Disponibilidade para itinerar por onde não quero! Cláudio Perani e Adolfo Nicolás
Sob o título "Um ano da Itinerância Plena do Pe. Cláudio Perani e da itinerância Amazônica do Pe. Geral
Adolfo Nicolas sj", recebemos e publicamos, na íntegra, o artigo de Fernando López, padre jesuíta, membro
da Equipe Itinerante da Amazônia.
Eis o artigo.
Estes meses de agosto e setembro são para nos marcados por três experiências importantes, que dinamizam
nossa vida. Eles são “memória perigosa e provocadora”, diante dos desafios da missão nesta terra da
Amazônia e que exige de nos respostas e paradigmas novos: A primeira delas é a memória de um ano da
Itinerância Plena do Pe. Cláudio Perani sj, no dia 08/Ago/2009. Em segundo lugar lembramos um ano da
primeira itinerância, “de comunidade em comunidade” na região Amazônica, do Pe. Adolfo Nicolas sj, novo
Superior Geral da Companhia de Jesus. Por último, acabamos de participar do VIII Encontro
Interinstitucional da Equipe Itinerante (EI) realizado em Manaus entre os dias 9-19/Ago/2009. O tema
aprofundado foi: “Metodologia e Missão Itinerante: Possibilidades e Limites”. Assessorou o encontro o Pe.
Andrés, “avô da Equipe Itinerante” segundo palavras do “pai da Equipe”, o próprio Pe. Cláudio Perani sj.
Participaram do encontro 40 pessoas: 20 eram membros da EI, as outras eram responsáveis institucionais
(14) e distintas pessoas interessadas em conhecer a experiência. Durante o encontro foram recordadas
continuamente algumas das intuições do Pe. Claudio que inspiraram a experiência da EI assim como
algumas das importantes orientações e palavras que nos deu há um ano o Pe. Adolfo na sua visita oficial à
nossa região amazônica. Recolho a continuação as palavras de ambos.
1. Cláudio Perani sj: Profeta Itinerante!
Penso que Cláudio foi o jesuíta de maior “liberalidade” com quem tive a sorte de conviver e trabalhar na
missão nestes 25 anos que levo na América Latina como jesuíta. Foi um profeta itinerante comprometido
radicalmente com a justiça e a vida dos mais pobres, excluídos e diferentes da Amazônia. Um homem com
visão crítica e perspectiva ampla, com os pés enraizados profundamente na Amazônia e o olhar aguçado no
horizonte, na busca de caminhos novos. Comentava-me recentemente Dom Moacir, Arcebispo de Porto
Velho (RO), no XII Intereclesial de Base: “A Igreja e os movimentos sociais da Amazônia sentimos muito a
falta do Cláudio”.
Cláudio foi sempre um “itinerante” das “fronteiras”, geográficas ou simbólicas, onde as feridas da
humanidade, da história e do planeta estão mais abertas. Para ele o caminho das fronteiras e o trabalho
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trans-fronteiriço exigem somar forças com os outros para que o Reino e sua justiça se façam presentes
nestas regiões oprimidas e exprimidas historicamente. Ele inspirou as intuições fundamentais que nestes
primeiros anos de caminhada como equipe tentamos desenvolver e assumir nesta região amazônica: uma
visão geopolítica da Amazônia Continental que nos convida a trabalhar interfronteiriçamente, itinerando nas
“fronteiras” geográficas ou simbólicas, com estruturas leves para participar na vida cotidiana do povo,
escutá-lo e servi-lo, com a mobilidade necessária para ir ao encontro do outro e entrar onde a vida está mais
ameaçada, no compromisso com a justiça sócio-ambiental, na interinstitucionalidade porque fragmentados
e isolados, não dá para enfrentar os enormes desafios da região.
Primeiras conversas com Cláudio
As primeiras conversas com Cláudio remontam-se à minha chegada à nova missão do Amazonas (1998).
Depois de uma longa itinerância de 2 meses por terra e água, desde Paraguai, cheguei a Manaus
(4/Out/1998) onde me recebeu Cláudio. Alguns dias depois de minha chegada Cláudio me propôs formar
parte da Equipe Itinerante que se tinha iniciado em Jan/1998 com dois companheiros jesuítas, o Pe. Albano
e o Pe. Paulo Sérgio. Com simplicidade e profundidade enorme, Cláudio expressou sua intuição e o modo
como poderíamos iniciar nossa missão itinerante na região:
“Dediquem-se a andar pela Amazônia. Visitem as comunidades, as igrejas locais, as organizações. Observem
tudo cuidadosamente e escutem atentamente o que o povo fala: seus apelos e esperanças, seus problemas
e soluções, suas utopias e sonhos. Participem da vida cotidiana do povo. Observem e registrem tudo o que o
povo fala, com suas próprias palavras. Não se preocupem com os resultados, o Espírito irá mostrando o
caminho.”
