, os estudos epidemiológicos?
A predominância do enfoque nos SIG
Um dos mais prováveis indícios de que a percepção mais ampla sobre a relação
semântica entre representação do espaço, cartografia e geoprocessamento não tem sido um
objeto freqüente de estudos epistemológicos é a predominância do enfoque nos SIG. Estes
sistemas, a despeito de serem a face mais exterior do geoprocessamento, não encerram as
questões acerca das modernas representações do espaço. No entanto, muito do que a eles é
referenciado pode perfeitamente ser apreciado como uma crítica ao geoprocessamento, posto
que contemplam questões acerca da natureza do conhecimento que eles propugnam, bem
como, questões acerca do seu papel enquanto ferramenta tecnológica de representação do
espaço. A rigor, em diversos textos, as percepções de geoprocessamento e de SIG se
confundem.
Maria Luisa Gomes Castello Branco em um artigo científico sobre a relação da
geografia com os SIG (1997) arrolou em um anexo algumas das diversas e mais importantes
definições sobre estes sistemas, à luz das quais fica patente a condição do geoprocessamento
como uma ciência ou tecnologia em franco processo de elaboração.
A se considerar que está em construção, entende-se como muito mais natural que haja
certa cacofonia tanto na conceituação quanto na edificação de um vocabulário que dê conta
dos novos processos e das novas funcionalidades que vão sendo pesquisadas. Não parece ser
desatinada a idéia de se estabelecer certa analogia com o que Eric Hobsbawm observa em
relação à gênese de palavras, quando trata especificamente do termo "greve":
"A greve é uma conseqüência tão espontânea e lógica da existência
da classe trabalhadora, que a maioria das línguas européias possuem
palavras nativas bastante independentes para ela (p.ex. grève, strike,
huelga, sciopero, zabastovka), enquanto as palavras usadas para as
instituições são freqüentemente emprestadas." (Hobsbamw, 2000a,
p.293)
Geomática e geoprocessamento, por exemplo, representam processos diversos? E
geoinformação, em seu sentido mais amplo, que processo representa? Não haveria aqui uma
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gênese de palavras diversas para representar um fenômeno único, da mesma forma que
Hobsbawm lembra existir para a palavra greve? Uma gênese de palavras diversas que não
decorre de diferenças idiomáticas, como no exemplo do historiador, mas sim do
desenvolvimento paralelo, em comunidades científicas apartadas, de uma renovação no
processo de representação do espaço geográfico.
Não estariam, portanto, tanto o geoprocessamento pretérito, a cartografia, que também
processava e apresentava dados geográficos, quanto o moderno geoprocessamento em
ambientes computacionais fundamentados na idéia de que os seres humanos têm uma especial
habilidade para entender complexas relações espaciais, quando dispõem de uma visualização
destas? (Bonham-Carter, 1994, p.3-4) Não seriam as técnicas cartográficas, implementadas
em ambiente analógico ou digital, que responderiam pela construção das representações? Por
que a representação no âmbito do geoprocessamento informatizado deveria ser considerada,
como sugerem Câmara et al., apenas uma representação computacional? (2003a)
O que há de comum, afinal, nas diversas perspectivas?
Parece haver o óbvio, nem sempre manifesto: o geoprocessamento enquanto
representação da dimensão espacial dos fenômenos.
Uma representação que, para ser tão fidedigna quanto possível, precisa bem conhecer
aquilo que deseja representar, ou seja, o seu objeto, o espaço geográfico.
Uma representação construída pela via de uma linguagem: a linguagem cartográfica.
Uma representação potencializada por um poderoso contexto para a expressão
lingüística: o ambiente computacional.
Seriam então a geografia, a cartografia e a informática as ciências que fundamentam a
construção do conhecimento sobre geoprocessamento?
Que ciências, afinal, se encontram a montante da construção do conhecimento
sobre geoprocessamento?
Que ciências são essenciais à produção do geoprocessamento?
Produz-se geoprocessamento sem alusão a qualquer conhecimento geográfico? Ao
entendimento, por mais precário que seja, da fenomenologia espacial dos objetos e processos
que configuram um dado espaço geográfico? É possível produzir geoprocessamento, sem
lançar mão de qualquer das técnicas cartográficas, por mais rudimentares que estas sejam?
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Parece importante, a esta altura, enfatizar que esta abordagem não objetiva
hierarquizar em importância as ciências que se encontram a montante da construção do
conhecimento. Tampouco advoga uma eventual pouca importância da ciência da computação
naquilo que hoje se conhece por geoprocessamento, apenas por conta de ser esta disciplina a
mais nova das que afluem. Isso incorreria na tolice de negar o óbvio, posto que foi exatamente
a afluência dos recursos da informática que promoveu a hipotética revolução nas
representações do espaço. Aquilo que hoje se conhece de forma abrangente como
geoprocessamento não existiria na dimensão que existe, se não fossem os poderosos recursos
de processamento de dados que foram incorporados pela informática.
No entanto, será possível voltar da viagem de uma investigação epistemológica
pela produção científica que aborda o geoprocessamento, com esta perspectiva
reafirmada?
William Huxhold, ao tratar mais especificamente dos SIG, advoga que muitas
diferentes disciplinas têm sido necessárias para dar força e flexibilidade à tecnologia dos SIG,
ao citar “geografia, levantamentos, processamento de dados, engenharia, planejamento, meio
ambiente, paisagismo, dentre outras.” (Huxhold, 1991, p.xiv) Não parece claro que ele tenha
citado as disciplinas segundo uma hipotética ordem de importância, no entanto é interessante
que geografia, levantamentos e processamento de dados estejam, nesta ordem, à frente da
lista.
John Pickles considera que a epistemologia e os métodos que dão conta dos SIG
originam-se de círculos científicos que cultivam perspectivas positivistas e empíricas e que é a
revitalização da análise espacial, da cibernética e da informática que subsidiam este
desenvolvimento. (Pickles, 1995, p.12)
Huxhold faz parte de uma comunidade de cientistas envolvidos com o
desenvolvimento dos SIG, em geral afeita a uma geografia de inspiração positivista, enquanto
Pickles editou um profundo trabalho de crítica aos sistemas de geoprocessamento, num
sentido amplo, e aos SIG, de uma forma pouco mais específica. Manifestam-se assim,
também, as diferentes perspectivas que emergem de uma viagem mais ampla pela produção
científica do geoprocessamento. Como pôde ser observado ao longo do que se reporta em
todo este trabalho, há tudo menos unanimidade acerca das perspectivas sobre
geoprocessamento.
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Se a viagem se desloca pelo espaço da produção científica de Câmara et al., por
exemplo, as impressões dão conta da percepção da cartografia como uma ciência em virtual
processo de obsolescência. Parece haver, na conceituação que reporta o geoprocessamento
como uma “representação computacional do espaço” (Câmara et al., 2003), a percepção de
que apenas geografia e informática se articulam na fundamentação epistemológica do
geoprocessamento. Esta perspectiva, quando posta em confronto com a visão histórica de que
o geoprocessamento existiria, ainda que não existisse a ciência da computação, revela um
paradoxo que expõe uma situação não consolidada na percepção desse campo do
conhecimento, que parece recomendar a consideração de que se está a tratar daquilo que
Latour (2000, p.16) chama de “ciência em construção.”
Se a construção científica se encontra ainda em aberto, seria correto então
renunciar à tentativa de identificar as ciências que aportam conhecimentos ao
geoprocessamento?
Em absoluto. Numa primeira avaliação de caráter mais genérico, o problema parece se
subdividir em três grandes dimensões.
A primeira dimensão seria aquela que diz respeito às demandas da aplicação do
sistema, ou, em outras palavras, das funcionalidades que fazem o sistema útil, dentro do
contexto no qual ele se aplica.
O que se pretende responder com as análises espaciais que o sistema pode suportar?
De que forma o sistema pode apoiar estas análises? Que informações o sistema precisa
gerar para que as expectativas em relação ao seu papel, no contexto da sua aplicação, sejam
minimamente alcançadas?
Uma segunda dimensão, não menos importante, inclusive por conta de seu caráter
científico, é a questão da leitura do espaço que precisa ser feita para que esse sistema se torne
conseqüente com as expectativas em relação à importância de seu papel em um dado
contexto. Trata-se, portanto, de uma questão essencialmente geográfica, que se prende à
percepção que se tem dos sistemas de objetos e dos sistemas de ações que consubstanciam o
espaço geográfico acerca do qual deseja-se descrever, entender e explicar os fenômenos
associados. Aqui, portanto, há não apenas a questão de adequadamente perceber os
fenômenos espaciais, mas também, ou principalmente, a preocupação com a estruturação de
uma representação conseqüente desses fenômenos.
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No entanto, a complexidade e a fluidez dos processos que dão substância ao espaço
deixa patente a impossibilidade de se efetuar qualquer registro, em qualquer linguagem,
inclusive na linguagem cartográfica que se associa ao geoprocessamento, sem que imensas
simplificações sejam estabelecidas. A questão de fundo é: O registro remanesce
representativo e conseqüente? Jamais haverá opinião consensual sobre isso, inclusive porque
no próprio núcleo da ciência geográfica há correntes de pensamento que questionam
profundamente a pertinência de se apreciar determinados fenômenos espaciais à luz da
contribuição trazida pela representação gráfica do espaço (principalmente quando essa se faz
restrita à representação dos objetos geográficos fixos que configuram a paisagem do recorte
territorial considerado).
A terceira e última dimensão diz respeito ao desafio de como projetar e implementar
um sistema de geoprocessamento que possa dar conta da complexidade do espaço, ainda que,
assumidamente, se esteja a estabelecer reduções dessa complexidade, inevitáveis reduções,
para que a sua representação possa ser levada a bom termo. A questão remete o estudo para a
definição das características e das potencialidades que deve ter o sistema de informações,
nessa dimensão de tratamento de dados cartográficos e literais, para adequadamente
representar essa complexidade espacial.
Parece haver uma delimitação razoavelmente bem estabelecida em relação às
ciências que apoiam as três dimensões?
A rigor, em razão do observado na viagem epistemológica, não. No entanto, no
exercício tentativo de estabelecer uma síntese que possa instilar o debate com a comunidade
científica, seria possível consolidar a perspectiva a seguir:
O geoprocessamento, numa definição sintética, é a ciência e a tecnologia que,
hodiernamente, trata das representações do espaço geográfico. Desta forma, ele contempla em
suas atividades iniciais a coleta de dados para a construção das representações (sensoriamento
remoto e levantamentos diversos, p.ex.); numa fase subseqüente, a construção dessas
representações (computacionais ou não) em linguagem gráfica; para finalmente, em suas mais
modernas manifestações, promover a intensa análise das informações geográficas produzidas,
como no caso das aplicações em SIG.
Parece adequado considerar que há o concurso das seguintes ciências à base do seu
conhecimento: num primeiro momento, é necessário o conhecimento da natureza do espaço
geográfico, para que possa haver uma adequada compreensão da dimensão espacial do
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fenômeno a representar. É, portanto, a ciência da geografia que aduz o conhecimento que
permite a "leitura espacial" do fenômeno; entender, para usar uma definição sintética de
Milton Santos, os sistemas de objetos e os sistemas de ações que substanciam o espaço. Na
construção da representação, é a ciência da cartografia que disponibiliza conhecimentos e
técnicas que permitem, através de uma semiótica particular, independentemente do meio
utilizado (computacional ou não), representar a leitura do fenômeno em tela. Até aqui, o
geoprocessamento confunde-se com a cartografia que sempre existiu. O que o parece
diferenciar, no estado da arte atual, é o intenso afluxo de técnicas que a informática vem
disponibilizando para a análise das informações veiculadas pela representação do espaço. À
luz destas técnicas, não parece fácil tornar evidente que há uma revolução essencial na
representação, inclusive porque a maioria dos instrumentos de análise de que o
geoprocessamento se serve, não têm nada de conceitualmente novo. A novidade que aflui por
conta da intensa participação da informática, decorre da viabilização de instrumentos de
análise que seriam de aplicação virtualmente impraticável em um ambiente gráfico
convencional.
Com base nestas considerações consubstanciam-se as razões para a elaboração da
primeira pergunta da pesquisa qualitativa.
O diálogo com parte da comunidade científica de geoprocessamento estabelecido pela
pesquisa qualitativa em função desta questão se encontra apresentado na seção 3.2 do
próximo capítulo 3.
Associam-se também a esta questão as motivações para uma reflexão acerca do olhar
que a comunidade científica dispensa ao geoprocessamento, e que dá substância à elaboração
da segunda das questões deste trabalho.
2.3 - Geoprocessamento: ciência, tecnologia ou tecnociência?
De que natureza é o olhar que se lança sobre o geoprocessamento?
Será que há uma compreensão minimamente comum acerca do papel do
geoprocessamento na representação do espaço geográfico?
Parece que há acordo acerca da necessidade do geoprocessamento em representar; no
entanto, será que há consenso acerca das razões pelas quais construir estas representações?
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A análise de parte da produção científica em geoprocessamento deixa por vezes a
impressão de que não há clareza acerca da relação entre descrição e explicação, bem como
deixa ainda a impressão freqüente de que se está em face daquilo que Howard Veregin chama
de adaptação reversa, ou seja, “uma transformação dos objetivos originais [das
representações] para acomodação dos novos meios técnicos disponíveis”, que ainda segundo
o autor, “também se manifesta em termos de uma desarticulação entre o sujeito e seu objeto.”
(1995, p.100) Não parece impertinente acrescentar, um também desarticulador distanciamento
entre o sujeito e os objetivos da representação, posto que, no caso do geoprocessamento,
como de resto na edificação de qualquer outra forma de representação, não há sentido em
imaginá-las construídas sem um vínculo estreito com seus objetivos.
Parte destas desarticulações decorrem da transformação do geoprocessamento num
grande negócio. (Pickles, 1995, p.223) Um negócio novo, capaz de produzir e explorar novos
mercados, muitas vezes por conta do apelo a um caráter hipoteticamente revolucionário das
representações do espaço geográfico. O trabalho de Susan Roberts e Richard Schein (1995)
mostra de forma muito interessante certos expedientes de apelo comercial dos atores destes
mercados, através da crítica de alguns dos principais anúncios comerciais publicados nas
revistas de geoprocessamento, bem como dos valores por eles propugnados, muitas vezes de
forma subliminar.
Como a expansão ou até a massificação do mercado de produtos e serviços de
geoprocessamento é comercialmente muito interessante para grande parte de seus atores, a
idéia de que o geoprocessamento é algo de revolucionário. Este apelo permeia grande parte de
tudo que se publica acerca dele. Como os vínculos entre sociedade e ciência são muitos, a
perspectiva de que há uma revolução nas novas formas de representação, por vezes, parece
encantar uma boa parte da comunidade científica, o que leva à necessidade de se explorar,
ainda que algo superficialmente, esta questão.
