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13ª edição
revista, aumentada e atualizada
2011
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ISBN 978-85-02-12668-8
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Rezek, José Francisco
Direito internacional público : curso elementar /
Francisco Rezek. – 13. ed. rev., aumen. e atual. – São
Paulo : Saraiva, 2011.
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1. Direito internacional público I. Título.
CDU-341
10-13895
Índice para catálogo sistemático:
1. Direito internacional público
341
Diretor editorial Antonio Luiz de Toledo Pinto
Diretor de produção editorial Luiz Roberto Curia
Gerente de produção editorial Lígia Alves
Editor Jônatas Junqueira de Mello
Assistente editorial­ Sirlene Miranda de Sales
Assistente de produção editorial Clarissa Boraschi Maria
Preparação de originais Camilla Bazzoni de Medeiros
Raquel Modolo de Nardo
Arte e diagramação Cristina Aparecida Agudo de Freitas
Lídia Pereira de Morais
Revisão de provas Rita de Cássia Queiroz Gorgati
Rita de Cassia S. Pereira
Serviços editoriais Ana Paula Mazzoco
Carla Cristina Marques
Capa Orlando Facioli Design
Produção gráfica Marli Rampim
Impressão
Acabamento
Data de fechamento da edição: 27-12-2010
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qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora
Saraiva.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n.
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
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“Parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra
desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta
do que sua crueldade. [...] Pode não ser utópico esperar que
esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo
das consequências de uma guerra futura, venham a resultar,
dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término
à ameaça da guerra. Por que caminhos ou atalhos isto se
dará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer:
tudo quanto estimula o crescimento da civilização trabalha
simultaneamente contra a guerra.”
(Sigmund Freud, CARTA A ALBERT EINSTEIN, Viena, setembro de 1932)
À memória de
Elias Rezek.
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ÍNDICE GERAL
Do Prefácio de José Sette Camara à 1ª edição...................................
Do Prefácio do autor à 12ª edição......................................................
21
23
INTRODUÇÃO
1. Ordem jurídica numa sociedade internacional descentra
lizada.....................................................................................
2. Fundamento do direito internacional público.......................
3. Direito internacional e direito interno: teorias em confronto..
4. Roteiro do curso...................................................................
25
27
28
29
Parte I
NORMAS INTERNACIONAIS
5. O rol das fontes no Estatuto da Corte da Haia......................
33
Capítulo I
O TRATADO INTERNACIONAL
6. Perspectiva histórica.............................................................
35
Seção I — ENTENDIMENTO DO FENÔMENO CONVENCIONAL
7. Conceito................................................................................
8. Terminologia.........................................................................
9. Formalidade..........................................................................
10. Atores...................................................................................
11. Efeitos jurídicos....................................................................
12. Regência do direito internacional.........................................
13. Base instrumental.................................................................
a) Troca de notas: um meio de comunicação.......................
b) Troca de notas: um método negocial................................
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Seção II — CLASSIFICAÇÃO DOS TRATADOS
14. Proposição da matéria...........................................................
15. Número de partes..................................................................
16. Procedimento........................................................................
17. Natureza das normas.............................................................
18. Execução no tempo...............................................................
19. Execução no espaço..............................................................
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Seção III — PRODUÇÃO DO TEXTO CONVENCIONAL
20. Competência negocial..........................................................
a) Chefes de Estado e de governo........................................
b) Plenipotenciários.............................................................
c) Delegações nacionais......................................................
21. Negociação bilateral: roteiro e circunstâncias......................
22. Negociação coletiva: roteiro e circunstâncias.......................
23. Estrutura do tratado..............................................................
57
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68
Seção IV — EXPRESSÃO DO CONSENTIMENTO
24. Assinatura.............................................................................
25. Intercâmbio instrumental......................................................
26. Ratificação: entendimento....................................................
27. Ratificação: características...................................................
a) Competência....................................................................
b) Discricionariedade...........................................................
c) Irretratabilidade...............................................................
28. Ratificação: formas...............................................................
29. Ratificação: o depositário.....................................................
30. Pressupostos constitucionais do consentimento: generali
dades.....................................................................................
31. Pressupostos constitucionais do consentimento: o sistema
brasileiro...............................................................................
32. O problema dos “acordos executivos”..................................
33. Acordos executivos possíveis no Brasil................................
a) O acordo executivo como subproduto de tratado vigente... b) O acordo executivo como expressão de diplomacia ordi nária.................................................................................
34. Procedimento parlamentar....................................................
35. Reservas................................................................................
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36. Vícios do consentimento.......................................................
a) Consentimento viciado pela desobediência ao direito
público interno.................................................................
b) Erro, dolo, corrupção e coação sobre o negociador........
c) Coação sobre o Estado....................................................
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95
Seção V — ENTRADA EM VIGOR
37. Sistemas................................................................................
a) Vigência contemporânea do consentimento....................
b) Vigência diferida.............................................................
38. Registro e publicidade..........................................................
a) O sistema da Sociedade das Nações................................
b) O sistema das Nações Unidas..........................................
c) Registros regionais e especializados...............................
39. Incorporação ao direito interno............................................
40. Promulgação e publicação de tratados no Brasil..................
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100
101
102
102
Seção VI — O TRATADO EM VIGOR
41. Efeitos sobre as partes..........................................................
42. Efeitos sobre terceiros..........................................................
a) Efeito difuso: as situações jurídicas objetivas.................
b) Efeito aparente: a cláusula de nação mais favorecida.....
c) Previsão convencional de direitos para terceiros.............
d) Previsão convencional de obrigações para terceiros. O
sistema de garantia..........................................................
43. Duração.................................................................................
44. Ingresso mediante adesão.....................................................
45. Emendas...............................................................................
46. Violação................................................................................
47. Interpretação.........................................................................
a) Sistemas...........................................................................
b) Métodos...........................................................................
48. Conflito entre tratados..........................................................
a) Identidade da fonte de produção normativa....................
b) Diversidade da fonte de produção normativa..................
49. Conflito entre tratado e norma de direito interno.................
a) Prevalência dos tratados sobre o direito interno infra constitucional..................................................................
b) Paridade entre o tratado e a lei nacional..........................
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50. Situações particulares em direito brasileiro atual................. 130
a) Domínio tributário: o art. 98 do Código Tributário Na cional............................................................................... 130
b) Direitos e garantias fundamentais: o art. 5º, §§ 2º e 3º,
da Constituição .............................................................. 131
Seção VII — EXTINÇÃO DO TRATADO
51.
52.
53.
54.
55.
A vontade comum.................................................................
a) Predeterminação ab-rogatória........................................
b) Decisão ab-rogatória superveniente...............................
A vontade unilateral.............................................................
Denúncia e direito interno....................................................
Mudanças circunstanciais.....................................................
a) A execução tornada impossível.......................................
b) Rebus sic stantibus..........................................................
Jus cogens.............................................................................
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144
144
144
146
Capítulo II
FORMAS EXTRACONVENCIONAIS DE
EXPRESSÃO DO DIREITO INTERNACIONAL
56. Proposição da matéria........................................................... 148
Seção I — O COSTUME INTERNACIONAL
57. Elementos do costume..........................................................
58. O elemento material.............................................................
59. Elemento subjetivo: a opinio juris........................................
60. O problema da generalidade.................................................
61. Prova do costume: atos estatais............................................
62. Prova do costume no plano internacional.............................
63. Costume e tratado: a questão hierárquica.............................
64. Costume e tratado: a evolução histórica...............................
65. Codificação do direito costumeiro........................................
66. Fundamento de validade da norma costumeira....................
67. Fundamento do costume: a doutrina e a Corte.....................
148
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Seção II — PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO
68. Significado original.............................................................. 162
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69. Entendimento extensivo........................................................ 163
70. Fundamento de validade dos princípios gerais..................... 163
Seção III — ATOS UNILATERAIS
71. Controvérsia.......................................................................... 165
72. Ato e norma.......................................................................... 166
Seção IV — DECISÕES DAS ORGANIZAÇÕES .INTERNACIONAIS
73. Ainda a controvérsia............................................................. 167
74. Nomenclatura e eficácia....................................................... 168
75. Natureza jurídica. Autonomia.............................................. 169
Capítulo III
INSTRUMENTOS DE INTERPRETAÇÃO
E DE COMPENSAÇÃO
76. Proposição da matéria........................................................... 171
Seção I — JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA
77. O juiz não legisla..................................................................
78. Determinação do teor das normas não escritas.....................
79. Que jurisprudência?..............................................................
80. Doutrina: a difícil sintonia....................................................
171
172
173
174
Seção II — ANALOGIA E EQUIDADE
81. Métodos de raciocínio jurídico............................................. 175
82. Entendimento da equidade................................................... 176
Parte II
PERSONALIDADE INTERNACIONAL
83.
84.
85.
86.
Estados e organizações internacionais.................................
Indivíduos e empresas.........................................................
Réus em foro internacional..................................................
Litígios transnacionais entre o particular e o Estado...........
181
182
184
190
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87. Proposição da matéria......................................................... 192
Capítulo I
O ESTADO
88. Três elementos...................................................................... 193
Seção I — TERRITÓRIO DO ESTADO
89. Jurisdição ou competência.................................................... 193
90. Aquisição e perda de território............................................. 194
91. Delimitação territorial.......................................................... 197
Seção II — IMUNIDADE À JURISDIÇÃO ESTATAL
92.
93.
94.
95.
96.
97.
98.
99.
100.
Um velho tema.....................................................................
Diplomacia propriamente dita e serviço consular................
Privilégios diplomáticos.......................................................
Privilégios consulares...........................................................
Aspectos da imunidade penal...............................................
Renúncia à imunidade..........................................................
Primado do direito local.......................................................
Estado estrangeiro e jurisdição local....................................
Imunidade do Estado: fatos novos e perspectivas................
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200
201
202
204
205
206
207
209
Seção III — DIMENSÃO PESSOAL DO ESTADO
101. População e comunidade nacional........................................ 212
102. Conceito de nacionalidade.................................................... 212
Subseção 1 — A nacionalidade em direito internacional
103. Princípios gerais e normas costumeiras................................ 213
104. Tratados multilaterais........................................................... 215
Subseção 2 — A nacionalidade brasileira
105. Matéria constitucional..........................................................
106. Brasileiros natos...................................................................
107. Brasileiros naturalizados......................................................
108. Perda da nacionalidade brasileira.........................................
218
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222
222
Subseção 3 — O estatuto de igualdade
109. Gênese.................................................................................. 224
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110. Dois padrões de igualdade.................................................... 224
111. Extinção do benefício estatutário......................................... 225
Seção IV — CONDIÇÃO JURÍDICA DO ESTRANGEIRO
112. Admissão discricionária....................................................... 226
Subseção 1 — Títulos de ingresso e direitos do estrangeiro
113. Variedade dos vistos............................................................. 226
114. Diversidade dos direitos....................................................... 227
Subseção 2 — Exclusão do estrangeiro por iniciativa local
115. Deportação............................................................................ 228
116. Expulsão............................................................................... 229
Subseção 3 — A extradição
117. Conceito e fundamento jurídico...........................................
118. A extradição no Brasil: reciprocidade e poderes constitucio­
nais do Congresso.................................................................
119. Discrição governamental e obrigação convencional............
120. Submissão ao exame judiciário............................................
121. Controle jurisdicional...........................................................
122. Legalidade da extradição......................................................
123. Efetivação da entrega do extraditando..................................
232
232
233
234
235
240
Subseção 4 — Variantes ilegais da extradição
124. Dilemas da Justiça................................................................
125. Indiferença do direito internacional......................................
126. Vocação protetiva do direito interno.....................................
127. O sistema protetivo no direito brasileiro..............................
128. A doutrina do caso Biggs.....................................................
241
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230
Subseção 5 — Asilo político
129. Conceito e espécies............................................................... 250
130. Natureza do asilo diplomático.............................................. 251
131. Disciplina do asilo diplomático............................................ 252
Seção V — PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS
HUMANOS
132. Normas substantivas............................................................. 253
133. Declaração de 1948: direitos civis e políticos...................... 254
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134.
135.
136.
137.
Declaração de 1948: direitos econômicos, sociais e culturais.
Direitos humanos de terceira geração...................................
Tratados sobre os direitos humanos......................................
Mecanismos de implementação............................................
255
255
256
257
Seção VI — SOBERANIA
138. Noção de soberania............................................................... 259
139. Roteiro da matéria................................................................ 262
Subseção 1 — Reconhecimento de Estado e de governo
140. Natureza declaratória do reconhecimento de Estado............
141. Formas do reconhecimento de Estado..................................
142. Reconhecimento de governo: circunstâncias........................
143. Doutrina Tobar: a expectativa da legitimidade.....................
144. Doutrina Estrada: uma questão de forma.............................
145. Harmonização das doutrinas. Prática contemporânea..........
263
264
265
267
268
269
Subseção 2 — Estados federados e territórios sob administração
146. O fenômeno federativo e a unidade da soberania................. 270
147. Atuação aparente de províncias federadas no plano inter
nacional................................................................................. 272
148. Territórios sob administração: a ONU e o sistema de tutela..... 274
Subseção 3 — Soberania e hipossuficiência
149. O problema dos microestados.............................................. 275
150. Nações em luta pela soberania............................................. 277
151. A Santa Sé: um caso excepcional......................................... 278
Seção VII — MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO
152. Atualidade das normas......................................................... 280
153. Matrizes do direito ambiental............................................... 282
Capítulo II
ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS
154. Introdução............................................................................. 284
Seção I — TEORIA GERAL
155. Personalidade jurídica.......................................................... 292
156. Órgãos................................................................................... 293
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161.
162.
163.
164.
Aspectos do processo decisório............................................
A organização frente a Estados não membros......................
Sede da organização.............................................................
Representação, garantias, imunidade...................................
Finanças da organização.......................................................
Admissão de novos membros...............................................
Sanções.................................................................................
Retirada de Estados-membros..............................................
294
298
299
300
303
304
306
308
Seção II — ESPÉCIES
165.
166.
167.
168.
169.
Alcance e domínio temático.................................................
Alcance universal, domínio político: a SDN e a ONU.........
Alcance universal, domínio específico.................................
Alcance regional, domínio político......................................
Alcance regional, domínio específico..................................
309
309
311
312
313
Capítulo III
RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL
170. Conceito................................................................................ 315
171. Fundamento.......................................................................... 316
Seção I — ELEMENTOS ESSENCIAIS
172. O ato ilícito........................................................................... 317
173. A imputabilidade.................................................................. 317
174. O dano.................................................................................. 320
Seção II — PROTEÇÃO DIPLOMÁTICA
175.
176.
177.
178.
179.
180.
181.
182.
Teoria geral...........................................................................
O endosso.............................................................................
Primeira condição do endosso: a nacionalidade do particular......................................................................................
Dupla nacionalidade.............................................................
Nacionalidade contínua........................................................
Nacionalidade efetiva...........................................................
Proteção funcional................................................................
Segunda condição do endosso: o esgotamento dos recursos
internos................................................................................
321
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325
325
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183. Efeito jurídico do endosso.................................................... 329
184. Renúncia prévia à proteção diplomática: a doutrina e a cláu
sula Calvo............................................................................ 330
Seção III — CONSEQUÊNCIAS DA RESPONSABILIDADE
INTERNACIONAL
185. A reparação devida............................................................... 332
186. Formas e extensão da reparação devida................................ 332
Capítulo IV
O FENÔMENO SUCESSÓRIO
187. O princípio da continuidade do Estado................................ 335
Seção I — SUCESSÃO DE ESTADOS: MODALIDADES
188. Fusão ou agregação de Estados............................................ 336
189. Secessão ou desmembramento de Estados........................... 336
190. Transferência territorial........................................................ 337
Seção II — SUCESSÃO DE ESTADOS: EFEITO JURÍDICO
191.
192.
193.
194.
Normas aplicáveis.................................................................
Nacionalidade das pessoas...................................................
Bens públicos........................................................................
Tratados e dívida externa......................................................
337
338
338
339
Seção III — SUCESSÃO DE ORGANIZAÇÕES
INTERNACIONAIS
195. Um quadro recente............................................................... 341
196. Dois exemplos...................................................................... 341
Parte III
DOMÍNIO PÚBLICO INTERNACIONAL
197. Proposição da matéria........................................................... 345
198. O polo norte.......................................................................... 345
199. A Antártica............................................................................ 346
16
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Capítulo I
O MAR
200. Codificação do direito costumeiro........................................ 349
201. Navios: noção e espécies...................................................... 350
Seção I — ÁGUAS INTERIORES, MAR TERRITORIAL E
ZONA CONTÍGUA
202.
203.
204.
205.
206.
207.
Variedade das águas interiores..............................................
Regime jurídico....................................................................
Mar territorial: natureza e regime jurídico...........................
Mar territorial: extensão.......................................................
Mar territorial: delimitação...................................................
Zona contígua.......................................................................
351
352
353
354
355
357
Seção II — ZONA ECONÔMICA EXCLUSIVA
208. Entendimento........................................................................ 357
209. Direitos do Estado costeiro................................................... 358
210. Direitos da comunidade........................................................ 358
Seção III — PLATAFORMA CONTINENTAL E
FUNDOS MARINHOS
211. Regime jurídico da plataforma continental.......................... 359
212. Regime jurídico dos fundos marinhos.................................. 360
Seção IV — ALTO MAR
213. Princípio da liberdade........................................................... 361
214. Restrições à liberdade........................................................... 361
215. Disciplina da navegação....................................................... 362
Seção V — TRÂNSITO MARÍTIMO: ESTREITOS E CANAIS
216. Estreitos: algumas normas gerais......................................... 363
217. Canais: regimes singulares................................................... 364
Capítulo II
RIOS INTERNACIONAIS
218. Conceito................................................................................ 368
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Seção I — ALGUNS PRINCÍPIOS
219. Um direito casuístico............................................................ 368
Seção II — REGIMES FLUVIAIS SINGULARES
220. Rios da América do Sul........................................................ 369
221. Outros regimes...................................................................... 370
Capítulo III
O ESPAÇO
222. Distinção preliminar............................................................. 372
Seção I — O ESPAÇO AÉREO
223.
224.
225.
226.
227.
Princípios elementares..........................................................
Normas convencionais..........................................................
Nacionalidade das aeronaves................................................
O sistema das cinco liberdades.............................................
Segurança do tráfego aéreo...................................................
372
373
374
375
376
Seção II — O ESPAÇO EXTRA-ATMOSFÉRICO
228. Gênese das normas............................................................... 377
229. Cooperação e pacifismo relativo.......................................... 378
Parte IV
CONFLITOS INTERNACIONAIS
230. Noção de conflito internacional............................................ 381
231. Proposição da matéria........................................................... 382
Capítulo I
SOLUÇÃO PACÍFICA
232. Evolução dos meios.............................................................. 385
Seção I — MEIOS DIPLOMÁTICOS
233. O entendimento direto em sua forma simples...................... 386
234. Bons ofícios.......................................................................... 386
235. Sistema de consultas............................................................. 388
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236. Mediação.............................................................................. 388
237. Conciliação........................................................................... 390
238. Inquérito: uma preliminar de instância................................. 391
Seção II — MEIOS POLÍTICOS
239. Órgãos políticos das Nações Unidas.................................... 391
240. Esquemas regionais e especializados................................... 394
Seção III — MEIOS JURISDICIONAIS
241. Conceito................................................................................ 395
Subseção 1 — A arbitragem
242. Jurisdição ad hoc..................................................................
243. Árbitros e tribunais arbitrais.................................................
244. A Corte Permanente de Arbitragem.....................................
245. Base jurídica da arbitragem..................................................
246. Natureza irrecorrível da sentença arbitral.............................
247. Obrigatoriedade da sentença arbitral....................................
248. Carência de executoriedade..................................................
395
396
397
397
399
400
400
Subseção 2 — A solução judiciária
249. Uma opção soberana.............................................................
250. Uma história recente.............................................................
251. A Corte da Haia: duas fases..................................................
252. 1945: a ressurreição da Corte...............................................
253. Juízes da Corte da Haia........................................................
254. Competência contenciosa.....................................................
255. Cláusula facultativa de jurisdição obrigatória......................
256. Linhas gerais do procedimento.............................................
257. Natureza do acórdão.............................................................
258. Competência consultiva........................................................
259. Cortes regionais e especializadas.........................................
400
401
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403
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412
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Capítulo II
A GUERRA FRENTE AO DIREITO
INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO
260. Jus in bello............................................................................ 415
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Seção I — DIREITO ANTERIOR À PROSCRIÇÃO DA GUERRA
261. Velhas regras costumeiras..................................................... 416
262. Codificação: primeiros passos.............................................. 417
263. O direito da Haia: guerra e neutralidade............................... 418
Seção II— EVOLUÇÃO DA NORMA PROIBITIVA DA GUERRA
(1919-1945)
264. Pacto da SDN: o prazo moratório......................................... 420
265. Pacto Briand-Kellog: a renúncia........................................... 420
266. Carta das Nações Unidas: a proibição formal e extensiva........ 420
Seção III — DIREITO SUPERVENIENTE À PROSCRIÇÃO
DA GUERRA
267. O direito de Genebra: o imperativo humanitário.................. 422
268. Desarmamento e outros temas de trato recente.................... 424
269. Guerra total: hoje um falso problema................................... 425
Abreviaturas........................................................................................ 427
Bibliografia.........................................................................................
Obras gerais...................................................................................
Normas internacionais...................................................................
Personalidade internacional...........................................................
Domínio público internacional......................................................
Conflitos internacionais.................................................................
Outras obras...................................................................................
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431
435
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444
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Índice remissivo.................................................................................. 449
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DO PREFÁCIO DE
JOSÉ SETTE CAMARA À 1ª EDIÇÃO
O direito internacional desenvolveu-se extraordinariamente
depois da segunda guerra mundial.
O convívio dos Estados em uma comunidade juridicamente
organizada e a intensificação das relações entre os povos
produziram uma nova tessitura de normas em grande parte
incorporadas em convenções, que deu à vida internacional um
ordenamento jurídico de que jamais dispôs no passado.
Cada dia é mais importante o conhecimento do direito
internacional para o profissional das leis, de vez que a repercussão
dos problemas internacionais na vida crescente de convenções
vigentes, que, por força da promulgação, passam a fazer parte
da ordem jurídica interna dos Estados.
A codificação e o desenvolvimento progressivo do direito
internacional transformam o velho direito das gentes, outrora
uma disciplina vaga, um amontoado frouxo de princípios
consuetudinários e práticas tradicionais, esparsamente
incorporados em convenções, num dos mais vivos e florescentes
ramos da ciência jurídica.
Daí a importância de livros como este curso, que indicam
o caminho da volta às nossas melhores tradições de respeito ao
primado do direito nas relações entre os Estados, de devoção
da melhor doutrina e dos nossos maiores juristas ao estudo dos
problemas do direito internacional.
Rio de Janeiro, outubro de 1988.
José Sette Camara (1920-2002)
Embaixador do Brasil, Juiz (1979-1988)
e Vice-Presidente (1982-1985) da Corte Internacional de Justiça.
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DO PREFÁCIO DO AUTOR
À 12ª EDIÇÃO
O livro preserva ainda hoje o que foi seu propósito original:
ensinar o direito internacional público a quem queira ter
uma noção precisa do que é este domínio da ciência jurídica,
fazendo-o com absoluto rigor científico, mas poupando o leitor
de tudo quanto seja, para aquele fim, supérfluo, redundante,
declamatório. Como nas edições anteriores, o livro pode ser
inteiramente assimilado por quem tenha outra formação que
não a jurídica, sob a só condição do bom senso ___ pressuposto
indescartável do direito, se não de todo o conhecimento humano.
Uma revisão integral do texto precedeu sua atualização, com
dados contemporâneos da ida ao prelo, e houve certo número de
acréscimos ao texto principal. Numa evocação da obra de Hélio
Tornaghi, o grande mestre do processo penal na minha juventude,
plantei no texto, de modo esparso e graficamente distinto, certas
leituras. São quase sempre votos meus, não necessariamente
vitoriosos, no Supremo Tribunal Federal e na Corte Internacional
de Justiça, que de algum modo favorecem o entendimento da
matéria ou revelam, aqui e ali, sua dimensão controvertida.
No prefácio das edições anteriores mais recentes, lembrei
que crescia na consciência coletiva de nosso tempo um
sentimento de saturação com a desordem e o arbítrio no cenário
internacional, um generalizado senso crítico ditado em parte pela
ética, em parte pela razão pura; prenúncio provável de uma era
onde mal conseguiríamos acreditar que de fato aconteceu na
virada do século, sob nossos olhos, aquela extrema banalização
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do sacrifício da dignidade humana. Tenho agora a convicção de
que haverá tempo, no espaço de nossas vidas, para ver construída
uma sociedade internacional em definitivo estado de direito.
Compartilho, uma vez mais, essa esperança com o leitor deste
livro.
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INTRODUÇÃO
1. Ordem jurídica numa sociedade internacional descentralizada. Uma advertência deve ser feita a todo aquele que se
inicia no estudo do direito internacional público. A sociedade
internacional, ao contrário do que sucede com as comunidades
nacionais organizadas sob a forma de Estados, é ainda hoje
descentralizada, e o será provavelmente por muito tempo adian­
te de nossa época. Daí resulta que o estudo desta disciplina não
ofereça a comodidade própria daquelas outras que compõem o
direito interno, onde se encontra lugar fácil para a objetividade
e para os valores absolutos. No plano interno, a autoridade su­
perior e o braço forte do Estado garantem a vigência da ordem
jurídica, subordinando compulsoriamente as proposições mino­
ritárias à vontade da maioria, e fazendo valer, para todos, tanto
o acervo legislativo quanto as situações e atos jurídicos que,
mesmo no âmbito privado, se produzem na sua conformidade.
No plano internacional não existe autoridade superior nem mi­
lícia permanente. Os Estados se organizam horizontalmente, e
dispõem-se a proceder de acordo com normas jurídicas na exa­
ta medida em que estas tenham constituído objeto de seu con­
sentimento. A criação das normas é, assim, obra direta de seus
destinatários. Não há representação, como no caso dos parla­
mentos nacionais que se propõem exprimir a voz dos povos, nem
prevalece o princípio majoritário. A vontade singular de um
Estado soberano somente sucumbe para dar lugar ao primado
de outras vontades reunidas quando aquele mesmo Estado tenha,
antes, abonado a adoção de semelhante regra, qual sucede no
quadro das organizações internacionais, a propósito de questões
de importância secundária.
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Em direito interno as normas são hierarquizadas como se
se inscrevessem, graficamente, numa pirâmide encabeçada pela
lei fundamental. Não há hierarquia entre as normas de direito
internacional público, de sorte que só a análise política — de
todo independente da lógica jurídica — faz ver um princípio
geral, qual o da não intervenção nos assuntos domésticos de
certo Estado, como merecedor de maior zelo que um mero dis­
positivo contábil inscrito em tratado bilateral de comércio ou
tarifas. As relações entre o Estado e os indivíduos ou empresas
fazem com que toda ordem jurídica interna seja marcada pela
ideia da subordinação. Esse quadro não encontra paralelo na
ordem internacional, onde a coordenação é o princípio que
preside a convivência organizada de tantas soberanias.
Dentro da ordem jurídica estatal, somos todos jurisdicio­
náveis, dessa contingência não escapando nem mesmo as pes­
soas jurídicas de direito público interno. Quando alguém se
dirige ao foro para demandar contra nós, em matéria civil ou
criminal, não se nos pergunta vestibularmente se aceitamos ou
recusamos a jurisdição local: é imperioso aceitá-la, e a opção
pelo silêncio só nos poderá trazer maior transtorno. Já o Estado,
no plano internacional, não é originalmente jurisdicio­nável pe­
rante corte alguma. Sua aquiescência, e só ela, convalida a au­
toridade de um foro judiciário ou arbitral, de modo que a sen­
tença resulte obrigatória e que seu eventual descumprimento
configure um ato ilícito.
Frente aos atos ilícitos em que o Estado acaso incorra, não
é exato supor que inexista no direito internacional um sistema
de sanções, em razão da falta de autoridade central provida de
força física. Tudo quanto é certo é que, neste domínio, o siste­
ma de sanções é ainda mais precário e deficiente que no interior
da maioria dos países. A igualdade soberana entre todos os
Estados é um postulado jurídico que concorre, segundo notória
reflexão de Paul Reuter, com sua desigualdade de fato: dificil­
mente se poderiam aplicar, hoje, sanções a qualquer daqueles
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cinco Estados que detêm o poder de veto no Conselho de Se­
gurança da ONU.
2. Fundamento do direito internacional público. Sistema
jurídico autônomo, onde se ordenam as relações entre Estados
soberanos, o direito internacional público — ou direito das
gentes, no sentido de direito das nações ou dos povos — repou­
sa sobre o consentimento. As comunidades nacionais e, acaso,
ao sabor da história, conjuntos ou frações de tais comunidades
propendem, naturalmente, à autodeterminação, à regência de seu
próprio destino. Organizam-se, tão cedo quanto podem, sob a
forma de Estados independentes, e ingressam numa comunida­
de internacional carente de estrutura centralizada. Tais as cir­
cunstâncias, é compreensível que os Estados não se subordinem
senão ao direito que livremente reconheceram ou construíram.
O consentimento, com efeito, não é necessariamente criativo
(como quando se trata de estabelecer uma norma sobre a exata
extensão do mar territorial, ou de especificar o aspecto fiscal dos
privilégios diplomáticos). Ele pode ser apenas perceptivo, qual
se dá quando os Estados consentem em torno de normas que
fluem inevitavelmente da pura razão humana, ou que se apoiam,
em maior ou menor medida, num imperativo ético, parecendo
imunes à prerrogativa estatal de manipulação.
Pacta sunt servanda — o princípio segundo o qual o que foi pactuado deve
ser cumprido — é um modelo de norma fundada no consentimento perceptivo.
Regras resultantes do consentimento criativo são aquelas das quais a comunidade
internacional poderia prescindir. São aquelas que evoluíram em determinado sen­
tido, quando perfeitamente poderiam ter assumido sentido diverso, ou mesmo
contrário. E é impossível, em definitivo, conceber que a mais rudimentar das co­
munidades sobreviva sem que seus integrantes reconheçam, quando menos, o dever
de honrar as obrigações livremente assumidas.
Modelo de construção costumeira original e discricionária foi aquele pertinente
ao objeto da extradição. Esta, com efeito, era compreendida, ao tempo das cidades
soberanas da antiguidade grega, como o mecanismo próprio para a recuperação do
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dissidente político exilado, garantindo-se, desse modo, a tranquilidade do sono do
príncipe. Com o tempo, o costume sofre modificação ampliativa: ao Estado se torna
lícito querer, também, a rendição do criminoso comum refugiado no estrangeiro.
Consuma-se, enfim, a total reviravolta em relação ao objeto primitivo: a extradição
serve tão só ao regresso forçado, e à submissão à justiça ordinária, dos autores de
crimes de direito comum, excluída toda perspectiva de turbação do asilo político.
Caso digno de destaque é o de certas regras consolidadas com vigor no sécu­
lo XX, tais a proscrição do uso da força e os princípios da não intervenção e da
autodeterminação, ou ainda um pouco antes, qual a condenação da escravatura.
Nenhuma dessas normas aparece vestida daquela imperatividade, congênita até
mesmo nas sociedades primitivas, do pacta sunt servanda, e melhor prova disso
não há que seu advento tardio à consagração geral. Porém, no âmbito desses temas,
a mobilidade do direito não é sinuosa: tem ela um sentido tão certo e irreversível
quanto o da evolução da sociedade internacional. Assim, o tráfico de escravos e a
guerra de conquista, lícitos outrora, estão hoje condenados, sendo seguro que não
voltarão, amanhã, à condição de licitude. Sem dúvida nos encontramos, aqui, em
presença de normas internacionais não gravadas, desde o princípio, na consciência
dos povos, mas tampouco mutáveis de modo pendular — como as que se referem
à imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro ou à extensão do mar territorial.
3. Direito internacional e direito interno: teorias em confronto. Para os autores dualistas — dentre os quais se destacaram
no século passado Carl Heinrich Triepel, na Alemanha, e Dio­
nisio Anzilotti, na Itália —, o direito internacional e o direito
interno de cada Estado são sistemas rigorosamente independen­
tes e distintos, de tal modo que a validade jurídica de uma norma
interna não se condiciona à sua sintonia com a ordem inter­
nacional. Os autores monistas dividiram-se em duas correntes.
Uma sustenta a unicidade da ordem jurídica sob o primado do
direito internacional, a que se ajustariam todas as ordens internas.
Outra apregoa o primado do direito nacional de cada Estado
soberano, sob cuja ótica a adoção dos preceitos do direito inter­
nacional aparece como uma faculdade discricionária. O monis­
mo internacionalista teve em Hans Kelsen seu expoente maior,
enquanto a vertente nacionalista encontrou adeptos avulsos na
França e na Alemanha, além de haver transparecido com bas­
tante nitidez, entre os anos vinte e os anos oitenta, na obra dos
autores soviéticos.
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Nenhuma dessas três linhas de pensamento é invulnerável
à crítica, e muito já escreveram os partidários de cada uma delas
no sentido de desautorizar as demais. Perceberíamos, contudo,
que cada uma das três proposições pode ser valorizada em seu
mérito, se admitíssemos que procuram descrever o mesmo fe­
nômeno visto de diferentes ângulos. Os dualistas, com efeito,
enfatizam a diversidade das fontes de produção das normas ju­
rídicas, lembrando sempre os limites de validade de todo direi­
to nacional, e observando que a norma do direito das gentes não
opera no interior de qualquer Estado senão quando este, por tê-la aceito, promove sua introdução no plano doméstico. Os mo­
nistas kelsenianos voltam-se para a perspectiva ideal de que se
instaure um dia a ordem única, e denunciam, desde logo, à luz
da realidade, o erro da ideia de que o Estado tenha podido ou­
trora, ou possa hoje, sobreviver numa situação de hostilidade ou
indiferença frente ao conjunto de princípios e normas que com­
põem a generalidade do direito das gentes. Os monistas da linha
nacionalista dão relevo especial à soberania de cada Estado e à
descentralização da sociedade internacional. Propendem, desse
modo, ao culto da constituição, afirmando que no seu texto, ao
qual nenhum outro pode sobrepor-se na hora presente, há de
encontrar-se notícia do exato grau de prestígio a ser atribuído às
normas internacionais escritas e costumeiras. Se é certo que
pouquíssimos autores, fora do contexto soviético, compromete­
ram-se doutrinariamente com o monismo nacionalista, não
menos certo é que essa ideia norteia as convicções judiciárias
em inúmeros países do ocidente — incluídos o Brasil e os Es­
tados Unidos da América —, quando os tribunais enfrentam o
problema do conflito entre normas de direito internacional e de
direito interno.
4. Roteiro do curso. Em quatro partes distintas este curso pro­
põe o estudo das normas que regem a sociedade internacional,
da personalidade dos Estados e outros componentes desse qua­
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dro de atores, dos espaços que integram o domínio público
interna­cional, e finalmente dos conflitos internacionais e de
seus meios alternativos de solução.
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Parte I
NORMAS
INTERNACIONAIS
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5. O rol das fontes no Estatuto da Corte da Haia. Redigia-se
em 1920 o estatuto do primeiro tribunal vocacionado para resol­
ver litígios entre Estados sem qualquer limitação de ordem ge­
ográfica ou temática. A certa altura do texto surgia a necessida­
de de que se dissesse qual o direito aplicável no âmbito da ju­
risdição nascente, tanto significando a necessidade de fazer um
rol das formas de expressão do direito internacional público, um
roteiro das fontes onde se poderiam buscar, idoneamente, normas
internacionais. O estatuto relacionou então os tratados, os cos­
tumes e os princípios gerais do direito. Fez referência à juris­
prudência e à doutrina como meios auxiliares na determinação
das regras jurídicas, e facultou, sob certas condições, o emprego
da equidade.
A primeira parte deste curso versa as fontes e meios auxilia­
res referidos no art. 38 do Estatuto da Corte da Haia, cuidando
também de duas outras categorias que, por razões diversas, ali
não mereceram referência: os atos unilaterais e as decisões to­
madas no âmbito das organizações internacionais.
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Capítulo I
o TRATADO
INTERNACIONAL
6. Perspectiva histórica. Parte fundamental do direito das gen­
tes, o direito dos tratados apresentava até o romper do século
XX uma consistência costumeira, assentada, entretanto, sobre
certos princípios gerais, notadamente o pacta sunt servanda e o
da boa-fé. Como negociam as partes, e através de que órgãos;
que gênero de texto produzem, e como o asseguram autêntico;
como manifestam, desde logo ou mais tarde, seu consentimento
definitivo, e põem o compromisso em vigor; que efeitos produz,
então, o tratado, sobre as partes pactuantes, e acaso sobre ter­
ceiros; que formas, enfim, de alteração, desgaste ou extinção, se
podem abater sobre o vínculo convencional: isso tudo constitui,
em linhas muito rudes e incompletas, o direito dos tratados, cuja
construção consuetudinária teve início nalgum ponto extrema­
mente remoto da história das civilizações.
O primeiro registro seguro da celebração de um tratado, naturalmente bilate­
ral, é o que se refere à paz entre Hatusil III, rei dos hititas, e Ramsés II, faraó
egípcio da XIXª dinastia. Esse tratado, pondo fim à guerra nas terras sírias, num
momento situado entre 1280 e 1272 a.C., dispôs sobre paz perpétua entre os dois
reinos, aliança contra inimigos comuns, comércio, migrações e extradição. Releva
observar o bom augúrio que esse antiquíssimo pacto devera, quem sabe, ter proje­
tado sobre a trilha do direito internacional convencional: as disposições do tratado
egipto-hitita parecem haver-se cumprido à risca, marcando seguidas décadas de paz
e efetiva cooperação entre os dois povos; e assinalando-se, na história do Egito, a
partir desse ponto da XIXª dinastia, certo refinamento de costumes, com projeção
no próprio uso do idioma, à conta da influência hitita. As duas grandes civilizações
entrariam, mais tarde, em processo de decadência, sem que haja notícia de uma
quebra perceptível do compromisso.
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O que sucede ao cabo de três milênios de prática conven­
cional, no século XIX, não é uma alteração na contextura do
direito dos tratados — sempre costumeira —, mas uma sensível
ampliação no seu acervo normativo, por força de quanto o tra­
tado multilateral desafiava — desde a conferência preparatória
até o mecanismo de extinção — aquelas regras concebidas para
reger acordos meramente bilaterais. Outro fato digno de nota,
na mesma época, foi a erosão do protagonismo concentrado na
pessoa do chefe de Estado. A multiplicação dos regimes repu­
blicanos, a progressiva constitucionalização das monarquias
trouxeram ao direito dos tratados esse novo fator de complexi­
dade: o envolvimento, no processo, de órgãos estatais de repre­
sentação popular, sem comunicação direta com o exterior. Re­
sultou induvidoso que essa fase interna, a da consulta ao parla­
mento como preliminar de ratificação, impôs ao direito das
gentes uma importante remissão ao direito doméstico dos Esta­
dos. As comunidades jurídicas nacionais deram-se conta da
distinção entre esses dois objetos de análise, nenhum deles exí­
guo: o direito dos tratados no quadro do direito internacional
público, e o — às vezes mais controvertido — direito dos trata­
dos no contexto do direito constitucional.
O século XX abriria espaço a dois fatos novos: a entrada
em cena das organizações internacionais, no primeiro após-guerra — fazendo com que o rol das pessoas jurídicas de direi­
to das gentes, habilitadas a pactuar no plano exterior, já não se
exaurisse nos Estados soberanos; e a codificação do direito dos
tratados, tanto significando a transformação de suas regras cos­
tumeiras em regras convencionais, escritas, expressas, elas
mesmas, no texto de tratados.
Na Havana, em 1928, celebrou-se entre outros compromissos uma Convenção
sobre tratados, até hoje vigente entre oito países1, embora superada, em sua noto­
1. Col. MRE, n. 21, II. São partes o Brasil, o Equador, o Haiti, Honduras, a Nicarágua,
o Panamá, o Peru e a República Dominicana.
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riedade, pelo curso dos acontecimentos. Cuida-se de um texto sumário, objetivo,
um tanto menos austero e idealista que o projeto de Epitácio Pessoa que lhe serviu
de inspiração. A partir de 1949, no âmbito das Nações Unidas, a Comissão do
Direito Internacional trabalhou sobre o tema2, até que se reunisse em Viena, nos
anos de 1968 e 1969, a conferência diplomática programada para negociar uma
convenção de alcance universal sobre o direito dos tratados.
A Convenção de Viena sobre o direito dos tratados teve seu
texto ultimado em 23 de maio de 1969. Sua negociação envol­
vera cento e dez Estados, dos quais apenas trinta e dois firmaram,
naquela data, o documento. Mais de dez anos se passaram até
que a Convenção de Viena, o grande tratado que se preparou
com paciência, trabalho tenaz e conjugação de talentos incomuns
para reger o destino de todos os demais tratados, entrasse em
vigor, para Estados em número equivalente, de início, à quarta
parte da comunidade internacional3.
2. A Comissão do Direito Internacional, entidade doutrinária e de apoio legislativo no
quadro das Nações Unidas, fez figurar o direito dos tratados no seu plano de progressiva
codificação da matéria, por temas avulsos, traçado na etapa inicial de seus trabalhos, em
1949. James Leslie Brierly, jurista britânico, integrante da Comissão, foi por ela designado
relator especial para o tema, função em que lhe sucederam, com o passar do tempo, três
compatriotas: Hersch Lauterpacht em 1952, Gerald Gray Fitzmaurice em 1954, e Humphrey
Waldock em 1961. Não era despropositado desejar que, dentro da Comissão, o projeto em
preparo para a conferência de Viena tivesse contrabalançadas, de certo modo, as conse­quências
naturais da formação anglo-saxônia dos relatores. Nessa tarefa, propícia à maior aceitabili­
dade do projeto, destacou-se o internacionalista italiano Roberto Ago, afinal eleito para
presidir a conferência instalada em Viena, nas sessões de 1968 e 1969.
3. A Convenção de Viena sobre o direito dos tratados somente entrou em vigor em 27
de janeiro de 1980, quando, nos termos de seu art. 84, chegou-se ao quorum mínimo de
trinta e cinco Estados-partes. No meado de 2010 eram partes na Convenção, por haverem-na
ratificado ou a ela aderido, ou ainda por sucessão, cento e onze países — não incluídos,
entre outros, os Estados Unidos da América e a França. O Brasil ratificou a Convenção em
25 de outubro de 2009, mais de quarenta anos depois de havê-la assinado. Durante esse
tempo nenhum preceito da Convenção deixou de ser aplicado no Brasil sob o pretexto de
não sermos ainda comprometidos, visto que tanto no terreno da administração quanto no da
Justiça havia perfeita consciência do preexistente caráter costumeiro dessas normas.
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Na última assertiva do preâmbulo, a Convenção de Viena declara, implicita­
mente, sua insuficiência para a cobertura de todos os aspectos do direito dos trata­
dos, ao lembrar que o direito internacional costumeiro prosseguirá regendo as
questões não versadas no texto. A Convenção de 1969 diz respeito apenas ao vín­
culo convencional entre Estados. Outra Convenção de igual substância celebrou-se,
também em Viena, em 1986, sobre tratados entre Estados e organizações interna­
cionais, ou somente entre estas últimas. No início de 2010 essa convenção, ratifi­
cada por menos que trinta países, ainda não havia entrado em vigor.
Seção I — ENTENDIMENTO DO FENÔMENO
CONVENCIONAL
7. Conceito. Tratado é todo acordo formal concluído entre pes­
soas jurídicas de direito internacional público, e destinado a pro­
duzir efeitos jurídicos. Na afirmação clássica de Georges Scelle,
o tratado internacional é em si mesmo um simples instrumento;
identificamo-lo por seu processo de produção e pela forma final,
não pelo conteúdo. Este — como o da lei ordinária numa ordem
jurídica interna — é variável ao extremo. Pelo efeito compromis­
sivo e cogente que visa a produzir, o tratado dá cobertura legal à
sua própria substância. Mas essa substância tanto pode dizer res­
peito à ciência jurídica quanto à produção de cereais ou à pesqui­
sa mineral. Desse modo, a matéria versada num tratado pode ela
própria interessar de modo mais ou menos extenso ao direito das
gentes: em razão da matéria, pontificam em importância os trata­
dos constitutivos de organizações internacionais, os que dispõem
sobre o serviço diplomático, sobre o mar, sobre a solução pacífi­
ca de litígios entre Estados. É certo, contudo, que todos os tratados
— mesmo quando disponham sobre um tema prosaico como a
classificação de marcas de origem de vinhos ou queijos — inte­
ressam igualmente, em razão da forma, a esta parte do direito das
gentes que ora nos ocupa, o direito dos tratados.
8. Terminologia. O uso constante a que se entregou o legislador
brasileiro — a começar pelo constituinte — da fórmula tratados
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e convenções, induz o leitor à ideia de que os dois termos se
prestem a designar coisas diversas. Muitas são as dúvidas que
surgem, a todo momento, na trilha da pesquisa termino­lógica.
Há razão científica por que o tratado constitutivo da OIT se
chame constituição, enquanto à fundação de tantas outras or­
ganizações internacionais se deu preferência ao vocábulo carta?
Termos como acordo, ajuste ou convênio designam sempre um
tratado de importância medíocre? O protocolo é necessariamen­
te um tratado acessório? A realidade do direito convencional
contemporâneo rende algum tributo às velhas tentativas
doutriná­rias de vincular, a cada termo variante de tratado, cer­
ta modalidade bem caracterizada de compromisso internacional?
A esta última questão a resposta é firmemente negativa. O que
a realidade mostra é o uso livre, indiscriminado, e muitas vezes
ilógico, dos termos variantes daquele que a comunidade uni­
versitária, em toda parte — não houvesse boas razões históricas
para isso —, vem utilizando como termo-padrão. Quantos são
esses nomes alternativos? Há referência, na França, a contagens
que terão detectado nada menos que trinta e oito... Em língua
portuguesa, chegamos seguramente a duas dezenas. Essa esti­
mativa não inclui os nomes compostos, seja porque, admitida
a composição, alarga-se demais o limite do quadro terminoló­
gico, seja porque a adjetivação serve justamente para especifi­
car a natureza do texto convencional, quebrando a neutralidade
do substantivo-base. Assim, as expressões acordo e compro­
misso são alternativas — ou juridicamente sinônimas — da
expressão tratado, e se prestam, como esta última, à livre de­
signação de qualquer avença formal, concluída entre persona­
lidades de direito das gentes e destinada a produzir efeitos ju­
rídicos. Se nos referimos, porém, a um acordo de sede4 ou a um
4. Isolado, o termo acordo quase nada informa. Já a expressão acordo de sede, nas
condições presentes, e sem qualquer outro dado, permite saber: (a) que se cuida de um
tratado bilateral; (b) que uma das partes é uma organização internacional, e a outra um
Estado, provavelmente — mas não seguramente — membro da primeira; e (c) que o tema
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compromisso arbitral5, o nome composto estará carregando
consigo informações ainda maiores que aquelas implícitas em
tratado de comércio e navegação, ou em tratado de paz.
A análise da experiência convencional brasileira ilustra,
quase que à exaustão, as variantes terminológicas de tratado
concebíveis em português: acordo, ajuste, arranjo, ata, ato,
carta, código, compromisso, constituição, contrato, convenção,
convênio, declaração, estatuto, memorando, pacto, protocolo e
regulamento. Esses termos são de uso livre e aleatório, não obs­
tante certas preferências denunciadas pela análise estatística: as
mais das vezes, por exemplo, carta e constituição vêm a ser os
nomes preferidos para tratados constitutivos de organizações
internacionais, enquanto ajuste, arranjo e memorando têm largo
trânsito na denominação de tratados bilaterais de importância
reduzida. Apenas o termo concordata possui, em direito das
gentes, significação singular: esse nome é estritamente reserva­
do ao tratado bilateral em que uma das partes é a Santa Sé, e que
tem por objeto a organização do culto, a disciplina eclesiástica,
missões apostólicas, relações entre a Igreja católica local e o
Estado copactuante.
9. Formalidade. O tratado é um acordo formal: ele se exprime,
com precisão, em determinado momento histórico, e seu teor
tem contornos bem definidos. Aí repousa, por certo, o principal
precípuo desse tratado é o regime jurídico da instalação física da organização no território
do Estado.
5. Compromisso arbitral é o tratado pelo qual dois Estados submetem à arbitragem
certo litígio que os antagoniza. Esse nome é indistintamente usado quando, diante da pree­
xistência de um tratado geral de arbitragem entre as partes, ou de uma cláusula arbitral em
tratado sobre tema vário, o compromisso cuida de pouco mais que a designação do árbitro;
e quando, nada preexistindo, o compromisso externa desde a opção das partes pela via ar­
bitral até os derradeiros detalhes pertinentes à tarefa confiada ao árbitro. Em qualquer dessas
hipóteses, o compromisso arbitral costuma ser bilateral. Uma exceção foi aquela relativa ao
caso do Canal de Beagle, firmado não só pelas partes litigantes — Argentina e Chile — mas
também pelo árbitro, no caso, o governo do Reino Unido, e datado de 22 de julho de 1971.
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elemento distintivo entre o tratado e o costume, este último
também resultante do acordo entre pessoas de direito das gentes,
e não menos propenso a produzir efeitos jurídicos, porém for­
jado por meios bem diversos daqueles que caracterizam a cele­
bração convencional. Essa formalidade implica, por outro lado,
a escritura. O tratado internacional não prescinde da forma es­
crita, do feitio documental. A oralidade não é apenas destoante
do modelo fixado em 1928 pela Convenção da Havana, e reto­
mado em 1969 pela de Viena6; ou desajustada ao sistema de
registro e publicidade inaugurado pela Sociedade das Nações,
herdado pelas Nações Unidas, e assimilado, ainda, por organi­
zações regionais7. A oralidade briga com a própria noção histó­
rica de tratado, isso não importando, em absoluto, a negação de
sua serventia para exprimir outros atos jurídicos, porventura
também capazes de criar obrigações.
O conceito proposto se refere a um acordo concluído. Este
último termo, quando empregado na definição do tratado inter­
nacional, tem muito mais do seu significado comum — o de
coisa efetivamente acabada — que daquele sentido técnico,
preservado por alguns internacionalistas, à luz do qual a conclu­
são consiste no término das negociações, ou em algo mais que
isso, não compreendendo, porém, a confirmação do compromis­
so e sua entrada em vigor. A verdade é que, antes deste último
evento, não existe um tratado internacional, senão um projeto
concluído, e sujeito a uma variedade de incidentes que o poderão
lançar, dentro do arquivo histórico das relações internacionais,
na vasta galeria dos projetos que não vingaram.
6. Convenção da Havana sobre tratados, art. 2º: “É condição essencial nos tratados a
forma escrita. A confirmação, prorrogação, renovação ou recondução serão igualmente feitas
por escrito, salvo estipulação em contrário”. Convenção de Viena sobre o direito dos tratados,
art. 2º, I, a: “tratado significa um acordo internacional celebrado por escrito...” etc.
7. Pacto da Sociedade das Nações, art. 18; Carta das Nações Unidas, art. 102; Pacto
da Liga dos Estados Árabes, art. 17.
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10. Atores. As partes, em todo tratado, são necessariamente
pessoas jurídicas de direito internacional público: tanto signifi­
ca dizer os Estados soberanos — aos quais se equipara, como
será visto mais tarde, a Santa Sé — e as organizações interna­
cionais. Não têm personalidade jurídica de direito das gentes, e
carecem, assim, por inteiro, de capacidade para celebrar tratados,
as empresas privadas, pouco importando sua dimensão econô­
mica e sua eventual multinacionalidade.
11. Efeitos jurídicos. Reconhecendo que o acordo, à luz do
léxico, pode significar mera sintonia entre pontos de vista, per­
ceberemos que acordos existem, e se renovam, e se perfazem às
centenas, a cada dia, entre os membros da comunidade interna­
cional. Não convém negligenciar a possibilidade de se exprimi­
rem formalmente acordos dessa natureza. Aí não haveria tratados,
em razão da falta do animus contrahendi, ou seja, da vontade de
criar autênticos vínculos obrigacionais entre as partes concor­
dantes. A produção de efeitos de direito é essen­cial ao tratado,
que não pode ser visto senão na sua dupla qualidade de ato ju­
rídico e de norma. O acordo formal entre Estados é o ato jurí­
dico que produz a norma, e que, justamente por produzi-la,
desencadeia efeitos de direito, gera obrigações e prerrogativas,
caracteriza enfim, na plenitude de seus dois elementos, o tratado
internacional.
É conhecida em direito das gentes a figura do gentlemen’s
agreement, que a doutrina uniformemente distingue do tratado,
sob o argumento de não haver ali um compromisso entre Estados,
à base do direito, mas um pacto pessoal entre estadistas, funda­
do sobre a honra, e condicionado, no tempo, à permanência de
seus atores no poder.
O exemplo mais vulgarizado tem sido a Carta do Atlântico, declaração fir­
mada pelo presidente americano Franklin Roosevelt e pelo primeiro-ministro bri­
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tânico Winston Churchill, a bordo do navio Augusta, em 14 de agosto de 1941.
Mencionam-se também com frequência dois compromissos do início do século
XX, ambos referentes à imigração japonesa nos Estados Unidos: o acordo Root-Takahira de 1907 e o acordo Lansing-Ishii de 1917. O célebre acordo de Yalta, de
fevereiro de 1945, e a proclamação de Potsdam, de agosto do mesmo ano, peças
integrantes do contexto político do desfecho da segunda grande guerra, têm sua
qualidade de gentlemen’s agreements assentada em documentos oficiais. O’Connell
lembra uma nota do Departamento de Estado americano ao governo japonês, de 7
de setembro de 1956, em que se aponta “... o chamado acordo de Yalta como uma
simples declaração de propósitos comuns” por parte dos governantes das potências
envolvidas, sem “qualquer efeito legal” a respeito de transferência de territórios8.
A distinção entre tratado internacional e gentlemen’s agre­
ement — sugerida pelo próprio nome deste último — tem sido
feita à consideração inicial não do teor do compromisso, mas da
qualidade dos atores. Quase tudo quanto se tem escrito a respei­
to induz ao abandono da pesquisa dos efeitos jurídicos, em favor
da apuração, pretensamente mais simples, de quais sejam as
partes pactuantes. Assim, afirma-se que o gentlemen’s agreement
não é um tratado pela razão elementar de que os contratantes
não são pessoas jurídicas de direito internacional. Não são Es­
tados. São pessoas humanas, investidas em cargos de mando, e
hábeis para assumir externamente — sobretudo em matéria
política prospectiva — compromissos de pura índole moral, cuja
vitalidade não ultrapassará aquele momento em que uma dessas
pessoas deixe a função governativa. As bases dessa tradicional
análise são inconsistentes. Não se conhece um único exemplo
de gentlemen’s agreement em cujo cabeçalho os cavalheiros
pactuantes tenham declarado agir a título pes­soal. E como pre­
sumi-lo? Cuida-se de chefes de Estado, de chefes de governo,
de ministros de relações exteriores, de estadistas, enfim, plena­
mente capazes, segundo o direito internacional, para falar pelos
respectivos Estados. A realidade é que nenhum analista pôde
8. O’Connell, p. 200. V. também McNair, p. 6.
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jamais classificar certo acordo como um gen­tlemen’s agreement
senão depois de haver examinado o teor do compromisso, para,
ali, detectar a falta de uma tendência à produção de efeitos jurí­
dicos. E para, consequentemente, evocando a noção do compro­
metimento honorífico, concluir que não os Estados e sim as
pessoas haviam chegado àquele acordo.
Bem o ilustra a Carta do Atlântico. As palavras iniciais são as de um tratado
internacional típico, na descrição das partes:
“O Presidente dos Estados Unidos e o Primeiro-Ministro Sr. Churchill, repre­
sentando o Governo de Sua Majestade do Reino Unido, havendo-se reunido, no
mar, ...”.
De modo que a qualificação da carta como um gentlemen’s agreement, e, pois,
como um não tratado, só é possível depois da leitura integral do texto, ante a per­
cepção de que aquele acordo formal, lavrado por pessoas indiscutivelmente repre­
sentativas de duas personalidades de direito internacional público, não se destinou
a produzir efeitos jurídicos, a estabelecer normas concretas e cogentes para as
partes, mas apenas a “... dar a conhecer alguns dos princípios comuns às políticas
nacionais de seus países, nos quais baseiam as suas esperanças de um futuro melhor
para o mundo”9.
Tornou-se usual, quase que inevitável em nosso tempo, a
expedição de declarações ou comunicados comuns sempre que
se encontram, ao ensejo de visita oficial ou de outro evento, dois
ou mais chefes de Estado ou de governo. Papéis dessa natureza
vêm a público, às vezes, por ocasião de um simples encontro de
trabalho entre ministros de relações exteriores. Aí estamos em
presença de uma variante do gentlemen’s agreement. Frequen­
temente, contudo, as declarações ou comunicados comuns não
mais contêm que um arranjo tedioso de frases feitas, onde a
ausência do que dizer de consistente mal se vê compen­sada por
9. V. a íntegra da Carta do Atlântico em Textos de direito internacional e de história
diplomática, de Rubens F. de Mello (Rio de Janeiro, A. Coelho Branco Filho Editor, 1950,
p. 592-593).
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algum esforço diplomático de imaginação. Está claro, porém,
que nem sempre esse produto documental do encontro entre
estadistas carece de substância. Se o comunicado comum expri­
me uma opção política, uma forma de alinhamento, uma exata
postura diante de certa questão tópica, há que ver nele a boa
essência do gentlemen’s agreement: nenhum vínculo jurídico
para os Estados em causa, mas um bem definido compromisso
moral, a operar enquanto esses Estados se encontrem sob o go­
verno dos dignitários responsáveis pela manifestação conjunta.
A declaração Quadros-Frondizi, de 21 de abril de 1961, foi uma resposta
positiva dos presidentes do Brasil e da Argentina às proposições norte-americanas
no quadro da Aliança para o progresso. Em 20 de setembro de 1967, reunidos na
fronteira colombiano-venezuelana, os presidentes Carlos Lleras Restrepo e Raúl
de Leoni externavam, numa declaração, o propósito de defender suas instituições
contra a sedição castrista. Em 19 de junho de 1979, os presidentes do Iraque,
Hassan al-Bakr, e da Síria, Hafez Assad, publicamente declaravam seu “acordo de
princípio” sobre a conveniência da unificação dos dois países (o presidente Bakr
deixaria o poder em 16 de julho seguinte, sendo substituído por Sadam Hussein).
Por vezes a declaração comum é de tal maneira substanciosa que parece ne­
cessário enfatizar mais tarde, para prevenir equívocos, sua natureza não convencio­
nal. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela Assembleia
Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948, e a Ata final de Helsinque, de 1º de
agosto de 1975, são documentos que exemplificam esse gênero de ambiguidade
— além de trazer a oportuna lembrança de que as declarações comuns, como de
resto os gentlemen’s agreements, não são necessariamente bilaterais. A provável
força cogente da Declaração de 1948 não deve ser buscada no direito dos tratados,
mas naquele setor mais recente do direito internacional público, que se ocupa das
decisões das organizações internacionais. Quanto à Ata de Helsinque, em outubro
de 1977 o ministro francês dos negócios estrangeiros esclarecia, na resposta a uma
consulta parlamentar, seu ponto de vista a respeito da natureza do compromisso:
“A Ata final de Helsinque não é um acordo dotado de valor jurídico, mas uma
declaração de intenções, solenemente expressa. Assinando-a, a exemplo de trinta
e quatro outros Estados europeus, a União Soviética se comprometeu moralmente
a respeitar-lhe os diversos dispositivos, aí compreendidos aqueles que visam ao
respeito e à promoção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais”10.
10. Notas sobre a prática francesa do direito internacional, AFDI (1978), v. 24, p.
1164-1165.
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12. Regência do direito internacional. Para os redatores da
Convenção de Viena, o tratado é um compromisso “... celebrado
por escrito entre Estados e regido pelo direito internacional...”11.
Essa linguagem sugere que um compromisso entre duas sobe­
ranias pode, porventura, não ser regido pelo direito das gentes,
caso em que lhe faltaria a qualidade de tratado. Na realidade,
embora certos autores pareçam admitir algo diverso12, nenhum
acordo entre Estados pode escapar à regência do direito inter­
nacional, ainda que, no uso do poder soberano que essa ordem
jurídica lhes reconhece, os Estados pactuantes entendam de
fazer remissão a um sistema de direito interno. É absurda, por
outro lado, a ideia de que um compromisso entre Estados —
como, de resto, qualquer espécie de contrato, quaisquer que
sejam as partes — possa reger-se por seus próprios termos,
flutuando no espaço à margem de toda ordem jurídica.
A mais notória crítica à admissão da possibilidade de produzir um acordo
interestatal sob a regência de uma ordem jurídica interna proveio da pena de Hersch­
Lauterpacht. Formulou-a o notável jurista em relatório à Comissão do Direito In­
ternacional das Nações Unidas, na fase inicial dos estudos pertinentes à codificação
do direito dos tratados. Referindo-se àqueles casos em que a remissão a certa ordem
jurídica interna aparece no acordo entre sujeitos de direito das gentes, Lauterpacht
pondera que a escolha de um direito determinado é sempre imputável à vontade
das partes. E esclarece que, por força de uma disposição desse tipo, o direito em
questão é transformado em direito internacional convencional: exatamente aquilo
a que se refere o art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça quando fala
em “... regras expressamente reconhecidas pelos Estados em litígio”13.
11. Art. 2º, I, a.
12. Arnold McNair, D. P. O’Connell, e mesmo autores da escola francesa, como Paul
Reuter, Nguyen Quoc Dinh e Serge Sur, todos em oposição, neste particular, ao ensinamen­
to preciso e incontornável de Charles Rousseau (cf. J. F. Rezek, Direito dos tratados, Rio
de Janeiro, Forense, 1984, p. 79-80).
13. Hersch Lauterpacht, Relatórios sobre o direito dos tratados; Documentos da
Comissão do Direito Internacional, A/CN 4/63, p. 39.
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13. Base instrumental. O tratado internacional pode materiali­
zar-se em duas ou mais peças documentais distintas. Isto sempre
pareceu óbvio no caso de documentos diversos, porém produzi­
dos a um só tempo, e por todas as partes contratantes, tal como
sucede sempre que o tratado se faz acompanhar de anexos.
Quando os negociadores da Convenção de Viena quiseram dei­
xar claro que um tratado pode tomar corpo “... num instrumen­
to único ou em dois ou mais instrumentos conexos”14, não co­
gitavam dessa hipótese, mas daquela outra em que o acordo
internacional se desdobra em textos — via de regra, dois textos
— produzidos em momentos diversos, cada um deles firmado
em nome de uma das partes apenas.
A troca de notas — visada por aquele dispositivo da Convenção de Viena
— é, portanto, um mecanismo convencional idôneo. Não há aí novidade alguma:
do uso dessa técnica se colhem exemplos no fundo dos arquivos diplomáticos. A
real utilidade dessa abordagem do código de Viena terá consistido em sepultar, de
uma vez por todas, a mistificação — ora alimentada pela prática de certas chance­
larias, ora insinuada em peças doutrinárias obscuras — tendente a fazer ver a troca
de notas como algo situável à margem do direito dos tratados. Este parágrafo com­
porta uma análise sumária da troca de notas, em que primeiro se depura o conceito,
reduzindo-o ao domínio do direito convencional, para chegar-se depois ao que,
nesse âmbito, a figura representa — ou seja, um processo alternativo de negociação
e conclusão de tratados.
a) Troca de notas: um meio de comunicação. De início,
cumpre limitar o alcance da expressão em exame. A conversação
diplomática, quando não oral, faz-se rotineiramente pela via do
intercâmbio de notas escritas — ora assinadas, ora providas
apenas do selo ou carimbo próprio —, sem que essa constante
movimentação, em duplo sentido, caracterize a troca de notas
do direito convencional. Esta última se dá apenas quando é pos­
14. Art. 2º, I, a.
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sível determinar a presença do animus contrahendi; quando é
válido dizer que as partes, por esse processo formal — embora
não solene —, entraram efetivamente num acordo destinado a
produzir efeitos jurídicos, criando, entre ambas, o vínculo con­
vencional. Inúmeras são, no dia a dia da vida diplomática, as
notas que se trocam entre chancelarias e legações, sem dar origem
a um verdadeiro acordo internacional por troca de notas. E,
dentre estas tantas, é interessante notar que algumas têm funda­
mental presença no direito dos tratados, visto que exprimem,
por exemplo, a vontade das partes, ou de uma delas, no sentido
de ver extinto certo compromisso em vigor.
A esse gênero pertencem as notas com que dois governos se entendem para
o efeito de ab-rogar um tratado bilateral vigente; bem assim aquelas que exprimem
a denúncia do tratado, por uma das partes, e a notícia de recebimento, pela outra.
Diverso, porém, é o caso da troca de notas com que as partes visam a modificar o
teor, ou mesmo a prorrogar a vigência, de um acordo preexistente. Nestas hipóteses,
defrontamo-nos com novo acordo — no estilo dos protocolos adicionais, bem ca­
racterizado na sua vocação para instituir obrigações mútuas entre as partes.
b) Troca de notas: um método negocial. Interessa-nos, pois,
tão só aquela troca de notas em que presente o ânimo conven­
cional, em que apurável a intenção de celebrar um acordo au­
têntico, bem que privado de unidade de instrumento. Agora, num
segundo passo, observamos que a troca de notas não é uma va­
riante terminológica para o tratado internacional. É, antes, um
método negocial, um processo de conclusão de tratados bilate­
rais. A opção das partes por esse método — que se contrapõe à
negociação com vistas ao preparo de um texto único, a ser fir­
mado por ambas — nada tem a ver com a opção terminológica
que, em todo caso, se lhes concede. A troca de notas pode, pois,
ser o meio escolhido pelas partes para a conclusão de um com­
promisso internacional que resolvam denominar acordo, con­
venção, ajuste, declaração, ou o que melhor lhes pareça.
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Seção II — CLASSIFICAÇÃO DOS TRATADOS
14. Proposição da matéria. Aqui se estudam tão só aqueles
esquemas classificatórios que, em certa medida, irão contribuir
para o melhor e mais rápido entendimento de aspectos da gêne­
se, da vigência ou da extinção dos tratados internacionais. Cui­
daremos de classificar os tratados à luz de dois critérios de ín­
dole formal — tendo a ver com o número de partes e a extensão
do procedimento adotado —, e três outros de índole material
— dizendo respeito à natureza das normas expressas no tratado,
à sua execução no tempo e à sua execução no espaço.
15. Número de partes. A simplicidade desta primeira chave
classificatória contrasta com a dimensão de sua importância, ao
longo de todo o estudo do direito dos tratados. Aqui nada mais
se leva em conta que o número de partes, o número de pessoas
jurídicas de direito das gentes envolvidas pelo processo conven­
cional. Diz-se bilateral o tratado se somente duas as partes, e
multilateral ou coletivo em todos os outros casos, ou seja, se
igual ou superior a três o número de pactuantes.
É evidente a bilateralidade de todo tratado entre Estado e organização inter­
nacional, ou entre duas organizações, qualquer que seja o número de seus membros.
A organização, nessas hipóteses, ostenta sua personalidade singular, distinta da­
quela dos Estados componentes.
16. Procedimento. Aqui distinguiremos os tratados segundo o
procedimento adotado para sua conclusão. Mais que a medida
cronológica desse processo — um dado falacioso —, interessa-nos a questão de saber se, dentro dele, é possível detectar duas
fases de expressão do consentimento das partes, este entendido
como prenunciativo na primeira, a da assinatura, e como defi­
nitivo na segunda, a da ratificação, ou se, num quadro unifásico,
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o consentimento definitivo se exprime na assinatura, desde logo
criadas as condições para a vigência do tratado.
Esta é, pois, aquela mesma chave classificatória que os publicistas franceses
adotam para distinguir os tratados em sentido estrito dos acordos em forma sim­
plificada15. E nada mais razoável, quanto aos primeiros, que a referência ao sentido
estrito. A história do direito das gentes demonstra — e o veremos na hora oportuna
— que o processo solene ou formal, com duplo momento de expressão do ânimo
das partes, é aquele que se encontra na origem da experiência convencional entre
as nações, sendo o outro o resultado de uma prática bem mais recente.
O mais importante tópico a ser aclarado, neste passo, diz
respeito à pretensa identidade entre os acordos de procedimento
breve — hábeis, pois, para viger desde a assinatura, sem neces­
sidade de ratificação — e os acordos executivos, assim chamados
sob a inspiração da prática convencional norte-americana.
Acordo executivo é expressão criada nos Estados Unidos
para designar aquele tratado que se conclui sob a autoridade do
chefe do poder Executivo, independentemente do parecer e
consentimento do Senado. Ora, o critério que nos orienta neste
tópico de classificação tem a ver com a natureza, mais ou menos
complexa, do procedimento convencional — ou, caso se prefira,
com a necessidade ou desnecessidade de ratificação. Não se
volta este critério, absolutamente, para o problema de saber quais
os poderes internos envolvidos na formação da vontade dos
Estados pactuantes — a melhor dizer, de cada um dos Estados
pactuantes. Um tratado em forma simples, concluído e posto em
imediato vigor pela assinatura das partes no instrumento único,
ou por troca de notas, não se confundirá com um acordo execu­
tivo se os governos pactuantes estiverem agindo com apoio em
aprovação parlamentar tópica, expressa pelo Legislativo ao
tempo mesmo da negociação ou antes. Ao reverso, é desengana­
15. Cf. Rousseau, p. 21-24.
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damente executivo o tratado solene, de procedimento longo, em
que o intervalo entre a assinatura e a ratificação de cada parte se
vê preencher não com a consulta ao respectivo parlamento —
acaso desnecessária, segundo seu sistema constitucional —, mas
com estudos e reflexões confinados no puro âmbito governa­
mental.
Percebe-se, além disso, que a extensão do procedimento é fator objetivo: cabe
aí considerar o tratado em si mesmo, e apurar as circunstâncias de sua conclusão,
as condições de sua entrada em vigor. A seu turno, a distinção entre o tratado exe­
cutivo e seu natural modelo contrastante — qual seja o tratado abonado pelo par­
lamento — traz a marca da subjetividade: para bem operá-la, não se levará em
conta qualquer característica do próprio tratado, mas a maneira de agir de cada uma
das partes pactuantes, em atenção às normas do seu direito interno que distribuem
competência para o comprometimento exterior. Consequência dessa subjetividade
é que um mesmo tratado pode ter caráter executivo para algumas das partes e não
para outras, o que se dá com mais assiduidade no plano bilateral. Assim, o Acordo
militar Brasil-Estados Unidos, de 15 de março de 195216, foi um acordo executivo
apenas do ponto de vista norte-americano, havendo motivado no Brasil a necessá­
ria consulta ao Congresso, preliminar à ratificação. O art. XII desse tratado dispu­
nha sobre sua entrada em vigor, marcando-a para a data em que o governo brasi­
leiro notificasse ao governo dos Estados Unidos sua ratificação.
À luz do critério classificatório de que ora nos ocupamos, essa desigualdade
na postura das partes não perturba a noção de que o tratado assim concluído é,
objetivamente, um tratado de procedimento longo. A assinatura, no desfecho da
negociação, não teve a virtude de fazê-lo firme em definitivo — embora, sob a
ótica singular de uma das partes, isso fosse juridicamente possível, e talvez dese­
jável. Só a ratificação, apesar de unilateral, pôde propiciar, nos termos do tratado,
sua entrada em vigor.
É fundamental que jamais se identifique a realidade cientí­
fica com a mera probabilidade estatística. Feita essa advertência,
cumpre reconhecer que o procedimento breve tem servido, com
frequência infinitamente maior, à conclusão de tratados bilate­
rais, e de importância limitada, que à celebração de pactos
16. Col. MRE, n. 320.
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coletivos sobre os interesses mais eminentes da comunidade das
nações. A prática geral e, com particular uniformidade, a práti­
ca brasileira põem à mostra duas outras características do pro­
cedimento breve. Ele convive melhor com o sistema da troca de
notas que com a lavratura do tratado em instrumento único. De
outro lado, sua simplicidade não costuma oferecer lugar à par­
ticipação do chefe de Estado. Pelo poder Executivo, exprimindo
o consentimento nacional, fala e assina, via de regra, o ministro
das relações exteriores. Em síntese, e desde que evitemos o erro
de ver na reunião desses elementos autônomos um dogma de fé,
será possível descrever, por oposição ao tratado em sentido es­
trito, um modelo de tratado em forma simples, da mais alta in­
cidência na prática internacional contemporânea: aquele acordo
bilateral, sobre matéria de importância limitada, que se conclui
mediante procedimento breve, sob a forma da troca de notas,
envolvendo apenas o ramo executivo do poder público das par­
tes, e sem intervenção formal dos chefes de Estado.
17. Natureza das normas. A distinção entre tratados contratu­
ais e tratados normativos vem padecendo de uma incessante
perda de prestígio. Charles Rousseau permaneceu entretanto fiel
a essa ideia, desenvolvida em sua obra de 1944 e reafirmada nas
seguintes17. É nítida, segundo Rousseau, a diferença funcional
entre os tratados-contratos, assim chamados porque através deles
as partes realizam uma operação jurídica — tais os acordos de co­
mércio, de aliança, de cessão territorial —, e os tra­ta­­dos-leis, por
cujo meio as partes editam uma regra de direito objetivamente
válida.
A esta última classe pertenceriam as grandes convenções coletivas como as
da Haia e de Genebra sobre o direito da guerra; e, de resto, todos os tratados em
17. Rousseau, p. 24-25.
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que se percebesse nas partes — mesmo quando pouco numerosas — o intento de
estabelecer certas regras uniformes de conduta. Própria do tratado contratual, por
seu turno, seria a diversidade do objeto visado pelas partes, cada uma delas dese­
jando justamente aquilo que a outra lhe pode dar. Exemplos muito claros deste
quadro são os tratados relativos às diversas formas da compra ou da troca, entre
Estados, de bens de qualquer natureza.
A crítica de Hans Kelsen a essa distinção classificatória é fulminante. Parece-lhe que, tanto no tratado chamado contratual quanto naquele dito normativo, a
vontade convencional das partes tem sempre um mesmíssimo objeto, constituído
pela integralidade do teor do tratado18. A abordagem kelseniana induz a ver como
superficial — ou pelo menos como extrajurídica — a tese de que haja diversidade
no intento de dois Estados que pactuam, por exemplo, sobre a troca de minério de
ferro por petróleo, pelo só fato de que um deles deseja obter o petróleo do copac­
tuante, enquanto este tem seu interesse voltado para o minério. A intenção última
de ambos, nesse quadro, é uma só: criar o mecanismo normativo que permita a
satisfação de suas necessidades comerciais, mediante o intercâmbio daqueles bens.
Assim, Kelsen aponta como pleonasmo a expressão tratados normativos19. Todos
o são, dos mais transcendentes pactos universais às avenças de comércio que os
Estados concluem aos pares. O que pode variar, em verdade, é o feitio de execução
das normas convencionais — menos, porém, à luz do direito que sob um enfoque
puramente operacional. Acresce que um dos dois polos dessa classificação, o tra­
tado contratual, é algo que talvez nunca se encontre em estado de pureza. Mesmo
nas avenças bilaterais voltadas para a simples troca de bens ou de serviços, é usual
que marque presença o elemento “normativo” — consistente, por exemplo, numa
cláusula de nação mais favorecida ou num dispositivo de salvaguarda. Quando
menos, o tratado contratual terá seu texto arrematado pelas indispensáveis cláusu­
las finais — sobre ratificação, entrada em vigor, perspectiva de denúncia —, cujo
caráter normativo os autores dessa proposição classificatória não poderiam negar.
Evite-se, contudo, o extremo de recusar qualquer valor jurídico a esse ensaio
de classificação. Ele abriu caminhos à teoria geral do direito internacional público.
Juan Carlos Puig lembra que a teoria do tratado-lei é de uma utilidade inestimável
para a devida inteligência da função legislativa numa comunidade descentralizada20.
Mas é possível afirmar, com segurança, que a distinção entre tratados contratuais
e tratados normativos pouco préstimo oferece ao estudo do próprio direito dos
tratados.
18. Hans Kelsen, La théorie juridique de la convention; Arch. Ph. (l940), v. 10, p. 40-43.
19. Hans Kelsen, Principles of international law, Nova York, Rinehart, 1952, p. 320.
20. Juan Carlos Puig, Derecho de la comunidad internacional, Buenos Aires, Depal­
ma, 1975, v. 1, p. 173.
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18. Execução no tempo. Cabe aqui um esclarecimento inciden­
te: pelos critérios formais, todo tratado se pode ajustar, na sua
integralidade, a um dos polos de cada chave classificatória. Se
confrontamos, por exemplo, os tratados bilaterais aos multila­
terais, não há meio-termo, não há hibridismo possível. Já no
domínio dos critérios materiais de classificação a realidade é
outra. Não é de rigor, não é sequer fortemente provável que,
tomando ao acaso um tratado internacional, possamos situá-lo,
por inteiro, em determinada categoria. Foi visto, no parágrafo
precedente, que um mesmo tratado pode abrigar elementos
“normativos” e elementos “contratuais” — sob a ótica dos par­
tidários dessa classificação. Esse fenômeno é próprio dos crité­
rios classificatórios materiais: vê-lo-emos presente, por isso, no
parágrafo atual e no seguinte.
À conta da execução no tempo, importa distinguir o tratado
que cria uma situação jurídica estática, objetiva e definitiva,
daquele que estabelece uma relação jurídica obrigacional dinâ­
mica, a vincular as partes por prazo certo ou indefinido. O
exemplo clássico da primeira espécie é o tratado de fronteiras
— ou, mais exatamente, o tratado de limites —, pelo qual dois
Estados acertam a linha divisória entre seus territórios. Aí se
enquadram, por igual, os tratados pertinentes à cessão territorial
— como, de resto, todos os tratados que formalizam transferên­
cia definitiva de bens de qualquer espécie.
A cessão territorial onerosa teve grandes exemplos no tratado de 3 de
maio de 1803 (França-Estados Unidos), relativo à compra da Louisiana por 60
milhões de francos; no tratado de 30 de março de 1867 (Rússia-Estados Uni­
dos), sobre a compra do Alasca por 7,2 milhões de dólares; e no tratado de 17
de novembro de 1903 (Bolívia-Brasil), sobre a compra do Acre por 2 milhões
de libras esterlinas21.
21. Oliveira, II, p. 318-319.
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A doutrina tem proposto diversas denominações para os com­
promissos internacionais desta espécie: tratados dispositivos, reais,
territoriais, executados, e até mesmo — o que soa paradoxal —
transitórios. Este último rótulo se prende à ideia da instantanei­
dade da execução de tais pactos — limitada, muitas vezes, à
simples publicidade da nova situação jurídica objetiva que as
partes estabeleceram —, em confronto com a permanência, a
continuidade, a extensão, no tempo, dos atos executórios de um
tratado de aliança, de comércio, de extradição ou de cooperação
científica. Por isso, os mesmos autores que chamam de transitó­
rios os tratados criadores de situação jurídica objetiva qualificam
como permanentes aqueles cuja execução se prolonga pelo tem­
po. Clara ironia: permanentes, a rigor, são os primeiros, visto que
instituem, embora sem qualquer mecanismo de execução espraia­
do ao longo do calendário, um quadro jurídico que se pretende
eterno. Com efeito, só a vontade comum das partes — não a
denúncia unilateral, nem o rompimento diplomático, nem o fe­
nômeno sucessório — poderia no futuro desfazer o tratado dis­
positivo. Esse tratado, assim, não se executa no dia a dia dos
pactuantes, como um acordo de intercâmbio comercial. Ele ope­
ra como título jurídico, para fundamentar, a todo tempo, a legi­
timidade da situação que nele encontra origem.
Acadêmica, mas nem por isso desinteressante, é a questão de saber se o tra­
tado dispositivo se pode dizer vigente pelo tempo afora. Questão que, de todo modo,
não se coloca apenas no plano do direito internacional. Está em vigor, hoje, o tra­
tado que em 1803 transferiu da França para os Estados Unidos o território da
Louisiana? Isso é rigorosamente o mesmo que indagar se permanece em vigor, em
certa ordem jurídica interna, a lei que, em 1945, tenha mandado erigir em praça
pública o monumento a um herói nacional. Esses textos não se encontram juridi­
camente mortos, por força da alegada exaustão das medidas executórias que pro­
vocaram. Eles vigem, sem dúvida, apesar da profunda diversidade reinante entre
sua vigência, que é estática — como a da escritura que prova uma transação imo­
biliária —, e a vigência dinâmica dos restantes compromissos internacionais.
É sempre possível encontrar combinadas as duas características num mesmo
tratado, como aquele que traça a linha limítrofe entre dois Estados e ao mesmo
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tempo institui comissão mista para preservar os recursos naturais da zona de fron­
teira. Esse feitio híbrido marca o tratado boliviano-brasileiro de 1903, relativo à
negociação do Acre. Ali não se cuidou da venda de uma área já perfeitamente de­
limitada, por preço uniforme e liquidado no ato. A necessidade de bem determinar
os contornos do território em causa, e ainda a complexidade da contraprestação,
além do parcelamento da soma expressa em dinheiro, conduziram a que a execução
desse pacto se prolongasse acentuadamente no tempo.
19. Execução no espaço. O entendimento dessa ideia clas­
sificatória será facilitado por um exemplo hipotético. Se o Rei­
no Unido se envolve na celebração de um tratado relativo à
padronização do uso de cheques por particulares, ou à proteção
de algo como o meio ambiente ou os direitos humanos, vem à
baila a questão do alcance espacial desse tratado, que, em regra,
será aplicado a todo o território sujeito àquela soberania pactu­
ante, mas que também poderia, por algum motivo, aplicar-se
somente às ilhas britânicas, ou, pelo contrário, somente às terras
ultramarinas, ou ainda ao conjunto, mas com a exclusão do país
de Gales, ou das ilhas Shetland. Mas quando o Reino Unido
trata com o Uruguai sobre a compra de carne, ou ingressa numa
organização internacional mediante adesão a seu tratado cons­
titutivo, ou se envolve em pactos pertinentes ao alto mar, à Lua,
à Antártica, tende a ser de total impertinência o tema do alcance
espacial desses compromissos no quadro territorial da potência
contratante. Sua execução, com efeito, implica uma conduta
centralizada, a cargo da administração do Estado, e voltada para
o exterior. A presunção de validade do tratado em todo o terri­
tório desse Estado faria aqui pouco sentido, porque, pela natu­
reza do compromisso, ele não poderia, logicamente, viger em
parte apenas do dito território.
Aos tratados da primeira espécie — não aos da segunda — refere-se o art. 29
da Convenção de Viena, assim concebido:
“Aplicação territorial dos tratados.
A menos que uma intenção diferente resulte do tratado, ou seja de outro modo es­
tabelecida, um tratado obriga cada uma das partes em relação a todo o seu território”.
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A intenção diferente a que se refere o texto de Viena traduziu-se inúmeras
vezes na chamada “cláusula colonial”, com que potências do hemisfério norte
deixaram expressa a inaplicabilidade, aos seus territórios de ultramar, de tratados
geralmente afetos ao progresso social, a benefícios de ordem econômica, à garan­
tia de direitos individuais. A limitação do alcance territorial de um tratado pode,
entretanto, dever-se a razões somente técnicas — e não raro óbvias —, como su­
cede com o Tratado de Cooperação Amazônica, celebrado entre Bolívia, Brasil,
Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela:
“O presente Tratado se aplicará nos territórios das partes contratantes na
Bacia Amazônica, assim como, também, em qualquer território de uma parte con­
tratante que, pelas suas características geográficas, ecológicas ou econômicas, se
considere estreitamente vinculado à mesma”22.
Seção III — PRODUÇÃO DO TEXTO CONVENCIONAL
20. Competência negocial. Todo Estado soberano tem capa­
cidade para celebrar tratados, e igual capacidade costumam
ter as organizações internacionais. Cuida-se agora de deter­
minar quem está habilitado a agir em nome daquelas persona­
lidades jurídicas à hora do procedimento negocial. Ao contrá­
rio do treaty-making power23, que encontra sua disciplina no
direito público interno de cada pessoa jurídica de direito das
22. Tratado de Cooperação Amazônica, de 3 de julho de 1978, art. 2.
23. Tanto quanto possível convém evitar o uso da expressão inglesa treaty-making
power, que não oferece segurança conceitual à altura de sua popularidade, visto que expe­
rimentada, às vezes em doutrina, e frequentemente em linguagem diplomática, para signifi­
car três coisas diversas. Num primeiro extremo, cuida-se da capacidade que têm os Estados,
e outras personalidades jurídicas de direito das gentes, para convencionar sob o pálio desse
mesmo direito: a república do Peru e a UNESCO ostentam o treaty-making power, não
possuído pelas unidades federadas do Arizona ou da Bahia, nem pela Ordem de Malta, nem
pela United Fruit Corporation; e ficando casos como o de Taiwan, a outra república da
China, a critério de cada copactuante potencial. No extremo oposto, trata-se da competência
que pode revestir certo servidor do Estado para falar externamente em seu nome, compro­
metendo-o: neste sentido diz-se, por exemplo, que o primeiro-ministro detém o treaty-making
power independentemente da apresentação de uma carta de plenos poderes. O emprego
correto da expressão há de corresponder, todavia, a um plano intermediário, primordial­mente
afeto à ordem jurídica interna do Estado. A pesquisa lógica do treaty-making power
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gentes, a representatividade exterior do Estado é matéria de
direito internacional, sedimentada pela via costumeira, e hoje
versada na Convenção de Viena. O ponto de partida para esse
exercício analítico é o entendimento da dimensão jurídica do
chefe de Estado.
a) Chefes de Estado e de governo. A voz externa do Estado
é, por excelência, a voz de seu chefe. Certo que a condução
efetiva da política exterior somente lhe incumbe, em regra, nas
repúblicas presidencialistas, onde — a exemplo do modelo mo­
nárquico clássico — a chefia do Estado e a do governo se con­
fundem na autoridade de uma única pessoa. No que estritamen­
te concerne, porém, ao direito dos tratados, a represen­ta­tividade
ilimitada do chefe de Estado não sofre desgaste à conta do regi­
me parlamentarista, em que se lhe preserva de toda responsabi­
lidade governativa — transferida esta ao gabinete e a seu regen­
te, o primeiro-ministro, titular da chefia do governo. É correta a
proverbial assertiva de que os chefes de Estados parlamentares
não governam. O que lhes sobra, contudo, costuma ser exata­
mente a encarnação da soberania estatal, e essa virtude repre­
sentativa, no que toca à celebração de tratados internacionais,
tem irrecusável importância.
A autoridade do chefe de Estado no domínio da conclusão de tratados inter­
nacionais não conhece limites: ele ostenta, em razão do cargo, idoneidade para
negociar e firmar o acordo, e ainda para exprimir — desde logo, ou mediante rati­
não consiste, sob este prisma exato, em saber se o objeto de análise é ou não uma persona­
lidade jurídica internacional, hábil para concluir tratados; e menos ainda em determinar quais
as pessoas que falam em seu nome nos foros exteriores. Consiste, sim, em investigar o
processo de formação da vontade do Estado quanto ao comprometimento externo, e tem por
domínio, em razão disso, o seu direito constitucional. O treaty-making power é, assim,
aquela competência que a ordem jurídica própria a cada Estado costuma partilhar entre o
governo e o parlamento. Não é uma competência negocial: é o poder de determinar, em
definitivo, a disposição do Estado em relação ao compromisso. Este o sentido do treaty-making power nas obras clássicas de Hans Blix e Paul de Vischer, como ainda em O’Connell
(p. 219-220) e Rousseau (p. 33 e s.).
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ficação ulterior — o consentimento estatal definitivo. Não vem à cena, neste passo,
a questão constitucional doméstica. É notório que mesmo os chefes de Estados
presidencialistas costumam ter partilhada com o poder Legislativo a competência
para resolver sobre tratados; assim como é sabido que nas nações parlamentaristas
o chefe de Estado — presidente ou monarca — nem sequer partilha essa compe­
tência, visto que mantido, em regra, à margem do processo decisório. Em ambos
os casos, a limitação constitucional de poder não prejudica a plenitude da repre­
sentatividade exterior.
Em todos os atos relacionados com o comprometimento
internacional, o chefe de Estado dispõe da autoridade fluente de
seu cargo, nada se lhe exigindo de semelhante à apresentação
de uma carta de plenos poderes — mesmo porque é impossível
atinar com quem expediria, em seu favor, semelhante credencial.
A prática internacional, ora espelhada na Convenção de Viena,
atribui idêntico estatuto de representatividade ao chefe do go­
verno — quando essa função, qual sucede no parlamentarismo,
seja distinta da precedente.
b) Plenipotenciários. Um terceiro dignitário possui ainda essa
qualidade representativa ampla: trata-se do ministro de Estado
responsável pelas relações exteriores, em qualquer sistema de
governo. Aqui, porém, importa destacar certa distinção entre o
ministro especializado e as duas autoridades precedentes. A re­
presentatividade do chefe de Estado e do chefe do governo pode
entender-se originária, o que não sucede no caso do ministro,
que a tem derivada. Reina um generalizado sentimento da im­
propriedade de se ajustar ao chefe de Estado, ou ao chefe do
governo, o rótulo de plenipotenciário, visto que esta expressão
intuitivamente se assemelha a mandatário, e só parece adequada
a quem se viu conceder os plenos poderes — não a quem por
natureza detém tais poderes, e a prerrogativa, inerente ao cargo,
de outorgá-los a outrem. O ministro das relações exteriores se
entende um plenipotenciário — no quadro internacional — des­
de o momento em que investido pelo chefe de Estado, ou pelo
chefe do governo, naquela função especializada. Ele guardará o
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benefício dessa presunção de qualidade, independentemente de
qualquer prova documental avulsa, enquanto exercer o cargo.
Também prescinde da apresentação de carta de plenos po­
deres o chefe de missão diplomática — isto é, o embaixador ou
o encarregado de negócios —, mas apenas para a negociação de
tratados bilaterais entre o Estado acreditante e o Estado acredi­
tado. O horizonte desta plenipotência presumida é, assim, e numa
dupla dimensão, muito estreito se confrontado com o que se abre
ao ministro do exterior.
A Convenção de Viena diz que esse poder geralmente reconhecido aos chefes
de missão diplomática, para a negociação bilateral, vai até a adoção do texto do
compromisso. Este é um momento processual que a própria Convenção, logo
adiante, antepõe ao da autenticação do texto. Não é de crer que tenha havido o
intento de estabelecer que o embaixador só tem virtude nata para levar a negociação
até o consenso em torno do texto convencional, precisando, contudo, de uma carta
de plenos poderes para autenticá-lo mediante assinatura. Isso contradiria a prática
corrente, demonstrativa de que esses diplomatas negociam e assinam tratados bi­
laterais entre o Estado de origem e o Estado de exercício funcional, à base única
do credenciamento permanente de que gozam. Isto, porém, na exata medida em
que a assinatura signifique desfecho do processo negocial e autenticação do texto
avançado, sem implicar consentimento definitivo.
Ressalvada, assim, a plenipotência que, de modo amplo ou
limitado — respectivamente —, recai sobre o ministro das rela­
ções exteriores e o chefe de missão diplomática, é certo que os
demais plenipotenciários demonstram semelhante qualidade por
meio da apresentação da carta de plenos poderes. O destinatário
dessa carta é, se bilateral a negociação, o governo copactuante,
e sua entrega deve preceder o início da negociação, ou a prática
do ato ulterior a que se habilita o plenipotenciário. O expedidor
formal da carta de plenos poderes é o chefe de Estado, não só
nas repúblicas presidencialistas — em que lhe incumbe simul­
taneamente a chefia do governo —, mas também, de modo geral,
nos sistemas parlamentares de governo.
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O elemento credenciado pela carta de plenos poderes há de
ser, normalmente, um diplomata ou servidor público de outra
área. A necessidade da credencial específica, de todo modo, é
tão certa nesse caso quanto no de um particular recrutado pelo
governo para o encargo negocial. Mesmo os ministros de Esta­
do dela não prescindem — à exceção do titular das relações
exteriores.
c) Delegações nacionais. Antes de tudo, a delegação tem a
ver com a fase negocial da gênese dos tratados. Pluralizar a
representação do Estado é algo oneroso, que só em circunstâncias
raras encontraria justificativa à hora dos atos posteriores ao es­
forço preparatório do texto convencional. Naquela fase, contudo,
a individualidade do plenipotenciário costuma não bastar à
completa e adequada colocação dos desígnios do Estado. Dá-se-lhe apoio mediante a composição do grupo, subordinado à
sua chefia. A hierarquia parece indissociável da delegação. Seu
chefe — e apenas ele — detém a carta de plenos poderes. Os
demais integrantes do grupo, quer se qualifiquem como delega­
dos, quer como suplentes, ou como assessores, têm por incum­
bência dar-lhe o suporte que requeira — suprindo, por exemplo,
sua impossibilidade de presença constante à mesa de uma nego­
ciação ininterrupta, ou de presença simultânea em duas ou mais
câmaras a que, por especialidade, os trabalhos preparatórios se
hajam distribuído. Não se concebem conflitos dentro da delega­
ção: há de prevalecer, em face da eventual variedade de opi­niões,
a voz do chefe24, enquanto autorizada — o que se presume até
evidência em sentido contrário — pela origem de seus plenos
poderes.
24. Entretanto, isto não se dá com as delegações nacionais à conferência anual da OIT,
onde se negociam as convenções internacionais do trabalho: o chefe, neste caso, é um dele­
gado governamental, cuja posição não vincula os delegados classistas, representantes sindi­
cais dos empregadores e dos trabalhadores.
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O chefe da delegação não é necessariamente um diplomata. Outros servidores
do Estado, civis ou militares, podem receber o encargo. Neste caso é comum — em­
bora não obrigatória — a presença de pelo menos um diplomata no corpo da dele­
gação.
No caso das organizações internacionais, o secretário-geral — ou o funcio­
nário que, sob título diverso, encabeça o quadro administrativo da organização, é
quem, via de regra, e sob a autoridade da assembleia geral, conclui seus tratados.
Essa prática tem sido adotada pela OEA e pelas congêneres de alcance regional,
seja o copactuante um Estado integrante do respectivo quadro ou estranho a ele, ou
ainda uma outra organização internacional. O Secretário-geral da ONU, por sua
vez, esteve incumbido de celebrar tratados afetos à competência decisória da As­
sembleia Geral — como os acordos de sede, em 1946-47, com a Suíça e os Estados
Unidos —, à do Conselho de Segurança e à do Conselho Econômico e Social.
Houve casos em que o secretário-geral subdelegou esse encargo a diretores execu­
tivos da organização.
21. Negociação bilateral: roteiro e circunstâncias. Em regra,
a negociação bilateral ocorre no território de uma das partes
contratantes, sendo lógico e econômico que tenha curso na ca­
pital nacional, entre a chancelaria — assim chamado o ministé­
rio, secretaria de Estado ou repartição governamental que res­
ponde pelas relações exteriores — e a embaixada do Estado
copactuante, ou a delegação especialmente enviada por este para
discutir o tratado. A falta de relacionamento diplomático perma­
nente entre dois Estados não impede que o preparo de um trata­
do bilateral se faça no território de um deles, mediante o envio,
pelo outro, de delegação ad hoc. Certos fatores, no entanto,
podem apontar como preferível que se negocie em território de
terceiro Estado. Destacam-se entre esses fatores (a) o clima de
animosidade ou desconfiança mútua reinante entre as partes e
(b) a vantagem operacional e econômica representada pelo ce­
nário neutro, onde se encontrem representações diplomáticas
permanentes dos dois pactuantes.
