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A Costa Oriental de África na Cartografia
Portuguesa anterior ao século XVIII:
conceptualização, representação e identificação de espaços
1
Ana Cristina Roque
Instituto de Investigação Científica Tropical
Depto. Ciências Humanas – Programa de Desenvolvimento Global (SOC-DES)
Não sendo especialista em cartografia mas usando frequentemente
documentação cartográfica no contexto das temáticas que habitualmente trabalho, o que aqui se apresenta, para eventual discussão, é
sobretudo um conjunto de questões que me têm acompanhado ao longo de alguns anos de trabalho sobre a documentação portuguesa relativa à Costa Oriental de África, sobretudo nos séculos XVI-XVIII, e com
as quais estou mais uma vez a ser confrontada no âmbito dos trabalhos
2
de um recente projecto que, não sendo especificamente sobre esta
região nem sobre cartografia, considera também a análise da produção
cartográfica.
São questões que não me parecem estar ainda resolvidas e que
têm a ver seja com a utilização da cartografia enquanto documento
escrito, e consequentemente a possibilidade de comparação da infor-
1
Texto baseado na intervenção feita no 1º Workshop Nacional de Cartografia de Cartografia Portuguesa Antiga: Diagnóstico e Perspectivas Futuras. CIUHCT/BNP, Lisboa,
25-26 de Março de 2011.
2
Conhecimento e reconhecimento em espaços de influência portuguesa: registos, expedições científicas, saberes tradicionais e biodiversidade na África Subsariana e na
Insulíndia. Projecto FCT HC 0075/2009.
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mação que dela se pode extrair com a de outras fontes escritas coevas,
seja com o conceito de espaço e as diferentes formas de o representar
implícitos e explícitos na cartografia.
Assim, neste contexto, há dois aspectos que eu gostaria de
abordar. O primeiro tem a ver com a relação entre a produção cartográfica e os resultados das viagens dos portugueses, sobretudo durante o século XVI.O segundo, com a forma como se representaram cartograficamente os espaços que, de modo mais ou menos sistemático,
iam sendo progressivamente reconhecidos Portugueses e dados a conhecer ao mundo, pela sua própria mão ou pela pena de terceiros que
deles tinham conhecimento.
Considerando a Costa Oriental de África no quadro do Império
Português e o seu papel de suporte a um projecto de implantação do
domínio português no Oriente, a relação entre a produção cartográfica
e os resultados das viagens é particularmente interessante de analisar,
sobretudo no que respeita ao século XVI. Seja pela possibilidade de
comparação com as diferentes fontes documentais do mesmo período,
seja pela sua leitura e observação directas, estas cartas acompanham,
reproduzem e confirmam ou não o conhecimento progressivo e constantemente melhorado das novas regiões, mesmo quando com algum
desfasamento no tempo relativamente a esse conhecimento. Aliás, durante este período, há toda uma produção de documentação de natureza muito variada, extremamente rica e reveladora não só dos objectivos Portugueses, como da sua apetência para o registo detalhado de
tudo quanto é observado. O que, de certo modo, parece passar para
segundo plano nos séculos XVII e XVIII.
Por sua vez, do ponto de vista da cartografia e tendo como referência as tabulae ptolomaicas, nomeadamente a Africe Tabula Quarta,
a análise das cartas deste período, e em particular do século XVI, permite-nos traçar continuamente a fronteira entre o conhecido – fruto de
uma observação directa e sistematicamente corrigida mediante a prática de navegação e exploração tornada uma constante no Índico africano ao longo deste século – e o desconhecido, cuja representação
continua a persistir em moldes medievais, pontualmente matizada por
informações de um “ouvir dizer”, mas que nem por isso ultrapassa o
domínio do mítico e do fantástico, porque ainda espaço não profanado
pelo “descobridor”. Situação igualmente confirmada noutras fontes do
mesmo período como, por exemplo, em João de Barros, na sua descri-
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3
ção da Costa Oriental africana .
A perspectiva de cruzar e comparar a informação proveniente de
diferentes fontes documentais de um mesmo período tem sido, de algo
modo, uma constante nos trabalhos que tenho desenvolvido e, no caso
específico da costa oriental africana tem estado na base de levantamentos específicos para vários períodos, um dos quais para a primeira
4
metade do século XVI , que incluiu também a cartografia produzida
entre 1489 e 1560 na sua maioria compilada na Portugaliae Monumenta Cartographica, e que, creio, pode constituir um bom exemplo para
abordar a questão da relação entre a produção cartográfica e os resultados das viagens dos Portugueses.