Afinal, o que o geoprocessamento traz de novo à ciência da representação? Tratase de uma evolução das representações ou de uma revolução em seu sentido essencial?
Uma das primeiras constatações que resultam desta perspectiva crítica sobre a
produção científica do geoprocessamento dá conta de que, a despeito da manifesta relevância
dos estudos de representação do espaço que sempre foram promovidos pela ciência da
cartografia, ao longo de seu desenvolvimento histórico, diversos textos ignoram essa
contribuição, acantonando a cartografia num papel meramente histórico. A desconsideração
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em relação ao trabalho de Jacques Bertin, por exemplo, por grande parte da produção
científica de geoprocessamento, a despeito de sua mundialmente reconhecida importância
pelos trabalhos de semiologia gráfica que apresentou, parece ser um dos indícios mais
importantes desta desarticulação entre o conhecimento que se tenta construir e aquele que já
se havia construído.
Será que no advento do geoprocessamento há continuidade no processo de
desenvolvimento das ciências da representação do espaço, ou há uma descontinuidade, talvez
mesmo uma ruptura?
Não há nesta viagem epistemológica a oportunidade para uma exploração histórica
consistente, no entanto, resulta presente em toda a análise crítica da produção científica do
geoprocessamento a percepção de que um maior esclarecimento sobre esta questão pode advir
da intenção de estudar e compreender a forma como o passado se tornou presente, mesmo à
luz da certeza de que o maior dos obstáculos decorre do fato de que eles são verdadeiramente
diferentes. (Hobsbawm, 2000c, p.22)
A questão parece ser, portanto, a identificação da natureza do processo de
diferenciação entre as formas pretéritas de geoprocessamento, essencialmente cartográficas, e
as formas presentes desta tecnologia, que são profundamente influenciadas pela tecnologia
das chamadas infotelecomunicações: afinal, há no geoprocessamento evolução ou revolução?
A idéia de revolução na ciência da representação do espaço geográfico traz à baila a
hipótese da inserção do geoprocessamento no modelo de revoluções científicas de Thomas
Kuhn. Esta hipótese, no entanto, não parece resistir à primeira apreciação. Não havia,
precedentemente à disseminação do geoprocessamento, como hoje se conhece, um efetivo
paradigma à construção das representações. Não há, portanto, uma crise ou colapso do
paradigma antes dominante que justifique o enquadramento nos moldes das teorias de Kuhn.
Ademais, a referendar a inexistência de um paradigma antes estabelecido acorre a percepção
de que mesmo a ciência que estuda a natureza do espaço geográfico, a geografia, ainda não
logrou alcançar, de forma alguma, a conceituação de ciência normal que estabelece o referido
modelo para desenvolvimento das ciências. À luz deste quadro teórico, não parece haver
sentido em falar de revolução.
Talvez haja, por parte daqueles que querem argumentar a favor da idéia de uma
revolução, a inconsciente assunção de que é esquecendo que se produz intelectualmente; de
que é negando as soluções precedentes que se evita o que Milton Santos chama de
"anacronização do presente" (2000, p.44). Referenciando-se ainda à idéia de sistema, muito
presente em todas as suas teorias sobre espaço, Milton Santos observa que há ainda que se
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refazer o sistema a cada reavaliação dos marcos conceituais. Mas Milton estabelece ressalvas
à figura de retórica do esquecimento, e acaba por induzir a reflexão de que essa tensão entre
evolução e revolução, continuidades e descontinuidades, não tem equacionamento simples,
principalmente no caso de ciências em franca construção, ou seria reconstrução, como é caso
do geoprocessamento. Neste ainda operam, para agravar as tensões, aquelas referentes à
dicotomia entre as ciências naturais e sociais, que têm natureza própria, sobre as quais o
esquecimento tem operacionalidade bastante diferente.
Por vezes, a leitura procura fazer crer que se está a falar de uma nova ciência e
tecnologia de representação da dimensão espacial dos fenômenos, como se ela representasse
uma verdadeira revolução, talvez mesmo uma reinvenção desta representação. Longley et al.,
por exemplo, posicionando uma pretensa “GIScience” (2000, p.viii) no contexto das
tecnologias de informação e telecomunicação, estabelecem um rompimento com o passado,
que poder-se-ia dizer típico destes tempos pós-modernos, ao proclamar que se está em face de
uma maneira genuinamente diferente de tratar as informações geográficas.
Longley et al. (2000, p.viii) denominam “GIScience” aquilo que entendem ser a
ciência que fundamenta o desenvolvimento e a implementação dos Sistemas de Informação
Geográfica. Os autores abdicam, entretanto, de tratar a fundamentação científica do SIG à luz
da divisão tradicional de disciplinas que se vem estabelecendo ao longo dos tempos. Na
apresentação de sua filosofia em relação aos SIG, dão bastante ênfase à questão das
aplicações práticas dos sistemas, mas ressalvando que há ciência, para além de tecnologia, em
todas as aplicações de sucesso. Por vezes, a percepção da leitura dá conta de que há até um
certo fetiche no emprego da palavra ciência.
O risco que parece implícito nessa idéia de uma “GIScience”, que constrói seu corpo
de conhecimentos sem vínculos formais a disciplinas já existentes (nesse caso particular, com
a Geografia), reside no fato de que se a “GIScience” apropria das disciplinas tradicionais,
num movimento seletivo, apenas as partes que considera de seu interesse, como no caso do
reconhecimento de padrões espaciais, para a Geografia, e como no caso das projeções
cartográficas, para a Cartografia (Longley et al., 2000, p.xiv), sem incorporar as articulações
internas à Geografia e à Cartografia que contextualizam a aplicação dessas técnicas, a
formação deste novo corpo de conhecimentos (GIScience) pode se mostrar inconsistente, à
medida em que a crescente complexidade das aplicações forem pondo as novas técnicas à
prova, como que numa repetição das condições históricas que relativizaram e
contextualizaram a aplicação dessas técnicas em suas ciências de origem (Geografia e
Cartografia).
121
Por vezes as tentativas de desenvolver a idéia de uma GIScience em tudo se
assemelham a uma delirante e mercantilista tentativa de conquistar neófitos no uso da
dimensão espacial. Há de certa forma o emprego de uma linguagem messiânica, deixando a
impressão de um certo autismo científico, que pode até incomodar uma parte dos
pesquisadores que têm um conhecimento mais profundo das representações e de disciplinas
mais antigas como a geografia e a cartografia, nas quais a GIScience vai pilhar seus principais
conceitos revolucionários. Curioso ver Longley et al. observarem em seu livro que as
“projeções cartográficas, por exemplo, são parte da GIScience, e são usadas e transformadas
nos GISystems.” (2000, p.22)
Parece compreensível que haja, por parte daqueles que estão mergulhados nos estudos
sobre o desenvolvimento da base científica do geoprocessamento, uma ambição pela criação
de uma nova disciplina, de caráter revolucionário, cuja operacionalidade supere as
contradições e dificuldades inerentes ao objeto complexo de disciplinas como a Geografia e a
Cartografia. No entanto, o caminho, árduo, é verdade, precisa passar pela discussão e racional
desqualificação daquilo que passa a ser considerado como superado, e não apenas pelo
desconhecimento das controvérsias que ainda existem, como é o caso mais notório da
Geografia, na qual não há visão hegemônica acerca de seu objeto, nem tampouco acerca da
natureza de seus métodos de investigação.
Surge, de certa forma até naturalmente, uma analogia ao que Compagnon chama de
três elementos fundamentais do discurso que apresenta o fato moderno: o caráter de ruptura, a
imposição do novo e a pretensão de alcançar a totalidade. (apud Gomes, 2000a, p.48)
Paulo Cesar da Costa Gomes apresenta uma perspectiva sobre a relação entre o
moderno e o antigo que pode ser profundamente inspiradora a um inquisidor acerca das
relações entre as representações pretensamente hodiernas do geoprocessamento e suas
correspondentes no tempo da cartografia convencional:
“Todo fenômeno, quando se apresenta como moderno, parte de uma
referência negativa àquilo que existia antes e que a partir de então se
transforma no antigo ou no tradicional. O moderno possui uma ligação
intrínseca com a contemporaneidade: substitui alguma coisa do
passado, defasada ou, simplesmente, alguma coisa que não encontra
mais justificativa no tempo presente. Daí vem a concepção de uma
estrutura em progressão, segundo a qual o avanço e a mudança são
sempre elementos necessários. O resultado é uma cadeia de derivações
na qual substituições consecutivas e progressivas são regularmente
122
estabelecidas. O ‘novo’ torna-se sinônimo de legítimo e, em seu nome,
busca-se toda gama de justificativas.
Se o novo deve periodicamente ser imposto no lugar do tradicional ou
do antigo, o mecanismo primeiro dessa substituição é a ruptura. É pela
negação daquilo que existia, pela prova de sua inadequação, pelo
desvelamento do tradicional, que o novo deve se afirmar. Assim, falar
do moderno é também renovar continuamente um conflito, um debate.
Logo, a proposta é de uma mudança radical, e não de uma adaptação
ou de um ajuste progressivo.
Ao proceder por rupturas e ao propor algo de novo, o moderno
participa sempre de um sistema global. Não se trata de setores
específicos a transformar, mas de toda uma lógica a redefinir. Esta
generalização está ligada à pretensão de totalidade que o “novo”
espera impor ao tradicional.” (Gomes, 2000a, p.48-49)
Essa parece ser razão para uma cuidadosa reflexão. A revolução científica verdadeira é
sempre razão para enormes expectativas. Expectativas que, em geral, incutem a esperança de
abandono de métodos e instrumentos que, por serem complexos e de difícil emprego,
restringiam a disseminação de sua aplicação. As representações do espaço geográfico, objeto
precípuo da cartografia, nunca foram de simples confecção. Demandavam enorme esforço
para aquisição dos dados, necessariamente coletados de forma direta, ou seja, no campo, ou
na melhor das hipóteses por técnicas de levantamento indireto, com apelo às complexas
operações fotogramétricas, para além da grande especialização necessária ao desenho gráfico
das representações.
Afora todo esse esforço, remanesciam ainda limitações decorrentes das imensas
dificuldades à disseminação dos documentos, mormente pela ausência de meios simples de
reprodução de originais. Ainda que imensos progressos de reprodução fotomecânica e de
meios indiretos de coleta de dados, como no caso da aerofotogrametria, terem ocorrido no
século XX, principalmente em sua segunda metade, a utilização da linguagem cartográfica
para representação de fenômenos espaciais ainda encontrava-se, até a implementação efetiva
dos meios computacionais no ambiente de produção da cartografia, bastante aquém de suas
potencialidades.
Nesse contexto, qualquer avanço técnico que viesse a liberar os grilhões que impediam
a disseminação do uso das representações espaciais tenderia a ser encarado como libertador,
ou revolucionário, ainda que pareça exagerada a construção intelectual que alude a uma
associação ideológica com movimentos que realmente se tornaram paradigmáticos no
rompimento com ordens anteriores, como foi o caso da revolução industrial.
123
Mas há nessa história toda uma certa influência perniciosa das estratégias de
marketing do geoprocessamento, que, em certo sentido, e orientadas para a cooptação de
novos usuários, fazem imenso apelo a uma certa capacidade mítica do geoprocessamento em,
incorporando análises espaciais, dar solução a diversos problemas complicados que
envolviam a relação do homem com o espaço. Vale aqui, para melhor ilustrar a argumentação,
referenciar-se à caracterização de mitologia que é ensinada por Marx, quando ele estabelece
que a mitologia "controla e molda as forças da natureza na imaginação e pela imaginação;
desaparece, portanto, quando se estabelece o real controle sobre essas forças" (apud Harvey,
1993, p.106). Parece natural que o marketing, principalmente na tentativa de encantamento e
abdução de novos usuários, se sirva de toda mitologia que ele puder criar sobre o
geoprocessamento, ou até mais especificamente, sobre uma de suas principais pedras de
toque, que são os SIG, para enredar, principalmente, aqueles que sempre namoraram a
cartografia, nunca tendo, entretanto, coragem para se aproximar e se imiscuir em uma
linguagem gráfica tão bela quanto complexa. Parece juntar-se, desta forma, uma certa
mentalidade científica pós-moderna que se quer fazendo uma revolução na representação do
espaço com uma esperteza comercial (talvez mais por ignorância do que por esperteza) que
valoriza a venda do novo, para criar uma idéia de ruptura em um ponto onde pode haver mais
afinidades e continuidades entre passado e presente do que se desejaria.
Talvez ao contrário de ruptura, muito interessante seria ajustar com o passado as
imensas potencialidades da tecnologia presente, para que o conhecimento sobre os novos
sistemas de geoprocessamento promovesse aquilo que Aldo Barreto (1998) chama de
reconstrução das estruturas mentais que alteram o estado do conhecimento, muitas vezes
reformulando e aumentando estoques de saber já existentes. Parece ser esta a perspectiva de
Dorling e Fairbirn quando afirmam que:
“Em termos das formas de representação do mundo, os SIG podem ser
vistos como uma nova tecnologia com um impacto muito similar ao da
introdução do microscópio ou do telescópio. A tecnologia torna visível
uma perspectiva anteriormente não observada, descortinando novos
mundos aos nossos olhos.” (1997, p.123)
A despeito da inegável revolução que o avanço e a popularização das tecnologias de
informação e telecomunicação vêm promovendo na sociedade dita pós-moderna, a visão
124
prospectiva que a história faculta recomenda uma certa prudência ao natural afã em queimar
as caravelas, sempre que se desembarca numa praia que parece exuberante, paradisíaca e
eternamente agradável à vida. O rompimento, mesmo que não manifesto, com o
conhecimento anteriormente acumulado, ou mesmo sua depreciação em face do novo e do
espetacular, encerra um risco de recorrência de problemas que já haviam sido equacionados,
que não deve ser desprezado.
Desta diversidade de perspectivas, entretanto, recrudesce a questão sobre a natureza do
conhecimento sobre geoprocessamento que se produz hoje.
Seria o geoprocessamento, afinal, uma ciência ou uma tecnologia? Ou ainda um
híbrido de ambas, uma tecnociência?
Talvez valha a pena continuar a exploração desta questão tentando observar, no
contexto dos atores da elaboração do conhecimento sobre geoprocessamento, qual é o sentido
da construção das representações. Trata-se de uma atividade de natureza científica, que
objetiva a edificação de um conhecimento sobre o espaço, ou apenas de uma simples
atividade tecnológica de produção de uma dada visão do real? Ciência ou tecnologia? Ou
talvez ambas, variando a classificação na medida em que as representações ganham
complexidade, ou seja, ao deslocar-se das aplicações mais simples, mais tecnológicas, no
sentido daquelas mais complexas, verdadeiramente científicas, sem desconsiderar todas as
que ficam a meio caminho, que poderiam ser ditas, com alguma licença dos puristas, como
tecnocientíficas.