O acordo de Paris pôs termo a cinco anos de negociação, na capital francesa,
entre o Vietnã e os Estados Unidos da América, enquanto continuava em curso um
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conflito armado entre as partes (1968-1973). Em circunstâncias não muito diversas,
Egito e Israel concluíram o acordo de Camp David, em território americano, em 26
de março de 1979. O Brasil, não dispondo, no Império e na República velha, de
missões diplomáticas permanentes em diversas nações da América Latina — que
tampouco se faziam representar no Rio de Janeiro —, com elas desenvolveu nego­
ciações convencionais naqueles centros de grande convergência diplomática do
passado. Tal foi o caso das convenções de arbitragem Brasil-Haiti e Brasil-Repú­
blica Dominicana, ambas negociadas em Washington, por contacto entre embaixa­
das, e concluídas, respectivamente, em 25 e 28 de abril de 1910.
Se as partes fazem uso de um mesmo idioma, é natural que
nele se desenvolva a negociação e se lavre o texto do tratado. A
regra parece valer também no caso de Estados plurilíngues que
tenham um idioma em comum, qual o francês entre Bélgica e
Suíça, ou o inglês entre Canadá e Nigéria. Não há registro his­
tórico da preterição das comodidades oferecidas pelo uso da
língua comum às partes, nem mesmo ao tempo em que se podia
indicar o latim, e mais tarde o francês, como língua diplomática
de certo prestígio.
Se diferentes as línguas das partes em negociação bilateral,
o diálogo terá curso no idioma — não raro um terceiro — que
maior comodidade ofereça. O resultado, contudo, há de ser um
texto convencional:
a) lavrado numa única versão autêntica;
O latim, para tal propósito, não sobreviveu ao século XVIII — nem teria, de
outro modo, a dimensão exigida pela linguagem convencional contemporânea.
Outro idioma sem bandeira, o esperanto, não fez sucesso no domínio do direito das
gentes. O francês foi, nos séculos XVIII e XIX, o idioma que mais se empregou nos
tratados bilaterais entre países que não o tinham como vernáculo. Não, porém, sem
incômodo político, tantas vezes traduzido numa cláusula final lembrando que o uso
daquele idioma não o consagrava para qualquer efeito, não devendo mais tarde ser
invocado como precedente. Essa cláusula aparece nos Tratados de Rastadt de 1714
e de Aix-la-Chapelle de 1748, no Tratado de aliança franco-austríaco de 1756, na
Ata final do Congresso de Viena de 1815, e ainda no tratado relativo ao casamento
do príncipe D. Pedro com a arquiduquesa Leopoldina, de 1816.
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b) lavrado em duas versões autênticas e de igual valor;
Por honrar o princípio da igualdade, este sistema tem merecido franca prefe­
rência na prática internacional moderna, apesar do embaraço prático que pode re­
sultar de dar-se valor uniforme aos dois textos, para efeito de interpretação.
c) lavrado em mais que duas versões, todas autênticas e de
igual valor;
Esta fórmula, comum no domínio dos tratados multilaterais, explica-se no
plano bilateral quando uma das partes, pelo menos, é um Estado plurilíngue, ou
uma organização internacional empenhada em valorizar de modo paritário, nesse
terreno, os idiomas de seus Estados-membros.
d) lavrado em duas ou mais versões autênticas, mas com
privilégio assegurado a uma única, para efeito de interpretação.
Se, neste caso, o privilégio recaísse sobre o idioma de uma das partes, a co­
modidade interpretativa mal compensaria o incômodo político, semelhante àquele
que marca o sistema da versão única. Tem sido comum, à vista disso, que se dê
prevalência à versão concebida em terceiro idioma. Veja-se, no Acordo sobre trans­
porte marítimo Brasil-Polônia, de 1976, art. 10: “Feito em Varsóvia, em 26 de
novembro de 1976, em dois originais, nas línguas portuguesa, polonesa e inglesa,
sendo todos os textos igualmente autênticos. Em casos de qualquer divergência,
prevalecerá o texto em língua inglesa”.
O texto de todo tratado bilateral expresso em instrumento
único há de resultar, na sua integralidade, do consenso entre as
partes, corresponsáveis por sua formulação. Quando, sobre a
substância do pactuado, tanto quanto sobre sua expressão formal,
nenhum debate sobreviva entre os pactuantes, a negociação terá
terminado. O texto estará pronto — e o estará, se for o caso, em
mais de um idioma —, cumprindo agora autenticá-lo, para que
se tenha a exata evidência documental de quanto quiseram estabe­
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lecer os negociadores. A assinatura destes é ato idôneo para a
autenticação do texto convencional. Não menos idônea, para
esse exato fim, é a assinatura ad referendum, ou a simples rubri­
ca — decorrências usuais do fato de não se encontrar o nego­
ciador munido de poderes para uma assinatura normal.
Supondo que nos encontremos em face de um tratado bilateral sujeito à rati­
ficação pelas partes — um tratado, pois, de procedimento longo —, é evidente que
a assinatura não cria por si o vínculo convencional. Nesse caso a explicação para
que certo Estado reduza os poderes de seu agente negociador ao âmbito da rubrica,
ou da firma ad referendum, está muitas vezes numa presunção intuitiva, tão des­
provida de base jurídica quanto — infelizmente — disseminada desde algum
tempo, no sentido de que a assinatura não se limita a fixar e a autenticar o texto,
mas importa algum inominado compromisso para as partes. Isto é um engano. O
consentimento que pela firma se exprime, nesse quadro, alcança a redação do
projeto convencional, e é apenas prenunciativo da expressão da vontade de assumir
o vínculo — expressão esta que poderá deixar de sobrevir, já que juridicamente não
obrigatória, nem mesmo para governos independentes, neste domínio, de controle
parlamentar. Se algo mais, portanto, se pode deduzir da assinatura que a simples
autenticidade do texto, é a vontade de prosseguir no procedimento. Isso não é nada
além da intenção governamental de refletir sobre a perspectiva de ratificação do
projeto, para, se a tanto animado, observar a provável imposição, por seu direito
interno, de prévia consulta ao poder Legislativo.
22. Negociação coletiva: roteiro e circunstâncias. A negociação
coletiva comum reclama a convocação de uma conferência di­
plomática internacional, votada exclusivamente à feitura de um
ou mais tratados, ou a uma pauta de discussão mais ampla, em
que se inclua, contudo, alguma produção conven­cional.
Assim, as conferências de Viena de 1961 e de 1963 aconteceram para o
fim único de se produzirem, respectivamente, os tratados relativos aos privi­
légios do serviço diplomático e do serviço consular. Já as conferências inte­
ramericanas anteriores à fundação da OEA — e por isso inconfundíveis com
sessões de assembleia de uma organização internacional — foram fecundas na
produção de tratados, sem que sua agenda se limitasse somente a esse trabalho.
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A conferência é usual mesmo quando não muito numerosos
os Estados interessados em pactuar. Sua iniciativa, assume-a um
grupo de Estados, uma organização internacional, ou mesmo um
Estado isolado que, por qualquer razão, tenha especial interesse
no trato da matéria. Se a iniciativa é de uma organização inter­
nacional, a negociação do tratado pode ter curso em seu próprio
interior. De outro modo, impõe-se o entendimento oportuno com
Estado que ofereça seu território para sediar a conferência.
Sediar conferência preparatória de tratado internacional é empresa onerosa,
visto que não é costume ratearem-se despesas de arranjo e manutenção do local
próprio, ou de serviços secretariais — dentre os quais a interpretação oral simultânea
e a tradução de textos têm destacado peso. Parece, entretanto, que o dispêndio do
tesouro público local é largamente compensado, em termos econômicos, pelo ingres­
so das divisas que responderão pela subsistência das delegações estrangeiras.
Em presença da pluralidade idiomática — que marca todas
as conferências internacionais de grande porte numérico —, será
necessário que as partes escolham os idiomas de trabalho nego­
cial, e os idiomas em que pretendem lavrar as versões autênticas
do texto acabado. Não é imperioso que coincidam aqueles e
estes, mas é o que sucede normalmente.
Versão autêntica é a que se produz no curso da negociação, e que a seu tér­
mino merece a chancela autenticatória das partes. Versão oficial é a que, sob a
responsabilidade de qualquer Estado pactuante, produz-se a partir dos textos au­
tênticos, no seu próprio idioma. Assim, a Carta das Nações Unidas foi concebida
em cinco versões autênticas — nos idiomas chinês, espanhol, francês, inglês e
russo —, e deu origem a inúmeras versões oficiais — como aquela que, em portu­
guês, foi lavrada no Brasil.
Usualmente complexa, a ordem dos trabalhos numa conferência multilateral
preparatória de tratado exige um texto normativo, de proporções variáveis. Esse
regulamento interno da conferência costuma ser projetado pelo governo do Estado
sede ou pela secretaria da organização internacional convocadora, e submetido,
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vestibularmente, à deliberação plenária. A divisão inicial dos negociadores em
comissões e grupos de trabalho é o meio de garantir o progresso e a racionalidade
da negociação, virtualmente impossível no plenário, salvo quando se imaginasse
um tratado multilateral de rara simplicidade, em torno de cujo projeto se conse­
guisse reunir, desde logo, a aquiescência das partes. A disponibilidade de um
projeto de tratado tem sido regra nas conferências internacionais, e sua utilidade é
certa, ainda nos casos em que afinal, no texto acabado, pouco ou nada reste daque­
la base de trabalho. Dificilmente se poderia instaurar a negociação pelo debate oral,
na ausência de um ou mais esboços que, tomados como referência, permitam ava­
liar as posições de princípio dos negociadores.
Já vimos que nenhuma negociação bilateral chega a bom
termo sem que o texto convencional, em cada uma de suas pa­
lavras, tenha parecido convir a ambas as partes. Num quadro
coletivo, o ideal do assentimento unânime é de tanto mais difícil
conquista quanto maior o número de Estados pactuantes. Há que
aceitar o fenômeno da sucumbência, e todo o esforço desenvol­
vido na prática das negociações coletivas, a propósito, foi no
sentido de assegurar que os pactuantes minoritários somente
devessem enfrentar contrariedade quando opostos a uma expres­
siva maioria. À luz dessa ideia fermentou o princípio dos dois
terços — por oposição ao de simples maioria absoluta. Consa­
gra-o, hoje, a Convenção de Viena:
“A adoção do texto de um tratado numa conferência internacional efetua-se
por maioria de dois terços dos Estados presentes e votantes, a menos que esses
Estados decidam, por igual maioria, aplicar uma regra diversa” (art. 9º, § 2º).
Sob o argumento da conveniência de evitar, tanto quanto
possível, a confrontação pelo voto, e a consequente configuração
dos negociadores “vencidos”, tem-se visto apregoar a excelência
do consenso, cuja busca, por todos os meios, e ainda que à cus­
ta de mútua transigência, seria o melhor método de negociação
coletiva. A respeito, estudo de Barry Buzan toma por modelo de
análise a Conferência das Nações Unidas sobre o direito do mar,
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e transcreve, em certo ponto, uma observação de Charney que
melhor fará compreender o substrato político dessa tendência:
“O sistema do consenso garante que a tomada de decisões na negociação
multilateral de um tratado não será dominada pela superioridade numérica de ne­
nhum grupo de nações. Antes, dar-se-á maior significado procedimental à varieda­
de no poder das nações. Como é difícil fazer aceitar sistemas de voto que aberta­
mente reconheçam as diferenças de importância entre as nações, o método do
consenso permite a manutenção de uma processualística igualitária que, na prática,
pode assegurar que as negociações multilaterais reflitam o poder geopolítico real
das nações participantes”25.
Embora não comprometa em definitivo — visto que os tra­
tados multilaterais normalmente não prescindem da ratificação
de cada Estado pactuante para obrigá-lo —, a assinatura é algo
a cujo respeito os governos contemporâneos têm hesitado mais
do que seria razoável, à vista de que esse ato apenas contribui
para garantir a autenticidade do texto que se acabou de negociar
no foro multilateral. A não assinatura por parte do Estado que in­
tegrou os trabalhos negociais é um gesto sem significado jurídico,
e pretende ter, no plano político, efeito publicitário da insatisfação
daquele com o texto acabado, e, pois, de sua dúvida sobre a utili­
dade de assinar o que provavelmente não será por ele ratificado.
23. Estrutura do tratado. O texto convencional acabado osten­
ta sempre um preâmbulo, seguido da parte dispositiva26. Even­
tualmente esse texto é complementado por anexos.
Em regra, na atualidade, o preâmbulo enuncia o rol das
partes pactuantes, e fala dos motivos, circunstâncias e pressu­
25. Barry Buzan, Negotiating by consensus: developments in technique at the U.N.
Conference on the law of the sea; AJIL (1981), v. 75, p. 327.
26. Falamos aqui do tratado expresso em instrumento único, seja ele bilateral ou co­
letivo. A estrutura ora examinada não é, pois, a do tratado por troca de notas, de cujo feitio
já se teve notícia no parágrafo referente à base instrumental.
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postos do ato convencional. As considerações do preâmbulo não
integram a parte compromissiva do tratado. Não obstante, pare­
ce merecer assentimento geral a ideia de que, a exemplo do
preâmbulo de constituições nacionais e outros diplomas de di­
reito interno, o arrazoado que encabeça os tratados internacionais
pode representar valioso apoio à interpretação do dispositivo.
Rousseau enfatiza em dois casos a utilidade do discurso pream­
bular; aquele em que ali se encontra uma disposição supletiva,
no intento de suprir as lacunas do tratado...
É o que se dá nas Convenções da Haia (1899, 1907) sobre o direito da guerra,
onde o preâmbulo lembra que, nas situações ali não regidas, os beligerantes e a
população civil estarão “sob a salvaguarda e sob o império dos princípios do direi­
to das gentes, tal como resultam dos usos estabelecidos entre nações civilizadas,
das leis de humanidade e das exigências da consciência pública”. É também o que
sucede na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados: o preâmbulo termina
por afirmar que “as regras do direito internacional costumeiro continuarão a reger
as questões não reguladas nas disposições da presente Convenção”.
..., e aquele em que o preâmbulo enuncia os objetivos do
tratado com precisão suficiente para orientar a interpretação do
dispositivo27.
Por mais de uma vez a Corte Internacional de Justiça valeu-se declaradamente do
preâmbulo para determinar o exato alcance de parte do dispositivo convencional: caso do
direito de asilo, opondo a Colômbia ao Peru, e trazendo à cena a Convenção da Ha­
vana de 1928 sobre aquele tema; caso dos súditos norte-americanos no Marrocos,
opondo a França aos Estados Unidos, e reclamando interpretação do Ato de Algesiras,
de 1906; caso do Sudoeste africano, opondo Etiópia e Libéria à África do Sul, e
motivando exame do mandato confiado pela SDN a este último Estado, em 1920.
Parte essencial do tratado, o dispositivo lavra-se em lingua­
gem jurídica — o que não ocorre, necessariamente, com o pre­
27. Rousseau, p. 30.
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âmbulo, ou com os anexos. Suas construções linguísticas têm o
feitio de normas, ordenadas e numeradas como artigos — vez
por outra como cláusulas. A dimensão varia: muitos são os tra­
tados que contam menos que uma dezena de artigos, contrastan­
do com a Convenção de Genebra de 1949 sobre a proteção de
civis — cento e cinquenta e nove artigos —, o Tratado de Roma,
que instituiu a CEE, em 1957 — duzentos e quarenta e oito
artigos —, ou o Tratado de Versalhes de 1919 — quatrocentos
e quarenta artigos.
Diversamente do preâmbulo, os anexos constituem parte do
teor compromissivo do tratado. Seu deslocamento topográfico
resulta às vezes da conveniência de um abrandamento metodo­
lógico do texto principal, e, mais frequentemente, da intenção
de evitar que esse texto, lavrado em linguagem jurídica, sofra o
enxerto de outro gênero de linguagem — quando não de equações
ou fórmulas numéricas, gráficos e ilustrações. Em anexo, diver­
sos dos tratados sobre o direito da guerra mostram símbolos
vários, referidos — mas obviamente não estampados — no dis­
positivo. Conforme a natureza do tratado, o anexo pode ser uma
lista de produtos químicos, de cereais, de entorpecentes, de es­
pécies da fauna marinha, e muito mais.
Seção IV — EXPRESSÃO DO CONSENTIMENTO
24. Assinatura. Fala-se aqui daquela firma que põe termo a uma
negociação — quase sempre bilateral —, fixando e autenticando,
sem dúvida, o texto do compromisso, mas, acima disso, exterio­
rizando em definitivo o consentimento das pessoas jurídicas de
direito das gentes que os signatários representam. Não há, pois,
perspectiva de ratificação ou de qualquer gesto confirmatório
alternativo. O comprometimento se perfez, e o tratado tem con­
dições de vigência imediata — a menos que, por conveniência
das partes, prefiram diferir a vigência por tempo certo. De todo
modo, uma cláusula final terá disciplinado essa matéria.
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Acordo Brasil-Colômbia, de assistência recíproca para a prevenção do uso e
tráfico ilícitos de substâncias estupefacientes e psicotrópicas:
“Art. VIII. O presente Acordo (...) entra em vigor sessenta dias depois da data
de sua assinatura.
.........................................................................................................................
Feito em Bogotá, aos 12 dias do mês de março de 1981, em dois originais,
nas línguas portuguesa e espanhola, sendo ambos os textos igualmente autênticos”
(R. S. G.) (D. U. V.).
Protocolo Brasil-R. F. da Alemanha sobre cooperação financeira:
“Art. 8. O presente Protocolo entrará em vigor na data da sua assinatura.
Feito em Brasília, aos 12 dias do mês de junho de 1981, em dois originais,
cada um nos idiomas português e alemão, sendo ambos os textos igualmente au­
tênticos” (R. S. G.) (F. J. S.).
O primeiro exemplo ilustra, no domínio do direito dos tra­
tados, o fenômeno correspondente à vacatio legis. Ao longo dos
sessenta dias ali referidos, encontram-se as partes na expectati­
va de que chegue o momento por elas considerado ideal para o
início de vigência do tratado. É fundamental que essa dilação
da entrada em vigor — muito comum também nos tratados co­
letivos — não obscureça ou perturbe, de nenhum modo, a cer­
teza de que o compromisso internacional já está consumado, em
termos definitivos e perfeitos. Não há retratação possível, a
pretexto de que o pacto ainda não entrou em vigor. Uma coisa
é a consu­mação do vínculo jurídico, de pronto escorado na regra
pacta sunt servanda. Outra, diversa e secundária, desde que já
estabelecido aquele vínculo obrigatório para as partes, é a de­
terminação do momento em que lhes tenha parecido preferível
desencadear, com a vigência, a disciplina legal convencionada,
em sua plenitude.
25. Intercâmbio instrumental. Na troca de notas a expressão
do consentimento pode, em tese, ficar na dependência de futura
manifestação das partes. A experiência brasileira registra casos
de submissão ao Congresso de acordos concluídos por esse
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método para que, com o abono parlamentar, o Executivo os
confirmasse em seguida. Usual, porém, é que o caminho da
troca de notas traduza a opção das partes pelo procedimento
breve, e que o consentimento, assim, deva exprimir-se em fase
única, ao cabo da negociação. Dentro deste quadro, não é a as­
sinatura de uma e outra das notas o ato expressivo do consenti­
mento, mas sua transmissão à parte copactuante.
Ao contrário da assinatura de um tratado feito em instrumento único, a assi­
natura da nota unilateral não é ato público, e o cenário — não menos unilateral
— de sua aposição sobre o documento é de molde a torná-la reversível. Só a efeti­
va troca das notas perfaz o compromisso. E quando não simultânea a entrega mútua
de instrumentos, a transmissão da nota-proposta compromete o remetente — tal
como o gesto do primeiro Estado a ratificar certo pacto coletivo —, consumando-se
o vínculo bilateral com a transmissão da nota-resposta.
26. Ratificação: entendimento. Pelo acentuado número de dis­
torções que circundam o entendimento desse instituto, convém
que se lhe precise de início o conceito, para cuidar depois das
características principais da ratificação, das formas que pode
assumir materialmente e, por último, da figura do depositário
dos instrumentos de ratificação, no caso dos tratados multila­
terais.
Arnold McNair lembrou que o termo ratificação tem sido
usado, em teoria e prática do direito internacional público, para
significar pelo menos quatro coisas distintas:
“a) o ato do órgão estatal próprio — um soberano, um pre­
sidente, um conselho federal — que exprime a vontade do Es­
tado de se obrigar por um tratado; isto é o que às vezes se deno­
mina ratificação no sentido constitucional;
b) o procedimento internacional pelo qual o tratado entra
em vigor, ou seja, a troca ou depósito formal dos instrumentos
de ratificação;
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c) o próprio documento, selado ou de outro modo autenti­
cado, em que o Estado exprime sua vontade de se obrigar pelo
tratado;
d) avulsa e popularmente, a aprovação do tratado pela legis­
latura, ou outro órgão estatal cujo consentimento possa ser ne­
cessário; este é um emprego infeliz da palavra, e deveria ser
evitado”28.
O erro conceitual deste último entendimento da ratificação é tão comum
quanto grave. Faz-se, no caso, uso de termo consagrado em direito internacional
para cobrir fato jurídico que, onde previsto pelo direito interno, neste encontra sua
exclusiva regência. Parece, ademais, que a ideia da “ratificação” do tratado como
ato constitucional doméstico, a cargo do parlamento, reflete o imperdoável esque­
cimento de que o tratado envolve diversos Estados, não cabendo supor que uma ou
mais soberanias copactuantes, já acertadas com o governo do Estado de referência,
tenham ficado na expectativa do abono final do parlamento deste.
Não se pode entender a ratificação senão como ato interna­
cional, e como ato de governo. Este, o poder Executivo, titular
que costuma ser da dinâmica das relações exteriores de todo
Estado, aparece como idôneo para ratificar — o que no léxico
significa confirmar —, perante outras pessoas jurídicas de di­
reito das gentes, aquilo que ele próprio, ao término da fase ne­
gocial, deixara pendente de confirmação, ou seja, o seu consen­
timento em obrigar-se pelo pacto. Parlamentos nacionais não
ratificam tratados, primeiro porque não têm voz exterior, e se­
gundo porque, justamente à conta de sua inabilidade para a
comunicação direta com Estados estrangeiros, nada lhes terão
prenunciado, antes, por assinatura ou ato equivalente, que possam
mais tarde confirmar pela ratificação.
28. McNair, p. 130.
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Nos tópicos de McNair, a letra c retrata a confusão compreensível — e, em geral,
inofensiva — que se faz às vezes entre um ato jurídico e seu instrumento, seu produ­
to documental. Temos aqui o avesso da tendência, em linguagem jurídica coloquial,
a dizer que “uma procuração” — em vez de um mandato — foi confiada por certa
pessoa a outra. É o nome do instrumento tomando lugar ao nome do ato; enquanto,
na hipótese ora referida, em trilha inversa, chama-se pelo nome do ato jurídico ra­
tificação aquilo que é apenas o instrumento de ratificação ou a carta de ratificação.
O exato conceito da ratificação não é tampouco o que se vê,
dentro do rol precedente, na letra a. Em direito das gentes, esse
instituto não se deve confundir com a chamada “ratificação no
sentido constitucional”, até porque diversos são os Estados em
que a ratificação de nenhum modo se formaliza internamente,
sendo, pois, apenas apurável quando se consuma no plano inter­
nacional, e com o inteiro feitio de um ato internacional.
O entendimento expresso na alínea b da relação de McNair é o que se apro­
xima da realidade, exceto pela referência à entrada em vigor do tratado — um
desfecho cuja eventual inocorrência não invalida a certeza da ratificação acaso
consumada, e depois carente de objeto pela desistência da outra parte, ou pela
falta de quorum. Na tentativa conceitual é impossível desprezar, por outro lado, o
elemento léxico. O cerne jurídico e os efeitos da ratificação e da adesão tendem a
ser rigorosamente idênticos, sem que o valor etimológico do primeiro termo nos
autorize, porém, a usá-lo para significar o procedimento isolado e originário de
quem, nada havendo dito antes de provisório, prenunciativo ou condicional, nada
possa depois confirmar, ou dizer de novo, agora em definitivo.
Ratificação é o ato unilateral com que a pessoa jurídica de
direito internacional, signatária de um tratado, exprime defini­
tivamente, no plano internacional, sua vontade de obrigar-se.
27. Ratificação: características. Outrora, fundava-se a prática
da ratificação de tratados no intuito de garantir ao soberano o
controle da ação exterior de seus plenipotenciários. Era raro,
mesmo nas monarquias constitucionais como o Império do Bra­
sil, que o poder Legislativo devesse merecer consulta preliminar
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à ratificação de um pacto pelo governo. Seria demasiada e te­
merária confiança, entretanto, permitir que o negociador pleni­
potenciário, numa época de comunicações lentas e difíceis,
ajustasse lá fora os termos do compromisso — às vezes sob o
peso de circunstâncias fortuitas e questões imprevisíveis, surgi­
das no curso do trabalho negocial —, e desde logo o assumisse
em definitivo, trazendo ao soberano o fato consumado. O inter­
valo entre a assinatura e a ratificação era tempo de meditar sobre
a qualidade do desempenho negocial do plenipotenciário, e
sobre a conveniência de confirmar o pacto. Análise esta que se
desenvolvia, de regra, no estrito domínio do governo.
Charles Rousseau, referindo-se ao momento contemporâneo, destaca três
razões justificativas de que se tenha preservado a prática do consentimento median­
te ratificação. De início, a importância da matéria versada nos tratados reclama o
pronunciamento pessoal do chefe de Estado, a quem deve incumbir o ato jurídico
envolvente de interesses nacionais de monta. Em segundo lugar, essa prática pre­
vine controvérsias acerca de um eventual abuso ou excesso de poder por parte do
plenipotenciário, à ocasião da assinatura, e reduz ao mínimo a perspectiva da ar­
guição de erro, dolo, corrupção ou coação. A terceira razão é, do ponto de vista de
inúmeras nações, a mais importante: cuida-se do desenvolvimento da participação
do poder Legislativo na formação da vontade do Estado sobre o comprometimento
exterior. E os parlamentos, porque ausentes da cena diplomática, não poderiam
falar senão no tempo que medeia entre esses dois distintos atos de governo, a assi­
natura do tratado e sua ratificação29.
a) Competência. Não ao direito das gentes, mas à ordem
constitucional interior de cada Estado, incumbe determinar a
competência de seus órgãos para a assunção, em nome do Esta­
do, de compromissos internacionais — e, pois, para a ratificação
de tratados, cuja negociação, à força de exemplar uniformidade
entre as várias ordens jurídicas, terá sido conduzida por agentes
do poder Executivo.
29. Rousseau, p. 32.
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Importante, entretanto, é ter presente a distinção entre a disciplina constitu­
cional do treaty-making power — com que os Estados cuidam, em regra, de parti­
lhar de algum modo entre o Executivo e o Legislativo o poder decisório — e a
disciplina internacional da representatividade do Estado frente a seus pares. Sabe-se, por via de regra, que ao chefe de Estado cumpre formalizar a ratificação, fir­
mando a respectiva carta instrumental: isto sucede mesmo nos países onde, em
razão do governo de gabinete, pouco tem ele, chefe de Estado, de poder real; e
ainda naqueles onde o próprio governo se subordina, nessa matéria, ao mais amplo
e severo controle parlamentar. Apesar de tudo, não se discutirá, no foro internacio­
nal, a legitimidade de um primeiro-ministro, ou mesmo de um ministro de relações
exteriores, que em seu próprio nome pretenda ratificar certo tratado. A questão,
aqui, é de pura representatividade, e a Convenção de Viena, fiel ao costume, deixou
claro que chefes de governo e ministros do exterior também se presumem compe­
tentes para todos os atos relativos à conclusão de um tratado.
b) Discricionariedade. Expressão final do consentimento, a
ratificação é tão discricionária quão livre o Estado para celebrar
tratados internacionais. Parece claro que a assinatura, sempre
que adotado o procedimento longo, não pretende vincular o
Estado, já que de outro modo faltaria razão de ser ao ato ratifi­
catório. É ainda certo — embora talvez nem tão evidente — que
a assinatura, nesse caso, tampouco vincula o governo do Estado,
de modo que se possa aventar a obrigatoriedade da ratificação
desde quando aprovado o compromisso pelo parlamento. O
princípio reinante, pois, é o da discricionariedade da ratificação.
Por quanto ficou visto, não comete qualquer ilícito internacional
o Estado que se abstém de ratificar um acordo firmado em foro
bilateral ou coletivo. Rousseau pondera que, embora lícita, a
recusa de ratificação se pode às vezes entender como politica­
mente inoportuna ou inamistosa30.
Em 3 de dezembro de 1979 a França anuncia seu propósito de não ratificar a
Convenção de 3 de dezembro de 1976 sobre a despoluição do Reno. Uma semana
depois os Países Baixos — cujo empenho nessa Convenção chegara a motivar a ida,
30. Rousseau, p. 34.
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a Paris, de um grupo de parlamentares holandeses, com o objetivo de animar seus
pares no parlamento francês — exprimem um protesto formal contra aquela atitude.
O Brasil não ratificou a Convenção sanitária que firmara com a Argentina e o Uruguai
em 1873, nem o Tratado argentino-brasileiro de 1890 sobre a fronteira das Missões,
nem tampouco o Tratado de amizade e comércio celebrado com a Pérsia em 1903.
No segundo caso, o Congresso desaprovou o tratado, por larga maioria. No primeiro,
porém, em razão da época, não cabia consulta ao parlamento, havendo ocorrido de­
sistência governamental após melhor análise do texto. No terceiro, enfim, o Congres­
so chegou a aprovar o tratado por decreto legislativo, e a recusa de levar a termo o
comprometimento deveu-se tão só às reflexões finais do governo.
Não há norma costumeira, em direito das gentes, fixando
algo como um prazo máximo para ratificação do tratado, a con­
tar do término da negociação, ou da assinatura — acaso diferida —,
ou do momento em que o governo interessado disponha da res­
pectiva aprovação parlamentar. A disciplina desta questão é
tópica. O tratado poderá calar-se a respeito, deixando valer o
princípio da discrição quanto ao ensejo em que cada Estado o
irá ratificar. Ou certa cláusula final fixará prazo — algo como
dois anos — para que sobrevenham as ratificações.
Sucede que muitos dos tratados que estipulam prazo para os Estados nego­
ciadores exteriorizarem seu consentimento definitivo são tratados abertos à adesão.
Fica visto, em tais circunstâncias, que não há na fixação do prazo, em essência, um
comando peremptório, mas uma exortação a que os pactuantes não retardem inde­
finidamente sua palavra última. Afinal, perdido o prazo para ratificar o pacto, po­
derá o Estado valer-se da prerrogativa aberta aos que nem sequer o firmaram, e
ingressar no seu domínio jurídico mediante adesão. O Brasil firmou em Genebra,
em 7 de junho de 1930, a Convenção estabelecendo lei uniforme sobre letras de
câmbio e notas promissórias, cujo art. 4º mandava que os instrumentos de ratifica­
ção fossem depositados antes de 1º de setembro de 1932. Não tendo podido obser­
var o prazo, este país acabaria por aderir à Convenção — nos termos do art. 5º —,
em 26 de agosto de 1942.
c) Irretratabilidade. Ato unilateral e discricionário, a rati­
ficação é, não obstante, irretratável, mesmo antes que o acordo
se tenha tornado vigente, e, às vezes, antes que a regra pacta
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sunt servanda haja começado a operar em sua plenitude. É de
evidência primária que, vigente o compromisso, seu fiel cum­
primento se impõe às partes, e a denúncia unilateral, se e quan­
do possível, estará subordinada a regras prefixadas, acautelató­
rias do interesse dos demais pactuantes. A irretratabilidade da
ratificação, contudo, é princípio que opera desde que formali­
zada a expressão individual do consentimento definitivo, cobrin­
do, assim, duas espécies de lapso temporal anterior à vigência
do tratado: (1) o período em que a ratificação de uma das partes
aguarda a da outra, nos acordos bilaterais; ou aquele em que as
primeiras ratificações aguardam o alcance do quorum, nos acor­
dos coletivos; e (2) a fortiori, o período em que, consumado o
pacto bilateral pela dupla ratificação, ou o pacto coletivo pelo
alcance do quorum, as partes esperam que se esgote um lapso
de acomodação, previsto no próprio texto — trinta dias, noven­
ta dias, ou algo assim —, para a entrada em vigor. Nesta segun­
da hipótese o pacto já se encontra desenganadamente perfeito e
consumado. A norma pacta sunt servanda opera com toda sua
virtude, e responde pela irretirabilidade das ratificações. Na
primeira hipótese, porém, visto que o tratado ainda não existe
juridicamente, seria imprópria a invocação daquela norma fun­
damental. São princípios como o da boa-fé e o da segurança das
relações internacionais que embasam, em tal caso, a regra cos­
tumeira da irretratabilidade do consentimento definitivo.
Aqui, no entanto, a regra não tem valor absoluto. Os mesmos princípios que
lhe servem de apoio podem socorrer, eventualmente, a pretensão do Estado dese­
joso de retirar seu consentimento a um tratado bilateral, quando a demora no pro­
nunciamento da outra parte se tenha tornado insuportável. Este ponto de vista en­
contra suporte implícito na Convenção de Viena, que manda que o Estado se abs­
tenha de praticar atos frustratórios do objeto e da finalidade de um tratado por ele
ratificado, enquanto aguarda sua entrada em vigor, mas sob a condição de que esta
não seja indevidamente retardada31. Por mais forte razão, o honesto abandono do
consentimento há de ser tolerado nesta mesma hipótese.
31. Art. 18, b.
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Caso a caso, porém, é que se poderá dizer da excepcionalidade justificativa
de semelhante gesto — a exemplo do que ocorre, em direito das gentes, com a
invocação da cláusula rebus sic stantibus. Não há como ditar por antecipação a
medida de uma demora insuportável, a dimensão de uma expectativa razoavelmen­
te inexigível. Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, representante do Brasil na
conferência de que resultou a Convenção de Viena, relata que quando da votação
do artigo retromencionado certa delegação nacional desejou saber, com maior
clareza, quando se pode estimar que a entrada em vigor de um tratado está sendo
“indevidamente retardada”; ao que Humphrey Waldock, relator do projeto, replicou
que “quanto menos se dissesse a respeito, melhor”32.
28. Ratificação: formas. Onde quer que a ratificação se preve­
ja como meio de expressão definitiva do consentimento, deve
ela ser expressa. Indicadores de uma suposta “ratificação tácita”,
qual a assunção, pelo Estado, de conduta coerente com os termos
do pacto, ou sua invocação contra aquele que o tenha já ratifi­
cado, podem encontrar outra justificativa em direito das gentes;
além do que não são hábeis para caracterizar ato jurídico de
tamanho relevo. Dispensa maior fundamentação a assertiva de
que, em direito, tudo quanto é necessariamente formal há de ser,
no mínimo, expresso. No que é tácito não há formalidade, e esta
última, embora dispensável noutros modelos de expressão do
consentimento conhecidos em direito das gentes, não o é no caso
da ratificação de tratados.
Basicamente, a ratificação se consuma pela comunicação
formal à outra parte, ou ao depositário, do ânimo definitivo de
ingressar no domínio jurídico do tratado. Nos compromissos
bilaterais é usual que o prévio entendimento diplomático —
quando não uma cláusula do próprio pacto — programe a simul­
taneidade da comunicação mútua, acompanhada pela troca dos
instrumentos documentais de ratificação. Não é juridicamente
impositivo, porém, que ocorra essa simultaneidade, e que se
32. G. E. do Nascimento e Silva, Conferência de Viena sobre o direito dos tratados,
Brasília, MRE, 1971, p. 67-68.
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produza o cerimonial da troca de instrumentos. O Estado A pode
antecipar, no que lhe toca, a ratificação do tratado avençado com
B, e ficar à espera de que este ratifique também o compromisso,
fazendo-lhe a comunicação própria e passando-lhe o respectivo
instrumento. Se coletivo o tratado, o depositário receberá for­
malmente — mas, em geral, sem solenidade — a comunicação
expressa no instrumento de cada Estado ratificante.
É certo, entretanto, que a ratificação — mais que tudo uma
comunicação formal de parte a outra — pode consumar-se in­
dependentemente da entrega do instrumento escrito, seja porque
esta última formalidade deva sofrer algum retardo, seja porque
simplesmente reputada desnecessária pelas partes. O primeiro
caso é aquele em que a ratificação é declarada oralmente — num
encontro público de chefes de Estado, por exemplo — ou pela
via telegráfica, transitando o respectivo instrumento alguns dias
mais tarde. O segundo é aquele em que o tratado reclama a con­
firmação do consentimento, mas não fala em cartas de ratificação,
senão em notas diplomáticas com que as partes se informem
reciprocamente que, atendidos os pressupostos do direito inter­
no de cada uma delas, pode seu governo dar por firme o com­
promisso. Em casos desta espécie, o não uso do termo ratifica­
ção é fato inofensivo, visto que configurado, no seu exato perfil
jurídico, aquele instituto.
29. Ratificação: o depositário. Não seria sensato que, nos trata­
dos coletivos, o Estado devesse promover a ratificação perante
cada um dos demais pactuantes. O que sucede nesse caso é o
depósito do instrumento de ratificação, cuja notícia será dada aos
interessados pelo depositário. Este não o é, contudo, apenas dos
instrumentos de ratificação. A prática o aponta como depositário
do tratado. Por haver, cooperativamente, assumido esse encargo
de índole secretarial, ele irá receber em depósito, primeiro, os
originais do próprio pacto. Depois, os instrumentos de ratificação.
Mais tarde, se for o caso, os instrumentos de adesão. Eventual­
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mente, as notificações de denúncia. Tudo isto para só men­cionar
o principal, em meio a suas variadas atribuições.
Originalmente — vale dizer, no primeiro século de produção de tratados mul­
tilaterais —, o depositário é sempre um Estado, e quase sempre aquele Estado em
cujo território teve curso a conferência onde se negociou o compromisso. No pri­
meiro após-guerra, incipiente a era das organizações internacionais, a OIT oferece
o exemplo pioneiro da organização depositária, no tocante às convenções interna­
cionais do trabalho; e em molde institucionalizado, uma vez que sua própria Cons­
tituição dita o procedimento a ser seguido em caráter permanente na conclusão
daqueles acordos especiais. O emprego de organização internacional como depo­
sitária de tratados só ganha, contudo, dimensões maiores no segundo após-guerra,
e à sombra das Nações Unidas.
Modernamente tem-se visto recair a escolha do depositário não sobre certa
organização, mas sobre seu funcionário mais graduado — no caso da ONU, o se­
cretário-geral. Por maior comodidade e conveniência política das partes, já não é
raro, também, que diversos Estados assumam ao mesmo tempo a função de depo­
sitário.
30. Pressupostos constitucionais do consentimento: generalidades. O tema em que ingressamos é de direito interno. O
direito internacional, como ficou visto, oferece exata disciplina
à representação exterior dos Estados, valorizando quanto por
eles falem certos dignitários, em razão de suas funções. Não
versa, porém, aquilo que escapa ao seu domínio, porque ineren­
te ao sistema de poder consagrado no âmbito de toda ordem
jurídica soberana. Presume-se, em direito das gentes, que os
governantes habilitados, segundo suas regras, à assunção de
compromissos internacionais procedem na conformidade da
respectiva ordem interna, e só excepcionalmente uma conduta
avessa a essa ordem poderia, no plano internacional, compro­
meter a validade do tratado.
Dado que o consentimento convencional se materializa sem­
pre num ato de governo — a assinatura, a ratificação, a adesão —,
parece claro que seus pressupostos, ditados pelo direito interno,
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tenham normalmente a forma da consulta ao poder Legislativo.
Onde o Executivo depende, para comprometer externamente o
Estado, de algo mais que sua própria vontade, isto vem a ser em
regra a aprovação parlamentar, configurando exceção o modelo
suíço, em que o referendo popular precondiciona a conclusão
de certos tratados. O estudo dos pressupostos constitucionais do
consentimento é, assim, fundamentalmente, o estudo da partilha
do treaty-making power entre os dois poderes políticos — Le­
gislativo e Executivo — em determinada ordem jurídica estatal.
A análise do caso brasileiro dará melhor proveito se precedida,
ainda que de modo sumário, pela consideração de alguns outros
sistemas nacionais.
No modelo francês a aprovação parlamentar constitui pressuposto da confir­
mação de alguns tratados que a Constituição menciona. São eles os tratados de paz,
os de comércio, os relativos à organização internacional, os que afetam as finanças
do Estado, os que modificam disposições legislativas vigentes, os relativos ao es­
tado das pessoas, e os que implicam cessão, permuta ou anexação de território.
Cuida-se, pois, de um sistema inspirado na ideia do controle parlamentar dos tra­
tados de maior importância, à luz do critério seletivo que o próprio constituinte
assumiu. Não há, assim, sob o aspecto qualitativo, diferença entre o modelo francês
— herdado pela Constituição de 1958 às linhas gerais de suas predecessoras de
1946 e de 1875 — e o que prevaleceu no Império do Brasil, sob a Constituição de
25 de março de 1824. Separa-os um fator puramente quantitativo, já que neste úl­
timo caso a aprovação da Assembleia Geral impunha-se apenas quando o tratado
envolvesse cessão ou troca de território imperial “ou de possessões a que o Império
tenha direito”, e desde que celebrado em tempo de paz.
A originalidade do modelo britânico, construído sob o pálio de uma consti­
tuição costumeira, está no modo de enfocar a matéria. Ali também alguns tratados
não dispensam a aprovação parlamentar. Não se pretende, contudo, que seja este
um requisito de validade da ação exterior do governo, mas um elemento necessário
à implementação do pacto no domínio espacial da ordem jurídica britânica. O
governo é livre para levar a negociação de tratados até a fase última da expressão
do consentimento definitivo, mas não deve deslembrar-se da sua inabilidade cons­
titucional para alterar as leis vigentes no reino, ou para, de qualquer modo, onerar
seus súditos ou reduzir-lhes os direitos, sem que um ato do parlamento para isso
concorra. Este, pois, o toque peculiar ao modelo britânico. O mais simples e este­
reotipado pacto bilateral de extradição reclama, para ser eficaz, o ato parlamentar
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convalidante, porque não se concebe que uma pessoa, vivendo no real território,
seja turbada em sua paz doméstica, e mandada à força para o exterior, à base de um
compromisso estritamente governamental. Concebe-se, porém, que tratados da mais
transcendente importância política sejam concluídos pela exclusiva autoridade do
governo, desde que este possa executá-los sem onerar os contribuintes nem moles­
tar, de algum modo, os cidadãos. À margem da colaboração do parlamento pode o
governo britânico, assim, adquirir território mediante compromisso político; e só
não pode ceder território em face da presunção de que, com esse gesto, estará
destituindo da proteção real os súditos ali instalados33.
A Constituição americana de 1787 garantiu ao presidente dos Estados Unidos
o poder de celebrar tratados, com o consentimento do Senado, expresso pela voz
de dois terços dos senadores presentes. Bem cedo, porém, uma interpretação res­
tritiva da palavra inglesa treaties fez com que se entendesse que nem todos os
compromissos internacionais possuem aquela qualidade. Além dos tratados, so­
mente possíveis com o abono senatorial, entendeu-se que negociações internacionais
podiam conduzir a acordos ou ajustes, os ali chamados agreements, para cuja con­
clusão parecia razoável que o presidente dispensasse o assentimento parlamentar.
A prática dos acordos executivos começa no governo de George Washington, e ao
cabo de dois séculos ostenta impressionante dimensão quantitativa. A Corte Supre­
ma norte-americana, levada por mais de uma vez ao exame da sanidade constitu­
cional desses acordos, entendeu de convalidá-los.
31. Pressupostos constitucionais do consentimento: o sistema
brasileiro. Mais de um século depois de lavrada a Constituição
dos Estados Unidos, e consciente de todos os seus dispositivos
e da respectiva experimentação centenária, entendeu o consti­
tuinte brasileiro da primeira República de dispor que cabe ao
Congresso “resolver definitivamente sobre os tratados e conven­
ções com as nações estrangeiras”, competindo ao presidente da
República “celebrar ajustes, convenções e tratados, sempre ad
referendum do Congresso”.
33. Ninguém, entretanto, há de iludir-se imaginando que no sistema parlamentar
britânico o governo goza de maior autonomia real que numa república presidencialista. Vale
sempre lembrar a prerrogativa que tem o congresso, nos países parlamentaristas, de sim­
plesmente derrubar o governo a qualquer momento, quando este, mesmo agindo dentro das
regras constitucionais, procede de modo politicamente desastrado aos olhos da maioria
parlamentar.
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A redundância terminológica — ajustes, convenções, tratados —, alvo cons­
tante da crítica doutrinária, persiste até hoje na lei fundamental brasileira, com um
mínimo de variedade. Ali viu Carlos Maximiliano a intenção de compreender, pela
superabundância nominal, todas as formas possíveis de comprometimento exte­rior34.
O estudo da gênese das constituições brasileiras a partir da fundação da República
não permite dúvida a respeito da correção dessa tese. Os grandes comentaristas da
Constituição da primeira República — entre eles, destacadamente, João Barbalho
e Clóvis Beviláqua35 — sustentaram a inviabilidade do comprometimento externo
por obra exclusiva do governo, em qualquer caso. Não obstante, a história diplo­
mática do Brasil sempre ofereceu exemplos de ação isolada do Executivo, em
afronta aparente ao texto constitucional. A defesa de semelhante atitude ganhou
vulto sob a Constituição de 1946, e teve em Hildebrando Accioly seu mais desta­
cado patrocinador.
32. O problema dos “acordos executivos”. A Constituição
brasileira de 1988 diz ser da competência exclusiva do Congres­
so Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos
ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos
gravosos ao patrimônio nacional”, sendo que ao Presidente in­
cumbe “celebrar tratados, convenções e atos internacionais,
sujeitos a referendo do Congresso Nacional”36. A carta não ino­
va por mencionar encargos &c: não há compromisso interna­
cional que não os imponha às partes, ainda que não pecuniá­rios.
A prática recente, alcançando até os primeiros anos do novo
século, prova que o governo e o parlamento brasileiros assim
enten­dem: até mesmo tratados bilaterais para a mera dispensa
de vistos em passaportes têm sido regularmente submetidos à
aprovação do Congresso. A carta preservou, ademais, a redun­
dância terminológica, evitando qualquer dúvida sobre o propó­
sito abrangente do constituinte. Uma exegese constitucional inspi­
rada na experiência norte-americana — e em quanto ali se promo­
34. Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição brasileira de 1946, Rio de Ja­
neiro, Freitas Bastos, 1948, v. 2, p. 238.
35. V., no volume II de Pareceres (1913-1934), diversos pronunciamentos de Clóvis
Beviláqua, na qualidade de consultor jurídico do Itamaraty.
36. Arts. 49, I, e 84, VIII, respectivamente.
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veu a partir da compreensão restritiva do termo treaties —, se não
de todo inglória no Brasil republicano do passado, tornou-se
contemporaneamente impensável. Concedendo-se, pois, que
tenha Accioly abonado, em seu tempo, uma prática estabelecida
extra legem, é provável que tal prática, na amplitude com que
tenciona convalidar acordos internacionais desprovidos de toda
forma de consentimento parlamentar, não se possa hoje defender
senão contra legem.
Muitas vezes se viu tratar a prática dos acordos executivos como uma impe­riosa
necessidade estatal, a ser escorada a todo preço pela doutrina. Os argumentos me­
tajurídicos que serviram de apoio a essa tese enfatizavam a velocidade com que se
passam as coisas na política internacional contemporânea, diziam da importância
das decisões rápidas, enalteciam o dinamismo e a vocação simplificadora dos go­
vernos, deplorando, por contraste, a lentidão e a obstrutiva complexidade dos traba­
lhos parlamentares. Não se sabe o que mais repudiar nesse repetido discurso, se o
que tem de frívolo ou o que tem de falso. O suposto ritmo trepidante do labor con­
vencional nas relações internacionais contemporâneas seria fator idôneo à tentativa
de inspirar o constituinte, nunca à pretensão de desafiá-lo. Por outro lado é inexata
e arbitrária a assertiva de que os parlamentos, em geral, quando dotados de compe­
tência para resolver sobre tratados, tomem nisso maior tempo regular que aquele
despendido pelos governos — também em geral — para formar suas pró­prias deci­
sões definitivas a respeito, mesmo que não considerado o período de negociação,
em que agentes destes — e não daqueles — já conviviam com a matéria em proces­
so formativo. Toda pesquisa por amostragem permitirá, neste país, e não apenas nele,
concluir que a demora eventual do Legislativo na aprovação de um tratado é com­
panheira inseparável da indiferença do próprio Executivo em relação ao andamento
do processo; e que o empenho real do governo pela celeridade, ou a importância da
matéria, tendem a conduzir o parlamento a prodígios de expediência.
Juristas da consistência de Hildebrando Accioly e de João Hermes Pereira de
Araújo não fundaram, naturalmente, seu pensamento em considerações do gênero
acima referido. Nem se pode dizer que tenham tomado por arma, na defesa da
prática dos acordos executivos, o entendimento restritivo da fórmula “tratados e
convenções”, num exercício hermenêutico à americana. O grande argumento de
que se valeram, na realidade, foi o do costume constitucional que se teria desen­
volvido entre nós, temperando a fria letra da lei maior. Parece, entretanto, que a
gênese de normas constitucionais costumeiras numa ordem jurídica encabeçada
por Constituição escrita — e não exatamente sumária ou concisa — pressupõe o
silêncio, ou, no mínimo, a ambiguidade do diploma fundamental. Assim, a carta se
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omite de abordar o desfazimento, por denúncia, de compromissos internacionais,
e de partilhar, a propósito, a competência dos poderes políticos. Permite assim que
um costume constitucional preencha — com muita nitidez, desde 1926 — o espa­
ço normativo vazio. Tal não é o caso no que tange à determinação do poder con­
vencional, de cujo exercício a carta, expressa e quase que insistentemente, não quer
ver excluído o poder Legislativo. Não se pode compreender, portanto, sob risco de
fazer ruir toda a lógica jurídica, a formação idônea de um costume constitucional
contra a letra da Constituição.
33. Acordos executivos possíveis no Brasil. Apesar de tudo, o
acordo executivo — se assim chamamos todo tratado interna­
cional carente da aprovação individualizada do Congresso — é
uma prática convalidável, desde que, abandonada a ideia tortu­
osa de que o governo pode pactuar sozinho sobre “assuntos de
sua competência privativa”, busque-se encontrar na lei funda­
mental sua sustentação jurídica. Três categorias de acordos
executivos — mencionadas, de resto, por Accioly, ao lado de
outras mais — parecem compatíveis com o preceito constitucio­
nal: os acordos “que consignam simplesmente a interpretação
de cláusulas de um tratado já vigente”, os “que decorrem, lógi­
ca e necessariamente, de algum tratado vigente e são como que
o seu complemento”, e os de modus vivendi, “quando têm em
vista apenas deixar as coisas no estado em que se encontram, ou
estabelecer simples bases para negociações futuras”37. Os primei­
ros, bem como estes últimos, inscrevem-se no domínio da di­
plomacia ordinária, que se pode apoiar em norma constitucional
não menos específica que aquela referente à celebração de tra­
tados. Os intermediários se devem entender, sem qualquer acro­
bacia herme­nêutica, cobertos por prévio assentimento do Con­
gresso Nacional. Isto demanda, porém, explicações maiores.
a) O acordo executivo como subproduto de tratado vigente.
Neste caso a aprovação congressional reclamada pela carta sofre
37. H. Accioly, BSBDI (1948), v. 7, p. 8.
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no tempo um deslocamento antecipativo, sempre que ao aprovar
certo tratado, com todas as normas que nele se exprimem, abo­
na o Congresso desde logo os acordos de especificação, de de­
talhamento, de suplementação, previstos no texto e deixados a
cargo dos governos pactuantes.
b) O acordo executivo como expressão de diplomacia ordi­
nária. É da competência privativa do presidente da República
manter relações com os Estados estrangeiros. Nesta norma, que
é da tradição constitucional brasileira, e que a carta de 1988
preserva, tem sede a titularidade, pelo governo, de toda a dinâ­
mica das relações internacionais: incumbe-lhe estabelecer e
romper a seu critério relações diplomáticas, decidir sobre o in­
tercâmbio consular, sobre a política de maior aproximação ou
reserva a ser desenvolvida em face de determinado bloco, sobre
a atuação de nossos representantes no seio das organizações
internacionais, sobre a formulação, a aceitação e a recusa de
convites para entendimentos bilaterais ou multilaterais tendentes
à preparação de tratados. Enquanto não se cuide de incorporar
ao direito interno um texto produzido mediante acordo com
potências estrangeiras, a autossuficiência do poder Executivo é
praticamente absoluta.
É também nessa norma que parece repousar a autoridade do governo para a
conclusão de compromissos internacionais terminantemente circunscritos na rotina
diplomática, no relacionamento ordinário com as nações estrangeiras. Seria rigo­
roso demais sustentar que a opção pelo procedimento convencional desloca o go­
verno do âmbito das relações ordinárias com o exterior, lançando-o no domínio da
regra específica, e obrigando-o à consulta parlamentar. Dir-se-ia então que, livre
para decidir unilateralmente sobre qual a melhor interpretação de certo dispositivo
ambíguo de um tratado em vigor, ou sobre como mandar proceder em zona de
fronteira enquanto não terminam as negociações demarcatórias da linha limítrofe
em causa, ou sobre a cumulatividade de nossa representação diplomática em duas
nações distantes, ou ainda sobre quantos escritórios consulares poderão ser abertos
no Brasil por tal país amigo, o governo decairia dessa discrição, passando a depen­
der do abono congressional, quando entendesse de regular qualquer daqueles temas
mediante acordo com Estado estrangeiro. Razoável apesar de rigorosa, essa tese
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não é, contudo, a melhor. Acordos como o modus vivendi e o pactum de contrahen­
do nada mais são, em regra, que exercício diplomático preparatório de outro acor­
do, este sim substantivo, e destinado à análise do Congresso. Acordos interpretati­
vos, a seu turno, não representam outra coisa que o desempenho do dever diplomá­
tico de entender adequadamente — para melhor aplicar — um tratado concluído
mediante endosso do parlamento.
Entretanto, na identificação dos acordos executivos inerentes à diplomacia ordiná­
ria, e por isso legitimáveis à luz da lei fundamental, vale buscar dois caracteres indispen­
sáveis: a reversibilidade e a preexistência de cobertura orçamentária. Esses acordos
devem ser, com efeito, desconstituíveis por vontade unilateral, expressa em comuni­
cação à outra parte, sem delongas — ao contrário do que seria normal em caso de
denúncia. De outro modo — ou seja, se a retratação unilateral não pudesse operar
prontamente — o acordo escaparia às limitações que o conceito de rotina diplomáti­
ca importa. Por igual motivo, deve a execução desses acordos depender unicamente
de recursos orçamentários já alocados às relações exteriores, não de outros.
34. Procedimento parlamentar. Concluída a negociação de um
tratado, é certo que o presidente da República — que, como
responsável pela dinâmica das relações exteriores, poderia não
tê-la jamais iniciado, ou dela não ter feito parte, se coletiva, ou
haver ainda, em qualquer caso, interrompido a participação
negocial brasileira — está livre para dar curso, ou não, ao pro­
cesso determinante do consentimento. Ressalvada a situação
própria das convenções internacionais do trabalho, ou alguma
inusual obrigação imposta pelo próprio tratado em causa, tanto
pode o chefe do governo mandar arquivar desde logo o produto
a seu ver insatisfatório de uma negociação bilateral ou coletiva,
quanto determinar estudos mais aprofundados na área do Exe­
cutivo, a todo momento; e submeter quando melhor lhe pareça
o texto à aprovação do Congresso. Tudo quanto não pode o
presidente da República é manifestar o consentimento definitivo,
em relação ao tratado, sem o abono do Congresso Nacional. Este
abono, porém, não o obriga à ratificação. Isto significa, noutras
palavras, que a vontade nacional, afirmativa quanto à assunção
de um compromisso externo, assenta sobre a vontade conjugada
dos dois poderes políticos. A vontade singular de qualquer deles
é necessária, porém não suficiente.
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A remessa de todo tratado ao Congresso Nacional para que o examine e, se
assim julgar conveniente, aprove, faz-se por mensagem do presidente da República,
acompanhada do inteiro teor do projetado compromisso, e da exposição de motivos
que a ele, presidente, terá endereçado o ministro das Relações Exteriores.
A matéria é discutida e votada, separadamente, primeiro na Câmara, depois
no Senado. A aprovação do Congresso implica, nesse contexto, a aprovação de uma
e outra das suas duas casas. Isto vale dizer que a eventual desaprovação no âmbito
da Câmara dos Deputados põe termo ao processo, não havendo por que levar a
questão ao Senado em tais circunstâncias.
Tanto a Câmara quanto o Senado possuem comissões especializadas ratione
materiae, cujos estudos e pareceres precedem a votação em plenário. O exame do
tratado internacional costuma envolver, numa e noutra das casas, pelo menos duas
das respectivas comissões: a de relações exteriores e a de constituição e justiça. O
tema convencional determinará, em cada caso, o parecer de comissões outras, como
as de finanças, economia, indústria e comércio, defesa nacional, minas e energia.
A votação em plenário requer o quorum comum de presenças — a maioria abso­
luta do número total de deputados, ou de senadores —, devendo manifestar-se em
favor do tratado a maioria absoluta dos presentes. O sistema difere, pois, do norte-americano, em que apenas o Senado deve aprovar tratados internacionais, exigin­
do-se naquela casa o quorum comum de presenças, mas sendo necessário que dois
terços dos presentes profiram voto afirmativo. Os regimentos internos da Câmara
e do Senado se referem, em normas diversas, à tramitação interior dos compromis­
sos internacionais, disciplinando seu trânsito pelo Congresso Nacional.
O êxito na Câmara e, em seguida, no Senado, significa que
o compromisso foi aprovado pelo Congresso Nacional. Incum­
be formalizar essa decisão do parlamento, e sua forma, no Bra­
sil contemporâneo, é a de um decreto legislativo, promulgado
pelo presidente do Senado, que o faz publicar no Diário Oficial
da União.
O decreto legislativo exprime unicamente a aprovação. Não se produz esse
diploma quando o Congresso rejeita o tratado, caso em que cabe apenas a comu­
nicação, mediante mensagem, ao presidente da República. Exemplos de desapro­
vação foram muito raros na história constitucional do Brasil, e entre eles destaca-se
o episódio do tratado argentino-brasileiro de 25 de janeiro de 1890, sobre a fron­
teira das Missões, rejeitado pelo plenário do Congresso em 18 de agosto de 1891,
por cento e quarenta e dois votos contra cinco.
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Um único decreto legislativo pode aprovar dois ou mais tratados. Todavia,
novo decreto legislativo deve aprovar tratado que antes, sob esta mesma forma, haja
merecido o abono do Congresso, mas que, depois da ratificação, tenha sido um dia
denunciado pelo governo. Extinta a obrigação internacional pela denúncia, cogita-se agora de assumir novo compromisso, embora de igual teor, e nada justifica a
ideia de que o governo possa fazê-lo por si mesmo.
A aprovação parlamentar é retratável? Pode o Congresso Nacional, por de­
creto legislativo, revogar o igual diploma com que tenha antes abonado certo
compromisso internacional? Se o tratado já foi ratificado — ou seja, se o consen­
timento definitivo desta república já se exprimiu no plano internacional —, é evi­
dente que não. Caso contrário, seria difícil fundamentar a tese da impossibilidade
jurídica de tal gesto. Temos, de resto, um precedente: o Decreto legislativo n. 20,
de 15 de dezembro de 1962, que revogou o de n. 13, de 6 de outubro de 1959.
35. Reservas. A reserva é um qualificativo do consentimento.
Define-a a Convenção de Viena como a declaração unilateral do
Estado que consente, visando a “excluir ou modificar o efeito
jurídico de certas disposições do tratado em relação a esse Es­
tado”38. Esse conceito reclama as observações seguintes.
a) A reserva pode qualificar tanto o consentimento prenun­
ciativo, à hora da assinatura dependente de confirmação, quan­
to o definitivo, expresso por meio de ratificação ou adesão. No
primeiro caso, argumenta-se que a reserva será conhecida dos
demais negociadores antes que resolvam sobre sua própria rati­
ficação, eliminado o fator surpresa. Como quer que seja, ficará
visto que aos demais pactuantes abre-se a possibilidade de ob­
jetar à reserva, ainda que formulada por Estado retardatário na
sua ratificação ou adesão.
b) A reserva é fenômeno incidente sobre os tratados coleti­
vos, ao término de cuja negociação nem todos os Estados partí­
cipes terão apreciado positivamente cada uma das normas que
compõem o texto. Ela é maneira de tornar possível que, enten­
dendo inaceitável apenas parte — em geral mínima, ou, quando
38. Art. 2º, § 1, d.
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menos, limitada — do compromisso, possa o Estado, não obs­
tante, ingressar em seu domínio jurídico. As reservas são o co­
rolário das naturais insatisfações que, ao término da negociação
coletiva em conferência, ter-se-ão produzido, em relação a as­
pectos vários do compromisso, numa parte mais ou menos ex­
pressiva da comunidade estatal ali reunida. Não se compreende,
desse modo, a reserva a tratado bilateral, onde cada tópico re­
clama o perfeito consenso de ambas as partes, sem o que a ne­
gociação não chega a termo. Assim, como observou Rivier, uma
pretensa reserva a tratado bilateral não é reserva, mas recusa de
confirmar o texto acertado e convite à renegociação39.
Um tratado de amizade, comércio e navegação foi firmado por Brasil e Chi­
na em 5 de setembro de 1880, após o que o governo imperial pretendeu qualificar
sua ratificação com algumas reservas modificativas. O resultado foi dar-se por
frustrado esse pacto, negociando-se outro, em Tientsin, afinal firmado em 3 de
outubro de 1881, trocando-se instrumentos de ratificação em Xangai, em 3 de junho
de 188240.
Mesmo entre os tratados multilaterais, alguns há que pare­
cem não comportar reservas por sua própria natureza, e inde­
pendentemente de cláusula proibitiva. É o caso dos pactos ins­
titucionais e das convenções internacionais do trabalho. Em
janeiro de 1952 a Assembleia Geral da ONU adotou resolução
exortando todos os Estados a que, no preparo de tratados cole­
tivos, disciplinassem o tema das reservas, proibindo-as, facul­
tando-as, ou fixando a exata distinção entre dispositivos passíveis
e impassíveis de sofrer reserva, no contexto convencional. São
minoritários, desde então, os tratados multilaterais que nada
dizem sobre reservas a seu próprio teor, criando assim para as
partes um inevitável embaraço. Entre estes figura, o que é sur­
39. Cf. Rousseau, p. 50-51.
40. Oliveira, II, p. 108.
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preendente, a Convenção de Viena sobre o direito dos tratados.
Em regra, o pacto coletivo diz algo sobre reservas. Proíbe-as,
pura e simplesmente. Ou as admite a certa parte do texto, e não
a outra. No silêncio do texto, vale a disciplina estabelecida pela
Convenção de Viena41: a reserva é possível, desde que compatí­
vel com o objeto e a finalidade do tratado.
A responsabilidade pela negociação torna o Executivo, e ele
somente, hábil para opor reservas quando da assinatura de um
pacto coletivo. Opondo-as, e dependendo de aprovação con­gres­
sional para consentir em definitivo, ele submeterá ao parlamen­
to o tratado sem deixar de registrar as reservas formuladas, que
deseja manter à hora da ratificação. Cuida-se de saber se se
podem aditar ressalvas no âmbito do Legislativo, formulando-as,
quando o governo delas não tenha cogitado em abso­luto, ou
somando restrições novas àquelas já pretendidas por este. Do
ponto de vista jurídico, tal problema se confunde com o de saber
se pode o parlamento aprovar certo tratado suprimindo as reser­
vas desejadas pelo governo. Tudo, porém, no pressuposto de que
o tratado em questão admite reservas, ou pelo menos não as
proíbe. Atento aos limites acaso estabelecidos no tratado que
examina, tem o Congresso Nacional o poder de aprová-lo com
restrições — que o governo, à hora de ratificar, traduzirá em
reservas —, como ainda o de aprová-lo com declaração de desa­
bono às reservas acaso feitas na assinatura — e que não poderão
ser confirmadas, desse modo, na ratificação. Nada há que fun­
damente, com poder jurídico de convencimento, a tese de que a
aprovação só se concebe em termos integrais. Bem o explicou
Haroldo Valladão, como consultor jurídico do Itamaraty, em
parecer de 2 de abril de 196242. Accioly, por seu turno, viu como
legítima a recomendação do abandono de certa reserva que o
41. Art. 19, c.
42. BSBDI (1962), v. 35-36, p. 53-64.
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governo fizera ao assinar certo pacto multilateral, expressa pelo
Congresso no decreto legislativo aprobatório43.
Se o tratado disciplina a questão das reservas no que lhe diz
respeito, a nenhuma que seja formulada nos termos dessa disci­
plina pode outro Estado pactuante, em regra, responder com ob­
jeção ou com assentimento. O problema só aflora no silêncio do
texto, quando o autor da reserva, crendo-a, naturalmente, legítima
— porque compatível com a finalidade e objeto do tratado — vê
objetar a seu gesto outro Estado, que entende o contrário. Neste
caso, ao autor da objeção incumbe esclarecer se considera o tra­
tado, como um todo, vigente entre si e o autor da reserva, ou não.
Em caso afirmativo, estatui a Convenção de Viena que somente a
norma objeto da reserva não se aplica nas relações entre ambos.
Por quebrar a uniformidade absoluta do regime jurídico convencional, a re­
serva é tradicionalmente entendida como um mal necessário à prevenção de mal
maior, que seria a marginalização de Estados diversos nos pactos a cujo texto fi­
zessem restrição tópica, tantas vezes mínima, ou inexpressiva na essência. Assim,
a retirada de reservas é gesto não apenas aceito, mas incentivado na cena do direi­
to internacional público. Muitos são os tratados que, facultando reservas, encerram
também norma que prevê e facilita sua retirada.
36. Vícios do consentimento. Por conveniência didática, aqui
cuidamos não só dos fenômenos que, em mais de um ramo do
direito, se denominam vícios do consentimento, mas também
da irregularidade deste quando formalizado em afronta a nor­
mas de direito público interno, tocantes à competência para
consentir.
a) Consentimento viciado pela desobediência ao direito
público interno. Este tema não tem que ver com a impostura ou
com o abuso ou desvio de autoridade praticado por negociadores,
43. Accioly, I, p. 592-593.
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nem com qualquer contexto em que se desentendam certo go­
verno e seus agentes, mas com o ilícito praticado pelo poder
Executivo quando externa, no plano do direito internacional, um
consentimento a que não se encontra constitucionalmente habi­
litado. Convém recordar, de início, que raras são as hipóteses de
irregularidade flagrante. Quando um governo se entende auto­
rizado a pactuar sem consulta ao respectivo parlamento, terá em
seu prol no mínimo um acervo de precedentes ou algum apoio
doutrinário, afora o caso em que espere recolher simplesmente
o benefício da dúvida. Se incontroversa, porém, sua incompe­
tência para o ato internacional já consumado, e se fluente da lei
funda­mental a disciplina da matéria, dificilmente o princípio
pacta sunt servanda servirá para fazer convalidar, na ordem
interna, semelhante afronta ao primado da constituição.
Poucas luzes oferece a respeito a jurisprudência brasileira. Não há notícia de
que se tenha diretamente arguido no Supremo Tribunal Federal a inconstituciona­
lidade de tratado à conta da falta de aprovação parlamentar. Por falta de legitimi­
dade ativa, o Supremo não pôde conhecer de um mandado de segurança impetrado
em 2002 por alguns parlamentares que denunciavam a não submissão ao Congres­
so de um acordo entre o Brasil e os Estados Unidos da América sobre o uso da base
de lançamento de foguetes de Alcântara (MS 23.914). Entretanto, por mais de uma
vez aquela corte, ao garantir no âmbito espacial desta soberania a fiel aplicação de
tratados internacionais, deixou claro que, aprovados pelo Congresso, e depois
promulgados, integram-se eles na ordem jurídica local44.
A Convenção de Viena consagra a essa questão o seu art. 46:
“Disposições de direito interno sobre competência para concluir tratados.
1. Um Estado não poderá invocar o fato de que seu consentimento em obrigar-se
por um tratado foi expresso em violação de uma disposição de seu direito interno
sobre competência para concluir tratados, a não ser que essa violação seja mani­
festa e diga respeito a uma regra de seu direito interno de importância fundamen­
tal. 2. Uma violação será manifesta caso seja objetivamente evidente, para
qualquer Estado que proceder, na matéria, de conformidade com a prática normal
e de boa-fé”.
44. RE 71.154 (RTJ 58/70), entre outros.
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Regra de importância fundamental é, em princípio, a que se exprime na lei
maior de todo Estado que possua constituição escrita. Em parte alguma se pretende­
rá atribuir importância desse nível a regras — expressas em leis ordinárias, resoluções,
ou o que mais seja — pertinentes ao estrito procedimento, como as que têm a ver,
por exemplo, com prazos ou turnos de votação parlamentar. Entende-se manifesta,
por outro lado, a violação dessa regra eminente, quando perceptível ao copactuante
que proceda nos termos do uso comum e da ética. Parece claro, no texto de Viena, o
propósito de reduzir ao mínimo a invocabilidade internacional da afronta ao direito
interno, só deixando que valha tal argumento contra o copactuante, e no sentido de
dar por nulo o vínculo, quando o procedimento daquele faça duvidar, em certa me­
dida, de seu conhecimento rudimentar da prática corrente, ou de sua boa-fé.
b) Erro, dolo, corrupção e coação sobre o negociador. O
erro é a hipótese menos rara na prática. Cuida-se, é óbvio, do
erro de fato. O erro de direito, que não socorre o indivíduo em
direito interno, menos valeria, como ensina Rousseau, aos Es­
tados, presumidamente habilitados a avaliar as consequên­cias
jurídicas de seus próprios atos. E o erro de maior incidência tem
dito respeito a questões cartográficas em tratados de limites. A
coação sobre o negociador é algo de que o passado oferece
exemplos surpreendentes, à vista da estatura hierárquica da ví­
tima: o Papa Pascoal II, a quem Henrique V do Sacro Império
manteve preso por dois meses para forçar a conclusão de uma
concordata, em 1111; e Francisco I de França, cativo de Carlos
V em Madri até que pactuasse, em 14 de junho de 1526, ceden­
do a Borgonha à coroa hispânica.
A Convenção de Viena procura distinguir o nulo do simplesmente anulável,
embora sua linguagem seja por vezes ambígua. Ela dá aos vícios do consentimen­
to uma disciplina onde se vê que a coação sobre o negociador merece tratamento
mais severo que o dolo e a própria corrupção, estes dois fenômenos abrindo — como
o erro — a possibilidade de arguição pelo Estado prejudicado, enquanto, no caso
do primeiro, o texto induz a ideia da nulidade pleno jure.
c) Coação sobre o Estado. Tal como a coação sobre o ne­
gociador, a que se exerce sobre a pessoa jurídica de direito in­
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ternacional importa nulidade absoluta, nos termos do art. 52 da
Convenção de Viena:
“Coação de um Estado pela ameaça ou emprego da força. É nulo um tratado
cuja conclusão foi obtida pela ameaça ou o emprego da força em violação dos
princípios de direito internacional incorporados na Carta das Nações Unidas”.
Mediante coação sobre o Estado celebraram-se, entre outros
pactos: os de 1773 e de 1793 (Áustria-Polônia-Prússia-Rússia),
sobre a partilha do território polonês, ratificados mediante ocupa­
ção militar de Varsóvia e violência contra o parlamento; o de 16
de setembro de 1915 (EUA-Haiti), sobre o controle financeiro do
Haiti pelos Estados Unidos, firmado também num quadro de
ocupação militar; o de março de 1939 (Alemanha-Tchecoslová­
quia), submetendo a segunda à soberania da primeira, firmado
mediante ameaça do bombardeio de Praga. Toda a doutrina de
expressão alemã — incluindo Verdross e Meurer — entendeu
nulo o Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919, imposto à
Alemanha pelos vencedores da primeira grande guerra. Entretan­
to, a crítica que se pode fazer ao chamado “ditado de Versalhes”
é endereçável, por igual fundamento, à generalidade dos tratados
de paz. O cenário pressuposto por semelhantes pactos é o da mesa
em que, finda a guerra, defrontam-se vencedores e vencidos, não
havendo como encontrar nestes últimos a liberdade convencional
de que dispõem os primeiros.
É certo, porém, que a negação da validade dos tratados de paz poderia con­
duzir, por progressiva analogia, também ao repúdio dos “tratados desiguais”, assim
chamados — sobretudo pela extinta escola soviética — os que se firmam entre
Estados de tal maneira distantes na escala do poder, que um deles deveria presumir-se inerme, abúlico e dependente em face do outro. Mas este caminho nos condu­
ziria, se nele coerentemente prosseguíssemos, ao descrédito de um número inava­
liável de tratados do passado e do presente. Nas relações internacionais — como,
de resto, nas relações humanas — todo interesse conducente ao ato convencional
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é fruto de uma necessidade, e, em última análise, de alguma forma de pressão. O
penoso quadro característico da negociação dos tratados de paz é uma consequên­
cia inevitável da guerra, e se a ordenação jurídica da sociedade internacional não
conseguiu ainda evitar esta, não há como prevenir seus efeitos negativos sobre o
ideal do livre consentimento. O que, pois, resulta nulificado pelo dispositivo de
Viena é o pacto obtido por ameaça ou emprego de força, e não mais que isto.
Seção V — ENTRADA EM VIGOR
37. Sistemas. A vigência do tratado pode ser contemporânea do
consentimento: neste caso, o tratado passa a atuar como norma
jurídica no exato momento em que ele se perfaz como ato jurí­
dico convencional. É mais comum, entretanto, que sua vigência
seja diferida por razões de ordem operacional. Já neste caso o
ato jurídico se consuma e algum tempo transcorre antes que a
norma jurídica comece a valer entre as partes, tal qual sucede
na chamada vacatio legis.
a) Vigência contemporânea do consentimento. Na troca de
notas, entendida como método negocial, é corrente que sejam
simultâneos o término da negociação, o consentimento definiti­
vo e a entrada em vigor. O mesmo costuma dar-se nos tratados
bilaterais que, embora lavrados em instrumento único, são con­
cluídos “executivamente”, sem a intervenção formal do chefe
do Estado. Independentemente da questão de saber se haverá ou
não consulta ao parlamento, muitos são os tratados em que,
terminada a negociação, e dado à assinatura apenas o efeito
autenti­catório do texto, passa-se a aguardar o consentimento
definitivo das partes, ficando, porém, estabelecido que, sobre­
vindo este, a vigência do tratado será imediata. Não há, em tais
casos, previsão de vacatio. O consentimento, por sua vez, toma­
rá a forma da ratificação ou de qualquer variante desta, como a
mútua notificação ou aviso.
A desigualdade entre os requisitos e circunstâncias tocantes à determinação
do consentimento de uma e outra das partes faz com que muitas vezes uma delas
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exteriorize, já quando da assinatura, sua vontade definitiva, devendo perfazer-se o
vínculo convencional quando a outra dê sua palavra confirmatória, e vigendo des­
de esse momento o tratado. Esse quadro é particularmente comum nos pactos entre
Estado e organização internacional.
Nos tratados coletivos, raramente a entrada em vigor é contemporânea da
consumação do vínculo. Há exemplos, contudo, e sempre encontráveis no domínio
dos chamados tratados multilaterais restritos — aqueles em que limitado o núme­
ro de pactuantes, e fixado em sua unanimidade o quorum de entrada em vigor.
b) Vigência diferida. Nestes outros casos, perfeito que se
encontre o vínculo convencional pelo consentimento de ambas
as partes — ou de quantas componham o quorum previsto, nos
pactos multilaterais —, certo prazo de acomodação flui antes da
entrada em vigor. A vacatio representa real utilidade: ela permi­
te que o tratado — mediante promulgação ou ato análogo — seja
dado a conhecer no interior das nações pactuantes, e possa viger,
também internamente, no exato momento em que começa sua
vigência internacional. Quando isto não ocorre, há sempre um
período, mais ou menos longo, em que, obrigando já no plano
do direito das gentes, o tratado é ainda desconhecido pela ordem
jurídica — e assim por administradores e juízes, e pelas pesso­
as em geral — de um ou mais Estados contratantes. Há em tal
contexto ambiguidade e, sobretudo, risco, quando o tratado seja
daqueles invocáveis, ratione materiae, nas relações jurídicas
entre particulares, ou entre estes e o próprio Estado. Não é ocio­
so, pois, o fluxo do prazo de acomodação, surpreendendo o fato
de que tantas e tantas vezes não se lhe dê o uso para o qual foi
concebido na prática internacional.
Esse prazo costuma ser de trinta dias, mas às vezes é acentuadamente mais
longo — como na Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar (l982),
onde foi fixado em doze meses.
38. Registro e publicidade. A história diplomática do Império
do Brasil, como a das demais nações na época, é permeada por
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cláusulas secretas no acervo convencional, quando não por
tratados secretos na sua inteireza. Com a era das organizações
internacionais sobrevém, em 1919, a proibição desse gênero de
diplomacia. Mandava o Pacto da Sociedade das Nações que todo
compromisso internacional que um Estado-membro viesse a
concluir fosse por ele imediatamente registrado na secretaria da
organização, que o faria publicar. E acrescentava: “Nenhum
desses tratados ou compromissos internacionais será obrigatório
antes de ter sido registrado”45.
Mais que a abolição da diplomacia secreta, o sistema de registro e publici­
dade inaugurado pela Sociedade das Nações trazia consigo o mérito de dar a
expressão escrita do direito das gentes ao conhecimento geral, como sucede com
o acervo legislativo de todo Estado. Pretendia-se, pois, que o direito internacional
escrito passasse a ser tão acessível — a qualquer interessado — quanto as leis
nacionais. Desse modo, tratados de comércio ou de aliança militar entre os Esta­
dos X e Y não seriam menos conhecidos do governo de W, ou dos pesquisadores
universitários de Z, que dos próprios pactuantes. Sobre os tratados recairia, com
o tempo, a presunção de notoriedade que, numa ordem jurídica estatal, vale para
todo texto legislativo.
a) O sistema da Sociedade das Nações. A obrigação de
registrar pesava sobre todo Estado membro da SDN, ainda quan­
do pactuasse com Estados estranhos à organização. A Secretaria
aceitou, não obstante, o registro proposto em casos avulsos por
Estados não membros, como a Alemanha e os Estados Unidos
da América. Pouquíssimos tratados bilaterais tendo como parte
uma organização internacional figuram na coleção da SDN.
Mesmo os acordos de sede entre a Sociedade e a Confederação
Suíça, e entre a Corte Permanente de Justiça Internacional e os
Países Baixos, não fizeram objeto de registro e, por isso, não
foram publicados na coleção.
45. Pacto da Sociedade das Nações (28 de abril de 1919), art. 18.
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Compreendendo os vinte e cinco anos de sua existência legal, a Sociedade
das Nações publicou duzentos e cinco volumes, com um total de quatro mil, oito­
centos e trinta e quatro tratados da mais variada dimensão e natureza.
O art. 18 do Pacto da SDN não pretendeu alcançar senão os
tratados que se concluíssem a partir de quando fundada a Socie­
dade. A omissão, no dizer do mesmo artigo, tornava não obri­
gatório o compromisso. Essa linguagem causou algum debate,
afastando-se porém, desde logo, a ideia da nulidade do compro­
misso: era inconcebível o sacrifício da norma pacta sunt servan­
da como instrumento de sanção da inobservância de regra menor.
Prevaleceu em doutrina, e na escassa jurisprudência pertinente,
a tese da inoponibilidade relativa do tratado não registrado:
seria ele válido entre as partes, além de objetivamente sadio no
que concerne a terceiros em geral, ou perante órgãos de arbitra­
gem e outros foros. Não poderia, contudo, ser invocado ante os
órgãos da SDN ou ante a Corte da Haia.
b) O sistema das Nações Unidas. Quanto à consequência
da omissão de registro, a Carta da ONU viria a ser mais explí­
cita que o Pacto de sua antecessora. Dispõe o art. 102 do texto
de São Francisco:
“1. Todo tratado e todo acordo internacional, concluídos por qualquer mem­
bro das Nações Unidas depois da entrada em vigor da presente Carta, deverão,
dentro do mais breve prazo possível, ser registrados e publicados pela Secretaria.
2. Nenhuma parte em qualquer tratado ou acordo internacional que não tenha sido
registrado de conformidade com as disposições do parágrafo 1 deste artigo poderá
invocar tal tratado ou acordo perante qualquer órgão das Nações Unidas”.
A exemplo do secretário-geral da SDN, o das Nações Unidas
se abstém de todo desempenho censório, observando, não obs­
tante, o regulamento do art. 102, adotado pela Assembleia Geral
em 1946 e emendado em ocasiões ulteriores. Esse regulamento,
que amplia com desenvoltura a dimensão normativa do artigo em
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causa, estatui o registro ex officio — pelo secretário-geral — do
tratado em que a ONU ou qualquer de suas instituições especia­
lizadas figure como parte ou como depositário. Diz também que
a obrigação de registrar desaparece para as demais partes quando
o tenha feito uma delas; e veda o registro antecipado de todo
compromisso que não haja ainda entrado em vigor.
Ao final de 2004 a coletânea das Nações Unidas ultrapassa 2.100 volumes e
o número de tratados ali publicados chega perto de 50.000. Sobrevive de todo modo
no espírito dos estudiosos a dúvida quanto à real abolição da diplomacia secreta,
quanto ao êxito da intenção que conduziu originalmente os redatores do Pacto da
Sociedade das Nações, em 1919, a inovar o direito das gentes com a disciplina do
registro e da publicidade. É certo que não são poucos os casos contemporâneos de
omissão de registro: devem-se eles, porém, não à burla do dispositivo em exame,
mas à pretendida insignificância — muitas vezes à natureza ancilar — de bom
número de avenças internacionais, no juízo dos Estados pactuantes.
É possível que ainda neste momento concluam-se acordos internacionais
secretos, no plano bilateral, e sob o molde “executivo” — já que o envolvimento
congressional não parece conviver bem com sigilos antijurídicos. Mas é certíssimo
que, em tais casos, a exemplo do que ocorre com o gentlemen’s agreement, o tra­
tado secreto tem sua operatividade condicionada à permanência dos dignitários
celebrantes no poder. E, por óbvio, à honradez que se lhes possa creditar, abstraída
a lembrança de que afrontaram, com a tratativa secreta, uma norma de direito in­
ternacional expressa e notória, e provavelmente também alguns dispositivos de
relevo no direito público interno de cada um.
c) Registros regionais e especializados. Com o sistema de
registro e publicidade das Nações Unidas, de irrestrita amplitu­
de, coexistem sistemas menores, ora em organizações regionais
que pretendem registrar todos os compromissos que envolvem
seus membros, ora em organizações especializadas, onde se vê
dar a registro determinados acordos, ratione materiae.
O Pacto da Liga dos Estados Árabes (1945) determinou o registro na Secre­
taria da organização, no Cairo, de todos os compromissos — incluindo-se os do
passado, desde que ainda vigentes — de seus Estados-membros. A OEA mantém
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um perfeito sistema de registro e divulgação dos tratados interamericanos, não
exigindo, porém, que seus membros tomem qualquer providência em tal sentido.
No âmbito dos registros especializados em razão da matéria destacam-se o da OIT,
o da OACI e o da AIEA.
39. Incorporação ao direito interno. No estágio presente das
relações internacionais, é inconcebível que uma norma jurídica
se imponha ao Estado à sua revelia. Para todo Estado, o direito
das gentes é o acervo normativo que, no plano internacional,
tenha feito objeto de seu consentimento, sob qualquer forma.
Desse modo, sem prejuízo de sua congênita e ina­fastável inter­
nacionalidade, deve o tratado compor, desde quando vigente, a
ordem jurídica nacional de cada Estado-parte. Assim poderão
cumpri-lo os particulares, se for o caso; ou, nas mais das vezes,
os governantes apenas, mas sob ciência e vigilância daqueles, e
de seus representantes. Assim poderão garantir-lhe vigência
juízes e tribunais, qual fazem em relação aos diplomas norma­
tivos de produção interna.
O direito internacional é indiferente ao método eleito pelo Estado para pro­
mover a recepção da norma convencional por seu ordenamento jurídico. Importa-lhe tão só que o tratado seja, de boa-fé, cumprido pelas partes. Nos Países Baixos,
entre 1906 e 1953, ignorava-se conscientemente qualquer prática expressiva do
fenômeno da recepção; atitude que, ao gosto dos pensadores monistas, retratava a
operatividade da norma internacional por sua própria e originária virtude, sem o
intermédio de qualquer diploma interno de incorporação. No Reino Unido nada se
faz, até hoje, que corresponda à promulgação — por lei, decreto, ou o que mais
seja — dos tratados internacionais.
40. Promulgação e publicação de tratados no Brasil. O ordena­
mento jurídico, nesta república, é integralmente ostensivo. Tudo
quanto o compõe — resulte de produção legislativa inter­nacional
ou doméstica — presume publicidade oficial e vestibular. Um
tratado regularmente concluído depende dessa publicidade para
integrar o acervo normativo nacional, habilitando-se ao cumpri­
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mento por particulares e governantes, e à garantia de vigência
pelo Judiciário. Não faz sentido, no Brasil, a ideia de que a pu­
blicidade seja dispensável quando o fiel cumprimento do pacto
internacional possa ficar a cargo de limitado número de agentes
do poder público: mais ainda que a do particular, a conduta do
governante e do servidor do Estado pressupõe base jurídica
apurável pelo sistema de controle recíproco entre poderes, e,
assim, jamais reservada ao conhecimento exclusivo dos que ali
pretendem fazer assentar a legitimidade de seu procedimento.
No Brasil se promulgam por decreto do presidente da República todos os
tratados que tenham feito objeto de aprovação congressional antes da ratificação
ou adesão. Publicam-se apenas, no Diário Oficial da União, os que hajam prescin­
dido do assentimento parlamentar e da intervenção confirmatória do chefe de Es­
tado. No primeiro caso, o decreto de promulgação não constitui reclamo constitu­
cional: ele é produto de uma praxe tão antiga quanto a Independência e os primei­
ros exercícios convencionais do Império. Cuida-se de um decreto, unicamente
porque os atos do chefe de Estado costumam ter esse nome. Por nada mais. Vale
aquele como ato de publicidade da existência do tratado, norma jurídica de vigên­
cia atual ou iminente. Publica-os, pois, o órgão oficial, para que o tratado — cujo
texto completo vai em anexo — se introduza na ordem legal, e opere desde o mo­
mento próprio. A simples publicação no Diário Oficial, autorizada pelo ministro
das Relações Exteriores e efetivada pela Divisão de Atos Internacionais do Itama­
raty, garante a introdução no ordenamento jurídico nacional dos acordos celebrados
no molde “executivo” — sem manifestação tópica do Congresso ou intervenção
formal, a qualquer título, do presidente da República.
Seção VI — O TRATADO EM VIGOR
41. Efeitos sobre as partes. Desde o momento próprio — ide­
almente, aquele em que coincidam a entrada em vigor no plano
internacional e idêntico fenômeno nas ordens jurídicas interiores
às partes —, o tratado passa a integrar cada uma dessas ordens.
Terá ele a estatura hierárquica de uma lei nacional, ou mais que
isto, conforme o Estado de que se cuide, qual será visto mais
tarde. Importa que se retenha desde logo a noção de que o tra­
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tado, embora produzido em foro diverso das fontes legis­lativas
domésticas, não se distingue, enquanto norma jurídica, dos di­
plomas legais de produção interna. Custa-se a entender, por isso,
a tão repetida dúvida sobre produzirem, ou não, os tratados,
efeitos sobre os indivíduos e sobre as pessoas jurídicas de direi­
to privado. Sua idoneidade, para tanto, não é menor que a das
leis internas, tudo se resumindo em buscar no teor de cada um
daqueles, como de cada uma destas, o exato perfil de seus des­
tinatários. Uma lei que mande conceder certa vantagem retribu­
tiva aos fiscais alfandegários do porto de Santos nenhum efeito
produz sobre os indivíduos que se consagram, em Minas Gerais,
à agricultura e à pecuária. Um tratado do molde das Con­venções
de Genebra sobre cheques e títulos de crédito é de ser executado,
no dia a dia, pelas pessoas em geral, em pouco ou nada se envol­
vendo o poder público no domínio de sua execução.
Observa Rousseau que o poder Executivo, responsável que é pelas comu­
nicações exteriores do Estado, e, destacadamente, pelo ato internacional da rati­
ficação — ou por quanto lhe corresponda no sentido de comprometer o país —,
tem como primeiro dever, ante a vigência do tratado, cuidar de sua introdução na
ordem jurídica local, seja por meio da promulgação, seja mediante simples pu­
blicidade46. Sem essa medida vestibular — que, sob a ótica internacional, já é
parte da fiel execução do pacto —, não chegaria ele ao conhecimento de seus des­
tinatários, trate-se de particulares ou, o que é mais comum, de integrantes do
complexo da administração pública. Nem teriam como garantir-lhe vigência os
juízes e tribunais. Como no caso dos textos normativos de produção local, também
no caso dos tratados o governo é o executor por excelência, ou o controlador da
execução pelos particulares. O parlamento só excepcionalmente se envolve nesse
desempenho executivo47. A função do Judiciário, por seu turno, tem feitio próprio:
não lhe incumbe executar tratados, senão garantir, ante o caso concreto, que não
seja frustrado — pela administração governamental, pelos indivíduos — seu fiel
cumprimento.
46. Rousseau, p. 57-58.
47. Rousseau, p. 59.
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LEITURA
Parecer do autor sobre matéria em curso no foro brasileiro, em abril de 2008:
“Cooperação judiciária internacional. Documentos fornecidos pelas
autoridades da Confederação Helvética às autoridades brasileiras, após que­
bra de sigilo bancário, e com expressa referência à ‘reserva de especialidade’.
Ilicitude do uso de documentos assim obtidos fora do estrito âmbito legitima­
mente delimitado pelo Estado suíço, e aceito pelo Estado brasileiro. Coope­
ração que exclui, mesmo no domínio penal, infrações de caráter político ou
de caráter fiscal, além de excluir toda espécie de processo civil, em sentido
amplo. Correção absoluta do procedimento — no contexto dos fatos em exame
— do Ministério da Justiça e do Ministério Público Federal. Exemplaridade
do acórdão de 21 de junho de 2006, com que o Tribunal Regional Federal de
São Paulo decidiu sobre essa exata questão jurídica, a pedido do próprio
Ministério Público, e determinou que se desentranhassem documentos dos
autos de processo que, embora penal, não era aquele a que tais peças haviam
sido destinadas no quadro da cooperação judiciária Brasil-Suíça.
Determinação, naquele acórdão, do alcance da reserva de especialidade.
Os compromissos internacionais da República vinculam a todos dentro da ordem
jurídica republicana, não apenas ao governo federal — embora seja este o
responsável pela dinâmica das relações exteriores. Impropriedade da ideia de
que tudo quanto rege a liturgia do Poder Judiciário são as normas internas de
processo, e de que o Direito Internacional não faz parte da ordem jurídica.
[...] O Estado brasileiro, pela voz de seu governo, solicitou ao Estado
suíço cooperação jurídica em matéria penal, para que este fornecesse àquele
documentos sigilosos, mediante quebra de sigilo bancário de determinadas
pessoas físicas de nacionalidade brasileira, e no interesse da Justiça local. A
franquia dos documentos por parte da Confederação Helvética deu-se median­
te estritas condições, destacadamente a ‘reserva de especialidade’, devendo o
acervo documental ser utilizado para apuração dos delitos referidos de modo
expresso no termo de cooperação, que diz respeito exclusivo à matéria penal.
A cooperação, intermediada pelo Departamento de Recuperação de Ativos e
Cooperação Jurídica Internacional — DRCI, órgão da Secretaria Nacional de
Justiça, do Ministério da Justiça, materializou-se por meio das Notas n. [...] de
2002 e [...] de 2003.
Abstraindo os termos limitativos do escopo da cooperação internacional,
o Ministério Público do Estado de São Paulo obteve cópia dos referidos docu­
mentos e os juntou como prova em três ações de natureza civil [...], todas em
trâmite perante a [...] Vara da Fazenda Pública de São Paulo. Diante da irregu­
laridade desse procedimento, os réus naquelas ações pediram o desentranha­
mento das peças obtidas da Confederação. O pedido foi negado sob o argu­
mento de que ‘toda a documentação obtida por este juízo [...] teve por origem
requerimentos próprios, regulares, lícitos e sujeitos ao duplo grau de jurisdição’.
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Entretanto o argumento do douto juízo não se confirma, visto que não há nos
autos nada que comprove que as informações anexadas foram remetidas dire­
tamente, pelo Estado suíço, ao foro estadual processante, ou a pedido deste. A
propósito, o Ministério da Justiça brasileiro por duas vezes alertou o juízo
estadual sobre o princípio da especialidade e demais exigências albergadas pela
cooperação internacional [...].
A cooperação judiciária internacional dá-se por acordo, ora mediante
tratado em sentido estrito, ora mediante troca de notas, entre dois ou mais
Estados soberanos, e no justo exercício de sua soberania. Esse ato jurídico
internacional perfeito reflete a vontade que têm as nações de cooperar no do­
mínio da repressão penal, nos termos e sob as condições acordadas a cada caso.
Na presente espécie, a cooperação judiciária internacional entre o Brasil e a
Suíça deu-se mediante troca de notas, em compromisso antecipatório do trata­
do bilateral que viria a ser assinado mais tarde pelos dois países. Esse tratado,
ressalte-se, já foi firmado entre Brasil e Suíça, confirmando todos os termos e
condições da cooperação judiciária internacional preexistente.
Na cooperação judiciária negociada mediante troca de notas, tal como
naquela que resulta de tratado, não há qualquer imposição ou submissão de um
Estado a outro, mas um acordo de vontades, discutido, construído e assinado
pelas partes, cujo descumprimento caracteriza ilícito internacional. É certo,
desse modo, que os efeitos jurídicos de um compromisso de cooperação inter­
nacional são idênticos aos efeitos de um tratado em sentido estrito, não se lhe
podendo pretender atribuir menor valor pelo fato de o método negocial ter sido
o da troca de notas, por contraste com a metodologia do tratado bilateral.
Consta do próprio portal eletrônico do Ministério da Justiça do Brasil que a
cooperação judiciária internacional consiste na ‘interação entre os Estados,
com o objetivo de dar eficácia extraterritorial às medidas processuais de outro
Estado’. Sua natureza é, assim, a de um acordo internacional, podendo ser
bilateral como no presente caso, ou coletivo.
Esse acordo pode dar-se — e é usual que se dê — por troca de notas de
governo em que o proponente solicita auxílio jurídico, com garantia de reci­
procidade, e com aceitação das condições impostas pelo país ao qual pediu
ajuda. A condição imposta no presente caso foi justamente o respeito à reserva
de especialidade, prevista na legislação suíça que dispõe sobre a cooperação
internacional. Essa reserva inibe a utilização dos documentos em qualquer ação
que não tenha caráter penal e, ainda, na própria ação penal que se revista de
algum caráter político, militar ou fiscal. A condição acordada pelas partes não
vincula unicamente o governo: vincula a República Federativa do Brasil, e, por
consequência, seus três poderes.