Trata-se de um núcleo de 280 documentos, dos quais 27 cartas,
às quais se acrescentaram mais 3 que, de certo modo, preenchem um
lugar deixado em aberto na cartografia portuguesa, designadamente:



A Carta de Henrique Martellus Germanus, de 1489 (Fig.1), que apresenta o registo dos resultados da segunda viagem de Diogo Cão (1485/87)
e da viagem de Bartolomeu Dias (1488/89) e que é, portanto, a primeira carta a registar a passagem do Atlântico para o Índico baseada na
experiência concreta dos navegadores portugueses;
O Planisfério de Juan de La Cosa, de 1500, onde não só se encontra
correctamente representada a costa oriental de África até ao Rio do Infante como o traçado, ainda que incorrecto, do resto da costa demonstra que ele conhecia o itinerário de Vasco da Gama, relevando a incorrecção do traçado do facto de, muito provavelmente, não ter tido acesso a nenhuma carta em que essa viagem tivesse sido registada;
A Carta de Cantarini, de 1506, onde se representa pela primeira vez a
costa do continente africano tal como as viagens de Bartolomeu Dias e
de Vasco da Gama a revelaram.
3
João de BARROS (1552), Ásia - Década I, Livro 8, Cap. IV, Lisboa, INCM, reed. 1989,
pp.300-301.
4
A Costa Oriental de África na primeira metade do século XVI, segundo as fontes portuguesas da Época. Dissertação de Mestrado, apresentada em Setembro de 1994, no
Departamento de História da FCSH-UL (documento não editado).
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Fig. 1
Henrique Martellus Germanus,
1489, Mapa-Mundi
Reproduzido a
partir de FelipeFERNANDEZARMESTO (ed.),
The Times Atlas of
World Exploration,
Times Books,
Londres, 1991.
Com base neste núcleo cartográfico - 30 cartas (1489-1560) -,
que não sofre alterações significativas de conteúdo nos dois séculos
seguintes, procedeu-se à sua análise, não tanto “...com a preocupação
de as catalogar ou de escrever a biografia dos seus autores, mas no
sentido de se lerem todas as legendas, de observar a transformação
5
das costas, das ilhas e das terras...” .
Algumas destas cartas revelaram-se de imediato preciosas ao
nível das legendas. Foi o caso do Planisfério dito de Cantino (1502), ou
da carta anónima de 1510, provavelmente da autoria de Jorge Reinel. A
primeira pelas inúmeras informações que todos conhecem - mercadorias orientais, recursos locais, pontos de possível apoio ao longo da costa, “amigos” com que os portugueses ali podem contar, indicações de
como era feita a navegação no Índico à chegada dos portugueses... – a
segunda, eventualmente a carta mais antiga do Oceano Índico feita
segundo os levantamentos dos Portugueses, por permitir rectificar al-
5
Luís de ALBUQUERQUE, “A Descoberta do Mundo pelos Ibéricos”, As Navegações e a
sua projecção na ciência e na cultura, Gradiva, s/d, p.20.
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gumas das informações anteriores, designadamente de algumas constantes da própria Carta de Cantino. Porém, quanto a legendas informativas, verificou-se que a maioria das restantes cartas analisadas, se
limita a reproduzir informações que já constam das anteriores, sem as
validar nem lhes acrescentar nada de novo.
Esta ausência de informação, num período em que se procurava
avidamente o conhecimento que a restante documentação escrita tão
bem testemunha, obrigava a equacionar o lugar da Costa Oriental de
África na cartografia portuguesa deste período e, de certa forma, e
questionar como é que a representação cartográfica reproduzia ou não
conhecimento efectivo que se tinha desta costa.
Assim, uma primeira apreciação destas 30 cartas permitiu perceber que, em 47% dos casos estas cartas pertencem à chamada categoria dos Planisférios / Mapa-múndi, nos quais nenhuma ênfase especial é dada à costa oriental de África, enquanto 18,5 % estão integradas
em Atlas, onde comparativamente com outras regiões é quase nulo o
peso e a representatividade desta área no contexto geral das obras em
que se encontram incluídas. Das restantes, apenas 13 %, no caso das
cartas isoladas, se referem especificamente ao continente africano com
incidência na costa oriental de África e 12,5 % são mais propriamente
apelidadas de desenhos e não cartas, sendo que neste último caso, os
desenhos alusivos a cidades, animais, reis ou população em geral são,
na sua maioria, elementos decorativos que, mais do que revelarem a
realidade da região, acentuam o elemento mítico e fantástico que persiste nas representações cartográficas, pelo menos nesta primeira metade do sec. XVI.