E abrindo o mapa da Amazônia onde estávamos iniciando o trabalho (3,3 milhões de Km2!), com um grande
sorriso, Cláudio concluiu:
“Coragem! Comecem por onde possam!”
“Andem pela Amazônia... e escutem atentamente o que o povo fala...”
Para o Cláudio era fundamental andar e ir ao encontro do povo, de modo simples, para poder “ver, ouvir e
sentir” seus clamores, suas utopias e sonhos... Com um “pé dentro” dos espaços eclesiais e outro “pé fora”,
nos espaços mais leigos para descobrir as sementes do Reino espalhadas pelo mundo afora. Esta era a
própria vida do Cláudio nos anos que esteve como superior do Distrito dos Jesuítas da Amazônia: Passava as
manhãs da sexta feira ouvindo, aconselhando e confessando as prostitutas(os), os bêbados e o pessoal de
rua na Catedral de Manaus e algumas tardes da semana visitava as famílias que moravam nas palafitas do
Igarapé São Jorge junto a sua casa.
“Participem da vida cotidiana do povo. Observem e registrem tudo...”.
No cotidiano da vida se descobrem com maior clareza os projetos políticos que sustentam a vida do povo e
se descobrem as “sementes escondidas”, carregadas de esperança que projetam o novo. Por isso, Cláudio
sempre insistia na importância de participar não tanto nos momentos e acontecimentos “especiais” das
comunidades, mas sobretudo, no cotidiano da vida das mesmas: pescar com eles, trabalhar no roçado com
eles, ralar mandioca e preparar farinha com as mulheres, etc. E sempre Cláudio nos motivava a registrar
com fidelidade (nos “relatórios de campo”) as falas do povo, seus sonhos e lutas para poder captar e
entender suas lógicas e projetos de vida e assim, apoiá-los melhor na sua caminhada.
“Não se preocupem com os resultados, o Espírito irá mostrando o caminho.”
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Depois de cada itinerância (de mais de um mês), Cláudio nos juntava para discernir tudo o que tínhamos
visto e ouvido. “Não somos uma fábrica de lingüiça”, dizia, por isso não devemos estar pressionados pelos
resultados produtivos... O mais importante é discernir por onde o Espírito nos convida a avançar e confiar
em que Ele irá mostrando o caminho.
“Coragem! Comecem por onde possam!”
Cláudio não se encolhia frente aos grandes desafios... Animava-nos a enfrentá-los pondo tudo da nossa
parte, mas com a confiança absoluta de que tudo dependia de Deus, de que era Deus quem nos conduzia na
missão nesta Amazônia.
Porém, eu fiquei encolhido frente a esta nova proposta! Lembro quando Cláudio nos abriu o mapa da
gigantesca região (3,3 milhões de Km2!), literalmente encolheram-se-me as entranhas. Levei um susto
olhando o gigantesco mapa amazônico com uma rede fluvial de milhares de kilómetros de rios. Dentro de
mim ressoavam fortemente suas palavras: “Comecem por onde possam!”... Dizia a mim mesmo: “deve ser
uma brincadeira!” e me sentia confundido, eu que com tanto esforço e dor tinha saído de meu pequeno e
querido Paraguai.
Frente àquela proposta que me superava, pedi a Cláudio que me desse um mês para discernir. Ele, muito
respeitoso como sempre e animando-me ao ver-me assustado, me deu todo o tempo necessário… Durante
aquele mês, cada manhã no terraço da comunidade desde onde se vê em panorâmica a cidade, minha
oração foi pedir-lhe forças ao Senhor e coragem para, simplesmente, abrir o mapa da Amazônia, olhá-lo e
acolhê-lo com carinho e paz… Os primeiros dias não o conseguia… As entranhas se me encolhiam frente a
tamanho desafio. Muitas vezes me surpreendia a mim mesmo dizendo em voz baixa:
"Este homem está louco!” Pouco a pouco, com a ajuda do Senhor e o ânimo que Cláudio, carinhosa e
respeitosamente me dava a cada dia, senti que Deus me convidava a confiar e a enterrar-me, como Cláudio,
naquela missão totalmente nova e que me desbordava em todos os sentidos. Interiormente comecei sentir
o convite: “Enterra-te e confia! Eu, o Deus da Vida, serei propício na Amazônia!”