[...] Vigente, o compromisso passa a integrar a ordem jurídica brasileira,
com a mesma estatura hierárquica da lei interna de âmbito nacional. No Brasil,
desde 1977, quando do julgamento do Recurso Extraordinário 80.004 pelo
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Supremo Tribunal Federal, ficou assentada a tese da paridade entre o tratado e
a lei. Na hipótese de evidente conflito entre normas de uma e outra dessas
categorias, a Justiça há de fazer prevalecer a mais recente — embora isto não
signifique, quando o sacrifício for do tratado, nem que este se deva entender
revogado pela lei doméstica (que não tem autoridade para revogar algo envol­
vente de outras soberanias que não a nossa), nem que possamos evitar as
consequências do ilícito internacional que, pelo descumprimento do tratado, o
Brasil terá cometido. De todo modo, o princípio da paridade é excepcionado
entre nós em matéria tributária, por força do art. 98 do CTN, e no domínio dos
direitos e garantias, por força dos parágrafos do artigo 5º da Constituição.
Nada obstante, o Supremo Tribunal Federal de longa data tem reconhe­
cido que a hipótese de concorrência entre tratado e lei, ainda que mais recente
esta última, resolve-se em favor da aplicação do tratado sempre que este possa
representar, ante certo quadro de fato, a lex specialis, por contraste com a
norma geral estampada na lei interna. Esse preceito pretoriano, fundado em
um dos mais elementares princípios da lógica jurídica, vale sempre que o tra­
tado governe nosso procedimento em relação a determinada soberania ou
conjunto de soberanias estrangeiras com que tenha o Brasil pactuado sobre
matéria disciplinada de modo diverso no contexto das normas gerais — e in­
fraconstitucionais — de produção interna. Assim, tendo a estatura de lei fede­
ral interna, o compromisso internacional obriga a todos no quadro da ordem
jurídica republicana, quaisquer que sejam suas áreas de atuação.
[...] A violação de um compromisso internacional dá direito à outra par­
te de entendê-lo extinto, ou de suspender também ela seu fiel cumprimento, no
todo ou em parte. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969)
propõe essa disciplina no artigo 60, esclarecendo que por violação substancial
deve-se entender tanto o repúdio puro e simples do compromisso quanto a
afronta a um dispositivo essencial para a consecução de seu objetivo e finali­
dade. Se o Estado brasileiro, por qualquer de suas instituições ou órgãos,
violasse acordo internacional livremente negociado, fazendo uso desautoriza­
do de documentos que em confiança foram entregues à autoridade brasileira
para um propósito bem determinado, não só incorreria em ilícito internacional,
criando para a outra parte o direito a uma reparação, como colocaria em risco
toda a sua credibilidade perante os demais Estados. Nenhum membro da so­
ciedade internacional se dispõe, com efeito, a manter relações com aquele que
celebra acordos, para ver satisfeito seu interesse, e em seguida ignora o que
livremente negociou e garantiu. Não há escusa para o ato internacional ilícito.
Em particular, não há escusa que se possa fundar na independência harmônica
entre os poderes do Estado. As obrigações internacionais pesam sobre todos,
não somente sobre o Poder Executivo.
O Ministério Público Federal, em processo similar, juntou documentos
fornecidos pelo Estado suíço sob reserva de especialidade, ignorando os termos
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avençados na cooperação bilateral. Ao ter ciência do fato, o governo da Con­
federação notificou o Ministério da Justiça. Em vista disso, para evitar o ilíci­
to e preservar a qualidade da relação bilateral, o Procurador-Geral da Repúbli­
ca assim se manifestou perante as autoridades suíças:
‘[...] Como Vossa Excelência pode verificar em minha carta anterior, o
Ministério Público Federal brasileiro partiu da suposição de que o uso dos
documentos para provar a remessa de divisas não feria o princípio da especia­
lidade. Infelizmente não nos era claro que nossa interpretação não se adequava
à sistemática legal suíça. Fazemos, todavia, questão de manter a cooperação
com as autoridades suíças sem qualquer atrito e, por isso, lamentamos profun­
damente o mal-entendido. Iremos, por consequência, trabalhar pela desconsi­
deração desses documentos no processo judicial’.
A toda evidência o Estado brasileiro não quer incidir em ilícitos ou trair
o combinado com o Estado suíço. Não pode prevalecer, portanto, a recusa do
douto juízo da 4ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo a dar cumprimento ao
acordo internacional. Vale lembrar que o ilícito em que o Estado incorra pela
ação de seu Poder Judiciário, resultante do desprezo da norma expressa no
compromisso internacional, implica denegação de justiça e põe em causa a
responsabilidade do Estado.
A questão não é nova ante o Judiciário pátrio. Demanda virtualmente
idêntica já foi objeto de apreciação pela Justiça federal, no julgamento do
Mandado de Segurança n. [...], que tramitou perante o Tribunal Regional Fe­
deral da 3ª Região. Ali, o próprio Ministério Público pleiteou mandado de
segurança para que se desentranhassem, dos autos da ação penal n. [...], docu­
mentos obtidos por meio da cooperação internacional entre o Brasil e a Suíça,
sob a cláusula da reserva de especialidade, e que se encontravam por erro nos
autos. Os réus na ação penal notificaram o governo suíço do descumprimento
da cláusula de especialidade. O governo suíço pediu explicações ao governo
brasileiro, que disse haver interpretado de forma errônea as cláusulas da coo­
peração internacional, asseverando, contudo, que não pretendia de forma algu­
ma incorrer em ilícito ou desgastar suas relações com a Suíça, e comprome­
tendo-se a ‘trabalhar pela desconsideração desses documentos’ na ação penal
de que se cuidava. O Ministério Publico Federal requereu então o imediato
desentranhamento dos documentos acostados à denúncia, e teve seu pedido
rechaçado pelo juízo de primeiro grau, sob o argumento de que esse pedido
representaria a desistência da ação. Diante disso, o Ministério Público ajuizou
mandado de segurança, distribuído à relatoria da Desembargadora Federal
Suzana Camargo, que concedeu a liminar, e afinal a própria segurança — em
voto de absoluto rigor científico — quando da prolação do acórdão. No men­
cionado voto valem destaque as passagens seguintes:
‘[...] No caso em tela, o que se tem presente é justamente atos de coope­
ração judiciária, com base na reciprocidade, uma vez que os documentos foram
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obtidos por meio de cooperação internacional com o Estado suíço, mediante
pedidos de auxílio jurídico. Referida cooperação jurídica está regida pelo
princípio da reciprocidade, o qual determina que o País requerente deverá se
submeter às condições impostas pelo País requerido. E, no caso da cooperação
ora analisada, temos que a condição imposta foi justamente o respeito à reser­
va de especialidade, prevista na Lei Federal sobre Cooperação Internacional
Suíça, plenamente aplicável ao caso, e que limita, portanto, a utilização dos
documentos, em especial, vedando sua utilização em processos de natureza
fiscal. [...] E não há como entender de outra maneira, sendo hialina a impossi­
bilidade da utilização de tais documentos na presente ação penal, já que fere
condição acordada pelo Estado brasileiro, e que, desta forma, vincula o Poder
Judiciário. Isto porque as obrigações internacionais tomadas por um Estado
atingem todos que o compõem, não podendo o juiz, ao argumento de não ser
órgão da diplomacia, se esquivar de tal ônus’.
Como reconhecido pelo Tribunal Regional Federal de São Paulo, o do­
cumento que se tenha obtido por via indireta e sem autorização expressa e
prévia do governo suíço para sua utilização em caso específico há de ser des­
considerado e desentranhado dos autos, sob pena de ilícito internacional e do
consequente comprometimento da responsabilidade internacional da Repúbli­
ca perante a Confederação Suíça”.
42. Efeitos sobre terceiros. Tratados há que, por criarem ou
modificarem situações jurídicas objetivas, produzem sobre toda
a comunidade internacional o mero efeito da exortação ao reco­
nhecimento. Outros, expressivamente, repercutem sobre tercei­
ros não como normas jurídicas, mas como fatos. Menos comuns
são as hipóteses em que o tratado realmente opera como norma
sobre terceiros determinados, quer no sentido de conferir-lhes
direitos, quer no sentido de obrigá-los.
a) Efeito difuso: as situações jurídicas objetivas. Se um
acordo de permuta territorial entre os Estados A e B modifica o
curso da linha limítrofe que os separa, esta nova situação jurí­
dica objetiva se impõe, indiscriminadamente, aos restantes Es­
tados, ainda que para o só efeito de se inteirarem do que vem a
ser, desse momento em diante, a correta cartografia da região.
De modo também difuso, porém menos abstrato — em razão
dos interesses que suscita —, opera sobre terceiros em geral o
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tratado com que W e Z, Estados condôminos de águas interiores
fluviais ou lacustres, entendem de abri-las à livre navegação
civil de todas as bandeiras. Efeitos difusos de tal gênero, pode
produzi-los sobre a inteira comunidade das nações até mesmo
um ato unilateral legítimo. Por mais forte razão, não há como
recusar aos tratados semelhante virtude.
Lembrando, porém, que no direito privado se encontra a origem da ideia das
situações objetivas oponíveis a terceiros, Reuter adverte que, naquela ordem, essa
oponibilidade é absoluta porque o contrato gerador de tal situação é verificado e
garantido por uma autoridade comum, a do Estado48. O quadro é diverso na ordem
internacional, não centralizada, onde a soberania dos atores permite a cada um
deles o eventual não reconhecimento da situação que se pretende jurídica e objeti­
va. Afinal, a mais notável dentre as características da soberania do Estado é a
prerrogativa de negar ou pôr em dúvida a estatalidade de seus pares, sem que qual­
quer poder supranacional lhe imponha, a respeito, uma definição irrecusável.
b) Efeito aparente: a cláusula de nação mais favorecida.
Este é o caso em que determinado terceiro sofre consequências
diretas de um tratado — geralmente bilateral — por força do
disposto em tratado anterior, que o vincule a uma das partes. Tal
perspectiva não se esgota no domínio da cláusula de nação mais
favorecida, cuja habitual evocação decorre de seu valor didático,
a título de exemplo.
Os Estados A e B celebram em 1975 um tratado de comércio em que se con­
cedem favores mútuos, cada um deles prometendo gravar os produtos originários
do outro com uma alíquota privilegiada do imposto de importação. Fica estabele­
cido que, se no futuro um deles vier a tributar com alíquota ainda mais baixa os
produtos de outra nação qualquer, o copactuante de agora terá direito imediato a
igual benefício. Isto é, em linhas rudimentares, a cláusula de nação mais favoreci­
da. Em 1980, B e C concluem tratado de igual gênero, cujo teor permite saber que
48. Paul Reuter, Introduction au droit des traités, Paris, Armand Colin, 1972, p. 113-114.
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os produtos de C terão, quando importados por B, tratamento tarifário mais brando
que o garantido, cinco anos antes, aos produtos de A. Diz-se então que este último,
com direitos de nação mais favorecida, recolhe diretamente os efeitos benéficos do
tratado B-C, em que ele próprio não é parte. Recolhe-os, porém, pela virtude da­
quele tratado anterior, em que se inscrevera a cláusula. Resulta claro, assim, que o
pacto ulterior não produz efeito sobre terceiro como norma jurídica, mas como
simples fato. Significando a concessão de favor maior a outra potência, este tratado
opera como o fato-condição antes previsto no acordo que abrigou a cláusula de
nação mais favorecida; sendo esta última, pois, a norma jurídica que efetivamente
garante benefício ao suposto terceiro Estado — na realidade um terceiro em relação
ao tratado-fato, mas uma parte no tratado-norma.
c) Previsão convencional de direitos para terceiros. A Con­
venção de Viena estipula, no art. 36, que mesmo a criação de
direitos para um terceiro reclama o consentimento deste, mas
lembra que o silêncio faz presumir aquiescência. O dispositivo,
deste modo, compreende desde a estipulação em favor de outrem
— inspirada no direito privado e compatível com o direito das
gentes — até a abertura dos tratados multilaterais à adesão.
Esta abertura é, sem dúvida, a criação, para terceiros, do direito de aderir ao
pacto, cujo exercício os retira daquela condição para transformá-los em partes. E
o horizonte numérico dos terceiros varia desde a totalidade dos Estados existentes
— caso das grandes convenções sobre comunicações, direito humanitário, e outros
temas — até a estrita singularidade — caso da Carta da ODECA, que esteve,
desde sua entrada em vigor em 1951, aberta à adesão da república do Panamá. Em
todos esses casos, o efeito jurídico sobre terceiros consiste na realidade da prer­
rogativa que se lhes abre, e independe de que efetivamente exercitem o direito
conferido.
d) Previsão convencional de obrigações para terceiros. O
sistema de garantia. Se se pretende que um Estado resulte obri­
gado por um acordo internacional de que não é parte, está natu­
ralmente pressuposto o seu consentimento, em molde mais se­
guro que o da hipótese precedente. Da Convenção de Viena:
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“Art. 35. Tratados que criam obrigações para terceiros Estados. Uma obriga­
ção surge para um terceiro Estado, de uma disposição de um tratado, se as partes
no tratado têm a intenção de criar a obrigação por meio dessa disposição, e o ter­
ceiro Estado aceita expressamente por escrito essa obrigação”.
Parece árduo conceber em abstrato semelhante quadro. Se
o consentimento que aí se impõe é expresso e escrito, não se
definiria melhor o suposto terceiro como uma parte no tratado,
distinta das demais por motivo puramente procedimental? O
exemplo tirado do sistema de garantia ilustra, entretanto, a si­
tuação a que se refere o dispositivo de Viena. E há outros exem­
plos aventáveis. Quando, no desfecho de uma negociação cole­
tiva, certo Estado aceita expressamente o encargo de depositário,
e por qualquer motivo acaba não ratificando, ele próprio, o tra­
tado em causa, vê-lo-emos na exata condição de terceiro obri­
gado, prevista pelo art. 35.
A Convenção de Viena não menciona o sistema de garantia, limitando-se, em
matéria de obrigação para terceiro, à norma genérica do art. 35. Aquele sistema
fora precocemente descrito na Convenção da Havana sobre tratados (1928), cujo
art. 13 dispõe:
“A execução do tratado pode, por cláusula expressa ou em virtude de convê­
nio especial, ser posta, no todo ou em parte, sob a garantia de um ou mais Estados.
O Estado-garante não poderá intervir na execução do tratado, senão em virtude de
requerimento de uma das partes interessadas e quando se realizarem as condições
sob as quais foi estipulada a intervenção, e ao fazê-lo, só lhe será lícito empregar
meios autorizados pelo direito internacional e sem outras exigências de maior al­
cance do que as do próprio Estado garantido”.
A qualidade do Estado-garante vem a ser, justamente, a de um terceiro para
quem o tratado cria obrigações, que ele expressamente aceita, preservando, no
entanto, sua perfeita distinção dos Estados-partes. Tal a situação de Argentina,
Brasil, Chile e Estados Unidos no tratado bilateral que Equador e Peru firmaram
no Rio de Janeiro, em 1942, a propósito de suas pendências territoriais.
43. Duração. Tratados de vigência estática, qual o de compra e
venda de território ou fixação de limites, celebram-se para viger em
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perpetuidade. Os restantes, de vigência dinâmica, perfazem a gran­
de maioria numérica, e em geral dispõem sobre sua própria duração.
Quando não o fazem, isso indica que o tratado vigerá por tempo
indeterminado, ressalvada ao conjunto das partes a perspectiva da
ab-rogação, e a cada uma delas, em princípio, a perspectiva da
denúncia. Muitos são, porém, os acordos cuja vigência por tempo
indeterminado se afirma expressamente no texto.
A fixação de um prazo certo de vigência significa normal­
mente que, até então, o tratado não pode ser denunciado por uma
das partes. Na chegada do termo abre-se-lhes ocasião de preser­
var o compromisso — seja até novo termo, seja, desta vez, por
prazo indeterminado — ou de considerá-lo extinto. O ânimo
terminativo ora exige voz expressa, ora se infere do silêncio das
partes.
De modo geral, as convenções internacionais do trabalho comprometem cada
Estado ratificante por dez anos contados da entrada em vigor, ao longo dos quais se
proíbe a denúncia. Esta é possível no termo do prazo, mediante comunicação escri­
ta à OIT. Na falta de comunicação entende-se que o Estado-parte deseja conservar
essa qualidade por novo e igual período, renovando-se o ciclo repetidamente.
44. Ingresso mediante adesão. A adesão é uma forma de ex­
pressão definitiva do consentimento do Estado em relação ao
tratado internacional. Sua natureza jurídica não difere daquela
da ratificação: também aqui o que temos é manifestação firme
da vontade de ingressar no domínio jurídico do tratado. O ade­
rente é, em princípio, um Estado que não negociou nem assinou
o pacto — e que assim não pode ratificá-lo —, mas que, tomado
de interesse por ele, decide tornar-se parte, havendo-se antes
certificado da possibilidade do ingresso por adesão.
Em casos não exatamente comuns, o aderente é um Estado que negociou e firmou
o pacto, mas que, tendo perdido o prazo para ratificá-lo, vale-se da oportunidade
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aberta aos não signatários para tornar-se parte mediante adesão. Tal foi o que suce­
deu com o Brasil no caso das Leis uniformes de Genebra sobre títulos de crédito.
A adesão tem por objeto um tratado multilateral. Pactos bilaterais são natural­
mente fechados, e a possibilidade teórica de que um acordo a dois preveja e compor­
te o ingresso de terceiro como parte não esconde a realidade da prática internacional,
demonstrativa de que nem todos os tratados coletivos são abertos, mas virtualmente
todos os tratados abertos são coletivos, ainda que de modesto porte numérico.
Parece lógico que a adesão pressuponha um tratado em vigor; que o Estado
aderente pretenda entrar no domínio jurídico de um ato convencional perfeito e
acabado, de uma realidade normativa, e não de um mero projeto para o qual existe
ainda a possibilidade da frustração. Esta ideia imaculada foi, não obstante, proscri­
ta pela prática internacional, faz já algumas décadas, à força de argumentos de
conveniência. Quando se tornou frequente no domínio dos tratados coletivos a fi­
xação de um quorum ponderável para a entrada em vigor, revelou-se o desacerto
operacional de que o alcance desse quorum devesse depender tão só da ratificação
dos Estados presentes na mesa negocial. O resultado foi o emprego, em larga es­
cala, da técnica facultativa da adesão precoce — e sujeita, por isso, a ficar sem
efeito quando, afinal, o quorum resulte inalcançado.
Por princípio, o Estado aderente não se distingue do Estado ratificante dentro do
quadro convencional. Tratados coletivos normalmente se caracterizam pela paridade dos
direitos e obrigações das partes, sem privilégio em favor daquelas que, presentes desde a
fase negocial, tenham ingressado em seu domínio jurídico mediante ratificação.
Todo Estado que tenha interesse em ingressar mediante ade­
são num tratado coletivo deve certificar-se de que esse tratado é
aberto, e de que os eventuais limites dessa abertura não excluem
sua pretensão adesiva. Abertos são, com efeito, o Pacto da Liga
Árabe e a Carta da OEA, sem que por isso se entenda viável a
adesão do Uruguai ao primeiro, ou da Dinamarca ao segundo.
Presume-se que a perspectiva de adesão a certo tratado seja disciplinada em
seu próprio texto. O silêncio faz supor, à luz da experiência, que se cuida de um
compromisso fechado. Não obstante, há tratados recentes que dão notícia expressa
de sua impermeabilidade. No Tratado de Cooperação Amazônica (Brasília, 1978),
art. 27: “O presente Tratado terá duração ilimitada e não estará aberto a adesões”.
Tratados coletivos de grande porte podem abrir-se à adesão
indiscriminada de todo e qualquer Estado soberano, e não é por
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razões jurídicas — senão à conta de elementos de ordem prática
— que essa abertura não alcança também as organizações inter­
nacionais. Outros tratados são apenas regionalmente abertos.
Assim os pactos constitutivos de organizações internacionais
não universais, como a OEA, a OUA, a Liga Árabe ou o extinto
Pacto de Varsóvia. Nos dois primeiros casos o regionalismo é
puramente geográfico. Ele assume coloração complexa, mas
primordialmente cultural no terceiro, e era ideológico no quarto
caso. Mesmo fora do domínio institucional, muitos são os tra­
tados que se abrem à adesão tão só dos países europeus, ou la­
tino-americanos, ou de língua francesa, ou produtores de certa
riqueza, ou dotados de certo patrimônio. E há o caso extremo
da abertura à adesão de um único Estado, nominalmente desig­
nado pelas partes: trata-se da Carta da ODECA, franqueada
desde 1951 à adesão da república do Panamá, que demorou
décadas até fazer uso da singular prerrogativa.
Tratados abertos costumam sê-lo em caráter permanente,
de modo que não há falar, em princípio, num prazo para adesão.
Se as ratificações tardias — sobrevindas vários anos depois da
negociação — têm, embora não raras, a marca do heterodoxo,
as adesões, pelo que representam, nunca se podem entender tar­
dias. Todo tempo é próprio para que um Estado — quiçá no limiar
de sua existência independente — manifeste interesse em in­
gressar no domínio jurídico de um acordo a cujo processo ge­
nético tenha sido estranho. Este princípio é tão velho quanto o
crescimento numérico dos tratados coletivos e a prática do in­
gresso adesivo. Assim, foi em 26 de janeiro de 1907 que o Bra­
sil aderiu à Convenção da Cruz Vermelha, concluída em Genebra
a 22 de agosto de 1864.
O consentimento mediante adesão deve exprimir-se num gesto único e defi­
nitivo, qual seja a apresentação, ao depositário, da carta ou instrumento represen­
tativo da vontade estatal de ser parte no tratado. A doutrina não vê sentido, aqui, na
adoção de um procedimento bifásico, e tem guardado uniformidade na condenação
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da chamada adesão condicional, ou adesão sob ressalva de confirmação ulterior.
Nada pressiona o Estado aderente de modo a exigir-lhe, antes da palavra final, uma
palavra provisória. Desse modo, encara-se como supérflua a atitude do Estado cujo
governo — por depender, em regra, da aprovação parlamentar — exprime no plano
exterior sua adesão condicional a certo compromisso. A encará-lo com boa vonta­
de, ver-se-ia no gesto um ato internacional de publicidade da intenção de aderir, e
nada além disso.
45. Emendas. Desde as origens, nos anos 1950, da União Eu­
ropeia, nenhum tratado ali se emenda sem o assentimento unâ­
nime das partes, aberta a cada uma delas a iniciativa de propor
a emenda. A dimensão numérica da União permite-lhe um sis­
tema dificilmente ajustável aos tratados de maior porte. Assim,
o Pacto da Sociedade das Nações podia emendar-se pelo voto
de dois terços, no mínimo, do total de partes; sendo que os Es­
tados vencidos deixavam automaticamente de integrar a organi­
zação. Esta rígida fidelidade ao princípio de que não se deve
abrigar duplo regime jurídico numa organização internacional
não contagiou mais tarde a Carta da OEA, que prevê sua própria
emenda pelo voto mínimo de dois terços das partes, sem nada
dizer sobre como ficam os Estados dissidentes. O silêncio pare­
ceu significar que na hipótese — até hoje inexperimentada — de
uma emenda resultante de decisão não unânime, os vencidos
permaneceriam obrigados pelo texto primitivo, criando-se no
quadro convencional a duplicidade de regime jurídico. Interpre­
tação que, de resto, veio a ser mais tarde assumida pela discipli­
na da Convenção de Viena49.
A iniciativa da emenda pode vir de qualquer Estado parte no tratado: esta
regra aparentemente não conhece exceções. Amplia-se, vez por outra, o horizonte
da iniciativa em organizações internacionais, a propósito tanto do pacto institucio­
nal quanto de outros cuja guarda sua secretaria detém — sem que a própria orga­
nização seja parte —, permitindo-se que seus órgãos interiores proponham emendas.
49. Art. 40, §§ 4 e 5.
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A adoção destas pressupõe, em toda circunstância, o pronunciamento do conjunto
das partes — em conferência especial ou mediante consultas individualizadas, a
cargo do depositário, no caso dos tratados comuns; em assembleia geral da orga­
nização, no caso dos tratados institucionais. Apurando-se que a emenda tem o
abono da necessária unanimidade, ou do necessário quorum qualificado — não
inferior a dois terços, em regra —, ela se formaliza por meio de algo como uma
resolução (ONU, OMS), um instrumento (OIT), ou um protocolo de emenda (OACI).
Isso não é mais que uma primeira parte do procedimento: afinal, manifestaram-se
até então os governos dos Estados-partes, desprovidos em sua maioria de qualida­
de constitucional para uma decisão definitiva no que tange à conclusão — ou, por
igual motivo, à modificação — de tratados multilaterais.
Revisão ou reforma é o nome que se tem dado, em direito
dos tratados, ao empreendimento modificativo de proporções
mais amplas que aquelas da emenda singular, ou do conjunto
limitado de emendas tópicas. É aquilo que não se deu, até hoje,
com a Carta da ONU, mas que foi já experimentado pela Carta
da ODECA, em 1962 e 1991, e pela Carta da OEA, em 1967 e
1985, para só citar exemplos de feitio institucional.
Não há limite teórico para a importância e a gravidade da alteração substan­
cial que uma emenda tópica — e, a fortiori, um processo revisional — pode im­
portar a qualquer tratado. Por isso os pressupostos constitucionais da aceitação da
emenda costumam ser os mesmos da expressão inicial do consentimento do Estado.
Se o primitivo comprometimento não dependeu de mais que a vontade do governo,
isto continua a ser tudo. Se a consulta ao parlamento foi necessária, ela o é de novo.
Apesar de quanto variam as ordens internas na partilha do treaty-making power,
dificilmente se quebraria esse paralelismo que aparece como regra geral.
No Brasil a aprovação da emenda pelo Congresso Nacional toma forma, também
ela, em decreto legislativo. Publicado este, está o presidente da República autori­
zado a consentir no plano internacional, fazendo chegar ao depositário do pacto a
carta ou instrumento que exprime a aceitação da emenda pelo país. Supondo que
a emenda entre em vigor — o que poderia deixar de ocorrer, à falta de assentimen­
tos em número suficiente —, o chefe do governo promulgará a emenda mediante
decreto; em tudo observado, assim, o roteiro pertinente ao tratado original.
46. Violação. A violação substancial de um tratado dá direito à
outra parte de entendê-lo extinto, ou de suspender também ela
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seu fiel cumprimento, no todo ou parcialmente. Se o compro­
misso é coletivo igual direito têm, em conjunto, os pactuantes
não faltosos, e o tem ainda cada um deles nas suas relações com
o Estado responsável pela violação. A Convenção de Viena pro­
põe essa disciplina no art. 60, esclarecendo que por violação
substancial deve entender-se tanto o repúdio puro e simples do
compromisso quanto a afronta a um dispositivo essencial para
a consecução de seu objeto e finalidade.
Além das réplicas severas que a Convenção de Viena admite em caso de
violação substancial, a prática do direito das gentes autoriza ainda o protesto di­
plomático e outros remédios, alguns institucionalizados em plano regional, e
operantes mesmo em presença de uma violação não substancial — que nem por
isso deixa de configurar ato ilícito.
Em 28 de setembro de 1979, a Corte de Justiça das Comunidades europeias
condena a França por violação de tratados comunitários, à vista de seu regime de
importação de carne bovina. No dia 4 de outubro seguinte, a mesma Corte declara
que o Reino Unido faltou ao cumprimento de outros compromissos congêneres,
quando adotou unilateralmente certas medidas no domínio da pesca50.
Não são poucos os registros, na prática convencional, de casos em que certo
Estado, embora acusando formalmente o copactuante de violar o compromisso
mútuo, deixa de se proclamar imediatamente desobrigado, e prefere usar da denún­
cia tal como prevista no tratado — o que, afinal, poderia ser feito mesmo na ausên­
cia de violação. Aqui alguns excertos da nota do governo norte-americano ao go­
verno grego, de 6 de novembro de 1933:
“Fui instruído para informar Vossa Excelência de que o Governo dos Estados
Unidos soube com espanto que as autoridades gregas de novo deixaram de atender
ao pedido de extradição de Samuel Insull, fugitivo da Justiça americana. (...) Devo
acrescentar que meu Governo considera essa decisão absolutamente indefensável,
e uma clara violação do Tratado de extradição americano-helênico firmado em
Atenas, em 6 de maio de 1931. (...) Nesta conformidade, fui instruído para dar aqui
aviso formal de denúncia por parte de meu Governo, a fim de que o Tratado termi­
ne na data mais próxima possível, segundo suas estipulações pertinentes”51.
50. Crônicas, RGDIP e AFDI.
51. Cf. Herbert W. Briggs, The law of nations, Nova York, Appleton-Century-Crofts,
1952, p. 913-914.
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Uma súmula de jurisprudência, editada pelo Tribunal Regional do Trabalho
de Brasília, em 2005, estatuiu que a Justiça brasileira deveria ignorar a imunidade
das Nações Unidas à jurisdição local, embora expressamente prevista em tratado
vigente, sob o argumento de que a organização deixara de cumprir outro dispositi­
vo do mesmo tratado, que a mandara criar um mecanismo de solução de controvér­
sias. Preconizava-se, de tal modo, mediante invocação do princípio da reciprocida­
de, a violação aberta de um tratado como contrapartida à suposta violação do
mesmo pelo copactuante.
LEITURA
O autor deste livro escreveu a respeito do fato:
“Esse entendimento pressupõe que a Organização teria deixado de cum­
prir dispositivo de tratado sobre seus privilégios e imunidades, por não ter
estabelecido os meios de solução de controvérsias ali previstos. Como contra­
partida, e ‘em respeito ao princípio da reciprocidade’, o foro trabalhista do
Brasil estaria autorizado a violar uma imunidade que de modo expresso os
mesmos tratados garantem.
De início, a premissa fática dessa tese é falsa. O Tribunal Administrativo
das Nações Unidas, instituído e operante há cerca de sessenta anos, é aberto a
funcionários e ex-funcionários da Organização, a seus sucessores causa mortis,
e a quem mais afirme direitos resultantes de contrato de trabalho. Se o contra­
to — o que não é raro no domínio da cooperação para o desenvolvimento —
prescreve a arbitragem para a solução do eventual litígio, ainda assim, e para
o efeito de garantir a realização da arbitragem, o Tribunal está ao alcance de
todas aquelas categorias.
Suponha-se, entretanto, e só para argumentar, que as Nações Unidas
deixaram de prover, conforme pactuado, meios para solução de controvérsias
dessa natureza. A Organização não é, a rigor, parte em seu próprio tratado
constitutivo — a Carta de São Francisco, firmada por dezenas de Estados,
entre os quais o Brasil — , nem em tratados do gênero das Convenções de
1946 e de 1947, concluídos entre os membros da Organização e a respeito de
seu sistema. Sucede que em face desses tratados a Organização tampouco pode
ser considerada um terceiro, estranho às obrigações que lhe são assinaladas
no texto. Assim pensando, chegamos a que o hipotético descumprimento de
uma norma do tratado, como a que manda instituir o foro, seria um ilícito
internacional imputável, por omissão, à própria ONU. Mas para o Brasil,
membro do sistema, este não é um Estado estrangeiro cuja eventual conduta
ilícita possa ser de todo estranha à nossa própria responsabilidade. As Nações
Unidas somos nós, associados a outros cento e noventa Estados não menos
soberanos. O ilícito que acaso a Organização cometesse seria, em parte, um
ilícito nosso...
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Abstraindo todas essas singularidades, e raciocinando simplesmente como
se a ONU fosse um Estado estrangeiro culpado da violação de norma constante
de tratado que o vincula ao Brasil, teríamos de dar o nome correto ao que suce­
deu no âmbito da Justiça do Trabalho ‘em respeito ao princípio da reciprocida­
de’: uma represália contra a Organização das Nações Unidas. Represália é, em
direito internacional, o cometimento consciente de um ato ilícito — qual a vio­
lação de norma expressa em tratado — que se entende justificar com a notícia
de que a outra parte cometeu, antes, ilícito igual ou equivalente na escala das
proporções.
Não se tem notícia, em plano global, da adoção de uma represália contra
as Nações Unidas. Menos ainda se tem notícia de que esta República, desde sua
fundação — ou seu predecessor, o Império do Brasil — tenha um dia incorpo­
rado à sua política internacional, a cargo do Governo, a metodologia da repre­
sália como reação a algum ilícito de qualquer natureza, cometido por outro
Estado soberano. Para dizer o mínimo, é extraordinário que no domínio da Jus­
tiça se identifique a iniciativa.
Como quer que seja, a represália com que parte da Justiça do Trabalho
entende dever punir as Nações Unidas, violando abertamente a imunidade do
sistema e comprometendo com isso a responsabilidade internacional da Repú­
blica perante a própria ONU, suas agências especializadas e todos os demais
Estados membros, assenta sobre uma premissa incorreta. Por isso, quando por
mais não fosse, não poderia vingar”.
A Alemanha denunciou em 2005 um tratado preventivo
da bitributação que a vinculara ao Brasil por trinta anos. Uma
das razões transparentes desse gesto, e a principal segundo seus
analistas no Brasil, foi o infiel cumprimento do tratado por
parte de agentes do Estado brasileiro no domínio da imposição
de tributos.
47. Interpretação. Interpretar o tratado internacional significa
determinar o exato sentido da norma jurídica expressa num
texto obscuro, impreciso, contraditório, incompleto ou ambíguo.
Não por acaso, o primeiro princípio a nortear esta análise, e que
tem raízes na antiguidade romana, é o de que não há por que
interpretar o que já está claro e unívoco. Os tópicos seguintes
versam os sistemas e os métodos de interpretação, assim com­
preendidos, respectivamente, os cenários em que tem lugar a
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interpretação dos tratados e os critérios que presidem essa ope­
ração intelectual.
a) Sistemas. A interpretação pode dar-se no plano interna­
cional, tanto quanto no âmbito interior de cada uma das partes
pactuantes. Num e noutro caso os intérpretes serão governos ou
jurisdições — sendo certo que estas últimas, no direito das gentes,
têm perfil mais complexo que em qualquer ordem interna comum.
Quando proporcionada pelas próprias partes pactuantes, a
interpretação se diz autêntica. A voz das partes, no caso, é a dos
respectivos governos, visto que tribunais e parlamentos não se
exprimem na cena internacional. Essa interpretação autêntica
pode tomar a forma de um novo acordo, de índole puramente
interpretativa: é este um dos poucos casos em que um sistema
constitucional como o do Brasil pode tolerar o acordo executivo,
não sujeito à aprovação do Congresso Nacional.
Entre exemplos figuram o Ajuste interpretativo dos arts. VI e VIII do Acordo
básico de cooperação técnica Brasil-Itália de 1972 — concluído em Brasília, por
troca de notas, em 18 de novembro de 1977; e a Declaração de Belém, firmada em
24 de outubro de 1980 pelos chanceleres dos Estados partes no Tratado de Coope­
ração Amazônica, e relativa ao seu justo entendimento.
Ainda governamental — mas não autêntica no sentido do
item anterior, porque não pronunciada pelo conjunto das partes
— é a interpretação que um dos pactuantes concebe e dá a co­
nhecer aos demais pelo conduto diplomático. Também o é, de
resto, aquela — porventura diversa — com que aqueles replicam
à exegese unilateral.
A interpretação no plano internacional diz-se jurisdicional
quando provida por organismo dotado, ainda que ad hoc, do
poder de jurisdição, no exame do litígio concreto entre persona­
lidades de direito das gentes. É portanto jurisdicional — embo­
ra não judiciária — a exegese que, no desempenho do encargo
que lhe foi cometido pelas partes, o árbitro ou o tribunal arbitral
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formula sobre o tratado pertinente à espécie. Qualifica-se, de
outro lado, como judiciária a interpretação que emana de orga­
nismo de jurisdição permanente qual a Corte da Haia, e todas as
cortes internacionais de âmbito regional: as do continente ame­
ricano, as europeias, e outras mais.
A interpretação dos tratados no âmbito interno das potên­cias
pactuantes raramente se exprime numa lei do parlamento. Nas
mais das vezes ela é governamental, quando expressa em ato da
responsabilidade do poder Executivo, ou judiciária, quando le­
vada a efeito por tribunais e juízes no exame do caso concreto.
Em feitos de sua competência originária, o Supremo Tribunal Federal interpre­
ta, vez por outra, tratados de extradição. Em grau de recurso, é comum que deva
determinar a melhor exegese de tratados de execução pública, quais as Convenções
de Genebra sobre títulos de crédito. Juízes e tribunais federais foram levados cons­
tantemente a interpretar tratados como o GATT e o ato constitutivo da ALADI. Não
há notícia de que jamais um órgão do poder Judiciário brasileiro tenha suposto que
os tratados, qual se não integrados na ordem jurídica republicana, escapam ao mes­
míssimo mecanismo de interpretação e aplicação tocante às leis comuns. A convicção
reinante é de todo válida, como princípio. Alguma sutil característica própria dos
compromissos internacionais será vista mais tarde, no estudo dos conflitos.
b) Métodos. A Convenção de Viena consagra alguns artigos
à metodologia hermenêutica, arrolando princípios e critérios com
que, a propósito, a doutrina do direito das gentes, havendo reco­
lhido diretrizes noutras áreas da ciência jurídica, vinha desde
muito inspirando a prática internacional. Destaca-se, nesta dis­
ciplina, a preocupação com o objeto da análise hermenêutica: a
interpretação visa a um contexto que compreende não apenas a
parte dispositiva do tratado, com seu preâmbulo e eventuais ane­
xos, mas ainda qualquer avença marginal, contemporânea da
conclusão do tratado, a que se apure haverem chegado as partes.
A boa-fé, segundo a Convenção, é o sentimento que deve reves­
tir o próprio intérprete. É um tanto óbvio, de outro lado, que ele
assumirá a presunção de que de boa-fé agiram as partes ao cele­
brar o compromisso. Cumpre perquirir a expressão da vontade
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das partes: não há lugar, nos princípios de Viena, para a busca
especulativa de sua vontade recôndita. Essa expressão, porém,
não se confina no texto convencional. Ela é legitimamente encon­
trável em avenças complementares, ainda que não escritas; e no
procedimento assumido pelas partes, com o correr do tempo,
acerca da execução do tratado. As palavras se supõem emprega­
das em seu sentido comum, a menos que se apure terem as partes
entendido de atribuir a certo termo um significado especial.­
Se, à luz dessas diretrizes de base, o texto permanece nebu­
loso, ou conduz a conclusões disparatadas — dando lugar ao
argumento ab absurdo —, recorrerá o intérprete à pesquisa his­
tórica dos trabalhos negociais preparatórios do compromisso, e
das circunstâncias de sua celebração. Poderá ainda, também
neste caso, valer-se dos meios de interpretação suplementares.
Estes são numerosos, e os que se listam em seguida têm valor exemplifica­
tivo. A doutrina de expressão francesa nunca deixa de mencionar a regra do efei­
to útil, segundo a qual não se há de admitir a ociosidade do dispositivo, devendo-se, pois, interpretá-lo no sentido que justifique a valia operacional de sua adoção
pelas partes. A analogia é um procedimento hermenêutico válido, sem prejuízo
da eventual pertinência do argumento a contrario e da regra expressio unius est
exclusio alterius.
A interpretação extensiva — por oposição à interpretação restritiva — era
técnica de escasso trânsito em direito das gentes até que, na era das organizações
internacionais, ganhasse prestígio na definição da competência dessas entidades
por intérprete vinculado à sua própria estrutura: um órgão administrativo, como o
Escritório internacional da OIT, ou judiciário, como a CIJ e a Corte de Justiça da
União Europeia. Há, entretanto, o reconhecimento geral de que a interpretação
restritiva se impõe a respeito de cláusulas que limitem, de algum modo, a soberania
dos Estados, ou que importem, da parte destes, submissão a juízo arbitral ou per­
manente.
Merece destaque a regra hermenêutica contra proferentem, que, ao contrário
das demais, não tem lugar na interpretação das leis internas; e, se o tem na dos
contratos, alcança, de todo modo, a plenitude de sua propriedade na área da inter­
pretação dos tratados internacionais. Segundo essa regra, toda disposição conven­
cional obscura ou ambígua deve ser interpretada contra a parte que redigiu ou
propôs o texto em exame. À outra parte, pois, o benefício da dúvida.
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48. Conflito entre tratados. Quando tratados distintos dão
origem à superposição normativa, cabe indagar desde logo sobre
a identidade ou não da fonte de produção das normas em causa.
Deve-se saber, pois, antes de tudo, se esses tratados vinculam as
mesmas partes. Em caso afirmativo, certos princípios secular­
mente consagrados na teoria geral do direito — e tocantes, so­
bretudo, à eficácia das leis no tempo — oferecem solução ao
problema. Caso contrário, há conflito real, dificilmente resolúvel
à base de iguais princípios, como será visto.
a) Identidade da fonte de produção normativa. Se um mes­
mo tema é objeto de tratamentos distintos e inconciliáveis em
dois ou mais acordos entre as mesmas partes, não há conflito. A
identidade da fonte de produção faz com que se veja, no caso,
fenômeno igual ao da concorrência de diplomas legais de igual
origem e nível hierárquico, num sistema de direito interno: pre­
valece o posterior sobre o anterior, à base da convicção de que
o poder legiferante modificou seu entendimento. Não é neces­
sário que no pacto superveniente as partes expressamente decla­
rem revogado — ou apenas modificado — o pacto anterior. A
simples evidência da incompatibilidade total ou parcial entre o
que dispõem os compromissos concorrentes traz à cena a regra
lex posterior derogat priori. Há lugar também, no mesmo caso,
para a regra lex specialis derogat generali, quando se apure que,
independentemente da ordem cronológica, quiseram as partes
abrir exceção a certo dispositivo de alcance geral em situações
determinadas, para as quais previram disciplina diferente.
A regra lex posterior derogat priori tem plena eficácia, ainda, no caso em que
todas as partes no tratado anterior o são também no posterior, agora ao lado de
outras mais. É que, nesta hipótese, a fonte de produção da norma a ser preterida se
inscreve, por inteiro, no quadro daquela que responde pela norma a prevalecer. Se
inversa a situação, ou seja, se mais numerosas as partes no primeiro tratado que no
segundo, há conflito verdadeiro entre os dois compromissos.
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b) Diversidade da fonte de produção normativa. Típico
exemplo de escola, já no século XIX, ilustrava o conflito entre
tratados internacionais: o Estado X, vinculado ao Estado Y por
um pacto de aliança ofensiva, e ao Estado Z por um pacto de
aliança defensiva, presencia o ataque armado de Y contra Z. Por
força do que pactuou, está X simultaneamente obrigado a apoiar
Y no ataque e Z na defesa, o que é impossível.
Este velho exemplo permite observar que a causa do conflito real e objetivo
entre os tratados X-Y e X-Z é a situação subjetiva de X. Tanto Y quanto Z, irres­
ponsáveis pelo conflito, chamarão em seu favor a regra pacta sunt servanda. O
impasse é inevitável. Não há desnível hierárquico entre os dois acordos conflitantes;
e regras como a lex posterior... e a lex specialis..., quando diferentes as fontes de
produção normativa — XY num caso, XZ noutro —, são de uma rotunda impres­
tabilidade. Tão evidente é o descabimento da regra lex posterior derogat priori
— em face dos direitos do Estado que primeiro pactuou com X, e que não pode
recolher prejuízo do tratado ulterior, onde não é parte —, que já se viu sugerir, no
olimpo da doutrina, um princípio avesso àquele: o prior in tempore, potior in jure,
significando que nessa lamentável hipótese é melhor garantir prevalência ao trata­
do concluído primeiro, sob o argumento, em linhas gerais, de que o Estado X não
poderia ter, licitamente, celebrado o segundo compromisso.
Certo é que não há remédio para o conflito real: como quer
que proceda, o Estado nele envolvido deixará, no mínimo, de
executar fielmente um dos tratados conflitantes, e terá cometido
um ilícito internacional contra o copactuante prejudicado. Não
há valor jurídico, aparentemente, que o socorra em semelhante
opção. Estimativas de ordem política determinarão, em princípio,
sua conduta na escolha do tratado a que atribuir prevalência.
O exemplo proposto versou conflito entre dois tratados bilaterais e da mesma
espécie temática. A assertiva então feita, de que não há entre eles desnível hierár­
quico, pode ter parecido resultante daquelas circunstâncias. Não o é.
A ausência de escalonamento hierárquico caracteriza todo o
direito internacional convencional. Nunca se terá neste domínio o
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conforto, reinante nos sistemas de direito interno, de poder resolver
conflitos à base da hierarquia, preterindo a lei ordinária que colide
com a lei constitucional, o decreto que destoa da lei, a instrução
ministerial que desafia o decreto. Escorados, todos, na regra pacta
sunt servanda, e envolvendo a responsabilidade de Estados sobe­
ranos, dentro de uma sociedade internacional descentralizada, os
tratados têm idêntica virtude jurídica, pouco importando se bila­
terais ou coletivos, se “contratuais” ou “normativos”, se voltados
para tema transcendental ou trivial52. Tudo quanto favorece, pois,
em caso de conflito, a opção do Estado envolvido por garantir
cumprimento ao tratado de maior relevo político e notoriedade, é
a consideração extrajurídica da conveniência de fazê-lo.
No que concerne à Carta das Nações Unidas, contudo, impõe-se uma adver­
tência. Ali se lê no art. 103:
“No caso de conflito entre as obrigações dos membros das Nações Unidas em
virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo inter­
nacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta”.
Esta norma é de irrecusável valia quando todos os Estados partes no pacto
conflitante com a carta forem partes também nesta. Resolve-se o conflito em favor
da carta, porque as partes assim determinaram, na cláusula adjetiva, que é o art.
103. Apurado que seja o conflito, as partes se encontram todas vinculadas a uma
norma que dispõe justamente sobre como deve o conflito resolver-se.
A situação seria outra se um membro das Nações Unidas visse colidirem suas
obrigações prescritas na carta com as que houvesse assumido em pacto bilateral
com um (hoje hipotético) Estado estranho à organização. Não haveria aqui, valen­
do para ambos, uma norma sobre solução de conflitos. Preferindo cumprir a carta,
o Estado em conflito subjetivo comete ilícito internacional frente ao copactuante
singular, a que não se impõe o comando do art. 103.
49. Conflito entre tratado e norma de direito interno. Recor­
de-se, de início, que o primado do direito das gentes sobre o
52. V. referência à opinião, também neste sentido, de Gerald Fitzmaurice e Vicente
Marotta Rangel, em G. E. do Nascimento e Silva: Dos conflitos de tratados; BSBDI (1971),
v. 53-54, p. 31.
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direito nacional do Estado soberano é ainda hoje uma proposição
doutrinária. Não há, em direito internacional positivo, norma
assecuratória de tal primado. Descentralizada, a sociedade in­
ternacional contemporânea vê cada um de seus integrantes ditar,
no que lhe concerne, as regras de composição entre o direito
internacional e o de produção doméstica. Resulta que para o
Estado a constituição nacional, vértice do ordena­mento jurídico,
é a sede de determinação da estatura da norma expressa em
tratado. Dificilmente uma dessas leis fundamentais desprezaria,
neste momento histórico, o ideal de segurança e esta­bilidade da
ordem jurídica a ponto de subpor-se, a si mesma, ao produto
normativo dos compromissos exteriores do Estado. Assim, pos­
to o primado da constituição em confronto com a norma pacta
sunt servanda, é corrente que se preserve a autoridade da lei
fundamental do Estado, ainda que isto signifique a prática de
um ilícito pelo qual, no plano externo, deve aquele responder.
Embora sem emprego de linguagem direta, a Constituição brasileira deixa
claro que os tratados se encontram aqui sujeitos ao controle de constitucionalidade,
a exemplo dos demais componentes infraconstitucionais do ordenamento jurídico.
Tão firme é a convicção de que a lei fundamental não pode sucumbir, em qualquer
espécie de confronto, que nos sistemas mais obsequiosos para com o direito das
gentes tornou-se encontrável o preceito segundo o qual todo tratado conflitante com
a constituição só pode ser concluído depois de se promover a necessária reforma
constitucional. Norma deste exato feitio aparece na Constituição francesa de 1958,
na Constituição argelina de 1976 e na Constituição espanhola de 1978. Excepcional,
provavelmente única, a Constituição holandesa, após a revisão de 1956, tolera, em
determinadas circunstâncias, a conclusão de tratados derrogatórios do seu próprio
texto, cuja promulgação é capaz de importar, por si mesma, uma reforma constitu­
cional.
Abstraída a constituição do Estado, sobrevive o problema
da concorrência entre tratados e leis internas de estatura infra­
constitucional. A solução, em países diversos, consiste em ga­
rantir prevalência aos tratados. Noutros, entre os quais o Brasil
contemporâneo, garante-se-lhes apenas um tratamento paritário,
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tomadas como paradigma as leis nacionais e diplomas de grau
equivalente.
a) Prevalência dos tratados sobre o direito interno infracons­
titucional. Não se coloca em dúvida, em parte alguma, a preva­
lência dos tratados sobre leis internas anteriores à sua promul­
gação. Para primar, em tal contexto, não seria preciso que o
tratado recolhesse da ordem constitucional um benefício hierár­
quico. Sua simples introdução no complexo normativo estatal
faria operar, em favor dele, a regra lex posterior derogat priori.
Mas a prevalência de que fala este tópico é a que tem indisfar­
çado valor hierárquico, garantido ao compromisso internacional
plena vigência, apesar de leis posteriores que o contradigam. A
França, a Grécia e a Argentina oferecem, neste momento, exem­
plos de semelhante sistema.
Constituição francesa de 1958, art. 55: “Os tratados ou acordos devidamen­
te ratificados e aprovados terão, desde a data de sua publicação, autoridade su­
perior à das leis, com ressalva, para cada acordo ou tratado, de sua aplicação pela
outra parte”.
Constituição da Grécia de 1975, art. 28, § 1: “As regras de direito internacio­
nal geralmente aceitas, bem como os tratados internacionais após sua ratificação
(...), têm valor superior a qualquer disposição contrária das leis”.
Constituição política da Argentina, texto de 1994, art. 75, § 22: “(...) os tra­
tados e concordatas têm hierarquia superior à das leis”.
b) Paridade entre o tratado e a lei nacional. Tal é o sistema
consagrado nos Estados Unidos da América, sem contramarchas
na jurisprudência nem objeção doutrinária de maior vulto. Par­
te da “lei suprema da nação”, o tratado ombreia com as leis fe­
derais votadas pelo Congresso e sancionadas pelo presidente
— embora seja ele próprio o fruto da vontade presidencial so­
mada à do Senado, e não à das duas casas do parlamento ame­
ricano. A supremacia significa que o tratado prevalece sobre a
legislação dos estados federados, tal como a lei federal ordinária.
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Não, porém, que seja superior a esta. De tal modo, em caso de
conflito entre tratado internacional e lei do Congresso, prevale­
ce nos Estados Unidos o texto mais recente. É certo, pois, que
uma lei federal pode fazer “repelir” a eficácia jurídica de tratado
ante­rior, no plano interno. Se assim não fosse — observa Bernard
Schwartz —, estar-se-ia dando ao tratado não força de lei, mas
de restrição constitucional53.
Nos trabalhos preparatórios da Constituição brasileira de 1934 foi rejeitado
o anteprojeto de norma, inspirada na carta espanhola de 1931, que garantisse entre
nós o primado dos compromissos externos sobre as leis federais ordinárias. A ju­
risprudência, contudo, não cessou de oscilar até pouco tempo atrás, e a doutrina
permanece dividida. Marotta Rangel, partidário do primado da norma convencional,
enumerou, entre autores de idêntico pensamento, Pedro Lessa, Philadelfo Azevedo,
Vicente Ráo, Accioly e Carlos Maximiliano54. Azevedo, quando ainda ministro do
Supremo Tribunal Federal, em 1945, publicou comentário demonstrativo da con­
vicção unânime da corte, àquela época, quanto à prevalência dos tratados sobre
todo o direito interno infraconstitucional55.
De setembro de 1975 a junho de 1977 estendeu-se, no ple­
nário do Supremo Tribunal Federal, o julgamento do Recurso
extraordinário 80.00456, em que assentada por maioria a tese de
que, ante a realidade do conflito entre tratado e lei posterior,
esta, porque expressão última da vontade do legislador republi­
cano, deve ter sua prevalência garantida pela Justiça — não
obstante as consequências do descumprimento do tratado, no
plano internacional.
53. Bernard Schwartz, Constitutional law, Nova York, Macmillan, 1972, p. 87-88.
54. Vicente Marotta Rangel, La procédure de conclusion des accords internationaux
au Brésil; R. Fac. SP (1960), v. 55, p. 264-265.
55. Philadelfo Azevedo, Os tratados e os interesses privados em face do direito brasi­
leiro; BSBDI (1945), v. 1, p. 12-29.
56. Para comentário à decisão do STF, v. Mirtô Fraga, Conflito entre tratado interna­
cional e norma de direito interno, Rio de Janeiro, Forense, 1997.
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A maioria valeu-se de precedentes do próprio Tribunal para dar como certa a
introdução do pacto — no caso, a Lei uniforme de Genebra sobre letras de câmbio
e notas promissórias — na ordem jurídica brasileira, desde sua promulgação. Re­
conheceu em seguida o conflito real entre o pacto e um diploma doméstico de nível
igual ao das leis federais ordinárias — o Decreto-lei n. 427/69, posterior, em cerca
de três anos, à promulgação daquele —, visto que a falta de registro da nota pro­
missória, não admitida pelo texto de Genebra como causa de nulidade do título,
vinha a sê-lo nos termos do decreto-lei. Entenderam as vozes majoritárias que,
faltante na Constituição do Brasil garantia de privilégio hierárquico do tratado in­
ternacional sobre as leis do Congresso, era inevitável que a Justiça devesse garan­
tir a autoridade da mais recente das normas, porque paritária sua estatura no orde­
namento jurídico57.
50. Situações particulares em direito brasileiro atual. Há,
contudo, exceções à regra da paridade? Há domínios temáticos
em que, desprezada a ideia de valorizar simplesmente a última
palavra do legislador ordinário, seja possível reconhecer o pri­
mado da norma internacional ainda que anterior à norma inter­
na conflitante? Duas situações merecem a propósito um comen­
tário apartado, as que se encontram, no domínio tributário, à luz
do art. 98 do CTN, e, no domínio dos direitos e garantias fun­
damentais, à luz do art. 5º, §§ 2º e 3º, da Constituição de 1988.
a) Domínio tributário: o art. 98 do Código Tributário Nacio­
nal. Esse dispositivo diz que os tratados (os que vinculam o Bra­
sil, naturalmente) “…revogam ou modificam a legislação tribu­
tária interna e serão observados pela que lhes sobrevenha”. Essa
linguagem sugere mais uma norma preventiva de conflitos do que
uma regra de solução do conflito consumado; mas se assim for
entendida ela é virtualmente supérflua. Não há dúvida de que o
tratado revoga, em qualquer domínio, a norma interna anterior;
nem tampouco de que o legislador, ao produzir direito interno
ordinário, deve observar os compromissos externos da república,
no mínimo para não induzi-la em ilícito internacional. Assim, para
57. V. a íntegra do acórdão em RTJ 83/809.
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que se dê ao art. 98 efeito útil, é preciso lê-lo como uma norma
hierarquizante naquele terreno onde o CTN foi qualificado pela
Constituição para ditar “normas gerais”. O Supremo Tribunal
Federal tem reconhecido, desde que primeiro tratou do assunto
até a hora atual, e de modo uniforme, a eficácia do art. 98 do CTN
e sua qualidade para determinar o que determina58. Em matéria
tributária, há de buscar-se com mais zelo ainda que noutros do­
mínios a compatibilidade. Mas se aberto e incontornável o con­
flito, prevalece o tratado, mesmo quando anterior à lei.
Resolve-se por mais de um caminho, creio, a questão de saber se o CTN tem
estatura para determinar na sua área temática um primado que a própria Constitui­
ção não quis determinar no quadro geral da ordem jurídica. Faz sentido, por exem­
plo, dizer que no caso do conflito de que ora cuidamos a norma interna sucumbe
por inconstitucionalidade. Ao desprezar o art. 98 do CTN e entrar em conflito com
tratado vigente, a lei ordinária impli­citamente terá pretendido inovar uma norma
geral de direito tributário, estabelecendo, para si mesma, uma premissa con­fli­tante
com aquele artigo, qual seja a de que é possível ignorar o compromisso internacio­
nal e dispor de modo destoante sobre igual matéria. É uma hipótese sui generis de
inconstitu­cio­nali­dade formal: a lei não ofende a carta pela essência do seu dispo­
sitivo, nem por vício qualquer de competência ou de processo legislativo, mas por
assentar sobre uma premissa ideológica hostil à exclusividade que a carta dá à lei
complementar para ditar normas gerais de direito tributário.
b) Direitos e garantias fundamentais: o art. 5º, §§ 2º e 3º,
da Constituição. No desfecho do extenso rol de direitos e garan­
tias do art. 5º da Constituição um segundo parágrafo estabelece,
desde 1988, que aquela lista não exclui outros direitos e garantias
decorrentes do regime e dos princípios consagrados na carta, ou
dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Sobre esta
última categoria nada se ouviu nos anos seguintes do Supremo
Tribunal Federal, cuja maioria era entretanto pouco receptiva à
58. V. Carlos Mário Velloso, O direito internacional e o Supremo Tribunal Federal,
Belo Horizonte, CEDIN, 2002.
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ideia de que a norma assecuratória de algum outro direito, quan­
do expressa em tratado, tivesse nível constitucional. Isso resul­
tava provavelmente da consideração de que, assim postas as
coisas, a carta estaria dando ao Executivo e ao Congresso, este
no quorum simples da aprovação de tratados, o poder de aditar
à lei fundamental; quem sabe mesmo o de mais tarde expurgá-la
mediante a denúncia do tratado, já então — o que parece impa­
latável — até pela vontade singular do governo, habilitado que
se encontra, em princípio, à denúncia de compromissos interna­
cionais. As perspectivas da jurisprudência, nesse domínio, pare­
ciam sombrias quando se levavam em conta algumas decisões
majoritárias que o Supremo tomou na época a propósito da prisão
do depositário infiel (ou daqueles devedores que o legislador
ordinário brasileiro entendeu de assimilar ao depositário infiel),
frente ao texto da Convenção de São José da Costa Rica59.
A questão foi entretanto resolvida, em dezembro de 2004,
pelo aditamento do terceiro parágrafo ao mesmo artigo constitu­
cional: os tratados sobre direitos humanos que o Congresso
aprove com o rito da emenda à carta — em cada casa dois turnos
de sufrágio e o voto de três quintos do total de seus membros
— integrarão em seguida a ordem jurídica no nível das normas
da própria Constituição. Essa nova regra, que se poderia chamar
de cláusula holandesa por analogia com certo modelo prevalen­
te nos Países Baixos e ali pertinente à generalidade dos tratados
(v. referência no § 49), autoriza algumas conclusões prospectivas.
Não é de crer que o Congresso vá doravante bifurcar a metodo­
logia de aprovação dos tratados sobre direitos humanos. Pode
haver dúvida preliminar sobre a questão de saber se determinado
tratado configura realmente essa hipótese temática, mas se tal for
o caso o Congresso seguramente adotará o rito previsto no ter­
59. V., por exemplo, ADIn 1.497-DF, ADIn 1.480-DF e HC 76.561-SP. V. ainda o
estudo referido na nota anterior.
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ceiro parágrafo, de modo que, se aprovado, o tratado se qualifique
para ter estatura constitucional desde sua promulgação — que
pressupõe, como em qualquer outro caso, a ratificação brasileira
e a entrada em vigor no plano internacional. Não haverá quanto
a semelhante tratado a possibilidade de denúncia pela só vontade
do Executivo, nem a de que o Congresso force a denúncia me­
diante lei ordinária (v. adiante o § 53), e provavelmente nem
mesmo a de que se volte atrás por meio de uma repetição, às
avessas, do rito da emenda à carta, visto que ela mesma se decla­
ra imutável no que concerne a direitos dessa natureza.
Uma última dúvida diz respeito ao passado, a algum eventual direito que um
dia se tenha descrito em tratado de que o Brasil seja parte — e que já não se encontre
no rol do art. 5º. Qual o seu nível? Isso há de gerar controvérsia entre os Constitu­
cionalistas, mas é sensato crer que ao promulgar esse parágrafo na Emenda Consti­
tucional 45, de 8 de dezembro de 2004, sem nenhuma ressalva abjuratória dos trata­
dos sobre direitos humanos outrora concluídos mediante processo simples, o Con­
gresso constituinte os elevou à categoria dos tratados de nível constitucional. Essa é
uma equação jurídica da mesma natureza daquela que explica que nosso Código
Tributário, promulgado a seu tempo como lei ordinária, tenha-se promovido a lei
complementar à Constituição desde o momento em que a carta disse que as normas
gerais de direito tributário deveriam estar expressas em diploma dessa estatura.
Seção VII — EXTINÇÃO DO TRATADO
51. A vontade comum. Extingue-se um tratado por ab-rogação
sempre que a vontade de terminá-lo é comum às partes por ele
obrigadas. Não serão estas, necessariamente, aqueles mesmos
Estados que um dia o negociaram e o puseram em vigor: suces­
sivas adesões e denúncias, no correr do tempo, podem haver
mudado o rol das partes no tratado multilateral aberto. Essa
vontade comum ab-rogatória se exprime, às vezes, por anteci­
pação, no próprio texto convencional; noutros casos, o texto
simplesmente disciplina o processo extintivo, entregue à decisão
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ulterior das partes. Pode dar-se ainda que o tratado nada dispo­
nha sobre sua extinção, o que, em absoluto, não retira dos pac­
tuantes a prerrogativa de ab-rogá-lo.
a) Predeterminação ab-rogatória. Todo tratado com termo
cronológico de vigência, previsto no texto, encerra uma forma
de predeterminação ab-rogatória pelas partes pactuantes. O tér­
mino desse prazo de três, cinco, dez, ou quantos anos sejam,
significa a condição resolutiva, de feitio estritamente temporal.
Tem, pois, congenitamente predeterminada sua extinção todo
pacto que se conceba para viger por certo número de anos —
caso do Acordo Brasil-Estados Unidos, de 1972, sobre usos
civis da energia atômica —, ou para viger até certa data — caso
dos tratados anglo-chineses sobre Hong Kong. Não se descarac­
teriza a predeterminação ab-rogatória quando prevista a possi­
bilidade de que as partes prorroguem a vigência do compromis­
so: neste caso, o silêncio importaria sua extinção, somente
evitada por novo e expresso consenso entre os pactuantes.
A condição resolutiva, entretanto, pode assumir várias for­
mas distintas do termo cronológico. Uma delas é a extinção de
outro tratado — que se considere principal —, a determinar o
automático perecimento de convenções ancilares. Há também,
merecedoras de maior destaque, a exaustão operacional do tra­
tado e a queda do número de partes.
Fica ab-rogado o compromisso quando perfeitos todos os atos de execução
previstos pelas partes. O esgotamento operacional é, no caso, a condição resolutiva.
Firmou-se no Rio de Janeiro, em 27 de agosto de 1927, o Ajuste Brasil-França para a submissão à Corte Permanente de Justiça Internacional, na Haia, do
litígio tocante ao modo de pagamento dos empréstimos federais brasileiros. Cum­
priram as partes suas obrigações mútuas, e em 1929 a Corte veio a julgar a deman­
da60. O tratado estava extinto não por caso fortuito, mas porque esgotado o progra­
ma operacional que lhe ditaram as partes.
60. V. § 251.
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Eventualmente a predeterminação ab-rogatória consiste em dizer, no texto,
que o tratado estará extinto quando — à força, naturalmente, de sucessivas retiradas
por denúncia — o número de partes cair abaixo de certo piso. Diz a Convenção
sobre os direitos políticos da mulher (Nações Unidas, Nova York, 1953), no art. 8,
§ 2: “A presente Convenção deixará de vigorar a partir da data em que surtir efeito
a denúncia que reduza a menos de seis o número de partes”. A Convenção sobre a
nacionalidade da mulher casada (Nações Unidas, Nova York, 1957), em seu art. 9,
§ 2, reproduz essa exata linguagem.
Numa e noutra dessas convenções, seis havia sido exatamente o quorum
numérico de ratificações necessárias à entrada em vigor. A predeterminação ab-rogatória, no entanto, nunca se infere de tal circunstância: ela há de ser expressa,
ou se entenderá inexistente. Era essa a opinião majoritária na doutrina e na prática
das chancelarias. Assim, um tratado como a Carta da OEA, que só entrou em vigor
quando reunido o quorum previsto de quatorze partes, não se presumiria ab-rogado
se um dia caísse a treze, ou ainda menos, o número de membros da organização,
visto que, a propósito, a carta nada prescreve. A Convenção de Viena consagrou o
mesmo ponto de vista61.
b) Decisão ab-rogatória superveniente. Não existe compro­
misso internacional imune à perspectiva de extinção pela vontade
de todas as partes. Pouco importa, neste caso, que o texto conven­
cional nada disponha a respeito. Bilateral o tratado, a von­tade
uniforme de ambas as partes poderá sempre desfazê-lo, ainda que
interrompendo o curso de um prazo certo de vigência — e, pois,
em circunstâncias nas quais a denúncia unilateral seria inconce­
bível. Se coletivo o compromisso, será menos comum, na prática,
que se conjuguem as intenções ab-rogatórias da unanimidade das
partes. Quando isto, porém, ocorrer, a ab-rogação prescindirá de
qualquer previsão original no texto pactuado.
Sem discrepância, os Estados membros da Sociedade das Nações convieram
em ab-rogar formalmente seu pacto constitutivo, e o fizeram pelo voto de 18 de abril
de 1946 — quase sete anos depois que a organização desmoronou de fato, com o
início da segunda grande guerra; e alguns meses após a entrada em vigor da Carta
das Nações Unidas. Mediante resolução unânime, de 24 de setembro de 1975, os seis
61. Art. 55.
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Estados remanescentes na OTASE decidiram dissolver a organização — e, conse­
quentemente, de ab-rogar seu tratado institucional — a 30 de junho de 1977. Nove
tratados bilaterais luso-brasileiros, concluídos entre 1951 e 1996, foram expressa­
mente ab-rogados por uma cláusula final (art. 78) do Tratado de amizade, cooperação
e consulta que Brasil e Portugal celebraram no quinto centenário do descobrimento
(22 de abril de 2000), e que entrou em vigor em 5 de setembro de 2001.
Ocorre às vezes a previsão, no tratado multilateral, de sua
extinção por voto simplesmente majoritário. Havendo essa pre­
visão, entende-se que todas as partes estão antecipadamente
acordes em que o tratado deve desaparecer quando a maioria
assim achar necessário, e só por isso se configura a ab-rogação.
As partes minoritárias sucumbiram apenas na apuração da von­
tade tópica de acabar com o compromisso, mas foram corres­
ponsáveis pela feitura da regra que previamente condenara o
tratado a extinguir-se em tais circunstâncias.
Convenção internacional para a conservação do atum e afins no Atlântico (Rio
de Janeiro, 1966), art. 12, § 1: “A presente Convenção permanecerá em vigor du­
rante um período de dez anos, e, findo esse período, até que a maioria das partes
contratantes concorde em pôr-lhe um fim”.
Não é demais lembrar que, na falta de uma disposição dessa
natureza, nenhum tratado coletivo se ab-roga por maioria. O que
pode haver, nesse caso, é uma profusão de denúncias, reduzindo
expressivamente o número de partes, mas em nada perturbando a
prerrogativa de que o grupo minoritário mantenha de pé o com­
promisso. Não está afastada a possibilidade jurídica de que dois
Estados apenas conservem vigente um tratado outrora multilateral.
Pode dar-se, finalmente, a ab-rogação de um tratado por
outro que lhe sobrevenha e que reúna todas as partes.
Firmada e ratificada por praticamente todos os membros da sociedade inter­
nacional da época, a Convenção internacional de telecomunicações (Málaga, 1973)
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ab-rogou sua homônima concluída em Montreux, em 1965, entre Estados um pou­
co menos numerosos: “Art. 48. A presente convenção ab-roga e substitui, nas rela­
ções entre os governos contratantes, a Convenção Internacional de Telecomunica­
ções de Montreux (l965)”.
Em nível multilateral de menor porte, o Tratado da ALADI (Montevidéu,
1980) ab-rogou o Tratado da ALALC (l960); idêntico, nos dois casos, o rol dos
Estados pactuantes.
No plano bilateral, a prática da ab-rogação de tratado por tratado ulterior é
secular. Exemplo recente foi o Acordo básico de assistência técnica Brasil-OIT (Rio
de Janeiro, 1953, art. 6, § 4): “O presente Acordo substitui, para todos os efeitos,
o Acordo Básico entre o Governo dos Estados Unidos do Brasil e a Repartição
Internacional do Trabalho para prestação de Assistência Técnica, assinado no Rio
de Janeiro, a 14 de novembro de 1951”.
LEITURA
Declaração do autor como Juiz da Corte Internacional de Justiça no caso
Gabcikovo-Nagymaros (Eslováquia vs. Hungria, 1997):
“[...] Um compromisso do tipo do tratado bilateral de 1977 não poderia
ser objeto de uma denúncia ordinária em curso de execução. Mas a notificação
húngara de 19 de maio de 1992 não foi uma denúncia ordinária. Ela sobreveio
depois que as duas partes faltaram a seus compromissos recíprocos: a Hungria
pelo abandono do trabalho sob sua responsabilidade, a Tchecoslováquia pela
adoção da variante C. Entendo a nota de 19 de maio de 1992 como o ato formal
de liquidação do tratado que antes disso, por razões diferentes e por mais de
uma vez, cada uma das partes já havia repudiado. Vejo, portanto, na espécie,
uma hipótese heterodoxa de ab-rogação.
A meu ver a regra pacta sunt servanda significa que o tratado cria direi­
tos recíprocos entre as partes na base da convergência de interesses, da inte­
gração de vontades soberanas que provavelmente prosseguirão convergindo ao
longo do tempo. Quando de ambos os lados do processo convencional advém
a falta de rigor na execução do que foi acordado, o compromisso enfraquece,
tornando-se vulnerável ao repúdio formal de uma das partes, pouco importan­
do saber qual dentre elas negligenciou primeiro seus deveres, ou se ambas
faltaram com rigor de maneiras diferentes. Os tratados tiram sua força da von­
tade dos Estados que os concluem. Eles não possuem um valor objetivo que os
sacralize independentemente desta comunhão de intenções”.
52. A vontade unilateral. A exemplo da ratificação e da adesão,
a denúncia é um ato unilateral, de efeito jurídico inverso ao que
produzem aquelas duas figuras: pela denúncia, manifesta o
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Estado sua vontade de deixar de ser parte no acordo internacio­
nal. Só a comodidade didática determina o estudo da denúncia
na seção pertinente à extinção dos tratados, visto que esse ato
unilateral, embora hábil, por razão óbvia, para extinguir o tra­
tado vigente entre duas partes apenas, é inofensivo à continui­
dade da vigência dos tratados multilaterais. No caso destes, tudo
quanto se extingue pela denúncia é a participação do Estado
que a formula.
Tratados existem que, por sua própria natureza, são imunes à denúncia uni­
lateral. Tal é, seguramente, o caso dos tratados de vigência estática. Não se com­
preende que a vontade singular de uma das partes possa fazer reverter certo pacto
de cessão territorial onerosa, ou de definição da fronteira comum. Esses tratados,
mais expressivos de um título jurídico que de normas operacionais de conduta,
costumam ser bilaterais. No plano coletivo dificilmente se encontrarão compromis­
sos de vigência estática. Há, porém, quem considere igualmente imunes à denúncia,
por sua própria natureza, os tratados “normativos” de elevado valor moral e social,
quais as Convenções de Genebra sobre o direito humanitário aplicável aos conflitos
armados, ou o Pacto Briand-Kellog de renúncia à guerra como instrumento de
política nacional. Se na prática, entretanto, semelhantes acordos coletivos constituem
raro objeto de denúncia, a provável razão não está no entendimento de que legal­
mente imunes à rejeição unilateral, mas no receio do desgaste político que aquele
gesto, em todo caso, importaria.
Quando um tratado admite e disciplina sua própria denúncia,
o problema da possibilidade jurídica da retirada unilateral sim­
plesmente não existe. Já o silêncio do texto convencional obriga
a investigar sua denunciabilidade à luz de sua natureza, tarefa
nem sempre simples.
Muitos compromissos internacionais facultam a retirada
unilateral a todo momento — o que significa que, em tese, pode
uma das partes tomar essa atitude logo após a entrada em vi­
gor —, e tudo quanto exigem é o decurso de um prazo de acomo­
dação, no interesse dos copactuantes. Dá-se-lhe correntemente
o nome de pré-aviso, embora ele tenha, com mais frequência, o
feitio de um prazo de dilação dos efeitos da denúncia: o Estado
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retirante não previne seus pares de que vai denunciar; ele efeti­
vamente denuncia o tratado, mas só se encontra desobrigado
após o curso do período previsto.
Antes da Convenção de Viena — e ainda hoje, para os Estados por ela não
obrigados — o tratado silente sobre o tema da denúncia, mas que se deva conside­
rar denunciável por sua natureza, dá ensejo a que o Estado retirante se entenda
desobrigado tão logo dá notícia formal da denúncia aos copactuantes. Foram estes,
aparentemente, os sentimentos do governo da Indonésia quando aquele país se
afastou da ONU em 1965. Sob o pálio da Convenção de Viena previnem-se os in­
convenientes da desobrigação abrupta. Dispondo sobre estas exatas circunstâncias,
a Convenção dá como regra geral o pré-aviso de doze meses62.
A denúncia se exprime por escrito numa notificação, carta
ou instrumento: sua transmissão a quem de direito configura o
ato internacional significativo da vontade de terminar o compro­
misso. Trata-se de uma mensagem de governo, cujo destinatário,
nos pactos bilaterais, é o governo da parte copactuante. Se co­
letivo o compromisso, a carta de denúncia dirige-se ao depo­
sitário, que dela fará saber às demais partes.
A prática internacional mostra a denúncia como um ato retratável: não se
concebe em favor da outra parte — que, afinal, poderia também denunciar o pacto
se o quisesse — um direito de objeção ao gesto com que o Estado retirante, no
curso do prazo de acomodação, volta atrás e exprime a vontade de permanecer
comprometido. Está claro, porém, que, se a denúncia já viu seus efeitos consuma­
dos — vale dizer, se já se encontra extinto o pacto bilateral, ou se o Estado retiran­
te já se pôs fora do domínio jurídico do pacto coletivo — não há retratação possível.
Neste último caso, caberá cogitar do retorno mediante adesão.
Questiona-se a possibilidade jurídica da denúncia parcial,
ou seja, da rejeição superveniente de alguns dispositivos con­
vencionais, sem quebra do vínculo. O assunto não é estranho à
62. Art. 56, § 2.
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Convenção de Viena, que dele cuidou, porém de modo pouco
satisfatório. É fundamental que se indague, primeiro, se os dis­
positivos visados pelo intento de denúncia parcial poderiam ter
sido objeto de reservas — já que, negativa a resposta, não há
como cogitar de semelhante denúncia. Afirmativa a resposta,
convirá saber ainda se o tratado é aberto à adesão, pois somente
neste caso se terá apoio na lógica jurídica para garantir que a
denúncia parcial deve ser aceita. Não há como sustentar o contrá­
rio: tanto seria admitir que, proibida a via simples, igual fim o
Estado alcançaria pela via tortuosa — e irrecusavelmente líci­
ta —, consistente em denunciar o tratado na íntegra, e a ele retor­
nar, mediante adesão, com reserva aos dispositivos indesejados.
53. Denúncia e direito interno. O estabelecimento de relações
diplomáticas entre os Estados Unidos da América e a Repúbli­
ca Popular da China, nos anos setenta, levou o governo norte-americano a uma redefinição de sua postura ante a República
da China (Taiwan), com a qual celebrara tratados diversos.
Quando, no governo Carter, foi denunciado o Tratado de defe­
sa mútua EUA-Taiwan, Barry Goldwater e outros membros do
Senado americano pretenderam discutir, na Justiça, o poder
presidencial para a denúncia de tratados internacionais. Basi­
camente, o raciocínio dos autores nesse litígio apoiava-se no
princípio do ato contrário: se, nos termos da Constituição, a
conclusão de um tratado depende de que se conjuguem a von­
tade do presidente dos Estados Unidos e a de dois terços do
Senado, deve entender-se que essas mesmas vontades devem
estar reunidas para escorar o rompimento do compromisso. A
esse interessante problema a Justiça americana deixou de dar
solução, à base de um argumento que não constitui novidade
para os juristas daquele país, e que não cessa de surpreender os
analistas bra­si­leiros, entre outros: o de que se tratava de uma
questão política, estranha por isso ao deslinde judiciário. No
Brasil, a questão de saber se pode o presidente da República
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denunciar, com sua só autoridade, um tratado para cuja ratifi­
cação tenha ele dependido da voz aprobatória do Congresso
Nacional, colocou-se em 1926, quando, nos últimos meses do
governo de Artur Bernardes, ficou decidido que o país se des­
ligaria da Sociedade das Nações. Clóvis Beviláqua, consultor
jurídico do Itamaraty, foi chamado a opinar sobre a competên­
cia do governo, e o fez em longo parecer, de 5 de julho de 1926,
cujo primeiro parágrafo enuncia sua tese central:
“Em face da Constituição Federal pode o Poder Executivo, sem ouvir o Con­
gresso Nacional, desligar o país das obrigações de um tratado, que, no seu texto,
estabeleça as condições e o modo da denúncia, como é o caso do Pacto da Socie­
dade das Nações, art. 1º, última parte. Essa proposição parece evidente, por si
mesma. Se há no tratado uma cláusula, prevendo e regulando a denúncia, quando
o Congresso aprova o tratado, aprova o modo de ser o mesmo denunciado; portan­
to, pondo em prática essa cláusula, o Poder Executivo apenas exerce um direito que
se acha declarado no texto aprovado pelo Congresso. O ato da denúncia é mera­
mente administrativo. A denúncia do tratado é modo de executá-lo, porquanto numa
de suas cláusulas se acha consignado o direito de o dar por extinto.(...)”63.
Apesar do engenho com que a desenvolveu o grande juris­
consulto, a tese de Clóvis Beviláqua é inconsistente. Ela invoca
a previsão convencional da denúncia, e vê aí uma cláusula que
“não difere das outras”. Isto vale dizer que denunciar um trata­
do, quedando fora de seu domínio jurídico, e transformando,
pois, o compromisso em não compromisso, é algo que não di­
fere de exercitar uma qualquer dentre as cláusulas de execução
propriamente ditas. A quem tal proposição não pareça elemen­
tarmente inaceitável — pelo abismo que separa a cláusula de
denúncia das cláusulas pertinentes à execução do combinado —
convirá lembrar que a tese em exame obriga a admitir, a fortio­
ri, que o governo não depende do parlamento para levar a termo
63. Pareceres, II, p. 347 e s.
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a emenda ou reforma de tratados vigentes, sempre que prevista
no texto primitivo. E semelhante pretensão, ao que se saiba, não
foi jamais exteriorizada pelo governo brasileiro, ou por outro
que se encontre sujeito a uma disciplina constitucional parecida.
Afinal, não costuma haver limite quantitativo ou qualitativo para
o que a reforma pode, em tese, importar a um tratado: mediante
emendas é possível converter um acordo de intercâmbio despor­
tivo num pacto de aliança militar ou num compromisso de ces­
são gratuita de parte do território nacional.
Tenho como certo que o chefe do governo pode, por sua singular autoridade,
denunciar tratados internacionais — como de resto vem fazendo, com franco de­
sembaraço, desde 1926. Fundo-me num argumento diverso daqueles que inspiraram
o parecer de Beviláqua, em face do qual é de todo indiferente que o tratado dispo­
nha ou não sobre a perspectiva de sua própria denúncia. Tudo quanto importa é que
o tratado seja validamente denunciável: se não o é, por sua natureza, ou por impe­
dimento cronológico convencionado, não há cogitar de denúncia lícita, e, pois, de
quem seria competente, segundo o direito interno de uma das partes, para decidir
a respeito.
O Estado é originalmente livre de compromissos tópicos:
tal o princípio da tabula rasa, segundo o qual toda soberania
nascente encontrará diante de si um espaço vazio de obrigações
convencionais, preenchendo-o à medida que livremente se ponha,
desse momento em diante, a celebrar tratados. Parece bastante
lógico que, onde a comunhão de vontades entre governo e par­
lamento seja necessária para obrigar o Estado, lançando-o numa
relação contratual internacional, seja suficiente a vontade de um
daqueles dois poderes para desobrigá-lo por meio da denúncia.
Não há falar, assim, à luz impertinente do princípio do ato con­
trário, que, se as duas vontades tiverem de somar-se para a
conclusão do pacto, é preciso vê-las de novo somadas para seu
desfazimento. Antes, cumpre entender que as vontades reunidas
do governo e do parlamento presumem-se firmes e inalteradas,
desde o instante da celebração do tratado, e ao longo de sua
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vigência pelo tempo afora, como dois pilares de sustentação da
vontade nacional. Isso levará à conclusão de que nenhum trata­
do — dentre os que se mostrem rejeitáveis por meio de denúncia
— deve continuar vigendo contra a vontade quer do governo,
quer do Congresso. O ânimo negativo de um dos dois poderes
políticos em relação ao tratado há de determinar sua denúncia,
visto que significa o desaparecimento de uma das bases em que
se apoiava o consentimento do Estado.
Aceito que seja esse ponto de vista, ter-se-ão como válidas todas as denún­cias
resultantes do puro alvitre governamental. Em contrapartida, estará também aceita
a tese de que a vontade do Congresso é hábil para provocar a denúncia de um pac­
to internacional, mesmo quando não coincidente com as intenções do poder Exe­
cutivo. Neste passo, é imperioso reconhecer o desequilíbrio reinante entre os ins­
trumentos de ação do governo e os do Congresso. Se o intento de denunciar é do
primeiro, o ato internacional pertinente dará sequência imediata à decisão do pre­
sidente da República — a quem se subordinam todos os mecanismos do relaciona­
mento exterior e todos os condutos da comunicação oficial com nações estrangeiras
e demais pessoas jurídicas de direito das gentes. Tendo origem no Congresso o
propósito da denúncia, não deixa de ser do Executivo a responsabilidade por sua
formulação no plano internacional. De par com isso, o meio com que o Congresso
exterioriza sua vontade ante o governo não pode ser um decreto legislativo de
“rejeição” do acordo vigente — à falta de previsão de semelhante ato na faixa da
competência privativa do parlamento. Por exclusão, cabe entender que a lei ordi­
nária é o instrumento próprio para que o Legislativo determine ao governo a de­
núncia de tratados, tal como fez em 1911, no domínio extradicional64.
A lei ordinária, entretanto, não é produto exclusivo do parlamento, visto que
depende de sanção do chefe do governo. Este vetará o projeto caso discorde da ideia
da denúncia; e só o verá promulgado, contra sua vontade, caso assim decida em
sessão conjunta a maioria absoluta do total de membros de cada uma das casas do
Congresso. Aqui se encontra a evidência maior do desequilíbrio entre a manifestação
da vontade do governo e a expressão da vontade do Congresso, no sentido de des­
vincular o país de um tratado internacional. A segunda não apenas percorre, na forma,
64. A Lei n. 2.416, de 28 de junho de 1911, havendo ditado novas normas a respeito
da extradição, determinou que o poder Executivo denunciasse, dentro de certo prazo, todos
os tratados extradicionais então vigentes.
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caminhos difíceis: ela deve, antes de tudo, encontrar-se apoiada no amplo quorum
que nossa ordem constitucional reclama para a rejeição do veto presidencial.
54. Mudanças circunstanciais. Refere-se este tópico à super­
veniência da impossibilidade do cumprimento do tratado, e
ainda à alteração fundamental das circunstâncias, fenômeno
visado pela teoria da cláusula rebus sic stantibus.
a) A execução tornada impossível. A Convenção de Viena
dá ao pactuante o direito de liberar-se do compromisso quando
sua execução tenha resultado impossível, por força da extinção
definitiva do respectivo objeto. Se o fator frustrante for tempo­
rário, só dará ensejo à suspensão do cumprimento do pacto.
Num segundo parágrafo do art. 61, a Convenção retira esses direitos ao Es­
tado que tenha, ele próprio, dado causa à impossibilidade, por força de haver vio­
lado alguma obrigação decorrente do compromisso.
b) “Rebus sic stantibus”. De modo sugestivo, a Convenção
de Viena prescreve que a mudança fundamental das circunstân­
cias não pode ser invocada para que o pactuante se dispense de
cumprir um tratado, a menos que presentes os requisitos arrolados
no art. 62. Diversos são os elementos que a invocabilidade do
princípio rebus sic stantibus65, à luz desse regime, pressupõe:
1) As circunstâncias aí versadas devem ter sido contempo­
râneas da expressão do consentimento das partes, e constituído
condição essencial desse consentimento. Exclua-se, pois, da
qualidade de ponto de referência toda circunstância extempo­
rânea — porque anterior à conclusão do tratado, ou porque
65. A máxima conventio omnis intelligitur rebus sic stantibus foi encontrada por Al­
berico Gentili na obra de Tomás de Aquino, e analisada em De jure belli, seu livro de 1598.
Significa que toda convenção deve ser entendida sobre a premissa de que as coisas perma­
necem no estado em que se achavam quando da assunção do compromisso.
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super­veniente —, bem assim toda circunstância periférica, não
essencial à determinação, na consciência das partes, da vontade
de pactuar.
2) A mudança nessas circunstâncias deve ter sido funda­
mental, levadas em conta sua dimensão e seu valor qualitativo.
Se assim não fosse, faltaria seriedade ao princípio rebus sic
stantibus, visto que alterações — carentes, no entanto, da carga
de radicalidade aqui exigida — produzem-se necessariamente,
e a cada dia, no cenário das relações internacionais.
3) Essa mudança circunstancial deve, ademais, entender-se
imprevisível. De outro modo, ou o tratado dispõe sobre como
procederão as partes em face de tal fenômeno, ou guarda silên­
cio, indicando que, apesar da eventual e previsível mudança, o
pacto há de ser executado com rigor.
O tratamento dado pela Convenção de Viena ao princípio
rebus sic stantibus leva à ideia de sua invocação pela parte interes­
sada em ver extinto ou suspenso o tratado, à conta da mudança nas
circunstâncias. Essa invocação tem por destinatárias as restantes
partes, às quais não se impõe. Não vale, pois, invocar a cláusula
depois de consumada a afronta ao compromisso. Qual pondera
Rousseau, a cláusula rebus não justifica a ruptura unilateral dos
tratados: sua invocação reclama um acordo entre as partes reco­
nhecendo a mudança fundamental das circunstâncias ou, “...na
falta desse acordo, uma decisão arbitral ou judiciária”66.
Muitos foram, na prática internacional, os casos de denúncia ilícita de tratados
com invocação unilateral da cláusula rebus; e também os casos em que, reconhecen­
do a mudança circunstancial, as partes recompuseram seus compromissos. Pouquís­
simos, entretanto, os precedentes da jurisprudência internacional, arbitral e judiciá­
ria. Entre 1929 e 1932 a Corte da Haia teve sob exame o litígio franco-suíço relati­
vo às Zonas francas de Alta-Savoia e Gex 67. A França invocou o princípio rebus sic
66. Rousseau, p. 75-76.
67. Recueil CPJI (1929), A-22 e (1932), AB-46.
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stantibus, afirmando que as regras fixadas após as guerras napoleônicas, suprimindo
as linhas alfandegárias francesas alguma distância aquém da fronteira franco-suíça,
deviam entender-se caducas em face da mudança das circunstâncias. Segundo o
governo francês, a supressão das alfândegas em 1815 fizera de Genebra e das zonas
francas de Alta-Savoia e Gex uma unidade econômica, que a instituição das alfân­
degas federais suíças, em 1849, veio a destruir. A Corte rejeitou esse argumento, já
que não provado pela França que as zonas francas haviam sido criadas à considera­
ção da ausência de barreiras alfandegárias em Genebra, em 1815.
55. Jus cogens. O direito “que obriga”, o direito “imperativo”,
foi tema originalmente teorizado nesta área por juristas de ex­
pressão alemã, destacando-se Alfred Verdross e Friedrich von
Heydte, nos anos que precederam a segunda grande guerra.
Seria ele o conjunto de normas que, no plano do direito das
gentes, impõem-se objetivamente aos Estados, a exemplo das
normas de ordem pública que em todo sistema de direito interno
limitam a liberdade contratual das pessoas. Rousseau enfatiza a
diversidade entre a ordem estatal doméstica e a ordem interna­
cional na crítica que faz à teoria do jus cogens: no primeiro caso
existe subordinação irrecusável, de sorte que o Estado define as
normas de ordem pública e com elas limita, por sua autoridade,
a liberdade dos particulares para contratar. Não se sabe quem
pode legitimamente definir o suposto direito internacional im­
perativo. Além disso, não há como nivelar a estatura do tratado,
em direito internacional público, à do contrato em direito inter­
no. A doutrina diverge, por último, quanto à natureza e ao con­
teúdo do jus cogens.
A matéria é substancialmente versada em dois pontos distintos da Convenção
de Viena:
“Art. 53. Tratado em conflito com uma norma imperativa de direito inter­
nacional geral (“jus cogens”). É nulo o tratado que, no momento de sua con­
clusão, conflite com uma norma imperativa de direito internacional geral. Para
os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional
geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos
Estados no seu conjunto, como uma norma da qual nenhuma derrogação é per­
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mitida e que só pode ser modificada por uma norma de direito internacional
geral da mesma natureza”.
“Art. 64. Superveniência de uma nova norma imperativa de direito interna­
cional geral (“jus cogens”). Se sobrevier uma nova norma imperativa de direito
internacional geral, qualquer tratado existente em conflito com essa norma torna-se
nulo e extingue-se.”
Estes dispositivos contribuíram para que diversos países — entre eles o Bra­
sil e a França — tenham de início evitado ratificar a Convenção de Viena, embora
subordinados à maior parte de quanto nela se estampa, a título costumeiro. No
Brasil, a Convenção foi enviada pelo governo ao Congresso, para exame e eventu­
al aprovação, em abril de 1992.
A teoria do jus cogens, tal como aplicada pela Convenção
de Viena sobre o direito dos tratados, é francamente hostil à
ideia do consentimento como base necessária do direito inter­
nacional. Ali se pretende que, qual no domínio centralizado e
hierárquico de uma ordem jurídica interna, regras imperativas
— geradas por voto majoritário ou consenso de assembleias,
ou deduzidas em cenário ainda menos representativo do inte­
resse geral — frustrem a liberdade convencional dos países não
aquiescentes, numa época em que o esquema de poder reinan­
te na cena internacional desaconselha o Estado, cioso de sua
individualidade e de seus interesses, de arriscar parte expressi­
va dos atributos da soberania num jogo cujas regras ainda se
encontram em processo de formação.
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Capítulo II
FORMAS EXTRACONVENCIONAIS
DE EXPRESSÃO DO DIREITO
INTERNACIONAL
56. Proposição da matéria. Este capítulo versa todas as fontes
do direito internacional à exceção dos tratados, que constituíram
o objeto da análise precedente. Aqui, observada a ordem dos tó­
picos principais do art. 38 do Estatuto da Corte da Haia, estudam-se primeiro as formas não escritas de expressão do direito das
gentes: o costume e os princípios gerais. As seções seguintes
cuidam de duas formas escritas, e ausentes do rol estatutário — o
que retrata o caráter controvertido de sua qualificação como fon­
tes autônomas de direito internacional público: os atos unilaterais
e as decisões normativas que se editam no âmbito das organiza­
ções internacionais.
Seção I — O COSTUME INTERNACIONAL
57. Elementos do costume. A norma jurídica costumeira, nos
termos do Estatuto da Corte, resulta de “uma prática geral acei­
ta como sendo o direito”. Essa expressão dá notícia do elemen­
to material do costume, qual seja a prática — a repetição, ao
longo do tempo, de certo modo de proceder ante determinado
quadro de fato —, e de seu elemento subjetivo, qual seja a con­
vicção de que assim se procede não sem motivo, mas por ser
necessário, justo, e consequentemente jurídico. A linguagem
estatutária pede ainda algum comentário no que concerne ao
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caráter geral que parece exigir-se de toda prática pretendidamen­
te transfigurada em norma costumeira.
58. O elemento material. O procedimento cuja repetição regu­
lar constitui o aspecto material do costume não é necessariamen­
te positivo: pode, também, cuidar-se de uma omissão, de uma
abstenção, de um não fazer, frente a determinado contexto. Ação
ou omissão, os respectivos sujeitos hão de ser sempre pessoas
jurídicas de direito internacional público — categoria que não
compartilha com indivíduos, empresas ou quaisquer outras en­
tidades imagináveis, a prerrogativa de produzir o direito das
gentes, de dar à luz suas normas costumeiras ou convencionais.
Até algumas décadas atrás dir-se-ia simplesmente que os sujei­
tos de todo procedimento, ativo ou passivo, habilitado a confi­
gurar o elemento material da norma costumeira, hão de ser
sempre Estados soberanos. Hoje não vale negar que aquelas
outras personalidades jurídicas de direito das gentes, as organi­
zações internacionais, têm também qualidade para integrar o
processo de produção do direito consuetudinário: não há qualquer
fundamento lógico que autorize a pensar de modo diverso.
Fala-se numa repetição de certo procedimento ao longo do
tempo, e isto gera no espírito do estudioso a questão: quanto
tempo? Regras costumeiras existem — por exemplo, no domínio
do direito relativo ao alto mar, à guerra, à gênese dos tratados
— que se forjaram num passado remoto, e que se supõem con­
solidadas só ao cabo de alguns séculos de uma prática rarefeita,
em razão das circunstâncias. Observe-se, porém, que a celeri­
dade das coisas contemporâneas contagiou o processo de pro­
dução do direito costumeiro. No julgamento do caso da plata­
forma continental do mar do Norte, a Corte Internacional de
Justiça teve ocasião de estatuir que “...o transcurso de um perí­
odo de tempo reduzido não é necessariamente, ou não constitui
em si mesmo, um impedimento à formação de uma nova norma
de direito internacional consuetudinário...”1.
1. Recueil CIJ (1969), p. 43. V. também Tunkin, p. 76.
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59. Elemento subjetivo: a opinio juris. Pode-se, ao longo do
tempo, repetir determinado procedimento por mero hábito, moda
ou praxe. O elemento material não seria bastante para dar ense­
jo à norma costumeira. É necessário, para tanto, que a prática
seja determinada pela opinio juris, vale dizer, pelo entendimen­
to, pela convicção de que assim se procede por ser necessário,
correto, justo e, pois, de bom direito.
Ainda no caso da plataforma continental do mar do Norte, recolhe-se do
acórdão da CIJ, a propósito do duplo elemento da norma costumeira:
“Os atos em questão não só devem constituir uma prática estabelecida, como
devem ter tal caráter, ou realizar-se de tal forma, que demonstrem a crença de que
a dita prática se entende obrigatória em virtude de uma norma jurídica que a pres­
creva. A necessidade de tal crença, ou seja, a existência de um elemento subjetivo,
acha-se implícita no próprio conceito de opinio juris sive necessitatis. O Estado
interessado deve sentir que cumpre o que supõe uma obrigação jurídica. Nem a
frequência, nem o caráter habitual dos atos é em si mesmo suficiente. Há numero­
sos atos internacionais, no terreno do protocolo, por exemplo, que se realizam
quase invariavelmente, mas estão motivados por simples considerações de cortesia,
de conveniência ou de tradição, e não por um sentimento de dever jurídico”2.