Depois, um olhar mais atento permitiu entender que o traçado
da costa não “evoluí” cronologicamente, que não há correspondência
entre a linha de costa e o interior, o que provoca grandes distorções
quanto às dimensões reais do continente africano e que, excepção feita a casos muito pontuais, qualquer destas cartas reflecte o confronto
permanente entre a modernidade - representada pelo perfil de costa
resultante dos conhecimentos que vão sendo adquiridos pelos portugueses durante as suas viagens - e as concepções medievais do mundo, que persistem ainda na representação do desconhecido, tanto no
que respeita à costa quanto ao interior.
Acresce ainda que em nenhuma destas cartas se testemunha o
conhecimento do interior do continente africano. Para além das refe-
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rências convencionais já expressas na Geographia de Ptolomeu - Nilo e
Montanhas da Lua -, acrescentam-se apenas as referências ao Preste
João e a alguns reinos, como o do Mwenemotapa, mas quase sempre
mal posicionados em relação à linha de costa (Fig. 2).
Fig. 2
ANÓNIMO (Sebastião
Lopes ?) c.1565, África
Oriental. The Newberry
Library, Chicago. Reproduzido a partir de
Oceanos, 25, 1996.
Do
mesmo
modo, no que respeita ao sistema
hidrográfico da região, que em algumas cartas parece ser mais elaborado, a maioria
destas cartas limita-se à apresentação das ramificações dos rios junto
à costa mas não
dos seus cursos no
interior.
Considerados estes aspectos,
e salvaguardandose do ponto de vista metodológico outras possíveis abordagens a estas cartas em função
de cada uma delas e tendo em conta as diferenças específicas entre
um atlas, um planisfério, uma carta regional ou mesmo uma local, somos levados a considerar a possibilidade de uma relativa falta de interesse pela Costa Oriental do continente africano. A precisão de referências do ponto de vista cartográfico, parece fazer-se apenas na medida em que esta área era sobretudo um ponto de passagem e de
apoio relativamente ao Oriente, não constituindo por si própria um fim
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último, nem mesmo quando encarada na perspectiva do comércio do
ouro que ali se pretende disputar aos muçulmanos.
Tendo em conta esta hipótese, o que se tornava então necessário registar e precisar na carta não era tanto o progresso de um hipotético conhecimento do território, mas sobretudo os pontos de apoio à
viagem para a Índia e os acidentes que ao longo do percurso poderiam
pôr em perigo a segurança das embarcações, como no caso dos “Baixos” mais importantes que aparecem sempre assinalados.
Neste contexto pode dizer-se que a documentação cartográfica é
coerente com a restante documentação escrita na medida em que, em
ambos os casos, se reproduz a imagem e a ideia de um sítio de passagem e não a de um objectivo último. A interiorização desta situação
justificaria de per si a falta de correspondência entre os resultados das
viagens de exploração e a representação desses mesmos resultados,
excepto no que ao nível da costa fosse fundamental para garantir o
objectivo último das viagens. No início da segunda metade do século
XVI, as viagens de reconhecimento de Mesquita Perestrelo e as cartas
incluídas no Livro de Marinha de João de Lisboa constituem um dos melhores exemplos do binómio (re)conhecimento da costa / consolidação
de pontos de apoio à “Carreira da Índia”.
Deste modo, durante o século XVI, o mapeamento da costa oriental africana decorrente dos reconhecimentos Portugueses concentrava-se sobretudo na linha de costa e na representação do que se entendia serem os seus principais pontos estratégicos – que se assinalavam por bandeiras e cruzes Portuguesas ou por elaboradas iluminuras
de fortalezas apalaçadas - reflectindo sobretudo a tentativa de implantação de uma política que, visando o domínio do comércio no Índico,
sublinhava os objectivos essenciais dos portugueses naquelas paragens: criar pontos de apoio à Carreira da Índia e aceder aos terminais
do ouro vindo do interior para suporte do Império do Oriente.
Por sua vez, no século XVII, enquanto se discutiam no reino as
opções e prioridades do investimento português no Império, a cartografia precisava-se nas plantas das fortalezas, num maior detalhe na representação das áreas costeiras consideradas fundamentais, designadamente a “demonstração” de alguns portos e as particularidades da
costa (Fig.3) e das baías mais frequentadas, ou na tentativa de mapear
com maior rigor o reino do ouro – o Mwenemotapa - e os seus acessos,
tentando-se assim reproduzir a informação que delas se tinha.