“Tomai, Senhor, e recebei toda a minha liberdade...”
As minhas últimas conversas com Cláudio se deram na noite do 1 ao 2 de Agosto de 2008, quando o
internamos de urgência, pois a quimioterapia o tinha deixado muito debilitado.
Um momento muito intenso foi na meia noite, quando nos mudaram do hospital de urgências para o
hospital central da Unimed. Ao chegar ao novo hospital, depois de serem feitos os controles de rotina,
Cláudio me segurou na mão e me perguntou se sabia a oração de Santo Inácio. Depois me pediu que
rezasse devagar, estrofe por estrofe: “Tomai, Senhor, e recebei toda minha liberdade…” A cada estrofe me
apertava a mão para que parasse e em voz baixa ele a repetia várias vezes... Depois me voltava a apertar a
mão para que continuasse com a seguinte estrofe: “e a minha memória também...”. Ele rezava com devoção
enquanto seus olhos se banhavam em lágrimas. Depois adormeceu por um tempo. Eu o acompanhava
chorando como uma criança…
“Ofereço tudo para que os povos indígenas tenham vida e seus direitos respeitados”
O último momento de partilha com Cláudio foi ao amanhecer. Contei-lhe que viajaria no dia seguinte para o
Peru. Recordei-lhe novamente que durante a viagem falaríamos com os três bispos da tríplice fronteira
sobre a proposta da comunidade interprovincial naquela fronteira e que ia para o encontro da rede de
jesuítas que trabalhamos junto aos povos indígenas na América Latina, que o encontro seria no Alto
Maranhão, em Santa Maria de Nievas e que tentaríamos entrar pelo rio, por São Borja e o Pongo de
Manceriche. Atento me escutou e logo me falou com firmeza:
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“Diz-lhes que rezo e ofereço tudo para que os povos indígenas tenham vida e seus direitos respeitados”.
Olhamos-nos intensamente e apertamos as nossas mãos fortemente. Disse-lhe: “Velho, agüenta até à volta,
que temos muitas coisas de que falar”. Serenamente sorriu emocionado. Os dois sabíamos que nossos
encontros e conversas já seriam noutro plano…
“Disponibilidade de andar por onde não quero”
Por último, quero recolher as notas do Cláudio que sua irmã encontrou entre seus papeis e enviou para sua
recordação de um ano da partida:
“Termino os Exercícios Espirituais na intimidade consoladora de Jesus: `Cláudio, tu me amas?´ Claro,
permanece um pouco de tristeza, pois meu o amor é fraco e limitado. Mas Jesus faz a parte dele”.
“Um outro apelo de Jesus agora que sou velho é a disponibilidade de `andar onde não quero´. Sem me
preocupar. Somente seguindo Jesus. Siga-me!”
Agora Cláudio “ITINERA” plenamente conosco por toda a Amazônia, por suas selvas e rios. Agora nos
acompanha e anima mais intensamente na missão de tecer nosso corpo apostólico nas “fronteiras” desta
imensa Amazônia. Convida-nos e cutuca-nos para desinstalar-nos e para “itinerar por onde não queremos!”
2. Itinerância do Pe. Geral Adolfo Nicolas sj pela Amazônia
Apenas um mês após da partida do Cláudio, em setembro de 2008, o Pe. Adolfo, recentemente escolhido
como novo Geral da Companhia de Jesus, fez sua primeira itinerância na Região dos Jesuitas da Amazônia
(BAM). Inicialmente participou da Conferência dos Provinciais Jesuitas da América Latina (CPAL) realizada
em Manaus. Depois, o Pe. Adolfo esteve itinerando durante vários dias pelas comunidades e obras nas que
colaboramos os jesuitas na região amazônica. Quatro palavras muito significativas ficaram em mim gravadas
das conversas e palestras do Pe. Adolfo. Penso que elas iluminam muito o estilo de vida e missão que o
mundo hoje exige e em particular à Equipe Itinerante.
“Duas decisões fundamentais: Tomar a primeira decisão e mantê-la!”
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No dia 29 de setembro o Pe. Adolfo esteve visitando a Comunidade Itinerante na área de palafitas do
igarapé de São Jorge. A visita era prevista para uma hora, porém se prolongou por mais de duas... O Pe.