O que transparece de grande parte da produção científica sobre geoprocessamento é
uma sua percepção como ferramenta de análise de dados espaciais que, por via de um certo
paradigma científico de natureza indutiva, permitiria uma apreensão do fenômeno geográfico.
Seria desta forma uma descrição do real, eminentemente centrada à volta da representação dos
objetos geográficos tangíveis e/ou de uma grande massa de dados sobre os processos, que
facultaria a dedução de certas características da espacialidade de um dado fenômeno,
principalmente à luz dos padrões identificados na distribuição destes objetos ou dados, ou de
certas classes destes. A despeito da importância desses padrões para uma vasta gama de
aplicações, se faz pertinente enfatizar que a busca por esses padrões representa apenas uma
parte da investigação geográfica de um fenômeno. A leitura de um dado fenômeno deve estar
precedida por um entendimento prévio, ainda que precário, dos objetos e das ações que
caracterizam sua dimensão espacial.
125
Não se deve relevar, entretanto, o importante papel que a potencialização das
representações teve na disseminação de seu uso que ocorreu com o advento dos ambientes
digitais de geoprocessamento. Os sistemas de informações geográficas, por exemplo, são
muito mais interessantes, enquanto tecnologia de representação, do que as formas
convencionais como a cartografia tradicional. A praticidade do ambiente computacional
aliada ao dinamismo e à flexibilidade na apresentação das informações geográficas, que neste
ambiente contempla a possibilidade de uma associação de visualização simples entre dados
literais e dados espaciais, realmente produziu uma ferramenta muito mais amigável do que o
mapa tradicional, impresso em papel. Como William Huxhold (1991, p.23) destaca,
colocando em foco os SIG para a gestão municipal, dados sobre pagamentos de impostos
podem ser espacialmente cruzados com dados sobre construções irregulares, assim como
dados sobre criminalidade de rua podem ser cruzados com dados sobre iluminação pública,
dentre diversas outras combinações que, se numa análise socialmente mais consistente podem
ser tidos como apenas uma parte da solução, para que não se assuma uma metodologia por
demais positivista, para diversas questões da gestão urbana cotidiana, este cruzamento de
informações pode trazer um dinamismo de análises operacionais muito interessante.
Parece haver, portanto, uma compreensível dupla face no geoprocessamento. Em
diversas aplicações ele pode se consubstanciar numa solução científica de produção de
informações que instruam um conhecimento conseqüente do espaço geográfico, enquanto
que, em outras, ele pode simplesmente ser empregado como um sistema de informações que,
num sentido amplo, visa instrumentalizar uma dada atividade de gestão de recursos. O
problema parece ocorrer quando a produção científica confunde estas duas dimensões.
Em realidade esta confusão não é resultado da aparência mais tecnológica do
geoprocessamento. A cartografia, em tempos pretéritos, também era encarada com este olhar
dúbio, fato que parece fortalecer os laços que conectam passado e presente, e também ciência
e tecnologia, na compreensão da perspectiva das representações do espaço que se desvela pela
análise da produção científica.
O fato que talvez esteja renovando ou recriando este olhar dúbio pode ser exatamente
a tentativa de descaracterização do processo de evolução de uma cartografia convencional
para um geoprocessamento em ambiente computacional, o que não parece ser o caso de
Dorling e Fairbairn, quando estes afirmam que:
126
“Infelizmente, entretanto, tendiam a ver a cartografia meramente como
uma tecnologia, e sua prática tem sido vista como uma habilidade
adquirida, capaz de ser empregada por um artesão, ao invés de um
cientista, não sendo definitivamente uma atividade cotidiana. O estudo
contemporâneo da cartografia, entretanto, vem sendo alargado para
incorporar todos os aspectos do mapear. Isto é devido à ampliação da
aplicação da cartografia num amplo espectro de ciências sociais e da
terra, ao reconhecimento do lugar central da cartografia nas áreas mais
fluentes do desenvolvimento das tecnologias da informação (como
sistemas de informações geográficas, visualização, multimídia e
realidade virtual), e o reconhecimento de que as habilidades
ferramentais para empreender os mapeamentos estão diminuindo em
importância.” (Dorling e Fairbairn, 1997, p.4)
Se há, portanto, uma diminuição da importância do que os autores chamam de
habilidades ferramentais, parece natural que se desenvolva a expectativa de que deve haver
um grande e crescente movimento de popularização do uso de representações do espaço para
os mais diversos fins.
Assim sendo, esta viagem epistemológica pelo geoprocessamento ratifica a percepção
de que ainda há muito a desenvolver para que estas técnicas possam efetivamente ser
incorporadas à prática das mais diversas atividades, inclusive daquelas de natureza científica.
De toda forma, não parecem irrelevantes as reflexões que resultam de uma certa chamada à
razão feita por Howard Veregin: “as mais profundas tecnologias são aquelas que se tornaram
tão ubíquas e comuns que são inconscientemente aceitas como algo indispensável.” (1995,
p.91) A velocidade da disseminação do geoprocessamento, associada ao fascínio que ele
exerce enquanto tecnologia de informação que permitiu a incorporação da perspectiva
espacial a uma série de atividades, trazem à baila o risco de que ele acabe por tornar
hegemônica uma visão apenas parcial da espacialidade dos fenômenos. Não parece desatinada
a observação de Rainer Randolph de que é preciso “conscientizar-se não apenas das
potencialidades, mas também das limitações de um novo instrumento”. (1998, p.147)
Considerar, dentre outros aspectos, as questões epistemológicas que subjazem à adoção desta
abordagem geográfica essencialmente quantitativa, de forma a evitar que a crescente
disseminação do uso dos sistemas de geoprocessamento acabe por fazer com estes sistemas
imprimam sua lógica à análise geográfica, tornando-se, desta maneira, um fim em si mesmo.
(Randolph, 1998, p.147)
127
Sob esta perspectiva, a preocupação com a natureza e o sentido do conhecimento
que está relacionado ao geoprocessamento não deveria ser uma das questões centrais de
sua produção científica? Por que raramente são discutidas (ou incorporadas às
discussões) as questões epistemológicas da geografia?
Não é de todo incompreensível que não haja uma manifesta discussão acerca das
questões epistemológicas da geografia. A ausência de consenso entre os que advogam a
abordagem quantitativa na geografia e aqueles que, ao menos, a põem em questão, na maioria
das vezes parece manifestar-se por uma virtual desconsideração, por cada uma das partes, das
idéias que lhe são contrárias, ou seja, há um virtual desconhecimento da existência da
dicotomia de abordagens entre qualitativo e quantitativo pela via do não reconhecimento da
validade das teorias divergentes. Isto não parece ser uma postura de todo adequada a uma
comunidade, a dos cientistas e pesquisadores, da qual se espera a qualificação ou
desqualificação de idéias tão-somente pela via da razão, e não pelos expedientes de uma
renúncia preconceituosa ao reconhecimento da pertinência do debate.
De toda forma, no caso específico do geoprocessamento e de seu tecido social
diversificado pela interdisciplinaridade, há o agravante fato de que grande parte dos atores
sociais de seu desenvolvimento são oriundos de outras áreas, como informática e cartografia,
por exemplo, que se aproximaram da geografia pela porta de entrada aberta pelo
geoprocessamento. Aproximaram-se da geografia, portanto, pela perspectiva da geografia
quantitativa que dá suporte teórico ao emprego dos Sistemas de Informações Geográficas, e
que se constituem, hoje, na mais proeminente interface da geografia com a sociedade
tecnocientífica mais ampla. (Veregin, 1995, p.89) Absortos que estão pelas questões inerentes
às suas próprias disciplinas, os profissionais cujas áreas originais não incorporam a geografia
parecem naturalmente não atentar para uma questão epistemológica que é intrínseca às
reflexões mais conseqüentes dos geógrafos, mas a princípio, apenas destes. Talvez seja essa a
razão pela qual os cartógrafos, já suficientemente preocupados com as questões de semiologia
gráfica e de sistemas de projeções, por exemplo, assim como os cientistas de computação,
absorvidos pelas questões complexas de bancos de dados e interoperabilidade, simplesmente
não têm tempo, conhecimento e interesse para se envolverem numa reflexão epistemológica
que não reconhecem, quando a conseguem identificar, como sua. Desta forma, por via da
omissão consciente ou inconsciente, acabam por dar substância a uma percepção social mais
ampla de que apenas as abordagens quantitativas podem ser consideradas como manifestações
verdadeiramente científicas da geografia.
128
Técnica ou ciência?
Em geral, são essas as razões pelas quais uma viagem epistemológica pelo
geoprocessamento pode deixar a primeira impressão de que ele é muito mais uma técnica do
que uma ciência. O conhecimento propugnado por sua produção científica é, na percepção
mais comum, um conhecimento instrumental que busca, essencialmente, a instrumentalização
do espaço geográfico.
A despeito da franca utilização do prefixo geo (geoprocessamento, georeferenciamento, geoinformação, geomática, etc.), que sinaliza o papel central da geografia no
seu corpo de conhecimentos, há muito poucas menções às questões epistemológicas desta
disciplina. Em geral, a percepção que o geoprocessamento tem da geografia é a de que esta se
incumbe, fundamentalmente, da descrição do espaço. A abordagem, na essência, se constitui
numa leitura do espaço que permita selecionar os objetos geográficos da paisagem que têm
importância a uma dada aplicação (os dados), para, nas etapas subseqüentes, implementar
análises que identifiquem "padrões espaciais". "Padrões" é uma das palavras mais recorrentes
no discurso científico do geoprocessamento, deixando a forte impressão de que é
exclusivamente o pensamento geográfico de tradição positivista que se encontra em sua base
científica.
Parece haver aqui um aparente paradoxo, pois, ao fim e ao cabo, a geografia é central
ao geoprocessamento, mas, no entanto, suas questões científicas essenciais são relevadas pela
maioria dos estudos científicos do geoprocessamento, que parece preferir passar ao largo
destas questões, para poder construir, "sem culpas", um conhecimento fundado em análises
espaciais de padrões e regularidades.
Dessa perspectiva, o geoprocessamento se parece mais com uma técnica para
processamento e análise de dados, à semelhança da estatística, do que propriamente uma
forma de conhecimento geográfico.
Com base nestas considerações consubstanciam-se as razões para a elaboração da
segunda pergunta da pesquisa qualitativa.
O diálogo com parte da comunidade científica de geoprocessamento estabelecido pela
pesquisa qualitativa em função desta questão se encontra apresentado na seção 3.3, no
próximo capítulo 3.
Associam-se também a esta questão as motivações para uma reflexão acerca da
interdisciplinaridade dos atores da produção científica e das conseqüências desta na
129
construção do conhecimento. As conseqüências da interdisciplinaridade e da formação
peculiar que assume a rede de produção científica do geoprocessamento dão sustentação à
elaboração da terceira das questões deste trabalho.
2.4 - A rede de produção científica e a interdisciplinaridade
Algumas definições de geoprocessamento podem ser especialmente profícuas a uma
reflexão acerca da influência que resulta da construção do conhecimento segundo a
perspectiva de diferentes campos científicos, e do quanto isto colabora para a diversidade
conceitual existente. Dentre várias definições do que vem a ser o objeto do geoprocessamento,
parece interessante retornar à contida em Câmara et al., no âmbito da qual os autores
consideram que o “fundamento básico da Ciência da Geoinformação é a construção de
representações computacionais do espaço [geográfico]." (Câmara et al., 2003)
Esta conceituação, no entanto, se apreciada pela exclusiva interpretação do disposto no
texto acima transcrito, pode induzir à percepção de que o conjunto de ciências que se
articulam para consubstanciar o objeto do geoprocessamento se restringe, ao menos
dominantemente, à geografia e à ciência da computação.
E a representação cartográfica do espaço? Uma representação computacional do
espaço pode prescindir das técnicas cartográficas? Não seria a linguagem cartográfica aquela
que exprime, “através do emprego de um sistema de signos, um pensamento e um desejo de
comunicação” (Joly, 1997, p.13) das representações do espaço geográfico? Pode a
representação computacional prescindir desta linguagem?
Uma das primeiras reflexões que pode acorrer àqueles que pela primeira vez se
defrontam com uma tal definição de geoprocessamento, feita nesses termos de representação
computacional, dá conta de que este campo do conhecimento não deve ter história anterior à
da história da computação. Mas será que não tem mesmo? Será que, quando a produção
cartográfica de, por exemplo, um mapa de aptidão de áreas para irrigação, superpunha por
sobre uma mesa de luz duas bases cartográficas, uma retratando o mapa de solos de uma
região e outra reportando o mapa de declividades da mesma região, para, a partir da
interpretação superposta de ambos, produzir o mapa de áreas aptas a um determinado tipo de
cultura, não estaria, nesse exato momento, promovendo uma atividade de geoprocessamento,
ainda que não em um ambiente computacional? Articular, comparar, interpretar as
130
articulações, e, finalmente, à luz desse processamento de dados geográficos, produzir uma
nova representação do espaço, não seria também geoprocessamento? Não seria também um
geoprocessamento, a despeito da completa ausência da ciência da computação e da quase
exclusiva aplicação de técnicas cartográficas? C. Dana Tomlin observa que esta superposição
de mapas para a produção de um novo mapa de síntese, processo que ele chama de "overlay
mapping", vem sendo empreendido desde o início do século XX. Tomlin observa ainda que
muito do interesse crescente neste método, principalmente a partir da década de 1960, decorre
da evolução dos SIG, que, como ele afirma, "apresentam-se como uma oportunidade para
refinar e expandir substancialmente os métodos tradicionais de superposição de mapas
(overlay mapping)." (Tomlin, 1990, p.xiii)
Teria sentido buscar na área científica original dos pesquisadores que
consideram a representação como computacional a explicação para esta perspectiva?
Pesquisadores oriundos das ciências da computação têm perspectivas diversas de
pesquisadores que se originam da área da cartografia, por exemplo?