Com lógica cristalina, o professor Josef Kunz ponderou certa vez que o nas­
cimento de toda regra costumeira repousa sobre um erro jurídico. Se a regra em
questão surge apenas como resultado da prática e da opinio juris, isto significa que,
antes mesmo do surgimento da regra, os Estados já a exercitam por conta da con­
vicção — prematura e, pois, errônea — de que ela existe3. Essa ironia tem como
origem a abstração de uma das características cruciais da norma costumeira, qual
seja a impossibilidade de determinar o exato instante histórico de seu surgimento,
de sua consolidação — ou, indo diretamente ao termo nuclear: de sua vigência.
Todo tratado nos brinda com a data certa — expressa em dia, mês e ano do calen­
dário — em que passou a valer como norma, em que passou a obrigar cada um dos
Estados comprometidos com seu texto. No domínio do costume, é sabido que as
coisas não são tão simples. Certo dia, pelo meio do século XIX, uma legação di­
plomática em capital latino-americana dá asilo a um perseguido político, e consegue
que o Estado territorial não lhe reclame a devolução, mas conceda salvo-conduto.
O evento se reproduz, nos anos seguintes, noutras capitais. Gradualmente emerge
2. Recueil CIJ (1969), p. 44.
3. J. L. Kunz, The nature of customary international law; AJIL (l953), v. 47, p. 667.
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a suposição de que a tolerância do Estado territorial ao asilo diplomático é de bom
direito. A suposição transforma-se em certeza. Mais tarde, já o proclamam alguns
governos, e já o registra a doutrina. Não há como determinar o preciso momento
histórico do início da vigência da norma costumeira, de sorte que o paradoxo apon­
tado por Kunz é inevitável. À força das circunstâncias, os Estados começam a crer
que a norma existe ... e exatamente por isso será possível proclamar, algum tempo
depois, sua existência.
60. O problema da generalidade. O exemplo evocado no tópico
anterior — o asilo diplomático, instituição jurídica estritamente
latino-americana nos tempos modernos — lembra a possibilidade
do aparecimento de regras costumeiras regionais. Existem, por­
tanto, variados graus de generalidade no espaço, sendo possível
que os redatores do texto estatutário tenham falado de uma prá­
tica geral no sentido de prática comum, isto significando aquilo
que é um tanto óbvio: não se formam costumes internacionais
— assim como não se celebram tratados internacionais — por
vontade unilateral. Impõe-se o consentimento e, pois, a pluralida­
de, ainda que em número mínimo, de vontades singulares.
Um dos grandes erros de certa parte da doutrina europeia consistiu em supor
e qualificar como universais certas regras costumeiras regionais, próprias do quadro
europeu. Um dia o professor Akehurst, referindo-se aos riscos do processo de co­
dificação do direito costumeiro, lembrou que
“...o fracasso de um projeto de codificação pode lançar dúvidas sobre normas
consuetudinárias já consideradas como firmemente estabelecidas (como aliás su­
cedeu, após essa conferência, com a norma das três milhas referente à extensão das
águas territoriais)”4.
O caso da extensão limitada do mar territorial é típico. Cuidou-se de costume
europeu, estreitamente relacionado com as próprias dimensões da Europa e dos
mares que a circundam, não sendo possível entender a razão por que o Peru, frente
ao Pacífico, ou a Guiné, frente ao Atlântico, e mesmo a Islândia, no seu isolamento
ártico, devessem admitir como “firmemente estabelecida” a regra das três milhas.
4. Michael Akehurst, A modern introduction to international law, Londres, Allen &
Unwin, 1990, p. 42.
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61. Prova do costume: atos estatais. A parte que alega em seu
prol certa regra costumeira deve provar sua existência e sua opo­
nibilidade à parte adversa: disse-o a Corte Internacional de Jus­
tiça no julgamento do caso do direito de asilo5. Esse ônus costu­
ma ser marcadamente mais pesado que o da prova de uma regra
convencional: nada tão simples quanto demonstrar que um tra­
tado existe, ou seja, encontra-se em vigor, e que o Estado do qual
se reclama certa conduta fiel ao texto é uma das partes por ele
obrigadas. No caso da regra costumeira, o julgamento da deman­
da entre as repúblicas da Colômbia e do Peru sobre o asilo diplo­
mático, pela CIJ, em 1950-51, ilustrou de modo primoroso a
dificuldade da prova do costume em sua configuração plena. A
Corte entendeu demonstrada a existência, na América Latina, de
um direito consuetudinário tocante àquela forma de asilo, e então
já transposto, em traços rudimentares e incompletos, para a for­
ma escrita, numa Convenção da Havana de 1928 e em outros
textos negociados em Montevidéu, nos anos trinta. Mas a exata
norma invocada pela Colômbia, a da qualificação unilateral dos
pressupostos do asilo pela autoridade asilante, não lhe pareceu
oponível ao Peru em face da falta de evidência de que todas as
repúblicas da região — e em especial a nação demandada — hou­
vessem fomentado esse aspecto particular do instituto do asilo
mediante uma prática aceita como sendo o direito.
Busca-se, materialmente, a prova do costume em atos esta­
tais, não só executivos — via de regra aqueles que compõem a
prática diplomática —, mas ainda nos textos legais e nas decisões
judiciárias que disponham sobre temas de interesse do direito
das gentes.
Versando o tema da nacionalidade em direito internacional público, Paul Weis
dizia, com razão, que a concordância das regras de direito interno dos diversos
5. Recueil CIJ (l950), p. 276-277.
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Estados sobre certa matéria não é suficiente para criar uma regra de direito inter­
nacional costumeiro6. Mas o autor terá levado longe demais seu ceticismo ao du­
vidar de que a análise do direito comparado possa conduzir à afirmação eventual
de uma regra costumeira, ou de um princípio geral de direito das gentes. Ian
Brownlie, numa crítica clarividente à proposição de Weis, lembrou que muitas
vezes é impossível contar com a existência de manifestações diplomáticas dos
Estados sobre certos temas, as legislações internas constituindo assim a melhor
evidência da opinião geral. No que concerne, por exemplo, ao problema do mar
territorial — conta Brownlie —, a prova da prática dos Estados, acessível à Comis­
são do Direito Internacional das Nações Unidas, consistiu sobretudo em textos
legislativos domésticos; e mesmo os comentários que os governos endereçaram à
Comissão faziam constante referência aos respectivos direitos nacionais7.
62. Prova do costume no plano internacional. Busca-se ainda
a prova do costume na jurisprudência internacional8 e, obser­
vada a metodologia própria, até mesmo no teor dos tratados e
na crônica dos respectivos trabalhos preparatórios. Quando bi­
laterais, se classificados ratione materiae, os tratados permitem
a indução de valores costumeiros em temas como a extradição
e o traçado de limites fluviais, a título de exemplo. Os grandes
textos multilaterais, do gênero “normativo”, dificilmente fazem
nascer regras escritas a partir do nada: é comum que declarem
normas costumeiras preexistentes; assim como podem consoli­
dar — lembra Jiménez de Aréchaga — aquele costume encon­
trado in statu nascendi, ou favorecer, mediante dispositivos
programáticos, o surgimento ulterior de novos costumes9. Pare­
ce mesmo que o pioneiro dentre os tratados coletivos, o Règle­
ment de Viena, de 1815, sobre aspectos do direito diplomático,
não fez mais que trazer à forma escrita regras já admitidas a
6. Paul Weis, Nationality and statelessness in international law, Londres, Stevens,
1956, p. 98.
7. Ian Brownlie, The relations of nationality in public international law; BYIL (l963),
v. 39, p. 312.
8. V. adiante, nesta primeira parte, o capítulo III, seção I.
9. Eduardo Jiménez de Aréchaga, El derecho internacional contemporáneo, Madri,
Tecnos, 1980, p. 16.
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título costumeiro. Contemporânea, a Convenção de Viena sobre
o direito dos tratados, embora tenha inovado proposições des­
concertantes — como seu conceito de jus cogens e a respectiva
aplicação ao direito convencional —, retratou, na maior parte
de sua extensão, normas costumeiras de variado porte: algumas
universais, antigas e incontestadas; outras mais recentes, ainda
em fase de afirmação quando transfiguradas em direito escrito.
Tomando de um texto sem natureza convencional, a Carta de direitos e de­
veres econômicos dos Estados, adotada mediante resolução da Assembleia Geral
da ONU, em 12 de dezembro de 1974, Jiménez de Aréchaga procede a uma percu­
ciente seleção, em pontos diversos do documento, de dispositivos que apenas de­
claram o direito costumeiro existente — assim as regras que garantem a todo Es­
tado a livre escolha de seu sistema político e social, a soberania sobre seus recursos
naturais e a prerrogativa de regulamentar os investimentos estrangeiros em sua eco­
nomia —; de outros que dão alento a normas costumeiras emergentes — quais os
relativos aos recursos dos fundos marinhos e à proteção ambiental —; e daqueles,
enfim, de perfil programático, propensos a surtir efeito gerador de normas costu­
meiras — tal o caso dos que prevêem colaboração entre Estados para o controle
das empresas transnacionais10.
63. Costume e tratado: a questão hierárquica. Não há des­nível
hierárquico entre normas costumeiras e normas convencio­nais.
Um tratado é idôneo para derrogar, entre as partes celebrantes,
certa norma costumeira. De igual modo, pode o costume derro­
gar a norma expressa em tratado: em alguns casos desse gênero
é comum dizer que o tratado quedou extinto por desuso. O Es­
tatuto da Corte da Haia não tencionou ser hierar­quizante ao
mencionar os tratados antes do costume. É sabido que aqueles
primam grandemente sobre este em matéria de opera­cionalidade:
todo tratado oferece alto grau de segurança no que concerne à
apuração de sua existência, de seu termo inicial de vigência, das
partes obrigadas, e do exato teor da norma — expressa articula­
10. Eduardo Jiménez de Aréchaga, El derecho internacional, cit., p. 42-44.
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damente em linguagem jurídica. A apuração da norma costu­
meira é muitas vezes árdua e nebulosa. Nem por isso, contudo,
falta em doutrina quem entenda que o costume é a principal,
quando não a única fonte verdadeira do direito das gentes, cor­
respondendo à lei nos sistemas de direito interno, enquanto os
tratados equivaleriam, nesse mesmo quadro, a contratos entre
particulares11. Semelhante tese, mesmo quando não contamina­
da na raiz pela ideologia colonialista, haveria de rejeitar-se por
inconsistência. A sociedade internacional, no estágio contem­
porâneo, não autoriza essa espécie de analogia com a ordem
jurídica doméstica dos Estados.
64. Costume e tratado: a evolução histórica. O direito in­ter­na­
cional público, até pouco mais de cem anos atrás, foi essencial­
mente um direito costumeiro. Regras de alcance geral, nortean­
do a então restrita comunidade das nações, havia-as, e suposta­
mente numerosas, mas quase nunca expressas em textos con­
vencionais. Na doutrina, e nas manifestações intermitentes do
juízo arbitral, essas regras se viam reconhecer com maior expli­
citude. Eram elas apontadas como obrigatórias, já que resultan­
tes de uma prática a que os Estados se entregavam não por
acaso, mas porque convencidos de sua justiça e necessidade.
Vattel, destacando o caráter costumeiro das instituições jurídicas
internacionais, no século XVIII, denunciava a modéstia do di­
reito convencional da época, sem outro conteúdo que a espe­
cificação de compromissos bilaterais, e sem maior alcance que
o atinente à relação tópica entre os Estados contratantes. É uma
verdade histórica irrecusável esse contraste plurissecular entre
a eminência do costume e a posição subalterna do tratado. Não
se pode, no entanto, deixar de perceber quão relativa era a de­
cantada generalidade do direito internacional costumeiro. Vattel
expirou em 1767, antes que o concerto das “nações civilizadas”
11. V. o ponto de vista de O’Connell, p. 3-37.
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ganhasse terreno, cruzando o Atlântico. Seu direito internacional,
qual o da maioria de seus predecessores — e mais que o dos
teólogos espanhóis do século XVI —, é concebido sob uma
ótica estritamente europeia. Não porque faltassem fora da Eu­
ropa nações organizadas no molde estatal — e quantas, dentre
elas, admiráveis pelo primor das instituições ou pela antiguida­
de —, mas em razão da atitude muito peculiar que as potências
da Europa, a princípio sob o engenhoso argumento da cateque­
se cristã, decidiram adotar frente aos restantes povos.
O passar do tempo — e com ele a crescente extensão geográfica da comuni­
dade de Estados — não teria influência decisiva sobre a vitalidade das vocações
eurocêntricas. Charles de Visscher, em sua conhecida obra dos anos cinquenta,
dizia não crer que fosse possível a codificação do direito das gentes em plano uni­
versal, e extraía desse ceticismo algum regozijo: “A distância entre as concepções
jurídicas que se afrontam no seio da Assembleia Geral das Nações Unidas, mesmo
quanto aos pontos mais fundamentais, é tal que toda nova iniciativa dessa espécie
deve ser considerada perigosa para o progresso do direito internacional”12. Ora, a
Assembleia Geral das Nações Unidas só não foi um espelho imaculado da comu­
nidade internacional enquanto ali faltaram, por razões variadas, certas unidades
nacionais. Mas está claro que as restrições do professor de Visscher àquele órgão
não resultavam dessas ausências, senão exatamente do problema inverso, qual seja
a dimensão, vista como excessiva, do conjunto de nações habilitadas a marcar
presença e a exprimir vontade livre na cena mundial. O autor não fez segredo da
apreensão com que via semelhante fenômeno. Há nele, sem dúvida, perigo para o
progresso do direito internacional enquanto ciência lavrada em certa confraria
acadêmica, numa Europa desfalcada, durante bom tempo, pela defecção do flanco
oriental, mas compensada pela extensão ideológica que o processo histórico lhe
proporcionara na América do Norte, nas grandes ilhas da Oceania e em certos
outros sítios esparsos.
65. Codificação do direito costumeiro. A crônica registrou no
século XIX, a partir de 1815, a celebração dos primeiros tratados
multilaterais, aspecto formal de um fenômeno de fundo um
12. Charles de Visscher, Théories et réalités en droit international public, Paris, Pe­
done, 1953, p. 181.
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pouco anterior, que fora o uso do mecanismo convencional na
exposição de princípios e na enunciação de regras de conduta;
um objeto diverso, à evidência, do mero intercâmbio obriga­cional
entre Estados no plano da bilateralidade. Inventado esse hábil
instrumento de expressão escrita do direito das gentes, teria
parecido razoável a expectativa de uma codificação em ritmo
menos lento que o que desde então passou a marcar tal proces­
so. Afinal, dada a característica de imperatividade das regras
costumeiras, que a doutrina insistentemente sublinhava, era de se
crer prioritária, no interesse comum, a sua pronta e ampla pas­
sagem à forma escrita. Dificuldades sérias não se poderiam con­
trapor ao esforço coletivo pela transformação, em regras jurídicas
articuladas no rigor e na clareza do texto, daquele vultoso acervo
de regras jurídicas jamais escritas ou expressamente avençadas,
mas que, ainda na voz da melhor doutrina, nem por isso revestiam
menor certeza e obrigatoriedade. Ou não era bem assim?
Os percalços e contramarchas do processo de codificação
do direito internacional evidenciam, melhor que tudo, a fragili­
dade operacional de muitas regras puramente costumeiras, das
quais a imprecisão parece ser atributo frequente. Imprecisão
cujas consequências têm sua gravidade multiplicada quando não
mais se trata de deduzir a regra na quietude do labor doutrinário,
mas de equacionar a confrontação entre dois ou mais Estados
que, em clima de litígio, enunciam-na cada qual a seu modo.
Muito poucos foram os temas cuja passagem do estágio costumeiro ao con­
vencional se operou com exemplar facilidade. Um dos melhores exemplos foi
aquele pertinente ao regime e aos privilégios do serviço diplomático e do serviço
consular, objeto de minuciosa codificação, em Viena, em 1961 e em 196313. As
regras costumeiras, nesse terreno, não careciam de realidade nem de generalidade.
13. Convenção de Viena sobre relações diplomáticas, de 18 de abril de 1961 (Col.
MRE, n. 530); Convenção de Viena sobre relações consulares, de 24 de abril de 1963 (Col.
MRE, n. 550).
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Mas sua solidez derivava também, provavelmente, da neutralidade dessa matéria,
em termos de política internacional. Não por acaso, o regime jurídico do serviço
diplomático fora objeto de alguma codificação incipiente já em 181514, numa das
experiências mais precoces de emprego da técnica convencional para fins norma­
tivos gerais. É ainda comum que cada processo tópico de codificação traga à luz as
insuficiências do direito costumeiro preexistente. Assim o asilo diplomático, tal
como praticado na América Latina até 1928, era um instituto jurídico de precária
dimensão. O texto elaborado na Havana15 a respeito teria sido humílimo caso se
limitasse a dar forma escrita àquilo que já se assentara a título costumeiro. Não foi
assim. Os Estados pactuantes preencheram, à lavratura do texto convencional, alguns
espaços que até então o costume deixara no branco mais absoluto. O mesmo as­
sunto motivaria novas tratativas no âmbito panamericano, em 1933 e em 195416,
ditadas pela tendência ao aprimoramento do regime legal do asilo. Sucedeu então
algo que o bom-senso já teria feito esperar: maiores as especificações, tanto maior o
número de baixas na comunidade contratante, ou de reservas substanciais ao texto.
Fatos contemporâneos, como a dificuldade na construção convencional do
direito do mar, e a própria lentidão com que ganhou terreno a Convenção de Viena
sobre o direito dos tratados17, desnudam ainda melhor a falácia, durante tanto tem­
po apregoada, de que o costume possa ser encarado em definitivo como fonte
prioritária do direito internacional público. A tal extremo chegou, por vezes, o
entusiasmo de certas correntes doutrinárias, que não hesitaram em exorcizar a ideia
do consentimento tácito como fundamento da norma costumeira, partindo para a
mal definida descoberta, nessa norma, de valores objetivos, e acabando por asse­
verar que o costume se impõe aos novos Estados, independentemente de qualquer
argumento que de algum modo os envolva no seu processo de formação. A justifi­
cativa dessa tese tem permanecido, até agora, no terreno da tautologia. Mas deplo­
rar a tendência clássica à hipertrofia do costume, consistente sobretudo na outorga
descabida — e não raro mal-intencionada — da roupagem de certeza ou de gene­
ralidade a regras costumeiras ora controvertidas, ora dotadas de alcance limitado
no espaço, não significa, em absoluto, discutir a validade de tais regras quando
corretamente apuradas e deduzidas. Nem significa situá-las em plano inferior ao das
14. No Congresso de Paz de Viena (1815) adotou-se um “regulamento” versando, em
especial, a ordem de precedência no serviço diplomático. Esse texto seria complementado
em 1818, no Congresso de Aix-la-Chapelle.
15. Convenção sobre asilo, de 20 de fevereiro de 1928, concluída na Havana, por
ocasião da 6ª Conferência Interamericana (Col. MRE, n. 21, V).
16. Convenção sobre asilo político, de 26 de dezembro de 1933, Montevidéu, 7ª Con­
ferência Interamericana; Convenção sobre asilo diplomático e Convenção sobre asilo terri­
torial, ambas de 28 de março de 1954, Caracas, 10ª Conferência Interamericana (Col. MRE,
n. 390 e 515).
17. V. retro, § 6.
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normas expressas em tratados, bem que reconhecida a estas últimas, em termos de
puro pragmatismo, a virtude de melhor se prestarem à aplicação sem incidentes.
66. Fundamento de validade da norma costumeira. O tratado,
nos termos de uma tese tão antiga quanto incontrovertida, en­
contra seu fundamento no princípio pacta sunt servanda. O
Estado há de obedecer a quanto prescrevem os pactos em que
ele seja parte justamente porque pactuou, no livre exercício de
sua soberania, e aquilo que foi pactuado é para ser cumprido de
boa-fé. Com o costume, as coisas haveriam de explicar-se de
modo semelhante. Assim, Hugo Grotius viu neles o produto do
assen­timento dos Estados18. Esse entendimento, que Vattel com­
partilhou, seria prestigiado sobretudo pelas escolas positivistas
da Alemanha e da Itália, bem como pelas mais diversas expres­
sões do pensamento jurídico socialista, e por grande número de
autores não comprometidos com qualquer escola doutrinária19.
Outros publicistas, contudo, a partir de Savigny, prefeririam ver
no costume uma regra objetiva, exterior e superior às vontades
estatais20, conferindo-lhe aura semelhante à do chamado direito
natural, sem que entretanto demonstrassem a razão por que a
norma costumeira, assim compreendida, devesse obrigar Estados
nem comprometidos com sua prática, nem convencidos de sua
validade como imperativo da razão humana. A teoria consensu­
alista ou voluntarista, no dizer de muitos dos partidá­rios do
objetivismo, não explicaria a obrigatoriedade das regras costu­
meiras para os novos Estados, aqueles que, desde seu acesso à
independência, encontrar-se-iam automaticamente comprome­
tidos com todo o acervo consuetudinário preexistente. Não in­
18. Rousseau, p. 79.
19. V., por exemplo, o curso geral de direito internacional público ministrado pelo
professor Charles Chaumont na Academia da Haia, em 1970 (Recueil des Cours (l970), v.
129, p. 333 e s.).
20. Rousseau, p. 79.
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formam tais autores, de modo idôneo, a base sobre a qual ga­
rantem a existência dessa suposta obrigatoriedade — de resto,
incompatível com o princípio da tabula rasa, segundo o qual,
ao nascer, o Estado encontra diante de si um vazio de obrigações
internacionais, a ser preenchido na medida em que consinta sobre
regras costumeiras e se ponha a celebrar tratados. Tunkin lembrou,
com razão, que todo novo Estado tem o direito de repudiar certas
normas consuetudinárias, ponderando, todavia, que seu silêncio,
e seu ingresso em relações oficiais com os demais Estados, justi­
ficará oportunamente uma presunção de assentimento sobre o
direito costumeiro, em tudo quanto não tenha motivado, de sua
parte, o protesto, a rejeição manifesta21.
De fato, o consentimento não há de ser necessariamente expresso. Nas relações
internacionais, como nas interpessoais, é razoável admitir a concordância tácita,
bem assim a validade, em certas circunstâncias, de uma presunção do consentimen­
to. Eis por que a tese da oponibilidade de regras costumeiras a novos Estados só
configura um disparate quando se pretenda sustentá-la à margem de qualquer ar­
gumento que os envolva, de algum modo, na formação de tais regras. Com efeito,
Estados novos não surgem abruptamente do nada. O que neles há de novo, a rigor,
é o governo independente. O território preexiste, e nele o elemento humano. Jaz aí
uma história cuja análise permitirá dizer do envolvimento dessa comunidade, ora
alçada à soberania, nas práticas internacionais desenvolvidas pela potência a que
até então se vinculavam, ela e seu assento territorial. Em casos, porém, como o da
independência de Angola em 1975, não se irá identificar qualquer remota influên­
cia da colônia sobre o desempenho externo da antiga metrópole. Vale então aguar­
dar a atitude do novo membro da sociedade internacional sobre alguns institutos de
direito costumeiro. Pouco tempo basta, em regra, para que se possa presumir, em
relação a quanto não tenha motivado oposição manifesta, o consentimento tácito.
67. Fundamento do costume: a doutrina e a Corte. Certos
autores objetivistas, embora entendam irrecusavelmente obriga­
tório para os novos Estados o direito costumeiro preexistente,
21. Tunkin, p. 87.
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reconhecem aos Estados tradicionais a prerrogativa de manter-se
à margem de certa regra costumeira, mediante protesto e outras
formas expressas de rejeição. Citam a propósito a decisão da
CIJ no caso das pescarias (Noruega vs. Reino Unido), onde,
depois de reconhecida a existência de certa norma, foi ela dada
como não obrigatória para a Noruega, “...já que esta sempre se
opôs a qualquer tentativa de aplicá-la à costa norueguesa”22.
Parece que tais autores — no caso, Michael Akehurst23 — recu­
sam unicamente aos novos Estados, na primeira oportunidade
que se lhes depara de externarem sua opinião soberana, o direi­
to de negar aquiescência à norma costumeira, cuja decantada
“objetividade” teria assim endereço certo, a exemplo de alguns
outros institutos do direito internacional clássico. Paul Guggenheim,
quando percebeu que o requisito da opinio juris importa, de
certo modo, a prova da necessidade do reconhecimento do cos­
tume pelo Estado que se pretende obrigado, lançou dúvida sobre
a própria necessidade da opinio juris, entretanto admitida por
seus homólogos24.
Alfred Verdross insinuou que a vontade da maioria pode
impor normas ao conjunto, qual se a sociedade internacional
fosse hoje uma versão ampliada das ordens jurídicas domésticas,
marcadas pela centralização da autoridade25. Rolando Quadri foi
mais longe e, pressentindo que a maioria numérica, nos foros
internacionais, já não ostentava o perfil de outrora, doutrinou
sobre a objetividade — e consequente universalidade — de toda
norma costumeira ditada pelas forças preponderantes na cena
internacional, tanto significando o grupo de Estados qualitati­
22. Recueil CIJ (1951), p. 131.
23. Michael Akehurst, A modern introduction to international law, Londres, Allen &
Unwin, 1990, p. 40-41.
24. Paul Guggenheim, Les deux éléments de la coutume en droit international public,
Études Scelle, Paris, 1950, v. 1, p. 275-280.
25. Alfred Verdross, Derecho internacional público (trad. esp. A. Truyol y Serra),
Madri, Aguilar, 1969, p. 160-162.
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vamente habilitados a exteriorizar seu entendimento e garantir-lhe a eficácia...26. O próprio enunciado de semelhantes teses faz
supor que seja hoje ocioso contestá-las no domínio da análise
jurídica, dada sua congênita e indisfarçada inconsistência.
Julgando o caso Lotus, em 1927, a Corte da Haia estatuiu
que as normas obrigatórias para os Estados “...resultam de sua
vontade livremente expressa em tratados ou de usos geralmente
aceitos como expressão de princípios jurídicos”27. Muito mais
tarde, no caso da Barcelona Traction, a Corte lembrou o confli­
to de interesses entre duas distintas categorias de Estados no que
concerne à teoria e aos desdobramentos da responsabilidade
internacional, para concluir que, a propósito, só o assentimento
dos interessados teria podido permitir que se desenvolvesse um
conjunto unívoco de normas28.
Alguns autores, não obstante, entreviram no acórdão relativo à plataforma
continental do mar do Norte um repúdio implícito à tese consensualista29. Esse
acórdão é anterior, em um ano, ao que a Corte proferiu no caso da Barcelona
Traction.
Seção II — PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO
68. Significado original. O terceiro tópico do rol das fontes no
Estatuto da Corte da Haia refere-se aos princípios gerais de
direito reconhecidos pelas nações civilizadas. Há alguma evi­
dência de que os redatores do texto, em 1920, pensavam indicar
com essa expressão os princípios gerais “aceitos por todas as
nações in foro domestico, tais como certos princípios de proces­
26. Rolando Quadri, Le fondement du caractère obligatoire du droit international
public; Recueil des Cours (1952), v. 80, p. 625.
27. Recueil CPJI (1927), A-10, p. 18.
28. Recueil CIJ (1970), p. 48.
29. Eduardo Jiménez de Aréchaga, El derecho internacional, cit., p. 34-35.
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so, o princípio da boa-fé, e o princípio da res judicata” — na
conformidade do depoimento de Phillimore30.
O uso do termo nações civilizadas, embora desastrado, não teve intenção
discriminatória ou preconceituosa, tal como ficou desde logo esclarecido. A ideia
é a de que onde existe ordem jurídica — da qual se possam depreender princípios
— existe civilização. Ficam assim excluídas apenas as sociedades primitivas — que,
de todo modo, porque não organizadas sob a forma estatal, não teriam como ofe­
recer qualquer subsídio.
69. Entendimento extensivo. Hostil a uma série de princípios
comuns às ordens internas do Ocidente — como o dos direitos
adquiridos e o da justa indenização pela nacionalização de bens
estrangeiros — a escola soviética proporia, com relativo êxito,
um conceito mais elaborado e amplo. Cumpriria prestigiar antes
de tudo os grandes princípios gerais do próprio direito das gen­
tes na era atual: o da não agressão, o da solução pacífica dos
litígios entre Estados, o da autodeterminação dos povos, o da
coexistência pacífica, o do desarmamento, o da proibição da
propaganda de guerra31; sem prejuízo de outros, menos conjun­
turais, e sempre lembrados em doutrina ocidental, como o da
continuidade do Estado32. No domínio comum ao direito inter­
nacional e às ordens jurídicas domésticas, é virtualmente unâ­
nime o abono à validade de princípios ora de direito material,
ora de procedimento, todos com grande lastro histórico: pacta
sunt servanda, lex posterior derogat priori, nemo plus juris
transferre potest quam ipse habet.
70. Fundamento de validade dos princípios gerais. Quando
por nada mais fosse, por eliminação haveríamos de admitir que
30. V. Manley O. Hudson, The Permanent Court of International Justice, Nova York,
Macmillan, 1943, p. 610.
31. Tunkin, p. 35 e s.
32. Rousseau, p. 89.
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sobre o consentimento dos Estados repousa a validade dos prin­
cípios gerais enquanto normas jurídicas. Qual a alternativa? Se
se descarta toda inspiração teológica para a ciência do direito,
rejeitando-se, a fortiori, que da vontade de um grupo seleto de
Estados, ou das convicções do olimpo doutrinário, possa pro­
manar norma que obrigue indistintamente toda a sociedade in­
ternacional, resulta claro que o fundamento de validade dos
princípios gerais não difere, em essência, daquele sobre o qual
assentam os tratados e o costume. Dir-se-á que inúmeros dentre
esses princípios fluem de modo tão natural e inexorável do es­
pírito humano que não há como situá-los, ao lado do costume e
do tratado, no domínio da criação voluntária das pessoas jurídi­
cas de direito das gentes. Essa ideia, aparentemente bem funda­
da, resulta de uma simplificação primária, pois passa ao largo
da importante circunstância de que o consentimento tanto pode
ser criativo quanto apenas perceptivo. Isso determina a distinção
entre o direito livre e originalmente forjado pelos Estados e o
direito por estes não mais que reconhecido ou proclamado. A
propósito, parece que grande parte do vigor da crítica ao pensa­
mento positivista deveu-se à fixação do observador na fórmula
relativa a um direito internacional resultante, por inteiro, da von­
tade dos Estados. O termo vontade tem o grave inconveniente de
induzir à ideia do consentimento criativo, e tão somente deste.
É irrecusável, no entanto, que os Estados vêm consentindo se­
cularmente em torno de normas que lhes parecem, por um lado,
advindas de um domínio diverso daquele de sua própria e
discricionária inventividade e, por outro — e consequente­
mente —, imunes ao seu poder de manipulação. Numa perspec­
tiva opera­cional, não chega a ser importante distinguir, entre os
princípios gerais, os que são pura decorrência da razão humana
— ou, caso se prefira, da lógica jurídica — e os que repousam,
ademais, ou exclusivamente, sobre um valor ético.
Tome-se como exemplo, de início, a regra nemo plus juris. Dizer que ninguém
pode transferir a outrem mais direitos do que possui ele próprio é o mesmo que
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dizer que ninguém pode dividir um todo em três metades, ou em cinco quartas-partes. Essa consistência puramente lógica marca ainda, entre outras figuras no­
tórias em direito, a exceção de litispendência, e as regras segundo as quais o desa­
cordo entre dois textos normativos, emanados do mesmo poder legiferante, deve
ser resolvido mediante a prevalência do particular sobre o geral, e do posterior
sobre o anterior. A razão cede espaço ora menor, ora maior, ao senso ético das
criaturas humanas, e com ele coexiste no embasamento de princípios como o pac­
ta sunt servanda, o do contraditório, o da responsabilidade, o da condenação do
abuso de direito.
Seção III — ATOS UNILATERAIS
71. Controvérsia. O art. 38 do Estatuto da Corte não menciona
os atos unilaterais entre as fontes possíveis do direito interna­
cional público. Poucos são os autores que lhes concedem essa
qualidade, sendo comum, de outro lado, a lembrança de que eles
não representam normas, porém meros atos jurídicos. Essa
observação parece verdadeira quando pretenda referir-se a atos
unilaterais do gênero da notificação, do protesto, da renúncia ou
do reconhecimento. Não há, efetivamente, em tais atos qualquer
aspecto normativo, marcado por um mínimo de abstração e
generalidade. É óbvio, entretanto, que esses atos produzem
consequências jurídicas — criando, eventualmente, obriga­
ções —, tanto quanto as produzem a ratificação de um tratado,
a adesão ou a denúncia.
No caso do estatuto jurídico da Groenlândia Oriental, conhecido, ainda, como
o caso da declaração Ihlen, a Corte Permanente de Justiça Internacional estatuiu,
em 1933, que o reino da Noruega estava juridicamente obrigado, ante a Dinamarca,
por uma declaração oral de seu ministro das relações exteriores ao embaixador
dinamarquês, registrada em notas — e não negada ou discutida, ademais, pelo
próprio Sr. Ihlen ou por seu governo. Tal como se um tratado o estabelecesse, a
Noruega se encontrava obrigada a “não criar dificuldades” frente ao plano dina­
marquês de solução do caso da Groenlândia, porque assim garantira o ministro
Ihlen ao representante diplomático do governo de Copenhague.
Esse precedente judiciário já foi invocado em abono de uma tese errônea, a
da praticabilidade de “tratados orais”. Não houve ali um tratado — nem o disse ou
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insinuou a Corte —, mas ato unilateral do gênero da promessa, tornada irretratável
em face de sua pronta aceitação pelo destinatário e das medidas desde então toma­
das por este33.
72. Ato e norma. Todo Estado, entretanto, pode eventualmente
produzir ato unilateral de irrecusável natureza normativa, cuja
abstração e generalidade sirvam para distingui-lo do ato jurídi­
co simples e avulso. Nesta categoria, de resto, inscrevem-se as
centenas de diplomas legais que se promulgam, a cada dia, no
interior das diversas ordens jurídicas nacionais, e que, na sua
quase totalidade, não interessam ao direito das gentes. É certo,
contudo, que o ato normativo unilateral — assim chamado por
promanar da vontade de uma única soberania — pode casual­
mente voltar-se para o exterior, em seu objeto, habilitando-se à
qualidade de fonte do direito internacional na medida em que
possa ser invocado por outros Estados em abono de uma vindi­
cação qualquer, ou como esteio da licitude de certo procedimen­
to. Tal é o caso das leis ou decretos com que cada Estado deter­
mina, observados os limites próprios, a extensão de seu mar
territorial ou de sua zona econômica exclusiva, o regime de seus
portos, ou ainda a franquia de suas águas interiores à navegação
estrangeira.
Com o Decreto imperial n. 3.749, de 7 de dezembro de 1866, o Brasil fran­
queou as águas do Amazonas à navegação comercial de todas as bandeiras, instau­
rando um regime até hoje subsistente em suas linhas gerais. O Estado patrial de
uma embarcação acaso molestada naquele trânsito por autoridades brasileiras ha­
veria de fundar sua reclamação na lei brasileira assecuratória da liberdade de
acesso ao Amazonas. Não existe, com efeito, qualquer tratado, ou norma costumei­
ra, ou princípio geral de direito, que autorize o trânsito de naus egípcias ou finlan­
desas em águas interiores do Brasil.
33. V. comentário em McNair, p. 9-10. Para uma narrativa extensa do caso, e de seu
deslinde na CPJI, v. Paul de Visscher, De la conclusion des traités internationaux, Bruxelas,
Bruylant, 1943, p. 193-201.
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Seção IV — DECISÕES DAS ORGANIZAÇÕES
INTERNACIONAIS
73. Ainda a controvérsia. Tampouco as decisões das organiza­
ções internacionais figuram no rol das formas de expressão do
direito das gentes, tal como concebido no art. 38 do Estatuto da
Corte da Haia. Poder-se-ia debitar esta omissão à circunstância
de que o rol foi originalmente lavrado em 1920, quando apenas
começava a era das organizações internacionais, e copiado —
sem maior ânimo de aperfeiçoamento ou atualização — em 1945.
Sucede, de todo modo, que os autores frequentemente não men­
cionam essas decisões no estudo das fontes do direito interna­
cional, ou fazem-no para apontar como duvidosa sua autonomia:
afinal, a autoridade de uma decisão tomada no âmbito de qual­
quer organização resulta, em última análise, do tratado institu­
cional34.
Isto lembra de certo modo a crítica também oposta aos atos
unilaterais, que, mesmo quando normativos e de notória reper­
cussão internacional, careceriam da qualidade de fonte autôno­
ma. Assim, o verdadeiro fundamento da licitude do trânsito de
um navio egípcio pelas águas do Amazonas não seria a lei bra­
sileira de franquia, mas um possível princípio geral ou norma
costumeira mandando a todo Estado que honre suas promessas,
ou proceda de acordo com suas proclamações voltadas para o
meio exterior. Dir-se-ia, sob esta ótica, que o Estado que proce­
de na conformidade de certa diretriz obrigatória, editada por
organização internacional a que pertence, está na realidade obe­
decendo ao tratado constitutivo da organização, em cujos termos
opera o sistema de produção de diretrizes obrigatórias.
34. V., nesse sentido, a opinião de Michael Akehurst, A modern introduction to inter­
national law, Londres, Allen & Unwin, 1990, p. 48. V. também a análise de O’Connell, p.
25-29.
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Por esse caminho crítico, entretanto, seríamos levados a
avançar progressivamente até a afirmativa de que mesmo o tra­
tado não é fonte de direito internacional: em última análise, os
Estados procedem à luz de quanto pactuaram, não por qualquer
virtude mística do próprio texto convencional, mas por força do
princípio pacta sunt servanda — sendo este, para alguns, a pró­
pria norma fundamental do direito das gentes, e para outros, seu
desdobramento imediato.
Pacta sunt servanda foi, para Dionisio Anzilotti, a norma fundamental, de
que todo o direito internacional público recolhe sua validade35. Hans Kelsen, o mais
notável expoente dessa concepção piramidal da ordem jurídica, preferiu formular
a Grundnorm — a norma superior, necessariamente uma hipótese jurídica, e não
um princípio metajurídico — de modo diverso36. Para ele, pacta sunt servanda é
uma regra costumeira eminente, de que deriva a obrigatoriedade dos tratados. A
validade dessa, e de outras grandes regras costumeiras, resulta da verdadeira norma
fundamental, assim concebida: “os Estados devem comportar-se como se têm
comportado costumeiramente”37.
74. Nomenclatura e eficácia. Resoluções, recomendações,
declarações, diretrizes: tais os títulos que usualmente qualificam
as decisões das organizações internacionais contemporâneas,
variando seu exato significado e seus efeitos conforme a enti­
dade de que se cuide. Muitas dessas normas obrigam a totali­
dade dos membros da organização, ainda que adotadas por
órgão sem representação do conjunto, ou por votação não unâ­
nime em plenário. É certo, porém, que tal fenômeno somente
ocorre no domínio das decisões procedimentais, e outras de
35. Anzilotti, Corso di diritto internazionale, 4. ed., Pádua, CEDAM, 1955, v. 1, p. 44-45.
36. Kelsen, Théorie du droit international public; Recueil des Cours (1953), v. 84, p. 29.
37. Para uma descrição do pensamento kelseniano por discípulo modelar do mestre
da escola de Viena, v. Alfred Verdross, Derecho internacional público, Madri, Aguilar, 1969,
p. 20 e s. Como crítica à teoria da norma fundamental, v. especialmente Accioly, I, p. 22 e
s., e Tunkin, p. 134 e s.
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escasso relevo. No que concerne às decisões importantes, estas
só obrigam quando tomadas por voz unânime, e, se majoritárias,
obrigam apenas os integrantes da corrente vitoriosa, tanto sen­
do verdadeiro até mesmo no âmbito das organizações europeias,
as que mais longe terão levado seu nível de aprimoramento
institucional.
As recomendações votadas na CECA e as diretrizes da CEE tinham efeito
obrigatório para todos os membros dessas comunidades, embora dispusessem
sempre sobre temas não primordiais, cuidadosamente definidos pelos tratados
institucionais38. De outro lado, porque só qualificadas para vincular a maioria,
muitas resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas deram ensejo ora à
indiferença, ora ao firme protesto dos Estados minoritários. O velho caso das in­
tervenções no Congo e no Oriente Médio seria evidência bastante da relatividade
das recomendações da Assembleia Geral. Na OEA, em assembleia de 24 de abril
de 1963, discutiu-se projeto de autorização ao Conselho para que investigasse
atividades e operações comunistas no continente. O Brasil, havendo votado pela
negativa, quedaria excluído do alcance de tal projeto. Ainda na OEA, em 3 de
agosto de 1964, o México rejeitava, com voto isolado, a recomendação de rompi­
mento geral de relações diplomáticas com Cuba.
75. Natureza jurídica. Autonomia. Transparece, vez por outra,
alguma dificuldade em estabelecer exata distinção entre as de­
cisões das organizações internacionais e os tratados coletivos,
sobretudo quando o estudioso se defronta com textos como a
Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela
Assembleia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948. Cuida-se de saber se, ainda que só no contexto dos Estados majoritá­
rios, por ela obrigados, a decisão organizacional tem natureza
jurídica igual ou semelhante à de um tratado.
Parece claro que não. É no mínimo impróprio encarar uma
decisão desse tipo como um “acordo formal entre sujeitos de
direito das gentes”. Tomemos, de preferência, a organização
38. V. Paul Reuter, Institutions internationales, Paris, PUF, 1967, p. 205.
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internacional na sua qualidade de sujeito singular daquele di­
reito. Dentro da organização, certo órgão, no uso de sua com­
petência, deliberou alguma coisa. A eficácia legal desse produ­
to se mede à luz do sistema constitucional da organização. Pode
haver obrigatoriedade, assim, tanto numa decisão personalíssima
do secretário-geral quanto numa decisão da assembleia, ou de
um conselho especializado. O Estado membro da organização,
de todo modo, não irá recolher obrigações de um “acordo formal”
que tenha celebrado com seus homólogos, mas da força com­
pulsiva de quanto haja regularmente decidido o órgão daquela
organização internacional, cujos mecanismos jurídicos ele, Es­
tado, ajudou a engendrar, e considera válidos na sua integra­
lidade. O fundamento dessas obrigações não terá sido, pois,
nenhum acordo avulso, depreensível da acidentalidade de ter a
decisão nascido de um órgão colegiado. Nada, aliás, melhor
ilustra esse raciocínio que a lembrança daquelas decisões
organiza­cionais majoritárias que obrigam todos os Estados-membros. Nesse contexto, a posição do Estado vencido destrói
a ideia da analogia ao acordo formal: não havendo aquiescido,
está ele, não obstante, vinculado àquilo que a decisão realmen­
te é, vale dizer, um ato normativo obrigatório, editado pela or­
ganização, de cujos estatutos promana sua legitimidade.
Ainda aqui — como nos demais setores do direito das gentes —, tudo repou­
sa sobre o consentimento. Só que já não se trata de um consentimento ad hoc,
voltado para a assunção do compromisso tópico, mas daquele outro, maior e prévio,
externado à hora de se ditarem em comum, pela voz dos Estados fundadores, as
regras do jogo organizacional.
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Capítulo III
INSTRUMENTOS DE
INTERPRETAÇÃO
E DE COMPENSAÇÃO
76. Proposição da matéria. Visto que o caput do art. 38 do
Estatuto da Corte da Haia não anuncia uma lista rigorosa das
fontes do direito internacional, antes parecendo introduzir o
leitor, em linguagem plástica, a um rol de meios que a Corte
empregará no deslinde dos feitos, foi possível que seus redatores
mencio­nassem, depois dos tratados, do costume e dos princí­pios
gerais, “as decisões judiciárias e a doutrina dos publicistas mais
qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar para a
determinação das regras de direito”. Um parágrafo conclusivo
preserva “a faculdade da Corte de decidir uma questão ex aequo
et bono, se as partes com isto concordarem”.
Jurisprudência e doutrina, entretanto, não são formas de
expressão do direito, mas instrumentos úteis ao seu correto en­
tendimento e aplicação. A equidade, por seu turno, aparece ao
lado da analogia como um método de raciocínio jurídico, um
critério a nortear o julgador ante a insuficiência do direito ou a
flagrância de sua imprestabilidade para o justo deslinde do caso
concreto.
Seção I — JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA
77. O juiz não legisla. A sentença, ensinam os processua­listas,
exprime ante as partes um comando imperativo de conduta. Tan­
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to faria dela, no dizer de alguns, uma norma, e uma norma irre­
cusavelmente jurídica, porque apoiada em bom direito. Usando
de semelhante linguagem acabaríamos por afirmar que também
são normas jurídicas a ordem de serviço dada pelo gerente ao
empregado no comércio, ou a proibição do passeio imposta pela
mãe à filha menor. Contudo, norma jurídica em sentido estrito é
aquela que mostra as características da abstração e da generali­
dade. Exprimem-na, em direito internacional público, os tratados,
os costumes, os princípios gerais, certos atos unilaterais e decisões
de organizações internacionais, e nada além dessas categorias.
O juiz não tem qualidade — nem pretende tê-la — para elaborar
normas, senão para aplicá-las ao caso concreto que se lhe sub­
mete. Tampouco têm vocação legislativa os autores do acervo
doutrinário, antes votados ao encargo de fazer entender o direito
existente, e acaso projetar e propor, ao legislador futuro, um di­
reito melhor. Essas realidades elementares tanto são válidas no
âmbito da ordem jurídica internacional quanto no das ordens
internas. Veremos, todavia, que enquanto instrumentos de boa
interpretação da norma jurídica a jurisprudência e a doutrina têm,
no plano internacional, importância acentuadamente maior que
no direito nacional de qualquer Estado.
78. Determinação do teor das normas não escritas. As imper­­
feições do direito respondem pela utilidade instrumental da ju­
risprudência e da doutrina. Fosse exata e unívoca a norma jurí­
dica, sua aplicação prescindiria de todo esforço hermenêutico
apoiado na lição dos publicistas ou na fala dos tribunais que
outrora enfrentaram casos semelhantes. É a eventual inconsis­
tência, a obscuridade, a ambiguidade da regra de direito que
impõe ao intérprete o uso daqueles recursos. Ora, esses defeitos
da norma jurídica são tanto maiores quanto a dimensão, no orde­
namento em exame, do direito não escrito. Se estritamente con­
vencional — vale dizer, expresso no texto dos tratados — fosse
o direito das gentes, jurisprudência e doutrina representariam
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valor menor que o que se lhes reconhece no direito interno dos
países de tradição romano-germânica. Em direito internacional,
porém, é incalculável o volume das normas que ainda hoje, ape­
sar do relativo êxito de alguns processos de codificação, subsis­
tem a título estritamente costumeiro; assim como não há medida
para a importância dos princípios gerais que, também não escri­
tos, reclamam correta determinação, lançando o intérprete na
contingência de reconhecer a necessidade do apoio pretoriano e
doutrinário. Com efeito, à hora de fazer valer corretamente o
princípio geral do direito ou a regra costumeira, a situação do
intérprete é radicalmente diversa daquela, bem mais cômoda, em
que ele próprio, ante um texto normativo que se pretende lavrado
em linguagem jurídica, pode cogitar de ir a bom termo valendo-se apenas do texto e de suas próprias luzes.
79. Que jurisprudência? As decisões judiciárias a que se refe­
re o art. 38 do Estatuto da Corte da Haia não são as proferidas
no foro cível de Marselha ou nas instâncias trabalhistas de São
Paulo, mas as componentes da jurisprudência internacional.
Tanto significa, em sentido estrito, o conjunto das decisões ar­
bitrais que se têm proferido, há séculos, no deslinde de contro­
vérsias entre Estados; e ainda o conjunto das decisões judiciá­rias
proferidas, com igual propósito, a partir do início do século XX1.
Um conceito elástico de jurisprudência internacional permitiria
que se levassem em conta, quando pertinentes, os pareceres
proferidos pela Corte da Haia no exercício de sua competência
consultiva; bem como o produto não obrigatório das instâncias
diplomáticas — laudos, pareceres e relatórios de mediadores ou
comissões de conciliação. Esta segunda categoria, entretanto, é
1. A primeira sentença da Corte de Justiça Centro-Americana data de 19 de dezembro
de 1908; foi proferida num litígio que opôs, de um lado, Honduras e Nicarágua, e, de outro,
El Salvador e Guatemala. No plano universal, a Corte da Haia só começaria a funcionar em
1922, sob o nome de Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI).
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de aproveitabilidade mais que discutível: ao contrário dos entes
jurisdicionais, as instâncias diplomáticas — a exemplo do que
sucede com o Conselho de Segurança da ONU e outros foros
políticos — não têm, por natureza, compromisso necessário com
o primado do direito, votando-se apenas à pronta e efetiva com­
posição do litígio, para preservação do clima de paz entre as
partes.
As decisões judiciárias nacionais, como foi dito, não se
aproveitam no plano internacional a título de jurisprudência. Sua
consideração pode ao acaso ser útil, na medida em que a con­
vergência das convicções reinantes em foros domésticos sobre
certo tema de direito internacional sirva como elemento auxiliar
à prova da existência de certa norma internacional costumeira.
80. Doutrina: a difícil sintonia. Quando os redatores do Esta­
tuto da Corte da Haia concederam a qualidade de meio auxiliar
para a determinação das regras de direito à “doutrina dos publi­
cistas mais qualificados das diferentes nações”, estavam a pres­
tigiar um instrumento homogêneo em suas grandes linhas. Mal
assentara ainda, em 1920, a poeira levantada pela revolução
russa, e em parte alguma daquilo que mais tarde viria a chamar-se o terceiro mundo surgira algum sinal expressivo de aborda­
gem crítica2. A doutrina existente era assim a expressão de um
pensamento eurocêntrico, em regra preconceituoso e colonialis­
ta. A escola soviética importaria teses inéditas a todos os ramos
da ciência do direito, e mais tarde, gradualmente, passar-se-iam
a produzir no hemisfério sul, sobre temas elementares em direi­
to das gentes, ideias destoantes do breviário clássico. Hoje não
é mais comum que sobre qualquer questão tópica exista o con­
2. A afirmação diz respeito à doutrina no sentido estatutário, ou seja, à obra acadêmi­
ca dos grandes publicistas. O que se chamou, ao final do século XIX, de “doutrina Calvo”
foi a expressão de uma atitude de governos latino-americanos, inspirada em proposição
oficial do estadista argentino daquele nome.
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forto da convergência doutrinária. Mas, justamente por isso,
tornou-se inestimável o valor de qualquer tese que tenha podido
reunir o abono das grandes correntes contemporâneas. Afinal,
mesmo no interior de cada uma delas, a identidade de pontos de
vista costuma faltar com alguma frequência. Entre os europeus
ocidentais, notadamente, encontram-se ainda expoentes retar­
datários daquele direito internacional da era do concerto, de
ranço impalatável, a coexistir com espíritos arejados e universais.
Na hora presente, toda tese que obtenha o consenso doutrinário
é de ser vista como segura, seja no domínio da interpretação de
uma regra convencional, seja naquele da dedução de uma norma
costumeira ou de um princípio geral do direito.
Seção II — ANALOGIA E EQUIDADE
81. Métodos de raciocínio jurídico. Já não se cuida, aqui, de
instrumentos úteis à correta interpretação da norma jurídica
existente, mas de meios para compensar seja a inexistência da
norma, seja sua evidente falta de préstimo para proporcionar ao
caso concreto um deslinde minimamente justo. Analogia e equi­
dade são métodos de raciocínio jurídico: não é exato, pois, que
a segunda configure uma fonte alternativa de direito, nem que a
primeira represente um recurso de apoio hermenêutico. O uso
da analogia consiste em fazer valer, para determinada situação
de fato, a norma jurídica concebida para aplicar-se a uma situa­
ção semelhante, na falta de regra que se ajuste ao exato contor­
no do caso posto ante o intérprete. O método, assim, é de com­
pensação integrativa, e seu uso encontra certas limitações em
direito internacional — tal como as encontra em direito interno.
Neste, é geralmente sabido que não se pode, por analogia, qua­
lificar como criminoso certo ato humano de configuração não
idêntica — embora semelhante — àquela do ato descrito em
norma penal. Em direito das gentes não se podem construir, pelo
método analógico, restrições à soberania, nem hipóteses de
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submissão do Estado ao juízo exterior, arbitral ou judiciário. Na
realidade, será difícil encontrar referência nominal à analogia
no trabalho dos foros internacionais de variada natureza, mas é
certo que esse método foi prestigiado, repetidas vezes, à hora de
se definirem, por exemplo, as competências de organizações
inter­nacionais — notadamente quando se reconheceu à ONU a
prerrogativa de conferir proteção funcional a seus agentes, no
parecer da CIJ relacionado com o caso Bernadotte3.
82. Entendimento da equidade. Parece generalizada a convic­
ção de que a equidade pode operar tanto na hipótese de insufi­
ciência da norma de direito positivo aplicável quanto naquela
em que a norma, embora bastante, traz ao caso concreto uma
solução inaceitável pelo senso de justiça do intérprete. Cuida-se,
então, de decidir à luz de normas outras — mais comumente de
princípios — que preencham o vazio eventual, ou que tomem o
lugar da regra considerada iníqua ante a singularidade da espé­
cie. Não é, pois, a própria equidade que substitui a norma fal­
tante ou imprópria, qual se aquela, em vez de método, fosse ela
mesma uma norma substantiva de ilimitado préstimo.
O Estatuto da Corte da Haia é claro ao dispor, no segundo
parágrafo do art. 38, que o recurso à equidade depende da aquies­
cência das partes em litígio. Defrontando-se, pois, seja com a
flagrante impropriedade, seja — o que é bem mais comum em
direito internacional — com a insuficiência das normas aplicáveis
à espécie, a Corte não poderá decidir à luz da equidade por sua
própria vontade. A autorização das partes é de rigor.
Essa restrição estatutária fez com que a Corte lamentasse,
no caso Haya de la Torre, a transparente e inevitável inconclu­
dência operacional de seu acórdão. Da Convenção da Havana,
3. Recueil CIJ (1949), p. 174 e s.
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de 1928, sobre asilo diplomático, resultava claro que dois são
os pressupostos de sua concessão: a natureza política dos delitos
imputados ao paciente e o estado de urgência. Por entender —
vencidos diversos juízes — que faltara, no caso concreto, o se­
gundo pressuposto, a Corte qualificou como irregular o asilo
concedido a Victor Raúl Haya de la Torre pela embaixada da
Colômbia em Lima, nos primeiros dias de 1949. Sucede que a
Convenção, sucinta e precária, só dizia da obrigação de entregar
o paciente ao governo territorial quando se cuidasse de crimi­
noso comum, ou seja, quando o asilo se mostrasse irregular pela
falta do seu primeiro pressuposto. O método analógico poderia
ter conduzido à conclusão de que igual desfecho deveria dar-se
ao asilo irregular pelo segundo motivo. Seu emprego, entretan­
to, não foi sequer cogitado pela Corte: é natural que se despreze
toda analogia operante em detrimento da liberdade humana. Se
autorizada pelas partes a decidir ex aequo et bono, a Corte teria
provavelmente determinado a expedição de um salvo-conduto
que pusesse termo ao impasse. Sem ter como fazê-lo, a Corte
concluiu que o asilo, pela falta do pressuposto da urgência, era
irregular, e desse modo devia ter fim, mas a embaixada colom­
biana não estava obrigada a entregar o paciente às autoridades
locais. O acórdão pareceu inexequível, e, antes que uma com­
posição política solvesse o problema, Haya de la Torre perma­
neceria três anos no interior da embaixada...4.
4. Do voto vencido do juiz Philadelpho Azevedo no acórdão de 20 de novembro de
1950: “Mas as duas Partes, embora tenham dirigido prementes apelos à Corte para que re­
solvesse o conflito, não lhe forneceram meios para chegar a uma solução independente, como
ela teria podido fazer nos termos do artigo 38, parágrafo 2, do Estatuto (julgamento ex aequo
et bono). Pelo contrário, as Partes limitaram a ação da Corte, indicando somente os dados
jurídicos aplicáveis à espécie”. (Recueil CIJ (1950), p. 357). V. também o acórdão de 27 de
novembro de 1950, tomado sobre embargos declaratórios da Colômbia (Recueil CIJ (1950),
p. 394-404); e o acórdão de 13 de junho de 1951, último relacionado ao caso Haya de la
Torre (Recueil CIJ (1951), p. 71 e s.).
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Parte II
PERSONALIDADE
INTERNACIONAL
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83. Estados e organizações internacionais. Pessoas jurídicas de
direito internacional público são os Estados soberanos (aos quais
se equipara, por razões singulares, a Santa Sé) e as organizações
internacionais em sentido estrito. Aí não vai uma verdade eter­
na, mas uma dedução segura daquilo que nos mostra a cena
internacional contemporânea. Não faz muito tempo, essa quali­
dade era própria dos Estados, e deles exclusiva. Hoje é certo que
outras entidades, carentes de base territorial e de dimensão de­
mográfica, ostentam também a personalidade jurídica de direito
das gentes, porque habilitadas à titularidade de direitos e deveres
internacionais, numa relação imediata e direta com aquele corpo
de normas. A era das organizações internacionais trouxe à men­
te dos operadores dessa disciplina uma reflexão já experimen­
tada noutras áreas: os sujeitos de direito, em determinado siste­
ma jurídico, não precisam ser idênticos quanto à natureza ou às
potencialidades1.
A personalidade jurídica do Estado, em direito das gentes,
diz-se originária, enquanto derivada a das organizações. O
Estado, com efeito, não tem apenas precedência histórica: ele é
antes de tudo uma realidade física, um espaço territorial sobre
o qual vive uma comunidade de seres humanos. A organização
1. O termo sujeito é ambivalente. Aqui ele significa o ator, o agente, como em gramá­
tica o sujeito de uma frase. Mas se o entendêssemos como significando “subordinado”, ele
não serviria para qualificar o Estado perante o direito internacional, uma ordem que é até
hoje de coordenação, não de subordinação (v. a análise de François Rigaux em A lei dos
juízes, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 7). São várias as línguas em que é a mesma a
palavra para sujeito e para subordinado ou súdito.
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inter­na­cional carece dessa dupla dimensão material. Ela é pro­
duto exclusivo de uma elaboração jurídica resultante da vontade
conjugada de certo número de Estados. Por isso se pode afirmar
que o tratado constitutivo de toda organização internacional tem,
para ela, importância superior à da constituição para o Estado.
A existência deste último não parece condicionada à disponibi­
lidade de um diploma básico. O Estado é contingente humano
a conviver, sob alguma forma de regramento, dentro de certa
área territorial, sendo certo que a constituição não passa do cânon
jurídico dessa ordem. A organização internacional, de seu lado,
é apenas uma realidade jurídica: sua existência não encontra
apoio senão no tratado constitutivo, cuja principal virtude não
consiste, assim, em disciplinar-lhe o funcionamento, mas em
haver-lhe dado vida, sem que nenhum elemento mate­rial pree­
xistisse ao ato jurídico criador.
84. Indivíduos e empresas. Não têm personalidade jurídica de
direito internacional os indivíduos, e tampouco as empresas,
privadas ou públicas. Há uma inspiração generosa e progressis­
ta na ideia, hoje insistente, de que essa espécie de personalidade
se encontra também na pessoa humana — de cuja criação, em
fim de contas, resulta toda a ciência do direito, e cujo bem é a
finalidade primária do direito. Mas se daí partimos para formu­
lar a tese de que a pessoa humana, além da personalidade jurí­
dica que lhe reconhecem o direito nacional de seu Estado patrial
e os dos demais Estados, tem ainda — em certa medida, dizem
alguns — personalidade jurídica de direito internacional, en­
frentaremos em nosso discurso humanista o incômodo de dever
reconhecer que a empresa, a sociedade mercantil, a coisa juri­
dicamente inventada com o ânimo do lucro à luz das regras do
direito privado de um país qualquer, também é — e em maior
medida, e há mais tempo — uma personalidade do direito das
gentes.
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A percepção do indivíduo como personalidade internacional pretende fundar-se na lembrança de que certas normas internacionais criam direitos para as pesso­
as, ou lhes impõem deveres. É preciso lembrar, entretanto, que indivíduos e empre­
sas — diversamente dos Estados e das organizações — não se envolvem, a título
próprio, na produção do acervo normativo internacional, nem guardam qualquer
relação direta e imediata com essa ordem.
Muitos são os textos internacionais votados à proteção do indivíduo. A flora e
a fauna também constituem objeto de proteção por normas de direito das gentes, sem
que se lhes tenha pretendido, por isso, atribuir personalidade jurídica. É certo que
indivíduos e empresas já gozam de personalidade em direito interno, e que essa
virtude poderia repercutir no plano internacional na medida em que o direito das
gentes não se teria limitado a protegê-los, mas teria chegado a atribuir-lhes a titula­
ridade de direitos e deveres — o que é impensável no caso de coisas juridicamente
protegidas, porém despersonalizadas, como as florestas ou os cabos submarinos.
Para que uma ideia científica — e não simplesmente decla­
matória — da personalidade jurídica do indivíduo em direito das
gentes pudesse fazer algum sentido, seria necessário pelo menos
que ele dispusesse da prerrogativa ampla de reclamar, nos foros
internacionais, a garantia de seus direitos, e que tal qua­lidade
resultasse de norma geral. Isso não acontece. Os foros interna­
cionais acessíveis a indivíduos — tais como aqueles, ainda mais
antigos e numerosos, acessíveis a empresas — são-no em virtu­
de de um compromisso estatal tópico, e esse quadro pressupõe
a existência, entre o particular e o Estado copatrocinador do foro,
de um vínculo jurídico de sujeição, em regra o vínculo de na­
cionalidade. Se a Itália entendesse de retirar-se da União Euro­
peia, particulares italianos não mais teriam acesso à Corte de
Luxemburgo, nem cidadãos ou empresas de outros países co­
munitários ali poderiam cogitar de demandar contra aquela re­
pública.
Por outro lado, é ainda experimental a ideia de que o indivíduo tenha deveres
diretamente impostos pelo direito internacional público, independentemente de
qualquer compromisso que vincule seu Estado patrial ou seu Estado de residência.
Numa circunstância excepcionalíssima, o segundo após-guerra, o Tribunal Inter­
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nacional de Nuremberg entendeu de estatuir o contrário, para levar a cabo o julga­
mento e a condenação de nazistas. Ali, a tese de que os indivíduos podem cometer
crimes suscetíveis de punição pelo direito internacional, apesar da licitude de sua
conduta ante a ordem jurídica interna a que estivessem subordinados, não foi a
única a merecer crítica, em doutrina, por sua falta de base científica2. Nuremberg
não constitui jurisprudência, em razão de sua exemplar singularidade. O produto
daquele tribunal não prova o argumento de que o direito das gentes imponha dire­
tamente obrigações ao indivíduo. Prova apenas que, em determinadas circunstâncias,
a correta expressão do raciocínio jurídico pode resultar sacrificada em face de
imperativos de ordem ética e moral3.
85. Réus em foro internacional. No caso de Nuremberg nunca
se poderá negar o peso do imperativo ético que impôs o sacrifí­
cio de certos princípios elementares de direito penal. As coisas
são um pouco menos unívocas quando se têm em vista os tribu­
nais penais criados pelo Conselho de Segurança das Nações
Unidas para julgar “violações graves do direito humanitário”
cometidas na ex-Iugoslávia e em Ruanda4. Se se abstrai, entre­
tanto, a nebulosa motivação da escolha desses dois cenários
(entre tantos outros onde, desde o final da última grande guerra,
o direito internacional humanitário foi violado), o fato é que à
luz do direito esses foros internacionais são no mínimo defen­
sáveis. De início, porque o Conselho de Segurança tem autorida­
de para criá-los — sem qualquer ato da Assembleia Geral —,
desde que o faça, como fez nos dois casos, com base no capítu­
lo VII da Carta da ONU, que fala da ação a empreender em face
de uma ameaça à paz (tenha-se em conta o enorme conteúdo
possível dessa expressão, e o juízo político que o Conselho se
pode permitir a respeito). Depois, porque as práticas em questão
foram definidas como crimes em textos internacionais que os
2. V. Claude Lombois, Droit pénal international, Paris, Dalloz, 1971, p. 146 e s.
3. Para uma análise atual e ampla do problema da personalidade jurídica de direito
internacional, e da controvérsia reinante nesse domínio, v. Nguyen Quoc Dinh, Patrick
Daillier, Mathias Forteau e Alain Pellet, Droit international public, 8. ed., Paris, LGDJ, 2010,
p. 443 e s.
4. Resoluções 808 de 1993 e 955 de 1994, respectivamente.
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paí­ses onde ocorreram haviam incorporado ao seu direito inter­
no (inúmeros países o fizeram, ao adotar as convenções de
Genebra de 1949 e seus protocolos adicionais de 1977). Assim,
não há dúvida quanto à tipicidade penal desses atos, nem quan­
to à anterioridade das normas penais. Dentro desse quadro e
visto que, por razões diversas, os países onde ocorreram os cri­
mes não se encontravam habilitados a promover o respectivo
processo, uma jurisdição internacional ad hoc podia assumir o
encargo. De resto, todo e qualquer outro Estado, senhor da de­
finição do âmbito de sua competência penal, pode, sem afronta
aos valores que inspiram normalmente esse domínio da ordem
jurídica, afirmar jurisdição residual sobre crimes previstos em
tratados. Isso não dependeria, nos casos concretos em exame,
da aquiescência da Iugoslávia ou de Ruanda (o governo deste
último país, por acaso, foi aquiescente). E em todo caso a cap­
tura de cada réu depende rigorosamente, para ser legítima, do
consentimento do Estado onde ele se encontra — e que poderia
eventualmente não estar obrigado por nenhum compromisso
internacional a realizar a captura ou a conceder a extradição.
O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia funciona na Haia; seus
quatorze juízes são eleitos pela Assembleia Geral da ONU a partir de listas prepa­
radas pelo Conselho de Segurança, e o mandato é de quatro anos. O procurador,
titular da ação penal em todos os casos, é eleito pelo Conselho. O tribunal se divi­
de em duas câmaras de primeira instância e uma de apelação, não havendo foro
exterior de recurso. A pena máxima possível é a prisão perpétua. Ao final de 2004
o Tribunal havia já examinado processos relativos a pouco mais que uma centena
de acusados, e proferido cerca de cinquenta decisões, sendo cinco absolutórias,
desde sua instalação em 1993.
O Tribunal Penal Internacional para Ruanda foi instalado em Arusha, na
Tanzânia, e sua composição e funcionamento se assemelham aos da instituição
precedente, em proporções menores. No final de 2004 esse tribunal havia proferido
vinte e oito sentenças, condenatórias em sua maioria.
O Tribunal Penal Internacional instalou-se na Haia em 2003,
quando entrou em vigor a Convenção de Roma de 17 de julho
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de 1998, vinculando de início sessenta Estados ratificantes ou
aderentes. São vários os pontos que distinguem essa corte das
experiências penais precedentes.
É uma instituição judiciária permanente, criada, como uma organização in­
ternacional, pela vontade dos Estados fundadores, e dotada, fato raro, de persona­
lidade jurídica própria (o usual é que as cortes sejam órgãos, permanentes ou
temporários, de organizações internacionais). Julgará indivíduos, por crimes de
extrema gravidade, todos definidos no próprio estatuto (que é o tratado de Roma).
A jurisdição ratione temporis só se exerce sobre crimes posteriores à entrada em
vigor do tratado, embora diversas das práticas ali tipificadas já o houvessem sido
antes, em termos muito semelhantes, por outros tratados: assim, o genocídio, os
crimes de guerra, os crimes contra a humanidade de que são exemplos o extermí­
nio, a redução à escravatura, a deportação forçada, a tortura. Não há limites geo­
gráficos ou circunstanciais como os dos foros de Nuremberg, da Iugoslávia ou de
Ruanda. O procedimento investigatório e a ação penal estão a cargo de um procu­
rador eleito, a exemplo dos juízes, pela assembleia dos Estados partes no tratado
de Roma. A jurisdição internacional se afirma complementar: isso não significa
apenas a observância da regra non bis in idem, mas também que as jurisdições
nacionais, como a do Estado onde ocorreu o crime, ou a do Estado patrial do réu,
têm preferência, de modo que só sua inércia ou condescendência (eventualmente
sua simples condição de forum non conveniens) justificam a ação no foro interna­
cional. Os princípios gerais do direito penal são observados com rigor pelo estatu­
to, que segue ainda as melhores diretrizes no que concerne à matéria processual.
A tanto rigor científico e a tão evidente isenção e independência algo deveria
servir de contrapeso, em termos realistas, neste momento da história. Assim é que
o estatuto dá ao Conselho de Segurança das Nações Unidas o poder de mandar
“suspender” por um ano, prorrogável tantas vezes quantas queira, qualquer proces­
so em curso no tribunal, com base no capítulo VII da carta — ou seja, quando en­
tender que a continuidade imediata do processo representa uma ameaça à paz…
O Tribunal Penal Internacional, fruto de estudos acurados
e de exaustiva diplomacia, deverá poupar a sociedade interna­
cional, no futuro, de todo o constrangimento que lhe tem impos­
to esse cenário de contornos mal definidos, onde um caprichoso
jogo de acasos parece determinar ora a criação de instâncias ad
hoc, ora o empenho avulso de alguma jurisdição nacional em ter
diante de si determinado estrangeiro acusado de crime ocorrido
no exterior, sem conexão alguma com o foro.
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Por outro lado seu estatuto, um documento da virada do
século e de autoria global, confirma a falta de uma relação ime­
diata entre o indivíduo e o direito das gentes: o exercício efetivo
da jurisdição do tribunal pressupõe o consentimento (seja a
condição de parte no tratado de Roma, seja um consentimento
ad hoc) do Estado territorial do crime ou do Estado patrial do
réu, senão de ambos5.
LEITURA
Voto do autor como Juiz da Corte Internacional de Justiça no caso do Manda­
do de prisão de 11 de abril de 2000 (caso Yerodia, R. D. do Congo vs. Bélgica,
2002):
“Estou convencido de que escrevo neste momento um voto dissidente,
ainda que, pelo fato de ter votado em favor do dispositivo do acórdão, ele deva
ser classificado entre os votos individuais concordantes. Aprovo, como a maio­
ria dos membros da Corte, tudo quanto foi dito no dispositivo, pois o tratamen­
to da questão da imunidade me parece de acordo com o estado atual do direito.
Lamento, entretanto, que não se tenha deliberado sobre o tema essencial do
problema trazido à Corte.
Nenhuma imunidade é absoluta, em qualquer ordem jurídica. Toda imu­
nidade se inscreve necessariamente num contexto determinado, e nenhum
sujeito de direito pode gozar de imunidade em abstrato. Pode-se, assim, invo­
car em face de certa jurisdição nacional a imunidade que não existiria perante
outra jurisdição. A imunidade pode ainda fazer-se valer diante de jurisdições
internas, mas não diante de uma jurisdição internacional. No quadro de deter­
minada ordem jurídica, a imunidade pode às vezes ser invocada perante a ju­
risdição penal mas não perante a jurisdição civil, ou ainda diante da jurisdição
ordinária mas não diante de um foro especial.
Em síntese, a questão da competência precede necessariamente a questão
da imunidade. Recordo que ambos os temas foram debatidos pelas Partes,
tanto nas peças escritas quanto no procedimento oral. O fato de ter o Congo
limitado seu pronunciamento final ao pedido de que a Corte afirme a imunida­
de de seu ex-ministro ao foro penal doméstico da Bélgica não justifica o aban­
dono, por nós, do exame preliminar da questão da imunidade. Não se trata aqui,
5. No Brasil o Estatuto do Tribunal Penal Internacional foi promulgado pelo Decreto
n. 4.388, de 25 de setembro de 2002. Eleita pela assembleia dos Estados-partes para a pri­
meira composição da corte, ali figura uma magistrada brasileira, a juíza Sylvia Helena de
Figueiredo Steiner.
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em absoluto, de obedecer à ordem de submissão das questões à Corte, mas de
observar a ordem lógica que se impõe com rigor. De outra forma, estaríamos
decidindo sobre a existência ou não da imunidade a partir da premissa de que
a justiça belga é competente, o que me parece inadmissível.
Se fizesse o exame preliminar da questão da competência, a Corte teria
a oportunidade de observar que o exercício da jurisdição penal interna com
base no só princípio da justiça universal tem necessariamente, e por substan­
ciais razões, caráter subsidiário. Em primeiro lugar, sabe-se que nenhum foro
é tão qualificado quanto o do local dos fatos para conduzir corretamente a
termo um processo penal — senão por outros motivos, pela disponibilidade
das provas, pelo melhor conhecimento dos acusados e das vítimas, pela per­
cepção mais clara de todas as circunstâncias do quadro delituoso. São razões
de ordem política, mais do que de ordem prática, que conduzem diversos sis­
temas internos a situar, logo após a territorialidade, um fundamento de com­
petência penal de outra espécie, aplicável independentemente do lugar dos
fatos. Trata-se do princípio da defesa de certos bens jurídicos particularmente
caros ao Estado: a vida e a integridade do soberano, o patrimônio público, a
administração nacional.
À margem desses dois princípios elementares, a complementaridade se
torna a regra. Na maioria dos países, tendo o crime sido cometido no exterior,
a ação penal é possível com base no princípio da nacionalidade ativa ou pas­
siva, ou seja, se autores ou vítimas forem nacionais do Estado do foro. Para
tanto, duas condições se impõem: que tais crimes não tenham sido julgados
alhures, em algum Estado cuja competência penal tenha-se afirmado natural­
mente, e que o acusado se encontre no território do Estado do foro, de onde ele
mesmo, ou a vítima, seja um nacional.
Em nenhuma hipótese o direito internacional, no estágio em que se en­
contra, autoriza esse ativismo do Estado, permitindo-lhe que vá buscar, em
território de outras soberanias, mediante pedidos de extradição ou mandados
de prisão internacionais, pessoas acusadas de crimes definidos pelo direito das
gentes, mas sem qualquer elemento de conexidade com o Estado do foro. É
com impressionante dose de presunção que a Bélgica sugere estar ‘obrigada’
a instaurar a ação penal no presente caso. O que não é autorizado não pode, a
fortiori, ser obrigatório. A Bélgica não demonstrou a existência de qualquer
outro Estado que, em circunstâncias semelhantes, teria prosseguido com a ação
penal contra o acusado estrangeiro — mesmo se se abstrai por completo a
questão da imunidade. Não existe ‘direito costumeiro em formação’ que possa
decorrer da ação isolada de um único Estado. Não existiria nenhuma regra
costumeira em estado embrionário a ser prestigiada pela Corte, ainda que esta,
ao tratar a questão da competência, acolhesse o pedido belga de não restringir
o processo de formação do direito.
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O artigo 146 da Convenção de Genebra de 1949 sobre a proteção de civis
em tempo de guerra (artigo que se encontra também nas três outras convenções
de 1949) é, entre todas as normas do direito convencional existente, aquele que
mais se ajusta à tese belga sobre o exercício da jurisdição penal com base no
só princípio da justiça universal. Esse dispositivo convida os Estados a buscar,
entregar ou julgar as pessoas acusadas de crimes previstos nas referidas con­
venções. Entretanto, além do fato de que o caso em exame escapa ao estrito
campo de aplicação das convenções de 1949, lembrou a Professora ChemillierGendreau, com o objetivo de elucidar o sentido da norma, o ensinamento de
um dos mais notáveis especialistas do direito penal internacional (e do direito
internacional penal), o decano de Limoges, Professor Claude Lombois:
‘Quando tal condição não é expressamente formulada, não se pode
presumi-la implícita: como poderia um Estado buscar um criminoso em terri­
tório diverso do seu próprio? Como poderia entregá-lo, se ele não estivesse
presente em seu território? Tanto a busca quanto a entrega supõem atos coer­
citivos, ligados às prerrogativas da autoridade soberana e restritos aos limites
espaciais do território’.
...........................................................................................................................
Parece-me imperativo que todo Estado se pergunte, antes de tentar con­
duzir o direito internacional em direção oposta a certos princípios que ainda
regem as relações internacionais, quais seriam as consequências da adesão de
outros Estados, eventualmente de um grande número de outros Estados, a uma
prática semelhante. Não foi sem razão que as Partes discutiram diante da Cor­
te a questão de saber qual seria a reação de certos países europeus se um juiz
do Congo acusasse seus governantes de crimes supostamente cometidos na
África, por eles ou sob suas ordens.
Uma hipótese ainda mais pertinente poderia servir de contraponto ao caso
em tela. Há muitos juízes no Hemisfério Sul não menos qualificados que o Senhor
Vandermeersch, e como ele imbuídos de boa-fé e de profundo amor pelos di­
reitos humanos e pelos direitos dos povos. Tais juízes não hesitariam nem por
um instante em instaurar ações penais contra diversos governantes do Hemis­
fério Norte por conta de episódios militares recentes, ocorridos todos ao norte
do Equador. O conhecimento dos fatos, por parte desses juízes, não é menos
completo nem menos imparcial que aquele que o foro de Bruxelas presume
possuir sobre os acontecimentos de Kinshasa. Por que tais juízes se contêm?
Porque eles têm consciência de que o direito internacional não autoriza a afir­
mação da competência penal num quadro assim. Porque eles sabem que seus
governantes nacionais, à luz dessa realidade jurídica, não sustentariam jamais,
no plano internacional, tais iniciativas. Se o emprego correto do princípio da
competência universal não pressupõe a presença da pessoa acusada no território
do Estado do foro, qualquer coordenação se torna impossível, e a consequência
disso é o colapso do próprio sistema internacional de ajuda mútua para a repres­
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são do crime. É vital que o tratamento doméstico de questões dessa natureza e
a consequente conduta das autoridades estatais se harmonizem com a ideia de
uma sociedade internacional descentralizada, constituída sobre o princípio da
igualdade entre seus membros e dependente da coordenação de seus esforços.
Toda política adotada à margem dessa disciplina, em nome dos direitos humanos,
mais degenera esta causa de que lhe presta serviço.
O exame prévio da questão da competência teria exonerado a Corte de
deliberar sobre a questão da imunidade. Associo-me, de toda forma, às conclu­
sões da maioria de meus pares sobre este ponto. Estimo que o foro interno
belga não é competente, nas presentes circunstâncias, para a ação penal: a uma,
por faltar-lhe base outra que o só princípio da competência universal; a duas,
pela ausência da pessoa acusada em território belga, ao qual não seria legítimo
fazê-la comparecer. Penso, entretanto, que mesmo se a competência da justiça
belga pudesse ser aqui reconhecida, a imunidade do ministro das relações exte­
riores do Congo teria frustrado o início da ação penal, bem como a lavratura do
mandado de prisão internacional pelo juiz, com o apoio do governo belga”.
86. Litígios transnacionais entre o particular e o Estado. A
realidade econômica internacional há bom tempo sugere a certos
particulares — o grande investidor, a empresa de vulto, a em­
presa multinacional — que se insinuem tanto quanto possível
em determinados domínios do direito internacional público. Seu
objetivo básico é a evasão, não necessariamente reprovável, ao
direito interno e à jurisdição dos países com que se relacionam
na exploração da atividade econômica. Sempre que seu poder
negocial lhe permite, esse particular evita celebrar com o Estado
(do qual, naturalmente, ele não é nacional) um contrato comum,
sujeito às normas do direito doméstico do Estado e à sua juris­
dição. As partes cuidam então de que o próprio contrato abrigue
toda a minúcia necessária à cobertura da transação, sem remis­
sões ao direito interno, e deferem à arbitragem — não à justiça
estatal — a solução de todo eventual conflito.
Era norma, de início, que essa espécie de arbitragem se fi­
zesse no molde clássico do direito das gentes6, com cada uma
6. V. adiante, na Parte IV, os §§ 242 e s.
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das partes (o Estado e o particular) indicando um ou dois árbitros
de sua confiança e estes escolhendo por consenso o árbitro prin­
cipal, tudo à luz de um novo compromisso que descrevesse o
litígio, lembrasse qual o direito aplicável, estabelecesse algumas
regras de procedimento e confirmasse a obrigatoriedade da sen­
tença. E o único fundamento dessa ascensão do particular a um
confronto horizontal com o Estado, figurando quase sempre o
primeiro como autor da demanda e o segundo como réu, vinha
sendo a concordância tópica do Estado com tal sistema, no
exercício de sua liberdade contratual. Nada que, como regra
geral de direito das gentes, garantisse ao particular a prerroga­
tiva de pedir a arbitragem, o direito de acionar o Estado fora do
contexto de sua justiça interna.
Em 1965 o Banco Mundial patrocinou a negociação do tra­
tado que instituiu o Centro internacional para solução de litígios
relativos a investimentos (conhecido pela sigla inglesa ICSID).
Desde o ano seguinte, quando o tratado entrou em vigor, esse
organismo arbitral oferece a Estados e investidores uma lista de
possíveis árbitros e lhes proporciona serviços secretariais além
de outros de maior responsabilidade, qual a escolha, na lista, do
árbitro principal, e até mesmo a dos árbitros que normalmente
se­riam indicados pelas partes, se assim preferem ou quando se
omitem. Mais de cem países são hoje partes na convenção do
Centro, ao qual o particular, desde que nacional de um deles,
tem acesso direto para formular sua demanda contra outro Es­
tado que o tenha alegadamente lesado, excluído assim o recurso
à proteção diplomática de seu Estado patrial. Mas para que a
jurisdição arbitral se imponha ao Estado demandado não basta
que ele seja parte na convenção de 1965: é ainda necessário um
consentimento explícito, que se pode encontrar em tratado bila­
teral sobre investimentos mútuos, ou no próprio contrato entre
o particular e o Estado, ou mesmo depreender-se de lei interna
do Estado.
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A primeira sentença arbitral do Centro foi proferida em 1977, no caso de
Adriano Gradella S.p.A. vs. Costa do Marfim. Ao final de 2004 o Centro editava
uma lista de oitenta e sete casos concluídos e outra de oitenta e dois processos em
andamento. Na primeira, uma única demanda foi proposta pelo Estado contra o
investidor estrangeiro (caso Gabão vs. Société Serete S.A.). Entre as restantes, todas
ajuizadas pelo investidor, somente uma o foi contra Estado pós-industrial (caso
Mobil Oil Corp. vs. Nova Zelândia). Na segunda, onde o autor é sempre o particu­
lar, há demandas propostas contra antigas nações socialistas (Eslováquia, Ucrânia,
Estônia), além de uma contra a Espanha, quatro contra os Estados Unidos da Amé­
rica e mais de vinte contra a Argentina.
87. Proposição da matéria. O primeiro capítulo desta parte do
livro cuida do Estado, versando seu território, sua dimensão
humana e sua soberania. Por conveniência didática, inscrevem-se nesse mesmo capítulo os temas da imunidade de jurisdição,
da condição jurídica do estrangeiro, da proteção interna­cional
dos direitos humanos, do meio ambiente e desenvol­vimento.
O segundo capítulo proporciona uma análise genérica das
organizações internacionais. Os dois seguintes versam a respon­
sabilidade internacional e o fenômeno sucessório.
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Capítulo I
O ESTADO
88. Três elementos. O Estado, personalidade originária de direi­
to internacional público, ostenta três elementos conjugados: uma
base territorial, uma comunidade humana estabelecida sobre
essa área, e uma forma de governo não subordinado a qualquer
autoridade exterior. Variam grandemente, de um Estado a outro,
as dimensões territoriais e demográficas, assim como variam as
formas de organização política. Acresce que, em circunstâncias
excepcionais e transitórias, pode faltar ao Estado o elemento
governo — tal é o que sucede nos períodos anárquicos —, e
pode faltar-lhe até mesmo a disponibilidade efetiva de seu ter­
ritório, ou o efetivo controle dessa base por seu governo legíti­
mo. O elemento humano é, em verdade, o único que se supõe
imune a qualquer eclipse, e cuja existência ininterrupta respon­
de, mais que a do próprio elemento territorial, pelo princípio da
continuidade do Estado — de que falaremos mais tarde, no
estudo da sucessão de Estados.
Seção I — TERRITÓRIO DO ESTADO
89. Jurisdição ou competência. Sobre seu território o Estado
exerce jurisdição (termo preferido em doutrina anglo-saxônia),
o que vale dizer que detém uma série de competências para
atuar com autoridade (expressão mais ao gosto dos autores da
escola francesa). O território de que falamos é a área terrestre
do Estado, somada àqueles espaços hídricos de topografia pu­
ramente interna, como os rios e lagos que se circunscrevem no
inte­rior dessa área sólida. Sobre o território assim entendido, o
Estado soberano tem jurisdição geral e exclusiva.
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A generalidade da jurisdição significa que o Estado exerce
no seu domínio territorial todas as competências de ordem legis­
lativa, administrativa e jurisdicional. A exclusividade significa
que, no exercício de tais competências, o Estado local não en­
frenta a concorrência de qualquer outra soberania. Só ele pode,
assim, tomar medidas restritivas contra pessoas, detentor que é
do monopólio do uso legítimo da força pública.
Não vale invocar, por exemplo, o chamado princípio da justiça universal para
legitimar a ação policial de agentes de certo Estado no território de outro (v. adian­
te, no § 124, um histórico de casos concretos).
Se o Estado, em face de circunstâncias peculiares, não se
encontra habilitado a exercer sua jurisdição territorial com genera­
lidade e exclusividade, entregando a outro Estado encargos de
certa monta — como a emissão de moeda, a representação di­
plomática, eventualmente a defesa nacional —, a própria ideia
de sua soberania sofrerá desgaste, e isso produzirá certas con­
sequências. Tal é o que sucede no caso dos microestados, que
estudaremos no capítulo referente à soberania.
90. Aquisição e perda de território. O estudo dessas duas fi­
guras é conjunto, visto que em diversas hipóteses a aquisição de
território por um Estado importa perda de território para outro.
No passado, era comum que Estados do gênero das potências
navais adquirissem território por descoberta, seguida de ocupa­
ção efetiva ou presumida. O objeto da descoberta era a terra
nullius — ou terra de ninguém —, área territorial nos continen­
tes ignotos, não necessariamente inabitada, desde que o eventu­
al elemento indígena não oferecesse resistência: o descobrimen­
to do Brasil pela frota portuguesa de Cabral foi modelo perfeito
daquilo que, na Europa da época e de épocas ulteriores, enten­
deu-se como descoberta e apossamento da terra nullius. Outro
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objeto — embora não tão frequente — de ocupação por Estados
de intensa presença nos mares foi a terra derelicta, ou seja, a
terra abandonada por seu primitivo descobridor, cujo estatuto
jurídico era igual ao da terra nullius. Assim, no auge de seu
êxito ao tempo das descobertas, a Espanha parece haver aban­
donado a ilha de Palmas, bem como as Malvinas e as Carolinas,
objeto ulterior de ocupação, respectivamente, pelos Países Bai­
xos, pela Grã-Bretanha e pela Alemanha.
No período das descobertas sempre esteve claro que particulares eram inidô­
neos para essa forma de aquisição de domínio. Só os Estados se tornavam senhores
das novas terras. Só em nome deles era lícito o apossamento. As grandes companhias
surgidas no século XVII — como a das Índias Orientais — descobriram, ocuparam
e colonizaram terras por conta das soberanias a cujo serviço se encontravam.
O princípio da contiguidade operou com frequência no
tempo em que a terra nullius se oferecia à descoberta e à ocu­
pação. Trata-se de princípio inspirado de certo modo na lei físi­
ca da atração da matéria pela matéria: a pretensão ocupacionis­
ta do descobridor avança pelo território adentro até quando
possível — em geral, até encontrar a resistência de uma preten­
são alheia congênere. Assim, a descoberta pelos portugueses de
certos pontos do litoral brasileiro fez com que sua pretensão
dominial se irradiasse em todos os sentidos, contendo-se apenas
onde viesse a esbarrar nas pretensões espanholas que — também
à luz do princípio da contiguidade — avançavam em sentido
contrário.
Também comum no passado era a aquisição de território
por conquista, ou seja, mediante emprego da força unilateral,
ou como resultado do triunfo em campo de batalha. Em vários
pontos do continente americano as tropas espanholas encon­
traram resistência à pretendida “ocupação de terra nullius”, e
acabaram por apossar-se dessas áreas após a debellatio — o
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aniqui­lamento de seus ocupantes nativos —, forma a mais rude
da conquista. A história da Europa é pontilhada de mutações
de soberania territorial por força do resultado de sucessivas
guerras.
Hoje, entretanto, não seria possível admitir a conquista como meio de aqui­
sição territorial, desde que proscrito o recurso às armas pelo direito das gentes.
Assim, Israel não pretendeu ter-se investido no domínio dos territórios palestinos
cujo controle resultou de seu êxito na guerra de 1967 e em conflitos posteriores: a
necessidade de fronteiras seguras foi seu argumento para a retenção dessas áreas,
até que o abrandamento das tensões políticas permitisse negociação construtiva
com países vizinhos e com a liderança palestina.
Adquire-se e perde-se território mediante cessão onerosa,
do tipo da compra e venda, ou da permuta.
Os Estados Unidos da América compraram a Louisiana da França em 1803,
por 60 milhões de francos, e o Alasca da Rússia em 1867, por 7,2 milhões de dó­
lares. O Brasil adquiriu o Acre da Bolívia em 1903, mediante o pagamento de 2
milhões de libras esterlinas e a prestação de determinados serviços.
A história registra casos de cessão gratuita — um eviden­
te eufemismo, visto que mal se compreende por que um Estado
faria a doação de parte do seu território, a menos que não tives­
se escolha. A cessão gratuita foi um ornamento típico dos tra­
tados de paz, aqueles em que, finda a guerra, defrontavam-se
na mesa de negociação vencedores e vencidos, estes à mercê
daqueles.
Mediante cessão gratuita a França, derrotada na guerra bilateral, cedeu a
Alsácia-Lorena à Alemanha em 1871. Quase meio século mais tarde, ao termo da
primeira grande guerra, a Alemanha está vencida e a França perfila entre os vito­
riosos: nova cessão gratuita, em sentido inverso, restitui a Alsácia-Lorena à sobe­
rania francesa, consignando-se no texto do Tratado de Versalhes (1919).
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A atribuição de território por decisão política de uma orga­
nização internacional ocorreu no âmbito da ONU em 1947, a
propósito da partilha da Palestina, e de novo em 1950 quanto às
ex-colônias italianas. O órgão judiciário da ONU, qual seja a
Corte da Haia, não atribui território: limita-se a dizer, à luz do
direito aplicável, a quem certa área pertence, ou como os conten­
dores deverão proceder para a correta partilha da região contro­
vertida (casos do templo de Preah-Vihear, Camboja-Tailândia,
1962; do Camerum setentrional, Camerum-Reino Unido, 1963;
da plataforma continental do mar do Norte, Dinamarca-Países
Baixos-Alemanha, 1969; da ilha Kasikili-Sedudu, BotsuanaNamíbia, 1999; da delimitação marítima e terrestre Catar-Ba­
rém, 2001).
91. Delimitação territorial. O estabelecimento das linhas li­
mítrofes entre os territórios de dois ou mais Estados pode even­
tualmente resultar de uma decisão arbitral ou judiciária. Nas
mais das vezes, porém, isso resulta de tratados bilaterais, cele­
brados desde o momento em que os países vizinhos têm noção
da fronteira e pretendem conferir-lhe, formalmente, o exato
traçado. A noção da fronteira é produto da evolução histórica
dos acontecimentos. Esse contexto pode envolver a ocupação
resultante da descoberta, o direito sucessório, a consideração do
princípio uti possidetis.
Uti possidetis ita possideatis é mais um daqueles princípios de direito que
evocam a lei física da inércia: como possuís, continuareis possuindo7. Largamente
empregado desde o início do século XIX na América hispânica, o princípio signi­
ficava a conservação, pelas nações latino-americanas independentes, das fronteiras
coloniais, ou seja, daquele traçado que já as separava enquanto províncias colo­niais
da Espanha. A isso deu-se o nome de uti possidetis juris a partir do momento em
que a América portuguesa, pouco interessada na cartografia do império colonial
7. V. Salmon, p. 1123-1124.
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espanhol e nas bulas papais, privilegiou a ocupação efetiva das terras do novo
continente e fez valer para si uma variante do princípio: o uti possidetis de facto.
A essa concepção brasileira do uti possidetis dá-se hoje com frequência em dou­
trina, e sobretudo na jurisprudência da Corte da Haia, o nome de efetividades, ou
consideração do efetivo exercício da soberania sobre determinada área territorial.
O uti possidetis juris, o das repúblicas hispano-americanas, teria amplo emprego
no continente africano ao longo do processo de descolonização, na segunda meta­
de do século XX.
No trabalho de delimitação, os Estados vizinhos tanto podem
optar por linhas limítrofes artificiais quanto naturais. As pri­
meiras são as linhas geodésicas (os paralelos e os meridianos),
ou qualquer arranjo ou combinação que se imagine à base delas
para o estabelecimento, por exemplo, de diagonais. O limite
entre o Canadá e os Estados Unidos da América é, em grande
parte, constituído por um paralelo. O mapa político da África
revela, por sua vez, largo uso das linhas geodésicas para o tra­
çado dos limites interestatais. O emprego de limites artificiais
foi pouco expressivo na Europa, na Ásia e na América Latina.
Os limites naturais de generalizado prestígio são rios e
cordilheiras. No caso destas, a exata linha limítrofe pode correr
ao longo da base da cadeia montanhosa, num de seus dois flan­
cos, de modo que toda a cordilheira pertença a um só dos Esta­
dos confrontantes. É mais comum a opção pela linha das cume­
eiras (uma linha quebrada, ligando pontos de altitude expressiva)
ou pelo divortium aquarum — a linha onde se repartem as águas
da chuva, escorrendo por uma ou outra das vertentes da cordi­
lheira. Este último critério predomina na fronteira argentino-chilena dos Andes, bem assim nas divisas montanhosas do
Brasil com a Venezuela, a Colômbia e o Peru.
No caso dos rios, é compreensível que se evite lançar a linha
limítrofe numa de suas margens, consagrando o total domínio
do curso d’água por um só dos Estados ribeirinhos. Preferem-se
dois sistemas: o da linha de equidistância das margens (que
passa pela superfície do rio, estando sempre no ponto central de
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sua largura), e o do talvegue ou linha de maior profundidade
(que toma em consideração o leito do rio, e passa por suas estrias
mais profundas). O talvegue é de uso mais frequente nos rios
navegáveis: foi ele o critério limítrofe escolhido por Argentina
e Brasil para os rios Uruguai e Iguaçu, por Brasil e Peru para o
rio Purus, por Brasil e Colômbia para os rios Iquiare e Taraíra.
A linha da equidistância foi preferida por Bolívia e Brasil a
propósito dos rios Guaporé, Mamoré e Madeira.
É óbvio que na configuração geográfica de qualquer rio surgem acidenta­
lidades (como enseadas, reentrâncias, ilhas) a que a simples opção pelo critério
da equidistância ou do talvegue não dá remédio. Por isso mesmo os tratados de
fixação de limites têm certa dimensão e complexidade: não lhes incumbe apenas
optar por certo critério ditado pela tradição internacional, mas resolver concre­
tamente todos os problemas da linha limítrofe que deva ser traçada em comum
acordo.