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Fig. 3 - ANÓNIMO, 1636, Demonstração dos Rios de Cuama.PMC,
Vol.V., Est 579ª, Lisboa, INCM, 1987
Não obstante esta concordância, uma análise comparada da informação fornecida pelas cartas e pela restante documentação escrita
evidencia que existe um desfasamento quase permanente entre o que
se escreve e o que se representa cartograficamente, sempre a posteriori; o que, de algum modo poderá equivaler à falta de correspondência
entre o que se conhece e o que é dado a conhecer, havendo mesmo
situações de reconhecimento incentivadas pela coroa, das quais não
existe de todo, ou pelo menos não chegou até nós, qualquer esboço ou
registo cartográfico.
Um dos exemplos mas evidentes desta falta de correspondência
respeita às expedições levadas a cabo no interior, designadamente as
chamadas “viagens de António Fernandes” pelos sertões de Sofala, ou
as expedições de reconhecimento da bacia hidrográfica do Cuama,
qualquer delas bem documentadas, em percursos contabilizados em
dias de jornadas, na restante documentação escrita de 1511-1520.
Aliás, é interessante verificar que até 1520 nem sequer o Cuama aparece identificado e os rios representados, ainda que um ou outro possa
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ser representado com maior embocadura, são todos rios costeiros. Trata-se, exclusivamente, de uma cartografia de costa onde apenas aparece registado o contorno da região que se pretende apresentar.
Esta aparente falta de articulação entre o discurso escrito e discurso cartográfico tem também e naturalmente repercussões evidentes
ao nível da(s) forma(s) de representação tanto do continente africano,
sobretudo dos sertões do interior, quanto das áreas mais específicas de
presença portuguesa, designadamente das fortalezas.
Até ao início do segundo quartel do século XVII, a iconografia das
diferentes feitorias-fortalezas, por exemplo, reproduz uma espécie de
modelo que se replica por todo o Império mais como elemento decorativo, expressando o poder português, do que como correspondendo a
uma estrutura específica e adaptada às diferentes regiões desse Império. Só a partir do segundo quartel do século, estas representações começarão a ser sujeitas a correcções e a apresentar características específicas a cada uma delas, como se depreende dos desenhos do códi6
ce de António Bocarro .
No entanto, se estas alterações são patentes ao nível da iconografia das fortalezas, o mesmo não se verifica quanto à região envolvente, para onde, no caso de Sofala, por exemplo, apenas o esboço de
algumas palmeiras deixa entrever a tentativa de representar alguns
aspectos da paisagem enquadrante e, quiçá, da flora local (Fig. 4).
Fig. 4
ANÓNIMO (João Teixeira de
Albernaz I?), c.1635, Fortaleza de Sofala. Atlas do Livro
em que se relata o sítio de
todas as fortalezas, cidades e
povoaçoens do Estado da
Índia Oriental. Biblioteca
Nacional de Madrid. Reproduzido a partir de A. Teixeira
da MOTA, “Cartografia antiga
de Sofala”, Sep AECA
LXXXVII/Secção de Lisboa,
Lisboa, JIU, 1973.
6
António BOCARRO (1630), Livro das Fortalezas da Índia Oriental, BPE.
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A nível oficial é manifesto o esforço no sentido de precisar cartograficamente o traçado do perfil da costa e esboçar, com contornos
mais ou menos definidos, as unidades políticas ali existentes, segundo
o princípio, emergente no século XVI, de que a cada uma delas enquanto estado corresponde um território, com fronteiras definidas, possível de representar cartograficamente e onde se pode inscrever a diversa informação disponível de acordo com os padrões em uso no
mundo ocidental de então.
Porém, ao nível do indivíduo comum que integra a gente das
praças portuguesas, que eventualmente de cartografia pouco ou nada
sabem e que tem do espaço uma visão cujos limites se prendem com a
possibilidade de nele se movimentar, procurar-se-á acima de tudo garantir um espaço de interacção com as gentes da terra que lhes permita tomar conhecimento e participar da realidade africana em termos
idênticos aos das comunidades locais.
Longe dos pressupostos em que se fundamentava o reconhecimento oficial da região, o mapa que estes homens foram construindo
foi, sobretudo, um mapa mental que se aproximava muito mais da
ideia que os africanos faziam do espaço que ocupavam e da forma como nele se organizavam, que qualquer carta que os europeus pudessem então desenhar. Um mapa em que se identificavam centros e periferias, a forma como ambos se articulavam, o tipo de laços que os unia
e como isso se reflectia no quotidiano das comunidades ali estabelecidas, e não um mapa de espaços confinados a linhas de fronteira políticas que não se compadeciam com a realidade africana e que, ao longo
do tempo, não só determinou atitudes e comportamentos específicos
relativamente a esses espaços, como impediu que se reconhecesse a
existência de outras unidades políticas regionais, independentes e funcionando à margem do que se considerava o grande, senão único, estado africano que se reconhecia - o Mwenemotapa.