Será esta a razão pela qual Dorling e Fairbairn afirmam que a cartografia encontra-se
hoje sob a égide da caixa preta científica dos digitalizadores e das engenhocas de
processamento de informações geográficas? Ou ainda a afirmação, que a constatação da
produção científica existente não permite que se qualifique de disparatada, de que são os
cientistas da computação que agora controlam o projeto e a construção de mapas? (Dorling e
Fairbairn, 1997, p.121)
Alan MacEachren e Menno-Jan Kraak são conceituados pesquisadores na área da
ciência cartográfica. Robert Sluter, Jr. referencia-se a MacEachren para afirmar que foi ele o
líder do desenvolvimento de uma nova forma de percepção acerca da funcionalidade dos
mapas. Sluter, Jr. afirma que:
"Não mais vistos como simples ferramentas para comunicação das
informações conhecidas, os mapas podem ser empregados para
descobrir padrões desconhecidos em qualquer fenômeno que possua
uma dimensão espacial. Ao invés de fixar-se na construção do
'melhor' mapa, a moderna tecnologia da computação tem viabilizado
a construção de múltiplas representações de um fenômeno, que
podem ser usadas para responder diferentes questões formuladas por
pesquisadores individuais e para revelar padrões até então
131
imperceptíveis nos dados (exploração dos dados). Esta nova
abordagem é chamada de 'visualização cartográfica.'" (Sluter, Jr.,
2001, p.29)
Se a definição de geoprocessamento de Câmara et al. pode instilar a idéia de que a
perspectiva de seus autores está eivada por uma maior consideração de relevância da ciência
da computação em relação à fundamentação do geoprocessamento, a definição acima, num
outro sentido, parece sinalizar que as tecnologias computacionais são apenas instrumentais, e
que a centralidade do processo de construção de representações do espaço posiciona-se sobre
uma nova forma de entender como os mapas se fazem funcionais, no potencializado ambiente
computacional criado pelo geoprocessamento.
MacEachren e Kraak definem geovisualização como algo que, afinal, em muito se
assemelha à percepção mais ampla que se tem de geoprocessamento (2000, p.1), dando mais
ênfase à relação entre a cartografia e a geovisualização, ao estabelecerem que "visualizar o
mundo (através de dados geoespaciais) tem sido uma preocupação da cartografia por séculos."
A ratificação da centralidade que dispensam à cartografia pode ser avaliada pela observação
que os autores fazem de que:
"A cartografia moderna lida com um complexo processo de
organização, acesso, exposição e uso de informações geoespaciais,
com os 'mapas' não mais sendo concebidos como simples
representações gráficas do espaço geográfico, mas sim como portais
dinâmicos de interconexão e distribuição de bases de dados
geoespaciais. Os ambientes cartográficos hodiernos são
caracterizados por duas palavras-chave: dinâmica e interação."
(MacEachren e Kraak, 2000, p.3)
Se o ponto de vista se desloca, no entanto, para a perspectiva do geógrafo, a questão
essencial pode tomar outra forma e ser vista, por exemplo, como a possibilidade de
“desenvolvimento de modelos alternativos do fenômeno geográfico devido ao poder dos
ambientes computacionais em elaborar metáforas para o mundo real” (Veregin, 1995, p.94),
ou ainda, como observa Peter Gould, que “a revolução geográfica depende em grande medida
da revolução informática” (2000, p.6)
132
Não parece ter havido acordo entre os diversos geógrafos acerca do papel dos mapas,
no passado, assim como não há, no presente, uma visão unânime acerca do
geoprocessamento. Dorling e Fairbairn (1997) e Branco (1997) tratam da questão com
propriedade em seus respectivos trabalhos. No entanto, Dorling e Fairbairn têm razão quando,
citando Hartshorne, lembram que alguns geógrafos “consideravam que os mapas definem a
real natureza da geografia”, e ainda mais quando dizem com propriedade que “mapear é uma
técnica vital de estudo para a geografia e que os mapas são uma ferramenta primordial.”
(1997, p.2)
A geografia tem de fato uma diversidade muito grande de discursos. Parece normal
que assim seja. Uma ciência que tem um objeto tão complexo e diversificado como o espaço
geográfico, realmente não poderia deixar de ser plural na representação deste objeto. Estas
diversidade e complexidade também ensejam uma virtual necessidade de que seus
pesquisadores acabem por naturalmente se deixar fluir em algumas de suas correntes. Seria
virtualmente impossível a um só geógrafo estudar, mas o que parece pior, refletir na
profundidade, acerca das muitas facetas de suas várias correntes.
Catalisador da multidisciplinaridade
Talvez a questão essencial tenha sido muito bem apreendida por Frédéric Sandron, ao
tratar mais especificamente dos SIG, quando o autor observa que o desenvolvimento do
geoprocessamento pode vir a ser uma espécie de catalisador da multidisciplinaridade.
(Sandron, 2002, p.53)
O risco associado a este processo catalisador parece ser o de desarticular a produção
científica de forma a transformar o conjunto desta produção em um conhecimento
manifestamente inconsistente, pela simples constatação de suas profundas contradições
interiores. O discurso de hoje, ao menos, sinaliza esta possibilidade, a despeito de fazer-se,
assim sendo, sintonizada com a fragmentação pós-moderna destes tempos.
Michael Peterson, um conceituado cientista na área da cartografia, argumenta contra a
perspectiva de considerar a questão metodológica básica do geoprocessamento como um
simples processar de banco de dados. Esta perspectiva, típica de cientistas de
geoprocessamento cuja origem referencia-se à área das ciências da computação, argumenta
com base na idéia de que os mapas podem, contemporaneamente, ser decompostos e vistos
como um simples arquivo digital de dados, a ser processado no âmbito dos sistemas
gerenciadores de banco de dados. Peterson manifesta a posição de que esta visão é parcial, e
133
de que ela promove uma idéia de cartografia não-gráfica, que parece mesmo não fazer
nenhum sentido. O pesquisador reafirma a importância da ilustração gráfica em todas as
etapas da análise e da interpretação, em face das especiais habilidades de que o homem dispõe
para interpretar representações gráficas. (1994, p.2)
Numa outra perspectiva, que se poderia talvez qualificar como inspirada por uma
visão predominantemente computacional do geoprocessamento, Câmara et al. sinalizam um
eventual entendimento de que a cartografia parece ser uma espécie de entrave ao
desenvolvimento do geoprocessamento, quando estabelecem que os SIG “são fortemente
baseados numa lógica ‘cartográfica’ do espaço, exigindo sempre a construção de ‘mapas
computacionais’, tarefa sempre custosa e nem sempre adequada ao entendimento do problema
em estudo.” (2003)
Interessante também observar que os estudos de modelagem dinâmica e
geoprocessamento desenvolvidos por Pedrosa e Câmara (2003) não estabelecem vínculos
científicos e nem referências com os trabalhos de representações dinâmicas que vêm sendo
desenvolvidos por MacEachren (1998 e 2000), Peterson (2002) e Ormeling e Kraak (1998),
dentre outros pesquisadores da chamada cartografia animada. Parece evidente que a não
existência de referências, bem como a diferença nas abordagens entre os trabalhos, não possa
ser considerada como uma manifestação de desarticulação entre produções científicas, no
entanto, a rigor, o que se apreende é a real existência do que Berdoulay (2000) qualificou,
com muita propriedade, como a existência de diversos círculos de afinidade no âmbito de um
tecido social de cientistas que, desejavelmente, deveria constituir uma comunidade científica.
Discursos diversos
Discurso e vocabulário empregados também podem exprimir desejos de articulação ou
de distanciamento e desconsideração em relação às demais disciplinas. Ainda que não seja
uma tarefa simples aos pesquisadores mais afetos a áreas como informática ou cartografia, por
exemplo, investir tempo na busca de um discurso que facilite a articulação de suas abordagens
com a de outras áreas como a geografia ou o meio ambiente, seria de todo desejável que, em
face da virtual impossibilidade de se desenvolver um vocabulário único em áreas tão
interdisciplinares como a do geoprocessamento, que o discurso se fizesse estabelecido nos
termos mais universais possíveis.
No limite, a diversidade da comunidade científica envolvida no desenvolvimento do
geoprocessamento responde por um empréstimo de palavras à construção do seu corpo de
134
conhecimentos, que por vezes apenas amplia a cacofonia da terminologia adotada, trazendo
mais confusão do que informação. O conceito de ontologias, por exemplo, como adotado em
Fonseca e Egenhofer (2003), não parece ser um empréstimo terminológico que tenha
transitado de forma harmônica da informática para a geoinformação.
Os conceitos de geomática, geoprocessamento, geoinformações e geovisualização, por
exemplo, acabam por guardar diferenças semânticas tão reduzidas, que a estória toda de
construção desta terminologia parece resumir-se, afinal, a uma tão vaidosa quanto teimosa
tentativa de fazer pegar os termos que são mais afetos a certos círculos de afinidade. Ao fim e
ao cabo cumpre dar razão a Bruno Latour, quando ele estabelece que certos termos têm
mesmo uma definição vaga, que só pode ser considerada como precisa no âmbito de uma
controvérsia, em função da força exercida pelos discordantes. (2000, p.329-330)
A lógica conjuntiva de articulação das ciências
Os sinais apreendidos ao longo da viagem epistemológica dão conta de que o
geoprocessamento só poderá ser explorado de forma realmente produtiva quando a
abordagem for através de uma lógica conjuntiva que articule, sem hierarquização, as
contribuições das ciências que se fizerem envolvidas. Enquanto os desenvolvimentos
continuarem a se dar na forma de iniciativas capitaneadas por uma disciplina particular, que
se entende à testa do processo, e que chama de interdisciplinaridade a subordinação de outras
disciplinas como prestadoras de serviço (Sandron, 2002, p.54), pouco se irá evoluir.
Porque não há como pôr de lado a interdisciplinaridade do geoprocessamento. Ela é
inconteste. Desta forma, e considerando a estrutura institucional que se tem para o
desenvolvimento da ciência, a produção do conhecimento deverá continuar a se dar em
centros de diferentes origens disciplinares.
No Brasil, por exemplo, a tomar por referência os programas de mestrado e doutorado
arrolados pela Capes em sua página na Internet, há diversidade na distribuição por Programas,
por Áreas e até por Grandes Áreas (Ciências Exatas e da Terra, Ciência Humanas, Ciências
Sociais Aplicadas, Engenharias e Outras), consoante Quadro 1.1 apresentado no capítulo 1.
Se por um lado, a multiplicidade de enfoques pode ser profundamente criadora, por
outro, ela coloca o desafio de se evitar que os diversos desenvolvimentos do conhecimento
sobre geoprocessamento acabem por criar perspectivas irreconciliáveis.
Parece natural que os pesquisadores de uma área concentrem-se por demais nas
questões que lhe são diretamente afetas, a despeito da relevância daquele desenvolvimento
135
para o geoprocessamento como um todo. Assim, a informática eventualmente concentra-se
em questões de processamento e análise de dados que, afinal, podem não ser reconhecidos
como importantes pela geografia, assim como pode a cartografia buscar aperfeiçoamentos de
sua linguagem de representação, sem que haja, por parte da informática, a identificação da
relevância desse desenvolvimento.
A figura da sociedade em rede pode ser muito útil à ilustração desta reflexão, da forma
como foi apresentada no capítulo 1. Se a rede de atores sociais da produção científica for
articulada e entender que, como nas redes que se pretendem harmônicas, não há hierarquia
entre os pontos nodais, ou seja, não deve haver prevalência da perspectiva da geografia, da
cartografia ou da informática, a produção científica do geoprocessamento tende a convergir,
cada vez mais, para um paradigma único. Mas, no entanto, se por um certo tipo de perspectiva
autocentrada as diversas comunidades decidem se desarticular da rede por não reconhecerem
como válidas perspectivas diversas da sua própria, parece inevitável que haja um atrofiamento
do desenvolvimento científico bem como uma verdadeira cacofonia acerca das definições
sobre a natureza científica e tecnológica do geoprocessamento.
Com base nestas considerações consubstanciam-se as razões para a elaboração da
terceira pergunta da pesquisa qualitativa.
O diálogo com parte da comunidade científica de geoprocessamento estabelecido pela
pesquisa qualitativa em função desta questão se encontra apresentado na seção 3.4 do
próximo capítulo 3.
Desta percepção sobre a diversidade de perspectivas entre os diversos atores da
produção científica do geoprocessamento podem decorrer questões que são essenciais à
construção do conhecimento sobre estes sistemas. Uma delas, objetivo do relato da viagem
epsitemológica contemplado pelo próximo item, dá conta da modelagem, vale dizer, da
construção, inicialmente intelectual, de um modelo abstrato que represente o espaço
geográfico e seus processos, e que reflita a forma como o espaço do real é compreendido.
2.5 - As modelagens e o papel do conhecimento geográfico
Há diferentes perspectivas metodológicas no geoprocessamento, que acabam por
diferenciar a forma de conceber a modelagem dos sistemas. Estas diferentes perspectivas
refletem, em geral, diferentes enfoques em relação às aplicações. A se considerar que os
136
conhecimentos em geografia, cartografia e informática interagem de forma expressiva na
implementação completa de um sistema, a modelagem é, provavelmente, a etapa em que a
articulação destes conhecimentos se faz mais importante.
Sob a perspectiva da geografia, a modelagem contempla uma conceituação ontológica
do espaço geográfico e de seus processos, que permita a leitura e interpretação de seus mais
significativos processos e objetos. Howard Veregin define de uma forma mais adequada esta
modelagem quando afirma que:
“Uma base de dados no âmbito dos SIG é uma abstração do mundo
real, necessariamente incompleta e generalizada. A maneira pela qual
este processo de abstração é conduzido reflete um elenco particular de
conceitos ontológicos, relacionados à forma pela qual o conhecimento
acerca do mundo é formalizado. Os atributos que supostamente melhor
representam a realidade, não integralmente conhecida, encontram-se
enraizados num contexto cultural específico e num dado paradigma
científico.” (Veregin, 1995, p.99)
Para alguns, como C. Dana Tomlin, a modelagem se constitui no processo essencial de
organização dos dados em um sistema de geoprocessamento, que o autor assemelha, para
fazer uma correlação com o ambiente gráfico mais tradicional, com o arranjo de uma coleção
de mapas na forma de um atlas. (Tomlin, 1990, p.4) Este autor, que demonstra bastante
apreço pela figura de retórica da álgebra de mapas, expressão cunhada por ele para definir o
processo de obtenção de informações a partir da superposição de mapas (overlay mapping),
ao definir o processamento de dados geográficos que é possível se estabelecer nos ambientes
de geoprocessamento, não parece preocupar-se com os nexos que unem os sistemas modernos
à cartografia tradicional, chegando mesmo a definir a modelagem que subsidia os sistemas
como sendo uma modelagem cartográfica.
A expressão álgebra de mapas, sem vínculos aparentes com Tomlin, aparece também
quando Fernand Joly trata da geomática e dos mapas numéricos, que ele define como sendo
“uma matriz que, como tal, pode ser comparada, combinada ou acrescentada a outras
matrizes. Esboça-se assim uma verdadeira álgebra de mapas, produtora de novos dados e de
novos mapas” (Joly, 1997, p.83), e, de uma forma discretamente diversa, em Bonham-Carter,
quando este estabelece que a modelagem em SIG, de uma forma genérica, pode ser imaginada
como o processo de combinação de um conjunto de mapas de entrada – input – com a função
137
de produzir um mapa de saída – output – com a síntese da combinação dos elementos dos
mapas originais. (Bonham-Carter, 1994, p.268)
A modelagem não é exclusiva do geoprocessamento no contexto informacional. A
cartografia convencional já fazia uso desta metodologia para a produção de sua representação
do espaço, como atesta Fernand Joly, ao abordar o dos primeiros trabalhos de concepção do
processo produtivo de um mapa:
“A primeira etapa do trabalho cartográfico é sempre uma etapa de
reflexão e concepção. Nesse estágio, nada distingue o cartógrafo do
pesquisador ou do engenheiro experimentado na temática considerada,
senão a preocupação afirmada de localizar os fatos registrados.” (Joly,
1997, p.134)
No entanto, as questões conceituais mais amplas da modelagem dos sistemas
abrangem principalmente as aplicações de geoprocessamento nos ambientes dos SIG, nos
quais o processamento dos dados objetiva a produção e a análise de informações geográficas
mais qualificadas, capazes de subsidiar um melhor conhecimento da dimensão espacial dos
fenômenos envolvidos.