Adolfo visitou algumas das famílias do bairro e depois conversou longamente com as companheiras e
companheiros da Equipe Itinerante onde estavam representantes dos núcleos de Manaus, Tabatinga e
Roraima. A conversa foi muito simples, agradável e profunda. O Pe. Adolfo perguntou amplamente pelo
estilo de vida e missão itinerante, pela dimensão interinstitucional da equipe, pela relação com os vizinhos,
pelos desafios e dificuldades mais fortes que como Equipe Itinerante sentimos... Depois de ter visto e
ouvido, no final da visita, o Pe. Adolfo nos comenta:
“Vocês tomaram duas decisões fundamentais. A primeira foi discernir e decidir morar inseridos aqui, entre
os mais pobres, e trabalhar juntos interinstitucionalmente nesta missão itinerante na pan-amazônia. A
segunda decisão importante que vocês fizeram foi, a pesar das dificuldades e incompreensões, manter a
primeira decisão”.
Todas as companheiras(os) da Equipe Itinerante ficamos encantados e confirmados na missão com a
partilha simples, fraterna e profunda do Pe. Adolfo.
“A casa onde moram é como a casa dos vizinhos?”
No dia seguinte, 30 de setembro, o Pe. Adolfo teve um encontro de confraternização com todos os jesuitas
de Manaus para ouvir e conhecer algumas outras obras e trabalhos e também dar-nos sua palavra. Depois
de ser apresentada uma nova missão iniciada no norte da região, o Pe. Adolfo perguntou com simplicidade:
“A casa onde vocês moram é igual às casas dos outros vizinhos?” A resposta foi que não! E o Pe. Geral
voltou a perguntar: “Os vizinhos visitam sua casa como visitam as casas dos outros vizinhos?” Também a
resposta foi que não!
Sem comentários!
“Chamados a atravessar as fronteiras nos dois sentidos...”
Na região amazônica, também no mundo todo, os jesuitas estamos chamados a entrar e atravessar as
fronteiras, onde as feridas estão mais abertas. Dizia-nos o Pe. Adolfo que atravessar as fronteiras exige
arriscar, “despir-nos” de nossas “velhas roupas”, esquemas e lógicas; exige passar de nossa “monocultura” a
uma “ecologia de culturas” com sua diversidade de lógicas e espaço-temporalidades. Só assim é possível
captar e compreender a novidade que se encontra no outro lado da fronteira e que o “outro diferente” nos
oferece. Porém, não basta atravessar a fronteira num único sentido (“sair”). Há que fazer o esforço por
voltar (“entrar”) e traduzir em categorias compreensíveis a novidade encontrada ao outro lado da
fronteira... Só assim poderemos ir avançando, des-construindo os velhos modelos que não respondem mais
aos novos e grandes desafios que a Amazônia e o mundo vivem hoje.
“Usar mais o outro hemisfério do cérebro...”
Por último, o Pe. Adolfo, com sua característica afabilidade e humor, nos convidou como Jesuitas a utilizar o
outro lado do cérebro para apreender a integrar na nossa missão uma outra lógica mais circular e simbólica,
menos linear, mais feminina e integral, como a que têm os povos amazônicos e os povos orientais com
quem ele trabalhou por longos anos.
3. Para continuar itinerando por “onde não queremos...”
Penso que nos tempos que vivemos as palavras do Pe. Cláudio e do Pe. Adolfo podem encorajar-nos e
iluminar nosso modo de vida e missão, para continuar itinerando com disponibilidade e generosidade pela
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Amazônia e pelo mundo. Itinerar “por onde não queremos: com quem ninguém quer estar, como ninguém
quer estar, onde ninguém quer estar”. Eles nos animam a voltar ao caminho do “Peregrino”, a recuperar a
“Cavalaria Ligeira” para equilibrar a “Artilharia Pesada” e assim dinamizar com maior agilidade nossa vida e
missão.
Obrigado Pe. Cláudio e obrigado Pe. Adolfo por continuar encorajando-nos na missão de itinerar pelas
“fronteiras”, geográficas e simbólicas, onde as feridas da humanidade e do planeta estão mais abertas, na
promoção da fé e da justiça sócio-ambiental para todos e para amanhã (não só para uns quantos e para
hoje). Obrigado por animar-nos a estar disponíveis para “andar por onde não queremos” e, com Inácio,
“Vagar em puro serviço de seu Pai Eterno” (Exercícios Espirituais 135).
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2008 Fernando Lopez – Disponibilidade para itinerar por onde nao