O tratado de limites não deve ainda ser considerado uma espécie em extinção,
nem sua ocorrência atual é produto exclusivo de países de mais recente acesso à
soberania, como os da África negra. Antigas pendências territoriais finalmente
resolvidas têm motivado compromissos bilaterais sobre limites entre países do
velho mundo: França e Luxemburgo em 24 de maio de 1989, Alemanha e Polônia
em 14 de novembro de 1990 (importando o reconhecimento alemão dos direitos
poloneses sobre uma área litigiosa de 104.000 km2), China e Rússia em 16 de maio
de 1991 (precisando linhas limítrofes até então duvidosas no extremo leste, na
região dos rios Amur e Ussuri).
Seção II — IMUNIDADE À JURISDIÇÃO ESTATAL
92. Um velho tema. O direito diplomático e, mais exatamente,
a questão dos privilégios e garantias dos representantes de certo
Estado junto ao governo de outro, constituíram o objeto do pri­
meiro tratado multilateral de que se tem notícia: o Règlement
de Viena, de 1815, que deu forma convencional às regras até
então costumeiras sobre a matéria. Na atualidade vigem a pro­
pósito, com aceitação generalizada, duas convenções ce­lebradas
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em Viena nos anos sessenta, uma delas sobre relações diplomá­
ticas (1961), outra sobre relações consulares (1963)8.
À parte o tema dos privilégios, as duas convenções encerram
normas de administração e protocolo diplomáticos e consulares,
dizendo da necessidade de que o governo do Estado local, por
meio de seu ministério responsável pelas relações exteriores,
tenha exata notícia da nomeação de agentes estrangeiros de
qualquer natureza ou nível para exercer funções em seu territó­
rio, da respectiva chegada ao país — e da de seus familiares —,
bem como da retirada; e do recrutamento de residentes locais
para prestar serviços à missão. Essa informação completa é
necessária para que a chancelaria estabeleça, sem omissões, a
lista de agentes estrangeiros beneficiados por privilégio diplo­
mático ou consular, e a mantenha atualizada: afinal, só o chefe
da missão diplomática, com a categoria de embaixador, apre­
senta suas credenciais solenemente ao chefe de Estado, e deste
se despede ao término de seu período representativo. As conven­
ções disciplinam, por igual, aquilo que pode suceder quando o
Estado local deseja impor a retirada de um agente estrangeiro
— e que leva por vezes o título impróprio de “expulsão”. Cuida-se, em verdade, de uma disciplina sumária: sem necessidade de
fundamentar seu gesto, o Estado local pode declarar persona
non grata o agente inaceitável, com o que o Estado acreditante
(o Estado de origem) deve imediatamente chamá-lo de volta.
93. Diplomacia propriamente dita e serviço consular. No que
concerne aos privilégios de variada índole, é transparente o
motivo de se haver optado, à hora de recodificar o tema, pela
conclusão de dois tratados distintos. O serviço diplomático, de
que cuida a Convenção de 1961, goza de estatuto acentuada­
8. Promulgadas no Brasil, respectivamente, pelo Decreto n. 56.435/65 e pelo Decreto
n. 61.078/67.
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mente mais favorável que aquele próprio do serviço consular,
versado na Convenção de 1963. Com efeito, é da tradição do
direito das gentes não perder de vista a natureza diversa dessas
instituições. O diplomata representa o Estado de origem junto à
soberania local, e para o trato bilateral dos assuntos de Estado.
Já o cônsul representa o Estado de origem para o fim de cuidar,
no território onde atue, de interesses privados — os de seus
compatriotas que ali se encontrem a qualquer título, e os de
elementos locais que tencionem, por exemplo, visitar aquele
país, de lá importar bens, ou para lá exportar.
É indiferente ao direito internacional o fato de que inúmeros países — entre
os quais o Brasil — tenham unificado as duas carreiras, e que cada profissional da
diplomacia, nesses países, transite constantemente entre funções consulares e fun­
ções diplomáticas. A exata função desempenhada em certo momento e em certo
país estrangeiro é o que determina a pauta de privilégios. Assim, ao jovem diplo­
mata brasileiro que atue como terceiro-secretário de nossa embaixada em Nairobi
aplica-se a Convenção de 1961 — não a de 1963 — , e ele terá uma cobertura mais
ampla que aquela de que goza o cônsul-geral do Brasil em Nova York, veterano
titular de um dos postos mais disputados da carreira.
94. Privilégios diplomáticos. No âmbito da missão diplomática,
os membros do quadro diplomático de carreira (do embaixador
ao terceiro-secretário) gozam de ampla imunidade de jurisdição
penal e civil. Os membros do quadro administrativo e técnico
(tradutores, contabilistas etc.), desde que oriundos do Estado
acreditante, e não recrutados in loco, distinguem-se dos diplo­
matas no que concerne à imunidade de jurisdição civil, aqui li­
mitada aos atos praticados no exercício de suas funções. Todos
são, ademais, fisicamente invioláveis, e em caso algum podem
ser obrigados a depor como testemunhas. Reveste-os, além dis­
so, a imunidade tributária.
Exceções quanto à jurisdição civil: não há imunidade no caso de feito suces­
sório em que o agente esteja envolvido a título estritamente privado, nem, em iguais
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circunstâncias, na ação real relativa a imóvel particular. Tampouco pode invocar a
imunidade o agente que, havendo proposto ele próprio certa ação cível, enfrenta
uma reconvenção. A Convenção de 1961 dispõe também que não há imunidade no
caso de feito relativo a uma profissão liberal ou atividade comercial exercida pelo
agente; mas seu próprio texto proíbe tais atividades paralelas ao diplomata.
Exceções quanto à imunidade tributária: o beneficiário do privilégio diplo­
mático deverá, de todo modo, arcar com os impostos indiretos, normalmente inclu­
ídos no preço de bens ou serviços, bem assim com as tarifas correspondentes a
serviços que tenha efetivamente utilizado. É óbvio que possuindo, acaso, imóvel
particular no território local, pagará os impostos sobre ele incidentes. O pessoal
administrativo e técnico tem ainda sua imunidade tributária limitada, em matéria
de importação, àquilo que traga consigo quando do ingresso inicial no Estado
acreditado.
Em matéria penal, civil e tributária, os privilégios dos agen­
tes dessas duas categorias estendem-se aos membros das respec­
tivas famílias, desde que vivam sob sua dependência e tenham,
por isto, sido incluídos na lista diplomática. Uma terceira cate­
goria, o pessoal subalterno ou pessoal de serviços da missão
diplomática, custeado pelo Estado acreditante, só goza de imu­
nidades no que concerne a seus atos de ofício, à sua estrita ati­
vidade funcional — o que significa que, neste caso, não cabe
falar em extensão do privilégio ao grupo familiar. Criados par­
ticulares, pagos pelo próprio diplomata, não têm qualquer pri­
vilégio garantido pelos textos convencionais.
São fisicamente invioláveis os locais da missão diplomática
com todos os bens ali situados, assim como os locais residenciais
utilizados pelo quadro diplomático e pelo quadro administrativo
e técnico. Esses imóveis, e os valores mobiliá­rios neles encontrá­
veis, não podem ser objeto de busca, requisição, penhora ou
medida qualquer de execução. Os arquivos e documentos da mis­
são diplomática são invioláveis onde quer que se encontrem.
95. Privilégios consulares. Os termos da Convenção de 1963
fazem ver que, em linhas gerais, os privilégios consulares se
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assemelham àqueles que cobrem o pessoal de serviços da missão
diplomática. Com efeito, os cônsules e funcionários consulares
gozam de inviolabilidade física e de imunidade ao processo —
penal ou cível — apenas no tocante aos atos de ofício. Está
claro que um privilégio assim limitado não tem como se estender
a membros da família nem a instalações residenciais9. Por outro
lado, ficou reduzida virtualmente a zero a distinção entre côn­
sules de carreira, ou originários, pelo menos, do Estado acredi­
tante (os chamados cônsules missi) e cônsules honorários, re­
crutados no próprio país onde vão exercer o ofício (os chamados
cônsules electi). É que estes últimos tinham tradicionalmente
aquela pauta mínima de privilégios indispensáveis ao desempe­
nho satisfatório da função, e a igual parâmetro ficou reduzida,
com o regime convencional de 1963, a situação dos primeiros.
As concessões que a Convenção de 1963 faz aos cônsules em matéria pro­
cessual são modestas, e ostentam certa plasticidade — no sentido de que sua efi­
cácia maior ou menor fica a depender da vontade da autoridade local. Quando
processados, deve-se cuidar de que a marcha do feito seja breve e perturbe o míni­
mo possível os trabalhos consulares. A prisão preventiva é permitida, desde que
autorizada por juiz, e em caso de crime grave. A prestação de depoimento testemu­
nhal é obrigatória, devendo ser programada de modo a não causar prejuízo ao
serviço. O Supremo Tribunal Federal confirmou, em 2002, a legalidade da prisão
preventiva decretada no caso do cônsul de Israel no Rio de Janeiro (HC 81.158-RJ).
Alguns votos vencidos concediam o habeas corpus unicamente por entender que
não se tratava, no caso, de crime grave.
Os locais consulares são invioláveis na medida estrita de
sua utilização funcional, e gozam de imunidade tributária. Os
arquivos e documentos consulares, a exemplo dos diplomáticos,
são invioláveis em qualquer circunstância e onde quer que se
encontrem.
9. Ressalvada, quanto à isenção de impostos, a residência do cônsul.
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Outra norma da convenção, o art. 36, estabelece que o côn­
sul competente, ratione loci, deve ser avisado pela Justiça local
sempre que tenha início contra compatriota seu um processo pe­
nal suscetível de levar a uma condenação de certo peso, para que
lhe dê, se entender apropriado, alguma assistência no processo.
Muitos são os países em que essa norma não tem sido observada
com rigor. No caso dos Estados Unidos da América, três países
já os acionaram na Corte da Haia em razão do descum­primento
da regra convencional em processos contra nacionais seus.
Nos três casos havia ocorrido condenação à pena de morte, em diferentes
estados da federação americana. O Paraguai desistiu de sua ação (caso de Angel
Breard), a Alemanha e o México levaram a termo as suas (casos LaGrand, 2001, e
Avena e outros nacionais mexicanos, 2004), com êxito, havendo a Corte lembrado
a imperatividade da norma e as obrigações internacionais de um governo federal
ali onde a justiça penal é administrada pelos estados-membros.
96. Aspectos da imunidade penal. Está visto que os diplomatas
e integrantes do pessoal administrativo e técnico da missão di­
plomática gozam de imunidade penal ilimitada, que se projeta,
de resto, sobre os membros de suas famílias. Desse modo, até
mesmo um homicídio passional, uma agressão, um furto comum
estarão isentos de processo local. Os textos de Viena lembram
que isso não livra o agente da jurisdição de seu Estado patrial.
O que se espera, por óbvio, é que retornando à origem o diplo­
mata responda ali pelo delito praticado no exterior. A imunida­
de não impede a polícia local de investigar o crime, preparando
a informação sobre a qual se presume que a Justiça do Estado
de origem processará o agente beneficiado pelo privilégio diplo­
mático.
No caso dos cônsules, visto que a imunidade só alcança os
atos do ofício, resulta claro que crimes comuns podem ser pro­
cessados e punidos in loco. Crimes não puníveis pelo Estado
local, porque cobertos pela estreita faixa de imunidade, seriam
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aqueles diretamente relacionados com a função consular: assim
a outorga fraudulenta de passaportes, a falsidade na lavratura de
guias de exportação, e outros mais.
No Habeas corpus 49.183 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a imuni­
dade à jurisdição penal local num caso de injúria praticada pelo cônsul da Repú­
blica Dominicana em São Paulo contra o vice-cônsul do mesmo país, e expressa
em correspondência relativa ao desempenho de suas tarefas (1971). Já no Habeas
corpus 50.155 o Supremo proclamou a competência da Justiça de São Paulo para
processar o cônsul honorário do Chile, que praticara lesões corporais num entreve­
ro resultante de relações de vizinhança (1972).
Quando reconhecida a imunidade em favor de um cônsul honorário — que
normalmente é um cidadão local, e portanto não possui a nacionalidade do Estado
acreditante —, este último poderá processá-lo com base no princípio da defesa
(visto que se trata de crime contra sua administração pública), ou simplesmente re­
nunciar ao privilégio, para que o agente seja punido no próprio Estado territorial.
97. Renúncia à imunidade. O Estado acreditante — e somen­
te ele — pode renunciar, se entender conveniente, às imunidades
de índole penal e civil de que gozam seus representantes diplo­
máticos e consulares. Estipulam as convenções de Viena que, no
foro cível, a renúncia atinente ao processo de conhecimento não
alcança a execução, para a qual nova renúncia é necessária (nor­
ma singular, que em doutrina já foi considerada imoral10). Em
caso algum, portanto, o próprio beneficiário da imunidade dispõe
de um direito de renúncia.
O caso Balmaceda-Waddington ilustra a impossibilidade da renúncia ao
privilégio por parte do próprio diplomata, ainda que não seja sua pessoa, mas a de
um familiar, o alvo da ação deduzida em juízo. Em 1906 o filho do embaixador do
Chile em Bruxelas, D. Luys Waddington, matou por razões pessoais o secretário
da embaixada, Ernesto Balmaceda. As autoridades belgas se abstiveram de qualquer
ação punitiva. Dias mais tarde D. Luys Waddington compareceu ao foro e declarou
10. V. David Ruzié, Droit international public, Paris, Dalloz, 1987, p. 59.
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ao procurador do rei que renunciava à imunidade do filho, para que este respondes­
se pelo homicídio ante os tribunais belgas. O governo local procurou saber se a
chancelaria chilena abonava aquela renúncia, e só ante a resposta afirmativa fez
com que o processo tivesse curso.
98. Primado do direito local. Tanto a Convenção de Viena sobre
relações diplomáticas quanto a que cuida das relações consula­
res11 dispõem que os detentores do privilégio estão obrigados,
não obstante, a respeitar as leis e regulamentos do Estado terri­
torial. O primado do direito local, no que tem de substantivo, é
portanto indiscutível, apesar de frustrada pela imunidade a ação
judicial correspondente à sua garantia de vigência. Assim, em­
bora imune a um eventual processo, o embaixador britânico tem
o dever de conduzir seu veículo nas ruas e estradas brasileiras
pelo lado direito, e não pelo esquerdo como faria em Londres.
É certo que, enquanto seja estranho à ordem local e às relações
com pessoas e entidades desvinculadas da missão diplomática,
não se impõe a representantes estrangeiros o direito do Estado
acreditado. Não haveria afronta ao ordenamento jurídico brasi­
leiro se o embaixador de um país poligâmico compartilhasse seu
leito com quatro embaixatrizes, ou se os vencimentos do pesso­
al diplomático de certa embaixada fossem pagos semestralmen­
te — o que não seria permitido por nossa legislação trabalhista.
Contudo, em todas as suas relações com o meio local deve o
Estado estrangeiro, por norma costumeira, e devem seus agentes
diplomáticos e consulares, por disposição expressa dos textos
de Viena, conformar-se com as prescrições do direito local. Isso
tem particular importância no que se refere à celebração e à
execução de contratos, como os de empreitada para construção
imobiliária, os de prestação de serviços, e sobretudo os contra­
tos individuais de trabalho. Em tais casos o contratante estran­
geiro não costuma ser a pessoa de um diplomata ou cônsul, mas
11. Artigos 41 e 55, respectivamente.
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o próprio Estado de origem — que não é menos soberano do
que o Estado local, e de cuja imunidade tra­ta­remos agora.
99. Estado estrangeiro e jurisdição local. Embora votadas
primordialmente à disciplina dos privilégios diplomáticos e
consu­lares, as convenções de Viena versam no seu contexto a
invio­labilidade e a isenção fiscal de certos bens — móveis e
imóveis — pertencentes ao próprio Estado acreditante, não ao
patrimônio particular de seus diplomatas e cônsules. Contudo,
ali não se encontra norma alguma que disponha sobre a imuni­
dade do Estado, como pessoa jurídica de direito público externo,
à jurisdição local — de índole cível, naturalmente.
Honrava-se em toda parte, apesar disso, uma velhíssima e
notória regra costumeira sintetizada no aforismo par in parem
non habet judicium: nenhum Estado soberano pode ser subme­
tido contra sua vontade à condição de parte perante o foro do­
méstico de outro Estado. Aos negociadores dos tratados de
Viena, no início dos anos sessenta, teria parecido supérfluo
conven­cionalizar a norma costumeira, sobretudo porque seu teor
se poderia entender fluente, a fortiori, da outorga do privilégio
a representantes do Estado estrangeiro em atenção à sua sobe­
rania — e não com o propósito de “beneficiar indivíduos”,
conforme lembra o preâmbulo de uma e outra das convenções.
A ideia da imunidade absoluta do Estado estrangeiro à ju­
risdição local começou a desgastar-se já pela segunda metade
do século XX nos grandes centros internacionais de negócios,
onde era natural que as autoridades reagissem à presença cada
vez mais intensa de agentes de soberanias estrangeiras atuando
não em funções diplomáticas ou consulares, mas no mercado,
nos investimentos, não raro na especulação. Não havia por que
estranhar que ingleses, suíços e norte-americanos, entre outros,
hesitassem em reconhecer imunidade ao Estado estrangeiro
envolvido, nos seus territórios, em atividades de todo estranhas
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à diplomacia estrita ou ao serviço consular, e adotassem assim
um entendimento restritivo do privilégio, à base da distinção
entre atos estatais jure imperii e jure gestionis.
No Brasil, até poucos anos atrás o poder Judiciário — pela
voz de sua cúpula — guardou rigorosa fidelidade à regra par in
parem non habet judicium12, não obstante o constrangimento
social trazido pela circunstância de que quase todos os postu­
lantes da prestação jurisdicional, frustrados ante o reconheci­
mento da imunidade, eram ex-empregados de missões diplomá­
ticas e consulares estrangeiras, desejosos de ver garantidos seus
direitos trabalhistas à luz pertinente da CLT.
Não faltou quem sustentasse, na época, que a prestação jurisdicional é garan­
tida pela Constituição do Brasil a quem quer que sofra lesão de direito, e que
desse modo uma norma internacional assecuratória de imunidade afrontaria nossa
lei fundamental. Essa ideia é simplista e incorreta. Quando o constituinte brasilei­
ro promete a todos a tutela judiciária, ele o faz na presunção de que a parte deman­
dada, o réu, o causador da lesão que se pretende ver reparada, seja um jurisdicio­
nado, vale dizer, alguém sujeito à ação do Judiciário local. O constituinte brasilei­
ro não tem autoridade para fazer promessas à custa de soberanias estrangeiras.
Numa palavra: regras sobre a sensível, eminente e igualitária relação entre sobera­
nias só se produzem no plano internacional, e mediante o consentimento das partes.
Tais regras não podem ser ditadas unilateralmente por uma constituição nacional.
12. Essa era também a atitude do poder Executivo. Em parecer de 23 de novembro de
1923 Clóvis Beviláqua, consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores, ponderava:
“A nossa Constituição, sendo a organização político-jurídica de um povo, não traça regras
obrigatórias para outros povos. Assim, quando determina que aos juízes e tribunais compe­
te processar e julgar os pleitos entre Estados estrangeiros e cidadãos brasileiros, pressupõe
a aquiescência desses Estados em aceitar a jurisdição dos nossos tribunais. Esta é a doutrina
que o Brasil tem sustentado, e não pode pretender que, em seu território, não tenha aplicação,
quando para si a reclama em território sujeito a outra soberania” (Pareceres, II, p. 263).
Eram muito raros, em toda parte, os exemplos de aceitação da jurisdição local por
Estado estrangeiro contra o qual um particular pretendesse mover processo de qualquer
natureza. Um pouco menos raros têm sido os casos em que o próprio Estado estrangeiro
ajuíza a demanda contra um particular no foro local, a que desse modo se submete [na Ape­
lação cível 9.691-DF (RTJ 118/64) o STF examinou uma ação de usucapião ajuizada em
Brasília pelo reino dos Países Baixos contra um particular].
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Enquanto prevaleceu entre nós a regra da imunidade absoluta, havia uma
resposta implícita à questão de saber qual o caminho indicado pela Justiça do Bra­
sil a quem quisesse demandar contra Estado estrangeiro e visse de logo trancada a
via judiciária local: o pretendido réu é sempre passível de ser acionado em seu
próprio território, perante sua própria Justiça. A sugestão não soaria cínica quando
feita, por exemplo, a uma grande empresa construtora a que certo país deixasse de
pagar a conta da edificação de sua embaixada em Brasília: a empresa contrataria
advogados idôneos na capital do país faltoso e recolheria, ao final do processo, tudo
quanto lhe fosse devido, além do reembolso de honorários. Mas essa via alternati­
va não estava provavelmente ao alcance do auxiliar de serviços a quem certa em­
baixada demitisse arbitrariamente, ou da vítima de atropelamento por veículo di­
plomático. De todo modo, não era o Brasil o único país a sentir-se vexado com os
efeitos sociais pungentes da imunidade absoluta. Alguma solução para o problema,
ainda que em bases provisoriamente casuísticas, haveria de dar-se.
100. Imunidade do Estado: fatos novos e perspectivas. Uma
Convenção europeia sobre imunidade do Estado, concluída em
Basileia em 1972, exclui do âmbito da imunidade as ações de­
correntes de contratos celebrados e exequendos in loco13. Dis­
positivo semelhante apareceria no State Immunity Act, que se
editou na Grã-Bretanha em 1978. Lei norte-americana anterior
— o Foreign Sovereign Immunities Act, de 1976 — não chegara
a esse ponto, mas abolira a imunidade nos feitos relacionados
com danos (ferimentos ou morte) produzidos pelo Estado es­
trangeiro no território local.
O que impressiona, tanto na Convenção europeia quanto nos diplomas domés­
ticos promulgados nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, é que esses textos fulmi­
nam a imunidade do Estado estrangeiro em hipóteses completamente distintas da­
quela atividade comercial heterodoxa a que se entregavam alguns países em lugares
como Londres, Nova York ou Zurique — prática inimaginável em Brasília, em
Moscou ou em Damasco —, e que haviam já produzido os primeiros arranhões na
regra da imunidade absoluta. Com efeito, recrutar servidores subalternos no Estado
13. Essa Convenção entrou em vigor em junho de 1976, e o conjunto de partes, em­
bora reduzido, é expressivo: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Grã-Bretanha, Luxembur­
go, Países Baixos e Suíça.
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local e contratar a construção do prédio representativo são atos inscritos na rotina
diplomática; comuns, portanto, em todas as capitais do mundo. É também na casua­
lidade do dia a dia que pode ocorrer um acidente imputável ao Estado estrangeiro,
acarretando dano a pessoas da terra. O caminho tomado por esses recentes diplomas,
vindos à luz em áreas de grande prestígio na cena internacional, solapou de modo
irremediável as bases da velha regra costumeira — a se entender derrogada na me­
dida em que os demais países, abstendo-se de protestar, assumem, um após outro,
igual diretriz.
No Brasil uma decisão do Supremo Tribunal Federal, toma­
da à unanimidade em maio de 1989, assentou que o Estado es­
trangeiro não tem imunidade em causa de natureza trabalhista
(Apelação cível 9.696, RTJ 133/159)14. A corte considerou in­
subsistente a norma costumeira que outrora garantira a imuni­
dade absoluta, e portanto desaparecido o único fundamento que
vinha justificando a extinção liminar do processo.
A execução forçada da eventual sentença condenatória, entretanto, só é pos­
sível na medida em que o Estado estrangeiro tenha, no âmbito espacial de nossa
jurisdição, bens estranhos à sua própria representação diplomática ou consular —
visto que estes se encontram protegidos contra a penhora ou medida congênere pela
inviolabilidade que lhes asseguram as Convenções de Viena de 1961 e 1963, estas
seguramente não derrogadas por qualquer norma ulterior. A prática recente revela,
de todo modo, que o Estado condenado no processo de conhecimento propende a
não criar embaraços à execução.
Uma Convenção das Nações Unidas sobre a imunidade de
jurisdição do Estado e de seus bens à jurisdição estrangeira foi
adotada pela Assembleia Geral em 2 de dezembro de 2004, à
base de um projeto da Comissão do Direito Internacional, e não
entrou ainda em vigor, dependente que se encontra do quorum
de trinta manifestações definitivas de consentimento. O confron­
14. V. Guido F. S. Soares, As imunidades de jurisdição na justiça trabalhista brasilei­
ra; BSBDI (1992), v. 77-78, p. 101 e s.
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to desse texto com o direito positivo preexistente — a Conven­
ção europeia de 1972, as leis internas promulgadas nos Estados
Unidos, na Grã-Bretanha, na Austrália, no Canadá — e com
precedentes judiciários de nações diversas permite ter como
provável que a imunidade não subsistirá no que se refere a toda
espécie de processo derivado de relação jurídica entre o Estado
estrangeiro e o meio local — mais exatamente os particulares
locais. Isso significa algo afinal previsível por sua perfeita na­
turalidade: a Justiça local é competente para conhecer da de­
manda contra o Estado estrangeiro, sem que este possa arguir
imunidade, justamente naqueles casos em que o direito substan­
tivo local é aplicável. Tal o caso da reclamação trabalhista de­
duzida por aquele que a embaixada recrutou in loco (não impor­
tando sua nacionalidade, que pode ser até mesmo a do Estado
empregador), ou da cobrança do preço da empreitada, dos ser­
viços médicos, do aluguel em atraso, da indenização pelo infor­
túnio no trânsito.
A imunidade tende a reduzir-se, desse modo, ao mais estri­
to sentido dos acta jure imperii, a um domínio regido seja pelo
direito das gentes, seja pelas leis do próprio Estado estrangeiro:
suas relações com o Estado local ou com terceira soberania, com
seus próprios agentes recrutados na origem, com seus nacionais
em matéria de direito público — questões tendo a ver com a
nacio­nalidade, os direitos políticos, a função pública, o serviço
militar, entre outras15.
É regida pelo direito internacional, e imune, por isso, a qualquer jurisdição
doméstica, toda relação entre Estados soberanos, por miúdo e prosaico que pareça
seu domínio. Nenhum erro mais primário se cometeu no Brasil, nos últimos anos, do
que o ajuizamento, pela advocacia do fisco, de ações executivas contra nações estran­
geiras — apresentadas formalmente pelo autor como “consulados” deste ou daquele
15. Sobre a imunidade de jurisdição das organizações internacionais representadas no
Brasil, v. adiante o § 160.
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país — para cobrança de tributos ou de multas fiscais (!!!). Se o Estado estrangeiro,
aqui representado por sua missão diplomática ou consular, comete qualquer falta ou
abuso de direito, incumbe ao governo da República, pela voz do Ministério das Re­
lações Exteriores, chamá-lo à ordem, prevenir a repetição do abuso, ou mesmo repri­
mi-lo com medida mais séria como a censura ao agente diplomático ou consular
faltoso, a declaração de persona non grata que o devolva à origem, eventualmente a
instauração de um contencioso internacional. São normas e práticas internacionais,
aqui interpretadas e aplicadas pelo governo, com uma larga margem de discriciona­
riedade casuística, que estabelecem, por exemplo, os limites à importação isenta que
as missões estrangeiras realizam normalmente, seja de veículos ou de equipamentos
de informática, seja de álcool para sua atividade social.
Seção III — DIMENSÃO PESSOAL DO ESTADO
101. População e comunidade nacional. População do Estado
é o conjunto das pessoas instaladas em caráter permanente sobre
seu território: uma vasta maioria de nacionais, e um contingen­
te minoritário — em número proporcional variável, conforme o
país e a época — de estrangeiros residentes. Importante lembrar
que a dimensão pessoal do Estado soberano (seu elemento cons­
titutivo, ao lado do território e do governo) não é a respectiva
população, mas a comunidade nacional, ou seja, o conjunto de
seus nacionais, incluindo aqueles, minoritários, que se tenham
estabelecido no exterior. Sobre os estrangeiros residentes o Es­
tado exerce inúmeras competências inerentes à sua jurisdição
territorial. Sobre seus nacionais distantes o Estado exerce juris­
dição pessoal, fundada no vínculo de nacionalidade, e indepen­
dente do território onde se encontrem.
102. Conceito de nacionalidade. Nacionalidade é um vínculo
político entre o Estado soberano e o indivíduo, que faz deste um
membro da comunidade constitutiva da dimensão pessoal do
Estado. Importante no âmbito do direito das gentes, esse vínculo
político recebe, entretanto, uma disciplina jurídica de direito in­
212
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terno: a cada Estado incumbe legislar sobre sua própria nacio­
nalidade, desde que respeitadas, no direito internacional, as regras
gerais, assim como regras particulares com que acaso se tenha
comprometido. Aqui se impõem duas observações preliminares:
a) Todo o substrato social e histórico do instituto da nacio­
nalidade tende a apontar, de modo inequívoco, apenas o ser hu­
mano como seu titular. É por extensão que se usa falar em nacio­
nalidade das pessoas jurídicas, e até mesmo em nacionalidade
das coisas. No primeiro caso não há negar valor jurídico ao
vínculo, apesar de que fundado quase sempre na mera conside­
ração da sede social ou do lugar de fundação da empresa. No
segundo, o uso do termo nacionalidade não excede à metáfora.
Assim, a constância com que ouvimos referência a aviões bra­
sileiros ou a sociedades brasileiras de capital aberto não nos
deve levar a confundir um vínculo político eminente, dotado de
amplo lastro na história das sociedades humanas, com mera
sujeição de ordem administrativa, mutável ao sabor da compra
e venda.
b) Ao menos no que concerne ao direito das gentes, o Esta­
do soberano é o único outorgante possível da nacionalidade. Se,
por tradição, certos complexos federais como a Suíça consagram
uma curiosa forma de dupla instância, proclamando que nos seus
nacionais a nacionalidade federal deriva da nacionalidade atri­
buída pelo Estado-membro, fazem-no para uso interno. Nenhu­
ma província federada, titular de autonomia porém carente de
soberania, pode fazer valer no plano internacional uma pretensa
prerrogativa de proteção ao indivíduo, visto que nesse plano lhe
falta personalidade jurídica.
Subseção 1 — A NACIONALIDADE EM DIREITO
INTERNACIONAL
103. Princípios gerais e normas costumeiras. A dimensão
humana, a dimensão pessoal, é inerente ao Estado: ele tem assim
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a elementar necessidade de estabelecer distinção entre seus na­
cionais e os estrangeiros. Esse princípio geral, que nenhuma
ordem jurídica deixou de observar, foi não obstante posto em
dúvida por Hans Kelsen16, para quem nada impede que o Estado
se abstenha de editar o regramento jurídico de sua própria na­
cionalidade — e, pois, de possuir nacionais. Mas Pontes de
Miranda observou, com razão, que há uma necessidade impe­
riosa de que o Estado se manifeste em determinadas pessoas
(quando menos, na singular pessoa do seu chefe)17. Mal se pode
compreender, mesmo em pura teoria, a existência de um Estado
cuja dimensão humana fosse toda ela integrada por estrangeiros,
e cujo governo “soberano” se encontrasse nas mãos de súditos
de outros países.
É também princípio geral de direito das gentes a regra ex­
pressa no art. 15 da Declaração Universal dos Direitos do Homem
(ONU — 1948): o Estado não pode arbitrariamente privar o
indivíduo de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de
nacionalidade. Esse duplo preceito sucede, no contexto do arti­
go, à afirmação de que todo indivíduo tem direito a uma nacio­
nalidade — regra que recolhe unânime simpatia, mas que, por
não ter um destinatário identificável, pode carecer de eficácia.
Por último, vale dar destaque ao princípio da efetividade: o
vínculo patrial não deve fundar-se na pura formalidade ou no
artifício, mas na existência de laços sociais consistentes entre o
indivíduo e o Estado.
De modo geral a nacionalidade originária (aquela que a pessoa se vê atribuir
quando nasce) resulta da consideração, em grau variado, do lugar do nascimento
(jus soli) e da nacionalidade dos pais (jus sanguinis). A manifestação de vontade
16. Hans Kelsen, Théorie générale du droit international public; Recueil des Cours
(1932), v. 42, p. 244.
17. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição, São Paulo, Revista dos Tribunais,
1974, v. 4, p. 367.
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— que opera às vezes como elemento acessório para a determinação da nacionali­
dade originária — é pressuposto indispensável da aquisição ulterior de outro vín­
culo patrial, mas deve apoiar-se sobre fatos sociais indicativos da relação indivíduo-Estado. Com efeito, a nacionalidade derivada, que se obtém mediante naturaliza­
ção e na maioria dos casos implica a ruptura do vínculo anterior, há de ter requisi­
tos como alguns anos de residência no país, o domínio do idioma, e outros mais,
ora alternativos ora cumulativos. Quando um Estado concede a alguém sua nacio­
nalidade por naturalização carente de apoio em fatos sociais, não se discute seu
direito de prestigiar esse gracioso vínculo dentro de seu próprio território. Lá fora,
contudo, outros governos, e destacadamente os foros internacionais, tenderão a
negar reconhecimento a essa nacionalidade, considerada inefetiva. Foi o que fez a
Corte da Haia no caso Nottebohm — versado adiante, no capítulo que trata da
responsabilidade internacional.
A título costumeiro vigem pelo menos duas normas incon­
testadas, a primeira sobre a definição da nacionalidade, a outra
sobre seus efeitos. É de prática generalizada excluírem-se da
atribuição de nacionalidade jure soli os filhos de agentes de
Estados estrangeiros — diplomatas, cônsules, membros de mis­
sões especiais. Essa prática vem acompanhada pela opinio juris:
os Estados a prestigiam na convicção de sua necessidade e jus­
tiça. A presunção de índole social que sustenta essa regra é a de
que o filho de agentes estrangeiros terá por certo um outro vín­
culo patrial — resultante da nacionalidade dos pais (jus san­
guinis) e da respectiva função pública —, tendente a merecer
sua preferência. Uma segunda regra depreensível de prática
geral aceita como sendo o direito é a que proíbe o banimento.
Nenhum Estado pode expulsar nacional seu, com destino a ter­
ritório estrangeiro ou a espaço de uso comum. Há, pelo contrá­
rio, uma obrigação, para o Estado, de acolher seus nacionais em
qualquer circunstância, incluída a hipótese de que tenham sido
expulsos de onde se encontravam.
104. Tratados multilaterais. O direito internacional escrito tem,
de modo esparso e avulso, procurado reduzir os problemas da
apatria e da polipatria, ora trazendo à ordem geral certos Esta­
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dos excessivamente absorventes, ou, pelo contrário, refratários
demais à outorga da nacionalidade, ora tendendo a proscrever,
nesse âmbito, a distinção entre os sexos e a repercussão auto­
mática do casamento, ou de sua dissolução, sobre o vínculo
patrial.
A Convenção da Haia de 12 de abril de 193018 proclama,
de início, a liberdade do Estado para determinar em direito
interno quais são seus nacionais, ponderando, embora, que tal
determinação só é oponível aos demais Estados quando reves­
tida de um mínimo de efetividade, à base de fatores ditados pelo
costume pertinente (lugar do nascimento, filiação, tempo razoá­
vel de residência ou outro indicativo de vínculo como pressu­
posto da naturalização). No mais, limita-se o texto da Haia a
condenar a repercussão de pleno direito sobre a mulher, na
constância do casamento, da eventual mudança de nacionalida­
de do marido, e a determinar aos Estados cuja lei subtrai a
nacionalidade à mulher em razão do casamento com estrangei­
ro, que se certifiquem da aquisição, por aquela, da nacionali­
dade do marido, prevenindo desse modo a perda não compen­
sada, vale dizer a apatria.
Ainda em salvaguarda dos direitos da mulher, duas conven­
ções multilaterais viriam a merecer a cômoda participação do
Brasil, cuja lei doméstica já então abolira toda distinção funda­
da no sexo, no terreno da nacionalidade. A primeira, resultante
da 7ª Conferência Interamericana, condenava qualquer legislação
ou prática discriminatória, nisto se resumindo19. A segunda, de
alcance espacial mais amplo, porém de conteúdo igualmente
simples, celebrou-se em Nova York, sob o patrocínio das Nações
18. Promulgada no Brasil pelo Decreto n. 21.798, de 6 de setembro de 1932, e ainda
hoje em vigor para um total de quinze países, em sua maioria europeus.
19. Convenção sobre a nacionalidade da mulher, celebrada em Montevidéu, em 26 de
dezembro de 1933, e promulgada no Brasil pelo Decreto n. 2.411, de 23 de fevereiro de
1938.
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Unidas, em 20 de fevereiro de 195720, e cuidou tão só de imu­
nizar a nacionalidade da mulher contra todo efeito automático
do casamento, do divórcio, ou das alterações da nacionalidade
do marido na constância do vínculo.
Vale observar que já em 1948 a Assembleia Geral das Nações
Unidas, em sua terceira sessão ordinária, trazia a nacionalidade à
área dos direitos funda­mentais da pessoa humana, tendo como
premissa maior a consideração do desamparo e dos transtornos
resultantes da apatria. O art. 15 da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, então aprovada, dispunha, como visto, que
“todo homem tem direito a uma nacionalidade”, e que “ninguém
será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do di­
reito de mudar de nacionalidade”. Essas mesmas regras seriam
retomadas pelo art. 20 da Convenção americana sobre direitos
humanos, celebrada em São José da Costa Rica, em 1969, que
inovou uma terceira: “Toda pessoa tem direito à nacionalidade
do Estado em cujo território houver nascido, se não tiver direito
a outra”.
É ilusória a proclamação do direito de todo ser humano a uma nacionalidade,
de vez que a regra não tem destinatário certo. Aceitando-a, o Estado, isoladamente
considerado, a nada se compromete. Já a segunda norma, comum aos dois textos
indicados, é operante, visto que parte do pressuposto da existência do vínculo pátrio,
proibindo sua supressão arbitrária ou sua imposição inarredável. Sucede que pre­
sumivelmente nenhum Estado, ao privar alguém da nacionalidade ou do direito de
mudá-la, deixará de invocar razões de direito interno que subtraiam à medida o
cunho de arbitrariedade. Mesmo sob o peso dessa consideração, veremos sobrevi­
ver na regra um elemento de grande valia: o direito de mudar de nacionalidade é
ali reconhecido com força de dogma, tanto que se comprometem os Estados a não
cerceá-lo sem justo motivo. Rejeita-se desse modo, embora tardiamente, o velho
conceito da allégeance perpétuelle, ou seja, da nacionalidade imutável.
20. Convenção sobre a nacionalidade da mulher casada, promulgada no Brasil pelo
Decreto n. 64.216, de 18 de março de 1969, com reserva ao art. X, que predeterminava a
competência da Corte Internacional de Justiça para resolver os litígios resultantes da apli­
cação do tratado.
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A terceira regra, presente apenas na Convenção americana
de São José, diz do direito de toda pessoa à nacionalidade do
Estado em cujo território houver nascido, na falta de outra. Aqui
nos defrontamos com norma dotada de incontestável eficácia,
que, acaso aceita pela totalidade dos Estados, reduziria substan­
cialmente a incidência dos casos de apatria, podendo mesmo
eliminá-los por inteiro quando complementada por disposições
de direito interno relativas à extensão ficta do território (navios
e aeronaves) e à presunção de nascimento local em favor dos
expostos. Esse percuciente princípio não veio à luz, original­
mente, em São José da Costa Rica. Quinze anos antes, a Comis­
são do Direito Internacional da ONU o exprimira no art. 1º de
um projeto de convenção “para a supressão da apatria no futuro”,
que acabou no arquivo. Com pretensões mais modestas, outro
projeto da Comissão, este tendente a “reduzir os casos de apa­
tria”, e ostentando um dispositivo inicial lavrado nos mesmos
termos, vingaria no seio das Nações Unidas, sob a forma de
convenção, celebrada em 30 de agosto de 1961, e hoje rati­ficada
por apenas vinte e seis Estados.
Subseção 2 — A NACIONALIDADE BRASILEIRA
105. Matéria constitucional. O Estado é livre para conferir
disciplina legal à sua nacionalidade. Ele o fará com lógica, le­
vando em conta valores sociais até certo ponto uniformes, e por
isso mesmo abonados pelo direito internacional. Seguindo regra
geral, o Brasil fixa as condições de atribuição, aquisição e perda
da nacionalidade brasileira à luz da doutrina que decidiu adotar,
conservando-se indiferente ao problema concreto da superposi­
ção eventual de ordens jurídicas.
A nacionalidade, no Brasil, é matéria constitucional: em
breve sequência de dispositivos, a lei maior traça as normas
básicas, pouco fazendo cair no domínio da legislação ordinária.
Não temos, como a França, um casuístico e imenso Código da
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Nacionalidade, hábil para facilitar a tarefa de funcionários su­
balternos, mas impeditivo, como observa Paul Lagarde, da fixa­
ção de princípios gerais para “guiar a jurisprudência na solução
das inevitáveis obscuridades ou lacunas do texto”21. Entre nós,
não poderia deixar de ser notável a contribuição importada pela
jurisprudência e pela doutrina ao entendimento do sumário ca­
pítulo com que a carta se dispôs a equacionar a matéria.
106. Brasileiros natos. Qualifica-se como brasileiro nato aque­
le que ao nascer — geralmente no Brasil, mas eventualmente no
exterior — viu-se atribuir a nacionalidade brasileira ou, quando
menos, a perspectiva de consolidá-la mediante opção, de efeitos
retroativos.
A Constituição aponta, em primeiro lugar, como brasileiros
natos os nascidos em território brasileiro, embora de pais estran­
geiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país. Fun­
dado no critério territorial, usualmente valorizado pelas nações
que se formaram à base da imigração, esse primeiro item dita a
principal e a mais larga dentre as vias de atribuição da nacio­na­
lidade.
Um problema vestibular, mais complicado do que se poderia à primeira vista
supor, é o da noção do que seja território brasileiro. Seria prático compreendê-lo
no mais estrito dos sentidos, ou seja, como a massa territorial contínua dividida em
unidades federadas. Desse modo, nascer no Brasil significaria, necessariamente,
ter a naturalidade fixada em uma das quase seis mil circunscrições municipais em
que o solo pátrio se subdivide. De outro modo, ter-se-ia nascido fora do território
brasileiro, o que excluiria o jus soli mas não a perspectiva de atribuição da nacio­
nalidade originária por outra das fórmulas constitucionais. O constituinte nada
disse acerca dos espaços hídricos, aéreos, ou mesmo terrestres, imunes a qualquer
incidência de soberania (o alto mar, o espaço aéreo, o continente antártico). Mas
quem aí vem ao mundo também não pode ser considerado por nós como nascido
no estrangeiro, visto que tais espaços são neutros, e de uso comum disciplinado
21. Paul Lagarde, La nationalité française, Paris, Dalloz, 1975, p. 29.
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pelo direito internacional. Transferido o problema à doutrina, Pontes de Miranda
propôs solução convincente: entendem-se nascidos no Brasil os nascidos a bordo de
navios ou aeronaves de bandeira brasileira quando trafeguem por espaços neutros.
O mesmo não ocorre, obviamente, em espaços afetos à soberania de outro Estado,
mesmo se público o engenho onde acontece o nascimento. Há também a hipótese
de alguém nascer a bordo, no mar territorial brasileiro ou em nosso espaço aéreo,
qualquer que seja a bandeira do navio ou aeronave. Esses espaços nada têm de es­
trangeiros ou de neutros, de modo que justificam a atribuição da nacionalidade jure
soli. Mas é também de Pontes de Miranda a lembrança de que, em tais casos, é
pouco provável que se reclame a nacionalidade brasileira se nenhum outro vínculo
existe entre a família e o Brasil. Se assim não for, não há como recusar a nacionali­
dade brasileira originária, solicitada pelos genitores ou pelo próprio interessado no
futuro. Vale recordar que nosso sistema não impõe preclusões, não impõe perda de
direitos, quanto à nacionalidade, pelo decurso do tempo. Países existem em que a
partir de certa idade (25 anos na França) já não é possível discutir esse tema nem
modificar a nacionalidade originária consolidada. Entre nós, é juridicamente possí­
vel que alguém por aqui apareça já idoso, provando, entretanto, que nasceu em
Viena, ou em Xangai, da união informal entre o cônsul do Brasil e uma nacional da
terra; ou que nasceu a bordo de um engenho norte-americano em trânsito no espaço
aéreo ou no mar territorial brasileiro; ou que nasceu em plena selva, junto da fron­
teira, quando sua mãe, colombiana, alcançava o território brasileiro numa fuga à
polícia, ou à guerrilha, ou ao narcotráfico. Em qualquer dessas hipóteses, provada a
materialidade do fato, o reconhecimento da nacionalidade originária se impõe.
A regra constitucional do jus soli comporta exceção expres­
sa em seu desfecho: não são brasileiros, embora nascidos no
Brasil, os filhos de pais estrangeiros que aqui se encontrem a
serviço de seu país. O serviço, desde que público e afeto a po­
tência estrangeira, não precisa implicar permanência em nosso
território, nem cobertura das imunidades diplomáticas. Enten­
dem-se a serviço de nação estrangeira ambos os componentes
do casal, ainda que apenas um deles detenha cargo, na medida
em que o outro não faça mais que acompanhá-lo.
Há, na exceção ao jus soli, outro aspecto relevante, em torno do qual os au­
tores não discrepam: os pais, estrangeiros, devem estar a serviço do país cuja na­
cionalidade possuem para que inocorra a atribuição da nacionalidade brasileira.
Seria brasileiro, dessa forma, o filho de um egípcio que cuidasse no Brasil da re­
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presentação de Catar ou de Omã. A quem estranhe essa particularidade, convém
lembrar que o constituinte não tencionou abrir exceção ao jus soli senão quando
em presença de uma contundente presunção de que o elemento aqui nascido terá
outra na­cionalidade, merecedora, por razões naturais, de sua preferência, e de que
assim a atribuição da nacionalidade local iria originar quase que seguramente uma
incômoda bipatria, a seu tempo resolvida em favor da nacionalidade estrangeira.
Mas, se o Estado patrial dos genitores não é aquele mesmo a cujo serviço se en­
contram, a presunção perde sua energia, de modo que a recusa da nacionalidade
local jure soli poderia não raro dar origem a uma situação que a todo custo tem de
ser evitada, qual seja a apatria de um natural do Brasil.
São também brasileiros natos, independentemente de toda
formalidade, os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe
brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço do Brasil.
Não importa que o cogenitor seja estrangeiro, e menos ainda
importa, nesta hipótese, sua eventual preeminência no quadro
do serviço público de seu país.
Serviço no Brasil não é apenas o serviço diplomático ordinário, afeto ao Execu­
tivo federal. Compreende todo encargo derivado dos poderes da União, dos estados e
municípios. Compreende, mais, nesses três planos, as autarquias. Constitui serviço do
Brasil, ainda, o serviço de organização internacional de que a república faça parte. No
complexo e diversificado mecanismo das organizações internacionais contemporâ­neas,
nem sempre a indicação do governo do país de origem precon­diciona a investidura
em cargo de relevo. Na falta de qualquer empenho, e mesmo da simpatia do gover­
no de seu Estado patrial, pode alguém ascender, por exemplo, à Secretaria-Geral
das Nações Unidas, ou a uma cátedra na Corte Internacional de Justiça. Isto, no
caso brasileiro, de nenhum modo permitiria que se deixasse de entender a serviço
do Brasil o nacional beneficiado pela escolha, mesmo porque, como integrante da
organização, deve-lhe o país cooperação constante à luz dos dispositivos de sua
carta institucional, onde se disciplinam os métodos de recrutamento do contingen­
te humano.
São, finalmente, brasileiros natos os nascidos no estrangeiro,
de pai brasileiro ou mãe brasileira, desvinculados do serviço pú­
blico, desde que registrados em nosso consulado local, ou,
quando não registrados, desde que venham a residir no território
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nacional e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasi­
leira22.
107. Brasileiros naturalizados. A Constituição do Brasil cuida,
ela própria, de favorecer a naturalização dos imigrantes que se
fixaram no país há mais de quinze anos, sem quebra de conti­
nuidade e sem condenação penal; bem assim a dos originários
de países de língua portuguesa, aos quais se exige como prazo
de residência no Brasil apenas um ano ininterrupto e idoneidade
moral. Dos demais estrangeiros a lei ordinária exige, no mínimo,
quatro anos de residência no Brasil, idoneidade, boa saúde e
domínio do idioma. O requisito cronológico é atenuado em
certas hipóteses, como a de casamento com pessoa local ou
prestação de bons serviços ao país. Como quer que seja, no
domínio da lei ordinária — que rege a situação dos estrangeiros
em geral — a naturalização não é jamais obrigatória, tanto sig­
nificando que, caso a caso, o governo pode recusá-la mesmo
quando preenchidos os requisitos da lei.
O brasileiro naturalizado tem todos os direitos do brasileiro
nato, salvo o acesso a certas funções públicas eminentes que a
Constituição arrola de modo limitativo.
108. Perda da nacionalidade brasileira. A extinção do vínculo
patrial pode atingir tanto o brasileiro nato quanto o naturalizado
em caso de aquisição de outra nacionalidade, por naturalização
voluntária. Nesta hipótese, em face da prova da naturalização
concedida lá fora, o presidente da República se limita a declarar
a perda da nacionalidade brasileira. Seu ato não tem caráter
constitutivo, vale dizer, não é dele que deriva a perda, mas da
22. Art. 12, I, c, da Constituição Federal (redação dada pela Emenda Constitucional
n. 54, de 2007, que restaurou nossa tradição constitucional sobre as condições da naciona­
lidade jure sanguinis, pondo fim à tropelia que resultara da Emenda Constitucional de Re­
visão n. 3, de 1994).
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naturalização, que o antecede, e por força da qual se rompe o
primitivo vínculo, restringindo-se o chefe do governo, a poste­
riori, a dar publicidade ao fato consumado. Para que acarrete a
perda da nossa nacionalidade, a naturalização voluntária, no
exterior, deve necessariamente envolver uma conduta ativa e
específica.
Se, ao contrair matrimônio com um francês, uma brasileira é informada de
que se lhe concede a nacionalidade francesa em razão do matrimônio, a menos
que, dentro de certo prazo, compareça ela ante o juízo competente para, de modo
expresso, recusar o benefício, sua inércia não importa naturalização voluntária.
Não terá havido, de sua parte, conduta específica visando à obtenção de outro
vínculo pátrio, uma vez que o desejo de contrair matrimônio é, por natureza, estra­
nho à questão da nacionalidade. Nem se poderá imputar procedimento ativo a quem
não mais fez que calar. Outra seria a situação se, consumado o matrimônio, a au­
toridade estrangeira oferecesse, nos termos da lei, à nubente brasileira a naciona­
lidade do marido, mediante simples declaração de vontade, de pronto reduzida a
termo. Aqui teríamos autêntica naturalização voluntária, resultante de procedimen­
to específico — visto que o benefício não configurou efeito automático do matri­
mônio —, e de conduta ativa, ainda que consistente no pronunciar de uma palavra
de aquiescência.
O art. 12, § 4º, 2, b, da Constituição de 1988 ressalva a naturalização volun­
tária do brasileiro residente no exterior quando ela constitui, segundo o direito
local, um pressuposto da simples permanência ou do mero exercício de direitos
civis. Não ocorre mais, nessa hipótese, a perda da nacionalidade brasileira.
O brasileiro naturalizado, e ele apenas, encontra-se sujeito
a uma segunda espécie de medida excludente, qual seja o can­
celamento da naturalização, por exercer atividade contrária ao
interesse nacional. É óbvio que a variante implica processo capaz
de comportar amplos meios de defesa.
À margem de todo esse complexo, cabe ao presidente da República anular,
por decreto, a aquisição fraudulenta da qualidade de brasileiro. Não se trata, aqui,
de uma hipótese de perda da nacionalidade: esta se entenderá nula, e, pois, inexis­
tente desde o início. Ninguém pode perder algo que jamais tenha possuído a não
ser em equívoca aparência.
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Subseção 3 — O ESTATUTO DE IGUALDADE
109. Gênese. O estatuto de igualdade entre brasileiros e portu­
gueses, inovação jurídica resultante de tratado bilateral do início
dos anos setenta, substituído por outro no ano 2000, altera pre­
sentemente, entre nós, a clássica noção da nacionalidade como
pressuposto necessário da cidadania. Seu regime torna possível
que, conservando incólume o vínculo de nacionalidade com um
dos dois países, o indivíduo passe a exercer no outro direitos
inerentes à qualidade de cidadão.
A Convenção sobre igualdade de direitos e deveres entre brasileiros e portu­
gueses foi firmada em Brasília, a 7 de setembro de 1971, sob a invocação do “prin­
cípio de igualdade inscrito no art. 199 da Constituição brasileira e no artigo 7º — §
3º, da Constituição portuguesa”. Esteve em vigor entre 22 de abril de 1972 e 5 de
setembro de 2001, data de vigência de um novo compromisso bilateral que havia
sido concluído em Porto Seguro, em 22 de abril de 2000, por ocasião do quinto
centenário do descobrimento. Este último, o Tratado de amizade, cooperação e
consulta entre Brasil e Portugal, ab-roga, entre outros, o tratado de 1971, e disci­
plina novamente o estatuto de igualdade (arts. 12 a 22), preservando suas caracte­
rísticas essenciais, mas reduzindo, em certa medida, o escopo da igualdade.
110. Dois padrões de igualdade. O estatuto prevê dois proce­
dimentos: o relativo à simples igualdade de direitos e obrigações
civis, e um segundo, mais amplo, tendente à obtenção também
dos direitos políticos. A iniciativa de postular o benefício do
estatuto, num e noutro caso, incumbe sempre à pessoa natural
interessada, cabendo ao ministro da Justiça deferir o pedido
através de portaria, cujos efeitos, tal como sucede com a natu­
ralização, são individuais. Quando vise tão só à igualdade de
direitos e obrigações civis, o português fará prova da sua nacio­
nalidade, da sua capacidade civil e da sua admissão no Brasil
em caráter permanente, ainda que recente. Acaso objetivando à
cobertura do estatuto em sua forma plena, o interessado fará
ainda prova do gozo dos direitos políticos em Portugal e da sua
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residência no Brasil pelo prazo mínimo de três anos. Note-se,
pois, que para tal efeito o prazo necessário de residência é su­
perior ao que nossa lei reclama para a naturalização dos próprios
portugueses, limitado pela Constituição a apenas um ano.
Não é certo supor que a situação do português admitido no regime de igual­
dade plena seja idêntica à do brasileiro naturalizado. Ao contrário deste último, não
pode aquele prestar aqui o serviço militar, encontrando-se ademais sujeito à expul­
são, e mesmo à extradição, quando requerida pelo governo de Portugal. Quando
no exterior, e em suas relações com terceiros países, é Portugal, e não o Brasil, que
pode dar-lhe proteção diplomática. Ele pode, todavia, votar e ser votado, bem como
“ingressar no serviço público do mesmo modo que o brasileiro”. Como o estatuto
não se circunscreve no plano dos direitos, abrangendo também o dos deveres, não
há dúvida de que seu titular fica sujeito, como os eleitores brasileiros, à obrigato­
riedade do voto e às sanções correspondentes à omissão. Por isso, percucientemen­
te, o tratado impede o duplo gozo de direitos políticos: obtido este no Estado de
residência, ficará suspenso no Estado de origem. No terreno das funções públicas,
eletivas ou não, tudo quanto se mostra inacessível ao titular do estatuto pleno é o
rol de cargos que a Constituição reserva aos brasileiros natos. Nada o impede, assim,
de ascender a cargos como os de senador, deputado, governador, ou magistrado
— até o nível dos tribunais superiores.
111. Extinção do benefício estatutário. Nada, no estatuto da
igualdade, desperta tamanho interesse científico e, em certa
medida, tamanha inquietude, quanto a sistemática de sua ex­
tinção, caso por caso. Limitando-nos à ótica brasileira, veremos
que a igualdade, tanto restrita à órbita civil quanto abran­gente
dos direitos políticos, quedará extinta pela expulsão do território
nacional ou pela perda da nacionalidade originária. Além disso,
a suspensão dos direitos políticos, em Portugal, acar­retará aqui
para o seu nacional a extinção dos mesmos direitos, transfor­
mando-o, de titular do estatuto pleno, em beneficiário tão só da
igualdade civil.
As duas primeiras fórmulas extintivas, dependentes de decisão da autoridade
local, constituem, para ambos os Estados contratantes, meios razoáveis de defesa
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contra o abuso individual dos favores do estatuto. Já as duas últimas podem gerar
preocupações de parte a parte, e compreensível perplexidade doutrinária. Figuremos
o caso do titular do estatuto pleno que, no país de residência, alcance posição pro­
eminente no serviço público. Estará ele, não obstante, sujeito a decair de ime­diato
do regime estatutário, voltando à categoria comum dos estrangeiros, quando, no
país de origem, lhe seja retirada a nacionalidade ou a cidadania. Do ponto de vista
do Estado de residência ter-se-á aí um ato de governo estrangeiro importando re­
percussão direta na estrutura de seus serviços. O problema pode assumir especial
gravidade quando se avente um possível conflito entre a regra convencional, deter­
minante da extinção do benefício com todos os seus desdobramentos, e as regras
constitucionais pertinentes às garantias e direitos elementares da pessoa humana.
Seção IV — CONDIÇÃO JURÍDICA DO
ESTRANGEIRO
112. Admissão discricionária. Nenhum Estado é obrigado, por
princípio de direito das gentes, a admitir estrangeiros em seu
território, seja em definitivo, seja a título temporário. Não se tem
notícia, entretanto, do uso da prerrogativa teórica de fechar as
portas a estrangeiros, embora a intensidade de sua presença
varie muito de um país a outro: o número de estrangeiros resi­
dentes é maior no Brasil que na Espanha, onde, contudo, são
muito mais numerosos os visitantes de curto prazo; excedendo
de longe, uns e outros, o contingente de estrangeiros que, a
qualquer título, se dirigem ao Nepal ou à Albânia. Entretanto, a
partir do momento em que admite o nacional de outro país no
âmbito espacial de sua soberania, tem o Estado, perante ele,
deveres resultantes do direito internacional costumeiro e escrito,
cujo feitio e dimensão variam segundo a natureza do ingresso.
Subseção 1 — TÍTULOS DE INGRESSO E DIREITOS DO
ESTRANGEIRO
113. Variedade dos vistos. No Brasil, como nos demais países,
são diversos os títulos sob os quais pode ser o estrangeiro admi­
tido. A distinção fundamental é a que deve fazer-se entre o
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chamado imigrante — aquele que se instala no país com ânimo
de permanência definitiva — e o forasteiro temporário: tal o
gênero em que se inscrevem turistas, estudantes, missionários,
pessoas de negócios, desportistas e outros mais. Distingue-se
ainda do visto permanente, que se lança no passaporte dos imi­
grantes, o visto diplomático, concedido a representantes de so­
beranias estrangeiras, cuja presença no território nacional é
também temporária — embora não tão efêmera quanto costuma
ser a daquelas outras classes.
Diversos são os países que, mediante tratado bilateral ou mero exercício de
reciprocidade, dispensam a prévia aposição de um visto — por suas autoridades
consulares no exterior — nos passaportes de cidadãos de nações amigas. O Brasil
não requer visto de entrada para os nacionais da maioria dos países da América
Latina e da Europa ocidental, e assim procede à luz de uma rigorosa política de
reciprocidade. O ingresso de um estrangeiro com passaporte não visado faz presu­
mir que sua presença no país será temporária: jamais a dispensa do visto poderia
interpretar-se como abertura generalizada à imigração.
114. Diversidade dos direitos. A qualquer estrangeiro encon­
trável em seu território — mesmo que na mais fugaz das situa­
ções, na zona de trânsito de um aeroporto — deve o Estado
proporcionar a garantia de certos direitos elementares da pessoa
humana: a vida, a integridade física, a prerrogativa eventual de
peticionar administrativamente ou requerer em juízo, o trata­
mento isonômico em relação a pessoas de idêntico estatuto. É
possível afirmar, à luz de um quadro comparativo, que na maio­
ria dos países a lei costuma reconhecer aos estrangeiros, mesmo
quando temporários, o gozo dos direitos civis — com poucas
exceções, das quais a mais importante costuma ser o exercício
de trabalho remunerado, acessível ao estrangeiro residente. No
que se refere à propriedade de imóveis, ela é em geral facultada,
nos países ocidentais, até mesmo ao estrangeiro que permanece
na origem e adquire esse patrimônio mediante negociação à
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distância. O Brasil submete a requisitos severos — mas não
proíbe — a aquisição, por estrangeiro, de terras na faixa de
fronteiras.
O estrangeiro não tem direitos políticos, mesmo quando
instalado definitivamente no território e entregue à plenitude de
suas potencialidades civis, no trabalho e no comércio. Este prin­
cípio — só excepcionado por convenções especiais como o es­
tatuto da igualdade — significa que ele não pode votar ou ser
votado, nem habilitar-se a uma carreira estatutária no serviço
público (desde 1998, entretanto, por força de emenda que alterou
o art. 37-I da Constituição, certas funções públicas podem ser,
na forma da lei, exercidas por estrangeiros). No Brasil, valeria
acrescentar que a falta de direitos políticos torna o estrangeiro
inidôneo para propor a ação popular, uma forma de exercício
da cidadania destinada à proteção do patrimônio público.
Mediante tratados, países diversos já se entenderam no sentido de que os
nacionais de cada um deles tenham no território do outro um estatuto privilegiado
em relação aos demais estrangeiros. Tal é o caso do estatuto de igualdade entre
brasileiros e portugueses — versado na seção anterior —, por força do qual um
português, preservando incólume sua nacionalidade, e continuando, pois, a ser, sob
nossa ótica, um estrangeiro, pode ter no Brasil direitos civis e políticos, com a só
ressalva dos cargos que a Constituição reserva aos nacionais natos. No âmbito da
União Europeia, por força de convenções coletivas que dão sequência aos tratados
de Roma, dos anos cinquenta, os nacionais de cada Estado comunitário já gozam,
no território dos restantes, de direitos civis irrestritos, e de alguma possibilidade de
acesso à função pública.
Subseção 2 — EXCLUSÃO DO ESTRANGEIRO POR
INICIATIVA LOCAL
115. Deportação. De início, a deportação não deve ser confun­
dida com o impedimento à entrada de estrangeiro, que ocorre
quando lhe falta justo título para ingressar no Brasil (um passa­
porte visado, lá fora, por nosso cônsul, ou, dependendo do país
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patrial, um simples passaporte válido). No caso de impedimen­
to, o estrangeiro não ultrapassa a barreira policial da fronteira,
porto ou aeroporto: é mandado de volta, sempre que possível a
expensas da empresa que para aqui o transportou sem certificar-se da prestabilidade de sua documentação.
A deportação é uma forma de exclusão, do território na­
cional, daquele estrangeiro que aqui se encontre após uma
entrada irregular — geralmente clandestina —, ou cuja estada
tenha-se tornado irregular — quase sempre por excesso de
prazo, ou por exercício de trabalho remunerado, no caso do
turista. Cuida-se de exclusão por iniciativa das autoridades
locais, sem envolvi­mento da cúpula do governo: no Brasil,
policiais federais têm competência para promover a deportação
de estrangeiros, quando entendam que não é o caso de regula­
rizar sua documentação. A medida não é exatamente punitiva,
nem deixa sequelas. O deportado pode retornar ao país desde
o momento em que se tenha provido de documentação regular
para o ingresso.
116. Expulsão. Aqui também se cuida de exclusão do estran­
geiro por iniciativa das autoridades locais, e sem destino deter­
minado — embora só o Estado patrial do expulso tenha o dever
de recebê-lo quando indesejado alhures. Seus pressupostos são
mais graves, e sua consequência é a impossibilidade — em
princípio — do retorno do expulso ao país. É passível de expul­
são, no Brasil, o estrangeiro que sofra condenação criminal de
varia­da ordem, “ou cujo procedimento o torne nocivo à conve­
niência e aos interesses nacionais”23. A expulsão pressupõe um
23. Art. 65 da Lei n. 6.815/80, tal como alterada pela Lei n. 6.964/81. Esse texto defi­
ne a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, e é nele que se encontra o regime legal da
deportação, da expulsão e da extradição. Seu art. 75 proíbe a expulsão do estrangeiro casado
com súdito brasileiro há mais de cinco anos, ou que tenha filho brasileiro sob sua guarda e
dependência. Esse fator de ordem familiar não influi na deportação, e tampouco na extradição.
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inquérito que tem curso no âmbito do Ministério da Justiça, e
ao longo do qual se assegura ao estrangeiro o direito de defesa.
Ao ministro incumbe decidir, afinal, sobre a expulsão, e mate­
rializá-la por meio de portaria. Só a edição de uma portaria
futura, revogando a primeira, faculta ao expulso o retorno ao
Brasil.
Embora concebida para aplicar-se em circunstâncias mais
ásperas, e mediante um ritual mais apurado, a expulsão se asse­
melha à deportação na ampla faixa discricionária que os dois
institutos concedem ao governo — isto sendo certo em toda
parte, não apenas no Brasil. Tanto significa que, embora não se
possa deportar ou expulsar um estrangeiro que não tenha incor­
rido nos motivos legais de uma e outra medida, é sempre possí­
vel deixar de fazer a deportação, ou a expulsão, mesmo em
pre­sença de tais motivos. A lei nunca obriga o governo a depor­
tar ou expulsar. Permite-lhe que o faça à luz das circunstâncias,
que podem variar segundo o momento político. Certo, ainda, é
que os pressupostos da expulsão fazem crescer, dada sua plasti­
cidade, o poder discricionário do governo. O Judiciário brasi­
leiro, enfrentando um mandado de segurança ou um habeas
corpus, não entra no mérito do juízo governamental de periculosi­
dade do estrangeiro sujeito à expulsão: propende a conferir,
apenas, a certeza dos fatos que tenham justificado a medida, para
não permitir que por puro arbítrio, e à margem dos termos já
bastante largos da lei, um estrangeiro seja expulso do território
nacional.
Subseção 3 — A EXTRADIÇÃO
117. Conceito e fundamento jurídico. Extradição é a entrega,
por um Estado a outro, e a pedido deste, de pessoa que em seu
território deva responder a processo penal ou cumprir pena.
Cuida-se de uma relação executiva, com envolvimento judi­
ciário de ambos os lados: o governo requerente da extradição
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só toma essa iniciativa em razão da existência do processo
penal — findo ou em curso — ante sua Justiça; e o governo do
Estado requerido (ou Estado “de asilo”, na linguagem imprópria
de alguns autores de expressão inglesa) não goza, em geral, de
uma prerrogativa de decidir sobre o atendimento do pedido
senão depois de um pronunciamento da Justiça local. A extra­
dição pressupõe sempre um processo penal: ela não serve para
a recuperação forçada do devedor relapso ou do chefe de fa­
mília que emigra para desertar dos seus deveres de sustento da
prole.
O fundamento jurídico de todo pedido de extradição há de
ser um tratado entre os dois países envolvidos, no qual se esta­
beleça que, em presença de determinados pressupostos, dar-se-á
a entrega da pessoa reclamada24. Na falta de tratado, o pedido
de extradição só fará sentido se o Estado de refúgio do indivíduo
for receptivo — à luz de sua própria legislação — a uma pro­
messa de reciprocidade. Neste caso, os pressupostos da extra­
dição hão de encontrar-se alistados na lei doméstica, a cujo
texto recorrerá o Judiciário local para avaliar a legalidade e a
proce­dência do pedido. Assim, não havendo tratado, a recipro­
cidade opera como base jurídica da extradição quando um Es­
tado submete a outro um pedido extradicional a ser examinado
à luz do direito interno deste último, prometendo acolher, no
24. Bilaterais e específicos, vigem atualmente tratados de extradição entre o Brasil e
a Austrália (1996 — ano de entrada em vigor), a Bélgica (1957), o Canadá (1995), a Colôm­
bia (1940), a Coreia (1996), o Equador (1938), a Espanha (1990), os Estados Unidos da
América (1964), a França (1996), a Itália (1993), o México (1938), o Peru (1922, 1999),
Portugal (1994), o Reino Unido (1997), a República Dominicana (2008), a Romênia (2008),
a Rússia (2007), a Suíça (1934), a Ucrânia (2006), o Uruguai (1919) e a Venezuela (1940).
No plano coletivo, o Brasil está vinculado por tratado de 2005 aos seus parceiros e associa­
dos no Mercosul: Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile. O Congresso examina
neste momento os tratados negociados com Angola, Guatemala, Líbano, Moçambique,
Panamá e Suriname. Há negociações em curso com a África do Sul, a Alemanha, a China,
a Índia e o Japão.
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futuro, pedidos que transitem em sentido inverso, e processá-los
na conformidade de seu próprio direito interno.
118. A extradição no Brasil: reciprocidade e poderes constitucionais do Congresso. Corretamente entendida, e a exemplo
de qualquer promessa, a de reciprocidade em matéria extradi­cional
tanto pode ser acolhida quanto rejeitada, sem fundamentação, pelo
governo brasileiro. Sua aceitação não significa um compromisso
internacional sujeito ao referendo do Congresso. O governo pode,
mesmo, declinar de promessa feita, em caso concreto, por país
cujas solicitações anteriores tenham tido melhor êxito. Examinan­
do a regra constitucional que subordina à aprovação do poder
Legislativo os tratados e atos internacionais celebrados pelo pre­
sidente da República, manifestava-se, na qualidade de relator da
Extradição 272-4, o ministro Victor Nunes Leal:
“O melhor entendimento da Constituição é que ela se refere aos atos interna­
cionais de que resultem obrigações para o nosso país. Quando muito, portanto,
caberia discutir a exigência da aprovação parlamentar para o compromisso de re­
ciprocidade que fosse apresentado pelo governo brasileiro em seus pedidos de
extradição. Mas a simples aceitação da promessa de Estado estrangeiro não envol­
ve obrigação para nós. Nenhum outro Estado, à falta de norma convencional, ou de
promessa feita pelo Brasil (que não é o caso), poderia pretender um direito à ex­
tradição, exigível do nosso país, pois não há normas de direito internacional sobre
extradição obrigatória para todos os Estados” (caso Stangl, RTJ 43/193).
119. Discrição governamental e obrigação convencional.
Fundada em promessa de reciprocidade, a demanda extradicio­
nal abre ao governo brasileiro a perspectiva de uma recusa su­
mária, cuja oportunidade será mais tarde examinada. Apoiada,
porém, que se encontre em tratado, o pedido não comporta se­
melhante recusa. Há, neste passo, um compromisso que ao go­
verno brasileiro incumbe honrar, sob pena de ver colocada em
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causa sua responsabilidade internacional. É claro, não obstante,
que o compromisso tão somente priva o governo de qualquer
arbítrio, determinando-lhe que submeta ao Supremo Tribunal
Federal a demanda, e obrigando-o a efetivar a extradição pela
corte entendida legítima, desde que o Estado requerente se pron­
tifique, por seu turno, ao atendimento dos requisitos da entrega
do extraditando25. Nenhum vínculo convencional prévio impe­
diria, assim, que a extradição se frustrasse quer pelo juízo inde­
feritório do Supremo, quer pela inflexibilidade do governo à
hora da efetivação da entrega autorizada, quando o Estado re­
querente sonegasse o compromisso de comutar a pena corporal
ou de promover a detração, entre outros.
120. Submissão ao exame judiciário. Excluída a hipótese de
que o governo, livre de obrigações convencionais, decida pela
recusa sumária, impõe-se-lhe a submissão do pedido ao crivo
judiciário. Este se justifica, na doutrina internacional, pela ele­
mentar circunstância de se encontrar em causa a liberdade do
ser humano. Nossa lei fundamental, que cobre de garantias tan­
to os nacionais quanto os estrangeiros residentes no país, defere
ao Supremo o exame da legalidade da demanda extradicional26,
a se operar à luz da lei interna e do tratado acaso existente.
Percebe-se que a fase judiciária do procedimento está situada
entre duas fases governamentais, inerente a primeira à recepção
e ao encaminhamento do pedido, e a segunda à efetivação da
medida, ou, indeferida esta, à simples comunicação do fato ao
Estado interessado. Vale perguntar se a faculdade da recusa,
quando presente, deve ser exercitada pelo governo antes ou
depois do pronunciamento do tribunal. A propósito, veja-se que
25. Art. 91 da Lei n. 6.815/80.
26. O STF tem reconhecido sua competência originária para o conhecimento de ha­
beas corpus, e mesmo de mandados de segurança, impetrados em favor de extraditandos (v.
HC 80.923-SC, 2001, e Reclamação 2.069-DF, 2002).
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o processo da extradição no Supremo Tribunal reclama, ao lon­
go de seu curso, o encarceramento do extraditando, e nesse
particular não admite exceções. Talvez fosse isso o bastante para
que, cogitando do indeferimento, o poder Executivo não fizesse
esperar sua palavra final. Existe, além do mais, uma impressão
generalizada, e a todos os títulos defensável, de que a transmis­
são do pedido ao tribunal traduz aquiescência da parte do go­
verno. O Estado requerente, sobretudo, tende a ver nesse ato a
aceitação de sua garantia de reciprocidade, passando a crer que
a partir de então somente o juízo negativo da corte sobre a lega­
lidade da demanda lhe poderá vir a frustrar o intento. Nasceu,
como era de esperar que nascesse, por força de tais fatores, no
Supremo Tribunal Federal, o costume de se manifestar sobre o
pedido extradicional em termos definitivos. Julgando-a legal e
procedente, o tribunal defere a extradição. Não se limita, assim,
a declará-la viável, qual se entendesse que depois de seu pro­
nunciamento o regime jurídico do instituto autoriza ao governo
uma decisão discricionária.
121. Controle jurisdicional. Recebendo do governo o pedido
de extradição e peças anexas, o presidente do Supremo o faz
autuar e distribuir, e o ministro relator determina a prisão do
extraditando. Tem início um processo cujo caráter contencioso
parece discutível quando se considera que o Estado requerente
não é parte, e que o Ministério Público atua em estrita fiscali­
zação da lei27. Ao primeiro, apesar disso, tem o Tribunal conce­
dido a prerrogativa de se fazer representar por advogado. Ficou
claro, no julgamento do caso Beddas28, que essa admissão cons­
27. Não pode, entre nós, o extraditando, como no sistema francês, renunciar ao bene­
fício da lei, externando a vontade de ser colocado à disposição do Estado que o reclama
independentemente do pronunciamento judiciário (caso Sardon, Extr. 314, RTJ 64/22; caso
Joy, HC 52.251, Tribunal Pleno em 22 de maio de 1974).
28. Extr. 270, RTJ 45/636.
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titui ato de cortesia, paralelamente inspirado no interesse da
própria corte em, provida de maiores subsídios, melhor se habi­
litar à aplicação do direito à espécie. A Procuradoria-Geral da
República, por seu turno, nem se encontra legalmente vinculada
ao interesse do Estado postulante, nem procede, na prática, como
se devesse resguardá-lo à revelia de suas convicções. Isento da
condição de parte, o Estado requerente se sujeita, não obstante,
a efeitos análogos aos da sucumbência quando indeferido o
pedido, quer por ilegalidade, quer por defeito de forma não
corrigido em tempo hábil, visto que não poderá renová-lo.
A defesa do extraditando não pode explorar o mérito da
acusação: ela será impertinente em tudo quanto não diga respei­
to à sua identidade, à instrução do pedido ou à ilegalidade da
extra­dição à luz da lei específica. Rara é a afirmação de que o
indivíduo preso ao dispor da corte e o indivíduo reclamado não
são a mesma pessoa29. Constantes, por outro lado, são as críticas
à correção formal do pedido ou à sua legalidade.
Em caso de insuficiência documental, prevê a lei que o julgamento seja con­
vertido em diligência, concedendo-se ao Estado requerente o prazo de sessenta
dias30 (contados da notificação de sua embaixada pelo Itamaraty), para completar
o acervo. Esgotado o prazo, o pedido voltará a julgamento, cumprida ou não a di­
ligência.
122. Legalidade da extradição. O exame judiciário da extra­
dição é o apurar da presença de seus pressupostos, arrolados na
lei interna e no tratado acaso aplicável. Os da lei brasileira coin­
cidem, em linhas gerais, com os da maioria das restantes leis
domésticas e dos textos convencionais contemporâneos. Um
desses pressupostos diz respeito à condição pessoal do extradi­
29. Caso Borsani, Extr. 310; caso Valiente, Extr. 330.
30. Art. 85, § 2º, da Lei n. 6.815/80.
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tando, vários deles ao fato que se lhe atribui, e alguns outros,
finalmente, ao processo que contra ele tem ou teve curso no
Estado requerente.
O pressuposto atinente à pessoa do extraditando tem a ver
com sua nacionalidade: o Brasil é um dos países majoritários
que somente extraditam estrangeiros. Essa regra, absoluta até
1988, comporta agora exceções. A nova Constituição autoriza a
extradição do brasileiro naturalizado, por crime anterior à natu­
ralização ou por tráfico de drogas — neste segundo caso, inde­
pendentemente da cronologia.
A Grã-Bretanha é um daqueles países que admitem, de modo geral, a extra­
dição de seus próprios nacionais, e isto tem a ver com a impossibilidade, na maio­
ria dos casos, de se julgar lá mesmo o cidadão britânico que tenha cometido crime
no exterior. O Brasil se habilita, nos termos do art. 7º do Código Penal, a julgar
crimes praticados por brasileiro no exterior. Assim, a recusa da extradição não
importa impunidade: o acervo documental relativo ao crime permitirá que se ins­
taure entre nós o processo.
O fato determinante da extradição será necessariamente um
crime, de direito comum, de certa gravidade, sujeito à jurisdição
do Estado requerente, estranho à jurisdição brasileira, e de pu­
nibilidade não extinta pelo decurso do tempo. Intriga que se
tenha exigido a incriminação do fato tanto pela lei local quanto
pela do Estado postulante, por parecer óbvio, à primeira vista,
que sem a última o pedido não teria sido formulado. A regra
serve, contudo, para deixar claro que a extradição pressupõe
processo penal, não se prestando a forçar a migração do acusa­
do em processo administrativo, do contribuinte relapso, ou do
alimentante omisso, entre outros.
a) O fato, narrado em todas as suas circunstâncias, deve ser considerado
crime por ambas as leis em confronto. Pouco importam as variações terminológicas,
e irreleva, até mesmo, a eventualidade de que no Estado requerente o classifiquem
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na categoria intermediária dos delitos. José Frederico Marques ensinou que a dupla
incriminação, na sistemática de nosso direito penal interno, refere-se não apenas à
tipicidade, mas também ao jus puniendi. O tribunal denegaria, por exemplo, a ex­
tradição do menor de dezoito anos reclamado, por homicídio, pela Argentina ou
pelos Estados Unidos da América. Os três sistemas penais igualmente tipificam o
fato de “matar alguém”. Instruída, porém, pela minuciosa narrativa que a lei lhe
manda submeter, saberá a corte que aquele ato concreto carece, entre nós, do re­
quisito da punibilidade.
b) A extradição pressupõe crime comum, não se prestando à entrega forçada
do delinquente político. Ao tribunal incumbe, à luz do critério da preponderância,
qualificar os casos fronteiriços, e isso dá ensejo, eventualmente, à divisão de vozes.
Assim, a extradição de Eduardo Firmenich à Argentina, em 1984, foi concedida
por maioria, depois de cerrado debate (Extr. 417, RTJ 111/13).
LEITURA
Voto vencido do autor no Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Extra­
dição 417 (caso de Eduardo Firmenich), em 20 de junho de 1984:
“[...] O Governo argentino cumpre exemplarmente seu dever de pedir a
extradição, porque nenhum Estado admite, em princípio, a existência de delitos
políticos na sua própria ordem jurídico-penal. A identificação do delito políti­
co só se faz de fora para dentro, só se faz à luz dos olhos do observador neutro.
Se o Governo argentino cumpre o dever de reclamar a entrega de alguém que
se encontra sob acusação perante seus tribunais, é nosso, e exclusivamente
nosso, o dever de perquirir a natureza política desses delitos.
O que mais me impressiona neste feito é a tese da responsabilidade penal
do extraditando não por atos concretos de coautoria, mas tão só em face do
comando da organização clandestina. Tese que, se admitida fosse, levar-nos-ia
a afirmar a responsabilidade penal dos chefes de Estado, por conta de tudo
quanto haja ocorrido de delituoso no complexo governamental das respectivas
nações. A diferença entre um e outro caso se resumiria no fato de que chefes
e ex-chefes de Estado não dão entrevista de coração aberto à revista Status
revelando, com grande desembaraço — e com algum exagero talvez —, as
façanhas de seus prepostos mais exaltados.
Considero ainda a situação política reinante na Argentina à época dos
fatos, à qual o movimento Montonero se contrapôs, na avaliação da gravidade
destes delitos capitulados na lei penal comum, que pretendem revestir nature­
za política para justificar o asilo e a não extradição. Há que atentar àquele
quadro político e institucional que o movimento rebelde, ou resistente, ou
subversivo, se dispôs a enfrentar. O que sucedeu na Argentina nos últimos anos
não precisa ser lembrado nesta oportunidade. Para só falar no presente, evoco
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a repetida descoberta de cemitérios clandestinos, ou o constante clamor por
pessoas desaparecidas que não aparecerão mais. O nível de violência que se
pode admitir por parte do insurreto político, sem que ele degenere em crimi­
noso comum, mede-se exatamente pelo grau de arbitrariedade e de violência
do regime contra o qual ele se insurge. Não posso, assim, ponderar a violência
do movimento Montonero com mesma severidade que assumiria, por exemplo,
ante terroristas bascos que se voltam hoje contra a unidade e a estabilidade
política do Estado democrático espanhol.
Por último, e manifestando meu respeito pelo governo da Argentina —
cuja iniciativa é legítima, e que se houve com distinção até na escolha do seu
ilustre patrono —, não posso perder de vista que, neste caso, é duvidoso que a
extradição vise tão só ao exercício da justiça penal no seu aspecto ordinário.
A boa-fé do governo requerente não obscurece o fato, mais ou menos notório,
de que o processo penal contra antigos líderes montoneros pretende neutralizar
certo incômodo político que se produz em setores outros do próprio quadro
político argentino, e que estimam tendencioso o intento punitivo do regime
hoje ali estabelecido. Acompanho o voto do ministro relator, indeferindo o
pedido de extradição”.
O Tribunal dividiu-se, concedendo a extradição por maioria, cujo enten­
dimento foi resumido na ementa: “Prevalência dos crimes comuns sobre o
político, aplicando-se os §§ 1º a 3º do artigo 77 da Lei 6.815/80, de exclusiva
apreciação da Corte: fatos que caracterizam, em princípio, terrorismo, sabo­
tagem, sequestro de pessoas, propaganda de guerra e processos violentos de
subversão da ordem”.
c) Um mínimo de gravidade deve marcar o fato imputado ao extraditando, e
isto se apura à base única da lei brasileira. Frustra-se a extradição quando nossa lei
penal não lhe imponha pena privativa de liberdade, ou quando esta comporte um
máximo abstrato igual ou inferior a um ano.
d) O fato delituoso determinante do pedido deve estar sujeito à jurisdição
penal do Estado requerente, que pode, acaso, sofrer a concorrência de outra juris­
dição, desde que não a brasileira. Nesta última hipótese o acervo informativo serve
para instruir o processo que aqui deveria ter curso no foro criminal. Faz alguns
anos, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal vem abrandando o rigor da regra,
e preferindo conceder a extradição — notadamente a de traficantes de drogas —
quando não se tenha ainda instaurado no Brasil algum processo pelos mesmos fatos,
ainda que lhes pareça aplicável, em princípio, nossa lei penal.
e) Pressuposto final, dentre os relativos ao fato imputado ao extraditando, é
que ele não tenha sua punibilidade extinta pelo decurso do tempo, quer segundo a
lei do Estado requerente, quer conforme a lei brasileira. Havendo pedido vista dos
autos da Extradição 267 (caso Bogev, RTJ 50/145), teve o ministro Thompson
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Flores ocasião de ponderar que a prescrição deve ser perquirida, separadamente, à
luz de uma ou de outra das leis em confronto, concluindo:
“Viável não se torna formar um terceiro sistema, conjugando as duas leis que,
em regra, obedecem a princípios diferentes, para adotar um híbrido e com ele sol­
ver a tese da prescrição”.
Os últimos pressupostos da extradição têm a ver com o
processo penal que, na origem, tem, ou teve curso contra o ex­
traditando. Neste segundo caso, uma sentença final de privação
de liberdade é reclamada pela lei. Por sentença final não se en­
tenda, necessariamente, sentença transitada em julgado. Diver­
sos são, com efeito, os sistemas nos quais a indisponi­bilidade
do con­denado impede que a decisão judiciária se torne irrecor­
rível. É o que sucede em Portugal, país que com maior frequên­
cia nos tem requerido extradições do tipo chamado executório,
ou seja, daquelas fundadas em processo penal findo. Em sua
maioria, as extradições deferidas pelo Brasil se enquadram no
modelo instrutório, caso em que a lei exige estar a prisão do
extraditando autorizada por juiz, tribunal ou autoridade compe­
tente do Estado requerente. O Supremo Tribunal tem jurispru­
dência pacífica no sentido de que tal ordem se deve apoiar em
fatos do gênero daqueles que, no sistema processual pátrio,
motivariam o decreto de prisão preventiva. A lógica parece im­
por, de qualquer modo, a conclusão de que não teria havido
demanda extra­dicional se não fosse a evasão do imputado ao
foro proces­sante, razão suficiente para a determinação da cap­
tura e da custódia.
Impede a extradição a perspectiva de que, no Estado postu­
lante, o extraditando se deva sujeitar a tribunal ou juízo de ex­
ceção. Nenhuma incumbência poderia ser, para o Supremo, mais
áspera que o pronunciamento sobre a matéria. Já não se trata
aqui de enfocar um crime, nele vendo caráter político ou comum.
Trata-se, antes, de submeter a juízo a autoridade judiciária que
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um Estado investiu no poder decisório, havendo-a, conforme o
caso, por regular ou por excepcional.
Com diversos votos vencidos, e contrariando o parecer da Procuradoria-Geral
da República, o Supremo concedeu à Itália, em 1977, a extradição de Ovidio Le­
febvre d’Ovidio, advogado romano envolvido numa operação de suborno de mi­
nistros e oficiais da aeronáutica italiana, que deveria ser julgado pela Corte Cons­
titucional — órgão estranho aos quadros do Judiciário, de composição ad hoc,
ditada pela proporcionalidade dos partidos no parlamento. O Ministério Público e
a corrente minoritária no Supremo entenderam que um tribunal político pode não
ser excepcional quando se destina — como no impeachment — a julgar dignitários
políticos, por delitos de responsabilidade, aplicando penalidades também políticas,
qual a perda do cargo e a inabilitação temporária para o exercício de funções pú­
blicas. Mas um tribunal político é seguramente um tribunal de exceção quando se
cuida de julgar um cidadão comum, por crime previsto em lei penal comum, e de
aplicar penas ordinárias, como o encarceramento. Os votos majoritários preferi­riam
entender que a Corte Constitucional italiana, apesar de seu perfil político, não
configurava, à vista das peculiaridades de seu funcionamento, um juízo de exceção
(Extr. 347, RTJ 86/1).
123. Efetivação da entrega do extraditando. Negada a extra­
dição pela corte, o extraditando é libertado e o Executivo co­
munica esse desfecho ao Estado requerente. Deferida, incum­
be-lhe efetivá-la, não antes de exigir a assunção de certos
compromissos.
O Estado requerente deve nesse momento — se não o houver feito antes
— prometer ao governo local (a) que não punirá o extraditando por fatos anterio­
res ao pedido, e dele não constantes: tal a consequência do velho princípio da
especialidade da extradição; (b) que descontará, na pena, o período de prisão no
Brasil por conta da medida: tal a operação que leva o nome de detração; (c) que
transformará em pena privativa de liberdade uma eventual pena de morte; (d) que
não entregará o extraditando a outro Estado que o reclame sem prévia autorização
do Brasil; e finalmente (e) que não levará em conta a motivação política do crime
para agravar a pena. A retórica deste último requisito contrasta com a utilidade
operacional dos demais.
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Formalizado o múltiplo compromisso e, se for o caso, su­
perado algum débito do extraditando perante a Justiça bra­
sileira — que o presidente da República, querendo, pode rele­
var —, o governo, pela voz do Itamaraty, coloca-o à disposição
do Estado requerente, que dispõe de um prazo inflexível de
sessenta dias, salvo disposição diversa em tratado bilateral, para
retirá-lo, por sua conta, do território nacional, sem o que será
solto, não se podendo renovar o processo.
Subseção 4 — VARIANTES ILEGAIS DA EXTRADIÇÃO
124. Dilemas da Justiça. Em 1569 o Dr. John Story, que tive­
ra o privilégio de ser o primeiro professor de direito civil em
Oxford, foi sequestrado por agentes britânicos em Antuérpia,
então sob a soberania espanhola, e conduzido à Inglaterra para
se ver processar por alta traição. A despeito dos protestos do
acusado e do embaixador espanhol em Londres, Story resultou
condenado e executado. Holdsworth descreveria mais tarde sua
captura como “uma grosseira afronta aos direitos do rei da Es­
panha”31. Embora notável em razão da personalidade envolvida,
não foi esse o primeiro, nem por certo seria o último caso de
abdução internacional. Três eventos mais recentes, em particular,
motivaram ampla discussão no mundo jurídico e noutras áreas:
a detenção de Adolf Eichmann na Argentina, em 1960, a de
Antoine Argoud na Alemanha federal, em 1963, e a de Humber­
to Alvarez-Machain no México, em 1990. As cortes de Israel,
da França e dos Estados Unidos, respectivamente, reen­fren­taram
na época o secular questionamento do direito de exercer juris­
dição sobre pessoas cuja presença no banco dos réus fosse o
resultado de uma notória via de fato. E nos três casos esse direi­
to foi reafirmado.
31. Cf. Paul O’Higgins, Unlawful seizure and irregular extradition; BYIL (1960), v.
36, p. 281-282.
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Antigo coronel dos quadros SS, encarregado da “liquidação definitiva da
questão judia”, Adolf Eichmann habitava um subúrbio de Buenos Aires quando,
em maio de 1960, se viu conduzido a Israel sem o conhecimento do governo ar­
gentino. Pronunciamentos notórios do primeiro-ministro Ben Gurion exaltaram o
feito dos serviços secretos israelenses, embora a reação argentina tenha motivado,
logo depois, a versão de que o sequestro fora executado por particulares, agindo
por iniciativa própria. Provocado pela Argentina, o Conselho de Segurança das
Nações Unidas adotou uma resolução que dizia que atos de tal natureza, afrontan­
do a soberania territorial de um Estado-membro, podiam ameaçar a paz e a segu­
rança internacionais. A resolução pedia ainda ao governo israelense que oferecesse
à Argentina uma “reparação adequada”. Esta, no entender dos Estados Unidos e da
Grã-Bretanha, já se materializara nas desculpas apresentadas por Israel. O governo
de Buenos Aires, porém, insistia em que a única reparação adequada seria a pro­
moção do retorno de Eichmann ao país de asilo, sem prejuízo da ulterior tramitação
de um pedido extradicional regular. Essa posição foi repentinamente alterada, al­
gumas semanas depois, durante a visita a Buenos Aires do jurista israelense Shab­
tai Rosenne, havendo os dois países posto termo ao conflito com a expedição de
um comunicado conjunto.
Membro da Organização do Exército Secreto, e acusado de crimes contra a
segurança do Estado, o coronel Antoine Argoud desapareceu misteriosamente de
Munique, onde buscara asilo, e na noite de 25 de fevereiro de 1963 reapareceu,
envolto em cordas e mordaças, no interior de um veículo estacionado no centro de
Paris. Processado ante a Corte de Segurança, Argoud pretendeu, sem sucesso, opor
obstáculo ao exercício da jurisdição francesa, em face da via de fato empregada em
sua captura. A argumentação da Corte seria severamente criticada por Claude
Lombois32.
Médico mexicano envolvido no tráfico de drogas e acusado do assassinato de
um agente da Drug Enforcement Administration, Humberto Alvarez-Machain foi
capturado no seu consultório em Guadalajara, em 2 de abril de 1990, e levado aos
Estados Unidos mediante ação que se apurou haver sido organizada pela própria
polícia federal norte-americana. O México protestou de imediato contra a afronta
a sua soberania territorial, sendo acompanhado, em sua indignação, por grande
número de governos, não apenas do continente. Em plano distinto daquele do di­
reito das gentes, a Justiça americana enfrentava o problema de saber se a captura
irregular produz efeitos sobre o processo penal. Em acórdão de 15 de junho de
1992, reformando decisões das instâncias inferiores, a Corte Suprema dos Estados
Unidos estatuiu que a irregularidade da captura do réu (vale dizer, a quebra, por
agentes do Estado norte-americano, de uma regra elementar de direito internacional
32. Droit pénal international, Paris, Dalloz, 1971, p. 474-476.
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público) não podia operar como argumento de defesa, e que o processo, desse modo,
devia prosseguir.
A razão para essa espécie de atitude judiciária — há muito
tempo reinante na Grã-Bretanha33 e nos Estados Unidos34 — está
não só na ausência generalizada de regras processuais permitin­
do às cortes que se abstenham de exercer jurisdição. Outra ca­
rência a ser posta em relevo é a de um argumento moral em favor
da liberação do réu regularmente acusado de infrações penais,
por conta da via irregular que se haja adotado em sua captura.
Juízes e tribunais em toda parte se defrontam correntemente com
casos em que uma detenção sem apoio legal — resul­tante, nas
mais das vezes, de ação policial prematura — acabou por ganhar
legitimidade desde quando endossada pelo magistrado compe­
tente. Nesses casos, ainda que os executores da captura devam
responder criminalmente pelo gesto arbitrário, o próprio réu não
teria como tirar proveito das circunstâncias nas quais foi detido.
Entretanto, na abdução internacional, nenhuma dúvida existe quanto ao di­
reito, para o Estado cuja soberania foi ultrajada, de exigir o retorno do acusado,
desde que a captura ilegal seja obra de agentes do Estado estrangeiro interessado
no processo. Diverso o contexto, e a admitir-se que existam “esses cidadãos mo­
destos e devotados à legalidade que se lançam, com perigo de vida e sem recom­
pensa, a buscar no exterior aqueles que escaparam insolentemente da justiça de
seus países”35, tudo quanto se permite ao Estado ofendido é que reclame, oportu­
namente, a extradição dos autores do sequestro36. Por outro lado, ainda que a res­
33. Caso Susanna Scott, 1829; caso Parisot, 1890.
34. Caso Kerr, 1866; caso Sobell, 1956.
35. A ironia é de Claude Lombois (Droit pénal international, cit., p. 474).
36. Em 1906, certo Martínez, réu foragido da Justiça norte-americana, “foi conduzido
à força, do México aos Estados Unidos, por outro cidadão mexicano. Este último acabou
sendo extraditado pelos Estados Unidos e julgado no México pelo sequestro, recusando o
governo americano, porém, a soltura do próprio Martínez”. (Cf. M. H. Cardozo, When ex­
tradition fails, is abduction the solution?, Londres, Sweet & Maxwell, 1965, p. 473.) Casos
similares são referidos por Paul O’Higgins (Unlawful seizure and irregular extradition; BYIL
(1960), v. 36, p. 291).
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ponsabilidade do Estado captor se mostre clara, pode o Estado ofendido abrir mão
do direito à exigência do retorno, qual sucedeu no caso de Adolf Eichmann.