Então, se o geoprocessamento aumenta o poder de representação do espaço,
aumentam também as demandas sobre o conhecimento necessário à modelagem do
sistema?
Burrough e McDonnell consideram que o primeiro e mais importante passo na
construção de uma aplicação em SIG é a observação e a apreensão de um fenômeno que pode
ser estático ou dinâmico no espaço e no tempo. Enfatizam ainda que todas as análises
subseqüentes, bem como o alcance ou não dos objetivos da aplicação, serão, em realidade,
mais dependentes dos modelos conceituais elaborados do que da tecnologia aportadas pelos
ambientes de geoprocessamento. (Burrough e McDonnell, 1998, p.19)
Em realidade, a adoção dos sistemas de geoprocessamento em ambientes
computacionais demandou uma maior sofisticação à modelagem, principalmente naquilo que
tange às etapas mais afetas às operações de gerenciamento de bases de dados no ambiente
computacional. A modelagem conceitual, para usar um termo mais afeto à informática, não se
138
modifica em sua essência. Já existia uma espécie de modelagem conceitual na produção
cartográfica precedente ao geoprocessamento. Ela, no ambiente informático, apenas se torna
mais sofisticada, em face do geoprocessamento ser bastante mais complexo, fato este que
demanda a antevisão de uma série de operações que envolvem, inclusive, o relacionamento de
dados gráficos e literais.
Observe-se, por exemplo, o caso do geoprocessamento com representações dinâmicas
ou animadas. Na medida em que o ambiente propicia a construção de representações que
reportem a evolução de um dado fenômeno no tempo, seja em intervalos regulares, seja
representando variações na perspectiva espacial de um dado fenômeno, a modelagem precisa
contemplar, para além de um modelo da realidade que a represente, uma série de modelos que
permitam reportar a variedade do processo, ou seja, a dinâmica que se quer representar.
Ampliam-se tanto a necessidade de conhecimento do fenômeno, a importância do
conhecimento geográfico, quanto a necessidade de conhecimento mais sofisticado da
gramática da linguagem cartográfica de representação do fenômeno, ou seja, a semiologia
gráfica (Joly, 1997, p.8), bem como a necessidade de conhecimento das complexas operações
de modelagem computacional que permitem a construção dos ambientes digitais da
cartografia dinâmica. Não é outra a razão que levou Frédéric Sandron a afirmar que “a
compreensão de um objeto complexo passa por uma modelagem complexa” (2002, p.45), ao
tratar de questões acerca da representação das relações entre o meio ambiente e suas
respectivas populações.
Há desta forma, portanto, uma transcendência de complexidade em relação às
representações precedentes que eram elaboradas pela cartografia. Sofisticou-se a necessidade
de conhecimento do fenômeno geográfico, em face do maior poder de representação dos
ambientes modernos de geoprocessamento. Sofisticou-se a necessidade de uma linguagem
cartográfica mais rica, porque é dela a responsabilidade pela tradução do modelo, agora mais
complexo, na forma de signos que o representem. Sofisticou-se a necessidade de uma
complexa tradução digital desta linguagem em sistemas computacionais. Esgotam-se,
portanto, as reais possibilidades de que apenas um profissional, ou mesmo de que apenas uma
classe de profissionais comande todo o processo. Ele deve necessariamente se tornar
compartilhado. Quando apenas uma destas áreas (geografia, cartografia, informática) tenta
fazer prevalecer suas premissas na elaboração da representação, o que resulta é um sistema
desequilibrado.
139
Se a modelagem dos sistemas é o momento mais importante de articulação entre
os conhecimentos em geografia, cartografia e informática, que situação para esta
articulação se reflete nas produções científicas de hoje?
O que a viagem epistemológica reporta é que algumas perspectivas do processo de
modelagem são francamente inspiradas pela teoria de modelagem de aplicações de banco de
dados da informática. Lisboa Filho et al. se inspiram na modelagem dos SGDB – sistemas de
gerenciamento de banco de dados ao propor uma modelagem em três etapas, contemplando
projeto conceitual, projeto lógico e projeto físico.
Quando tratam da modelagem conceitual de banco de dados Lisboa et al. reportam que
ela “compreende a descrição e definição dos possíveis conteúdos dos dados, além de
estruturas e de regras a eles aplicáveis.” (Lisboa et al., 2003)
Vale observar que este é o nível mais próximo, na teoria dos bancos de dados, a que se
chega em relação à realidade e à sua percepção. Há franca assimetria em relação à modelagem
que se poderia chamar de temática, ou seja, à modelagem que tenta modelar o fenômeno
percebido, o fenômeno espacial. Trabalha-se com a percepção do espaço como se ela fosse
algo dado, intrínseco.
Não há sentido em fazer uma crítica aos autores de trabalhos cujas abordagens se
fazem muito mais próximas da informática do que da geografia. O que vale, antes de tudo, é a
detecção de um fosso, de uma incompletude na abordagem do geoprocessamento. Vive-se
uma época de construção desta nova representação. Importante parece ser a identificação do
problema e a promoção da discussão, para, na seqüência, tentar construir uma solução
qualquer que dê conta deste vácuo.
Trata-se afinal de uma modelagem filha da informática e não da geografia ou do
geoprocessamento. O próprio discurso denuncia uma franca filiação com técnicas
instrumentais, quando Lisboa et al. afirmam que
“durante a fase de modelagem conceitual de dados de aplicações
geográficas, um grande número de fenômenos geográficos (e de
relacionamentos entre eles) é identificado. Segundo Gordillo e
Balaguer (1998), um projetista experiente desenvolve seus modelos a
partir do conhecimento prévio de um conjunto de entidades interrelacionadas, ao invés de sempre partir da estaca zero.” (Lisboa et al.,
2003)
140
Os grifos foram apostos ao texto para especular sobre a hipotética influência de uma
abordagem conceitual construída muito mais à luz da perspectiva informática, do que da visão
do geógrafo, mesmo que se considere a geografia quantitativa como sua mais forte influência.
Parece importante reiterar que a questão das modelagens não é resultante da aplicação
da informática aos ambientes de geoprocessamento, cujo mais popular resultado foi o
desenvolvimento dos SIG. A abordagem de C. Dana Tomlin, cuja modelagem tem grande
inspiração na superposição de mapas (overlay mapping), sugere que a “informação implícita
deve também ser considerada parte da modelagem cartográfica”, e declara que muitas de suas
preocupações com a modelagem dos sistemas de geoprocessamento são dedicadas à busca das
formas pelas quais se faz possível representar de forma explícita estas informações implícitas,
que resultam do processamento das informações nos sistemas. (Tomlin, 1990, p.4) A
modelagem cartográfica proposta por Tomlin não esgota as possibilidades de criação de
modelos facultadas pelos ambientes modernos de geoprocessamento, no entanto, ela explora
de forma muito interessante as imensas possibilidades investigativas que resultam de uma
adequada combinação de dados cartográficos em ambientes computacionais. Faz-se didática,
também, porque abre possibilidades de exploração de um ambiente novo e rico ao
geoprocessamento, como o ambiente computacional, sem descartar o conhecimento existente
sobre a análise de dados que se fazia nos tempos das representações convencionais, nem
naquilo que diz respeito à leitura do espaço, nem naquilo que tange à construção cartográfica
de suas representações.
Mas quais serão as razões para que haja tanta influência dos conhecimentos em
informática na questão das modelagens?
Estas preocupações decorrem, em geral, do que constata Howard Veregin quando
observa que:
“O computador influencia a maneira segundo a qual os problemas de
pesquisa são selecionados para estudo, bem como o caráter das
premissas, linguagens, técnicas e modelos associados ao problema.
Certos problemas apresentam uma maior afinidade com a automação o
que por vezes leva a computação a definir como ele deve ser
estruturado. As percepções que resultam da computação são
141
freqüentemente diferentes daquelas oriundas de outros meios. Dessa
forma, a automação não se constitui numa simples conversão
biunívoca das técnicas geográficas existentes, para um ambiente
computacional.” (Veregin, 1995, p.109)
A questão das modelagens tem relação, também, com as possibilidades de
automatização de certas operações de análise de informações que foram criadas pelos
ambientes computacionais de geoprocessamento.
No geral, um processo de análise de informações se faz, em parte, por algumas
atividades sistemáticas de processamento de dados, sucedidas por atividades reflexivas da
parte do intérprete, que pode ou não mudar os parâmetros do processamento para apreciar as
alterações decorrentes nas informações produzidas. Em síntese, o processamento é um
trabalho enfadonho, e por vezes muito laborioso, e a reflexão uma atividade intelectualmente
muito instigante.
Não parece absurdo especular que a grande maioria dos intérpretes gostaria
imensamente de reduzir todos os seus esforços à simples interpretação das informações,
deixando à máquina todo o trabalho pesado. Esta é uma razão bastante convincente para que
grande parte da modelagem dos sistemas de geoprocessamento se concentre no objetivo de
automatizar funções de análise que, a rigor, já existiam na era pré-computacional.
Desenvolver inicialmente esta modelagem instrumental parece ser a reação natural de alguém
que acaba de descobrir uma ferramenta que não apenas lhe otimiza as atividades consideradas
como mais nobres, mas ainda, ou talvez até mais importantemente, lhe liberta do fardo de ter
que executar diversas atividades rotineiras de preparação de dados para análise. Trata-se,
afinal, de um velho escriba, escravo das antigas máquinas de escrever, que acaba de descobrir
as maravilhas do mundo dos editores de texto computacionais.
Em tese, esta ênfase primeira na modelagem instrumental dos processos de análise não
altera o paradigma preexistente de análise espacial. Parece se tratar, portanto, num primeiro
momento, de uma modelagem construída com o fito principal de reagir aos entraves e às
limitações de um processo de produção científica preexistente, o que o configurava como uma
modelagem de natureza meramente instrumental, que se servia dos recursos computacionais
para simplesmente automatizar funções de análise. Em essência, uma repotencialização de
velhos instrumentos, travestidos de modernos e revolucionários pela presença sempre
encantadora de uma certa pirotecnia informática. Dessa perspectiva, a decisão de C. Dana
Tomlin (1990) de nomear sua modelagem como cartográfica, bem como sua decisão de
142
cunhar a expressão álgebra de mapas para o processamento de informações espaciais por ele
propugnado, soa como um exercício da mais cristalina honestidade intelectual. Tomlin não
tenta nenhuma manobra retórica para apresentar como novo, aquilo que novidade essencial
não contempla; o autor apenas mostra, de forma muito competente, os impactos positivos e
negativos que a automatização pode aduzir, num primeiro estágio, ao geoprocessamento.
Há, no entanto, algumas outras razões para que a informática tivesse um papel
destacado no contexto das modelagens necessárias à implementação dos sistemas de
geoprocessamento. Não se deve deixar de observar que mesmo a modelagem cartográfica,
quando identificou a necessidade de estabelecer relações entre objetos numa dada aplicação
de cartografia digital, necessitou do concurso da computação gráfica para modelagem
computacional das chamadas relações topológicas.
A necessidade do estabelecimento destas relações decorreu do fato de que as
representações no ambiente computacional se tornaram muito mais complexas, porque
incorporaram uma série de funções de análises de dados espaciais que antes decorriam apenas
do exercício de leitura do mapa pelo intérprete. Estas análises objetivam retratar com cada vez
mais exatidão as interações e os processos que ocorrem no espaço, entre diversos objetos
geográficos, alguns dos quais de representação muito complexa. A idéia subjacente à
necessidade de mais amiúde representar os processos, parece ser aquela que Frédéric Sandron
reporta quando afirma que “as interações entre os objetos tornaram-se mais importantes que o
simples conhecimento das suas estruturas respectivas.” (2002, p.47)
O que ocorre é que a grande maioria destas análises, para ser implementada de forma
eficaz, necessita uma definição prévia de suas estruturas operacionais, para que sejam
estabelecidas as modelagens das relações geométricas entre objetos cartográficos que as
permitem ser levadas a cabo. São as chamadas relações topológicas. Estas precisam ser
definidas quando da modelagem do sistema, para que quando da aquisição e da construção do
banco de dados as estruturas destes já reportem as relações topológicas entre os objetos
selecionados
para
estas
análises.
Portanto,
nos
ambientes
computacionais
de
geoprocessamento, para além da construção da representação através de uma linguagem
cartográfica, faz-se necessária também a instauração de uma infra-estrutura geométrica de
conexão entre objetos que permita o estabelecimento das inter-relações que se quer
fundamentais à análise; as chamadas relações topológicas.
William Huxhold apresenta excelente definição para relações topológicas quando
estabelece que:
143
“As estruturas topológicas de dados fornecem inteligência adicional às
informações armazenadas num banco de dados cartográficos. Elas
dizem ao computador que objetos cartográficos conectam-se a outros
logicamente. [...] uma relação implícita que é usualmente óbvia para o
olhar humano, mas que não é explicitamente definida para o
computador quando ele lê através dos registros cartográficos da forma
como eles vinham sendo apresentados até então.” (Huxhold, 1991,
p.137)
A viagem epistemológica dá voltas e não passa pela questão do espaço geográfico.
Afinal, a compreensão da ontologia do espaço é ou não considerada importante à
modelagem das aplicações de geoprocessamento?
Não parece haver muito sentido na idéia de que é possível modelar uma aplicação de
geoprocessamento sem um conhecimento mínimo do espaço geográfico. Nos casos em que se
admite, como parece comum a toda produção científica, que o objetivo essencial é a
representação do espaço geográfico, não parece sensato considerar que é possível bem
representar algo que não seja minimamente conhecido.
Este não é um problema de pequena monta porque, em realidade, grande parte da
comunidade hoje envolvida com geoprocessamento não parece possuir sólida formação nas
questões científicas da geografia, razão pela qual, inclusive, grande parte da produção
científica passa ao largo das principais questões epistemológicas desta disciplina.