Reflectindo conceptualizações e objectivos diferentes que condicionaram formas diferenciadas de perceber e interiorizar o território,
estes dois níveis de (re) conhecimento funcionaram quase sempre em
simultâneo sem que, apesar da sua constante interacção, tenha sido
possível aos portugueses expressar em matriz cartográfica o que, em
termos de escrita, se descrevia com minúcia e em termos de experiência e vivência se media em dias de jornada e se referia como terras e
gentes do chefe x, y ou z.
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E isto apesar da produção cartográfica de grande qualidade dos
portugueses que, na segunda metade do século XVI, contava já com
cartas da costa oriental africana cujo perfil, reflectindo experiências e
correcções delas relevantes se apresentava já muito perto do seu traçado real. Porém, a cartografia da costa era, neste contexto, um pouco
marginal a esta questão.
Para os Portugueses, a linha de costa constituía uma fronteira física que, do ponto de vista cartográfico, era possível de representar de
forma bem precisa independentemente das eventuais unidades políticas existentes no continente. O seu reconhecimento e a sua representação, que a experiência e o tempo foram permitindo corrigir e aproximar da realidade, dependia em última instância das observações e
anotações de quem se ia tornando habitual na navegação daquelas
águas e não de quem as dominava do ponto de vista político ou económico, mesmo quando nela se inscreviam legendas que nos remetem
para estes aspectos específicos.
Já no que respeita às terras que no continente se prolongavam
para além dessa linha de costa e se estendiam pelo interior, não era
possível a aplicação deste critério. Não se compreendendo a estrutura
e organização do espaço africano, o mapeamento desse espaço resultava aleatório, impossível de concretizar a outro nível que não fosse o
da referenciação de grandes espaços não delimitados ou a indicação
de locais específicos, quase sempre com ligação aos portugueses e, de
preferência, posicionados junto à costa ou às linhas de água que estes
já conhecem.
Nesta perspectiva, e independentemente do facto de quase nunca se verificar num mesmo tempo uma correspondência entre a informação escrita e uma possível representação cartográfica da mesma, a
ausência de uma cartografia mais precisa do interior reflecte não só a
eventualidade de falta de meios humanos e técnicos que permitissem a
elaboração de uma cartografia terrestre mas, sobretudo, a dificuldade
conceptual de o representar. Resultando esta dificuldade da impossibilidade de ajustar o conceito de espaço e o modelo estado/território ocidental aos reinos do interior da costa oriental de África, e não da falta
de informação que, para muitas áreas, se encontrava já disponível.
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A documentação que providencia essa informação evidencia
que, pelo menos, desde meados do século XVI, os caminhos de acesso
às feiras do interior, às terras dos Mutapa e à bacia do Zambeze bem
como a maior parte das terras que ocupam a faixa litoral e sublitoral
entre a foz do Pungué e a baía de Vilanculos e as ilhas que lhes estão
nas imediações, eram conhecidos e muitos deles frequentados pelos
Portugueses. Contudo, só no segundo quartel do século XVII este conhecimento terá expressão cartográfica e, mesmo assim, de uma forma pouco precisa (Fig.5).
Fig. 5 - MANA / MOTAPA. DESCRIPÇÂO DOS RIOS DE CUAMA. In Luís
SILVEIRA, Livro das Plantas das Fortalezas, Cidades e Povoaçois, do
Estado da Índia Oriental. Lisboa, 1991.
Deste modo, pese embora a relevância da informação inscrita
nas cartas Portuguesas relativas à costa oriental de África, parece evidente que esta cartografia, mesmo quando procura reflectir aspectos
7
Veja-se, por exemplo, a documentação coligida nos 9 volumes da colectânea Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África Austral (1497-1840), NAR
/CEHU, Lisboa, 1962-1989.
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da exploração e do conhecimento dos sertões do interior, é essencialmente uma cartografia marítima e de costa. E, enquanto tal, procura
reproduzir com a maior fidelidade e precisão possíveis as características e conhecenças da região, mormente das áreas mais susceptíveis a
alterações, e por isso mais problemáticas em termos de navegação, ou
dos portos, baías e bocas de rios mais frequentados mas, nem por isso,
mais fáceis de mapear porque sujeitos a alterações significativas em
função da combinação de um complexo processo de assoreamento e
erosão marinha que, já então, afectava toda aquela região.
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