O governo paraguaio acolheu as ponderações da chancelaria do Brasil e se
absteve de protestar formalmente quando agentes da polícia do Rio de Janeiro, agin­
do sem o conhecimento de qualquer autoridade federal, prenderam no Paraguai três
brasileiros acusados de múltiplos crimes de extorsão mediante sequestro, em 12 de
julho de 1990. Seis policiais cariocas, levando consigo três repórteres da Rede Globo
(!), chegaram ao Paraguai num avião fretado e tiveram êxito em prender Nilo Roma­
no, Alberto Borges e Aloísio Galvão. Descobertos no empreendimento clandestino
pelas autoridades paraguaias, não teriam podido retornar ao Brasil, no dia seguinte,
não fosse o entendimento entre os dois governos nacionais. Não consta que os advo­
gados de defesa da quadrilha ante a Justiça fluminense tenham pretendido a extinção
do processo sob o argumento da irregularidade da captura. De resto, nesse caso con­
creto a atitude cooperativa do governo paraguaio serviu para redimir a violação da
norma de direito internacional — de que aquele país fora a única vítima.
125. Indiferença do direito internacional. O estudo histórico
da abdução internacional leva a concluir que o direito das gentes
limitou sua cobertura, nesse terreno, à soberania do Estado.
Assim como os “direitos do rei da Espanha” não deveriam ter
sido afrontados em 1569, o território argentino não deveria ter
sido palco da ação de membros do serviço secreto israelense em
1960, nem igual façanha se poderia abonar aos agentes da segu­
rança francesa, em solo alemão, três anos mais tarde, ou à polí­
cia americana no México em 1990. Ninguém jamais invocou um
princípio de direito internacional público para sustentar que John
Story devesse permanecer em Antuérpia, Eichmann na Argen­
tina, Argoud na Alemanha, e mesmo Alvarez-Machain em Gua­
dalajara, no seu solo pátrio, ao abrigo da captura irregular.
Inexiste, em verdade, regra de direito internacional que proteja
o indivíduo naqueles casos em que se acabe por relevar a viola­
ção de território. Aquele direito parece hábil tão só para sancio­
nar a abdução indigerida pelo Estado ofendido. Cooperativo que
se mostre este último, a questão não sobrevive. É natural, desse
modo, que o direito das gentes ignore o fenômeno da extradição
dissimulada.
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A abdução não pode exatamente ser vista como quebra da Declaração Univer­
sal dos Direitos do Homem, que previne a prisão arbitrária. Isto porque, nas mais das
vezes, um mandado regular de prisão terá sido expedido contra o fugitivo por auto­
ridade competente, no Estado que o reclama. Assim sua captura, no contexto da
abdução, só é arbitrária porque levada a cabo fora dos limites da jurisdição daque­
le Estado. A vítima formal da ilegalidade é o Estado asilante, não o próprio fugiti­
vo. Assim, quando quer que o país de asilo coopere com a singular missão estran­
geira, nenhuma regra geral de direito internacional público terá sido afrontada.
126. Vocação protetiva do direito interno. Alguma proteção do
indivíduo contra a extradição arbitrária será somente encontrável,
porventura, no direito interno do Estado de refúgio. Embora, em
plano teórico, possam abrigar regras dessa natureza, os tratados
de extradição jamais se mostraram sensíveis ao problema dos
direitos humanos. Com efeito, a técnica adotada na elaboração
desses tratados ao longo de séculos faz ver que, através deles, os
Estados pactuantes se obrigam a conceder a extradição quando
certos pressupostos estejam presentes, sem todavia afirmar que,
faltantes tais pressupostos, a extradição não poderá ser concedi­
da. Até hoje nenhum pacto extradicional estatuiu de modo ex­
presso que a rendição do fugitivo é possível exclusivamente nos
termos do próprio pacto. Na medida em que governada tão só
por tratados internacionais, a extradição será sempre exequível à
margem de toda e qualquer regra de direito.
As leis internas de extradição, por seu turno, tendem a con­
ciliar o interesse da justiça penal com certas garantias que não
se podem negar à pessoa do fugitivo. É certo que tais leis usu­
almente sucumbem ante os tratados em caso de conflito, seja
por força de dispositivo constitucional assegurando a prevalên­
cia dos compromissos internacionais sobre normas comuns de
direito interno, qual sucede, entre outros países, na França e na
Alemanha, seja ainda, como se dá no Brasil, pela afirmação
judiciária de que o princípio lex specialis derogat generali é
quanto basta para autorizar a conclusão de que a lei extradicio­
nal doméstica, em sua abstrata generalidade, deve ceder terreno
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ao dispositivo acaso diverso, expresso em tratado bilateral que
nos vincule ao Estado requerente. Apesar dessa subordinação,
a lei extradicional interna opera, em favor do indivíduo, como
uma garantia de que a extradição só será concedida se reunidos
os pres­supostos do texto, eventualmente abrandados, em algum
pormenor, pelo que disponha o tratado aplicável. Exclui-se,
dessa forma, toda possibilidade de uma extradição arbitrária. E
tanto maior será essa garantia quanto, de modo expresso, elimi­
ne a lei a perspectiva do uso de figuras variantes, como a depor­
tação e a expulsão, para que se consume a entrega do indivíduo
a Estado estrangeiro empenhado em submetê-lo a juízo criminal.
127. O sistema protetivo no direito brasileiro. Dois disposi­
tivos avulsos no contexto da Lei n. 6.815/80 fazem de nosso
estatuto do estrangeiro uma das leis internas que com maior
objetividade cuidaram de prevenir a extradição dissimulada.
Trata-se dos arts. 63 e 75, I, que proíbem, nessa ordem, a depor­
tação e a expulsão, sempre que semelhantes medidas impliquem
extradição inadmitida pela lei brasileira. A ausência de regras
desse teor na legislação de outros países tem às vezes feito com
que seus tribunais, no exame de casos concretos, enfrentem a
contingência de lembrar aos respectivos governos que expulsão
e deportação constituem medidas próprias unicamente para
excluir o estrangeiro do território local, sem que se lhe possa
assinalar destino compulsório.
Assim procedeu a Alta Corte de Justiça da Austrália quando provocada, em
1974, pelos advogados de Alexander e Thomas Barton, que haviam emigrado para
o Brasil após a prática de crimes patrimoniais. À falta de tratado bilateral de extra­
dição, e impossibilitado pelas leis então vigentes37 de assegurar reciprocidade, o
37. O quadro legislativo australiano mudaria ainda no curso de 1974, ali se havendo
abolido o princípio “No extradition without treaty”, de origem inglesa. Facultado o mecanismo
da reciprocidade, o governo da Austrália endereçaria ao Brasil sua primeira requisição extra­
dicional fundada em promessa de igual tratamento (caso Glanville, Extr. 332, STF, 1975).
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governo australiano pretendeu, sem rodeios, oferecer o uso dos mecanismos de
deportação como fórmula variante da extradição na hipótese de uma demanda
brasileira. Tão singular oferta não chegou, por razões várias, ao conhecimento
formal do Supremo. Na própria Austrália, contudo, o Judiciário se incumbiu de
fazer-lhe a crítica. Mais dramático foi o desfecho, em 1962, do caso do Dr. Soblen,
na Grã-Bretanha, outro país carente de normas que proíbam a deportação e a ex­
pulsão quando tais medidas signifiquem, na realidade, um procedimento extradi­
cional. Norte-americano, acusado de haver passado informações sigilosas à União
Soviética, valeu-se Soblen da liberdade provisória para buscar refúgio em Israel,
de onde seria “expulso” com destino aos Estados Unidos, a bordo de uma aerona­
ve da El Al, sob a custódia de agentes norte-americanos. Poucos minutos antes da
escala em Londres o fugitivo cortava os pulsos, a muitos havendo parecido que a
tentativa de autoextermínio era em verdade um meio para forçar a permanência
temporária em solo britânico, tentando assim obter o amparo da justiça local. Com
efeito, ao ato do ministro do Interior que lhe determinava a expulsão reagiu Soblen
com um pedido de habeas corpus, sublinhando a natureza política de seu crime, e
dando, pois, pela ilegalidade de sua restituição às autoridades americanas. Num
julgamento final que marcou época, a House of Lords abonaria por inteiro o pro­
cedimento ministerial, embora ciente de que a “expulsão” conduziria Soblen ao seu
país de origem, apesar de uma oferta de asilo por parte do governo tchecoslovaco.
O espírito que dominou a corte no caso Soblen parece bem sintetizado nessa afir­
mação de Lord Donovan:
“Se A e B são países aliados, é natural que estimem conducente ao bem pú­
blico a cooperação no sentido de que o súdito de qualquer deles, que passa infor­
mações sigilosas a um inimigo comum em potencial, não deva escapar das conse­
quências previstas pela lei”38.
128. A doutrina do caso Biggs. O aparato proibitivo, entre nós,
da extradição dissimulada — ou, como concedem alguns, da
extradição de fato — estava a merecer análise judiciária onde se
precisasse seu alcance. A ocasião veio no caso do nacional bri­
tânico Ronald Arthur Biggs, a que o Tribunal Federal de Recur­
sos (hoje Superior Tribunal de Justiça) deu solução a todos os
títulos notável.
38. Regina v. Governor of Brixton Prison, ex parte Soblen; 1962, 3 W.L.R. 1154, p.
1188.
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Fugitivo de uma penitenciária inglesa onde cumpria pena por participação
num assalto notório, Biggs viveu por pouco tempo na Austrália e ingressou em
seguida no território brasileiro sob o falso nome de Michael Haynes. Não se pôde
jamais formalizar o aventado pedido de extradição, em face da inexistência de
tratado bilateral específico, combinada com a inabilitação constitucional do gover­
no britânico para oferecer reciprocidade em semelhantes hipóteses39. Preso por de­
terminação do ministro da Justiça, em 1974, Biggs requereu ao Tribunal Federal
de Recursos uma ordem de habeas corpus em que, dando como incontroversa a
impossibilidade da expulsão, em face da iminência de tornar-se pai de uma criança
brasileira, limitava-se a apontar ilegalidade também na deportação que se lhe prepa­
rava em razão do ingresso ilegal no território. A deportação, sustentavam seus defen­
sores, só o poderia conduzir ao seu Estado patrial, o único obrigado pelo direito das
gentes a recebê-lo. Assim, teria ela a natureza de uma autêntica extradição, incidindo
de modo exato em quanto proíbe o estatuto do estrangeiro. O Tribunal, reconhecen­
do embora que se tratava de um caso de “extradição inadmitida pela lei brasileira”,
não negou a legitimidade da custódia determinada pelo ministro da Justiça com
vistas à deportação, e por isso indeferiu a ordem de habeas corpus. Mas, no mesmo
passo, estatuiu que o paciente não poderia ser deportado para a Grã-Bretanha, nem
para qualquer outro país do qual aquele pudesse obter sua extradição. Era natural,
nessas circunstâncias, que a deportação acabasse por mostrar-se inexequível, e que
o paciente viesse pouco depois a ser colocado em liberdade40.
O acórdão do Tribunal Federal de Recursos no habeas cor­
pus de Ronald Arthur Biggs desdobra seu alcance doutrinário
em três planos diversos. Ficou claro, de início, que o conceito
de “extradição inadmitida pela lei brasileira” é consideravelmen­
te amplo. Nele cabem não só as hipóteses de extradição barrada
por óbice substantivo, como a prescrição ou a natureza política
39. O fundamento político da tradição britânica nessa matéria não resiste à mais su­
mária crítica. Apregoa-se que, limitando suas relações extradicionais aos países com os quais
celebre tratados específicos, pode o Estado selecionar com prudência tais países, evitando
envolver-se com aqueles que não adotem princípios penais semelhantes aos seus. A tese
ignora, candidamente, o fenômeno da mudança política repercutindo sobre tais princípios,
ou sobre o modo de utilizá-los na prática judiciária. E parece ignorar, mais, que o sistema
da reciprocidade é o que maiores garantias oferece, visto que nele o único ponto de referên­
cia para o julgamento da legalidade e procedência da extradição é a lei doméstica do Estado
requerido.
40. Habeas corpus 3.345, em favor de Ronald Arthur Biggs, TFR, 20 de julho de 1974.
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do crime, mas também aquelas em que a impossibilidade da
medida resulta de fator adjetivo, como ocorreria no caso de in­
deferimento por falha documental não sanada em tempo hábil,
ou ainda — extrema extensão — no caso em que tudo quanto
frustra desde logo a extradição é a prosaica circunstância de não
poder o Estado interessado formalizar o próprio pedido, em face
dos limites que lhe impõe sua lei interna. O segundo aspecto
modelar do acórdão confunde-se, em parte, com o primeiro: não
é, em absoluto, necessário que o Supremo tenha já indeferido a
extradição para que ela seja classificável como inadmitida pela
lei brasileira. A propósito, a linguagem do legislador é unívoca
quando omite toda referência a uma prévia decisão da única ins­
tância judiciária competente para a matéria extradicional. O juízo
do habeas corpus, remetido que se encontra, em circunstância
inusual, à lei de extradição, tem plena autoridade para interpre­
tá-la quando sobre o caso não tenha decidido o Supremo.
Num terceiro e último plano doutrinário, entendeu o Tribu­
nal Federal de Recursos que o intento do legislador só se pode
valorizar eficazmente quando se leve às últimas consequências
o vigor da norma proibitiva. Há que impedir, assim, não apenas
a deportação ou expulsão que conduza o paciente diretamente
ao Estado interessado na extradição inadmitida, mas também
aquela qualquer dentre as duas figuras que lhe dê, ou que seja
suscetível de lhe dar tal destino por via oblíqua.
O Supremo Tribunal Federal, anos mais tarde, negou seguimento a pedido de
extradição41 contra Ronald Biggs formulado pelo governo britânico, com base no
tratado bilateral que vincula, desde 1997, as duas soberanias. Ponderou-se, no
julgamento, que estava extinta a punibilidade do extraditando pela prescrição da
pretensão executória, à vista da lei brasileira.
41. Extr. 721, STF, 12 de novembro de 1997.
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Subseção 5 — ASILO POLÍTICO
129. Conceito e espécies. Asilo político é o acolhimento, pelo
Estado, de estrangeiro perseguido alhures — geralmente, mas
não necessariamente, em seu próprio país patrial — por causa
de dissidência política, de delitos de opinião, ou por crimes que,
relacionados com a segurança do Estado, não configuram quebra
do direito penal comum. Sabemos que no domínio da crimina­
lidade comum — isto é, no quadro dos atos humanos que pare­
cem reprováveis em toda parte, independentemente da diversi­
dade de regimes políticos — os Estados se ajudam mutuamente,
e a extradição é um dos instrumentos desse esforço cooperativo.
Tal regra não vale no caso da criminalidade política, onde o
objeto da afronta não é um bem jurídico universalmente reco­
nhecido, mas uma forma de autoridade assentada sobre ideo­logia
ou metodologia capaz de suscitar confronto além dos limites da
oposição regular num Estado democrático.
O asilo político, na sua forma perfeita e acabada, é territo­
rial: concede-o o Estado àquele estrangeiro que, havendo cru­
zado a fronteira, colocou-se no âmbito espacial de sua soberania,
e aí requereu o benefício. Em toda parte se reconhece a legiti­
midade do asilo político territorial, e a Declaração Universal dos
Direitos do Homem — ONU, 1948 — faz-lhe referência.
Conceder asilo político não é obrigatório para Estado algum, e as contingências
da própria política — exterior e doméstica — determinam, caso a caso, as decisões
de governo. A Áustria recusou o asilo que lhe pedira Markus Wolf, chefe dos servi­
ços de espionagem da extinta Alemanha oriental (RDA), preferindo prendê-lo e
entregá-lo às autoridades da Alemanha unificada, em 24 de setembro de 1991.
É claro que, por força das circunstâncias, o candidato ao asilo territorial não
estará sempre provido de documentação própria para um ingresso regular. Sem
visto, ou mesmo sem passaporte, ele aparece, formalmente, como um deportando
em potencial quando faz à autoridade o pedido de asilo. O Estado territorial, deci­
dindo conceder-lhe esse estatuto, cuidará de documentá-lo. A legislação brasileira
prevê até mesmo a expedição de um passaporte especial para estrangeiros, e o
asilado político — assim como o apátrida — é um dos possíveis beneficiários
desse documento, que permite a circulação fora de nossas fronteiras.
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O chamado asilo diplomático é uma forma provisória do
asilo político, só praticada regularmente na América Latina, onde
surgiu como instituição costumeira no século XIX, e onde se
viu tratar em alguns textos convencionais a partir de 1928.
130. Natureza do asilo diplomático. O que deve destacar-se,
antes de mais nada, no estudo do asilo diplomático, é o fato de
que ele constitui uma exceção à plenitude da competência que
o Estado exerce sobre seu território. Essa renúncia, ditada na
América Latina por razões humanitárias e de conveniência po­
lítica, e relacionada, em suas origens, tanto com a extensão
territorial dos países da área quanto com a relativa frequência,
no passado, de quebras da ordem constitucional, não resultaria
jamais da simples aplicação do direito diplomático. Com efeito,
nos países que não reconhecem essa modalidade de asilo polí­
tico — e que constituem larga maioria —, toda pessoa procura­
da pela autoridade local que entre no recinto de missão diplo­
mática estrangeira deve ser de imediato restituída, pouco impor­
tando saber se se cuida de delinquente político ou comum42. As
regras do direito diplomático fariam apenas com que a polícia
42. A história registra casos excepcionais de asilo diplomático fora da América Lati­
na, onde a tolerância do Estado territorial deveu-se à singularidade da conjuntura. Exemplos
mais ou menos notórios: 1) O acolhimento do cardeal primaz da Hungria, Josef Mindszen­
ty, pela embaixada dos Estados Unidos em Budapest, em novembro de 1956 (o cardeal
acabaria por permanecer quinze anos no interior da embaixada). 2) O acolhimento do líder
político Imre Nagy pela embaixada da Iugoslávia, na mesma ocasião. 3) O acolhimento do
general Humberto Delgado — líder da resistência ao regime salazarista — pela embaixada
do Brasil em Lisboa, em fevereiro de 1959. 4) O acolhimento do general Michel Aoun pela
embaixada da França em Beirute, em outubro de 1990. 5) O acolhimento de Erich Honecker,
que fora o homem forte da Alemanha oriental (RDA), pela embaixada do Chile em Moscou,
em janeiro de 1992 (caso cujo desfecho foi a entrega de Honecker pelos russos ao governo
da Alemanha unificada, em 29 de julho do mesmo ano, para julgamento). Há também regis­
tros avulsos do acolhimento de grupos mais ou menos numerosos de pessoas em dificulda­
de ou desgraça política, por embaixadas estrangeiras, e por pouco tempo: na Espanha em
guerra civil, entre 1936 e 1937; na Albânia de 1990, quando da agonia do regime comunis­
ta; na África do Sul de 1991 e 1992, ante os conflitos de rua contemporâneos da reforma do
quadro político e social.
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não entrasse naquele recinto inviolável sem autorização, mas de
nenhum modo abonariam qualquer forma de asilo. Só nos países
latino-americanos, em virtude da aceitação costumeira e con­
vencional desse instituto, pode ele ocorrer. Naturalmente, o
asilo nunca é diplomático em definitivo: essa modalidade signi­
fica apenas um estágio provisório, uma ponte para o asilo terri­
torial, a consumar-se no solo daquele mesmo país cuja embai­
xada acolheu o fugitivo, ou eventualmente no solo de um tercei­
ro país que o aceite.
131. Disciplina do asilo diplomático. Codificando costumes,
de modo lento e nem sempre completo, celebraram-se acerca do
asilo diplomático a Convenção da Havana de 1928, a de Mon­
tevidéu de 1933 e a de Caracas de 1954 — esta mais apurada
que as precedentes. Os pressupostos do asilo diplomático são,
em última análise, os mesmos do asilo territorial: a natureza
polí­tica dos delitos atribuídos ao fugitivo, e a atualidade da per­
secução — chamada, nos textos convencionais, de estado de
urgência. Os locais onde esse asilo pode dar-se são as missões
diplomáticas — não as repartições consulares — e, por extensão,
os imóveis residenciais cobertos pela inviolabilidade nos termos
da Convenção de Viena de 1961; e ainda, segundo o costume,
os navios de guerra porventura acostados ao litoral. A auto­ridade
asilante — via de regra o embaixador — examinará a ocorrência
dos dois pressupostos referidos e, se os entender presentes, re­
clamará da autoridade local a expedição de um salvo-conduto,
com que o asilado possa deixar em condições de segurança o
Estado territorial para encontrar abrigo definitivo no Estado que
se dispõe a recebê-lo.
Países como o Peru e a República Dominicana não aceitam este tópico da
disciplina. Entendem que o Estado territorial pode discutir tanto a natureza — po­
lítica ou comum — dos delitos atribuídos ao extraditando quanto a realidade do
estado de urgência. E acham que, havendo desacordo, devem os dois Estados en­
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volvidos partir para uma via usual de solução, diplomática, política ou jurisdicional.
Exatamente em razão dessa dissidência quanto ao ponto específico deu-se entre o
Peru e a Colômbia, em 1948, a controvérsia que seria mais tarde examinada pela
Corte Internacional de Justiça no processo Haya de la Torre.
A autoridade asilante dispõe, em regra, do poder de quali­
ficação unilateral dos pressupostos do asilo, mas na exata me­
dida em que exteriorize o ponto de vista do Estado por ela re­
presentado.
Em março de 1952 a embaixada do Chile em Bogotá acolheu o cidadão Saul
Fajardo, acusado de crimes de direito comum pelas autoridades colombianas. An­
tes que a discussão entre o embaixador — que exigia o salvo-conduto — e as au­
toridades locais terminasse, o governo do Chile reconheceu tratar-se de criminoso
comum e determinou à embaixada que o entregasse à Justiça territorial. O embai­
xador o fez e renunciou, em seguida, a seu cargo.
O asilo, nos termos da Convenção de Caracas, é uma insti­
tuição humanitária e não exige reciprocidade. Importa, pois,
para que ele seja possível, que o Estado territorial o aceite como
princípio, ainda que o Estado asilante não tenha igual postura.
Por isso as repúblicas latino-americanas têm admitido o asilo
diplomático dado por embaixadas de países em cujo território
tal prática não seria admitida.
No Brasil em 1964, na Argentina em 1966, no Peru em 1968, no Chile em
1973, o asilo diplomático foi concedido sobretudo por representações diplomáticas
latino-americanas, mas também o foi pelas embaixadas da Iugoslávia, da Tchecos­
lováquia e da Suécia, entre outras.
Seção V — PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS
DIREITOS HUMANOS
132. Normas substantivas. Até a fundação das Nações Unidas,
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em 1945, não era seguro afirmar que houvesse, em direito inter­
nacional público, preocupação consciente e organizada sobre o
tema dos direitos humanos. De longa data alguns tratados avul­
sos cuidaram, incidentalmente, de proteger certas minorias
dentro do contexto da sucessão de Estados. Usava-se, por igual,
do termo intervenção humanitária para conceituar, sobretudo
ao longo do século XIX, as incursões militares que determinadas
potências entendiam de empreender em território alheio, à vista
de tumultos internos, e a pretexto de proteger a vida e o patri­
mônio de seus nacionais que ali se encontrassem.
A Carta de São Francisco, no dizer de Pierre Dupuy, fez dos
direitos humanos um dos axiomas da nova organização, confe­
rindo-lhes idealmente uma estatura constitucional no ordena­
mento do direito das gentes43. Três anos mais tarde, em 10 de
dezembro de 1948, a Assembleia Geral aclama a Declaração
Universal dos Direitos do Homem44, texto que exprime de modo
amplo — e um tanto precoce — as normas substantivas perti­
nentes ao tema, e no qual as convenções supervenientes encon­
trariam seu princípio e sua inspiração.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem não é um tratado, e por isso
seus dispositivos não constituem exatamente uma obrigação jurídica para cada um
dos Estados representados na Assembleia Geral quando, sem qualquer voto con­
trário, adotou-se o respectivo texto sob a forma de uma resolução da Assembleia.
Por mais de uma vez, ante gestões externas fundadas no zelo pelos direitos huma­
nos, certos países reagiram lembrando a natureza não convencional da Declaração.
133. Declaração de 1948: direitos civis e políticos. A Decla­
ração encerra apenas normas substantivas: ela não institui qual­
43. Pierre-Marie Dupuy, La protection internationale des droits de l’homme, capítulo
suplementar em Rousseau, p. 404.
44. Houve quarenta e cinco votos favoráveis, nenhum voto contrário, e oito abstenções
(África do Sul, Arábia Saudita, Bielo-Rússia, Iugoslávia, Polônia, Tchecoslováquia, Ucrânia
e União Soviética).
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quer órgão internacional de índole judiciária ou semelhante para
garantir a eficácia de seus princípios, nem abre ao ser humano,
enquanto objeto de proteção, vias concretas de ação contra o
procedimento estatal acaso ofensivo a seus direitos. Numa pri­
meira parte (arts. 4º a 21) o texto se refere aos direitos civis e
políticos — que, muito tempo mais tarde, seriam chamados de
“direitos humanos da primeira geração”. Ali se diz que todo
homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança; a não ser
jamais submetido à escravidão, à servidão, à tortura e a penas
cruéis ou degradantes; ao reconhecimento de sua personalidade
jurídica e a um processo judicial idôneo; a não ser arbitraria­
mente detido, preso ou desterrado, e a gozar de presunção de
ino­cência até que se prove culpado; a não sofrer intromissões
arbitrárias na sua vida particular, na família, no domicílio e na
correspondência; à livre circulação e à escolha de seu domicílio;
ao asilo quando perseguido por delito político; a uma naciona­
lidade; ao casamento e à constituição de família; à propriedade
singular e em condomínio; à liberdade de pensamento, convicção
política, religião, opinião e expressão, reunião e associação
pacíficas; a participar do governo de seu Estado patrial e a ter
acesso, em condições igualitárias, à função pública.
134. Declaração de 1948: direitos econômicos, sociais e culturais. Numa parte seguinte (arts. 22 a 27), sucedida tão só por
disposições de fechamento do texto, a Declaração versa os di­
reitos que a pessoa humana deve ter “como membro da socie­
dade”. São eles o direito ao trabalho e à previdência social, à
igualdade salarial por igual trabalho, ao descanso e ao lazer, à
saúde, à educação, aos benefícios da ciência, ao gozo das artes,
à participação na vida cultural da comunidade.
135. Direitos humanos de terceira geração. Vieram a quali­
ficar-se como de “segunda geração” os direitos econômicos,
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sociais e culturais de que cuida a parte final da Declaração de
1948. A ideia contemporânea dos direitos humanos de “terceira
geração” lembra o enfoque dado à matéria pelos teóricos mar­
xistas, pouco entusiasmados com o zelo — alegadamente exces­
sivo — por direitos individuais, e propensos a concentrar sua
preocupação nos direitos da coletividade a que pertença o indi­
víduo, notadamente no plano do desenvolvimento socio­econô­
mico. Vanguardas do pensamento ocidental alargaram o hori­
zonte desses direitos humanos societários, trazendo à mesa teses
novas, como a do direito à paz, ao meio ambiente, à copro­
priedade do patrimônio comum do gênero humano. O problema
inerente a esses direitos de terceira geração é, como pondera
Pierre Dupuy, o de identificar seus credores e devedores45. Com
efeito, quase todos os direitos individuais de ordem civil, polí­
tica, econômica, social e cultural são operacional­mente recla­
máveis, por parte do indivíduo, à administração e aos demais
poderes constituídos em seu Estado patrial, ou em seu Estado
de residência ou trânsito. As coisas se tornam menos simples
quando se cuida de saber de quem exigiremos que garanta, em
plano global, nosso direito a um meio ambiente saudável, à paz
ou ao desenvolvimento.
136. Tratados sobre os direitos humanos. Ainda no domínio
das normas substantivas, e sempre à luz do conteúdo da Decla­
ração de 1948, prepararam-se em 1966 os Pactos das Nações
Unidas sobre direitos civis e políticos, econômicos e sociais —
amplo desdobramento, já agora com força jurídica convencional,
do que se proclamara dezoito anos antes. Conjugando normas
substantivas e instrumentais, a Europa comunitária já adotara,
em 1950, sua Convenção sobre os direitos do homem. Far-se-ia
o mesmo no quadro pan-americano em 1969.
45. Pierre-Marie Dupuy, La protection internationale, cit., p. 414.
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A Convenção americana sobre direitos humanos foi concluída em São José
da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. À conclusão, doze Estados firmaram
o texto. Sua entrada em vigor sobreveio em 18 de julho de 1978, e o número de
partes mediante ratificação ou adesão é de vinte e cinco repúblicas americanas no
início de 2005. Diversas ratificações comportaram reservas. Nos termos de seu art.
74, § 1º, o Pacto de São José da Costa Rica se encontra aberto, sem limite no tem­
po, à adesão de todos os membros da Organização dos Estados Americanos.
Ali se discriminam — nos âmbitos civil, político, econômico, social e cultu­
ral — direitos individuais situados entre aquela faixa elementar que concerne à
vida, à integridade e à liberdade físicas, e aquela outra, de maior apuro, relativa à
nacionalidade, à propriedade privada, ao acesso às fontes da ciência e da cultura.
Entre um e outro desses planos, trata o Pacto de dispor sobre o princípio da ante­
rioridade da lei penal, e as condições de sua retroatividade; sobre as liberdades de
consciência, de expressão e de culto confessional; sobre a proteção da honra e o
direito de resposta; sobre os direitos políticos, o de reunião e o de associação; sobre
o princípio da igualdade perante a lei; e sobre a proteção devida pelo Estado a seus
nacionais e aos estrangeiros encontráveis no âmbito de sua soberania.
137. Mecanismos de implementação. Em certos contextos
regionais, o europeu ocidental e o pan-americano, montaram-se
sistemas de garantia da eficácia das normas substantivas adota­
das, no próprio plano regional, sobre os direitos da pessoa hu­
mana. A Corte Europeia dos Direitos do Homem, sediada em
Estrasburgo, cuida de aplicar a Convenção de 1950. A Corte
Interamericana de Direitos Humanos, sediada em São José da
Costa Rica, garante vigência à Convenção de 1969.
A Convenção de São José designa como órgãos competentes para “...conhe­
cer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos...”, ali mesmo
assumidos pelos Estados pactuantes, a Comissão Interamericana de Direitos Hu­
manos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A primeira já se vira anun­
ciar pelo art. 111 da Carta da OEA. Tanto a Comissão quanto a Corte se compõem
de sete personalidades, eleitos os membros da primeira pela Assembleia Geral da
OEA, para quatro anos de exercício, e os juízes da segunda pelos Estados partes
no Pacto, para seis anos. Num e noutro caso, os votos se exprimem intuitu perso­
narum, sendo certo que a relação de elegíveis se funda em listas de origem gover­
namental.
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Em linhas gerais, e desprezados os tópicos secundários de sua pauta de com­
petências, a Comissão atua como instância preliminar à jurisdição da Corte. É amplo
seu poder para requisitar informações e formular recomendações aos governos dos
Estados pactuantes. O verdadeiro ofício pré-jurisdicional da Comissão se pode
instaurar, contra um Estado-parte, por denúncia ou queixa — atinente à violação de
regra expressa na área substantiva do Pacto — formulada (a) por qualquer pessoa
ou grupo de pessoas, (b) por entidade não governamental em funcionamento regular,
e (c) por outro Estado-parte; neste caso, porém, sob a condição de que o Estado
denunciado haja reconhecido a competência da Comissão para equacionar essa
forma original de confronto, com ou sem exigência de reciprocidade.
Em toda circunstância, o Pacto enuncia requisitos de admissibilidade da queixa,
dentre os quais se destaca o esgotamento dos recursos proporcionados pela jurisdição
interna. O processo ante a Comissão implica pedido de informações ao Estado sob
acusação, com prazo certo, além de investigações várias, conduzindo afinal à lavra­
tura de um relatório. Inoperantes que sejam as proposições ou recomendações, e
esgotados os prazos razoáveis, pode a Comissão chegar àquele que parece ser o
ponto culminante de sua competência pré-jurisdicional, ou seja, à publicação de suas
conclusões sobre o caso concreto. Alternativamente, a Comissão tem qualidade para
submeter a matéria à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Corte não é acessível a pessoas ou a instituições privadas. Exauridas, sem
sucesso, as potencialidades da Comissão, pode esta transferir o caso ao conheci­
mento do colégio judiciário. Debaixo de igual reserva, pode também fazê-lo outro
Estado pactuante, mas desde que o país sob acusação tenha, a qualquer momento,
reconhecido a competência da Corte para atuar em tal contexto — o do confronto
interestatal à conta dos direitos humanos —, impondo ou não a condição de reci­
procidade.
Órgão judiciário que é, a Corte não relata, nem propõe, nem recomenda, mas
profere sentenças, que o Pacto aponta como definitivas e inapeláveis. Declarando,
na fundamentação do aresto, a ocorrência de violação de direito protegido pelo
tratado, a Corte determina seja tal direito de pronto restaurado, e ordena, se for o
caso, o pagamento de indenização justa à parte lesada. Nos relatórios anuais à
Assembleia Geral da OEA, a Corte “...indicará os casos em que um Estado não
tenha dado cumprimento a suas sentenças”.
Os Estados Unidos da América não ratificaram a Convenção
americana sobre direitos humanos, e tem-se como provável que
se conservarão à margem do sistema. Argentina e México fize­
ram-no em anos recentes. O Brasil aderiu à Convenção em se­
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tembro de 1992 e, dez anos mais tarde, reconheceu a competên­
cia obrigatória da Corte46.
O tratado criativo de uma Corte Africana de Direitos Humanos entrou em
vigor em janeiro de 2004, ratificado então por quinze nações, entre elas a Argélia,
a África do Sul e o Senegal. Esse tribunal só começará a funcionar depois de esco­
lhida uma sede e eleitos seus primeiros juízes.
Seção VI — SOBERANIA
138. Noção de soberania. O fato de encontrar-se sobre certo
território bem delimitado uma população estável e sujeita à au­
toridade de um governo não basta para identificar o Estado en­
quanto pessoa jurídica de direito das gentes: afinal, esses três
elementos se encontram reunidos em circunscrições administra­
tivas várias, em províncias federadas como a Califórnia e o Pa­
raná, até mesmo em municípios como Diamantina e Buenos
Aires. Identificamos o Estado quando seu governo — ao contrá­
rio do que sucede com o de tais circunscrições — não se subor­
dina a qualquer autoridade que lhe seja superior, não reconhece,
em última análise, nenhum poder maior de que dependam a de­
finição e o exercício de suas competências, e só se põe de acordo
com seus homólogos na construção da ordem internacional, e na
fidelidade aos parâmetros dessa ordem, a partir da premissa de
que aí vai um esforço horizontal e igualitário de coordenação no
interesse coletivo. Atributo fundamental do Estado, a soberania
o faz titular de competências que, precisamente porque existe
uma ordem jurídica internacional, não são ilimitadas; mas ne­
nhuma outra entidade as possui superiores47.
46. V. o Decreto 4.463, de 8 de novembro de 2002, que promulga a declaração de
reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
sob reserva de reciprocidade, conforme o art. 62 da Convenção de 1969.
47. Cf. Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier, Mathias Forteau e Alain Pellet, Droit
international public, 8. ed., Paris, LGDJ, 2010, p. 467.
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A soberania não é apenas uma ideia doutrinária fundada na observação da
realidade internacional existente desde quando os governos monárquicos da Euro­
pa, pelo século XVI, escaparam ao controle centralizante do Papa e do Sacro Im­
pério romano-germânico. Ela é hoje uma afirmação do direito internacional posi­
tivo, no mais alto nível de seus textos convencionais. A Carta da ONU diz, em seu
art. 2, § 1, que a organização “é baseada no princípio da igualdade soberana de
todos os seus membros”. A Carta da OEA estatui, no art. 3, f, que “a ordem inter­
nacional é constituída essencialmente pelo respeito à personalidade, soberania e
independência dos Estados”. De seu lado, toda a jurisprudência internacional, aí
compreendida a da Corte da Haia, é carregada de afirmações relativas à soberania
dos Estados e à igualdade soberana que rege sua convivência.
LEITURA
Declaração (voto vencido em parte) do autor como Juiz da Corte Internacional
de Justiça no caso da Fronteira terrestre e marítima entre Camerum e Nigéria
(1998):
“Poucas proposições no direito internacional clássico são tão inconsisten­
tes e tão inadmissíveis no plano moral quanto aquela que pretende que os acordos
concluídos no passado entre potências coloniais e comunidades indígenas — se­
nhoras de seu território durante séculos, organizadas e submetidas a uma autori­
dade reconhecida — não são tratados, porque ‘os chefes e tribos indígenas não
são nem Estados nem Organizações Internacionais e não têm, portanto, capaci­
dade para concluir tratados’ (The Law of Treaties, 1961, p. 53). Ao exprimir
nesses termos a doutrina predominante na Europa de seu tempo, Arnold Mc Nair
observou contudo que a compreensão do problema havia sido outra nos Estados
Unidos, onde se reconheceu às comunidades indígenas a qualidade de nações
estrangeiras até a promulgação do Indian Appropriations Act de 3 de março de
1870. Essa lei colocou as referidas comunidades sob a tutela da União, integran­
do-as a ela. Mas acordos concluídos entre os povos indígenas (Sioux, Arapahos,
Cheyennes, Delawares) e o Governo federal foram reconhecidos como tratados,
a serem honrados como tais. Além disso, sempre que foi preciso interpretá-los,
a Corte Suprema aplicou a regra contra proferentem.
No caso do Saara ocidental, a Corte parece ter rejeitado a ideia de que
uma potência europeia pudesse apropriar-se unilateralmente de território ha­
bitado por comunidades indígenas. A Corte entendeu, com efeito, que mesmo
as tribos nômades presentes no território e dotadas de organização social e
política possuíam personalidade suficiente, aos olhos do direito internacional,
para que seu território não fosse considerado terra nullius. De acordo com essa
jurisprudência, não se poderia adquirir pela ocupação o título de soberania
sobre um território assim habitado, mas unicamente ‘por meio de acordos
concluídos com os chefes locais’ (Recueil CIJ-1975, par. 80).
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No presente caso, a península de Bakassi era parte do domínio do Velho
Calabar, submetido à autoridade originária de seus reis e chefes. O próprio Ca­
merum, pressionado pelas circunstâncias a abonar algumas das teses do discurso
colonialista, tentou pôr em dúvida a existência e a independência daquela auto­
ridade — recorrendo no entanto a argumentos que, ao contrário, acabam por
confirmá-las. Ademais, somente o tratado de 1884, concluído com essa forma
de autoridade local, poderia justificar as funções assumidas pela Grã-Bretanha
no momento em que ela se tornava o Estado protetor de tais territórios. Afinal,
se os reis e chefes do Velho Calabar não tinham qualidade para concluir seme­
lhante compromisso internacional, se o tratado de 1884 não era um tratado e não
tinha nenhum valor jurídico, convém então perguntar em que base a Grã-Breta­
nha pôde assentar sua autoridade sobre tais territórios, ou que misterioso direito
divino a terá investido em Estado protetor desses espaços africanos.
Por força do tratado de 1884 a Grã-Bretanha assumiu o controle das re­
lações exteriores da nação africana, sem contudo dar-se o poder de negociar
em seu nome, e menos ainda o de transigir ou renunciar ao que quer que fosse
durante negociações internacionais, e em nenhuma hipótese o de dispor de
qualquer parcela de seu território. A falta de legitimidade que caracteriza o ato
de cessão torna inválido o tratado anglo-alemão de 11 de março de 1913, na
medida em que, ao definir o último setor da fronteira terrestre, decide sobre o
destino de Bakassi.
O vício do dispositivo concernente à península de Bakassi não afeta a
validade do restante do tratado. Esta é a situação prevista pelo artigo 44, pará­
grafo 3º, alínea a da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados. A pro­
pósito, esta última norma poderia ser descartada, em princípio, pela aplicação
da alínea seguinte, se fosse possível demonstrar que a cessão de Bakassi havia
sido condição essencial ao consentimento da Alemanha sobre o restante do
tratado. Ao que recordo, no entanto, nada se alegou nesse sentido.
Além disso, não consigo ver na Declaração de Maroua, de 1º de junho
de 1975, um tratado, e daí tirar consequências. Tenho até mesmo dificuldade
em ver aí um tratado que, negociado, deixou de entrar em vigor pela falta de
ratificação das duas partes. Vejo, na verdade, uma declaração de dois chefes de
Estado, subsequente a outras declarações semelhantes que resultaram em letra
morta, o que demonstra que não eram definitivas enquanto fontes de direito. É
verdade que a adoção formal do documento por órgãos investidos, de um e de
outro lado da negociação, do treaty-making power, teria dado origem a um
tratado. Tanto vale dizer que um texto, não importa o nome ou a forma, e qual­
quer que seja o procedimento de sua negociação, pode sempre tornar-se um
tratado se os órgãos competentes das partes exprimem seu consentimento de­
finitivo. Aqui se sustentou, sem contestação, que a declaração de Maroua não
tinha sido ratificada pela Nigéria, por falta de aprovação pelo órgão competen­
te, à luz da Constituição em vigor à época.
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A Convenção de Viena define com notável simplicidade as circunstâncias
excepcionais em que um Estado pode negar o valor jurídico de um tratado por
vício de consentimento dessa espécie. É preciso que a norma interna desobe­
decida seja uma norma fundamental, e que sua violação seja manifesta, isto é,
uma violação insuscetível de passar despercebida à outra parte em circunstân­
cias normais. Penso, no entanto, que o Camerum não tinha razão para crer que
aquela declaração era de fato um tratado concluído e vigente no dia mesmo de
sua assinatura. Não tenho notícia de qualquer ordem jurídica que autorize o
governo a concluir só, de maneira definitiva, e a pôr em vigor, sobre a base
única de sua autoridade, um tratado referente à fronteira terrestre ou marítima,
e portanto ao território do Estado. Não há lugar onde semelhante desrespeito
a formalidades as mais elementares seria compatível com o caráter complexo
e eminente de um tratado internacional de limites territoriais.
Em debate desta natureza, é natural a evocação do caso do Estatuto jurí­
dico da Groenlândia oriental (CPJI, série A/B, n. 53, p. 22). Esquece-se, às
vezes, que a Corte jamais disse que entre as formas possíveis do tratado figu­
rasse a oralidade. A Corte não disse que a declaração Ihlen era um tratado;
disse apenas que as garantias dadas oralmente pelo ministro norueguês ao
embaixador dinamarquês comprometiam a Noruega. Há, sim, modos menos
solenes com que um Estado pode criar para ele mesmo obrigações internacio­
nais. Mas não é esta a questão. O que cumpre indagar é se um compromisso
internacional relativo à determinação da fronteira pode tomar forma diversa do
tratado no sentido estrito, ainda que os respectivos espaços terrestres ou ma­
rítimos sejam de extensão limitada, ou que a fronteira não seja marcada por
uma longa história de contestações e incertezas.
Não posso, portanto, juntar-me à maioria no que diz respeito à soberania
sobre a península de Bakassi e as águas adjacentes. A meu ver, esses espaços
pertencem por melhor direito à Nigéria.
139. Roteiro da matéria. As três subseções seguintes versarão
(a) o reconhecimento de Estado e de governo, significando a
colocação de cada soberania e de seus condutores políticos
frente ao restante da comunidade internacional; (b) a distinção
entre soberania e formas diversas de autonomia, como as ocor­
rentes no caso das províncias federadas e de outras dependências
destituídas, em caráter permanente ou transitório, de personali­
dade internacional; e (c) o problema da soberania conju­gada com
fatores de hipossuficiência, característica dos microestados e das
nações em luta pela autodeterminação.
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Subseção 1 — RECONHECIMENTO DE ESTADO
E DE GOVERNO
140. Natureza declaratória do reconhecimento de Estado. O
reconhecimento de que aqui cuidamos é o ato unilateral — nem
sempre explícito — com que um Estado, no uso de sua prerro­
gativa soberana, faz ver que entende presentes numa entidade
homóloga a soberania, a personalidade jurídica de direito inter­
nacional idêntica à sua própria, a condição de Estado. Já se terá
visto insinuar, em doutrina, que os elementos constitutivos do
Estado não seriam apenas o território, a população e o governo:
a soberania seria um quarto elemento, e teríamos ainda um
quinto e último, o reconhecimento por parte dos demais Estados,
ainda que não necessariamente de todos os outros. Essa teoria
extensiva encerra duplo erro. A soberania não é elemento dis­
tinto: ela é atributo da ordem jurídica, do sistema de autoridade,
ou mais simplesmente do terceiro elemento, o governo, visto
este como síntese do segundo — a dimensão pessoal do Esta­
do —, e projetando-se sobre seu suporte físico, o território. O
reconhecimento dos demais Estados, por seu turno, não é cons­
titutivo, mas meramente declaratório da qualidade estatal. Ele é
importante, sem dúvida, na medida em que indispensável a que
o Estado se relacione com seus pares, e integre, em sentido pró­
prio, a comunidade internacional. Mas seria uma proposição
teó­rica viciosa — e possivelmente contaminada pela ideologia
colo­nia­lista — a de que o Estado depende do reconhecimento de
outros Estados para existir. A boa tese, a tal propósito, teve o
privilégio de estampar-se em norma de direito internacional po­
sitivo, o art. 12 da Carta da Organização dos Estados Americanos.
Seu texto dispõe: “A existência política do Estado é independente do seu
reconhecimento pelos outros Estados. Mesmo antes de ser reconhecido, o Estado
tem o direito de defender a sua integridade e independência, de promover a sua
conservação e prosperidade, e, por conseguinte, de se organizar como melhor en­
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tender, de legislar sobre os seus interesses, de administrar os seus serviços e de
determinar a jurisdição e a competência dos seus tribunais. O exercício desses di­
reitos não tem outros limites senão o exercício dos direitos de outros Estados,
conforme o direito internacional”. O art. 13 da Carta da OEA diz em seguida: “O
reconhecimento significa que o Estado que o outorga aceita a personalidade do
novo Estado com todos os direitos e deveres que, para um e outro, determina o
direito internacional”.
141. Formas do reconhecimento de Estado. Não se conhece,
a tal propósito, forma imperativa: de várias maneiras pode ma­
nifestar-se o reconhecimento expresso, bem assim o reconheci­
mento tácito. Essa variedade possível na forma do reconheci­
mento de Estado conduz, eventualmente, a que se conjuguem
atos que por sua natureza são unilaterais, qual na hipótese de
reconhecimento mútuo — mediante tratado ou comunicado
comum —, ou naquela, mais rara, em que certo tratado bilateral
exprime, por parte dos dois Estados pactuantes, o reconhecimen­
to de um terceiro.
Uma convenção de paz entre o Império do Brasil e a Argentina (as então
“Províncias Unidas do Rio da Prata”), celebrada em 27 de agosto de 1828, exprimiu
o reconhecimento, por parte de ambos, da independência da província Cisplatina,
que viria a ser a república do Uruguai. Algum tempo antes, no tratado de 29 de
agosto de 1825, ficara registrado o reconhecimento do Brasil como Estado inde­
pendente pela antiga metrópole. Se o art. 1º desse pacto não dispusesse expressa­
mente sobre tal reconhecimento, entender-se-ia de todo modo que ele ocorrera,
tácito, pelo só fato de Portugal haver-se disposto a negociar o tratado com o Brasil.
O reconhecimento da República Popular da China pela França ocorreu em 27 de
janeiro de 1964, quando um comunicado comum, divulgado simultaneamente em
Paris e Beijing, deu notícia do estabelecimento de relações diplomáticas entre as
duas soberanias — sem, contudo, fazer qualquer referência expressa ao reconhe­
cimento. Muitos outros países ocidentais empregaram esse mesmo método quando
decidiram reconhecer a China popular. Em 18 de julho de 1974 o Brasil reconheceu
expressamente a república da Guiné-Bissau, havendo sido o primeiro país do oci­
dente a fazê-lo. Em 1979 a celebração dos acordos de Camp David significou o
reconhecimento tácito de Israel pelo Egito, embora os dois Estados não tenham
desde logo estabelecido relações diplomáticas.
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Um tratado de amizade entre Rússia e Lituânia, outro sobre solução de lití­gios
entre Armênia e Geórgia, ambos de julho de 1991, vieram a exprimir reconheci­
mento recíproco da qualidade de Estados independentes. Naquele ano o Brasil —
como a maioria dos demais países — reconheceu primeiro a independência das três
repúblicas bálticas (Estônia, Letônia, Lituânia), e mais tarde a das outras repúblicas
resultantes do desmembramento da antiga União Soviética, mediante notas diplo­
máticas unilaterais, transmitidas aos interessados e divulgadas pela imprensa. O
mesmo procedimento se adotou em janeiro de 1992 para reconhecer a Croácia e a
Eslovênia — sem prejuízo da subsistência do reconhecimento e das boas relações
do Brasil com a Iugoslávia —, e em janeiro de 1993 para reconhecer como inde­
pendentes a Eslováquia e a República Tcheca.
Deve ficar claro que o reconhecimento mútuo da persona­
lidade internacional só configura pressuposto necessário da
celebração de tratados bilaterais. No plano da multilateralidade
a situação sempre foi diversa. Ninguém discute a certeza deste
princípio costumeiro: o fato de certo Estado negociar em con­
ferência, assinar ou ratificar um tratado coletivo, ou de a ele
aderir, não implica, por sua parte, o reconhecimento de todos os
demais pactuantes. Resulta assim possível — e não raro — que
no rol das partes comprometidas por uma mesma convenção
multilateral figurem potências estigmatizadas pelo não reconhe­
cimento de outras tantas.
Não reconhecido durante anos por diversas nações árabes, o Estado de Israel
com elas coexistiu numa série de tratados coletivos, alguns deles constitutivos de or­
ganizações internacionais, como a ONU. A Mongólia aderiu à carta desta última em
1961, e por bom tempo os Estados Unidos continuaram a negar-lhe reconhecimento.
142. Reconhecimento de governo: circunstâncias. Se o reco­
nhecimento de Estado pressupõe quase sempre o acesso à inde­
pendência de um território até então colonial, ou alguma espécie
de manifestação do fenômeno sucessório (qual a fusão ou o
desmembramento), o reconhecimento de governo tem premissas
diferentes. Presume-se, aqui, que o Estado em si mesmo já é
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reconhecido em sua personalidade jurídica de direito das gentes
e em seu suporte físico — demográfico e territorial. Contudo,
uma ruptura na ordem política, do gênero da revolução ou do
golpe de Estado, faz com que se instaure no país um novo es­
quema de poder, à margem das prescrições constitucionais
pertinentes à renovação do quadro de condutores políticos. As­
sim vistas as coisas, não há por que cogitar do reconhecimento
de governo quando, à força das eleições, o democrata James
Carter sucede, em 1977, ao republicano Gerald Ford na presi­
dência dos Estados Unidos, nem quando, em 1981, o Partido
Socialista de François Mitterrand ascende finalmente ao poder
na França, sucedendo à administração do presidente Giscard
d’Estaing. Entretanto, não são somente as grandes rupturas po­
líticas e sociais do porte da revolução russa de 1917 ou da confes­
sionalização do Estado iraniano em 1979 que trazem à cena o
problema do reconhecimento de governo, mas também a quebra
da continuidade política do regime nos moldes em que se pro­
duziu no Brasil em 1930 e em 1964, na Argentina em 1966, no
Peru em 1968, no Chile em 1973, no Haiti em 1991.
A propósito do reconhecimento de governo, o grande deba­
te doutrinário, estreitamente vinculado à oscilação na prática
dos Estados no século XX, pode resumir-se, em última análise,
na simples alternativa entre a forma expressa e a forma tácita
do reconhecimento, entendendo-se a última como mera manu­
tenção do relacionamento diplomático com o Estado onde haja
ocorrido a reviravolta política, sem comentários sobre a quali­
dade ou a legitimidade dos novos detentores do poder. A primei­
ra, a seu turno, importaria expresso e deliberado juízo de valor
sobre a legitimidade do novo regime, ou, quando menos, sobre
a efeti­vidade de seu mando. A referida alternativa marcou a
aparente oposição entre duas doutrinas expostas na América
Latina da primeira metade do século XX: a de Carlos Tobar e a
de Genaro Estrada.
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143. Doutrina Tobar: a expectativa da legitimidade. Em 1907
o ministro das Relações Exteriores da República do Equador,
Carlos Tobar, formulava seu pensamento nestes termos:
“O meio mais eficaz para acabar com essas mudanças violentas de governo,
inspiradas pela ambição, que tantas vezes têm perturbado o progresso e o desen­
volvimento das nações latino-americanas e causado guerras civis sangrentas, seria
a recusa, por parte dos demais governos, de reconhecer esses regimes acidentais,
resultantes de revoluções, até que fique demonstrado que eles contam com a apro­
vação popular”.
Semelhante ponto de vista foi adotado pelo governo norte-americano ao tempo de Woodrow Wilson (1913-1921) e persis­
tiu até que Franklin Roosevelt, já nos anos trinta, adotasse polí­
tica mais flexível. A doutrina Tobar foi ainda, no contexto latino-americano, prestigiada por tratados — como o de 20 de dezem­
bro de 1907, dispondo sobre paz e amizade na América Central48
— e por declarações comuns — como a de 17 de agosto de 1959,
feita pelos ministros de relações exteriores reunidos em Santiago.
Na Venezuela dos anos sessenta, sob os governos de Rômulo
Betancourt e Raúl de Leoni, praticou-se declarada­mente a dou­
trina Tobar: assim foi que aquela república rompeu suas relações
diplomáticas com o Brasil em 1964 — restabelecendo-as após
dois anos e meio —, com a Argentina em 1966 e com o Peru
(onde a tomada do poder foi obra de militares de esquerda) em
1968. Assumindo a presidência da Venezuela em 1969, Rafael
Caldera repudiou desde logo aquilo que se chamara “a doutrina
Betancourt, sucedâneo atual da doutrina Tobar”, e restaurou os
laços diplomáticos que então permaneciam rompidos.
48. Esse tratado, vinculando Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Nica­
rágua, foi renovado pelas partes em 1923. Dispunha seu art. 1º: “Os governos das altas
partes contratantes não reconhecerão nenhum governo que, em qualquer delas, resulte de
golpe de estado ou revolução contra um governo reconhecido, até que os representantes do
povo, livremente eleitos, não tenham reorganizado a vida constitucional do país”.
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144. Doutrina Estrada: uma questão de forma. A imprensa
local e estrangeira na cidade do México recebeu, em 26 de se­
tembro de 1930, uma comunicação do secretário de Estado das
Relações Exteriores, Genaro Estrada, sobre o tema do reconhe­
cimento de governo. Dizia o texto:
“Em razão de mudanças de regime ocorridas em alguns países da América
do Sul, o governo do México teve uma vez mais que decidir sobre a teoria chama­
da do ‘reconhecimento’ de governo. É fato sabido que o México sofreu como
poucos países, há alguns anos, as consequências dessa doutrina que deixa ao arbí­
trio de governos estrangeiros opinar sobre a legitimidade ou ilegitimidade de outro
regime, isto criando situações em que a capacidade legal ou a legitimidade nacional
de governos e autoridades parecem submeter-se ao juízo exterior. A doutrina do
chamado ‘reconhecimento’ foi aplicada, desde a grande guerra, especialmente às
nações de nossa área, sem que em casos conhecidos de mudança de regime na
Europa tenha ela sido usada expressamente, o que mostra que o sistema se trans­
forma em prática dirigida às repúblicas latino-americanas.
Após atento estudo da matéria, o governo do México expediu instruções a seus
representantes nos países afetados pelas crises políticas recentes, fazendo-lhes saber
que o México não se pronuncia no sentido de outorgar reconhecimento, pois estima
que essa prática desonrosa, além de ferir a soberania das nações, deixa-as em situação
na qual seus assuntos internos podem qualificar-se em qualquer sentido por outros
governos, que assumem de fato uma atitude crítica quando de sua decisão favorável
ou desfavorável sobre a capacidade legal do regime. Por conseguinte, o governo do
México limita-se a conservar ou retirar, quando crê necessário, seus agentes diplo­
máticos, e a continuar acolhendo, também quando entende necessário, os agentes
diplomáticos que essas nações mantêm junto a si, sem qualificar, nem precipitada­
mente nem a posteriori, o direito que teriam as nações estrangeiras de aceitar,
manter ou substituir seus governos ou suas autoridades”.
O princípio da não intervenção é a base dessa doutrina, que
não proíbe, observe-se bem, a ruptura de relações diplomáticas
com qualquer regime cujo perfil político ou cujo modo de ins­
tauração se considere inaceitável. Cuida-se apenas, segundo
Estrada, de evitar a formulação abusiva de juízo crítico ostensi­
vo sobre governo estrangeiro. Assim, a outorga de reconheci­
mento era para ele tão funesta quanto sua recusa: em ambos os
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casos as potências estrangeiras teriam praticado ato interventivo
no domínio dos assuntos internos do Estado em questão.
Exemplo antológico daquilo que a doutrina Estrada procurou condenar como
desonroso foi a declaração do representante diplomático dos Estados Unidos em
Quito, quando do reconhecimento, em 1928, do novo regime local: “Meu governo
observou com a maior satisfação os progressos realizados pela república do Equa­
dor durante os três anos passados desde o golpe de 9 de julho de 1925, e a tranqui­
lidade que reina no país desde então. A confiança que o regime do Dr. Ayora ins­
pira na maioria dos equatorianos, sua habilidade e seu desejo de manter a ordem
na administração do país, assim como o respeito por suas obrigações internacionais,
fazem com que o governo dos Estados Unidos sinta-se feliz em conceder-lhe a
partir de hoje seu completo reconhecimento como governo legal do Equador”49.
145. Harmonização das doutrinas. Prática contemporânea.
Terá transparecido, a esta altura, a inconsistência da ideia de ver
como antinômicas as doutrinas Tobar e Estrada. A primeira diz
respeito ao fundo das coisas, enquanto a segunda é uma propo­
sição atinente tão só à forma. Prestigia simultaneamente as duas
doutrinas o Estado que valoriza a legitimidade, não se relacio­
nando com governos golpistas até quando a chamada do povo
às urnas restaure o princípio democrático, mas tampouco prati­
ca o reconhecimento formal, representado pela produção osten­
siva de um juízo de valor. Por outro lado, estaria a desprezar a
um só tempo ambas as doutrinas o Estado que se entregasse à
política das velhas proclamações de outorga ou recusa de reco­
nhecimento — como aquela que serviu de exemplo no tópico
anterior —, mas não reclamasse, como pressuposto do reconhe­
cimento, a legitimidade resultante do apoio popular, que em
regra só se traduz de modo incontestável no processo eleitoral.
Hoje pode afirmar-se, no que concerne ao fundo, que a
doutrina Tobar sofreu desgaste acentuado. Em lugar da legiti­
midade — ou da ortodoxa legitimidade, que nunca prescinde do
49. Cf. Marcel Sibert, Traité de droit international public, Paris, Dalloz, 1951, t. 1, p. 199.
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voto universal e livre, em circunstâncias que proporcionem ao
povo escolha verdadeira entre modelos e tendências políticas
— tem-se nas últimas décadas perquirido apenas a efetividade
do regime instaurado à revelia dos moldes constitucionais. Tem
ele controle sobre o território? Mantém a ordem nas ruas? Hon­
ra os tratados e demais normas de direito internacional? Recolhe
regularmente os tributos e consegue razoável índice de obediên­
cia civil? Neste caso o novo governo é efetivo e deve ser reco­
nhecido, num mundo onde a busca da legitimidade ortodoxa
talvez importasse bom número de decepções.
No que diz respeito à forma, não há a menor dúvida de que
a doutrina Estrada resultou triunfante — apesar da reticência de
tantos países em dar-lhe esse nome. A prática do pronunciamen­
to formal, outorgando ou recusando o reconhecimento de gover­
no, marcha aceleradamente para o desuso. O que se tem presen­
ciado é a ruptura de relações diplomáticas com regime que se
entenda impalatável — entretanto não guarnecida por uma de­
claração de não reconhecimento; ou a simples e silenciosa pre­
servação de tais relações, quando se entenda que isto é a melhor
escolha, ou o menor dos males.
Não surpreende que o violento golpe de Estado ocorrido no Chile em 1973
tenha comportado, como reação do governo brasileiro da época, a abstenção de
qualquer pronunciamento formal e a continuidade dos laços diplomáticos sempre
existentes entre as duas repúblicas. Mas talvez o leitor se pergunte qual terá sido a
reação de países como a França. Foi rigorosamente a mesma.
Outros países, como a União Soviética, romperam na ocasião, e de imediato,
seu relacionamento diplomático com o Chile, e em diversos foros internacionais
hostilizaram a política do novo regime. Não cogitaram, entretanto, de expedir nota
formal de recusa de reconhecimento do governo militar.
Subseção 2 — ESTADOS FEDERADOS E
TERRITÓRIOS SOB ADMINISTRAÇÃO
146. O fenômeno federativo e a unidade da soberania. Dizem270
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-se autônomas as unidades agregadas sob a bandeira de todo
Estado federal. Variam seus títulos oficiais — províncias, estados,
cantões — e varia, sobretudo, o grau de sua dependência da
união a que pertencem. É mais que notório que a autonomia dos
estados federados na Argentina ou no Brasil não tem a dimensão
daquela dos estados norte-americanos, que lhes permite, por
exemplo, determinar cada qual suas próprias normas de direito
penal e de processo. Uma verdade, entretanto, é válida para
todos os casos: autonomia não se confunde com soberania. Isso
ficou bem assentado, quando da independência norte-americana,
pelos inventores do federalismo. A propósito registra-se breve
dissenso doutrinário entre Thomas Jefferson, que entendeu pos­
sível conceber um duplo grau de soberania no complexo fede­
rativo, e Alexander Hamilton, para quem os estados federados
eram os componentes autônomos de uma soberania única, de
uma só personalidade internacional. Inexato, às vezes fantasio­
so, foi tudo quanto mais tarde se pretendeu contrapor a esse
parâmetro na sua forma original. Estados federados, exatamen­
te por admitirem sua subordinação a uma autoridade e a uma
ordem jurídica centrais, não têm personalidade jurídica de di­
reito internacional público, faltando-lhes, assim, capacidade para
exprimir voz e vontade próprias na cena internacional.
Não obstante, constituições federais como a da Alemanha e a da Suíça falam,
cada qual a seu modo, de um poder provincial para a negociação exterior. Entidades
tão palidamente autônomas quanto estados federais brasileiros já trataram, em
caráter formal, com pessoas jurídicas de direito público externo. Qual a explicação
para tudo isso?
A Constituição da República Federal da Alemanha, de 1949, concede às
unidades federadas alguma capacidade contratual voltada para o exterior (art. 32,
§ 3). Na Suíça, a carta de 1874 dá aos cantões a prerrogativa de celebrar acordos
externos sobre “economia pública, relações de vizinhança e polícia” (art. 9). A Lei
fundamental soviética de 7 de outubro de 1977 garantia às repúblicas federadas da
época o “...direito de estabelecer relações com Estados estrangeiros, com eles ce­
lebrar tratados, intercambiar representantes diplomáticos e consulares, e participar
da atividade das organizações internacionais” (art. 80). À vista de situações desse
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gênero, a Comissão do Direito Internacional havia projetado, para a conferência de
Viena sobre o direito dos tratados, um dispositivo assim concebido:
“Estados membros de uma união federal podem possuir capacidade para
concluir tratados se tal capacidade for admitida pela constituição federal, e dentro
dos limites nela indicados”.
Esse texto, que seria o § 2º do art. 5º, foi derrubado na sessão de 1969, após
debates que puseram à mostra certa indiferença dos Estados unitários pelo assunto.
À exceção do grupo soviético, as demais federações — aí incluídas a Alemanha e
a Suíça — contestaram a conveniência de que a Convenção exprimisse semelhan­
te norma. Ante a afirmação bielo-russa de que o parágrafo era “conforme com a
legislação e prática” do complexo soviético, observou o delegado brasileiro que,
no seu entender, era como Estados a título pleno, e não como estados-membros,
que as repúblicas socialistas soviéticas da Ucrânia e da Bielo-Rússia vinham exer­
citando o relacionamento internacional. Em fim de contas, “...era inconcebível que
um país que havia assinado a Carta das Nações Unidas, e participava de conferên­
cias internacionais em pé de igualdade com os demais Estados, pudesse ser consi­
derado como componente de uma união federal (...) com direitos limitados. Pro­
víncias ou unidades de uma união federal não podem ser membros de organizações
internacionais ou assinar tratados”50. O que se recolhe desse comentário é uma
ironia tendo por alvo a presença internacional da Ucrânia e da Bielo-Rússia na
época. Aquelas duas frações — do total de quinze — componentes do Estado fe­
deral soviético não tinham como se distinguir da Califórnia, da Baviera, do Mara­
nhão ou de Corrientes. A circunstancial conveniência de se atribuir peso três à voz
da União Soviética, quando da fundação das Nações Unidas, foi responsável pela
trucagem consistente em abrir, na organização, espaço para a união federal e para,
ao lado dela, dois (por que não oito, ou onze?) dos seus quinze estados-membros.
Depois desse episódio de 1945, e enquanto durou a URSS, não mais houve como
prevenir reprises da singular situação, no quadro das organizações internacionais
especializadas e nas conferências preparatórias de tratados multilaterais de grande
alcance. Significativamente, porém, a Ucrânia e a Bielo-Rússia não foram partes
no Pacto de Varsóvia, nem integraram, a título próprio, o COMECON.
147. Atuação aparente de províncias federadas no plano
internacional. Não há razão por que o direito internacional se
oponha à atitude do Estado soberano que, na conformidade de
50. Conférence des Nations Unies sur le droit des traités, A/CONF. 39/11/Add. 1;
Nova York, Nações Unidas, 1970, p. 6 a 17. O chefe da delegação brasileira, autor desses
comentários, foi o embaixador Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva.
272
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sua ordem jurídica interna, decide vestir seus componentes fe­
derados de alguma competência para atuar no plano internacio­
nal, na medida em que as outras soberanias interessadas tolerem
esse procedimento, conscientes de que, na realidade, quem res­
ponde pela província é a união federal.
Isto traz à mente, por analogia, o caso da nacionalidade. É indiferente ao
direito internacional que certos complexos federais — a Suíça e a antiga União
Soviética são exemplos conhecidos — tenham concebido uma nacionalidade “es­
tadual”, acaso disciplinada de modo variado pelas diversas províncias, mas repre­
sentativa, sempre, do vínculo jurídico primário, com repercussão automática sobre
o plano federal. Ao direito das gentes importa apenas que cada Estado soberano
estabeleça a distinção legal entre nacionais e estrangeiros, e observe certas regras
básicas pertinentes ao tratamento de uns e outros. Assim, a nacionalidade provin­cial
só tem significado na cena doméstica do Estado federal que a adota. Para todos os
efeitos externos, a união — e não a província — configura o Estado patrial, apto a
dar proteção diplomática ao indivíduo, e obrigado a recebê-lo quando indesejado
lá fora. Não há, no âmbito do direito internacional, maneira de se valorizar o vín­
culo primário entre a pessoa e a unidade federada, justo porque carente, esta, de
personalidade jurídica naquele terreno.
O Diário Oficial de 11 de junho de 1970 estampou o texto integral de um
“contrato de empréstimo” entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o
Estado de Minas Gerais, celebrado em 26 de maio daquele ano. O Banco em ques­
tão é uma organização internacional regional, de índole financeira, dotada de in­
discutida personalidade jurídica no plano do direito das gentes. Apesar do nome
que se deu a tal negócio jurídico, é difícil aceitar a ideia de que estejamos em pre­
sença de um mero contrato, à vista do que dispõe o art. VII, seção 3:
“Os direitos e obrigações estabelecidos neste Contrato são válidos e exigíveis
de acordo com os seus termos, independentemente da legislação de qualquer país,
e em consequência nem o Banco nem o Mutuário poderão alegar a ineficácia de
qualquer das estipulações contidas neste instrumento”.
Adiante, o art. VIII manda submeter à arbitragem qualquer controvérsia “que
não seja dirimida por acordo entre as partes”. Um anexo estabelece a mecânica de
composição e funcionamento do tribunal arbitral, cuja decisão, proferida ex aequo
et bono com base “nos termos do Contrato”, é apontada pelo texto como irrecorrí­
vel e imediatamente executória. O direito internacional público impregna, do início
ao fim, o compromisso. A surpresa do leitor ao ver um estado membro da federação
brasileira envolvido nesse gênero de acordo externo se desfaz, porém, à página
seguinte do Diário Oficial. Lá está, trazendo a mesma data de 26 de maio de 1970,
um “contrato de garantia” entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a
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República Federativa do Brasil, através do qual a União responde, como fiadora,
pelo exato cumprimento das obrigações então assumidas por sua unidade federada.
148. Territórios sob administração: a ONU e o sistema de
tutela. A independência, nos anos setenta, dos países africanos
a que Portugal denominara “territórios de ultramar” pôs termo,
virtualmente, a quanto de expressivo até então sobrevivera do
fenômeno colonial. A colônia propriamente dita — assim en­
tendido aquele território sujeito à soberania de um Estado que
lhe atribuísse, de modo aberto, essa qualificação — não esteve,
na história do direito das gentes, em situação muito diversa da­
quela das outras espécies de territórios dependentes a que se
desse título diverso. Sob mais de um ponto de vista pode-se
apontar certa variedade de conduta, entre as potências coloniais,
no trato de seus domínios; mas é seguro que essa variedade mais
foi determinada ao sabor do tempo, das circunstâncias, ou da
própria índole dos Estados colonizadores, que da nomenclatura
legal classificatória dos territórios dependentes. Que esses, pois,
se nomeassem colônias, províncias de ultramar, protetorados
ou estados vassalos, o quadro pouca alteração sofria. Carentes
de personalidade internacional e de competência para a livre
negociação no plano exterior, desta não participavam, ou o fa­
ziam pela voz da potência colonial. Na melhor das hipóteses,
faziam-no de voz própria, mas com o expresso e particularizado
endosso da metrópole.
No último século, à sombra das duas grandes organizações
internacionais de caráter político — a SDN e a ONU —, o di­
reito das gentes veio a conhecer a figura dos territórios sujeitos
à administração de certa soberania, nos termos de uma discipli­
na rigorosa e votada ao objetivo da descolonização. Entretanto,
apesar de sua fundamental característica, qual fosse a predisposi­
ção ao acesso à independência, os territórios administrados sob a
forma do mandato da Sociedade das Nações, ou sob a da tutela,
instituída pela Carta das Nações Unidas, foram carentes de per­
274
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sonalidade jurídica de direito internacional. Enquanto, pois, não
se realizou sua independência, a soberania lhes foi estranha.
Às potências aliadas, vitoriosas na primeira grande guerra, incumbia decidir
sobre o destino dos territórios coloniais tomados à Alemanha e ao Império Otoma­
no. Uma redistribuição colonial parecia indecorosa. Entendeu-se prematura, por
outro lado, a outorga imediata da independência. Como solução intermediária, e
no contexto da fundação da SDN, foi concebido o sistema dos mandatos: certas
potências receberam da organização o encargo de administrar aqueles territórios,
promovendo-lhes o desenvolvimento, até quando reunissem condições de acesso à
independência plena. Esta sobreveio ainda na primeira metade do século XX para
os diversos territórios sob mandato, com uma única exceção: a Namíbia, original­
mente chamada de Sudoeste Africano. Antiga colônia alemã, confiada, mediante
mandato, à África do Sul, a Namíbia enfrentou as consequências da contradição
entre o que disse a ONU — até mesmo pela voz da Corte da Haia — a seu respei­
to, e a resistência da república da África do Sul, que lhe impunha tratamento colo­
nial aberto. A Namíbia tornou-se independente em 1990.
Melhorado quanto à estrutura técnica, e rebatizado como tutela internacional,
o regime dos mandatos ressurgiria ao tempo das Nações Unidas. Neste caso, como
no anterior, a organização pactuou com Estados-membros no sentido de lhes confiar
a administração de territórios não autônomos, em nome da comunidade internacio­
nal. Sucede que, na rigorosa conformidade do que fora projetado, os territórios sob
tutela ascenderam, um por um, à independência. O último caso remanescente foi o
de Palau, uma das ilhas do Pacífico colocadas sob a tutela dos Estados Unidos, que
alcançou sua independência em 1994.
Subseção 3 — SOBERANIA E HIPOSSUFICIÊNCIA
149. O problema dos microestados. Não se nega, em princípio,
que eles sejam soberanos. Todos dispõem de um território mais
ou menos exíguo (Andorra: 468 km2, Liechtenstein: 160 km2,
São Marinho: 61 km2, Nauru: 21 km2, Mônaco: menos que 2
km2), e de uma população sempre inferior a setenta mil pessoas.
Suas instituições políticas são estáveis e seus regimes correta­
mente estruturados, ainda que vez por outra originais.
O regime republicano é o que se adota na antiquíssima São Marinho, encra­
vada em território italiano, e na jovem Nauru, uma ilha da Oceania. Mônaco — sob
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a dinastia da casa de Grimaldi — e o Liechtenstein — regido pela família de igual
nome — são principados. Andorra é um singularíssimo coprincipado não heredi­
tário: seus regentes — virtualmente simbólicos depois da reforma constitucional e
das eleições gerais de 1993 — são o presidente da França e o bispo da diocese
espanhola de Urgel.
Estados soberanos, em regra, detêm sobre seu suporte físico
— territorial e humano — a exclusividade e a plenitude das
competências. Isto quer dizer que o Estado exerce sem qualquer
concorrência sua jurisdição territorial, e faz uso de todas as com­
petências possíveis na órbita do direito público. Aí está o que
singulariza os microestados: em razão da hipossuficiência que
resulta da exiguidade de sua dimensão territorial e demográfica,
partes expressivas de sua competência são confiadas a outrem,
normalmente a um Estado vizinho, como a França, no caso de
Mônaco, a Itália, no caso de São Marinho, a Suíça, no caso do
Liechtenstein. Diversos microestados não emitem moeda: já
antes da instituição do euro o franco francês circulava em Mô­
naco e coexistia com a peseta espanhola em Andorra, enquanto
a lira italiana tinha curso em São Marinho. O franco suíço e o
dólar australiano são as moedas em curso no Liechtenstein e em
Nauru, respectivamente. A mais expressiva, entretanto, das com­
petências não exercitadas diretamente pelos microestados é a que
diz respeito à defesa nacional. Eles costumam dispor, no máximo,
de uma guarda civil com algumas dezenas de integrantes, e sua
segurança externa fica confiada àquela potência com que cada
uma dessas soberanias exíguas mantém laços singulares de co­
laboração, em geral resultantes de tratados bilaterais.
A ninguém surpreenderá, em tais circunstâncias, o fato de
que as demais soberanias vejam com alguma reticência a perso­
nalidade internacional dos microestados. Não se lhes discute a
personalidade jurídica de direito das gentes. Contudo, alguma
consequência negativa haveria de resultar não exatamente de sua
exiguidade, mas do vínculo que são forçados a manter com
certo Estado de maior vulto.
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Admitir microestados no debate igualitário em foros internacionais significa,
em certos casos, o mesmo que atribuir peso dois à voz e ao voto daquele país que
divide com cada um deles o acervo de competências. Por isso a principal restrição
que durante longo tempo lhes impôs a prática internacional foi sua inaceitabilidade
nas organizações internacionais, notadamente nas de caráter político. Mas nos anos
recentes acabaram elas — mesmo a ONU — por acolher microestados recém-in­
dependentes como as repúblicas insulares do Pacífico e do Caribe. Não fazia
grande sentido continuar resistindo ao ingresso de velhas microssoberanias como
Andorra, Liechtenstein, Mônaco e São Marinho. Todas foram admitidas na ONU
e em outras organizações universais ao longo dos anos noventa.
150. Nações em luta pela soberania. No interior de qualquer
Estado a ordem legal arrola com segurança as pessoas jurídicas
de direito público interno; dispõe sobre a configuração da per­
sonalidade jurídica de direito privado, e rege, num e noutro caso,
a capacidade de agir. No direito das gentes essa precisão não
existe. A soberania tem ainda hoje a paradoxal virtude de dar a
cada Estado o poder de determinar, por si mesmo, se lhe parecem
ou não soberanos os demais entes que, a seu redor, se arrogam
a qualidade estatal. Irrecusável, por isso, é a liberdade de que
todo Estado desfruta para, numa concepção minoritária, ou
mesmo solitária — e, ao ver dos demais, exótica —, negar a
condição de Estado ao ente que lhe pareça destituído de perso­
nalidade jurídica de direito internacional público.
A afirmação inversa não é menos verdadeira. Não há o que
impeça um Estado de reconhecer num governo exilado, numa
autoridade insurreta, num movimento de libertação, a legitimida­
de que outros Estados ali não reconhecem, e de, consequentemen­
te, manter relacionamento de índole diplomática — ainda que sob
denominação variante, por conveniência — com tal entidade.
Ocupado o território francês pelas tropas alemãs em 1940, instala-se em Vichy
um governo colaboracionista. Do território britânico, o general Charles de Gaulle
comanda, fazendo uso de emissora de rádio operante em Londres, a “França livre”
ou “França combatente”. Com este governo — e não com as autoridades de Vichy
— relacionaram-se, no curso da guerra, as nações aliadas.
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O México — e aparentemente só o México — dialogou durante anos com um
governo republicano espanhol no exílio, negando legitimidade ao regime franquis­
ta. Antes de instalar-se, com jurisdição territorial, a Autoridade Palestina, a Orga­
nização para a Libertação da Palestina manteve relacionamento diplomático com
diversos Estados — destacadamente os que não reconheciam Israel e viam todo
aquele território como pertencente à nação palestina — e relacionou-se ainda, em
nível não formalmente diplomático, com inúmeros Estados que afirmavam o direi­
to do povo palestino à autodeterminação sobre uma base territorial própria, sem
excluir a realidade do Estado de Israel e seus iguais direitos. Tal foi na época a
posição do Brasil.
151. A Santa Sé: um caso excepcional. A Santa Sé é a cúpula
governativa da Igreja Católica, instalada na cidade de Roma.
Não lhe faltam — embora muito peculiares — os elementos
conformadores da qualidade estatal: ali existe um território de
cerca de quarenta e quatro hectares, uma população que se es­
tima em menos de mil pessoas, e um governo, independente
daquele do Estado italiano ou de qualquer outro. Discute-se, não
obstante, a sua exata natureza jurídica. O argumento primário
da exiguidade territorial ou demográfica não pode ser levado a
sério; a autenticidade da independência do governo encabeçado
pelo Papa, por sua vez, paira acima de toda dúvida. Mas a ne­
gativa da condição estatal da Santa Sé parece convincente quan­
do apoiada no argumento teleológico. Os fins para os quais se
orienta a Santa Sé, enquanto governo da Igreja, não são do mol­
de dos objetivos padronizados de todo Estado. Além disso, é
importante lembrar que a Santa Sé não possui uma dimensão
pessoal, não possui nacionais. Os integrantes de seu elemento
demográfico preservam os laços patriais de origem, continuan­
do a ser poloneses, italianos, suíços e outros tantos. O vínculo
dessas pessoas com o Estado da Cidade do Vaticano — tal é seu
nome oficial, hoje alternativo — não é, pois, a nacionalidade; e
lembra em certa medida o vínculo funcional que existe entre as
organizações internacionais e seu pessoal administrativo.
De todo modo, é amplo o reconhecimento de que a Santa
Sé, apesar de não se identificar com os Estados comuns, possui,
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por legado histórico, personalidade jurídica de direito interna­
cional.
Até que a campanha da unidade italiana determinasse, em 20 de setembro de
1870, a tomada dos territórios pontifícios pelas tropas de Vítor Emanuel II, o Papa
efetivamente acumulava duas funções distintas: a de chefe da Igreja Católica e a
de soberano temporal de um Estado semelhante aos outros — e não caracterizado
como exíguo, do ponto de vista territorial. O fato traumático não lhe subtraiu a li­
derança religiosa, mas suprimiu as bases físicas da soberania pontifícia. Nesse
sentido, o governo italiano promulgou a lei das garantias, de 13 de maio de 1871,
reconhecendo a inviolabilidade do Papa, seu estatuto jurídico equiparado ao do rei
da Itália e seu direito de legação e relacionamento internacional. Garantiu-se-lhe
ainda a posse — não a propriedade — das edificações do Vaticano. O firme protes­
to da Santa Sé daria então origem a um desentendimento somente extinto no pon­
tificado de Pio XI, reinando Vítor Emanuel III e sendo primeiro-ministro Benito
Mussolini. Ao cabo de quase três anos de negociação bilateral, os acordos de Latrão
(uma concordata, um tratado político e uma convenção financeira) foram firmados
em Roma, em 11 de fevereiro de 1929. Nesse contexto, de par com a reafirmação,
ampliada, das garantias de 1871, a Santa Sé teve reconhecidas a propriedade de
certos imóveis dispersos — entre esses o Castel-Gandolfo —, e plena soberania
nos quarenta e quatro hectares da colina vaticana. A essa área o tratado político de
Latrão denomina Estado da Cidade do Vaticano (art. 26), um nome de escasso
emprego na prática do direito internacional. O regime jurídico da Santa Sé, do
ponto de vista do Estado italiano, não sofreria alterações posteriores a 1929: a
Constituição republicana de 1947 o confirmou de modo expresso (art. 7).
No plano do direito das gentes a Santa Sé exerce seu poder contratual cele­
brando não apenas concordatas — espécie original de compromisso, cujo tema são
as relações entre a Igreja Católica e o Estado —, mas outros tratados bilaterais,
como o acordo político e a convenção financeira de Latrão. Mesmo Estados então
socialistas — a Hungria em 15 de setembro de 1964, a Iugoslávia em 25 de junho
de 1966 — deram-se à negociação bilateral com o governo pontifício. A Santa Sé
marcou presença, ainda, em muitas tratativas multilaterais caracterizadas pela te­
mática humanitária ou, em todo caso, pela despolitização. Ela é parte nas Conven­
ções de Viena sobre relações diplomáticas e consulares, de 1961-1963, e na Con­
venção de 1969, também de Viena, sobre o direito dos tratados.
Quando se entenda de afirmar, à luz do elemento teleológi­
co e da falta de nacionais, que a Santa Sé não é um Estado, será
preciso concluir — ante a evidência de que ela tampouco con­
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figura uma organização internacional — que ali temos um caso
único de personalidade internacional anômala. A pretensa de­
tecção de fenômeno semelhante noutras entidades — a Ordem
de Malta, em especial — não tem fundamento.
A Soberana Ordem Militar de Malta teve origem, com o nome de Ordem de
São João Batista, num hospital e albergue para peregrinos, instalado em Jerusalém,
no século XI. Marcada desde o início pelo ideal humanitário, a Ordem se transferiu
sucessivamente para São João d’Acre, no litoral norte da Palestina, e para as ilhas
de Chipre (1291) e de Rodes (1310). Em 1530, expulsa de Rodes por Solimão II,
a Ordem se instala na ilha de Malta, cedida por Carlos V, e ali permanece até que,
em 1798, o então general Bonaparte, a caminho do Egito, decide tomar o território51.
Muitos anos mais tarde a Ordem benemerente, guardando agora o nome da última
ilha ocupada, reaparece em Roma, de certo modo à sombra da Santa Sé.
A Ordem de Malta nada tem que a assemelhe a um Estado, e a nenhum títu­
lo ostenta, à análise objetiva, a personalidade jurídica de direito das gentes. Sua
presença em certas conferências internacionais se dá sob o estatuto de entidade
observadora. A ordem não é parte em tratados multilaterais, e o Estado que por­
ventura haja com ela pactuado, bilateralmente, terá apenas exemplificado aquele
arbítrio conceitual inerente à soberania. O principal elemento gerador de equívocos,
quanto ao estatuto jurídico da Ordem de Malta, consiste naquilo que Accioly qua­
lificou como “...as pseudorrelações diplomáticas por ela mantidas...” com algumas
nações soberanas, entre as quais o Brasil52.
Seção VII — MEIO AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO
152. Atualidade das normas. Na administração de seu próprio
território e em quanto faz ou deixa que se faça nos espaços co­
51. Expulsos os cavaleiros da Ordem, as tropas francesas são hostilizadas pela popu­
lação nativa — de origem cartaginesa e fenícia — e finalmente repelidas, logo ao romper
do século XIX, com a ajuda dos ingleses, que então se instalam para uma longa permanên­
cia. Malta, a ilha, torna-se uma república independente em 1964, e ingressa na União Euro­
peia em 2004.
52. Accioly, I, p. 108. V. também Alfred Verdross, Derecho internacional público,
trad. A. Truyol y Serra, Madri, Aguilar, 1969, p. 154-155.
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muns, o Estado subordina-se a normas convencionais, de elabo­
ração recente e quase sempre multilateral, a propósito do meio
ambiente. A gênese dessas normas justificou-se antes de tudo
na interdependência: o dano ambiental devido à negligência ou
à defeituosa política de determinado Estado tende de modo
crescente a repercutir sobre outros, não raro sobre o inteiro con­
junto, e todos têm a ganhar com algum planejamento comum.
De outro lado essas normas prestigiam um daqueles direitos
humanos de terceira geração53, o direito a um meio ambiente
saudável.
Tais como as normas hoje vigentes no plano internacional
sobre economia e desenvolvimento — que também respondem,
em certa medida, a um direito humano de terceira geração —,
as normas ambientais têm um tom frequente de “diretrizes de
comportamento” mais que de “obrigações estritas de resulta­
do”54, configurando desse modo aquilo que alguns chamaram
de soft law.
Preocupações tópicas nesse domínio não são exatamente
uma novidade. Alguns tratados e decisões arbitrais, desde o final
do século XIX, têm clara índole preservacionista (primeiro de
espécies da fauna, mais tarde da flora e dos rios). Nos anos cin­
quenta esse direito esparso ocupou-se de prevenir certas formas
de poluição já na época alarmantes, como as que resultavam de
indústrias químicas e mecânicas e de atividades nucleares. A
globalização do trato da matéria ambiental deu-se na grande
Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente (Esto­
colmo, 1972), cujo produto foram algumas dezenas de resoluções
e recomendações, além do principal: uma Declaração de prin­
cípios que materializava as “convicções comuns” dos Estados
participantes. O ideal da conjugação harmônica do desenvolvi­
53. V. retro o § 135.
54. Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier, Mathias Forteau e Alain Pellet, Droit inter­
national public, 8. ed., Paris, LGDJ, 2010, p. 1429.
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mento com a preservação ambiental marca presença nos princí­
pios de Estocolmo. Esse binômio ganharia vitalidade nos anos
que sobrevieram e que conduziram à grande conferência do Rio
de Janeiro.
Em traços muito sumários, o binômio resultava de uma justificada resistência
dos países em desenvolvimento a que o tema ambiental fosse tratado de modo
singular, como se todos os povos, havendo já prosperado, pudessem entregar-se
com igual fervor aos cuidados do meio ambiente. Reconhecendo implicitamente
as próprias culpas por quanto havia custado à saúde do planeta sua prosperidade,
os países pós-industriais não se opuseram a essa forma de tratamento da matéria.
No Rio de Janeiro, em junho de 1992, reuniu-se a Conferên­
cia das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento.
A importância reconhecida a esse empenho da sociedade inter­
nacional ficou patente na presença de cento e setenta e oito de­
legações nacionais, cento e dezessete delas encabeçadas pelo
próprio chefe de Estado ou de governo. Da conferência resultaram
duas convenções (sobre mudanças climáticas e diversidade bio­
lógica), duas declarações (uma geral, outra sobre florestas) e um
amplo plano de ação que se chamou de Agenda 21. Esses três
últimos textos não pretenderam ter natureza obrigatória, e o que
se passou nos anos seguintes não foi animador. Cinco anos mais
tarde a Assembleia Geral da ONU formalmente “constatou e
deplorou” o atraso na implementação incipiente da Agenda 21.
153. Matrizes do direito ambiental. Antes de mais nada, a
tônica das normas e diretrizes que se consolidaram no Rio de
Janeiro assenta no binômio já referido: não se deve buscar o
desenvolvimento à custa do sacrifício ambiental, até porque ele
assim não será durável; mas é injusto e tendencioso pretender
que a preservação ambiental opere como um entrave ao desen­
volvimento das nações pobres ou das que ainda não o alcançaram
por inteiro. Conciliados os dois valores, chega-se ao conceito de
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desenvolvimento sustentável: aquele que não sacrifica seu próprio
cenário, aquele que não compromete suas próprias condições de
durabilidade. É dos Estados a responsabilidade maior pela bus­
ca do desenvolvimento preservacionista. Tanto significa dizer
que os executores principais desse novo direito seguem sendo
as personalidades originárias do direito das gentes. Não houve,
por parte daquelas, uma abdicação que chame à frente da cena
a comunidade científica ou as organizações não governamentais,
embora seja este provavelmente o domínio de que mais inten­
samente participam esses atores privados, e um dos domínios de
maior interesse da opinião pública. As responsabilidades estatais
são diferenciadas em função dos recursos de cada Estado, do
seu grau de desenvolvimento, do seu patri­mônio ecológico, do
seu potencial poluente. Os textos do Rio de Janeiro destacam os
deveres de prevenção, de precaução e de cooperação interna­
cional, e enfatizam os direitos das gerações futuras, que não
deveriam ser sacrificados em favor de um desenvolvimento a
qualquer preço neste momento da história.
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Capítulo II
ORGANIZAÇÕES
INTERNACIONAIS
154. Introdução. Alguns milênios separam, no tempo, o Estado
e a organização internacional. Do primeiro, um esboço de teoria
geral se poderia conceber na antiguidade clássica. A segunda é
um fenômeno do último século, é matéria talvez ainda não se­
dimentada o bastante para permitir segura compreensão cientí­
fica. Não fica aí, porém, a diferença entre essas duas formas de
personalidade em direito internacional público. Paul Reuter, um
dos mais lúcidos analistas do fenômeno organiza­cional, costu­
mava observar que as desigualdades quantitativas reinantes
entre os Estados — no que concerne à extensão terri­torial, à
dimensão demo­gráfica, aos recursos econômicos — não obscu­
recem sua fundamental igualdade qualitativa: da Dinamarca à
Mauritânia, do Luxemburgo à China, os objetivos do Estado são
sempre os mesmos, e têm por sumário a paz, a segurança, o
desenvolvimento integral de determinada comunidade de seres
humanos. Já no caso das organizações internacionais, as desi­
gualdades reinam em ambos os terrenos: são quantitativas, por
conta da diversidade do alcance geográfico, do quadro de pes­
soal ou do orçamento; mas são sobretudo qualitativas, porque
não visam, as organizações, a uma finalidade comum. Seus
objetivos variam, com efeito, entre a suprema ambição de uma
ONU — manter a paz entre os povos, preservar-lhes a seguran­
ça, e fomentar, por acréscimo, seu desenvolvimento harmônico
— e o modestíssimo desígnio de uma UPU, consistente apenas
em ordenar o trânsito postal extrafronteiras. Como assinalou
certa vez o próprio Reuter, é extraordinária a heteroge­neidade
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dos entes que se podem designar pelo termo organizações in­
ternacionais1.
E isto sucede, note-se bem, no estrito domínio das organizações internacionais
propriamente ditas — organizações criadas e integradas por Estados, e por eles
dotadas de personalidade própria em direito das gentes. Para o reconhecimento da
heterogeneidade em causa não é preciso que se resvale rumo ao domínio dos orga­
nismos internacionais — essa miraculosa expressão concebida para socorrer-nos
quando não sabemos exatamente de que estamos falando: se de uma verdadeira
organização internacional, como a UNESCO ou a OACI; se de um órgão compo­
nente de organização internacional, como o UNICEF ou a Corte Internacional de
Justiça; se de uma personalidade de direito interno, cuja projeção internacional não
tenha exato contorno jurídico, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha; se
de um mero tratado multilateral, cujo complexo mecanismo de vigência produza
a ilusão da personalidade, como o GATT; ou ainda — extrema impertinência — se
de uma associação internacional de empresas, situada à margem do direito das
gentes, como a IATA.
Há também o caso original das empresas instituídas por compromisso entre
Estados, qual a companhia aérea Scandinavian Airlines System, a empresa admi­
nistradora do túnel sob o Mont Blanc e, em nossa área, a Itaipu Binacional. Me­
diante tratado de 1973 Brasil e Paraguai fundaram a entidade destinada a construir,
para depois administrar, a mais potente hidrelétrica do seu tempo. Proveram-na de
capitais públicos e lhe conferiram personalidade jurídica de direito privado — se­
gundo o modelo das chamadas “modernas empresas públicas”. Em princípio, toda
pessoa jurídica encontra sua legitimidade e sua regência numa determinada ordem
jurídica: a ordem internacional no caso dos Estados e organizações, a ordem na­
cional de certo Estado no caso das pessoas de direito público interno e de direito
privado. O que singulariza Itaipu, ao lado daquelas outras citadas e de algumas
mais, é seu embasamento não em uma, mas simultaneamente em duas ou mais
ordens jurídicas domésticas. Itaipu é, com efeito, uma pessoa jurídica de direito
privado binacional. As leis paraguaias e as leis brasileiras orientam alternadamen­
te suas relações jurídicas (conforme, por exemplo, a nacionalidade ou o domicílio
da outra parte), e os juízes de um e outro dos dois países podem conhecer, à luz de
semelhantes critérios, do eventual litígio.
A natureza jurídica de Itaipu é, pois, essencialmente diversa daquela das or­
ganizações internacionais. Não obstante, a empresa recolhe apreciável benefício
do fato de resultar da conjugação de duas vontades soberanas, e de ter sido, assim,
instituída por tratado. Itaipu não está sujeita aos transtornos que se podem abater
1. Paul Reuter, Observações sobre o projeto Dupuy; A. Inst. (1973), v. 55, p. 396.
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sobre toda empresa (e, com maior naturalidade ainda, sobre empresas estatais) por
força das decisões do poder público. Nem ao Brasil nem ao Paraguai é facultado
esquecer a base convencional, assentada em direito das gentes, sobre a qual um dia
os dois países construíram o estatuto da empresa. Ela não se encontra sujeita, por
exemplo, a uma medida expropriatória paraguaia ou a uma interdição unilateral
brasileira. Itaipu esteve à margem do congelamento de ativos financeiros que al­
cançou, no Brasil, em março de 1990, as pessoas naturais e as empresas em geral,
mesmo estrangeiras.
LEITURA
Parecer do autor sobre matéria em curso no foro brasileiro, em fevereiro de
2009:
“Itaipu Binacional. Regime trabalhista disciplinado por tratados bilaterais
vigentes entre) o Brasil e o Paraguai. Prevalência dos tratados internacionais
sobre normas ordinárias de direito interno. Entendimento da Constituição Fede­
ral. A norma internacional à luz da sistemática constitucional do Brasil contem­
porâneo. O princípio da especialidade. Hipótese em que a quebra do tratado pela
Justiça brasileira afrontaria, ademais, o preceito constitucional da isonomia re­
tributiva do trabalho.
[...] Tanto o Tribunal Regional como o Tribunal Superior do Trabalho
entenderam em certo feito que, para estabelecer a forma de pagamento do
adicional de periculosidade devido a empregados da Itaipu Binacional, aplicam-se determinadas normas de higiene e segurança do trabalho expressas na CLT,
não obstante o que preceituam tratados internacionais vigentes entre o Brasil
e o Paraguai, disciplinando a matéria de maneira diversa.