Mesmo junto àqueles que têm por objeto principal de seus estudos o espaço
geográfico, associam-se os riscos da adoção de uma certa postura distanciada em relação ao
espaço concreto, que resulta da adoção do que Porteous chama de “paradigma do
sensoriamento remoto”. Essencialmente, nas palavras de Howard Veregin, Porteous
argumenta que:
“O abandono da pesquisa de campo pelos geógrafos, em favor daquela
que resulta do emprego da moderna tecnologia do sensoriamento
remoto, tem conduzido a um marcante declínio no conhecimento, na
familiaridade e na compreensão do mundo. As razões para isso
repousam firmemente sobre os ombros do paradigma do
sensoriamento remoto, que se caracteriza por ser limpo, frio e distante.
144
A complementação necessária [pesquisa de campo], citada como
sendo um ‘sensoriamento intimista’, é difícil, suja e complexa, além de
freqüentemente perigosa, mas ao mesmo tempo, rica, excitante e
envolvente.” (Veregin, 1995, p.101)
Parece importante destacar, inclusive, que mesmo a produção científica que é
francamente inspirada por uma abordagem computacional das modelagens identifica a
fragilidade da não consideração de um modelo do fenômeno a representar, como se observa
em Lisboa et al.:
“Embora as metodologias de desenvolvimento de software incluam
uma etapa inicial de projeto conceitual, o desenvolvimento de
aplicações apoiadas em SIG tem sido realizado, muitas vezes, de
forma incremental e diretamente no software de SIG. A conseqüência
disso é que, com freqüência, ocorrem problemas que poderiam ter sido
evitados através da modelagem conceitual (ex.: redundância de dados
e ausência de relacionamentos importantes).” (2003)
Do observado por Lisboa et al. pode-se resgatar também a idéia de que, dentre todas
aquelas necessárias à implementação dos sistemas, a modelagem conceitual (ou temática)
parece ser uma das mais importantes, porque é ela que define a abordagem da aplicação de
geoprocessamento em relação ao problema, servindo, afinal, de referência a todas as demais
modelagens.
Alguns autores como Tomlin, por exemplo, contemplam as características de uma
modelagem temática ou conceitual em suas produções científicas. Parece interessante
observar, no entanto, que o autor não tece maiores considerações sobre a natureza do espaço
geográfico, sobre objetos ou processos que dão substância ao espaço, ou ainda sobre uma
visão mais qualitativa da ontologia do espaço geográfico.
Não seria exato estabelecer que Tomlin não considera a questão ontológica do espaço.
Na medida em que ele formula um certo elenco de reflexões, que devem ser levadas a cabo
para que a modelagem chegue a bom termo, fica patente que ele tem em mente uma
concepção ontológica do espaço. Não parece plausível considerar que se possa elaborar
modelagens, pouco importa se descritivas ou prescritivas, conforme sua definição, sem a
edificação intelectual dos processos espaciais. No entanto, em face da complexidade destes
145
processos e das limitações do ambiente de geoprocessamento em representá-los, remanesce a
impressão de que Tomlin prefere concentrar-se nas funções instrumentais da construção de
representações do espaço, deixando a investigação e a explicação dos processos espaciais por
conta de uma abordagem de inspiração heurística, a ser realizada em cada uma das aplicações
modeladas.
Por que será, afinal, que o conhecimento sobre o espaço não desperta tanto
interesse
ao
desenvolvimento
científico
quanto
despertam
os
conhecimentos
instrumentais sobre a informatização da representação?
A questão parece envolver uma certa mudança paradigmática que ainda não se
descortina como clara. Talvez seja, como observa Frédéric Sandron, “uma nova forma de
racionalidade que está em jogo” (2002, p.47), uma exploração do que Sandron destaca como
sendo o paradigma da complexidade. Uma preocupação mais qualitativa com a formulação
do problema, em lugar de uma preocupação excessivamente objetivada por sua solução. A
assunção de um maior risco na modelagem da representação do espaço geográfico para que os
resultados finais se façam mais ricos em conteúdo. A questão talvez seja a efetiva
possibilidade de trabalhar no desenvolvimento de representações sob a inspiração desta
abordagem mais subjetiva, num contexto social que demanda, cada vez mais, resultados
objetivos e rápidos.
Vale observar que são ainda as questões instrumentais que estão a dominar a
implantação destas novas formas de representação do espaço. Isto decorre, inclusive, do fato
das próprias ferramentas não terem, ainda, condições de contemplar formas mais ricas de
representação do espaço. Como observa Huber:
“Infelizmente os sistemas comerciais de SIG como SPANS ou
ARC/Info são apenas ferramentas genéricas para manipulação de
dados espaciais, que não contemplam de forma inerente nenhum
conceito geográfico. Assim, a modelagem da paisagem tem de ser
implementada pelo usuário com base nas estruturas de dados e nas
funções oferecidas pelo software.” (Huber, 2002, p.2)
Condições estas que podem produzir, no limite, até o delírio de uma certa modelagem
reversa, que imagine a solução não de modelar a representação, para que esta retrate o real,
146
mas sim de modelar a realidade, para que esta se ajuste ao modelo! Dorling e Fairbairn
destacam, citando o trabalho de Robert Rundstrom, exemplos de como os sistemas de
geoprocessamento vêm sendo usados, nos Estados Unidos, para assimilar comunidades
indígenas remanescentes a um jeito ocidental de vida (‘white way of living’). Um dos
exemplos trata do caso dos índios Zuni que vivem em ‘pueblos’ (pequenas cidades e vilas)
numa reserva no Oeste do Novo México:
“Como parte de um projeto de saúde associado a um sistema de
informações geográficas – SIG, uma lista de endereçamento digital
‘tinha’ que ser construída para todos os logradouros em McKinley
County. Este distrito contém a maioria da reserva indígena. O trabalho
foi levado a cabo por funcionários do governo e pelos pesquisadores
universitários. Infelizmente para os pesquisadores, os Índios não
tinham o hábito de usar nem números nas casas nem nomes nas ruas.
Não convencida, a equipe decidiu dar a nomenclatura inglesa às
estradas e a sua numeração de casas no contexto de um ‘projeto de
endereçamento rural’. Em alguns poucos casos os nomes Zuni foram
usados, mas apenas quando eles foram capazes de traduzi-los em
inglês e quando eles não foram considerados inadequadamente
‘irônicos’ para o nome de uma estrada. [...] Os indígenas tiveram seu
atendimento em saúde fornecido de uma forma discretamente mais
eficiente, mas perderam sua tradição para serem assimilados na
sociedade digitalizada que foi encapsulada dentro no SIG.” (Dorling e
Fairbairn, 1997, p.70)
Será que está se produzindo, por conta disso, muita informação e pouco
conhecimento?
Dentre as diversas modelagens que uma aplicação complexa e abrangente de
geoprocessamento contempla, a que parece guardar maior importância, pelo seu papel na
gênese do sistema, é a modelagem temática, aqui entendida como a observação da dinâmica
espacial de um fenômeno, subordinada a uma dada escala de análise.
Nas reflexões que dão substância a essa modelagem, a equipe idealizadora do sistema
precisa perscrutar a dinâmica espacial do fenômeno, segundo categorias de análise
essencialmente definidas pela geografia, de forma a discriminar quais objetos geográficos
serão representados (e com que atributos); de que forma as diversas classes de objetos irão se
147
articular nas análises idealizadas (um preâmbulo das relações topológicas), e ainda, que ações
identificadas no espaço deveriam ser representadas no sistema, e de que forma elas podem ser
apreendidas e representadas.
Esta modelagem permite definir a forma de aquisição de dados, bem como inspira a
elaboração das modelagens subseqüentes, das quais resultarão a construção da representação
do espaço e as análises de informações geográficas que irão lançar luz sobre o fenômeno
estudado.
No que tange à aquisição de dados, que se torna cada vez mais poderosa, parece que a
evolução da tecnologia se faz a um ritmo cada vez mais acelerado. O mesmo se dá em relação
às análises, no âmbito das quais a informática tem viabilizado instrumentos cada vez mais
complexos. No entanto, as questões que dizem respeito à avaliação qualitativa do espaço, que
estão afetas ao conhecimento geográfico, parecem não despertar o mesmo interesse que estes
instrumentos de alta tecnologia vêm despertando.
Haveria então, hipoteticamente, uma assimetria entre a crescente capacidade de
construir representações e análises do espaço geográfico, que tem se potencializado a cada
dia, e o interesse por entender efetivamente a natureza do espaço, para mais eficazmente se
servir da tecnologia disponível, que não parece estar na agenda.
Com base nestas considerações consubstanciam-se as razões para a elaboração da
quarta pergunta da pesquisa qualitativa.
O diálogo com parte da comunidade científica de geoprocessamento estabelecido pela
pesquisa qualitativa em função desta questão se encontra apresentado na seção 3.5.
Produzindo um senso e não uma cifra
Em realidade parece haver, sempre, uma certa obsessão pela informação definitiva,
pela informação de síntese que torne o processo decisório inquestionável, impessoal, isento de
subjetivismo e de risco. Existe certo fetiche em relação a vários dos instrumentos que o
homem vem construindo, com este fito, ao longo de sua história. É assim também em relação
ao geoprocessamento. As expectativas que se constróem em relação a este alimentam muito a
idéia de que será possível produzir uma informação objetiva e inquestionável, mais que uma
informação, um conhecimento sobre a dimensão espacial dos fenômenos.
No entanto, como observa Frédéric Sandron, o que o geoprocessamento produz é antes
de tudo um senso e não uma cifra (2002, p.54); e provavelmente nunca será. Jamais esta
produção de informações poderá substituir a reflexão, assim como jamais substituirá a
148
construção intelectual final que se precisa fazer para chegar ao conhecimento. Por
conseqüência, jamais conseguirá se transformar no objeto fetichizado que eliminará o risco do
erro da reflexão sobre a dimensão espacial. Não é o geoprocessamento que irá encerrar as
discussões sobre a interpretação, nem tampouco eliminar a incerteza que, afinal, tanto
atormenta aqueles que têm a esperança de dominar a verdade última das coisas.
Estas são as principais razões pelas quais a viagem epistemológica percorreu também
o espaço da reflexão que a produção científica dedica às informações e ao conhecimento
propugnado pelo geoprocessamento. É o relato desta exploração que dá substância ao
próximo item.
2.6 - O geoprocessamento e o conhecimento do espaço geográfico
Meninos, eu vou ditar
As regras do bem viver;
Não basta somente ler,
É preciso ponderar,
Que a lição não faz
saber,
Quem faz saber é o
pensar.
Irresistível iniciar a discussão acerca da produção de informações e de conhecimento
pelos sistemas de geoprocessamento sem recorrer a estes inteligentes e delicados versos, que
fazem parte do poema “Conselhos a Meus Filhos” (Eliodora, 2001), escritos entre os anos de
1759 e 1819 pela mineira Bárbara Eliodora (mulher de Alvarenga Peixoto e comadre de
Tomás Antonio Gonzaga, chamada pelos Inconfidentes de “Princesa do Brasil”), que
refletem de forma absolutamente essencial a natureza do que vem a ser conhecimento.
Informação ou conhecimento? O que afinal produz o geoprocessamento?
A rigor, o conhecimento só existe quando animado pelo ato consciente da reflexão. Só
existe na mente consciente, a despeito de também se estruturar a partir das orientações e
percepções de uma reflexão inconsciente, que é tão importante quanto desconhecida.
149
O conhecimento é algo metafísico, que resulta do exercício intelectual, e que,
portanto, não pode ser materializado por nenhuma das formas de expressão física da
informação. Quando a proposição se faz no sentido de materializar um conhecimento, o que
resulta é uma expressão reduzida e fragmentada, que tão-somente tenta comunicar a
estruturação intelectual que se estabeleceu para a compreensão de um dado fenômeno. Esta
expressão reduzida e fragmentada, transmitida a um ou vários receptores sob a forma de
informação, mais ou menos estruturada, com maior ou menor capacidade de estruturar
conhecimento neste receptor, é mensagem ou informação, mas nunca conhecimento. Pode
instruir conhecimento no receptor, mas apenas após este receptor passar por um processo de
reflexão que lhe permita construir intelectualmente seu próprio entendimento de um dado
fenômeno.
Na realidade, o que muitas vezes aparece considerado como conhecimento, nestes
diversos contextos em que se considera o conhecimento como materializado, trata-se,
essencialmente, de uma massa muito grande de informações estruturadas, ou seja, ordenadas
e articuladas segundo um modelo lógico (sistema), construído com o fito principal de
suportar uma determinada aplicação destas informações, na construção de uma visão do
fenômeno representado. No rastro do apelo mercantilista que precisa ser associado às
tecnologias da informação, vêm as expressões que o qualificam como um produto inteligente,
produzido no âmbito da gestão do conhecimento de seu produtor.
Colaboram também para esta confusão entre conhecimento (abstrato e resultante
apenas da reflexão consciente) e aquilo que parece ser apenas informação estruturada para
determinadas aplicações, o poder cada vez maior das tecnologias de infotelecomunicações.
Através delas resultam ampliadas as capacidades de extensão do ser humano, para muito
além das proximidades do próprio corpo, permitindo influir remotamente numa série cada
vez maior de processos de gestão da vida e da produção. Ampliam-se, desta forma, as
possibilidades de se produzir certa mística à volta destas tecnologias.
À medida que os sistemas de informações, como os de geoprocessamento, se tornam
mais complexos, mais exato precisa ser o conhecimento dos processos nos quais eles se
inserem. Maior também se torna o volume e a complexidade dos dados que precisam ser
coletados e classificados para instrução de seus processos de produção de informações. Na
mesma medida, entretanto, cresce a mitologia em torno destes sistemas, em grande parte
alimentada pela difusão da lenda de que cada vez mais eles se constituem em sistemas de
inteligência artificial, ou ainda, como no caso específico dos sistemas de geoprocessamento,
da chamada inteligência geográfica. Não são. A aparente sofisticação dos sistemas esconde
150
sua natureza real. Trata-se de um conjunto de processos pré-concebidos, programados para
reagir automaticamente a estímulos deflagrados por dados e modelos internalizados pelo
sistema. Conhecimento e inteligência encontram-se presentes, realmente, apenas na fase de
concepção e implementação destes sistemas, quando diversas inconsistências precisam ser
solucionadas. Isto vale, tanto para os sistemas de informações geográficas que instruem
processos de matrícula escolar em grandes municípios, quanto para os computadores de
bordo que são capazes de fazer decolar um Boeing 747, sem qualquer interferência dos
pilotos.
O que muitas vezes é qualificado como conhecimento, a rigor, consubstancia-se por
informação estruturada, cujo objetivo é padronizar atuações e comportamentos dos
indivíduos que implementam os processos organizacionais. O objetivo deste conhecimento
parece ser o de minimizar, ao limite, a capacidade de intervenção criativa dos seres
envolvidos num dado processo organizacional. Quando mais exaustiva for a descrição dos
processos e quanto maior for a previsibilidade dos eventos que compõem este processo, mais
detalhada poderá ser a padronização da atuação das pessoas que os animam. O
comportamento destas pessoas tende a se tornar cada vez mais automatizado, ou reflexo, e
sua postura intelectual tende a tornar-se, cada vez mais, isenta de um questionamento crítico,
em relação aos estímulos que recebe e em relação ao comportamento que deve adotar perante
as diversas situações de sua vida cotidiana.