Entendeu o Tribunal Regional que as normas da CLT são de ordem pú­
blica, não sendo possível afastar sua aplicabilidade nem mesmo por força de
normas internacionais, pois vigora no âmbito trabalhista o princípio da regra
mais favorável ao trabalhador, no caso a lei interna trabalhista. A decisão foi
confirmada pelo Tribunal Superior do Trabalho, em sede de embargos de de­
claração no recurso de revista, ao entendimento de que ‘no Direito do Trabalho
brasileiro ainda prevalece a teoria da norma mais favorável, tal como procedeu
o Tribunal Regional’, afastada, por fim, a chamada teoria do conglobamento.
Itaipu Binacional é uma empresa emergente do direito internacional
público, resultante de tratado concluído entre dois Estados soberanos, Brasil e
Paraguai, em 26 de abril de 1973. Esse tratado foi aprovado pelo Congresso
Nacional com o Decreto Legislativo n. 23, de 23 de maio de 1973, e promul­
gado pelo Decreto n. 72.707, de 28 de agosto de 1973, no mais rigoroso molde
da lei fundamental, que a propósito não mudou substancialmente desde a Car­
ta da primeira república, de 1891.
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Uma vez mais no exato molde da Constituição, as duas nações soberanas
celebraram o Protocolo de 11 de fevereiro de 1974, aprovado no Brasil pelo
Decreto Legislativo n. 40, de 14 de maio de 1974, e promulgado pelo Decreto
n. 74.431, de 19 de agosto de 1974. Esse novo tratado já fora anunciado pelo
artigo XVIII do tratado anterior, que o destinara a reger as relações entre a
Itaipu Binacional e seus empregados diretos.
Entende a Itaipu Binacional que o Protocolo de 1974 é formalmente um
tratado internacional, tendo força de lei e prevalecendo sobre qualquer norma
ordinária de direito interno, quando menos à luz do princípio lex specialis
derogat generali, se não por força da sistemática constitucional que privilegia
os compromissos externos da República em matéria de direitos e garantias.
Pondera a empresa que o Protocolo (artigo 4º c/c artigo 6º) exclui a aplicação
da lei interna, brasileira ou paraguaia, em matéria de higiene e segurança do
trabalho. Destaca enfim que o Protocolo é lei especial, que não se poderia
entender modificada por normas gerais de produção legislativa brasileira sobre
o adicional de periculosidade por risco elétrico.
O que me parece evidente neste caso é um erro elementar de análise ju­
rídica, fundado na manipulação da nomenclatura. O Tribunal Regional preten­
deu amesquinhar a dimensão normativa do tratado de 1974 em razão única de
as partes o haverem denominado protocolo. A validade desse compromisso
internacional da República, vestido de todas as características de um tratado
em sentido estrito, não é entretanto diversa, nem difere ele, em sua natureza
jurídica, da Carta das Nações Unidas ou da Constituição da Organização In­
ternacional do Trabalho. Nem mesmo se pode trazer à mesa, dentro dos limites
do caso em exame, a questão, aqui impertinente, de saber se possuem igual
estatura os tratados internacionais executivos, assim chamados aqueles que o
governo conclui sem ouvir o Congresso, por conta da presunção, quase sempre
bem fundada, de que o Congresso já os aprovou por antecipação ao confirmar
um tratado anterior, de que o outro seria subproduto anunciado. Tudo quanto
veio à mesa do Judiciário na presente controvérsia foram normas de direito
internacional produzidas por esta soberania, em entendimento com outra nação
não menos soberana, no rigoroso molde constitucional — repita-se — dos
tratados em sentido estrito. O protocolo é assim um tratado internacional, e o
é em sentido estrito, visto que submetido nas duas Repúblicas que o negociaram
à aprovação parlamentar e à confirmação definitiva das vontades nacionais pela
voz dos respectivos governos. O Protocolo de 1974 sobre as relações entre a
Itaipu Binacional e seus empregados diretos é parte da ordem jurídica que ao
Judiciário de ambas as nações incumbe observar e fazer valer.
[...] O Supremo Tribunal Federal de longa data tem reconhecido que a
hipótese de concorrência entre tratado e lei, ainda que mais recente esta última,
resolve-se em favor da aplicação do tratado sempre que este possa representar,
ante certo quadro de fato, a lex specialis, por contraste com a norma geral es­
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tampada na lei interna. Esse preceito pretoriano, fundado em um dos mais
elementares princípios da lógica jurídica, vale sempre que o tratado governe
nosso procedimento em relação a determinada soberania ou conjunto de so­
beranias estrangeiras com que tenha o Brasil pactuado sobre matéria discipli­
nada de modo diverso no contexto das normas gerais — e infraconstitucionais
— de produção interna. A República fica internacionalmente em falta ao pre­
terir o tratado que a obriga ante outras nações em favor de um diploma interno
resultante da abstração, pelo legislador doméstico, de nossos compromissos
internacionais em vigor. Impor-se-ia, em tais circunstâncias, a denúncia do
tratado — com a eventual reparação de danos porventura resultantes de seu
descumprimento temporário.
A prevalência do tratado internacional enquanto lex specialis foi afirma­
da pelo Supremo Tribunal Federal em bom número de casos de extradição,
ficando claro que, quando a relação extradicional do Brasil com o Estado re­
querente é governada por tratado, o preceito deste prevalece sempre sobre o da
lei geral da extradição — o Estatuto do Estrangeiro — , pouco importando que
isso casualmente crie uma situação mais favorável ao extraditando, e portanto
menos favorável aos interesses do próprio Estado que o reclama. Naquela Casa
foram muitos os juízes a proclamar, sempre com o assentimento de todos os
seus pares, que o tratado bilateral de extradição, por sua especificidade, prima
sobre as normas internas regentes da matéria, independentemente da cronolo­
gia de sua vigência. Mediante idêntica equação jurídica o Supremo deixou
claro que o princípio do primado da lex specialis seria por si mesmo bastante
para assegurar a preterição da norma geral de produção doméstica e a conse­
quente aplicação do disposto no tratado. Em junho de 1950, julgando embargos
em apelação cível, o Ministro Lafayette de Andrada invocava lições de Oro­
simbo Nonato e citava Hannemann Guimarães:
‘Os tratados são interpretados de acordo com sua própria finalidade, e
não em conformidade com as disposições legais restritivas do país contratan­
te. O tratado é lei especial, cuja aplicação não deve ficar subordinada à lei
geral de cada país, se teve aquele por objeto excluir essa lei geral’ (Apelação
Cível 9.583, do Rio Grande do Sul, relator o Ministro Lafayette de Andrada,
Tribunal Pleno em 22 de junho de 1950).
A Itaipu Binacional sempre pagou o percentual relativo à periculosidade
à luz da disciplina prescrita pelos compromissos bilaterais vigentes entre o
Brasil e o Paraguai, aí incluídos o tratado de 1973 e todos os demais acordos
que lhe deram estatuto, e cuja perfeita constitucionalidade nunca foi posta em
causa. Isso tem ocorrido, ademais, nos precisos termos do acordo coletivo de
trabalho celebrado entre Itaipu Binacional e os sindicatos reclamantes, entre
outros. A cláusula 48 do acordo coletivo dispõe especificamente sobre o adi­
cional de periculosidade por risco elétrico, determinando que seja concedido
‘conforme a regulamentação pertinente da Entidade’.
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O compromisso internacional aqui examinado dispõe sobre direitos tan­
to de trabalhadores brasileiros como de trabalhadores paraguaios que laboram
na mesma empresa. O tratado equaciona a questão de contar Itaipu com em­
pregados das duas diferentes nacionalidades desempenhando as mesmas funções
para o mesmo empregador. Essa disciplina visa justamente a evitar que duas
legislações domésticas pretendam reger diversamente, em função da naciona­
lidade, trabalhadores que prestam à empresa idêntico serviço, e cujo estatuto
funcional é rigorosamente o mesmo. Se a Justiça do Brasil entende de violar
as normas convencionais do estatuto de Itaipu para aplicar, casuisticamente,
normas de produção interna, a pretexto de que mais favoráveis ao trabalhador
que lhe bate às portas, isso significa não apenas induzir o Brasil em ato ilícito
perante o Estado copactuante — a República do Paraguai, que, recorde-se, é
quem arca com metade dos custos da empresa binacional — , mas ainda afron­
tar, por força das consequências dessa opção, o princípio constitucional da
isonomia retributiva. Esse princípio não é apenas de ordem pública: ele se
inscreve historicamente na Constituição do Brasil e em todas as declarações
de direitos que no plano internacional se promulgaram ao longo do século XX.
No quadro da criação de Itaipu Binacional nenhuma das duas soberanias
pactuantes colocou-se em posição de prevalência sobre a outra. Não se há de
conferir à lei interna de qualquer dos dois países, porque aplicada ao litígio
concreto por seus juízes, a virtude de prevalecer sobre o que foi ditado como
disciplina da relação de trabalho pela comunhão de vontades soberanas. A
Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, ao codificar em 1969 normas
consuetudinárias secularmente reconhecidas pela comunidade internacional,
lembrou que ‘uma parte não pode invocar as disposições de seu direito inter­
no como justificativa para o inadimplemento de um tratado’ (artigo 27). A
Convenção recorda ainda que o respeito pelos tratados internacionais é princí­
pio rudimentar do direito das gentes. Os tratados obrigam as partes à base de
seu consentimento soberano, e devem ser cumpridos de boa-fé, tão inteiramen­
te quanto neles se contém. Este o conteúdo do princípio pacta sunt servanda.
E o Protocolo de 1974 determina:
‘Artigo 4º. As autoridades das Altas Partes Contratantes, competentes
em matéria de higiene e segurança do trabalho, celebrarão acordo comple­
mentar sobre o assunto, do qual constarão: a) a fixação de adicionais de
vinte a quarenta por cento sobre o valor do salário-hora normal para o tra­
balho prestado em condições insalubres e de trinta por cento para o prestado
em contato permanente com inflamáveis e explosivos, não admitida a acumu­
lação desses acréscimos; e b) a constituição de comissões de prevenção de
acidentes do trabalho’.
O Tribunal Superior do Trabalho, órgão de cúpula da justiça especializa­
da, já ensinou que a análise de normas jurídicas em aparente concorrência há
de fazer-se mediante a correta compreensão do conjunto, de modo a evitar que
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se produzam hibridismos extravagantes. Essas lições dão conta de que na
apuração da norma mais favorável não se podem operar decomposições e
junções de elementos diversos. Os textos legais em pretendida concorrência
devem ser encarados na sua inteireza e as normas hão de observar-se em seu
conjunto, para que se evite a aplicação cumulativa de estatutos diferentes. Algo
assim já foi decidido pelo Tribunal Superior do Trabalho, sob a relatoria do
eminente Ministro Francisco Fausto, em processo envolvente da própria Itaipu
Binacional:
‘Hidrelétrica Itaipu – Protocolo Adicional do Tratado de Itaipu. Decre­
to n. 75.242/75 – O Decreto n. 75.242/75 dispõe sobre a aprovação do Proto­
colo Adicional que trata da relação de trabalho e previdência social. A hipó­
tese é de Tratado Internacional, fonte formal de direito interno. O Decreto n.
75.242/75 é, então, lei no sentido material. A indicação de ofensa a seu texto
possibilita a revista trabalhista, nos termos do artigo 896, alínea ‘c’, da CLT.
Se for dado ao judiciário o poder de destacar normas da CLT e do tratado
Binacional de Itaipu, para dispor sobre regência trabalhista específica, ficaria
possibilitada a criação de um terceiro regime’ (TST SDI-I – ERR 172.970/1995).
Com efeito, a teoria da incindibilidade ou do conglobamento leva em
conta a norma mais benéfica em seu contexto, e não admite que se destaque
algum preceito tópico e avulso da CLT ou de outro diploma legislativo interno
para aplicá-lo a trabalhadores regidos por uma disciplina internacional que a
propósito não é omissa. É de inteira pertinência a teoria do conglobamento,
com que se evita o fracionamento de preceitos expressos em diferentes roteiros
normativos, partindo-se para a consideração dos regimes concorrentes sem
quebra da respectiva integridade.
Preceitos de ordem pública são, em toda ordem jurídica, aqueles que
— independentemente de seu nível hierárquico — limitam a liberdade contra­
tual dos particulares. A legislação trabalhista, no Brasil e alhures, é rica em
preceitos dessa natureza, o que se explica pela preocupação do legislador com
a presumida desigualdade de forças à mesa onde se celebram contratos de
trabalho. Não se sabe, entretanto, de onde terá sido tirada a ideia de que um
preceito de ordem pública, quando expresso em legislação ordinária, possa
limitar a liberdade do próprio legislador para prosseguir legislando, acaso de
modo diverso; ou possa limitar a liberdade do Estado soberano para pactuar
com outras soberanias, em plano bilateral ou coletivo, editando normas de
direito internacional porventura aplicáveis a tratativas entre particulares, e que
podem igualmente ostentar a marca da ordem pública. É inconcebível que se
invoque a ordem pública jacente em normas domésticas sobre segurança do
trabalho para invalidar com isso a disciplina internacional de Itaipu, como se
aquelas normas castrassem, de algum modo, a liberdade soberana do Estado
brasileiro para, em tratado internacional, editar disciplina diversificada para
uma situação singular. A República do Paraguai também consagra o conceito
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de ordem pública, e sugestivamente o faz no seu Código Civil, cujo artigo 9ª
assim dispõe:
‘Los actos jurídicos no pueden dejar sin efecto las leyes en cuya obser­
vancia estén interesados el orden público o las buenas costumbres’.
Não se tem notícia de que a Justiça daquele país, parceiro do Brasil no
Tratado de Itaipu, haja utilizado o argumento da ordem pública ou de eventuais
preceitos mais favoráveis de sua lei doméstica para violar as normas que regem
a empresa binacional, impondo-lhe encargos que afinal seriam suportados em
parte pelo Brasil.
Parece haver-se desprezado no caso presente a disciplina internacional
de Itaipu em favor de uma aplicação tópica da CLT, ao argumento de que é
direito constitucional dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao
trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. Nada existe no
regime jurídico de Itaipu que contrarie esse preceito constitucional, tudo se
resumindo em especificidades capilares onde aquela disciplina difere da dis­
ciplina doméstica. Deu-se, por outro lado, uma olímpica abstração do texto da
Constituição da República quando este, ao tratar dos direitos e garantias fun­
damentais, valoriza o princípio da isonomia salarial. A Declaração Universal
dos Direitos Humanos, aclamada em 1948, é um monumento normativo das
Nações Unidas e enaltece, no seu conciso rol de direitos elementares, o da
igualdade retributiva do trabalho humano:
‘Artigo XXIII. 2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito
a igual remuneração por igual trabalho’.
O Protocolo brasileiro-paraguaio de 1974, que rege as relações entre a
Itaipu Binacional e seus empregados diretos, é um tratado internacional em
sentido estrito, de hierarquia não inferior àquela de qualquer outro tratado in­
ternacional que obrigue presentemente a República. Ainda que unicamente à
base do princípio da especialidade, e sem recurso ao privilégio que os parágra­
fos do artigo quinto da Constituição de 1988 conferem aos tratados internacio­
nais assecuratórios de direitos e garantias, a disciplina de Itaipu Binacional
prevalece sobre qualquer norma concorrente de produção interna, brasileira ou
paraguaia, a tanto conduzindo a doutrina consagrada nas últimas décadas pelo
Supremo Tribunal Federal. Preceitos internos e ordinários de ordem pública
limitam a liberdade contratual dos particulares, não a do próprio legislador
ordinário, menos ainda a do constituinte, não a do Estado brasileiro, para ela­
borar normas internas, ou para produzir, em associação com outras soberanias,
o direito internacional. A fiel aplicação de um regime jurídico que comprome­
te internacionalmente a República não é uma opção, mas um dever dos poderes
do Estado brasileiro, sem exclusão do Judiciário”.
Este capítulo propõe, em sua primeira seção, uma sumária
teoria geral das organizações internacionais. A seção seguinte é
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um ensaio classificatório, com alguma informação histórica
sobre determinadas organizações.
Seção I — TEORIA GERAL
155. Personalidade jurídica. A atribuição de personalidade
jurídica de direito das gentes, em termos expressos, é algo ale­
atório no texto dos tratados constitutivos de organizações inter­
nacionais.
Exemplo pioneiro, encontrável em meio aos tratados institucionais de maior
importância: o art. 39 da Constituição da OIT, que data de 1919 (“A Organização
Internacional do Trabalho deve possuir personalidade jurídica; ela tem, especial­
mente, capacidade (a) de contratar, (b) de adquirir bens móveis e imóveis, e de
dispor desses bens, (c) de estar em juízo”).
Paul Reuter, atento à fase incipiente em que se encontrava
a formulação de uma teoria geral das organizações internacio­
nais, insistia em que a personalidade jurídica de direito das
gentes não é a fonte da competência da organização, mas seu
resultado2. Se os pactuantes — ainda que despreocupados de
lavrar um dispositivo do gênero do art. 39 da Constituição da
OIT — definem os órgãos da entidade projetada, assinalando-lhes competências próprias a revelar autonomia em relação à
individualidade dos Estados-membros, então, a partir da per­
cepção dessa estrutura orgânica, e a partir, sobretudo, da aná­
lise dessas competências, será possível afirmar que o tratado
efetivamente deu origem a uma nova personalidade jurídica de
direito internacional público. A competência da organização
para celebrar tratados em seu próprio nome é de todas a mais
expressiva como elemento indicativo da personalidade. Tanto
2. Paul Reuter, Droit international public, Paris, PUF, 1963, p. 126-127.
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isso é certo que sua dispensabilidade teórica — vale dizer, a
possibilidade da existência de uma organização internacional
autêntica, mas não provida de poder convencional — foi alvo
de alguma contestação. Segundo o projeto Dupuy, de 1973,
devem entender-se como organizações internacionais apenas
“...aquelas que, em virtude de seu estatuto jurídico, têm capa­
cidade de concluir acordos internacionais no exercício de suas
funções e para a realização de seu objeto”3.
156. Órgãos. Dois órgãos, pelo menos, têm parecido indispen­
sáveis na estrutura de toda organização internacional, indepen­
dentemente de seu alcance e finalidade: uma assembleia geral
— onde todos os Estados-membros tenham voz e voto, em con­
dições igualitárias, e que configure o centro de uma possível
competência “legislativa” da entidade — e uma secretaria, órgão
de administração, de funcionamento permanente, integrado por
servidores neutros em relação à política dos Estados-membros
— particularmente à de seus próprios Estados patriais. A assem­
bleia geral não é permanente: ela se reúne, de ordinário, uma
vez por ano, e pode ser convocada em caráter excepcional, quan­
do o exigem as circunstâncias. Na assembleia têm assento re­
presentantes dos Estados membros da organização. Na secreta­
ria, as pessoas se neutralizam enquanto duram seus mandatos
— o do secretário-geral ou diretor-geral, os dos altos funcioná­
rios administrativos e até mesmo aqueles do pessoal subalterno.
Há nas organizações internacionais, na hora presente, forte ten­
dência a prestigiar o mérito no recrutamento de seus servidores
neutros — apesar de naturais injunções políticas no que concer­
ne à formação do escalão superior, e também de uma certa
partilha numérica de postos, de tal modo que nenhum Estado-membro seja especialmente favorecido ou descartado.
3. René-Jean Dupuy, Projet d’articles sur le droit des accords conclus par les organi­
sations internationales; A. Inst. (1973), v. 55, p. 380.
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Outro órgão encontrável nas organizações de vocação polí­
tica é um conselho permanente — cujo funcionamento, como
transparece do nome, é ininterrupto, e que tende a exercer com­
petência executiva, notadamente em situações de urgência.
Quando esse conselho permanente se compõe de representantes
de todos os Estados membros da organização (qual sucede na
OEA), ele reproduz, politicamente, o perfil da assembleia geral,
dela se diferenciando pelo fato da constância de seu funciona­
mento e por uma pauta própria de competências. O modelo al­
ternativo é aquele em que o conselho se compõe de representan­
tes de alguns Estados membros da organização, eleitos pela
assembleia geral por prazo certo, ou acaso dotados de mandato
permanente: dessas duas formas conjugadas integra-se o Con­
selho de Segurança da ONU, a exemplo do que sucedera no
Conselho de sua antecessora, a Sociedade das Nações.
Em função do seu alcance e dos seus propósitos, a organi­
zação internacional pode ter estrutura mais ampla, dispondo de
outros conselhos — como, na ONU, o Econômico e Social —,
bem assim de órgãos técnicos, de órgãos judiciários — como a
Corte da Haia, no quadro da ONU, ou as cortes de Estrasburgo
e de Luxemburgo, no quadro da União Europeia —, e até mes­
mo de órgãos temporários, fadados à extinção quando tenham
atendido a certa finalidade conjuntural.
157. Aspectos do processo decisório. De modo geral, as organi­
zações internacionais contemporâneas não alcançaram ainda um
estágio em que o princípio majoritário opere com vigor seme­
lhante ao que se lhe atribui em assembleias regidas por direito
interno (como as casas legislativas dos diversos países). Atuando
em assembleia ou em conselho, numa organização internacional,
o Estado só se costuma sentir obrigado por quanto tenha sido
decidido com seu voto favorável, ao menos no que seja impor­
tante — e não apenas instrumental, como a eleição do titular de
certo cargo, ou a fixação de um calendário de trabalhos.
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A submissão necessária da minoria nunca apareceu, assim, como regra, mas
como exceção, encontrável desde o início no quadro das comunidades europeias.
Tratava-se das recomendações da CECA e das diretrizes da CEE, que se impunham
a todos os membros ainda quando subscritas por maioria. Mas essas peças pres­
creviam obrigações sempre limitadas e cuidadosamente definidas pelos tratados
constitutivos.
Inúmeras resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas foram objeto
da mais ostensiva indiferença, e até mesmo de ataques violentos por parte de Esta­
dos-membros dissidentes. O caso das intervenções no Congo e no Oriente Médio
foi prova precoce e suficiente do valor relativo das recomendações da Assembleia.
No quadro da OEA pretendeu-se, em 24 de abril de 1963, autorizar o Conselho a
investigar atividades e operações de infiltração comunista no continente. Havendo
o Brasil votado contra a resolução, seu texto final limitou o controle do Conselho
ao território dos Estados Unidos e das repúblicas hispano-americanas. Ainda na
OEA, em 3 de agosto de 1964, o México repudiava, isolado, a recomendação ine­
rente a um rompimento geral de relações com Cuba.
Durante algum tempo a partir da crise do Golfo, contemporânea das mu­
danças que conduziriam ao colapso da União Soviética em 1991, o Conselho de
Segurança da ONU acelerou seu processo decisório mediante prévio entendi­
mento entre seus cinco membros permanentes. O consenso antecipado dos de­
tentores do poder de veto abreviava os debates e as votações no Conselho, ainda
que ao preço de certo desgaste para seus dez membros temporários. Mais tarde,
quando das intervenções armadas de certos países no Kosovo e no Iraque, já não
havia consenso algum no Conselho de Segurança, e a própria organização foi
marginalizada.
LEITURA
Voto do autor como Juiz da Corte Internacional de Justiça nos casos relacio­
nados ao atentado de Lockerbie (Líbia vs. Reino Unido da Grã-Bretanha e Ir­
landa do Norte; Líbia vs. Estados Unidos da América, 1998):
“Uma vez que os Estados requeridos [Reino Unido e Estados Unidos],
contestando tanto a competência da Corte quanto a admissibilidade da deman­
da, ressaltaram a força obrigatória e o primado das resoluções 748 (1992) e
883 (1993) do Conselho de Segurança, à luz dos artigos 25 e 103 da Carta das
Nações Unidas, penso que nosso acórdão, com que estou de acordo, enfrenta­
ria melhor a argumentação das Partes se consagrasse algumas linhas ao tema
da competência da Corte em face da competência dos órgãos políticos da Or­
ganização.
O artigo 103 da Carta é uma regra de solução de conflitos entre tratados:
ele pressupõe, antes de qualquer outra coisa, a oposição entre a Carta das Na­
ções Unidas e qualquer outro compromisso convencional, e resolve o conflito
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em favor da Carta, não importando a cronologia dos textos. Mas essa norma
não tem a pretensão de operar em detrimento do direito internacional costu­
meiro, e menos ainda em afronta aos princípios gerais do direito das gentes. É
a própria Carta das Nações Unidas (não uma resolução do Conselho de Se­
gurança, uma recomendação da Assembleia Geral ou um acórdão da Corte
Internacional de Justiça) a titular do primado que a norma consagra: a Carta
com todo o peso de seus princípios, de seu sistema, e da repartição de compe­
tências que ela determina.
Por outro lado, é esta Corte a intérprete definitiva da Carta das Nações
Unidas. À Corte cabe definir o sentido de cada um de seus preceitos e do con­
junto do texto, e aí temos uma responsabilidade particularmente grave quando
a Corte é confrontada com decisões de um dos órgãos políticos principais da
Organização. Assegurar o primado da Carta em seu sentido preciso e comple­
to é das mais eminentes tarefas da Corte. Esta, de pleno direito e por dever, há
de realizar tal objetivo, ainda que isso possa teoricamente conduzir à crítica de
outro órgão das Nações Unidas, ou à rejeição do entendimento que esse órgão
tem da Carta.
No caso do Timor oriental, o Juiz Skubiszewski teve ocasião de lembrar
que
‘A Corte é competente, conforme demonstram diversos acórdãos e pare­
ceres consultivos, para interpretar e aplicar as resoluções da Organiza­
ção. Ela é competente para pronunciar-se sobre sua legalidade, e sobre­
tudo sobre a questão de saber se são intra vires. Esta competência de­
corre da função da Corte enquanto órgão judiciário principal da Orga­
nização das Nações Unidas. As decisões da Organização (no sentido
amplo que esta noção comporta em virtude das disposições da Carta
relativas ao voto) podem ser examinadas pela Corte quanto a sua lega­
lidade, validade e efeito. As conclusões da Corte sobre tais matérias
envolvem interesses de todos os Estados membros, ou ao menos daqueles
a que as resoluções se dirigem. Mas essas conclusões permanecem den­
tro dos limites fixados pela regra enunciada no caso do Ouro monetário.
Avaliando as diversas resoluções das Nações Unidas sobre o Timor
Oriental quanto aos direitos e deveres da Austrália, a Corte não afron­
taria o princípio da base consensual de sua competência’ (C.I.J., Recueil
1995, p. 251).
No passado, juízes ponderados como Sir Gerald Fitzmaurice afirmaram
essa competência. Neste mesmo sentido se orientava a autoridade da doutrina.
Já há alguns anos ressaltava o Professor Oliver Lissitzyn:
‘Se a Organização quer afirmar sua autoridade, é preciso identificar
em algum lugar, de preferência em um órgão judiciário, o poder de
assegurar interpretações vinculantes da Carta, ao menos nos temas que
dizem respeito aos direitos e obrigações dos Estados. É preciso proteger
os propósitos e políticas de longo prazo enunciadas na Carta contra
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eventuais aberrações imediatistas de órgãos políticos. O poder sem o
direito é despotismo’ (O. J. Lissitzyn, The International Court of Justi­
ce, 1951, p. 96-97).
A tese segundo a qual a interpretação da Carta por um órgão político só
se submete ao controle judiciário no exercício da competência consultiva não
tem qualquer fundamento científico. O que é verdade é que o sistema não
autoriza Estado algum a consultar a Corte sobre questão constitucional envol­
vendo as Nações Unidas, ou a levantar essa questão por meio de ação direta
contra a Organização ou contra um órgão como o Conselho de Segurança. Mas
a questão constitucional ___ relativa, por exemplo, a um caso de excesso de
poder ___ pode perfeitamente colocar-se no contexto do contencioso entre Es­
tados. Num quadro como esse, é natural que a demanda se dirija contra o Es­
tado que, por qualquer razão, tenha assumido a responsabilidade de executar
o ato do Conselho, embora contestado, esse ato, à luz da Carta ou de qualquer
norma de direito internacional geral. O sujeito passivo da ação não é, portanto,
o legislador, mas o executor imediato da lei. Assim ocorre, em regra, no âm­
bito das jurisdições internas, no procedimento do habeas corpus e nas ações
civis para proteger direitos outros que as liberdades individuais.
A Corte tem óbvia competência para a interpretação e aplicação do di­
reito num caso contencioso, ainda que o exercício dessa competência possa
levá-la ao exame crítico de decisão de outro órgão das Nações Unidas. A Cor­
te não representa diretamente os Estados membros da Organização (este fato
nos foi lembrado, e dele se tentou deduzir a incompetência da Corte para exa­
minar as resoluções do Conselho). Mas é justamente sua impermeabilidade à
injunção política que faz dela a intérprete por excelência do direito e o foro
natural da revisão, em nome do direito, dos atos dos órgãos políticos, como é
de rigor nos regimes democráticos. Com efeito, seria surpreendente que o
Conselho de Segurança tivesse poder absoluto e incontestável no tocante à
regra de direito, privilégio de que não gozam, nas ordens jurídicas internas, os
órgãos políticos da maioria dos Estados fundadores da Organização, a começar
pelos requeridos [Reino Unido e Estados Unidos da América].
É aos Estados membros das Nações Unidas, no âmbito da Assembleia
Geral e do Conselho de Segurança, que pertence o poder de legislar, de mudar,
caso assim queiram, as regras que presidem o funcionamento da Organização.
No exercício da função legislativa, têm eles a faculdade de deliberar, por exem­
plo, que a Organização pode prescindir de um órgão judiciário, ou que este,
contrariamente aos modelos nacionais, não é o intérprete último da ordem
jurídica da Organização quando se levanta o problema da validade de decisão
de outro órgão do sistema. Até onde se sabe, os Estados membros nunca cogi­
taram de tomar tal caminho. Creio, por isso, que a Corte não deveria ser tími­
da na afirmação de uma prerrogativa que é sua, por força do que se presume
ser a vontade das Nações Unidas”.
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158. A organização frente a Estados não membros. Há na
Carta da ONU certas normas cuja essência se resume numa
espécie de convite, ou de franquia de benefícios e serviços a
Estados não membros: participação sem voto nos debates do
Conselho de Segurança, prerrogativa de chamar a atenção do
Conselho para determinada controvérsia, possibilidade de adesão
simples ao Estatuto da Corte Internacional de Justiça etc. Tanto
quanto a abertura do tratado institucional à adesão de terceiros,
e por igual motivo, tais disposições, não mais pretendendo que
franquear direitos passíveis de aceitação ou de recusa, possuem
valor jurídico incontestável. É igualmente certo que a organiza­
ção tem o direito de pôr termo a qualquer dessas aberturas, a todo
momento. O problema cresce em complexidade quando se trata
de saber se o tratado institucional pode gerar obrigações para
Estados não contratantes. O Pacto da SDN improvisava uma
primeira investida nesse sentido, mas foi o art. 2, § 6, da Carta
das Nações Unidas que suscitou maior polêmica:
“A Organização fará com que os Estados que não são membros das Nações
Unidas procedam de conformidade com estes princípios na medida necessária à
manutenção da paz e da segurança internacionais”.
A circunstância de possuir a ONU uma “personalidade in­
ternacional objetiva” — que não falta, aliás, às outras organiza­
ções internacionais — não faz, por si só, que ela possa entender-se oponível a Estados que não manifestaram seu consentimen­
to em relação ao vínculo institucional. Pode-se, em última
análise, interpretar esse parágrafo não como gerador de obriga­
ções para terceiros, mas como continente de um propósito que
a organização proclama em face de si mesma e cujos destinatá­
rios são seus integrantes (“A Organização fará com que ...”). A
teoria do “conjunto suficientemente representativo dos interesses
gerais” não convence a ponto de justificar a imposição de deve­
res a terceiros, visto que o princípio da prevalência da vontade
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majoritária sobre as minorias, válido nos ordenamentos internos,
carece de consistência no âmbito interestatal. Mesmo porque
pode a minoria numérica dispor de larga capacidade defensiva
— realidade sempre presente enquanto a República Popular da
China esteve à margem do quadro das Nações Unidas. Em abs­
trato, a imposição do tratado institucional a terceiro é mera via
de fato, condicionada à potência da organização, à conjunção
favorável das forças políticas no seu contexto, e finalmente à
debilidade do Estado que faça objeto da pretendida coação.
No princípio de agosto de 1964 uma proposta dos Estados Unidos no Conse­
lho de Segurança, aprovada pela União Soviética, e destinada a convidar um repre­
sentante do Vietnã do Norte aos debates do Conselho, foi bruscamente rejeitada
por esse país. Em 20 de agosto o governo de Hanói fazia saber ao Conselho que
“tal organização não tinha autoridade para intervir na crise do golfo de Tonkin nem
na guerra civil do Vietnam do Sul”4.
159. Sede da organização. Carentes de base territorial, as orga­
nizações internacionais precisam de que um Estado faculte a
instalação física de seus órgãos em algum ponto do seu território.
Essa franquia pressupõe sempre a celebração de um tratado
bilateral entre a organização e o Estado, a que se dá o nome de
acordo de sede. A Liga dos Estados Árabes, fundada em 1945,
fixou sua sede no Cairo, mediante acordo com o Egito. Não é
raro, porém, que uma organização disponha de mais de uma
sede, ou faça variar a instalação de alguns de seus órgãos.
A ONU celebrou acordos dessa espécie não só com os Estados Unidos, à
conta de sua sede principal, em Nova York, mas ainda com a Suíça e com os Países
Baixos, por causa do escritório em Genebra — sede europeia da organização — e
da Corte Internacional de Justiça, instalada na Haia. Nas organizações do continen­
te americano — a OEA, a ODECA — observa-se a fixação de sede permanente
para o órgão executivo ou a secretaria, e a previsão da mobilidade dos demais órgãos.
4. Crônicas da época: AFDI e RGDIP.
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É compreensível que as organizações, via de regra, fixem
sede no território de Estados-membros. Mas isso não constitui
um imperativo teórico, nem uma prática uniforme. A Sociedade
das Nações — primeira manifestação segura do fenômeno orga­
ni­zacional — instalou sua sede em Genebra, negociando, pois,
o respectivo acordo com um Estado estranho ao seu quadro de
fundadores.
O acordo de sede costuma impor ao Estado obrigações pertinentes não apenas
aos privilégios garantidos à organização copactuante, mas ainda àqueles que devem
cobrir os representantes de outros Estados na organização (delegados à assembleia
geral, membros de um conselho) e junto à organização5.
Um pedido israelense de fechamento do escritório da Organização para a
Libertação da Palestina em Genebra foi rejeitado, em 1978, pelo Conselho Federal
Suíço, que invocou, a propósito, suas obrigações resultantes do acordo de sede
firmado com a ONU em 1946. O escritório da OLP fora aberto em 1975, a pedido
das Nações Unidas, cuja Assembleia Geral havia decidido convidar a entidade a
participar, com o estatuto de observador, de conferências e demais trabalhos pro­
movidos pela organização6.
Em ocasiões diversas, perto da virada do século, a ONU teve seus trabalhos
perturbados pela atitude de autoridades norte-americanas — até mesmo da prefei­
tura de Nova York — que supunham, erroneamente, ter o direito de controlar o
acesso de representantes de determinadas nações à cidade e, consequentemente, à
sede da organização.
160. Representação, garantias, imunidade. A organização não
goza de privilégios apenas no seu lugar de sede. Ela tem o di­
reito de fazer-se representar tanto no território de Estados-mem­
bros quanto no de Estados estranhos ao seu quadro, mas que
com ela pretendam relacionar-se desse modo. Seus representantes
exteriores, em ambos os casos, serão integrantes da secretaria
5. Cf., quanto a essa distinção, Michael Hardy, Modern diplomatic law, Manchester
University Press, 1968, p. 97 e 55.
6. Cf. a crônica dos fatos internacionais, de Charles Rousseau; RGDIP (1979), v. 83,
p. 197-198.
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— vale dizer, do quadro de funcionários neutros — e gozarão
de privilégios semelhantes àqueles do corpo diplomático de
qualquer soberania representada no exterior7. Por igual, suas
instalações e bens móveis terão a inviolabilidade usual em di­
reito diplomático.
Problema distinto deste dos privilégios estabelecidos pelo
direito diplomático (basicamente a Convenção de Viena de 1961)
é o da imunidade da própria organização internacional à juris­
dição brasileira, em feito de natureza trabalhista ou outro. A
jurisprudência assentada no Supremo Tribunal Federal desde
1989 (v. nesta mesma parte do livro o capítulo I, seção II) so­
mente diz respeito aos Estados estrangeiros, cuja imunidade, no
passado, entendia-se resultante de “velha e sólida regra costu­
meira”, na ocasião declarada insubsistente. No caso das organi­
zações internacionais essa imunidade não resultou essencial­
mente do costume, mas de tratados que a determinam de modo
expresso: o próprio tratado coletivo institucional, de que o Bra­
sil seja parte, ou um tratado bilateral específico.
A imunidade da organização, em tais circunstâncias, não
pode ser ignorada, mesmo no processo de conhecimento, e ain­
da que a demanda resulte de uma relação regida pelo direito
material brasileiro8. É possível que essa situação mude e que um
dia, em nome da coerência e de certos interesses sociais mere­
cedores de cuidado, as organizações internacionais acabem por
se encontrar em situação idêntica à do Estado estrangeiro ante
a Justiça local. Isso reclamará, de todo modo, a revisão e a der­
rogação de tratados que, enquanto vigentes, devem ser cumpri­
dos com rigor.
7. Sobre os deveres do Estado onde atua o funcionário internacional e sobre o direito
que tem a organização de protegê-lo, v. adiante o § 181.
8. V., a propósito, decisão do TRT da 10ª região no Recurso Ordinário 432/2002, re­
latado pelo juiz Alberto Fontana Pereira.
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LEITURA
Voto do autor como Juiz da Corte Internacional de Justiça no parecer consul­
tivo sobre a Imunidade de jurisdição do relator especial da Comissão dos di­
reitos humanos das Nações Unidas, na Malásia (1999):
“Uma vez estabelecido o alcance exato do pedido de parecer consultivo
feito pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, a Corte examinou
os fatos à luz do direito aplicável para concluir que o relator especial se bene­
ficia de imunidade a toda e qualquer jurisdição nacional. Foi com razão que o
secretário-geral se pronunciou nesse exato sentido. Seria, a partir daí, inútil
para a Corte consagrar-se à questão de saber se o poder de apreciação do se­
cretário-geral é ou não exclusivo, e determinar como o Estado territorial deve­
ria proceder, caso contestasse a apreciação do secretário-geral.
Partilho a opinião da maioria sobre tais pontos, insistindo em que o dever
que se impõe à Malásia não é simplesmente o de advertir os tribunais malaios
sobre a conclusão do secretário-geral, mas o de fazer respeitar a imunidade.
Esta conclusão não sugere de forma alguma uma conduta incompatível
com a independência da justiça (independência que constitui, de resto, o obje­
to da missão do relator especial). O governo faz respeitar a imunidade se,
tendo adotado a conclusão do secretário-geral, emprega os meios de que dispõe
perante o poder Judiciário (a ação do procurador ou do advogado-geral na
maioria dos países) para fazê-la prevalecer, com o mesmo empenho com que
defende suas próprias teses e interesses. Claro, se o poder Judiciário é um
poder independente, sempre será possível que, não obstante os esforços do
governo, a imunidade seja finalmente recusada pela instância judiciária supre­
ma. Nessa hipótese abstrata, como naquela mais concreta da recusa, pela jus­
tiça malaia, de tratar a questão da imunidade in limine litis, a responsabilidade
internacional da Malásia seria comprometida perante as Nações Unidas por
atos de um poder outro que o Executivo. Isso não seria uma situação desco­
nhecida em direito internacional, nem mesmo uma situação rara na história das
relações internacionais.
Nada obriga Estados soberanos a fundarem organizações internacionais,
e nenhum deles é forçado a continuar membro contra sua vontade. No entanto,
a qualidade de membro — mesmo quando se tratasse de uma organização cujos
objetivos fossem menos essenciais que aqueles das Nações Unidas, e cujo
domínio de ação não fosse tão eminente quanto o dos direitos humanos — re­
quer de cada Estado, em suas relações com a organização e seus agentes, uma
atitude ao menos tão construtiva quanto aquela que caracteriza suas relações
diplomáticas com os demais Estados”.
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161. Finanças da organização. A receita de toda organização
internacional resulta, basicamente, da cotização dos Estados-membros. Certas receitas industriais acaso existentes — como
o produto da venda de publicações — mal cobrem, em geral, o
respectivo custo. As despesas da organização consistem neces­
sariamente na folha de pagamento do pessoal da secretaria, no
custeio de manutenção de instalações imobiliárias e equipamen­
tos, e muitas vezes também no custeio de programas exteriores
de assistência e financiamento.
No parecer consultivo de 20 de julho de 1962, solicitado pela Assembleia
Geral da ONU, a Corte da Haia definiu como despesas da organização, a serem
custeadas por sua verba orçamentária, as resultantes das operações da Força de
Urgência das Nações Unidas em Suez e no Congo, na década de cinquenta. Essas
operações haviam sido determinadas por voto majoritário da Assembleia e do
Conselho de Segurança, sendo que determinados países membros da organização
resistiam à ideia de copatrociná-las financeiramente.
Em regra, as cotizações estatais não são paritárias. Antes,
correspondem à capacidade contributiva de cada Estado-mem­
bro, levada em conta sua pujança econômica. Nas Nações Uni­
das estabeleceu-se o teto da cota individual em 22% da receita
prevista, para evitar que se agigantasse a contribuição norte-americana. Ali os Estados Unidos entram, pois, com 22% da
receita. O Japão entra com pouco menos de 20%, seguindo-se
— com arredondamento dos números — a Alemanha (9%), a
França e o Reino Unido (6%), a Itália (5%), o Canadá (2,8%),
a Espanha (2,5%), a China (2%), o México (1,9%), a Coreia
(1,8%), os Países Baixos, a Austrália e o Brasil (1,6%), a Suíça,
a Bélgica, a Suécia (pouco mais de 1%). A quota da Rússia caiu
neste momento para cerca de 0,5%. Todos os demais membros
da ONU, cento e setenta, contribuem com somas corresponden­
tes a menos que 1% da receita total, e trinta e quatro deles es­
tancam no piso, que é de 0,01%, embora a modéstia de seus
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recursos em confronto com os das demais nações pudesse jus­
tificar, no cálculo, uma contribuição ainda menor. O orçamento
das Nações Unidas sofreu congelamentos e inúmeros cortes nos
últimos anos, e é de cerca de 1,3 bilhão de dólares para o ano
2005. Isso corresponde a bem menos que o orçamento anual de
uma universidade norte-americana como a de Minnesota, ou que
o do corpo de bombeiros da área metropolitana de Tóquio (1,9
e 1,8 bilhões de dólares anuais, respectivamente).
162. Admissão de novos membros. A admissão de novos Es­
tados-membros numa organização internacional, sempre disci­
plinada pelo ato constitutivo, deve ser estudada em seus três
aspectos capitais: abordam-se primeiro as condições prévias do
ingresso, vale dizer, os limites de abertura da carta aos Estados
não membros; em seguida, o pressuposto fundamental, qual seja
a adesão à carta; finalmente, a aceitação dessa adesão pelos
Estados-membros, traduzida, na prática corrente, pelo beneplá­
cito do órgão competente para tanto, nos termos do tratado.
a) Os limites de abertura do tratado institucional podem
ter caráter meramente geográfico: assim, só um “Estado eu­
ropeu” poderia pretender ingressar nas comunidades. A Car­
ta da ODECA esteve aberta desde 1951 ao Panamá, única
república centro-americana — no sentido dado a essa quali­
ficação pelos Estados da América Central continental — que
não foi parte no tratado. A Carta da OEA está aberta à adesão
dos “Estados americanos”: primitivas dúvidas quanto à compre­
ensão do Canadá, visto que integrante da Commonwealth, foram
dissipadas após o ingresso de Trinidad-Tobago e de Barbados.
Na Liga Árabe a abertura parece ter aspecto geopolítico: todo
“Estado árabe” se pode tornar membro da organização, segundo
o art. 1º.
O Pacto da Sociedade das Nações esteve aberto a “todo Es­
tado, Domínio ou Colônia que se governe livremente” (sic, art.
1, § 2). O México (1931) e depois a Turquia (1932) e a URSS
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(1934) vieram a aderir ao Pacto. Na Carta das Nações Unidas a
matéria é disciplinada pelo art. 4º: o interessado deve ser um
Estado pacífico, que aceite as obrigações impostas pela carta, e
que se entenda capaz de cumpri-las e disposto a fazê-lo. Subor­
dina-se a análise destes últimos pressupostos ao juízo da própria
organização.
b) A condição fundamental do ingresso é justamente aquela
que menos controvérsia pode suscitar: deve o interessado expri­
mir sua adesão ao tratado institucional. A adesão se presume
integral, ou seja, desprovida de reservas, a partir da premissa de
que estas não foram facultadas aos pactuantes originários.
Por sua própria natureza, o tratado institucional é refratário
à ratificação ou à adesão com reservas. Exceções, a propósito,
somente têm ocorrido em circunstâncias atípicas, dada a inocui­
dade da reserva à substância convencional.
Tal foi o que ocorreu quando da adesão do México ao Pac­
to da SDN, em 1931, com uma rara e percuciente reserva ao art.
21, no ponto em que o texto, pretendendo referir-se à embrio­
nária organização interamericana, teve a infelicidade de deno­
miná-la “doutrina de Monroe”.
c) O beneplácito à adesão, dado pelo órgão competente da
entidade, conclui o processo de admissão do novo membro. Esse
órgão competente foi na SDN a Assembleia, que por dois terços
devia manifestar sua aquiescência. Na União Europeia é o Con­
selho que, sob parecer da Comissão, deve assentir por unanimi­
dade. A Carta da ONU fala numa decisão da Assembleia Geral
“mediante recomendação do Conselho de Segurança”. Já a Cons­
tituição da OIT distingue entre o candidato que seja membro das
Nações Unidas — caso em que lhe basta comunicar sua adesão
ao diretor do Escritório Internacional do Trabalho — e o que não
o seja: neste último caso, hoje hipotético, a Conferência geral
decide sobre a admissão por maioria de dois terços dos delegados
presentes, aí compreendidos dois terços dos delegados governa­
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mentais presentes e votantes. O Pacto da Liga Árabe prescreve a
submissão do pedido ao Conselho sem nada adiantar sobre o
quorum, permitindo supor que o veto seja praticável.
A última década do século XX foi marcada por expressivo número de admis­
sões no quadro das Nações Unidas. Eram, de um lado, os últimos remanescentes
coloniais que acederam à condição de Estados independentes, e, de outro, as sobe­
ranias resultantes de desmembramentos ocorridos na Europa.
163. Sanções. A falta aos deveres resultantes de sua qualidade
de membro de uma organização internacional pode trazer ao
Estado consequências peculiares, quais sejam as sanções pre­
vistas pelo tratado constitutivo e aplicáveis pela própria organi­
zação, mediante voto num de seus órgãos. Essas assumem,
usual­mente, duas formas: a suspensão de determinados direitos
e a exclusão do quadro.
a) Em seu art. 5 a Carta das Nações Unidas se refere ao
Estado contra o qual tenha sido empreendida ação preventiva ou
coercitiva pelo Conselho de Segurança, sujeitando-o à suspensão
do exercício dos direitos e privilégios resultantes da condição
de membro, pena pronunciada pela Assembleia Geral mediante
recomendação do Conselho. Já o art. 19 exclui da votação em
Assembleia Geral o Estado em atraso no pagamento de sua cota
relativa à receita da organização, “se o total de seu débito igua­
lar ou exceder a soma das contribuições correspondentes aos
dois anos anteriores completos”. A Assembleia pode, não obs­
tante, autorizar a participação no voto quando reconheça justa
causa para o atraso. A Constituição da OIT retoma as linhas
gerais da Carta de São Francisco.
Em 21 de maio de 1968 o Haiti era avisado de que perderia seu direito de
voto, nos termos do art. 19, caso permanecesse em atraso no pagamento de sua
quota (US$ 22,400). Foi essa a primeira vez em que a ONU se animou a pronunciar
tal sorte de advertência. Segundo Reuter, as sanções previstas pelo art. 19 pode­riam
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ter atingido dezesseis Estados membros das Nações Unidas na primavera de 1965.
Mas, para tanto, era necessária a difícil “conjunção favorável das forças políticas”9.
Uma proposta dos Estados Unidos visando à aplicação do art. 19 à União Soviéti­
ca, então distante da pontualidade na solução de seus débitos, foi prudentemente
retirada em 16 de agosto daquele ano.
Nos últimos dias de seu mandato, em dezembro de 1991, o secretário-geral
Perez de Cuellar revelou que somente 64 dentre os 159 membros da ONU estavam
em dia com suas obrigações financeiras. O total de débitos em atraso era de 524
milhões de dólares — dos quais 485 milhões eram então devidos pelos Estados
Unidos da América. O problema subsiste nos anos recentes, mas em proporções
menos graves. Nos primeiros anos do século o montante das contribuições em mora
era da ordem de 222 milhões de dólares.
b) O Estado membro das Nações Unidas que “viole persis­
tentemente os princípios contidos na presente Carta, poderá ser
expulso da Organização pela Assembleia Geral, mediante reco­
mendação do Conselho de Segurança” (art. 6). Atentando ao
sistema pelo qual este último órgão formula suas recomendações,
verifica-se que a expulsão, tanto quanto a suspensão prevista no
art. 5, não será jamais praticável contra qualquer dos cinco
membros permanentes, titulares da prerrogativa do veto. O velho
Pacto da SDN não abrigava aberração semelhante. Segundo os
termos do seu art. 16, § 4, a exclusão era pronunciada por todos
os membros do Conselho, exceto o próprio Estado em causa.
Este último sistema é consagrado pela Carta da Liga Árabe. Em
ambos os casos, o fato suscetível de provocar a exclusão do
Estado-membro é a falta aos compromissos decorrentes da qua­
lidade de membro da organização.
A única exclusão pronunciada pelo Conselho da SDN foi a da União Sovié­
tica, em 1939, após ato de agressão contra a Finlândia. A Carta de Bogotá não se
refere à perspectiva da exclusão de membros. Não obstante, em 14 de fevereiro de
1962 a organização expulsou oficialmente do seu quadro a república de Cuba,
9. Paul Reuter, Institutions internationales, Paris, PUF, p. 253.
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Estado “incompatível com o sistema interamericano”, dando sequência à resolução
da Conferência dos ministros das Relações Exteriores, tomada sob proposta do
delegado norte-americano Dean Rusk10.
164. Retirada de Estados-membros. Dois elementos costu­
mam condicionar a retirada voluntária do Estado-membro no
quadro das organizações cujos textos fundamentais prevêem a
eventualidade da denúncia. Tem-se, em primeiro lugar, o pré-aviso: um lapso de tempo deve mediar entre a manifestação de
vontade do Estado retirante e o rompimento efetivo do vínculo
jurídico decorrente da sua condição de parte no tratado. O prazo
de dois anos, previsto pelo art. 1, § 3, do Pacto da SDN, vale
atualmente no sistema da OIT e no da OEA, entendendo esta
última como termo inicial a data do recebimento da denúncia
pela Secretaria Geral. O segundo requisito costuma ser a atua­
lização de contas (OEA, OIT). A constituição desta última exi­
ge simplesmente que o Estado que se afasta tenha colocado em
dia suas obrigações financeiras para com a entidade11. Deixa
claro, por outro lado, que a denúncia do tratado-base não preju­
dica a validade dos compromissos inerentes às convenções in­
ternacionais do trabalho ratificadas pelo Estado enquanto mem­
bro da organização.
A história da Sociedade das Nações registrou a retirada do Brasil em 1926, a
do Japão e a da Alemanha em 1933, a da Itália em 1937. Em 21 de janeiro de 1965,
numa carta endereçada ao secretário-geral das Nações Unidas, o governo da Indo­
nésia participava formalmente seu afastamento da organização. Nada constando na
10. Muito tempo mais tarde ganharia terreno na OEA a tese de que a expulsão não
atingira o Estado cubano, mas o governo do comandante Fidel Castro, ou o regime comu­
nista ali instalado. Isso mais parece uma facécia diplomática que um raciocínio juridicamen­
te defensável. A tese colide, ademais, com o exato teor dos episódios de 1962, registrados
nos anais da OEA e divulgados, na época, pela imprensa.
11. Esse segundo requisito, onde quer que figure, é supérfluo. Até o último dia de
subsistência das suas obrigações, deve o Estado honrá-las todas, aí incluídas, naturalmente,
as que importem contribuições financeiras.
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carta sobre semelhante hipótese, o secretário-geral consultava nos dias seguintes
numerosas delegações a fim de saber o que deveria ser feito em tais circunstâncias.
Iniciativa sem êxito. Do ponto de vista das Nações Unidas, uma situação jurídica
inominada e indefinida iria perdurar até 28 de setembro de 1966, data em que os
delegados da Indonésia retomaram seus assentos na Assembleia Geral, como se
nada houvesse ocorrido.
A Organização dos Estados Americanos viu deixar seu quadro a república da
Bolívia, ressentida após um conflito sobre limites com o Chile. Ela voltaria ao cabo
de dois anos de ausência, em 29 de dezembro de 1964. Os Estados Unidos deixaram
a OIT em 1977, alegando inconformismo com a politização da entidade. Igual ar­
gumento utilizariam em 1984 para deixar a UNESCO. Voltaram depois às duas
organizações, em 1980 e em 2003, respectivamente.
Seção II — ESPÉCIES
165. Alcance e domínio temático. Numa classificação expe­
rimental e casuística levaríamos em conta o alcance — universal
ou regional — de cada organização, bem assim seu domínio de
atividade. Entenderíamos como organização de alcance univer­
sal toda aquela vocacionada para acolher o maior número pos­
sível de Estados, sem restrição de índole geográfica, cultural,
econômica ou outra. No tocante ao domínio, também reduzi­
ríamos as organizações a duas categorias apenas: as de vocação
política — assim vistas aquelas que se consagram sobretudo à
preservação da paz e da segurança, embora cuidem, ancilar­mente,
de outros propósitos — e as de vocação específica: sob esta
segunda rubrica lançaríamos as organizações votadas primor­
dialmente a um fim econômico, financeiro, cultural, ou estrita­
mente técnico.
166. Alcance universal, domínio político: a SDN e a ONU.
Primeiro na Sociedade das Nações (1919-1939), depois na Or­
ganização das Nações Unidas (1945), somaram-se o alcance
universal — a propensão congênita a congregar, um dia, a ge­
neralidade dos Estados soberanos, como hoje a ONU de fato
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congrega — e a finalidade política. No âmbito da ONU, como
no de sua antecessora, a cooperação econômica, cultural e cien­
tífica são propósitos periféricos. Seu objetivo precípuo — frus­
trado, para a SDN, com a eclosão da segunda grande guerra
— é preservar a paz entre as nações, fomentando a solução pa­
cífica de conflitos e proporcionando meios idôneos de seguran­
ça coletiva.
A Sociedade — ou Liga — das Nações foi instituída pelo Tratado de Versalhes,
em 1919. Teve sede em Genebra (portanto, no território de país não membro, a
Suíça). Seus órgãos foram uma Assembleia Geral, uma Secretaria e um Conselho
— onde se projetou que haveria quatro membros permanentes, com direito de veto,
e quatro temporários, eleitos bienalmente pela Assembleia. Na realidade só três
assentos permanentes foram ocupados (França, Grã-Bretanha, Itália), visto que nos
Estados Unidos o presidente Woodrow Wilson — um dos principais idealizadores
da Sociedade — não conseguiu a aprovação do Senado para ratificar o pacto cons­
titutivo. A SDN ruiu, de fato, em setembro de 1939, quando teve início a segunda
grande guerra. As providências relativas à sua extinção formal seriam tomadas
algum tempo mais tarde (1946-1947).
A Organização das Nações Unidas foi planejada nos encontros aliados de
Dumbarton Oaks (1944) e de Yalta, este último reunindo, em fevereiro de 1945, o
líder soviético Josef Stalin, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill e o
presidente americano Franklin Roosevelt. Sua carta constitutiva foi negociada na
conferência de São Francisco da Califórnia, entre abril e junho de 1945. Três anos
mais tarde seus membros eram cinquenta. Hoje esse número é de 191: ali se en­
contram todas as soberanias formais do mundo contemporâneo, após o ingresso de
Timor-Leste e da Suíça em 2002. As línguas oficiais da ONU são o árabe, o chinês,
o espanhol, o francês, o inglês e o russo, embora apenas o espanhol, o francês e o
inglês se empreguem como idiomas de trabalho no cotidiano da organização.
A Carta de São Francisco descreveu seis órgãos como sendo os principais da
ONU, embora um deles — o Conselho de Tutela — devesse encerrar seus trabalhos
quando do acesso à independência dos derradeiros territórios sob administração
alheia, o que ocorreu em 1994. Os outros são a Assembleia Geral (que realiza
sessões anuais, a partir de setembro, e onde todos os Estados-membros têm voz e
voto), o Conselho de Segurança, a Secretaria, o Conselho Econômico e Social e a
Corte Internacional de Justiça. O Conselho de Segurança tem quinze membros,
sendo cinco permanentes (China, Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia) e
dez temporários, eleitos pela Assembleia com mandato de dois anos (o Brasil foi
eleito para o biênio 1998-1999, e de novo para o biênio 2004-2005). No Conselho,
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as decisões de índole processual são tomadas por nove votos, no mínimo. Quando
se cuida de decisões substantivas — as de real importância —, impõe-se que entre
os nove votos mínimos favoráveis estejam os cinco dos membros permanentes: isto
é o que faz dizer que cada um deles tem poder de veto, porque habilitado a obstruir
a decisão por sua singular manifestação negativa12. O Conselho Econômico e Social
tem cinquenta e quatro membros, todos temporários, elegendo-se a cada ano um
grupo de dezoito para um mandato trienal. A Secretaria tem como chefe o secretá­
rio-geral das Nações Unidas, eleito pela Assembleia mediante recomendação do
Conselho de Segurança, para um mandato de cinco anos, renovável uma só vez, e
não podendo dar-se a sucessão por pessoa de igual nacionalidade (foram secretários-gerais da ONU o norueguês Trygve Lie, da fundação a 1953; o sueco Dag Ham­
marskjöld, de 1953 a 1961; o birmanês U Thant, de 1961 a 1971; o austríaco Kurt
Waldheim, de 1971 a 1981; o peruano Javier Perez de Cuellar, de 1981 a 1991; o
egípcio Butros Ghali, de 1991 a 1996. O secretário-geral desde 1º de janeiro de
1997 é o ganense Kofi Annan).
167. Alcance universal, domínio específico. Nesta categoria
inscrevem-se as chamadas “agências especializadas” da ONU,
que na realidade são organizações internacionais distintas, do­
tada cada uma delas de personalidade jurídica própria em direi­
to das gentes. Sua gravitação em torno das Nações Unidas re­
sulta de uma circunstância de fato: os Estados-membros são
praticamente os mesmos, e não há inconveniente em que, reu­
nidos no foro principal, que é a ONU, ali estabeleçam diretrizes
de ação para as organizações especializadas. Exemplos destaca­
dos de organizações desta índole são a OIT (Organização Inter­
nacional do Trabalho, fundada em 1919 e sediada em Genebra),
a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura, fundada em 1946 e sediada em Paris), e
a FAO (Organização para a Alimentação e a Agricultura, funda­
da em 1945 e sediada em Roma). Outros exemplos são o Fundo
Monetário Internacional (FMI — 1945), a Organização da Avia­
12. Por volta do sexagésimo aniversário da ONU e de seu Conselho de Segurança,
duzentos e cinquenta e seis projetos de decisões haviam-se frustrado por causa de vetos (18
da França, 5 da China, 32 da Grã-Bretanha, 79 dos Estados Unidos e 122 da Rússia).
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ção Civil Internacional (OACI — 1947), a Organização Mundial
de Saúde (OMS — 1948) e o Banco Internacional para a Re­
construção e o Desenvolvimento (BIRD — 1946), também
chamado de Banco Mundial.
A Organização Mundial do Comércio foi instituída por tratado de 15 de de­
zembro de 1993, concluído no âmbito do GATT, para ser o “quadro institucional
comum” das relações comerciais entre seus membros. Seus princípios orientadores
são os que desde 1947 vinham prevalecendo no âmbito do GATT: o da não discri­
minação e o do desarmamento alfandegário. O primeiro se manifesta na cláusula
de nação mais favorecida, que povoa desde então os acordos bilaterais de comércio,
e que, em linhas muito gerais, garante que cada Estado assegure aos demais o
melhor tratamento comercial que já lhe tenha sido possível dar, em iguais circuns­
tâncias, a um determinado Estado com que comercie. Mas é também do princípio
da não discriminação que resultam o da reciprocidade (que autoriza a ideia das
concessões mediante contrapartida) e o do tratamento nacional (que previne uma
política comercial desfavorável ao produto importado). O segundo, o do desarma­
mento alfandegário, visa a favorecer a liberdade de comércio impedindo que as
barreiras aduaneiras sejam um fator de frustração e desaquecimento. É evidente
que esses princípios convivem com cláusulas de salvaguarda, que autorizam em
caráter excepcional certas medidas restritivas; e ainda com temperamentos pró­prios
para legitimar, por exemplo, o tratamento privilegiado que se concedem os Estados
envolvidos num processo regional de integração, qual o Mercosul, ou o tratamento
também especial que, sem contrapartida, pode ser concedido por países de maior
vitalidade econômica a países em desenvolvimento (aquilo que, já no início dos
anos sessenta, Claude Albert Colliard chamava de “igualdade ponderada” ou “de­
sigualdade compensadora”).
A OMC oferece hoje mecanismos de solução de controvérsias comerciais
bem mais complexos que os antigos painéis do GATT, que entretanto subsistem
como uma etapa entre o entendimento direto e o possível exame de recurso pelo
Órgão de solução de controvérsias, cuja decisão é obrigatória para as partes.
168. Alcance regional, domínio político. Nesta categoria en­
contramos aquelas organizações que retomam, em escala regio­
nal, os objetivos da ONU: assim a Organização dos Estados
Americanos (OEA — 1951), a Liga dos Estados Árabes (LEA
— 1945), a Organização da Unidade Africana (OUA — 1963).
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Todas têm como vocação principal a manutenção da paz entre
seus próprios membros.
Aqui se poderiam ainda contar, outrora, aquelas organizações regionais cuja
finalidade política teve também por tônica a segurança, mas que assentaram sobre
a premissa da perfeita solidariedade entre seus Estados-membros e se votaram, em
última análise, à defesa contra aquilo que lhes parecia um risco exterior potencial:
tal o caso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN ou NATO — 1949)
e de sua réplica socialista, a Organização do Pacto de Varsóvia (1955). Finda a
guerra fria e reformados os regimes políticos do Leste europeu, foi extinto o Pacto
de Varsóvia em 1991.
A OTAN sobreviveu e, perdido seu primitivo propósito, não assumiu formal­
mente nenhum outro. Esteve mobilizada durante a guerra do Golfo em 1991. Rea­
lizou depois manobras militares de rotina. Pretendeu patrocinar, no início de 1992,
um empreendimento coletivo de apoio econômico às repúblicas sucessoras da União
Soviética. No primeiro semestre de 1999, numa campanha encabeçada pelos Esta­
dos Unidos e pelo Reino Unido, com o apoio militar de alguns dos seus outros
membros, a OTAN bombardeou intensamente a Iugoslávia em nome dos direitos
humanos de minorias étnicas locais, destacadamente no Kosovo. A aventura fez
mais vítimas civis que militares, muitas delas integrantes das minorias alegadamen­
te protegidas. As instalações atingidas foram, em grande parte, daquelas que as
Convenções de Genebra mandam poupar. Terminada a empresa, seus resultados
mostraram um mérito mais que duvidoso. Acima de tudo a OTAN chamou a si, sem
explicar de onde lhe vinha legitimidade para tanto, uma competência que é das
Nações Unidas. Não foi pequena a extensão do desgaste que o episódio representou
para a imagem da ONU, para sua credibilidade, para seu futuro.
169. Alcance regional, domínio específico. Nesta classe figuram
as organizações regionais de cooperação e integração econômi­
cas, como a União Europeia (1992) e suas precursoras na Euro­
pa comunitária: a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
(CECA — 1952) e a Comunidade Europeia da Energia Atômica
(CEEA — 1957); a Associação Latino-Americana de Inte­gração
(ALADI — 1981), o Acordo de Livre Comércio da América do
Norte (NAFTA — 1994) e o Mercosul (1995). Esta é, ainda, a
categoria em que se podem classificar instituições como a Or­
ganização dos Países Exportadores de Petróleo — a OPEP,
criada em 1960 e sediada em Viena.
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A lembrança da OPEP faz ver que o conceito de região aqui adotado não tem
natureza estritamente geográfica: cuida-se, antes, neste exato caso, de uma região
econômica, integrada pelos países que produzem petróleo bastante para poder
exportá-lo (e que tanto podem encontrar-se na Ásia como na América Latina). A
Liga dos Estados Árabes, mencionada no parágrafo anterior, é uma organização
política de alcance regional — agora no sentido de região cultural, cuja unidade se
apoia sobretudo no idioma, visto que seus membros se estendem geograficamente
do leste da África a um ponto avançado da Ásia, compreendendo raças arianas e
negras, entre outras.
Com o Protocolo de Ouro Preto, vigente desde 1995, o Mercosul tornou-se
uma organização internacional, também regional e de domínio específico. De início,
um tratado sem natureza institucional foi firmado em Assunção em 26 de março de
1991, vigendo no mesmo ano. Com ele, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai
instauraram o processo de criação de um mercado comum, ampliados assim o al­
cance e os objetivos do que fora originalmente um projeto argentino-brasileiro. O
Mercosul não foi desde logo dotado de personalidade jurídica própria, isto em
função de uma política exemplarmente sóbria com que seus quatro fundadores
quiseram evitar todo aparato precoce e todo dispêndio de discutível necessidade.
O Protocolo de Brasília, de dezembro de 1991, disciplinou a solução de controvér­
sias, sem criar qualquer órgão judiciário para o Mercosul: quando as discórdias não
se resolvessem por entendimento direto, ou no âmbito deliberativo do próprio
grupo, recorrer-se-ia à arbitragem. Nos primeiros dez anos não foi grande o núme­
ro de controvérsias cuja solução pediu mais que o simples entendimento direto.
Não obstante, o Protocolo de Olivos, vigente desde janeiro de 2004, criou um
Tribunal Permanente de Revisão: uma instância de recurso das decisões arbitrais
ad hoc do Protocolo de Brasília13. O Protocolo de Ouro Preto já havia dado ao
Mercosul personalidade jurídica e determinado em definitivo sua estrutura institu­
cional: um conselho, um grupo executivo, algumas comissões especiais, uma se­
cretaria. Nos órgãos colegiados a presença de todos os Estados-membros, e um
sistema deliberativo fundado na unanimidade por via de consenso.
O Mercosul está em vias de superar a fase da zona de livre comércio (supres­
são das barreiras alfandegárias em cada país para bens e serviços originários dos
demais sócios), tornando-se, em pouco tempo mais, uma perfeita união aduaneira
(quando consumada a tarifa externa comum). Seu objetivo vai além, e em algum
tempo mais essa organização regional poderá configurar um mercado comum, onde
o planejamento da economia seja feito pelo grupo — que conserva seus quatro
fundadores como membros a título pleno, mas recebeu já como associados (com
participação diferenciada) o Chile e a Bolívia.
13. O sistema não é diretamente acessível aos particulares, que devem formalizar suas
reclamações perante a respectiva seção nacional do grupo executivo.
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Capítulo III
RESPONSABILIDADE
INTERNACIONAL
170. Conceito. O Estado responsável pela prática de um ato
ilícito segundo o direito internacional deve ao Estado a que tal
ato tenha causado dano uma reparação adequada. É essa, em
linhas simples, a ideia da responsabilidade internacional. Cuida-se de uma relação entre sujeitos de direito das gentes: tanto vale
dizer que, apesar de deduzido em linguagem tradicional, com
mera referência a Estados, o conceito se aplica igual­mente às
organizações internacionais. Uma organização pode, com efeito,
incidir em conduta internacionalmente ilícita, arcando assim
com sua responsabilidade perante aquela outra pessoa jurídica
de direito das gentes que tenha sofrido o dano; e pode, por igual,
figurar a vítima do ilícito, tendo neste caso direito a uma
reparação.­
Mediador das Nações Unidas na Palestina, o conde sueco Folke Bernadotte
é assassinado em Jerusalém, em 17 de setembro de 1948. Com ele morre o coronel
André Sérot, chefe dos observadores franceses, e vários outros agentes da organi­
zação sofrem danos em razão dos quais ela acabaria por indenizar as vítimas ou
seus sucessores. Para que a ONU obtenha do governo responsável pelos aconteci­
mentos uma reparação apropriada a Assembleia Geral, mediante resolução de 3 de
dezembro de 1948, pede à Corte Internacional de Justiça um parecer consultivo
sobre as questões seguintes:
“I — Quando um agente das Nações Unidas sofre, no exercício de suas fun­
ções, um dano, em circunstâncias que comprometam a responsabilidade de um
Estado, a ONU tem qualidade para apresentar contra o governo de jure ou de facto
responsável uma reclamação a fim de obter a reparação dos danos causados (a) às
Nações Unidas, (b) à vítima ou a seus sucessores? II — Em caso de resposta afir­
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mativa sobre o ponto I-b, como a ação da ONU deve conciliar-se com os direitos
que o Estado de que a vítima é nacional poderia ter?”1. A Corte, em parecer con­
sultivo de 11 de abril de 1949, deixa claro que em semelhante hipótese a própria
organização sofre um dano em seus serviços, e à conta desse dano — que não se
confunde com aqueles causados diretamente às vítimas e a seus sucessores — tem
direito a uma reparação adequada. Transparece do texto a convicção de que, por
igual, a organização, titular que é de personalidade jurídica distinta das de seus
Estados componentes, pode acaso ser autora de um ilícito e sofrer as respectivas
consequências. A responsabilidade internacional, assim, pode envolver organizações
internacionais tanto como autoras quanto como vítimas do ato ilícito segundo o
direito das gentes.
171. Fundamento. Não se investiga, para afirmar a responsa­
bilidade do Estado ou da organização internacional por um ato
ilícito, a culpa subjetiva: é bastante que tenha havido afronta
a uma norma de direito das gentes, e que daí tenha resultado
dano para outro Estado ou organização. Muitos são os casos
em que a falta consiste apenas na insuficiência de zelo ou di­
ligência no tocante à preservação da ordem pública (daí resul­
tando injúria sobre pessoas ou bens estrangeiros), ou à garan­
tia de segurança em áreas pelas quais o Estado é responsável,
como seu mar territorial. Igualmente certo, contudo, é que não
se admite em direito das gentes uma responsabilidade objetiva,
independente da verificação de qualquer procedimento faltoso,
exceto em casos especiais e tópicos, disciplinados por conven­
ções recentes.
Assim as atividades nucleares de índole pacífica, bem como as atividades
espaciais, embora perfeitamente lícitas, podem causar danos que o Estado respon­
sável deva reparar. Seria, entretanto, mais apropriado entender que neste caso a
responsabilidade resulta não dos empreendimentos espaciais ou nucleares, lícitos
em si mesmos, mas da recusa de compensar espontânea e imediatamente os danos
causados a outrem.
1. Recueil CIJ (1949), p. 175.
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Seção I — ELEMENTOS ESSENCIAIS
172. O ato ilícito. A responsabilidade de uma pessoa jurídica
de direito internacional público — Estado ou organização — re­
sulta necessariamente de uma conduta ilícita, tomando-se aque­
le direito (e não o direito interno) como ponto de referência.
Assim, não há escusa para o ato internacionalmente ilícito no
argumento de sua licitude ante a ordem jurídica local. Impõe-se
de todo modo, para a caracterização do ilícito que ora nos inte­
ressa, que ele represente a afronta a uma norma de direito das
gentes: um princípio geral, uma regra costumeira, um disposi­
tivo de tratado em vigor, entre outras espécies.
173. A imputabilidade. A ação ou omissão caracterizada como
ilícita à luz do direito das gentes deve ser imputável a uma pes­
soa jurídica inscrita nessa mesma ordem, ou seja, a um Estado
ou a uma organização internacional. Diz-se indireta a responsa­
bilidade quando o Estado responde pelo ilícito provocado por
dependência sua (tal era o caso dos territórios sob tutela ou
protetorado), como na hipótese de associação (Porto Rico em
relação aos Estados Unidos da América), e também nos modelos
federativos. Desse modo, a província federada, embora tenha
aquilo que chamamos de personalidade jurídica de direito pú­
blico interno, é inidônea para figurar numa relação internacional:
o ilícito que tenha causado será de responsabilidade da sobera­
nia a que se subordina.
Direta, por outro lado, é a responsabilidade do Estado pela ação
de seus órgãos de qualquer natureza ou nível hierárquico: não está
excluída a possibilidade de imputar-se ao Estado o ilícito resultan­
te do exercício de competências legislativas ou judiciárias.
O ilícito internacional em que o Estado incorra pelo desempenho de seu poder
Judiciário não significa, obviamente, o simples fato de que o estrangeiro, indivíduo
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ou empresa, seja malsucedido na demanda sustentada contra a administração ou
contra particular nacional. Configura-se o ilícito nas hipóteses de denegação de
justiça, assim arroladas por Clóvis Beviláqua em parecer de 23 de janeiro de 1911:
“1. Quando o juiz, sem fundamento legal, repele a petição daquele que recorre à
justiça do país para defender ou restaurar o seu direito; 2. Quando, postergando as
fórmulas processuais, impede a prova do direito ou a sua defesa; 3. Quando a sen­
tença é, evidentemente, contrária aos princípios universais do direito”2.
Equivale à denegação de justiça, e põe em causa a responsabilidade interna­
cional do Estado, a decisão resultante do desprezo, por seu poder Judiciário, de
normas incontrovertidas do direito internacional positivo, tais como as que consa­
gram as imunidades e a inviolabilidade dos locais diplomáticos e consulares, ex­
pressas nas Convenções de Viena de 1961 e 19633. De resto, toda lei nacional
confli­tante com tratado em vigor representa a evidência de um ilícito internacional.
Neste caso, a responsabilidade do Estado resulta da atividade legiferante. A afron­
ta ao tratado — que é, em última análise, uma afronta ao princípio pacta sunt
servanda — coloca o Estado em situação de ilicitude desde quando entre em vigor
a lei com ele conflitante, e até que se revogue tal lei, ou até que produza efeito a
denúncia do compromisso internacional pelo Estado faltoso.
A ação hostil de particulares não compromete, por si mes­
ma, a responsabilidade internacional do Estado: este incorrerá
em ilícito somente quando faltar a seus deveres elementares de
prevenção e repressão. Se contudo a ordem pública for turbada
por acontecimentos próximos de criar clima de guerra civil, o
Estado estará eximido de seus deveres normais caso alerte os
estrangeiros para sua impossibilidade de preservar a paz social
no território ou em parte dele, e para a consequente conveniên­
cia de que se retirem.
Não faltavam ao governo do Irã, logo após a derrubada da monarquia e a
instituição da república islâmica, os meios necessários ao controle da situação na
capital. A Corte da Haia rejeitou o argumento que pretendia exonerar o Estado de
responsabilidade na violência de particulares contra a embaixada americana, em
2. Pareceres, I, p. 115.
3. Sobre a imunidade dos agentes de organizações internacionais: v. retro o § 160 e
adiante o § 181.
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1979. No caso do pessoal diplomático e consular dos Estados Unidos em Teerã
(Recueil CIJ, 1980, p. 3 e s.) a Corte considerou que, dada a aprovação das autori­
dades iranianas, “...a ocupação contínua da embaixada e a detenção persistente dos
reféns assumiram o caráter de atos do Estado. Os militantes tornaram-se então
agentes do Estado iraniano, cuja responsabilidade internacional está comprometida
pelos respectivos atos”.
O discurso clássico do direito das gentes aludia com fre­
quência ao tema da “proteção dos estrangeiros” ou da necessida­
de de que se garantisse permanentemente, em toda parte, a quem
não fosse cidadão local, uma série de prerrogativas elementares
que começavam pela integridade física e terminavam na segu­
rança do patrimônio e dos investimentos. Era comum afirmar que
o Estado nunca pode excluir sua responsabilidade pelo dano
causado a estrangeiros mediante a simples assertiva de que seus
próprios nacionais foram submetidos a igual tratamento. Essa
linguagem, própria da época em que inúmeros Estados recepto­
res de pessoas, de empresas e de capitais estrangeiros não prima­
vam pelo culto do direito e pouca dignidade atri­buíam aos cida­
dãos locais, fazia então algum sentido. Não se pretendia, em tese,
estabelecer em prol dos estrangeiros uma pauta de privilégios
rebuscados, mas apenas poupá-los do tratamento pouco respei­
toso e muitas vezes infame que bom número de Estados davam
a seus nacionais, num estágio primitivo de desenvolvimento
social, e sem grandes pressões exteriores que o incentivassem a
mudar de atitude. Hoje, após significativo progresso nos costu­
mes, trazendo consigo o prestígio do princípio democrático, maior
respeito pelos valores humanos, e havendo-se instaurado certos
mecanismos internacionais de proteção dos direitos do homem
e de seu controle, mesmo a distância, pela opinião pública, vai
deixando a cena a velha ideia de que o Estado deva uma proteção
diferenciada a estrangeiros. O que se lhe exige, na realidade
contemporânea, é um tratamento igualitário, uma política não
discriminatória entre estrangeiros e nacionais no que concerne
ao quadro elementar dos direitos civis.
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174. O dano. Não há falar em responsabilidade internacional
sem que do ato ilícito tenha resultado um dano para outra per­
sonalidade de direito das gentes. O dano, entretanto, não será
necessariamente material, não terá em todos os casos uma ex­
pressão econômica. Existem, como veremos, danos imateriais
de variada ordem, suscetíveis de justificar, por parte do Estado
faltoso, uma reparação também destituída de valor econômico.
Só o Estado vitimado por alguma forma de dano — causado
diretamente a si, ao seu território, ao seu patrimônio, aos seus
serviços, ou ainda à pessoa ou aos bens de particular que seja seu
nacional — tem qualidade para invocar a responsabilidade inter­
nacional do Estado faltoso. Assim, no domínio dos tratados, a
violação de norma convencional só pode, em princípio, dar origem
à reclamação das outras partes, não à de terceiros.
Dentro da Comissão do Direito Internacional das Nações Unidas discutiu-se,
nos anos setenta, a ideia de uma distinção entre “crimes internacionais” e “delitos
internacionais”: os ilícitos da segunda espécie, menos graves, justificariam tão só
o protesto da parte prejudicada, ou seja, do Estado ou organização que sofresse
efetivo dano; os da primeira espécie, mais graves, poderiam dar causa à reação de
qualquer membro da sociedade internacional, independentemente de que tenha
sofrido dano direto. Jiménez de Aréchaga assinala o fato sugestivo de que os
grandes defensores dessa distinção sustentavam, ao mesmo tempo, a política in­
tervencionista de potências autoinvestidas no encargo de policiar o mundo ou
parte dele4.
É importante lembrar que o só fato do dano não comprome­
te a responsabilidade do Estado se não se puder dizer ilícita sua
conduta. Essa análise sempre apresentou problemas e deu origem
a um farto contencioso internacional. Jiménez de Aréchaga
propõe que, no juízo sobre a licitude ou ilicitude do ato de Es­
4. Eduardo Jiménez de Aréchaga, El derecho internacional contemporáneo, Madri,
Tecnos, 1980, p. 327.
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tado, tenha-se presente o princípio geral de direito que proíbe o
enri­quecimento sem causa, o enriquecimento injusto5. Assim,
parecerá mais ou menos óbvio que se condene como ilícita a
conduta do Estado que traz arbitrariamente aos seus cofres, ou
aos de seus nacionais, valores resultantes do confisco ou da
expropriação de bens estrangeiros, sem fundamento histórico e
contábil (não foi ilícita, por exemplo, a nacionalização da com­
panhia do canal de Suez pelo governo egípcio do presidente
Nasser, em 1956). Considere-se, por outro lado, o caso do Es­
tado que proíbe o funcionamento de indústrias poluentes, e com
isso causa dano a investimentos estrangeiros. Não se dirá ilícita
sua atitude, se nada arrecadou para si com tal opção política:
pelo contrário, perdeu em impostos e noutros valores acessó­rios.
O dano econômico imediato foi generalizado, isso não permi­
tindo que se impute ao Estado um ilícito contra qualquer outra
soberania.
Seção II — PROTEÇÃO DIPLOMÁTICA
175. Teoria geral. No domínio da responsabilidade internacio­
nal, o estudo da proteção diplomática tem merecido destaque
desde quando, em função do interesse das antigas potências
coloniais, a análise estatística revelou que nas mais das vezes o
Estado reclamante — ou, se assim se pode dizer sem especial
incômodo, o Estado vítima do ilícito internacional imputável a
outra soberania — não pretendia ver-se ressarcido por dano
causado diretamente à sua dignidade ou ao seu patrimônio, mas
por alegada afronta ao patrimônio privado de um nacional seu
— em geral um investidor do hemisfério norte, seduzido pela
rentabilidade dos investimentos no hemisfério sul. Recordemos,
de início, em sua exatidão imaculada, a primitiva ideia da pro­
5. El derecho internacional, cit., p. 356.
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teção diplomática (que não deve ser confundida com outro tó­
pico de nossa disciplina, aquele referente aos privilégios do
serviço diplomático). A proteção que agora estudamos nada tem
de essencial a ver com a diplomacia. Seu objeto é o particular
— indivíduo ou empresa — que, no exterior, seja vítima de um
procedimento estatal arbitrário, e que, em desigualdade de con­
dições frente ao governo estrangeiro responsável pelo ilícito que
lhe causou dano, pede ao seu Estado de origem que lhe tome as
dores, fazendo da reclamação uma autêntica demanda entre
personalidades de direito internacional público. O nome proteção
diplomática deriva, de resto, do mais rudimentar e simples con­
texto possível, qual seja a situação do peregrino vitimado, em
solo estrangeiro, pelo abuso de poder estatal a que não consegue
resistir sozinho, e que invoca, dirigindo-se à legação diplomáti­
ca de sua bandeira, o arrimo da pátria distante. Mas esse molde
legal neutro bem cedo se deixaria preencher por uma argamassa
de elevado teor político. O particular, objeto da proteção diplo­
mática, vinha a ser cada vez mais a empresa e menos o indivíduo.
O ente causador do dano e responsável por sua reparação era,
via de regra, um Estado em desenvolvimento, plantado no he­
misfério sul, quase sempre na América Latina. Por seu turno o
Estado patrial, outorgante da proteção, tendia a estar alinhado
entre os exportadores de capital, de tecnologia, e de súditos tanto
mais entusiastas do lucro em ritmo de aventura quanto resguar­
dados, pelo providencial mecanismo, dos riscos que com lógica
e justiça se presumem inerentes a toda aventura. A doutrina tra­
dicional, sempre solícita às sugestões do seu meio, cuidou de
prestigiar quanto possível esse emprego unidirecionado e tenden­
cioso do instituto da proteção diplomática, ao qual, entretanto, a
primeira reação de grande vulto produziu-se já em 1868, por meio
das proposições de Carlos Calvo, que veremos adiante.
176. O endosso. A outorga da proteção diplomática de um Es­
tado a um particular leva o nome de endosso: esse ato significa
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que o Estado assume a reclamação, fazendo-a sua, e dispondo-se
a tratar da matéria junto ao Estado autor do ilícito. O endosso
não significa necessariamente que haverá instância judiciária ou
arbitral: é sempre possível que uma composição resulte do en­
tendimento direto, ou de outro meio diplomático ou político de
solução de controvérsias entre Estados.
Ao particular — indivíduo ou empresa — é facultado pedir
a proteção diplomática de seu Estado patrial, mas não tem ele o
direito de obtê-la. O Estado, com efeito, é livre para conceder o
endosso ou recusá-lo. Tem-se mesmo lembrado, em doutrina,
que o Estado, assim como pode recusar a proteção diplomática
que um nacional lhe solicita, pode igualmente concedê-la sem
pedido algum do particular, e mesmo à revelia deste. Essa tese,
reaquecida no contexto da reação europeia à doutrina Calvo, não
teve, de todo modo, grande amostragem na prática internacional.
Esta última afirmação refere-se ao contexto das reclamações internacionais
de vulto econômico, onde o endosso resultou sempre do pedido — muitas vezes
repetido e insistente — do particular lesado ao seu Estado patrial. No quadro dos
direitos individuais elementares não é raro que a iniciativa da proteção diplomática
prescinda do pedido da vítima: diplomatas e cônsules costumam agir ante a simples
notícia de que compatriotas seus se encontram presos arbitrariamente no Estado
territorial, sem esperar que estes formalizem um pedido de proteção6.
Duas são as condições do endosso — noutras palavras, dois
são os pressupostos que o Estado deve apurar ocorrentes antes
de outorgar a seu nacional a proteção diplomática. É o que ve­
remos agora.
177. Primeira condição do endosso: a nacionalidade do particular. É a condição patrial da pessoa física ou jurídica que
6. Sobre a proteção exercida pelos cônsules no quadro do processo penal, v. retro o § 95.
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permite ao Estado o exercício da proteção diplomática. No caso
das pessoas jurídicas, entretanto, a nacionalidade é um elemen­
to carente das raízes sociais e do relevo jurídico que esse víncu­
lo ostenta quando existente entre a pessoa humana e o Estado.
Determina-se a nacionalidade das pessoas jurídicas em função
da ordem jurídica estatal a que se subordinam, e que resulta, via
de regra, do foro de sua constituição.
O aparato formal prevalece, assim, sobre a realidade econômica: no caso da
Barcelona Traction, a Corte da Haia estimou que a Bélgica não estava qualificada
para proteger uma empresa constituída e sediada no Canadá, embora belgas fossem
seus acionistas majoritários7.
Nos indivíduos, o vínculo patrial é mais consistente que
aquele das pessoas jurídicas (para as quais o próprio uso do
termo nacionalidade é mera tradição insinuada pela analogia),
mas não deixa de apresentar certos problemas. Sabemos desde
logo que, apesar dos esforços reinantes no direito internacional
contemporâneo com vistas à eliminação da apatria, ainda hoje
existem apátridas em bom número. Para estes, vistos como es­
trangeiros por todas as soberanias, não há proteção diplomática
possível. Dependem eles, no âmbito territorial em que se encon­
trem, das normas protetivas que lhes consagra o direito local. O
direito das gentes busca confortá-los especialmente quando a
apatria se soma neles à condição de refugiados. Não é possível,
entretanto, que um Estado se veja demandar por outro em razão
do dano causado a um apátrida.
178. Dupla nacionalidade. Nas hipóteses de dupla ou múltipla
nacionalidade, qualquer dos Estados patriais pode proteger o
indivíduo contra terceiro Estado. O endosso é, contudo, impos­
7. Recueil CIJ (1970), p. 5 e s.
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sível de dar-se numa reclamação contra um dos Estados patriais:
isso resulta, de resto, do princípio da igualdade soberana.
Uma sentença arbitral proferida em 1912, no caso Canevaro, ilustrou corre­
tamente esse princípio8. Rafael Canevaro era um binacional nato, italiano jure
sanguinis, peruano jure soli. No Peru entregou-se aos negócios e teve participação
na vida pública, a ponto de se haver um dia candidatado a senador. Quando medi­
das fiscais e expropriatórias do governo peruano alcançaram parte de seu patrimô­
nio, Canevaro pretendeu valer-se da proteção diplomática de uma de suas pátrias
— a Itália — contra justamente a outra, o Peru. A sentença arbitral, da lavra de
Louis Renault, considerou irreceptível a demanda italiana, por ser o réu um Estado
que também contava Canevaro entre seus nacionais. Ficou claro que ambos os
vínculos patriais desse homem eram legítimos à luz do direito das gentes: tanto a
Itália quanto o Peru poderiam eventualmente endossar alguma reclamação sua
contra a Espanha ou o Brasil; nenhum deles, contudo, poderia pretender proteger
o nacional comum exatamente contra o outro.
179. Nacionalidade contínua. Sabemos que a nacionalidade — ao
contrário das impressões digitais, que persistem na pessoa hu­
mana ao longo de toda sua vida — pode sofrer mudanças. O
mesmo ocorre com a nacionalidade das pessoas jurídicas. Por
isso é importante conhecer uma antiga regra costumeira de direi­
to internacional público: para que o endosso seja válido, é preci­
so que o vínculo patrial entre o Estado reclamante e o particular
protegido tenha sido contínuo. É preciso que o particular tenha
sido um nacional do Estado reclamante no momento em que
sofreu dano decorrente de ato ilícito de potência estrangeira, e
que, sem qualquer quebra de continuidade, permaneça na condi­
ção de nacional desse mesmo Estado quando da reclamação.
180. Nacionalidade efetiva. Abusando de sua prerrogativa so­
berana, o Estado pode conferir sua nacionalidade a pessoa que
8. Para um resumo do caso Canevaro e referências úteis, v. Herbert Briggs, The law of
nations: cases, documents and notes, Nova York, Appleton-Century-Crofts, 1952, p. 512.
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com ele não tenha qualquer vínculo social. Neste caso, é lícito
que os demais Estados, e ainda os foros internacionais de qual­
quer natureza, recusem valor a semelhante vínculo patrial, por
falta de efetividade. Com efeito, é do entendimento geral que a
nacionalidade originária — aquela que a pessoa se vê atribuir
quando nasce — deve resultar do jus soli, ou do jus sanguinis,
ou de uma combinação desses dois critérios, acaso associados
ao serviço do Estado ou à manifestação de vontade. Já a nacio­
nalidade derivada — aquela que se adquire mediante naturali­
zação — reclama fatores de índole social que lhe dêem consis­
tência: alguns anos de residência no Estado em questão, somados,
em geral, ao domínio do idioma, e às vezes reduzidos na exten­
são, com parcimônia, pela prestação de serviço relevante a esse
Estado, ou pelo desempenho de ofício de seu particular interes­
se, ou pelo casamento com pessoa local. Se nenhum fator social
embasa a nacionalidade derivada, o Estado que a concedeu pode
perfeitamente prestigiá-la em seu próprio território. Mas não
deve esperar que no plano internacional esse vínculo inconsis­
tente seja reconhecido: tal foi a lição da Corte da Haia no julga­
mento do caso Nottebohm.
Alemão de nascimento, Friedrich Nottebohm estabeleceu-se na república da
Guatemala em 1905, e ali desenvolveu seus negócios, com sucesso, durante trinta
e quatro anos. Ao final da década de trinta pesava sobre seu patrimônio o risco de
certas medidas expropriatórias por parte do governo guatemalteco. Impossibilitado
de contar, no contexto da guerra, com a proteção alemã, Nottebohm dirigiu-se ao
exíguo principado do Liechtenstein. Ali, sumariamente, após havê-lo requerido e
pago certas taxas, tornou-se nacional. Anos depois o principado outorgava endosso
à sua reclamação, dando entrada na Corte da Haia com um processo contra a Gua­
temala. A Corte ficou na preliminar, considerando a demanda irreceptível. O acór­
dão registra: “Não depende nem da lei nem das decisões do Liechtenstein determi­
nar se esse Estado tem direito de exercer sua proteção no caso em exame. Exercer
a proteção [diplomática], dirigir-se à Corte, é colocar-se no plano do direito inter­
nacional. É o direito internacional que determina se um Estado tem qualidade para
exercer a proteção [diplomática] e vir à Corte. A naturalização de Nottebohm foi
ato realizado pelo Liechtenstein no exercício de sua competência nacional. Cuida-
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-se agora de dizer se esse ato produz o efeito internacional aqui considerado”9. Em
seguida, havendo examinado as circunstâncias em que o principado concedera sua
nacionalidade a Nottebohm, a Corte entendeu que esse vínculo patrial carecia de
efetividade, não servindo, portanto, para justificar o endosso. À falta do pressupos­
to da nacionalidade, a proteção diplomática era indevida: a demanda do Liechtens­
tein contra a Guatemala não podia ser recebida e examinada no mérito.
181. Proteção funcional. No parecer consultivo referente ao
caso Bernadotte — visto logo no início deste capítulo — a Cor­
te da Haia revelou que não apenas os Estados podem proteger
seus nacionais no plano internacional, mas também as organi­
zações internacionais encontram-se habilitadas a semelhante
exercício, quando um agente a seu serviço é vítima de ato ilíci­
to. Não há entre o agente e a organização um vínculo de nacio­
nalidade, mas um substitutivo deste para efeito de legitimar o
endosso, qual seja o vínculo resultante da função exercida pelo
indivíduo no quadro da pessoa jurídica em causa. A essa moder­
na variante da proteção diplomática dá-se o nome de proteção
funcional.
Sempre que o servidor da organização sofra dano em serviço, a proteção
funcional deve ser preferida à proteção diplomática que poderia dar-lhe seu país de
origem, cuja nacionalidade obviamente ele conserva. As razões dessa ideia foram
expostas pela Corte da Haia no parecer Bernadotte: “Para garantir a independência
do agente, e, pois, a ação independente da própria organização, é essencial que o
agente, no exercício de suas funções, não precise de contar com outra proteção que
não aquela da organização [.....]. Em particular, ele não deve depender de seu pró­
prio Estado. Se tal fosse o caso, sua independência poderia [.....] ver-se comprome­
tida. Enfim, é essencial que o agente — seja ele originário de um Estado forte ou
fraco, de um Estado mais ou menos envolvido pelas complicações da vida interna­
cional, de um Estado simpatizante ou não com sua missão — saiba que, no exer­
cício de suas funções, ele [o funcionário internacional] está coberto pela proteção
da organização”10.
9. Recueil CIJ (1955), p. 20-21.
10. Recueil CIJ (1949), p. 183-184.
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Em abril de 1999 a Corte da Haia atendeu a um pedido de parecer consultivo
feito pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas sobre imunidade de
jurisdição de um relator especial da Comissão dos direitos do homem. Essa missão
de relatoria havia sido confiada pela ONU ao advogado malaio Param Cumaraswa­
my, que em entrevista à imprensa britânica comentou criticamente a situação do
Judiciário na Malásia. Não há notícia de que se tenha ajuizado alguma ação penal
contra o agente da ONU, mas diversos particulares, sobretudo empresas, intentaram
ações civis pleiteando, por difamação e dano à imagem, indenizações montantes
no total a cerca de 112 milhões de dólares (observe-se que na ONU o salário do
próprio secretário-geral, ao longo de um inteiro mandato de cinco anos, não chega
a um milhão de dólares...). À Corte não incumbia julgar o procedimento do relator
especial que antecipara à imprensa conclusões de seu relatório ainda não apresen­
tado à Comissão dos direitos do homem, mas tão só dizer se, uma vez afirmado
pela organização, na voz do secretário-geral, que aquela pessoa era um agente das
Nações Unidas, e que se encontrava no desempenho de sua missão quando dos
acontecimentos, podia o governo da Malásia abster-se de garantir sua imunidade.
Ao cabo de um processo que teve todos os aspectos de um contencioso entre a ONU
e seu Estado-membro a Corte estatuiu, no parecer consultivo de 29 de abril de 1999,
que o agente em missão das Nações Unidas tinha o benefício da imunidade de ju­
risdição, sem exclusão do foro civil, e que o governo da Malásia estava obrigado a
fazer respeitar essa imunidade.