No contexto desta discussão acerca das conceituações de conhecimento, e da relação
entre conhecimento e informação, parece adequado transcrever o alerta e as observações de
Robert Kurz sobre o impacto que as transformações sociais provocadas pela emergência e
consolidação da Sociedade da Informação, podem causar na capacidade efetiva de produzir
conhecimento verdadeiro, ou seja, conhecimento que permita intervir de forma construtiva na
sociedade como um todo.
“O conjunto de nossas ações na vida é cada vez mais monitorado por
dígitos, trilhas, clusters e sinais de todo tipo. Esse conhecimento de
sinais, o processamento reflexo de informações, não é, porém, exigido
somente no âmbito tecnológico, mas também no mais elevado nível
social e econômico. Assim, por exemplo, se é como se diz, os
governos, os ‘managers’, os que têm uma ocupação, enfim todos
devem permanentemente observar os ‘sinais dos mercados’.
Esse conhecimento miserável de sinais não é, na verdade,
conhecimento nenhum. Um mero reflexo não é, afinal, nenhuma
reflexão intelectual, mas seu exato contrário. Reflexão significa não
151
apenas que alguém funcione, mas também que esse alguém possa
refletir ‘sobre’ a tal função e lhe questionar o sentido.” (Kurz, 2002)
À luz destas perspectivas do que vem a ser conhecimento, será possível
considerar que o geoprocessamento é mais substantivo que as formas precedentes de
representação do espaço?
Os ambientes de geoprocessamento realmente potencializaram a capacidade do
intérprete de analisar dados espaciais. Muitas relações como relações de interseção, de
vizinhança, de proximidade, de pertencimento, dentre várias outras que apenas de uma forma
trabalhosa e subjetiva poderiam ser efetuadas numa interpretação desarmada do mapa, no
ambiente computacional podem ser implementadas de forma automática, deixando o
intérprete com maior disponibilidade e recursos para se ater àquilo que é essencial e
verdadeiramente subjetivo na análise. Desnecessário dizer que isto em muito amplia a
complexidade da modelagem da aplicação de geoprocessamento; no entanto, quando um
esforço adequado é desprendido nesta modelagem, diversos são os ganhos em recursos de
análise a serem utilizados quando do uso dos produtos de geoprocessamento.
À luz da conceituação já exposta de informação e de conhecimento parece natural a
consideração de que, nos sistemas de geoprocessamento contemporâneos, são muito maiores
os recursos para a produção de uma grande quantidade de informações estruturadas. Há nestes
sistemas, em comparação com as representações precedentes como a cartografia
convencional, uma maior capacidade de armazenamento de dados e uma possibilidade de
automatização das funções de tratamento destes dados, que antes não existiam, e que agora
viabilizam uma produção mais qualificada de informações.
Na generalidade, no entanto, vale enfatizar que para que estas informações sejam
efetivamente mais qualificadas, aumentam-se as demandas por um conhecimento, também
mais qualificado, nos dois extremos do processo. Em outras palavras, a produção de
informação qualificada demanda uma competente modelagem e estruturação do processo de
produção, que, por sua vez, apenas resultam adequados, quando há sólido conhecimento
acerca do objeto da modelagem, assim como dos dados que melhor o representam. No outro
extremo do processo, vale dizer, na análise, parece sensato considerar que devem ser ainda
mais sólidos os conhecimentos daqueles que se propõem a interpretar uma grande quantidade
152
de informações qualificadas, posto que apenas o conhecimento verdadeiro é que pode dar real
sentido a algo que, de outra forma, apenas ativaria uma reação reflexa, à semelhança do que
foi mencionado por Robert Kurz.
Esta perspectiva de uma certa sofisticação das representações do espaço parece estar
subjacente ao discurso com que a cartografia dinâmica fundamenta os argumentos que
justificam seu apelo ao paradigma da visualização cartográfica de MacEachren, que propugna
que as formas contemporâneas de cartografia são mais densas na transmissão de
conhecimentos do que aquelas que as precederam. Estas últimas pertenceriam às
representações que contemplam o pretenso paradigma da comunicação cartográfica,
enquanto que as cartas contemporâneas, que se consubstanciam numa representação mais
poderosa, contemplariam o chamado paradigma da visualização cartográfica. No contexto
deste paradigma haveria uma melhor percepção cognitiva do fenômeno espacial (Peterson,
2002, p.2), viabilizando, desta forma, uma mais qualificada análise do espaço geográfico.
Mas de que natureza são, afinal, estas análises, ditas geográficas?
A priori, parece importante destacar, como fazem Bailey e Gatrell, a diferença entre
análise espacial e a análise de dados espaciais, situando esta na descrição estatística e na
modelagem de dados espaciais (1995, p.7). Ou ainda, enfatizando o que foi estabelecido por
Bonham-Carter, ratificar que análise espacial, no contexto dos SIG, significa simplesmente a
análise de dados espaciais. (1994, p.6)
Muitas destas análises espaciais de dados são análises funcionais, ou seja, processam
dados espaciais em razão da forma que estes têm, independentemente dos fenômenos que eles
expressam, à semelhança de um programa estatístico de aplicação geral, ou de um sistema
gerenciador de banco de dados. (Tomlin, 1990, p.96) Desta maneira, assim com um conjunto
de dados de certas características essenciais pode ser objeto de um tratamento estatístico, um
certo conjunto de dados espaciais pode ser objeto de uma série de análises espaciais que,
afinal, produzam uma massa de informações sem qualquer qualificação. Tanto num caso
como no outro a relevância ou não das análises e de seus resultados depende da pertinência
das funções de análise, em relação à descrição de propriedades ou características dos dados e
do fenômeno que eles representam.
Afinal, uma grande massa de dados tabulados pode ser a representação, neste tipo de
dados, de uma determinada atividade ou mesmo de um processo, como o movimento de
recursos numa empresa. A análise destes dados através da estatística pode ensejar a produção
153
de uma série de índices ou indicadores que podem ser ou não significativos à representação da
realidade, em função da sua maior ou menor pertinência. Em essência, se não há uma sólida
fundamentação teórica que dê sentido às análises produzidas pela estatística, todos os índices
produzidos por ela podem se constituir em desinformação, em seu sentido mais amplo. A
mesma lógica parece aplicar-se à análise espacial. Ela se consubstancia, a rigor, numa análise
de dados espaciais em muito similar à análise estatística. Em muitos casos, manifestamente na
geoestatística, ela produz uma série de indicações acerca de processos espaciais. Estas
indicações têm sentido apenas, e tão-somente, nos casos em que há, como na estatística, uma
explicação que a faça conexa à realidade. Na má análise espacial produz-se, como na má
estatística, apenas desinformação.
Valem, portanto, para as análises espaciais via geoprocessamento, todas as
salvaguardas teóricas que precisam ser estabelecidas para que se considere como relevantes as
informações produzidas pelas ferramentas estatísticas. Este alerta, no caso das análises de
dados espaciais, parece até mais importante, posto que estas análises, da forma como o
geoprocessamento as promove, estão sendo tornadas comuns há pouco tempo. Não há ainda,
acerca delas, a cultura instalada que já existe em relação à estatística.
Não parece absurdo traçar um paralelo entre a forma como uma má análise espacial
pode deturpar o conhecimento da dimensão geográfica de um fenômeno e a forma como uma
má análise estatística pode deturpar o conhecimento da dimensão econômica do mesmo
fenômeno. A estatística é uma ferramenta descritiva fundamental à economia, no entanto,
apenas a descrição que a estatística faculta não resolve a questão. A teoria econômica é que
encerra, quando consegue, a explicação. O mesmo vale para a análise de dados espaciais e a
geografia.
Geografia e economia se parecem nessa dicotomia, porque ambas têm uma forte
dimensão concreta, junto a uma forte dimensão abstrata, que aludem à permanente
necessidade de sempre equilibrar as dimensões qualitativas e quantitativas de cada fenômeno
em análise.
Estes parecem ser os principais argumentos dos autores que destacam o fato de que os
sistemas de informações não produzem verdadeiras análises geográficas, ou espaciais, mas
sim descrições mais pormenorizadas, que são suportadas por uma maior capacidade de
processamento de dados que têm os sistemas. Trata-se mais de um processamento sofisticado
de dados do que de análise, na acepção mais própria da palavra. (Sandron, 2002, p.53)
154
De que conhecimentos preexistentes necessita o intérprete das análises para
melhor estruturar sua compreensão de um dado fenômeno?
Uma das percepções que se tem na viagem epistemológica ao geoprocessamento dá
conta do fato de que se está a alargar a implementação de análises espaciais a uma série de
atividades às quais, anteriormente, não havia grandes considerações acerca do espaço. No
geral, a produção científica do geoprocessamento sinaliza que seu grande salto qualitativo em
relação às formas precedentes de representação do espaço geográfico, se dá em razão da
possibilidade de se efetuar análises espaciais. Se isso é de fato verdadeiro, não deveria haver
uma maior preocupação com a disseminação dos conhecimentos sobre a natureza do espaço e
de suas representações?
A combinação de extensas bases de dados geográficos digitais com os ambientes
computacionais de geoprocessamento permite uma imensa diversidade na produção de
informações. (Pickles, 1995, p.7) As muitas e diversificadas soluções de correlação entre
dados permitem a apreensão dos fenômenos segundo perspectivas e dimensões que tornam a
análise espacial muito mais poderosa e flexível. Acrescente-se a isso o desenvolvimento das
representações dinâmicas e dos ambientes de espaço virtual, e o resultado será um volume de
informações de tal magnitude, que apenas intérpretes com conhecimentos substanciais dos
fenômenos poderão usufruir o poder efetivo da ferramenta.
Este talvez seja um dos paradoxos aparentes do desenvolvimento da tecnologia. Na
medida em que mais se sofisticam os instrumentos maiores são as demandas de conhecimento
para lidar com as informações cada vez mais qualificadas que eles produzem. Desta forma, a
um especialista que deseja estudar a dimensão espacial de seu fenômeno, não basta apenas
conhecer adequadamente sua estrutura. Parece de todo recomendável que ele desenvolva
também um certo conhecimento acerca da ontologia dos processos espaciais, para que a
construção de seu entendimento se faça compatível com as informações produzidas pelo
geoprocessamento.
Voltando ao paralelo com a estatística, que é hoje uma ferramenta comum a todas as
disciplinas, não parece absurda a consideração de que a incorporação efetiva da análise de
dados espaciais a uma vasta gama de atividades irá demandar uma maior disseminação dos
conhecimentos sobre o espaço geográfico, e sua ciência, a geografia, bem como sobre a
linguagem cartográfica a partir da qual as representações são construídas.
Parece muito interessante a perspectiva de Frédéric Sandron que considera os SIG
como “construtores do espaço”. (2002, p.53) Realmente a maior sofisticação das
155
representações do espaço construídas pelos ambientes de geoprocessamento permite e até
estimula o desenvolvimento de uma reflexão sobre como cada processo se dá no espaço. Isto
pode ensejar que se dêem asas ao interesse pelo conhecimento da dimensão espacial dos
fenômenos, fazendo com que a análise geográfica vá se tornando, cada vez mais, uma
categoria de análise importante. Talvez se esteja a tratar de uma crescente incorporação da
dimensão espacial às mais diversas atividades humanas, assim como aquela que foi
promovida em relação à categoria temporal, quando do amadurecimento dos dispositivos que
permitiram uma mais adequada e exata descrição desta dimensão das atividades.
A análise efetiva do espaço geográfico
A rigor, a análise efetiva do espaço geográfico se configura em um processo cognitivo,
que só adquire real substância, no contexto da construção intelectual de um dado analista.
Os muito significativos processos de análise de dados que o geoprocessamento pode
produzir são, em última instância, produtores de informação significativa, capazes de instilar
na reflexão de um observador qualificado, uma melhor compreensão de um dado fenômeno.
Trata-se portanto de informação, e não de conhecimento. Pode-se considerar que é uma
informação prenhe de conhecimento, mas que continua sendo, para todos os efeitos, tãosomente informação, até que um analista qualificado a decodifique e a transforme em bem
efetivo.
A questão que parece emergir da assunção desta perspectiva como válida é a seguinte:
que conhecimentos preexistentes deve ter o receptor da informação, para que ela se possa
transformar em conhecimento relevante?
Esta parece ser uma questão de grande importância, porque uma das maiores
transformações trazidas pelo geoprocessamento foi a emergência das preocupações com a
questão espacial numa série de atividades que, antes, muito pouco refletiam sobre o espaço.
Assim como a crescente complexidade da vida social foi, aos poucos, incorporando o tempo,
através de relógios, calendários e horários, uma das principais transformações que o
geoprocessamento vem promovendo parece ser a incorporação cotidiana do espaço a uma
série de atividades.
Com base nestas considerações consubstanciam-se as razões para a elaboração da
quinta pergunta da pesquisa qualitativa.
O diálogo com parte da comunidade científica de geoprocessamento estabelecido pela
pesquisa qualitativa em função desta questão se encontra apresentado na seção 3.6.
156
A parte final da viagem epistemológica, à luz da reflexão motivada, principalmente,
pelas questões das modelagens e das análises espaciais, buscou percorrer o espaço das
perspectivas futuras do geoprocessamento. Os sinais identificados em todo o percurso da
viagem dão sentido à idéia de que as representações do espaço encontram-se em franco
processo de reconstrução, razão pela qual parece muito importante que a próxima seção
mantenha um olhar perscrutador no futuro possível das representações do espaço geográfico.
2.7 - A evolução do conhecimento sobre geoprocessamento
Tão sintética quanto densa, a reflexão de Fernand Joly expressa a questão essencial
sobre o futuro das representações do espaço geográfico: “pode-se perguntar se mais vale
continuar a imitar os mapas, tal como outrora se fazia, ou tentar criar um novo estilo de mapas
adaptado ao mesmo tempo às possibilidades científicas e às capacidades técnicas dos
computadores.” (Joly, 1997, p.122)
A questão essencial posta por Joly decorre do fato de que há ainda grande similaridade
entre as representações do espaço desta era das tecnologias da informação e aquelas que
desempenharam este papel na era precedente à atual.
Que sinais do futuro emergem, no entanto, de uma viagem epistemológica ao
geoprocessamento?
Um dos sinais mais presentes e mais promissores reflete a natural tendência da
representação a se tornar dinâmica. A natureza essencial do processo é em tudo similar à
trajetória percorrida pela fotografia, de sua precariedade tecnológica em fins do século XIX
até o cinema digital dos dias de hoje. Tornar a representação animada é uma expectativa de
sempre, não apenas para cartografar o movimento (Joly, 1997, p.93-97), mas também para
liberar o intérprete de um ponto de vista invariável. Se até hoje estas tendências de
dinamização não se tornaram comuns é porque as restrições operacionais à sua disseminação
ainda são importantes.
A animação opera duas novas potencializações na representação: permite o
movimento do intérprete ao longo de uma série temporal de representações, incorporando
uma interessante perspectiva temporal que antes se fazia virtualmente impossível, e ainda
157
permite uma nova variação perspectiva, quando faculta a possibilidade de uma mudança na
perspectiva do observador em relação ao espaço da representação (Peterson, 1994, p.2), cuja
manifestação mais comumente conhecida por aqueles que lidam com representações é o
recurso de fly-through que foi incorporado a um bom número de sistemas de processamento
de imagens (Peterson, 1994, p.4). Trata-se, portanto, de representações espacialmente
dinâmicas ou temporalmente dinâmicas como observa Ferjan Ormeling (2002, p.6).
Esta dinamização das representações responde por alguns dos mais relevantes avanços
atuais da ciência cartográfica, que se consubstanciam naquilo que hoje se denomina de
Cartografia Animada (Animated Cartography). A cartografia animada, segundo alguns de
seus proeminentes desenvolvedores, tem o “objetivo de visualizar fenômenos que poderiam
não ser aparentes, se os mapas que o representam fossem vistos de forma individual. Em
outras palavras, essa Cartografia seria mais adequada à representação de fenômenos nos quais
aquilo que acontece entre cada mapa individual é mais importante do que aquilo que é
representado em cada mapa.” (Peterson, 2002, p.1)
Há várias aplicações de geoprocessamento nas quais a importância da dimensão tempo
e a possibilidade de representá-la fazem a diferença. É o caso, por exemplo, das relações entre
ambiente e saúde (Barcellos e Bastos, 1996, p.392), bem como no caso de ecosistemas,
conforme se observa a seguir:
“Ecosistemas contemplam uma periodicidade que, em suplemento à
modelagem espacial, demandam uma modelagem temporal. Para
aprimorar nosso primeiro modelo geral processado com base em
valores anuais médios, o mesmo modelo pode ser usado com valores
mensais ou até semanais. Novamente produzindo uma seqüência em
filme dos 12 ou 52 mapas criados desta forma, um entendimento muito
melhor da disponibilidade espacial e temporal de água pôde ser
alcançado.” (Huber, 2002, p.5)
Peterson (1994, p.2) manifesta a visão dos vínculos entre a emergência da cartografia
animada e o desenvolvimento dos SIG. Destaca interatividade e animação como importantes
elementos à compreensão da espacialidade dos fenômenos e reafirma sua percepção de que os
SIG exploraram intensamente a questão da interatividade, deixando não adequadamente
desenvolvidas as questões afetas à dinamização das representações. A despeito da distância no
tempo destas suas observações, que são de 1994, época em que as restrições de equipamentos
158
e sistemas eram ainda mais expressivas do que hoje nas questões de desenvolvimento da
cartografia dinâmica, a realidade é que os SIG realmente privilegiavam as questões de
interatividade, porque estas eram limitações mais importantes, num primeiro momento, do
que aquelas que advinham da falta de dinamismo das representações. No entanto, parece
natural que o desenvolvimento da animação das representações partisse das pesquisas em
cartografia e não das pesquisas iniciais em SIG. Em realidade, cada uma das áreas
concentrou-se inicialmente naquilo que mais afinidade guardava com seus objetivos
científicos. O desenvolvimento dos sistemas de informações geográficas objetivou buscar
uma potencialização do armazenamento e do processamento de dados, em razão dos seus
objetivos de melhor qualificar as informações produzidas, enquanto o desenvolvimento das
representações tinham por meta a exploração de formas de potencializar esta, em face da
afluência dos recursos computacionais. Interessante observar, como lembra Ferjan Ormeling,
que as variáveis visuais da representação cartográfica que dão conta da imagem dinâmica de
um mapeamento já haviam sido exploradas por Jacques Bertin, embora num contexto estático.
(Ormeling, 2002, p.3)
Mas ainda há muito a pesquisar e discutir acerca das representações dinâmicas e dos
ambientes de realidade virtual como os walkthrough e fly-through. As questões, como observa
Alan MacEachren, estão relacionadas com a expansão do poder de representação dos
ambientes dinâmicos de realidade virtual, que trazem à baila, inclusive, uma apreciação
comparativa entre os de natureza abstrata (construídos com emprego da semiologia gráfica) e
aqueles de natureza realística, como os que são construídos a partir da renderização de
imagens do real, como os fly-through. MacEachren alerta ainda para a necessidade de uma
reflexão acerca do que o conceito de representação significa nos ambientes de realidade
virtual, sugerindo ainda que estas reflexões se dêem ainda sob uma perspectiva
epistemológica ampla. (MacEachren, 1998, p.6)
Em outras palavras, a Cartografia Animada pode ser muito mais adequada à
representação de processos do que a cartografia tradicional, base do geoprocessamento
corrente de hoje. A associação com a perspectiva que Milton Santos tem do espaço geográfico
como um sistema de objetos e um sistema de ações se faz sem maiores esforços. A idéia de
um espaço dinâmico, transformador e transformado pelos processos sociais, induz à
percepção de que uma cartografia que consiga captar instantâneos a intervalos de tempo
regulares, pode ser muito melhor descritora desse espaço, do que aquela cartografia que
reporta apenas um dado instante, ainda que uma determinada aplicação de geoprocessamento
contemple a atualização permanente de alguns dados, em geral atributivos, que se associam a
159
essa base. Se o geoprocessamento objetiva empreender, ou ao menos realisticamente instruir,
análises espaciais, deve destinar especial atenção às potenciais capacidades de implementação
da Cartografia Animada.
Qual será o mais provável cenário futuro do geoprocessamento?
Uma das palavras chaves deve vir a ser interatividade, “uma nova relação entre
instrumento e usuário.” (Randolph, 1998, p.136) A principal razão disto deve ser a libertação
cada vez maior dos usuários em relação ao produtores das aplicações de geoprocessamento.
Há nisso, com de resto em tudo mais, oportunidades e riscos.
A grande oportunidade parece relacionar-se com a possibilidade de que se incorpore a
dimensão espaço definitivamente ao cotidiano, assim como há muito foi incorporada a
dimensão tempo. Não que o espaço faça hoje menos parte de nossas vidas do que o tempo.
Em realidade estas duas dimensões são, como diz Manuel Castells, as duas dimensões
materiais mais importantes da existência. A questão é o que o tempo dispõe de uma série de
instrumentos para sua representação, instrumentos esses, relógios, calendários e outros, que se
incorporaram à vida cotidiana, para o bem e para o mal, num passado que, afinal, não é nem
tão remoto assim. O espaço, no entanto, segue tendo suas representações muito pouco
incorporadas ao cotidiano. Talvez se esteja a viver o início dos tempos em que, como observa
Hall, está se iniciando a “explosão no uso dos mapas e de uma provável reconsideração do
espaço como dimensão da vida.” (apud Pickles, 1995, p.6)
A decorrência disso é que, como escreve Fernand Joly, “amanhã, ou mesmo hoje,
qualquer pesquisador pode se tornar seu próprio cartógrafo e qualquer cartógrafo pode ter
acesso ao tratamento da informação. Compreendido dessa maneira, o papel científico da
cartografia assume uma nova dimensão.” (Joly, 1997, p.133)
Associam-se a este novo contexto as possibilidades criadas pelo crescimento
exponencial das tecnologias de infotelecomunicações, que poderá promover uma associação
quase em tempo real entre sensores e representações digitais dinâmicas. Estas poderão
informar, por exemplo, a um monitor pessoal, quais as condições de tráfego num determinado
trecho de logradouro, quais os índices de freqüência e a disponibilidade de acesso a lugares
públicos como casas de show e restaurantes, dentre outras informações imprescindíveis
àqueles que vivem o ritmo alucinado das metrópoles urbanas do século XXI. Talvez um
monitor de bolso com mapeamentos dinâmicos do espaço e dos processos espaciais remotos
que interessam ao usuário (trânsito em um bairro, quando ele está a caminho de lá), venham a
160
ser o equivalente para a dimensão espacial do que são os relógios de pulso para o tempo.
Conectados aos sistemas de posicionamento global, estes monitores trarão a todo momento a
representação do espaço à volta do usuário, o que manterá a todos no mapa, assim como hoje
o relógio mantém a todos no tempo.
Então, que conhecimentos ganharão mais importância?
Ler e interpretar uma representação constitui-se num ato profundo de crença. (Hall
apud Pickles, 1995, p.20) E, com efeito, pouco importa que seja um simples mapa
convencional ou uma complexa aplicação em geoprocessamento, pois em ambos os casos há,
acima de tudo, uma crença profunda na perspectiva que a construiu e que a considera como
uma visão e representação adequada do real.
“Como o mundo será representado por pessoas que nunca foram
treinadas para fazê-lo de nenhuma forma particular? Sob uma certa
perspectiva, poderemos estar voltando ao mundo anterior à cartografia
formal, no qual diferentes pessoas ao redor do mundo desenvolveram
suas particulares, discretamente diferentes, formas de mapear.”
(Dorling e Fairbairn, 1997, p.125)
De toda forma, a produção de bases para estas muitas aplicações de massa, assim
como as aplicações mais específicas, mais científicas, ou ainda mais direcionadas a um uso
específico, continuarão a ser produzidas. Portanto, a ciência da leitura do espaço, a Geografia,
assim como a ciência que responde pela linguagem da construção da representação, terão que
continuar a se desenvolver e buscar formas de se adequar à representação, sentido amplo, de
uma espaço cada vez mais multidimensional.
Haverá ainda, com certeza, uma maior necessidade pelos conhecimentos essenciais
acerca do interpretar o espaço e do cartografar. Como dizem Dorling e Fairbairn:
“São as pessoas que encomendam, desenham, fornecem, usam e
aprendem a partir dos mapas. E são as pessoas que irão aprimorá-los –
não exatamente por fazê-los mais exatos, mas, a princípio, sendo mais
honestas acerca de como e porque eles são feitos, e ensinando mais
161
cuidadosamente acerca de como lê-los.” (Dorling e Fairbairn, 1997,
p.80)
A construção das representações irá se sofisticar, demandando um conhecimento mais
qualificado da gramática de sua construção, a semiologia gráfica, o que acabará por ensejar
uma maior subjetividade ao processo, em face da virtual impossibilidade de se estabelecer
uma padronização lingüística que se faça um elemento comum à modelagem das diversas
aplicações.
Especulações sobre o futuro
O historiador Eric Hobsbawm usa um termo muito expressivo para falar do cinema e
de seu impacto na cultura e nas artes da virada do séc.XIX para o séc.XX: ele o chama de
"fotografia em movimento".
Uma das grandes críticas que sempre foram feitas às representações do espaço referese à sua natureza estática e fixa no tempo; de forma similar a uma fotografia.
Com alguma liberdade, pode-se especular que todas as condições científicas e técnicas
para que as representações do espaço se ponham em movimento já existem. A animated
cartography já dispõe de vasto material para análise na Internet, assim como há diversos
produtores de software que divulgam a construção de ambientes virtuais em três dimensões,
que permitem imaginar que, num futuro próximo, a integração dinâmica de imagens de
diversas perspectivas pode produzir representações espaciais tridimensionais que muito se
assemelharão à observação direta do espaço.
Questões éticas à parte, não por irrelevância destas, mas sim por não serem o objeto
deste questionário, a questão que emerge dessa perspectiva de evolução remete a uma
reflexão sobre qual a natureza do conhecimento que irá subsidiar esta forma futura de
representação do espaço, na qual espaço e tempo estarão finalmente integrados.
Especulações sobre o futuro são sempre imperfeitas, porque, em realidade, tratam-se
de uma projeção à frente dos cenários do presente e do passado mais recente, não
incorporando, por razões óbvias, as revoluções criativas e o inesperado, que, de uma forma ou
de outra, acabam sempre por acontecer.
No entanto...
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Com base nestas considerações consubstanciam-se as razões para a elaboração da
sexta e última pergunta da pesquisa qualitativa.
O diálogo com parte da comunidade científica de geoprocessamento estabelecido pela
pesquisa qualitativa em função desta questão se encontra apresentado na seção 3.7.
2.8 – Uma impressão geral sobre a análise crítica
A se observar tudo que foi lido acerca da produção de conhecimentos sobre
geoprocessamento, a impressão que fica é de que há várias pessoas a olhar para a mesma
coisa, mas a perceber coisas que são, por vezes, sensivelmente diferentes umas das outras.
Um fato interessante, que pode eventualmente ser considerado como um forte indício
da desarticulação na construção do conhecimento, dá conta de que há imensa diversidade na
formação das referências bibliográficas de importantes fontes de produção científica. Em
geral, os trabalhos que estão fortemente influenciados por alguma das áreas específicas
(geografia ou cartografia, por exemplo) acabam por apresentar pequena diversidade no
conhecimento a montante. Este acaba sendo muito pouco diverso do conhecimento de sua
própria disciplina, fazendo com haja uma certa circularidade não criativa na argumentação
científica destas fontes.
De forma muito similar, fica também a impressão de que grande parte do que é
produzido não contempla uma reflexão de fundo acerca do que vem a ser o espaço geográfico.
Nem tampouco contempla uma reflexão similar acerca do papel das representações do
conhecimento, como o são a cartografia e o geoprocessamento. Pode ser que estas sejam,
afinal, questões tão óbvias e tão lugar-comum que é desnecessário que sejam trazidas à baila.
No entanto, o que transparece em outros momentos é a impressão de que estas assunções de
fundo acerca do espaço e das representações são simplistas, porque são, a rigor, fruto de uma
pouca reflexão dedicada ao assunto.
Isto que foi observado acaba por refletir uma característica do desenvolvimento atual
do conhecimento que instila algum receio. Trata-se da percepção recorrente de que a
interdisciplinaridade do geoprocessamento não o enriquece tanto quanto deveria. A rigor, se a
perspectiva emergir de uma fonte céptica, nem parecerá absurdo considerar que o
desenvolvimento atual ainda é desarticulador, porque algumas disciplinas não têm interesse
em reconhecer o papel importante de uma(s) outra(s). Não há como evitar nova menção
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àquilo que Hilton Japiassu chama de “epistemologia da dissociação e do esfacelamento do
saber.” (Japiassu, 1981, p.80)
Resta, no entanto, a esperança que o diálogo que será estabelecido no próximo
capítulo, instigado pela pesquisa qualitativa que foi elaborada a partir das reflexões deste
capítulo 2, traga novo alento às percepções de desarticulação que o ceticismo achou aqui ou
acolá, no contexto da crítica das produções consultadas.
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Capítulo 2 : Análise Crítica da Produção Científica