182. Segunda condição do endosso: o esgotamento dos recursos internos. Antes de outorgar o endosso, irá o Estado ve­
rificar se seu nacional esgotou previamente os recursos admi­
nistrativos ou judiciários que lhe eram acessíveis no território
do Estado reclamado. Numa grandiloquência ao gosto da época,
Hamilton Fish, secretário de Estado norte-americano entre 1869
e 1877, ponderou, todavia, que “nenhum cidadão reclamante,
em país estrangeiro, é obrigado a esgotar preliminarmente a
justiça quando não há justiça a esgotar”11. Na mesma trilha, em
linguagem mais sóbria, a doutrina cuidaria de estabelecer que o
requisito da exaustão das vias internas pressupõe não só a exis­
tência de tais vias, mas também sua acessibilidade, sua eficácia
e sua imparcialidade, entre outros valores. Assim, ao reclamar
11. Cf. Rousseau, p. 115.
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a proteção diplomática do país de origem, provará o interessado
que não dispunha de recursos internos no Estado reclamado, que
eles eram ilusórios ou inoperantes. Ou provará, nas mais das
vezes, que os esgotou, continuando a sentir-se vítima de ilícito
sancionado pelo direito internacional.
Contudo, no entendimento da Comissão do Direito Internacional das Nações
Unidas, a necessidade do prévio esgotamento dos recursos internos pressupõe que
o particular tenha alguma conexão voluntária com o Estado estrangeiro a quem se
atribui o ilícito: residência, propriedades, comércio12. Figure-se a situação de um
brasileiro que jamais tenha deixado o solo pátrio, nem tenha interesses econômicos
no exterior, mas cuja lavoura de algodão, em Pernambuco, tenha sido queimada
pela queda de um satélite posto em órbita pelo Estado X. Figure-se ainda a situação
de um pequeno empresário da pesca que, no litoral catarinense — ou mesmo em
alto mar — haja perdido seu barco em razão das manobras da esquadra do Estado
X. Em nenhum dos dois casos será exigível que o governo brasileiro reclame de
seu nacional o prévio esgotamento das instâncias administrativas ou judiciárias
existentes no território de X antes de conceder-lhe a proteção diplomática.
Clóvis Beviláqua, consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores,
opinava em 1º de julho de 1911 sobre o caso de Caetano Moreira da Silva, brasi­
leiro residente em Manaus, que ali aceitara incumbir-se do consulado da Bolívia,
e que desse modo se tornara credor daquela república em quanto despendera, no
exercício do encargo, por ordem das autoridades bolivianas. O parecer propunha o
patrocínio, pelo Brasil, da causa de seu nacional frente à Bolívia, sem qualquer
referência à necessidade de esgotamento prévio dos recursos com que, naquele país,
pudesse atacar-se o procedimento de seu governo13.
183. Efeito jurídico do endosso. Pelo fato de outorgar a prote­
ção diplomática a seu nacional, o Estado transforma aquilo que
até então vinha sendo uma reclamação particular numa recla­
mação própria. Ele se torna o dominus litis, o senhor da deman­
da, com todas as consequências daí resultantes. A assistência
que o particular possa dar-lhe ao longo do feito, proporcionando
12. Cf. Jiménez de Aréchaga, El derecho internacional, cit., p. 352.
13. Pareceres, I, p. 122.
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informações e outras espécies de apoio, não faz deste um coautor, um condômino da lide. Assim, e sem qualquer dever de
consulta ao particular lesado, é lícito que o Estado patrial con­
duza a demanda a seu exclusivo critério — o que começa, de
resto, por sua opção entre o uso dos meios diplomáticos, o da
arbitragem, o da via judiciária —, e no curso da demanda resol­
va por acaso transigir ou desistir. Por último, é certo que, levada
a demanda a bom termo, o direito das gentes não impõe ao Es­
tado patrial o dever de transferir a indenização obtida — ainda
que só no seu montante líquido, deduzidas todas as despesas
— ao particular. Esse dever resultará de princípios éticos, quan­
do não de normas do direito interno do próprio Estado. Não,
porém, de qualquer regra de direito internacional público.
184. Renúncia prévia à proteção diplomática: a doutrina e
a cláusula Calvo. A doutrina Calvo — da qual se extraíram as
bases de uma cláusula contratual homônima — fundou-se na
ideia de que não deve o direito internacional prestigiar teorias
aparentemente justas e neutras, cujo efeito prático é no entanto
acobertar privilégios em favor de um reduzido número de Esta­
dos. Ministro das Relações Exteriores da Argentina, Carlos
Calvo estatuiu, em 1868, que para os estrangeiros, assim como
para os nacionais, as cortes locais haveriam de ser as únicas vias
de recurso contra atos da administração. Dessa forma, o endos­
so deveria ser recusado pelas potências estrangeiras a seus na­
cionais inconformados. Quando não, a intervenção diplomática
haveria de ser ignorada, como descabida e nula, pelos Estados
reclamados.
Desde o aparecimento dessa doutrina, uma cláusula se fez com
frequência incorporar aos contratos de concessão e ajustes análo­
gos, celebrados entre governos latino-americanos e pes­soas físicas
ou jurídicas estrangeiras, segundo cujos termos as últimas renun­
ciam desde logo, e para todos os efeitos, à proteção diplomática
de seus países de origem em caso de litígio relacionado ao con­
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trato. Reconhecem, portanto, a jurisdição local como dotada de
competência exclusiva para decidir sobre tal matéria.
A doutrina e diversos governos do hemisfério norte reagiram
à cláusula Calvo do modo previsível, dando-a por nula, e o fun­
damento jurídico dessa reação foi relativamente simples: a
proteção diplomática, segundo o direito das gentes, não é direi­
to próprio do particular, mas de seu Estado patrial. É sempre o
último quem decide sobre o endosso da reclamação daquele que
se afirma lesado no estrangeiro, mesmo na ausência de um pe­
dido formal deste. Não se compreende, em tais circunstâncias,
que disponha o indivíduo ou a empresa da prerrogativa de re­
nunciar à proteção diplomática, entendida como um direito que
não lhe pertence. A cláusula Calvo exprimiria renúncia a uma
faculdade alheia, sendo por isso nula de pleno direito.
Essas proposições um tanto cínicas pretendem ignorar a
óbvia distinção que se faz em toda parte — mas notadamente nos
países ocidentais investidores — entre o patrimônio estatal e o
patrimônio privado. Escamoteiam ao mesmo tempo outra distin­
ção elementar, aquela que separa os direitos individuais indispo­
níveis — a vida, a integridade física, a liberdade, a personalidade
jurídica — e aqueles outros disponíveis, e portanto renunciáveis
a qualquer tempo, dos quais a propriedade industrial ou comercial
é o modelo por excelência. Como quer que seja, a doutrina Cal­
vo colheu maior número de êxitos que de percalços na prática
dos Estados e na jurisprudência internacional. Já em 1926 a Co­
missão que se incumbiu do exame das reclamações americano-mexicanas, no julgamento do caso da North American Dredging
Company, estatuiu que o particular, havendo aceito no contrato
uma estipulação do gênero da cláusula Calvo, estava impedido
de recorrer à proteção diplomática de seu governo a propósito da
execução ou da interpretação do próprio contrato14.
14. V. comentário de Jiménez de Aréchaga, El derecho internacional, cit., p. 367-368.
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Seção III — CONSEQUÊNCIAS DA
RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL
185. A reparação devida. Sobre o pressuposto de haver sido
responsável por ato ilícito segundo o direito das gentes, o Es­
tado deve àquela outra personalidade jurídica internacional uma
reparação correspondente ao dano que lhe tenha causado. Essa
reparação é de natureza compensatória. Não deve o estudioso
iludir-se à vista do uso contemporâneo de expressões como
“crimes de Estado”, supondo que na sociedade internacional
descentralizada em que vivemos possa existir um contencioso
punitivo, onde Estados figurariam como réus. Os fatos que, na
prática corrente, nos trazem ao espírito a ideia da apli­cação ao
Estado de um “castigo” semelhante àqueles que, em direito
interno, as normas penais impõem a indivíduos, quase sempre
representam mera via de fato levada a cabo por outra soberania
militarmente habilitada a tal exercício. No que tem de jurídico
e organizado, o contencioso internacional é ainda hoje um con­
tencioso de compensação, não um contencioso punitivo15. Isto,
entretanto, não significa que todo e qualquer ilícito internacio­
nal seja reparável sob forma estritamente pecuniária ou indeni­
zatória.
186. Formas e extensão da reparação devida. A forma da
reparação há de corresponder à do dano. Tenha este sido estri­
tamente moral — como no caso de injúria ao pavilhão nacional
do Estado vítima, ou à pessoa de seu governante —, não há falar
em compensação que se deduza em dinheiro, mas naquela que
assuma feitio condizente com a natureza do dano: o desagravo
público, o pedido formal de desculpas, a punição das pessoas
responsáveis. Se o dano, entretanto, teve expressão econômica,
15. Cf. Rousseau, p. 129.
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a reparação há de dar-se em dinheiro, sendo este o quadro que
a prática internacional mais frequentemente apresenta. Outra
forma possível de reparar-se o dano, conforme sua natureza, é
a restauração do statu quo ante, a recolocação das coisas no
estado em que se encontravam antes do ato ilícito.
Um parecer de Clóvis Beviláqua, consultor jurídico do Ministério das Relações
Exteriores, datado de 24 de abril de 1914, narra a ocorrência de ilícito internacional
cujo dano foi diversificado, e cuja reparação também haveria de assumir forma
múltipla. Autoridades uruguaias de Rivera, “supondo que, no território brasileiro,
havia depósito de armas pertencentes a conspiradores orientais, não trepidaram em
combinar e executar a passagem da fronteira e a intervenção por três ou quatro
léguas em território brasileiro, detendo particulares, desarmando funcionários fiscais,
invadindo casas durante a noite, rompendo cercas e arrecadando objetos que se
achavam em poder de seus donos ou depositários”16. Esse ilícito justificou descul­
pas compensatórias do ultraje moral representado pela invasão. Deu também ense­
jo a indenizações financeiras — que, afinal, não tiveram grande monta. Mas foi
reparado principalmente, e antes de tudo, pela volta ao statu quo ante, ou seja, pelo
retorno à origem da tropa invasora.
No caso das reparações de índole econômica, coloca-se em
mesa o problema de sua extensão. A esse respeito a jurisprudên­
cia internacional oferece algum préstimo no sentido de fazer
entender o que seja uma indenização justa: esta deve compre­
ender, sobre o montante básico, o correspondente ao que no
Brasil chamamos de juros moratórios, resultantes do tempo de
espera, pela vítima, do efetivo recebimento do que lhe é devido.
Hão de compensar-se também, se for o caso, os lucros cessantes.
Não, porém, os chamados danos indiretos, mas só aqueles que
tenham sido o resultado imediato do ato ilícito.
Um tribunal arbitral composto por representantes da Suíça, do Brasil, da
Itália e dos dois Estados litigantes pronunciou, em 1872, a sentença relativa ao caso
16. Pareceres, II, p. 53.
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do Alabama (Marcos Antonio de Araújo, visconde de Itajubá, foi o árbitro indica­
do pelo governo imperial brasileiro). Os Estados Unidos da América acusavam a
Grã-Bretanha de haver, violando seu estatuto de neutralidade frente à guerra da
secessão, permitido que se armassem em seus portos alguns navios que serviram
aos confederados do Sul, e que impuseram baixas e prejuízos vultosos à marinha
dos Estados do Norte, sendo o Alabama o principal dentre esses barcos. A senten­
ça arbitral julgou procedente a demanda e condenou a Grã-Bretanha a indenizar os
Estados Unidos com quinze milhões e meio de dólares da época, soma que lhe
pareceu corresponder ao valor total dos danos causados pelas embarcações armadas
em portos britânicos. Os árbitros rejeitaram, entretanto, a tese americana de que a
indenização devesse cobrir danos indiretos, tais como as consequências econômicas
do prolongamento da guerra da secessão causado pelo reforço que os barcos arma­
dos na Grã-Bretanha trouxeram ao exército confederado.
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Capítulo IV
O FENÔMENO SUCESSÓRIO
187. O princípio da continuidade do Estado. O Estado, como
já vimos, não é produto de mera elaboração jurídica convencio­
nal: ele é antes de tudo uma realidade física, um contingente
humano estabelecido em determinada área territorial, sob a re­
gência de uma ordem jurídica — cujo eventual colapso não faria
com que desaparecessem os elementos materiais preexistentes
à composição do sistema de poder. Fala-se por isso num princí­
pio da continuidade do Estado, que evoca de certo modo a lei
física da inércia. O Estado, pelo fato de existir, tende a continu­
ar existindo — ainda que sob outra roupagem política, e até
mesmo quando ocorram modificações expressivas na determi­
nação da titularidade da soberania. A bem dizer, não é ao Esta­
do nominalmente considerado que se refere o princípio da
continuidade, mas a toda área territorial habitada por uma co­
munidade de pessoas. Outrora, na península ibérica, houve um
califado de Córdoba e um reino de Navarra. Essas duas sobera­
nias não subsistiram como tais. Depois de processos sucessórios
vários, integram-se hoje no reino da Espanha.
Com aquela outra categoria de personalidades de direito das
gentes — as organizações internacionais — não se dá o mesmo.
Não há, no que se lhes refere, qualquer princípio de continuida­
de. Produto da norma jurídica expressa em seu tratado constitu­
tivo, a organização não tem substrato material comparável ao do
Estado, e pode a todo momento, por convenção de seus integran­
tes, desaparecer sem deixar resíduo. Tanto não impede, contudo,
que o fenômeno sucessório possa ocorrer no âmbito das organi­
zações internacionais — assumindo uma nova entidade desse
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gênero o patrimônio, as obrigações, os créditos, e até mesmo,
no todo ou em parte, o estilo e os propósitos de uma organização
extinta.
Seção I — SUCESSÃO DE ESTADOS: MODALIDADES
188. Fusão ou agregação de Estados. Este fenômeno ocorre
quando dois ou mais Estados passam a constituir um único. Suas
subespécies são: aquela em que o novo Estado é produto da soma
horizontal e igualitária das soberanias preexistentes (unidade
italiana, 1860-1870, resultante da agregação da Lombardia, da
Toscana, do Vêneto, de Roma etc.; fusão do Egito com a Síria,
em 1958, formando a República Árabe Unida); aquela em que,
apesar da adoção de novo nome, as bases da agregação não são
exatamente igualitárias, visto que um dos Estados anteriores
prima sobre os demais (unidade alemã, 1871, sob a hegemonia
da Prússia); e aquela em que um Estado pura e simplesmente se
integra noutro (anexação da Áustria pela Alemanha, 1938; in­
corporação dos países bálticos — Estônia, Letônia e Lituânia
— à União Soviética, 1940).
Sugere-se neste ponto uma reflexão sobre qual o modelo de que mais se
aproxima a reunificação da Alemanha — sob o nome, a bandeira, a ordem jurídica,
o estilo e o patrocínio da República Federal — em 3 de outubro de 1990.
189. Secessão ou desmembramento de Estados. Nesta moda­
lidade, o inverso da precedente, dois ou mais Estados resultam
da divisão do que até então vinha sendo uma única soberania.
No processo de descolonização, tal é o fenômeno usual: assim,
do primitivo território britânico, compreensivo de inúmeras
porções coloniais na África e em outras partes, desmem­braram-se as áreas hoje constitutivas da Nigéria, do Quênia e da Tan­
zânia, entre tantas outras soberanias. Mas há desmembra­mentos
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estranhos ao contexto colonial — e é em tais hipóteses que o
termo secessão costuma empregar-se.
Foi o que ocorreu quando, em 1838, a Federação Centro-Americana dividiu-se em cinco Estados (Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua);
quando o Egito e a Síria reassumiram suas identidades anteriores, dividindo a
efêmera República Árabe Unida, em 1961; quando Bengala apartou-se do Paquis­
tão, em 1971; quando se dissolveu, em 1991, a União Soviética — dando origem
a quinze Estados independentes; quando no mesmo ano a Croácia e a Eslovênia
deixaram a federação iugoslava (que sofreria novas perdas nos anos seguintes de
modo a resumir-se, na virada do século, em Sérvia e Montenegro); quando a Tche­
coslováquia se partiu em duas nações soberanas no primeiro dia de 1993.
190. Transferência territorial. Aqui, finalmente, temos uma
situação em que nenhuma soberania surge ou desaparece. Os
Estados preexistentes subsistem com suas identidades. Apenas
uma área territorial integrante de um deles transfere-se para
outro. Muda, pois, tão só a soberania incidente sobre essa par­
cela de território.
Em 1821 as colônias que mais tarde comporiam a Federação Centro-Ameri­
cana libertam-se do domínio espanhol e se anexam, de imediato, à soberania me­
xicana (situação que durou quatro anos). Em 1867 o Alasca transfere-se do império
russo aos Estados Unidos, mediante compra e venda. Em 1871 a Alsácia-Lorena
passa da França à Alemanha, vitoriosa na guerra. Em 1903 o Acre passa da Bolívia
ao Brasil, mediante operação complexa, predominando as características da compra
e venda. Em 1919 a Alsácia-Lorena volta a fazer parte do território francês, por ato
penitencial imposto à Alemanha, vencida na guerra.
Seção II — SUCESSÃO DE ESTADOS: EFEITO
JURÍDICO
191. Normas aplicáveis. No que concerne tanto à nacionalida­
de das pessoas afetadas pelo fenômeno sucessório quanto aos
tratados, aos bens públicos e à dívida pública, é comum que as
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consequências da sucessão sejam determinadas por lei do Esta­
do resultante de agregação, ou por tratado entre as soberanias
resultantes do desmembramento — ou envolvidas na transferên­
cia territorial. De tal modo, o estudo realista que se pretenda
fazer dessa matéria é necessariamente casuístico. Havia entre­
tanto certas regras costumeiras em direito das gentes. Para co­
dificá-las — ou acaso mudá-las no que parecesse inadequado ao
momento histórico — celebraram-se, sobre projetos da Comis­
são do Direito Internacional das Nações Unidas, uma Convenção
de 1978 sobre a sucessão de Estados em matéria de tratados, e
uma Convenção de 1983 sobre a sucessão de Estados em maté­
rias de bens, arquivos e dívidas.
192. Nacionalidade das pessoas. Se há agregação, uma nova
qualidade reveste os nacionais das soberanias reunidas: assim
lombardos e romanos, vênetos e piemonteses tornam-se italianos
em 1870. No desmembramento o comum é que os habitantes do
novo Estado adquiram automaticamente sua nacionalidade,
perdendo a primitiva, e tendo um eventual direito de opção. A
abertura de opção é também uma prática usual na hipótese de
transferência de território: exemplo não muito distante no tem­
po foi a escolha de nacionalidade facultada aos habitantes da
Ucrânia subcarpática, quando da transferência dessa região da
Tchecoslováquia à União Soviética, em 1945. Em 1993, quando
do desmembramento da Tchecoslováquia, seus nacionais tiveram
opção entre a nacionalidade tcheca e a eslovaca, corresponden­
te cada uma delas a uma nova soberania.
193. Bens públicos. O Estado sucessor, assim entendido aque­
le que veio a substituir outro na titularidade de certo território,
tem sobre este o chamado domínio eminente, que é atributo da
soberania e vale para toda sua extensão (mesmo as áreas de
propriedade privada).
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Tem ele ainda a propriedade dos bens públicos: os de uso
comum do povo, como ruas, estradas e parques; os de uso espe­
cial, como prédios públicos empregados pela administração; e
ainda os dominiais — reservas imobiliárias que o Estado pode
negociar para auferir receita. Esse patrimônio, indissociável do
território, estará necessariamente nas mãos do Estado detentor
da soberania territorial.
Em caso de desmembramento, o critério topográfico não
resolve o problema de certos créditos e valores mobiliários, nem
tampouco o dos bens imóveis que o primitivo Estado possuísse
no exterior, servindo às suas missões diplomáticas e consulares.
A Rússia assumiu — aparentemente sem oposição das demais
repúblicas — o patrimônio imobiliário que abrigara, em mais
de uma centena de países, a diplomacia soviética. Entre Egito e
Síria — restaurados em 1961 pela bipartição da República Ára­
be Unida — chegou a produzir-se um incidente relativo ao do­
mínio do prédio de sua antiga embaixada no Rio de Janeiro.
No tocante aos arquivos públicos, o problema só parece oferecer alguma
dificuldade na hipótese de secessão ou desmembramento. A doutrina clássica dis­
tingue os arquivos de gestão, atinentes à pura matéria administrativa, dos arquivos
de soberania ou políticos, para asseverar que o Estado preexistente só transfere ao
novo Estado — num quadro típico de descolonização — os primeiros, quando lhe
digam respeito. Não os últimos, sequer em parte. A Convenção de 1983 nada dis­
crimina, e limita-se a prescrever a entrega, ao novo Estado, de todos os arquivos
que se lhe refiram, sem qualquer compensação material.
194. Tratados e dívida externa. O Estado resultante de agrega­
ção é responsável pelo conjunto das obrigações convencionais e
dos débitos de seus integrantes. No desmembramento e na trans­
ferência territorial, o princípio é o da repartição ponderada da
dívida, atentando-se primordialmente à destinação que tenha sido
dada ao produto dos empréstimos externos. Não se exclui, assim,
a possibilidade de que o novo Estado veja pesar sobre si a inte­
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gralidade de uma dívida contraída pelo Estado pri­mitivo em
proveito único daquela área que veio a tornar-se independente.
Há dívidas, entretanto, cuja causa não terá sido uma distribuição territorial
de benefícios, mas uma aplicação centralizada e política de recursos recolhidos
no exterior. Neste caso é que a doutrina estabelece uma distinção entre dívidas
de Estado — contraídas no interesse geral da comunidade, e por isto próprias para
serem compartilhadas na hora da sucessão — e dívidas de regime — contraídas no
interesse do esquema de poder preexistente, e muitas vezes para sustentar a cam­
panha colonial (caso em que são chamadas de dívidas odiosas). As dívidas de re­
gime não se projetam sobre o Estado desmembrado: é natural, assim, que a Argélia,
independente em 1962, não tenha herdado da França parte alguma do passivo re­
lacionado com a manutenção da ordem na área, ou seja, dos dispêndios públicos
que se fizeram exatamente para impedir o acesso do território argelino à indepen­
dência.
Ainda na hipótese de desmembramento, entende-se que o
Estado recém-independente recolhe o benefício do princípio da
tabula rasa: ele encontra diante de si uma mesa vazia de obri­
gações convencionais, e a irá preenchendo na medida em que
negocie tratados. Quanto aos compromissos convencionais do
Estado matriz, o novo Estado nada tem a ver com eles, em prin­
cípio, quando bilaterais. Mesmo no caso dos tratados coletivos,
o entendimento atual, consagrado pela Convenção de 1978, é no
sentido de que o novo Estado, sem estar obrigado a nada, pode
tornar-se parte, mediante o envio de uma notificação de sucessão
ao depositário.
Santa Lúcia, em 1986, e Dominica, em 1987, notificaram o depositário das
Convenções de Viena sobre relações diplomáticas (1961) e consulares (1963) do
seu ingresso por sucessão do Reino Unido, retroagindo ao dia exato da indepen­
dência de cada um dos dois novos Estados.
A notificação de sucessão, entretanto, só é válida se compatível com os limi­
tes de abertura do tratado coletivo. Se o Brasil perdesse, por desmembramento, uma
parcela de seu território meridional, esse novo Estado não teria como suceder no
Tratado de Cooperação Amazônica, fechado a adesões exatamente por dizer res­
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peito estrito à área daquela bacia fluvial. Nenhuma república africana resultante da
descolonização europeia nas últimas décadas tornou-se parte, por sucessão, nos
tratados comunitários europeus dos anos cinquenta.
Seção III — SUCESSÃO DE ORGANIZAÇÕES
INTERNACIONAIS
195. Um quadro recente. As primeiras organizações interna­
cionais propriamente ditas — porque dotadas de personalidade
jurídica de direito das gentes, e de aptidão para manifestar uma
vontade distinta daquela de seus Estados-membros — surgiram
em 1919. Essas entidades são, portanto, contemporâneas, e re­
centes são alguns fenômenos sucessórios que já as tenham al­
cançado. Deve ter ficado claro que, no caso das organizações, a
sucessão não é uma necessidade: não se lhes aplica qualquer
princípio análogo ao da continuidade do Estado, visto que, sem
substrato físico, uma organização pode desaparecer pela só
vontade concertada de seus membros. Mas a sucessão de orga­
nizações internacionais pode acontecer, e a esta altura já são
diversos os exemplos concretos. Como observou Nguyen Quoc
Dinh1, “é raro que uma organização seja colocada em liquidação
completa (mediante retorno do ativo aos Estados-membros); o
mais comum é que suas funções e seu patrimônio sejam confia­
dos a uma outra organização, preexistente ou nova”.
196. Dois exemplos. Aponta-se a Organização das Nações Uni­
das como sucessora da Sociedade das Nações. Ela o é, em ver­
dade, não só na conjugação do alcance universal com a finali­
dade política e nos objetivos periféricos, mas também sob a
ótica formal do fenômeno sucessório. É verdade que a ONU
surgiu em 1945, quando a SDN, extinta de fato em 1939 com a
1. Droit international public, Paris, LGDJ, 7. ed., 2002, p. 600.
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eclosão da segunda grande guerra, preservava ainda sua existên­
cia de direito. Com a ONU já em funcionamento, votou-se em
Genebra, em 18 de abril de 1946, a extinção da SDN — cujo
desaparecimento formal definitivo ocorreria em 31 de julho de
1947, data do fechamento das contas. A decisão extintiva deter­
minou a sucessão, fazendo a ONU legatária do patrimônio
imobiliário, dos móveis, arquivos e depósitos da velha Socieda­
de, bem como de suas obrigações de ordem previdenciária e
outras de menor vulto.
Sucessão mais próxima de nós, no tempo e no espaço, foi
a da Associação Latino-Americana de Livre Comércio pela
Associação Latino-Americana de Integração. Neste caso a or­
ganização anterior foi sucedida por uma organização nova, cujo
tratado constitutivo, quando vigente, determinou simultanea­
mente a extinção da primeira e o surgimento da segunda. Cele­
brado em Montevidéu em 12 de agosto de 1980, o Tratado da
ALADI esta­be­leceu em seu art. 54 que a personalidade jurídica
da ALALC, resultante do Tratado de 1960, “continuará, para
todos os efeitos” na nova entidade, sobre esta recaindo todos os
direitos e obrigações da outra.
Além da ONU e da ALADI há algumas outras organizações internacionais
contemporâneas de origem relacionada com um processo sucessório: a Organização
da Aviação Civil Internacional (OACI), a Organização Mundial de Saúde (OMS),
a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNES­
CO), a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE) e a
Organização da Unidade Africana (OUA).
Não houve sucessão do GATT pela Organização Mundial do Comércio, pri­
meiro porque o Acordo Geral de Tarifas e Comércio nunca foi uma organização
internacional, mas apenas um tratado multilateral de execução particularmente
aparatosa e complexa; segundo porque esse tratado subsiste, ao lado de outros cuja
vigência, mais que apenas compatível com o surgimento da OMC, constitui parte
essencial da ordem jurídica da organização.
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Parte III
DOMÍNIO PÚBLICO
INTERNACIONAL
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197. Proposição da matéria. É da tradição doutrinária que a
expressão domínio público internacional designe aqueles espa­
ços cuja utilização suscita o interesse de mais de um Estado
soberano — às vezes de toda a comunidade internacional —,
ainda quando sujeitos à incidência de determinada soberania.
Tal o motivo de que, a propósito desses espaços, exista uma
disciplina normativa em direito das gentes. Cuida-se do mar
— com seus diversos setores —, dos rios internacionais, do
espaço aéreo, do espaço extra-atmosférico, e ainda do continen­
te antártico. Este último, porque não versado nos capítulos que
irão compor esta parte do livro, é objeto de breve análise preli­
minar, precedida de uma nota sobre o polo norte.
198. O polo norte. O escasso interesse econômico do polo nor­
te explica a modéstia de seu tratamento jurídico. Ali não há
massa terrestre como no polo sul: cuida-se apenas de água de
mar, perenemente congelada. A distância, o clima, a precarie­
dade dos recursos biológicos praticamente reduzem o polo
norte à estrita condição de corredor aéreo alternativo. Com efei­
to, por sua proximidade passam diversas rotas aéreas que eco­
nomizam distância entre a Europa e o extremo oriente, cruzan­
do espaço de livre trânsito — independentemente de qualquer
tratado —, pelo justo motivo de que a superfície hídrica subja­
cente é alto mar.
A chamada teoria dos setores não pretendeu, em absoluto,
fundamentar qualquer pretensão de domínio sobre as águas
congeladas que circundam o polo, mas apenas justificar, me­
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diante invocação do princípio da contiguidade, o domínio das
ilhas existentes na área, a oitocentos quilômetros ou mais do
ponto de convergência. Os setores triangulares configuram o
resultado da projeção, sobre o polo, do litoral norte do Canadá
(alcançando as ilhas Sverdrup), da Dinamarca — em razão da
Groenlândia —, da Noruega (alcançando o arquipélago Spitzberg),
e da Rússia (alcançando a ilha Wrangel e o arquipélago de Fran­
cisco José, entre outras terras). Invocando a contiguidade, esses
Estados proclamaram sua soberania sobre tais ilhas, sempre me­
diante atos unilaterais, que não suscitaram contestação.
199. A Antártica. Aqui temos uma ilha gigantesca, dominando
o círculo polar antártico, e coberta de gelo em quase toda sua
extensão. Sobre a Antártica, onde o interesse econômico e es­
tratégico pareceu desde logo mais acentuado, diversas pretensões
nacionais vieram à mesa, assentando em pelo menos quatro
diferentes teorias.
A teoria dos setores, se aplicada à Antártica, haveria de dividir o continente
em inúmeras fatias triangulares resultantes da projeção não só de litorais relativa­
mente próximos — como o do Chile, o da África do Sul e o da Austrália —, mas
também de alguns outros situados a enorme distância: o do México, o do Paquistão,
até mesmo o da Islândia. Países europeus de tradição navegatória, em especial a
Grã-Bretanha e a Noruega, invocaram a teoria da descoberta, enquanto os Estados
Unidos preferiam prestigiar a atividade de controle do litoral antártico — embora
não formulassem nenhuma reivindicação territorial concreta, nem reconhecessem
a validade de qualquer reivindicação alheia. A Argentina aventou, como base de
suas pretensões, uma teoria da continuidade da massa geológica.
O Tratado da Antártica foi firmado em Washington, em 1959,
e entrou em vigor dois anos mais tarde. Entre seus negociadores
estiveram a Argentina, o Chile, a Austrália, a Noruega, a França,
o Reino Unido, os Estados Unidos e a União Soviética. O Brasil
nele ingressou, mediante adesão, em 1975. As adesões recentes,
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resultantes sobretudo de processos sucessórios na Europa, ele­
varam para quarenta e cinco o número de partes. Esse tratado
deixa claro que nenhum dos Estados pactuantes, por ingressar
nele, renuncia às suas eventuais pretensões de domínio sobre
parte do continente, nem tampouco reconhece pretensões alheias.
O regime jurídico estabelecido pelo texto é o da não militariza­
ção da Antártica, que só deve ser usada para fins pacíficos, como
a pesquisa científica e a preservação de recursos bio­ló­gicos,
proibidos o estabelecimento de bases ou fortificações, as mano­
bras militares, os testes com armas de qualquer natureza, o
lançamento de resíduos radioativos.
O Tratado prevê reuniões periódicas para intercâmbio de informações e pro­
jetos relacionados com a Antártica, e dispõe que os Estados aderentes — tal é o
caso do Brasil — nelas terão participação na medida em que demonstrarem “seu
interesse pela Antártica, pela promoção ali de substancial atividade de pesquisa
científica, tal como o estabelecimento de estação científica ou o envio de expedição
científica” (art. 9, § 2).
O Brasil realizou sua primeira expedição à Antártica entre dezembro de 1982
e fevereiro de 1983, com os navios Barão de Teffé, da Marinha, e Professor W.
Besnard, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo. À luz das
prescrições do Tratado, o Brasil foi admitido nessas reuniões consultivas a partir
de setembro de 1983.
Uma convenção de Camberra, de 1980 — vigente em 1982 e, para o Brasil,
em janeiro de 1986 —, dispôs sobre a conservação dos recursos vivos dos mares
adjacentes à Antártica.
Um protocolo de Madri de abril de 1991, vigente no mesmo ano, e resultan­
te de demorada e difícil negociação, consagrou a proposta franco-australiana
(apoiada desde o início pelo Brasil, e à qual se haviam oposto, inicialmente, os
Estados Unidos, a Grã-Bretanha e o Chile) de preservar a Antártica contra toda
espécie de exploração mineral durante um prazo fechado de cinquenta anos, findo
o qual essa proibição só se poderá abrandar mediante consenso dos Estados que
são partes consultivas no Tratado de 1959 (27 do total de 45).
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Capítulo I
O MAR
200. Codificação do direito costumeiro. O direito do mar é
parte elementar do direito internacional público, e suas normas,
durante muito tempo, foram unicamente costumeiras. A codifi­
cação dessas normas ganhou alento já sob o patrocínio das Nações
Unidas, havendo-se concluído em Genebra, em 1958, (a) uma
Convenção sobre o mar territorial e a zona contígua, (b) uma
Convenção sobre o alto mar, (c) uma Convenção sobre pesca e
conservação dos recursos vivos do alto mar, e (d) uma Convenção
sobre a plataforma continental. Sucede que esses quatro textos
— cuja aceitação não chegou a ser generalizada — produziram-se no limiar de uma era marcada pelo questionamento das velhas
normas e princípios: os oceanos já não representavam apenas
uma via de comunicação navegatória, própria para alguma pesca
e algumas guerras. O fator econômico, tanto mais relevante
quanto enfatizado pelo progresso técnico, haveria de dominar o
enfoque do direito do mar nos tempos modernos.
Em presença do direito anterior à grande Convenção de 1982, Charles Rous­
seau criticava a ideia do mar como res communis, ali não vendo qualquer elemen­
to condominial, sobretudo quando convertido o oceano em cenário de guerra. Para
ele, melhor se teria conceituado o mar como res nullius: uma singular coisa de
ninguém que é, entretanto, insuscetível de apropriação, e sobre a qual os Estados
exercem determinadas competências1.
Esse debate é incômodo, menos por seu academicismo que pela transposição,
ao direito das gentes, de conceitos do direito civil. Quem lhe tenha apreço, de todo
1. Rousseau, p. 228.
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modo, perceberá que a noção do mar como res communis, outrora infundada, co­
meça a fazer algum sentido no regime da Convenção de 1982.
A Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar foi
concluída, depois de quase nove anos de negociação, em Monte­
go Bay, na Jamaica, em 10 de dezembro de 1982. Compõe-se
de trezentos e vinte artigos e vários anexos. Entrou em vigor no
dia 16 de novembro de 1994, um ano após a reunião do quorum
de sessenta Estados ratificantes ou aderentes.
O Brasil, que ratificou a Convenção em dezembro de 1988, tratou de ajustar
seu direito interno aos preceitos daquela antes mesmo da entrada em vigor — e, pois,
antes de encontrar-se obrigado no plano internacional. A Lei n. 8.617, de 4 de janei­
ro de 1993, reduz a doze milhas a largura de nosso mar territorial e adota o conceito
de zona econômica exclusiva para as cento e oitenta e oito milhas adjacentes.
201. Navios: noção e espécies. Pode-se definir o navio como
todo engenho flutuante dotado de alguma forma de autopro­
pulsão, organizado e guarnecido segundo sua finalidade. O navio
tem sempre um nome, um porto de matrícula, uma determinada
tonelagem, e tem sobretudo — em função da matrícula — uma
nacionalidade, que lhe confere o direito de arvorar uma bandei­
ra nacional.
Distinguem-se os navios mercantes — quase sempre priva­
dos, mas eventualmente públicos — dos navios de guerra. Estes
últimos têm como características, segundo a Convenção de 1982,
o fato de pertencerem às forças armadas de um Estado, de os­
tentarem sinais exteriores próprios de sua qualidade, de estarem
sob o comando de oficiais identificados, e de encontrar-se sua
tripulação submetida às regras da disciplina militar2.
2. Art. 29.
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Os navios de guerra encontram-se a todo momento sob a jurisdição do Esta­
do de origem, gozando de imunidade mesmo quando em trânsito por mares terri­
toriais alheios, ou ancorados em portos estrangeiros. Igual privilégio reconhece o
costume internacional às embarcações pertencentes ao Estado e usadas para fins
não comerciais, qual um navio de representação3.
No que concerne aos navios comerciais, públicos ou privados, seu regime
depende do espaço onde se encontrem, conforme será visto adiante.
Seção I — ÁGUAS INTERIORES, MAR TERRITORIAL
E ZONA CONTÍGUA
202. Variedade das águas interiores. Existem, no âmbito es­
pacial da soberania de todo Estado, águas interiores estranhas
ao direito do mar, e por isso não versadas na Convenção de 1982:
tal o caso dos rios e lagos de água doce, como dos pequenos
mares interiores, carentes de interesse internacional. As águas
interiores a que a Convenção se refere são águas de mar aberto:
fazem parte daquela grande extensão de água salgada em comu­
nicação livre na superfície da Terra, e sua interioridade é pura
ficção jurídica. Cuida-se das águas situadas aquém da linha de
base do mar territorial, em razão da existência de baías, de por­
tos e ancoradouros, ou de um litoral caracterizado por “recortes
profundos e reentrâncias ou em que exista uma franja de ilhas
ao longo da costa na sua proximidade imediata”4.
Esta última referência pretendeu dizer respeito a um litoral singular, como o
da Noruega. Em regra, a linha de base do mar territorial é a linha costeira ou lito­
rânea, na maré baixa. Essa linha, entretanto, afasta-se do bordo costeiro por conta
da existência de baías, de portos e de ilhas próximas.
Ressalvado o caso das baías históricas (Hudson, no Canadá, Granville, na
França, La Plata, entre Argentina e Uruguai), cuja dimensão não importa, as demais
3. Caso do Parlement Belge, decidido em 1879 pelas cortes britânicas (v. J. F. Rezek,
Direito dos tratados, Rio de Janeiro, Forense, 1984, p. 290).
4. Art. 7, § 1.
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só justificam o deslocamento da linha de base — assumindo a natureza de águas
internas — quando sua concavidade for pelo menos igual à de um semicírculo,
tendo por diâmetro a linha de entrada, e não excedendo, esta última, o comprimen­
to de vinte e quatro milhas marítimas (cerca de 44 km).
As instalações portuárias permanentes consideram­se parte da costa, sendo
assim contornadas pela linha de base. As ilhas costeiras, por sua vez, não deslocam
a linha de base relativa ao litoral do continente, mas geram direito, por si mesmas,
a uma faixa de mar territorial que as circunde. Quando situadas numa baía, autori­
zam a consideração de sua área como parte do semicírculo, devendo tomar­se por
diâmetro (nunca excedente de vinte e quatro milhas marítimas) a soma dos com­
primentos das linhas que fechem as diferentes entradas.
Instalações
portuárias
Mar territorial
22m
3m
6m
9m
9m
Águas interiores
Território
Figura 1. Linha de base do mar territorial.
203. Regime jurídico. Sobre as águas interiores o Estado costei­
ro exerce soberania ilimitada. Não há, nelas, direito de passagem
inocente. O acesso aos portos não é livre por força de alguma
norma geral de direito das gentes: tanto os navios mercantes
quanto os navios de guerra que ostentem pavilhão estrangeiro só
podem atracar nos portos — entrando, assim, nas águas interiores
— quando autorizados pela capitania. É certo, contudo, que essa
autorização na prática é dada com antecedência, e em caráter
duradouro, no caso das linhas regulares de carga e de passageiros.
Ela pode ainda vir expressa em tratado, aplicando­se, em bases
de concessão mútua, a todos os navios — ou a todos os navios de
comércio — que levem o pavilhão de cada Estado pactuante.
Admitindo navios de guerra estrangeiros em seus portos, o
Estado costeiro conforma­se com a imunidade de jurisdição de
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que desfrutam. Não há imunidade para navios mercantes: há
apenas a praxe de não interferir, salvo em casos excepcionais,
em incidentes de bordo que de nenhum modo afetem a ordem
territorial.
Há na Convenção de 1982 uma norma conservadora de direitos (o art. 8, §
2). Ali se resguarda a prerrogativa da passagem inocente sobre aquelas águas que
no regime anterior eram de mar territorial, e por força das novas regras relativas à
linha de base tornaram-se águas interiores.
204. Mar territorial: natureza e regime jurídico. A soberania
do Estado costeiro — diz a Convenção de 1982 — estende-se,
além do seu território e das suas águas interiores, a uma zona de
mar adjacente designada pelo nome de mar terri­torial. A sobe­
rania, em tal caso, alcança não apenas as águas, mas também o
leito do mar, o respectivo subsolo, e ainda o espaço aéreo sobre­
jacente.
Esta soberania só não é absoluta — como no caso do terri­
tório ou das águas interiores — porque sofre uma restrição tópi­
ca, ditada por velha norma internacional: trata-se do direito de
passagem inocente, reconhecido em favor dos navios — mercan­
tes ou de guerra — de qualquer Estado. Não só os navios que
flanqueiam a costa realizam passagem inocente, mas também
aqueles que tomam o rumo das águas interiores para atracar num
porto, ou dali se retiram. Em todos os casos a passagem inocen­
te deve ser contínua e rápida, e nada pode degenerá-la, sob risco
de ato ilícito: proíbem-se ao navio passante manobras militares,
atos de propaganda, pesquisas e busca de informações, atividades
de pesca, levantamentos hidrográficos, enfim tudo quanto não
seja estritamente relacionado com o ato simples de passar pelas
águas territoriais. Aos submarinos manda-se que naveguem na
superfície e arvorem seu pavilhão. O Estado costeiro tem o di­
reito de regulamentar a passagem inocente de modo a prover à
segurança da navegação, à proteção de instalações e equipamen­
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tos diversos, à proteção do meio ambiente e à prevenção de in­
frações à própria disciplina da passagem. Pode ele ainda, quando
isso for necessário à segurança da navegação, estabelecer rotas
marítimas a serem seguidas pelos barcos transeuntes.
Não pode o Estado costeiro impor obrigações que frustrem
ou dificultem a passagem inocente, nem discriminar navios em
função de sua nacionalidade ou do Estado a que estejam servin­
do. Não pode, ainda, cobrar taxas pelo só fato da passagem —
sendo legítima a percepção do preço de serviços prestados, à
base de uma tabela não discriminatória.
Os navios de guerra, imunes à jurisdição local, podem,
contudo, receber a ordem de imediata retirada do mar territorial
quando afrontem a respectiva disciplina. Sobre navios de comér­
cio em trânsito pelo mar territorial o Estado costeiro abstém-se
de exercer jurisdição civil, salvo por responsabilidade decorren­
te do próprio ato de por ali passar. A jurisdição penal do Estado
costeiro tampouco será exercida sobre o navio mercante em
trânsito, exceto se a infração produz consequências sobre a ordem
territorial, ou tem a ver com o tráfico de tóxicos; e ainda em caso
de pedido de interferência feito pelo capitão ou pelo cônsul do
Estado de nacionalidade do navio.
205. Mar territorial: extensão. A ideia da soberania do Estado
costeiro no mar territorial relaciona-se, na origem, com o impe­
rativo de defesa do território. Ao romper do século XVIII, por
isso, adotava-se generalizadamente uma faixa com a largura de
três milhas marítimas, visto que esse era o alcance máximo da
artilharia naval e costeira. Já no século XX, e por volta da se­
gunda grande guerra, alguns Estados estenderam — sempre
mediante atos unilaterais — a largura dessa área a quatro, seis,
nove, e mesmo doze milhas marítimas. A partir de 1952 diversos
países da América Latina — a começar por Chile, Equador e
Peru — decidiram estender a duzentas milhas marítimas (cerca
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de 370 km) seus mares territoriais, justificando a medida com a
invocação de imperativos de ordem econômica.
O Brasil adotou o mar territorial de duzentas milhas por lei de março de 1970,
quando já o haviam feito oito países da área. A concepção extensionista do mar
territorial não se circunscreveu, de todo modo, na América Latina: a Guiné, na
costa atlântica africana, vindicaria oitenta milhas, e a Islândia, república insular a
noroeste da Europa, onde é acentuada a dependência dos recursos marinhos, viria
a estender a cinquenta milhas a largura de sua faixa de mar territorial — o que lhe
custou um litígio com a Grã-Bretanha.
Desde o início da campanha das duzentas milhas, as repú­
blicas que primeiro proclamaram essa tese fizeram por deixar
claro que não se tratava de uma afirmação arrogante de sobera­
nia, mas de medida atenta às necessidades econômicas de tais
países, à sua dependência dos recursos do mar e ao imperativo
de preservá-los contra o esgotamento a que os levaria a pesca
intensa e predatória ali praticada por barcos estrangeiros. Isso
lembrado, não há negar que a campanha foi vitoriosa. A Con­
venção de 1982 manda que seja de doze milhas marítimas (cer­
ca de 22 km) a largura máxima da faixa de mar territorial de
todo Estado costeiro, mas consagra as duzentas milhas a título
de zona econômica exclusiva.
206. Mar territorial: delimitação. Mede-se a largura da faixa
a partir da linha de base, isto é, da linha litorânea de maré baixa,
alternada com a linha de reserva das águas interiores quando
ocorrerem baías ou portos. As ilhas — como Fernando de No­
ronha e Trindade — devem dispor de faixa própria, em igual
extensão, o que determina a conjugação de suas águas territoriais
com as do continente, quando dele estiverem próximas. Ilhas
artificiais e plataformas não têm mar territorial próprio. Não o
têm tampouco os baixios a descoberto (vale dizer, as ilhas que
submergem na maré alta), a menos que se encontrem, no todo
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ou em parte, dentro da faixa de águas territoriais do continente
ou de uma ilha autêntica: neste caso, a linha de base deverá
contorná­los.



Território
Águas interiores
Mar territorial
Plataformas

Baixios a descoberto
Figura 2. Limites do mar territorial.
O critério da equidistância, de velha tradição costumeira, é
consagrado pela Convenção de 1982 para a delimitação do mar
territorial no caso dos Estados costeiros adjacentes ou confron­
tantes, a menos que tenham decidido, em comum acordo, adotar
outra regra.
Estado B
Estado A
Estado C
Figura 3. Partilha do mar territorial entre Estados adjacentes ou confrontantes.
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207. Zona contígua. A noção de zona contígua não prima pela
consistência. Cuida-se de uma segunda faixa, adjacente ao mar
territorial, e, em princípio, de igual largura, onde o Estado cos­
teiro pode tomar medidas de fiscalização em defesa de seu
território e de suas águas, no que concerne à alfândega, à imi­
gração, à saúde, e ainda à disciplina regulamentar dos portos e
do trânsito pelas águas territoriais. Num artigo único, a Conven­
ção de 1982 refere-se à zona contígua, sumariando essas prer­
rogativas do Estado costeiro e estabelecendo o limite da faixa:
ela não poderá ir além de vinte e quatro milhas marítimas con­
tadas da mesma linha de base do mar territorial. O estatuto ju­
rídico da zona contígua não é o do mar territorial. Antes da
Convenção de 1982 entendia-se tal zona como parte do alto mar,
onde, entretanto, o Estado costeiro se encontra autorizado a
certas medidas defensivas. Hoje essa faixa se confunde com as
primeiras milhas da zona econômica exclusiva.
A adoção de uma zona contígua só faz sentido quando a extensão do mar
territorial não excede os padrões tradicionais, alcançando um máximo de doze
milhas. Não se falou em zona contígua quando os Estados latino-americanos ado­
taram a política das duzentas milhas, nem quando em outros continentes certos
outros países proclamaram soberania sobre igual faixa, ou sobre oitenta, ou mesmo
sobre cinquenta milhas marítimas.
Seção II — ZONA ECONÔMICA EXCLUSIVA
208. Entendimento. A ideia da zona econômica exclusiva é
contemporânea dos trabalhos preparatórios da Convenção de
1982, cujo texto a conceitua e disciplina. Trata-se de uma faixa
adjacente ao mar territorial — que se sobrepõe, assim, à zona
contígua —, e cuja largura máxima é de cento e oitenta e oito
milhas marítimas contadas do limite exterior daquele, com o que
se perfazem duzentas milhas a partir da linha de base5.
5. É possível que o Estado costeiro adote um mar territorial de largura inferior a 12
milhas: nesse caso, sua zona econômica exclusiva poderá ter mais que 188 milhas, observa­
do o limite total de 200 milhas contadas da linha de base.
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Embora satisfatória na enumeração dos direitos que o Estado costeiro e os
demais países têm na zona econômica exclusiva, a Convenção não define essa zona
— nem a zona contígua — como sendo uma parte do alto mar a que se aplicam
regimes jurídicos especiais. Bem ao contrário, a estrutura da Convenção parece
favorecer a ideia de que essas áreas são conceitualmente distintas, e de que o alto
mar é apenas aquilo que, ainda hoje, muitos autores prefeririam ver como alto mar
propriamente dito, pela não incidência de qualquer regime jurídico diferenciado
— e necessariamente restritivo da liberdade total de uso em comum. O alto mar da
Convenção de 1982 começa a duzentas milhas de distância de qualquer território.
209. Direitos do Estado costeiro. Sobre sua zona econômica
exclusiva o Estado é limitada e especificamente soberano: ele ali
exerce “direitos de soberania para fins de exploração e aprovei­
tamento, conservação e gestão dos recursos naturais” existentes
na água, no leito e no subsolo, e para quanto mais signifique
aproveitamento econômico, tal como a produção de energia a
partir da água ou dos ventos. O Estado costeiro exerce também
jurisdição sobre a zona em matéria de preservação do meio ma­
rinho, investigação científica e instalação de ilhas artificiais.
210. Direitos da comunidade. Todos os Estados gozam, na zona
econômica exclusiva de qualquer deles, de liberdades que dis­
tinguem essa área do mar territorial: a navegação — prerroga­
tiva mais ampla que a simples passagem inocente —, o sobrevoo
— que acima das águas territoriais não é permitido por norma
geral alguma — e a colocação de cabos ou dutos submarinos,
além de outros usos compatíveis com os direitos do Estado cos­
teiro. Quando este último, em matéria de exploração econômica,
não tiver capacidade para o pleno aproveitamento racional pos­
sível da zona, deverá tornar o excedente acessível a outros Es­
tados, mediante atos convencionais.
A Convenção estabelece ainda que os Estados sem litoral — como Paraguai
e Bolívia — têm direito de participar, em base equitativa, do aproveitamento do
excedente dos recursos vivos (não dos recursos minerais, portanto) das zonas eco­
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nômicas exclusivas de seus vizinhos. Mediante acordos regionais ou bilaterais
determinar-se-ão os termos e condições dessa participação.
Seção III — PLATAFORMA CONTINENTAL E
FUNDOS MARINHOS
211. Regime jurídico da plataforma continental. Antes que
se falasse, já na segunda metade do século XX, em mar territo­
rial de duzentas milhas ou em zona econômica exclusiva, a
plataforma continental oferecia aos estudiosos um interesse
maior. Cuida-se, geograficamente, daquela parte do leito do mar
adjacente à costa, cuja profundidade em geral não excede du­
zentos metros, e que, a uma boa distância do litoral, cede lugar
às inclinações abruptas que conduzem aos fundos marinhos.
Sobre essa plataforma e seu subsolo o Estado costeiro exerce
direitos soberanos de exploração dos recursos naturais, e assim
sucedia mesmo na época em que a largura dos mares territoriais
variava entre três e doze milhas — e em que, por isso, a maior
parte da plataforma jazia sob águas de alto mar.
A chamada “guerra da lagosta”, incidente diplomático ocorrido em 1963
entre Brasil e França, resultou da presença constante de barcos de pesca franceses
em águas próximas do mar territorial brasileiro — que então era de três milhas —,
para o recolhimento intensivo daquele crustáceo. As águas eram de alto mar, e
portanto a pesca era livre. O Brasil sustentou, no entanto, que a lagosta, como es­
pécie predominantemente rasteira (e não nadadora), tinha por habitat não o meio
hídrico, mas a plataforma continental brasileira. Esse argumento ficou demonstra­
do, e conduziu ao êxito a pretensão local de que a caça da lagosta não prosseguis­
se sem prévio entendimento entre os dois países.
Nos termos da Convenção de 1982, o limite exterior da pla­
taforma continental coincide com o da zona econômica exclusi­
va — duzentas milhas a partir da linha da base —, a menos que
o “bordo exterior da margem continental” (ou seja, o limiar da
área dos fundos marinhos) esteja ainda mais distante: neste caso,
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o bordo será o limite da plataforma, desde que não ultrapasse a
extensão total de trezentas e cinquenta milhas marítimas.
Os direitos econômicos do Estado costeiro sobre sua plata­
forma continental são exclusivos: nenhum outro Estado pode
pretender compartilhá-los (como acontece, em certa medida, na
zona econômica sobrejacente) se aquele não os aproveita. Esses
direitos, por outro lado, não dependem da ocupação da platafor­
ma, nem de qualquer pronunciamento. Visto, contudo, que a
soberania do país costeiro só diz respeito à exploração dos re­
cursos naturais da plataforma, não pode ele impedir que outros
países ali coloquem cabos ou dutos submarinos, observada cer­
ta disciplina.
212. Regime jurídico dos fundos marinhos. Ao leito do mar
na região dos fundos marinhos, e ao respectivo subsolo, a Con­
venção de 1982 — primeiro tratado a versar amplamente esse
tema — dá o nome de área. A área fica além dos limites de ju­
risdição nacional, ou seja, das diversas plataformas continentais.
Sobre ela assentam as águas do alto mar e o respectivo espaço
aéreo. Seus recursos de maior vulto são minerais de variada
natureza, em especial os nódulos polimetálicos.
A área e seus recursos constituem, segundo a Convenção,
patrimônio comum da humanidade. Esta foi a norma que fez
com que os Estados Unidos repudiassem o tratado: teriam pre­
ferido que os fundos marinhos permanecessem no estatuto jurí­
dico de res nullius, à espera da iniciativa de quem primeiro
pudesse, com tecnologia avançada, explorá-los. A Convenção
institui uma autoridade internacional dos fundos marinhos,
organização a ser integrada pelos Estados-partes, que se incum­
be da administração da área. Sob este singular regime, sua ex­
ploração faz-se tanto pelos Estados, mediante o controle da
autoridade, quanto pela empresa — um ente operacional dire­
tamente subordinado àquela.
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Seção IV — ALTO MAR
213. Princípio da liberdade. A liberdade do alto mar — outro­
ra se dizia simplesmente a liberdade dos mares — é ampla: diz
respeito à navegação e a todas as formas possíveis de aprovei­
tamento, nenhuma pretensão restricionista podendo emanar da
autoridade soberana de qualquer Estado. O princípio da liber­
dade foi afirmado por Roma ao tempo de sua hegemonia. Sofreu
desgaste na Idade Média, à força de aspirações de domínio que
as potências navais manifestaram sob a influência do princípio
feudal. Foi proclamado com vigor pelos juristas-teólogos espa­
nhóis do século XVI, Francisco de Vitória e Francisco Suárez,
e motivou, na primeira metade do século seguinte, a célebre
controvérsia doutrinária entre o holandês Hugo Grotius, que
publicou em 1609 o Mare liberum, e o inglês John Selden, que
replicou em 1635 com o Mare clausum — obra supostamente
encomendada por Carlos I de Inglaterra, onde o autor sustenta
que o mar é suscetível de apropriação e domínio, mas não chega
a excluir a liberdade coletiva de navegação. As pretensões do­
miniais desaparecem com o século XVII.
O moderno direito convencional, representado pelos textos
de 1958 e de 1982, parte do princípio da liberdade do alto mar e
estabelece a propósito um padrão mínimo de disciplina. Segundo
a Convenção de 1982, a liberdade concerne à navegação, ao
sobrevoo por aviões de qualquer natureza, à colocação de cabos
e dutos submarinos, à construção de ilhas artificiais e instalações
congêneres, à pesca e à investigação científica. A prerrogativa
de navegação não exclui os Estados sem litoral, que podem ter
na­vios públicos e navios privados arvorando sua bandeira.
214. Restrições à liberdade. O alto mar deve ser utilizado para
fins pacíficos — norma coerente com a proibição formal da
guerra, que data pelo menos de 1945 — e no exercício de suas
liberdades cada Estado se obriga a levar em conta os interesses
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dos demais. A todos se impõe que colaborem na conservação dos
recursos vivos do alto mar, bem como na repressão do tráfico de
escravos, do trânsito e comércio ilícito de drogas, da pirataria e
das transmissões não autorizadas a partir do oceano.
Pirataria é o saque, depredação ou apresamento de navio ou aeronave, em
geral mediante violência, e para fins privados6. A caracterização da pirataria não
exige que o navio que a realiza seja apátrida — e arvore, como outrora, o distintivo
do crânio e das duas tíbias em branco sobre fundo negro —: nela podem incorrer
navios mercantes dotados de nacionalidade, e até mesmo navios de guerra degene­
rados por motim a bordo.
Transmissão não autorizada é a geração de programas radiofônicos e televi­
sivos dirigidos, do alto mar, ao público em geral, sem que Estado algum tenha a
emissora sob registro e receba de seus exploradores algum tributo.
As naus de guerra de qualquer pavilhão podem apresar, em alto mar, embar­
cações piratas, para que sobre elas seu Estado de origem exerça jurisdição. No caso
das transmissões clandestinas, a jurisdição e a competência para o apresamento em
alto mar recaem sobre os Estados relacionados por vínculo patrial com o navio
infrator ou seus responsáveis, e ainda sobre os Estados cujo território recebe as
transmissões ou sofre sua interferência.
215. Disciplina da navegação. A Convenção de 1982, no que
se refere à nacionalidade dos navios, pretende condenar os cha­
mados “pavilhões facilitários” ou de complacência (Libéria,
Panamá, Chipre), ao dizer que deve haver sempre um vínculo
substancial entre o Estado e o navio que arvora sua bandeira.
Presume-se que em alto mar todo navio se encontra sob a juris­
dição do seu Estado patrial, e os navios de guerra podem exercer
autoridade sobre navios mercantes de igual bandeira. Mas para
que um navio de guerra constranja, sob a forma do direito de
6. Não constitui pirataria, exatamente por faltar-lhe o requisito dos “fins privados”, a
apropriação temporária de um navio a título de manifesto político, qual ocorreu em 1961,
no litoral brasileiro, com o transatlântico português Santa Maria, tomado pelos opositores
do regime salazarista, sob a orientação do general Humberto Delgado. Sobre a diferença
entre a pirataria e a antiga prática do corso, v. adiante o § 262, e nele a nota 3.
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visita, o navio mercante de outra nacionalidade, é preciso haver
fundada suspeita de que este seja responsável por pirataria, trá­
fico ou transmissões clandestinas, ou de que o pavilhão não
represente sua nacionalidade verdadeira — a ser apurada me­
diante exame dos documentos de bordo.
Sob o nome de perseguição contínua (hot pursuit) o direito costumeiro abo­
nava — e a Convenção de 1982 consagra — a prerrogativa que têm as naus de
guerra de um Estado costeiro de prosseguir, alto mar a fora, no encalço de navio
mercante que tenha infringido as normas aplicáveis em seu mar territorial ou zona
contígua. Para ser lícita em alto mar, essa perseguição há de ter começado num
daqueles espaços afetos ao Estado costeiro, e não pode ter sofrido interrupção. Não
tendo sido possível interpelar o barco faltoso em alto mar, a perseguição deverá
cessar, de todo modo, quando ele ingresse no mar territorial de seu próprio Estado
ou de terceiro.
Seção V — TRÂNSITO MARÍTIMO:
ESTREITOS E CANAIS
216. Estreitos: algumas normas gerais. Se o corredor hídrico
entre dois espaços marítimos de interesse internacional é bas­
tante largo para que os mares territoriais confrontantes não se
toquem, não há problema algum a resolver, visto que existente
uma faixa central sobre a qual não incide a soberania plena dos
Estados. Convém lembrar que a “soberania” do Estado costeiro
na zona econômica exclusiva é de índole finalística: só diz res­
peito ao aproveitamento econômico e à jurisdição preserva­
cionista e investigatória.
O estreito típico é o corredor cujas águas integram o mar
territorial de um ou mais Estados, e que assegura a comunicação
entre espaços de alto mar ou zona econômica exclusiva, interes­
sando à navegação internacional. Sem haver trazido maiores
inovações ao direito costumeiro, a Convenção de 1982 garante
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nos estreitos o direito de passagem em trânsito a navios e aero­
naves, civis ou militares, de qualquer bandeira.
Qual a diferença entre essa passagem em trânsito e a passagem inocente no
mar territorial ordinário? Ambas devem ser breves e contínuas, nunca se autorizan­
do ao passante qualquer atividade dissociada do puro e simples deslocamento. Em
ambos os casos assiste ao titular — ou aos titulares — da soberania o direito de
editar regulamentos, estabelecer rotas e orientar o tráfego. A passagem inocente,
contudo, diz respeito unicamente a navios singrando a superfície hídrica, enquanto
a passagem em trânsito favorece também as aeronaves no espaço aéreo sobrejacen­
te ao estreito.
Os mais notórios estreitos internacionais são Gibraltar, que
liga o Atlântico ao Mediterrâneo e envolve águas territoriais
marroquinas, espanholas e britânicas (por conta de uma encrava
colonial); Magalhães, que liga no extremo sul da América o
Atlântico ao Pacífico, tocando o Chile e a Argentina; os estreitos
dinamarqueses Sund, Belt e Grand Belt, vias alternativas de
passagem do mar do Norte ao Báltico; e os estreitos turcos,
Bósforo e Dardanelos, que dão acesso do mar Negro ao Medi­
terrâneo. Sobre todos esses estreitos editaram-se, no passado,
convenções e atos unilaterais de conteúdo semelhante: dispõem
sobre a liberdade indiscriminada de passagem em tempo de paz,
e — o que era próprio da época — referem-se também ao tem­
po de guerra, conferindo neste caso alguns poderes extraordiná­
rios ao Estado costeiro.
217. Canais: regimes singulares. Os canais também são corre­
dores que facilitam o trânsito entre dois espaços marítimos,
porém não constituem obra da natureza. Daí a assertiva de que
o regime jurídico de todo canal que tenha interesse para a nave­
gação internacional há de ser, em princípio, ditado por aquela
soberania que assumiu o empreendimento de construí-lo em seu
próprio território.
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Este o caso simples do canal de Corinto, que, construído pela Grécia, recorta
um istmo no solo grego, assegurando conexão cômoda entre o mar Egeu e o mar
Jônico, partes do Mediterrâneo. A Grécia formulou seu regulamento, assegura sua
disciplina e percebe taxas pelo trânsito, em bases igualitárias para navios de qual­
quer nacionalidade.
O canal de Kiel, situado na Alemanha, ao norte de Hamburgo, estabelece li­
gação entre o mar do Norte e o Báltico, permitindo que se evite o contorno da
Dinamarca. Foi construído pelos próprios alemães em 1895, e teria uma situação
igual à de Corinto — ou seja, um regime jurídico ditado pela voz soberana e sin­
gular do dono — não fosse a situação peculiar da Alemanha, vencida em duas
grandes guerras. O Tratado de Versalhes, em 1919, cuidou de internacionalizar o
uso do canal, garantindo seu livre trânsito em tempo de paz na região. Várias de
suas cláusulas seriam denunciadas pelo governo nazista em 1936. Mas ao fim da
guerra, em 1945, novo regime convencional restabeleceria a regra da ampla liber­
dade de trânsito, percebendo a Alemanha taxas módicas.
Os dois canais internacionais de maior importância foram
construídos no território de países impossibilitados de arcar com
o custo do empreendimento. Daí a influência de Estados e ca­
pitais estrangeiros, determinando originalmente, num e noutro
caso, a edição de um regime jurídico internacionalizado, em
bases convencionais.
O canal de Suez, obra da companhia de Ferdinand de Lesseps,
foi construído em 1869 no território egípcio, então subordinado
à soberania do império Otomano. Tem uma extensão de cento e
sessenta quilômetros planos e liga o Mediterrâneo ao oceano
Índico, pelo mar Vermelho. A Convenção de Constantinopla, de
1888, foi celebrada entre a Turquia e oito potências europeias:
seu texto estabeleceu que o canal estaria aberto a navios civis
ou militares de todas as nacionalidades, em tempo de paz ou de
guerra. O canal de Suez foi expropriado e nacionalizado em 1956
pelo governo republicano do Egito, que fez valer a autoridade
de sua decisão apesar da violência com que reagiram França e
Grã-Bretanha. Esteve fechado durante alguns meses naquele
ano, e mais tarde, entre 1967 e 1975, por causa dos danos resul­
tantes da guerra com Israel. Seu regime jurídico contemporâneo
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resulta de um ato unilateral, a declaração do governo egípcio
de 24 de abril de 1957.
No que concerne ao regime jurídico de Suez, a declaração promete respeito
aos termos e ao espírito da Convenção de Constantinopla, bem como da Carta das
Nações Unidas. Isso significa que o governo egípcio, transformado pela expro­priação
em titular do domínio do canal, assegura livre trânsito, em todo tempo, a navios de
qualquer espécie ou bandeira, garantindo a segurança da navegação e percebendo
taxas igualitárias. É certo, entretanto, que por força de um estado análogo ao de
guerra o Egito discriminou as naus israelenses, não as admitindo à passagem por
Suez, até que as duas nações concluíssem o tratado de paz de 1979.
O canal de Panamá — cujos oitenta e um quilômetros esca­
lonados em degraus, mediante um sistema de comportas, pro­
porcionam valiosa comunicação entre as áreas centrais do
Atlântico e do Pacífico — teve sua construção levada a termo
em 1914. Seu regime jurídico, entretanto, estava já estabelecido
pelo tratado de 18 de novembro de 1903 (que se chamou Trata­
do Hay-Bunau Varilla), entre o governo local e o dos Estados
Unidos da América, país empreendedor da construção por haver
sucedido à companhia francesa de Ferdinand de Lesseps, que
falira, e por haver favorecido a independência do território pa­
namenho, até então integrante da república da Colômbia.
No que concerne à sua disciplina, o canal de Panamá pouco
difere dos demais: ali existe ampla liberdade de trânsito, sem
discriminação de qualquer espécie, e as taxas só são mais ele­
vadas em razão dos custos, grandemente acrescidos pelo meca­
nismo de comportas, visto que esse corredor hídrico não é plano
como Suez ou Kiel. A originalidade do canal de Panamá esteve
presente no regime jurídico estabelecido pelo tratado de 1903.
No calor das emoções da independência, a recém-proclamada república do
Panamá concedeu aos Estados Unidos, em caráter perpétuo, o uso, a ocupação e o
controle de uma faixa territorial com a largura de dez milhas entre o litoral atlân­
tico e o litoral pacífico do país (a zona do canal), bem assim o monopólio da ad­
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ministração do canal e de sua defesa militar. Em contrapartida o governo paname­
nho recebeu 10 milhões de dólares, e a garantia de 250.000 dólares como aluguel
anual da zona.
As tentativas panamenhas de revisão do regime jurídico de
1903 remontam a 1914 — época da inauguração do canal —, e
alcançaram seu maior índice de energia sob o governo do gene­
ral Omar Torrijos. Os Estados Unidos, sob o governo democra­
ta de James Carter, admitiram a renegociação, de que resultou
o tratado de 1977.
O Tratado sobre o canal de Panamá, concluído entre a república do Panamá
e os Estados Unidos em 7 de setembro de 1977, e vigente desde 1º de outubro de
1979, restituiu ao governo panamenho o exercício da soberania na zona do canal.
A administração deste foi gradualmente transferida aos panamenhos e no ano 2000
os Estados Unidos deixaram de responder militarmente pela defesa do canal, com­
prometidos agora tão só a velar por sua permanente neutralidade.
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Capítulo II
RIOS INTERNACIONAIS
218. Conceito. Rio internacional é todo curso d’água que banha
mais de um Estado soberano. Uma distinção preliminar costuma
fazer-se entre os rios limítrofes (ou contíguos, ou de fronteira)
e os rios de curso sucessivo. Contudo, os mais importantes rios
internacionais, em sua maioria, ostentam as duas características.
Mesmo o Amazonas, que é predominantemente um rio de curso
sucessivo, banhando pelos dois flancos o território peruano, e
depois o território brasileiro, serve de rio limítrofe entre Peru e
Colômbia — ainda sob o nome de Marañon — numa pequena
extensão da fronteira, antes de entrar definitivamente no Brasil.
No Reno predomina o aspecto limítrofe, mas não falta a suces­
sividade em sua parte baixa. O Danúbio alterna, com certo
equilíbrio, o curso sucessivo e a função de fronteira, banhando
um total de dez países europeus.
O interesse despertado pelos rios internacionais resumiu-se,
outrora, na comodidade do transporte fluvial. Destacam-se hoje
outros aspectos, sem prejuízo do constante valor econômico da
navegação: a produção de energia elétrica, a irrigação, o provei­
to industrial direto. Esta última serventia trouxe à tona, em anos
recentes, o problema da poluição dos rios internacionais, e deu
origem às primeiras normas a tal respeito.
Seção I — ALGUNS PRINCÍPIOS
219. Um direito casuístico. São poucos os princípios relativos
a rios internacionais que se podem afirmar dotados de alguma
generalidade. O aparato normativo, nesse terreno, é domi­nado
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pela casuística. Uma Convenção de Barcelona, de 1921, con­
ceitua esses rios como “vias d’água de interesse interna­cio­nal”
— linguagem que se pretendeu abrangente de certos lagos —,
e proclama dois grandes princípios: o da liberdade de navegação
e o da igualdade no tratamento de terceiros. Os Estados ribeiri­
nhos decidirão sobre a melhor maneira de administrar o rio. Não
devem eles criar qualquer obstáculo à navegação, embora lhes
seja lícito perceber taxas por serviços prestados, sem intuito de
enriquecimento.
Bastante razoável no seu conciso rol de princípios, a Convenção
de Barcelona foi, entretanto, um texto de concepção europeia, condi­
zente com o regime que os rios europeus comportavam, e que diver­
sos deles já haviam assumido por força de tratados do século anterior.
O princípio da liberdade de navegação para terceiros — isto signi­
ficando Estados não banhados pelo rio — foi sempre estranho ao
continente americano. No máximo poderia entender-se aceita,
nesta parte do mundo, a regra da igualdade de tratamento de ter­
ceiros: qualquer que tenha sido, em épocas variadas, o regime
determinado pelos ribeirinhos dos cursos d’água desta região, não
há notícia da adoção de uma política discriminatória.
Ressalvados os direitos da república do Peru, a cujo território o uso inade­
quado das águas no lado brasileiro poderia causar dano, nunca se entendeu neste
país que sobre o Amazonas houvesse, em favor de outras potências, um direito de
navegação resultante de regra geral do direito das gentes. Sob a ótica brasileira, o
Amazonas só se distingue do São Francisco — rio estritamente doméstico — pelo
fato de ter suas origens noutro Estado soberano, e pela óbvia cautela necessária
para que não se lhe restrinjam as prerrogativas nem se lhe cause prejuízo.
Foi um ato unilateral, voluntário e soberano — o Decreto imperial de 7 de
dezembro de 1866 — que abriu aos navios mercantes de todas as bandeiras as águas
brasileiras do Amazonas. Esse regime, no essencial, até hoje subsiste.
Seção II — REGIMES FLUVIAIS SINGULARES
220. Rios da América do Sul. Os mais importantes rios inter­
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nacionais da América do Sul — o Amazonas, o Paraná, o Para­
guai e o Uruguai, estes três últimos formando o estuário do
Prata — encontram-se abertos à navegação comercial, em bases
não discriminatórias, por força de tratados bilaterais remotos, e,
no caso do Amazonas, pelo ato unilateral de 1866. O que há de
novo no regime jurídico das duas grandes bacias são os tratados
coletivos de 1969 e de 1978, ambos firmados em Brasília, e rela­
tivos, respectivamente, à bacia do Prata e à bacia do Amazonas.
O Tratado da bacia do Prata foi concluído em Brasília em 23 de abril de 1969,
e passou a viger no ano seguinte, ratificado por Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai
e Uruguai. Tem ele por objeto o desenvolvimento harmônico e a integração física
da área, a avaliação e o aproveitamento de seus recursos, a utilização racional da
água e a assistência à navegação fluvial. Embora seu texto prescreva que permane­
cem possíveis os entendimentos bilaterais e específicos, o tratado estabelece um
mecanismo de consulta intergovernamental periódica, prenúncio de que o regime
daqueles rios resultará, no futuro, prioritariamente da negociação coletiva.
O Tratado de Cooperação Amazônica reúne Bolívia, Brasil, Colômbia, Equa­
dor, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Tal como o precedente, é um tratado
fechado a adesões, visto que do estrito interesse dos países geograficamente afetos
à bacia fluvial nele versada. Firmou-se em Brasília, em 3 de julho de 1978, e entrou
em vigor em 1980, ratificado pela totalidade dos negociadores. É também um
compromisso de largo alcance programático, voltado para o desenvolvimento har­
mônico da região amazônica, para a preservação do meio ambiente e dos recursos
naturais, incentivando a pesquisa e o intercâmbio permanente de informações. O
pacto amazônico ressalva todos os direitos que, por atos unilaterais ou convenções
bilaterais, os pactuantes tenham no passado outorgado uns aos outros, ou a tercei­
ros, e garante às partes, em base de reciprocidade, ampla liberdade de navegação
não só no Amazonas como nos restantes rios amazônicos de configuração interna­
cional. Abonam-se os regulamentos fiscais e de polícia que cada parte entenda de
estabelecer em seu território, desde que favoreçam a navegação e o comércio, e
guardem entre si alguma uniformidade. O tratado não chega ao ponto de coletivizar
a navegação de cabotagem, à qual não se aplica a regra da liberdade ampla. Assim,
o transporte de pessoas e mercadorias entre dois portos fluviais brasileiros perma­
nece reservado a embarcações nacionais.
221. Outros regimes. O regime jurídico do Danúbio, que ao
longo de seus 2.870 quilômetros banha a Alemanha, a Áustria,
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a Eslováquia, a Hungria, a Croácia, a Sérvia, a Romênia, a Bul­
gária, a Moldávia e a Ucrânia, é um dos mais antigos (remonta
pelo menos a 1856) e complexos. Os Estados ribeirinhos, e so­
mente eles, respondem pela administração do rio, cuja navega­
ção, no entanto, é livre. Existe uma Comissão Europeia do
Danúbio — sem personalidade jurídica, a exemplo de uma co­
missão mista — que tem por atribuições a coordenação entre os
ribeirinhos, o regramento da navegação e seu controle, a super­
visão de obras de vulto e a apuração de despesas, e finalmente
a solução de litígios entre os Estados que a compõem.
Outros rios europeus igualmente sujeitos a regimes jurídicos resultantes de
tratados bilaterais ou coletivos, e em geral administrados por uma comissão seme­
lhante à do Danúbio, são o Reno, o Mosela, o Escalda e o Mosa. Deram também
origem ao tratamento jurídico convencional, na Ásia, os rios Ganges, Indus e Me­
cong; na África, o Congo, o Gâmbia, o Níger, o Nilo, o Senegal e o Zambeze; na
América do Norte, o rio Grande, o Colorado, o Colúmbia e o São Lourenço.
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Capítulo III
O ESPAÇO
222. Distinção preliminar. Defrontamo-nos, aqui, com dois
regimes jurídicos distintos: o do espaço aéreo, que se determina
em função de qual seja a superfície terrestre ou hídrica subja­
cente, e o do espaço extra-atmosférico — também chamado, não
com muita propriedade, de cósmico ou sideral —, que é unifor­
me e ostenta alguma semelhança com o do alto mar. O limite
entre esses dois espaços está onde termina a camada atmosféri­
ca: a relativa imprecisão dessa fronteira não tem importância
prática neste momento, visto que a órbita dos satélites e demais
engenhos extra-atmosféricos tem, no mínimo, o dobro da alti­
tude máxima em que podem voar aviões convencionais.
Seção I — O ESPAÇO AÉREO
223. Princípios elementares. O Estado exerce soberania plena
sobre os ares situados acima de seu território e de seu mar ter­
ritorial. Projeta-se, desse modo, no espaço aéreo o mesmo regi­
me jurídico da superfície subjacente. Ao contrário, porém, do
que sucede no mar territorial, não há no espaço aéreo um direi­
to de passagem inocente que seja fruto de princípio geral ou
norma costumeira. Senhor absoluto desse espaço, o Estado sub­
jacente só o libera à aviação de outros países mediante a cele­
bração de tratados ou permissões avulsas.
Por outro lado, é livre a navegação aérea, civil ou militar,
sobre os espaços onde não incide qualquer soberania estatal: o
alto mar — incluído o polo norte — e o continente antártico.
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Em 1960 um avião militar norte-americano do tipo U-2 realizava voo clan­
destino de reconhecimento sobre o território soviético quando foi localizado e
abatido, formulando ainda o governo local um protesto pela afronta à sua soberania.
Em 1983 a aviação militar soviética derrubou, nas proximidades da ilha de Sacali­
na, um avião civil coreano com duzentas e sessenta e nove pessoas a bordo; e alguns
anos antes a aviação militar israelense fizera o mesmo com avião civil líbio sobre
a península do Sinai. Em ambos os casos o argumento justificativo do gesto foi a
suspeita de que se tratasse de aeronave entregue à missão militar de espionagem,
ou potencialmente agressora. Em 1984, sob a influência do evento do ano anterior,
aprovou-se uma emenda às Convenções de Chicago de 1944 — que serão adiante
referidas — para limitar o recurso à força quando o resultado possa ser o sacrifício
de civis1.
224. Normas convencionais. No que tem de expressivo, tanto
no plano coletivo quanto no bilateral, o direito internacional
escrito diz respeito à aviação civil. Aviões militares (assim como
os de polícia e de alfândega) sobrevoam normalmente o territó­
rio da potência a que pertencem e os espaços livres de qualquer
soberania, a menos que compromissos indicativos de alguma
aliança estratégica lhes permitam circular por espaço aéreo
alheio.
Em matéria de aviação civil, três tratados multilaterais dig­
nos de nota precederam as negociações de Chicago ao final da
segunda grande guerra: a Convenção de Paris de 1919, a Con­
venção da Havana de 1928 — ratificada por apenas onze países
americanos, e logo denunciada por cinco deles — e a Convenção
de Varsóvia de 1929. Esta última cuida de um aspecto singular
da matéria: a responsabilidade do transportador em caso de
acidente ou forma outra de descumprimento do contrato de
transporte. Vige até nossos dias, tendo sido diversas vezes refor­
mada mediante protocolos adicionais.
As Convenções de Chicago de 1944 (três convenções prin­
cipais e doze textos ancilares) regem — em todos os aspectos
1. V. adiante o § 227.
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que não a responsabilidade, versada na Convenção de Varsóvia
— o tema da aviação civil internacional, havendo substituído a
Convenção de Paris de 1919, cujos princípios maiores preser­
varam, e a que trouxeram vultoso acréscimo quantitativo.
Vigentes desde 1947, as Convenções de Chicago instituíram a Organização
da Aviação Civil Internacional (OACI), que tem sede em Montreal, e cujo principal
propósito é uniformizar as regras sobre tráfego aéreo. Organização internacional
autêntica, com personalidade jurídica de direito das gentes, a OACI não deve ser
confundida com a IATA — uma associação transnacional privada, de empresas
aéreas, que coordena a política de tarifas e serviços de suas associadas.
225. Nacionalidade das aeronaves. Segundo as regras de Chi­
cago, todo avião utilizado em tráfego internacional deve possuir
uma nacionalidade — e uma única —, determinada por seu re­
gistro ou matrícula. Esse vínculo implica a responsabilidade de
um Estado pelo engenho, e autoriza a respectiva proteção, se
necessária. Não ocorre, no caso dos aviões, o problema — tão
frequente com navios — das matrículas de complacência. Alguns
autores atribuem o fato ao elevado grau de estatização da pro­
priedade das companhias aéreas envolvidas no transporte inter­
nacional.
De nenhum modo interfere no regime jurídico internacional das aeronaves a
questão de saber se as companhias a que pertencem são controladas pelo Estado,
como era o caso da maioria até o início dos anos noventa, ou por particulares. O
que importa é a matrícula, é o pavilhão nacional arvorado pela aeronave. Este de­
termina a responsabilidade estatal respectiva, e os direitos vinculados ao sistema
das cinco liberdades.
Existem companhias aéreas de propriedade plurinacional,
como a SAS (Scandinavian Airlines System) e a Air Afrique.
Impõe-se, nesse caso, que cada avião possua uma nacionalidade
singular, que se comprovará à vista de sua matrícula.
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226. O sistema das cinco liberdades. Os países partes nas
Convenções de Chicago — e membros, por isso, da OACI —
mantêm em operação o sistema chamado “das cinco liberdades”:
duas técnicas ou elementares, e três comerciais. As liberdades
técnicas são (1) a de sobrevoo do território, tendo o Estado sub­
jacente o direito de proibir certas áreas em nome da segurança,
mas em bases não discriminatórias; e (2) a de escala técnica,
quando o pouso se faça imperioso.
Essas duas liberdades elementares são concedidas por todo Estado membro
da OACI às aeronaves de todo e qualquer outro, pelo só fato de se congregarem nos
textos de Chicago — e, pois, sem necessidade de compromissos especiais, ou sequer
de bom relacionamento e trato diplomático. Cuba, ao tempo em que não se rela­
cionava com o Brasil, poderia ter estabelecido linha civil entre Havana e Buenos
Aires ou Montevidéu, sobrevoando nosso território, reservada à autoridade local
unicamente a prerrogativa de proibir o sobrevoo de certas zonas de segurança des­
de que igualmente proibidas ao sobrevoo de aviões de qualquer bandeira, incluídos
os aviões civis nacionais.
A terceira liberdade, já de natureza comercial, é a de de­
sembarcar passageiros e mercadorias provenientes do Estado
patrial da aeronave. A quarta, exata contrapartida da terceira, é
a de embarcar passageiros e mercadorias com destino ao Estado
patrial da aeronave. Essas duas liberdades normalmente vêm
juntas, quase sempre como consequência de tratado bilateral
— ou, o que é mais raro, da adesão a uma “convenção de tráfe­
go” da OACI. A quinta liberdade, também dependente de ajuste
especial, reclama entrosamento maior entre dois países: com ela,
cada um deles permite que as aeronaves do outro embarquem e
desembarquem, em seu território, passageiros e mercadorias
com destino a — ou provenientes de — outros países membros
da OACI (o que vale dizer, qualquer parte do mundo onde se
possa ter interesse em circular com aeronave comercial).
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As relações entre o Brasil e o Marrocos estão circunscritas à terceira e à
quarta liberdades. Tanto significa que aviões da Royal Air Maroc aqui só desem­
barcam pessoas originárias do Marrocos, e aqui só recolhem pessoas destinadas a
seus aeroportos. Nossas relações com a Argentina, porém, alcançam o patamar da
quinta liberdade. Por isso um avião da Aerolineas está autorizado a recolher, aqui,
passageiros com destino à Europa, e um avião da VARIG pode levar a Buenos
Aires carga recolhida no Japão e turistas embarcados em Santiago. De todo modo,
mesmo no domínio da quinta liberdade, não se compreende a concessão a empresas
estrangeiras de linhas de cabotagem (linhas domésticas). Reservam-se estas às
aeronaves de pavilhão local, o que pode entretanto ser derrogado por acordos es­
peciais, como hoje acontece no quadro da União Europeia.
227. Segurança do tráfego aéreo. Sequestros e outras formas
de violência no quadro da navegação aérea civil, na segunda
metade do século XX, levaram à celebração de tratados atentos
ao problema da segurança: a Convenção de Tóquio, de 1963,
sobre infrações praticadas a bordo de aeronaves; a Convenção
da Haia, de 1970, para repressão do apoderamento ilícito de
aeronaves; e a Convenção de Montreal, de 1971, para repressão
dos atos ilícitos contra a aviação civil. A exemplo das Conven­
ções de Chicago de 1944, esses textos mais recentes contam com
a participação de virtualmente toda a sociedade internacional.
Tal é também o caso do Protocolo de Montreal, de 1984,
concebido para proteger o tráfego aéreo não contra a ação de
terroristas ou criminosos comuns, mas contra abusos do próprio
Estado na preservação de sua segurança territorial.
Um Boeing 747 da Korean Airlines com duzentos e sessenta e nove pessoas a
bordo foi abatido na região da ilha de Sacalina, em 1º de setembro de 1983, pela
aviação militar soviética, por haver entrado inadvertidamente em seu espaço aéreo.
A comoção provocada pelo episódio — embora não fosse o primeiro do gênero — deu
origem à negociação do Protocolo de Montreal, onde se estabelece que todo Estado
pode interceptar avião estrangeiro que viole seus ares, e forçar o respectivo pouso,
mas que seu direito de reagir não é ilimitado, impondo-se-lhe respeito pela vida
humana — destacadamente a de civis, passageiros de um voo comercial regular.
Poucos anos mais tarde, em 3 de julho de 1988, um Airbus que realizava o
vôo 655 da Iran Air, entre Bender Abbas e Dubai, e que guardava sua rota normal
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sobre o estreito de Ormuz, foi derrubado pelo cruzador americano Vincennes — um
dos muitos navios militares ocidentais que circulavam pelo golfo durante a guerra
Irã-Iraque. Morreram duzentos e noventa pessoas dentre as quais sessenta e seis
crianças. O navio, segundo explicações oficiais, teria suposto uma situação de le­
gítima defesa, visto que o Airbus não respondera a seus sinais de rádio. As inves­
tigações da OACI vieram a provar que esse desastre — tal como aquele provocado
pelos soviéticos em Sacalina, e em circunstâncias agravadas por não ter ocorrido
em espaço aéreo norte-americano — resultou principalmente das falhas técnicas e
humanas de um aparato militar onde a competência e a sensibilidade nem sempre
correspondem ao poder de destruição.
Quando abateu a tiros um avião civil Cessna de matrícula brasileira, em 16
de janeiro de 1992, a Guarda Nacional venezuelana afrontou as regras do Protoco­
lo de Montreal — apesar de caracterizada, no caso, a violação do espaço aéreo da
Venezuela por particulares reincidentes nessa prática, como na de subtrair-lhe ri­
quezas minerais mediante garimpo não autorizado e causar-lhe danos ambientais.
Por isso (porque a derrubada do avião, em lugar da tomada de medidas eficientes
para forçar-lhe o pouso e deter seus ocupantes, foi um ato ilícito segundo o direito
aplicável) houve protesto brasileiro e ações investigatórias em comum.
Seção II — O ESPAÇO EXTRA-ATMOSFÉRICO
228. Gênese das normas. O direito relativo ao espaço extra-atmosférico é estritamente convencional, e começou a forjar-se
entre dois acontecimentos memoráveis: a colocação em órbita
do primeiro satélite artificial — o sputnik — pela União Sovié­
tica, em 4 de outubro de 1957, e o primeiro pouso de uma nave
terrestre tripulada — por astronautas norte-americanos — na
Lua, em 20 de julho de 1969.
O Tratado sobre o espaço exterior, de 1967, foi negociado no âmbito da
Assembleia Geral da ONU, em Nova York, e entrou em vigor em outubro daque­
le ano. Prescreve, no essencial, que o espaço extra-atmosférico e os corpos ce­
lestes são de acesso livre, insuscetíveis de apropriação ou anexação por qualquer
Estado, e sua investigação e exploração devem fazer-se em benefício coletivo,
com acesso geral às informações que a propósito se recolham. Comprometem-se
os Estados à abstenção de todo ato lesivo às iniciativas alheias nesse terreno, à
ajuda mútua na proteção de astronautas em dificuldade, e à tomada de medidas
cautelares contra riscos de contaminação. Fica estabelecido que incursões no
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espaço exterior são prerrogativas dos Estados soberanos — ou de entidades não
governamentais expressamente autorizadas por um Estado, e sob sua responsa­
bilidade. A migração espacial e as casualidades do retorno não alteram a proprie­dade
dos engenhos, que permanecem no domínio do Estado que os tenha produzido e
lançado em órbita.
229. Cooperação e pacifismo relativo. Em 1968, ainda no qua­
dro das Nações Unidas, celebrou-se um Acordo sobre recolhi­
mento de astronautas, devolução de astronautas e devolução de
objetos lançados no espaço exterior. No mesmo foro concluíram-se, mais tarde, uma Convenção sobre a responsabilidade pelos
danos causados por engenhos espaciais (1972), uma Convenção
sobre registro internacional — junto à Secretaria da ONU — de
objetos lançados no espaço exterior (1975), e uma Convenção
sobre as atividades dos Estados na Lua e em outros corpos ce­
lestes — o chamado Tratado da Lua, de 1979, que desenvolve,
sem alterações substanciais, os princípios do Tratado de 1967.
Nestes dois últimos textos fica claro que a Lua só deve ser uti­
lizada para fins pacíficos. Contudo, tanto na órbita da Terra
quanto na de seu satélite os tratados só proíbem a colocação de
engenhos dotados de armamento nuclear ou de destruição em
massa. Não ficaram proibidas, desse modo, outras formas de
utilização militar das órbitas — o que vai dos simples engenhos
de reconhecimento às armas não alcançadas pela proibição ex­
pressa.
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Parte IV
CONFLITOS
INTERNACIONAIS
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230. Noção de conflito internacional. Chamaremos de conflito
ou litígio internacional todo “desacordo sobre certo ponto de
direito ou de fato”, toda “contradição ou oposição de teses jurí­
dicas ou de interesses entre dois Estados”1. Esse conceito, for­
mulado há quase oitenta anos pela Corte da Haia, parece bastan­
te amplo e tem o mérito de lembrar-nos que o conflito interna­
cional não é necessariamente grave ou explosivo, podendo con­
sistir, por exemplo, em mera diferença quanto ao entendimento
do significado de certa norma expressa em tratado que vincule
dois países. A palavra conflito tem talvez o inconveniente de
trazer-nos ao espírito a ideia de um desacordo sério e carregado
de tensões, mas é preferível, por seu largo alcance, ao termo li­
tígio, que lembra sempre os desacordos deduzidos ante uma ju­
risdição, e faz perder a imagem daqueles tantos outros desacordos
que se trabalham e resolvem em bases diplomáticas ou políticas,
e mesmo daqueles que importam confrontação armada.
É comum que se encontre em doutrina a distinção entre conflitos jurídicos e
políticos. No primeiro caso, o desacordo se trava a propósito do entendimento e da
aplicação do direito existente; no segundo, as partes se antagonizam justamente
porque uma delas pretende ver modificado esse direito. Charles Rousseau lembra
que sob a ótica do juiz ou do árbitro internacional todos os conflitos têm natureza
jurídica e podem ser juridicamente equacionados: sucede apenas que em certos
casos a pretensão do Estado reclamante pode ser satisfeita mediante a aplicação de
normas jurídicas preexistentes, enquanto noutros casos isso não é possível2.
1. O conceito foi deduzido pela CPJI em 1924, no caso Mavrommatis, e em 1927, no
caso Lotus. Voltou a invocá-lo a CIJ em 1962, no caso do Sudoeste africano.
2. Rousseau, p. 292.
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A linguagem empregada pela Corte da Haia refere-se ao
conflito internacional de maior incidência: aquele que se esta­
belece entre dois Estados soberanos. Convém, contudo, não
esquecer que os protagonistas de um conflito internacional po­
dem ser eventualmente grupos de Estados. De igual modo, outros
sujeitos de direito das gentes — as organizações internacionais
— podem também envolver-se em situações conflituosas. A
ONU enfrentou problemas com Israel, país ainda estranho ao
seu quadro de membros em 1948, quando do atentado contra o
conde Bernadotte em Jerusalém. Mais tarde, em 1962, ela os
enfrentaria com países-membros (destacadamente a França e a
União Soviética) a propósito da questão de saber quais as des­
pesas da organização cujo custeio é obrigatório para seus inte­
grantes; e ainda a propósito da imunidade de jurisdição de seus
agentes (problemas com a Malásia nos últimos anos noventa).
Todos esses incidentes deram origem a pareceres consultivos da
Corte da Haia3.
231. Proposição da matéria. O fato de ser hoje a guerra um
ilícito internacional não deve fazer perder de vista que até o
começo do século XX ela era uma opção perfeitamente legítima
para que se resolvessem pendências entre Estados. Por isso o
direito internacional clássico abrigou amplo e pormenorizado
estudo da guerra e da neutralidade. O quadro contemporâneo
não mais justifica especial dispêndio de energia no exame de
tudo quando compôs, outrora, o direito da guerra: parecem su­
peradas sobretudo aquelas normas de protocolo militar e de
natureza técnica que se compendiaram na Haia entre 1899 e
1907. Mas não faria sentido ignorar que o fenômeno da guerra
3. Caso Bernadotte: Recueil CIJ (1949), p. 174 e s. Caso das despesas da ONU: Recueil
CIJ (1962), p. 151 e s. Caso Cumaraswamy: v. retro o § 176.
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subsiste, e que o estudo de certas normas a ela inerentes não se
converteu ainda, infelizmente, em arqueologia jurídica. Assim,
o segundo capítulo desta quarta e última parte do livro versará
a guerra frente ao direito internacional contemporâneo. O pri­
meiro capítulo terá descrito os meios diplomáticos, os meios
políticos, e os meios jurisdicionais de solução pacífica dos con­
flitos que ocorrem na cena internacional.
A propósito dos meios pacíficos, vale uma advertência pre­
liminar. Não há, entre eles, um escalonamento hierárquico.
Exceto pelo inquérito, que visa apenas a apurar a materialidade
dos fatos e propende, assim, a anteceder uma outra via de solu­
ção do conflito, os demais figuram todos, tanto sob uma pers­
pectiva teórica quanto na realidade da vida internacional, cami­
nhos alternativos, permitindo uma escolha coerente com a na­
tureza do conflito e a preferência das partes. Inexato, portanto,
seria supor que os meios diplomáticos constituem preliminar
das vias jurisdicionais, ou que o apelo aos meios políticos deve
necessariamente vir antes ou depois de uma iniciativa diplomá­
tica. É certo que, inoperante certa via, podem as partes tomar
outra, sem que, entretanto, exista um roteiro predeterminado. É
apenas provável que, na prática, o mais simples dos meios diplo­
máticos, o entendimento direto entre as partes, dê origem, quan­
do não tenha êxito, ao uso de outro método — que, de todo modo,
pode ser também diplomático e não político ou juris­dicional. O
conflito relativo ao canal de Beagle, opondo a Argentina ao
Chile nos anos setenta, bem ilustrou quanto a casualidade his­
tórica pode ordenar de modo curioso a sequência de métodos de
solução pacífica: inoperante a arbitragem — visto que uma das
partes alegava a nulidade da sentença —, tomou-se o caminho
diplomático da mediação, que conduziu a bom termo.
São muito limitadas, quando diversos os meios, as hipóteses em que o argu­
mento da litispendência bloqueia certa iniciativa de solução. No caso Lockerbie a
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Corte da Haia rejeitou a tese de que o trato da matéria pelo Conselho de Segurança
das Nações Unidas impedia vestibularmente o conhecimento da ação intentada pela
Líbia contra os Estados Unidos e o Reino Unido4.
4. Casos (Líbia vs. Reino Unido e Líbia vs. EUA) relativos ao Incidente aéreo de
Lockerbie: Recueil CIJ (1998), p. 9 e s. e 115 e s.
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Capítulo I
SOLUÇÃO PACÍFICA
232. Evolução dos meios. Nos primeiros anos do século XX a
referência aos meios diplomáticos e à arbitragem teria esgotado
o rol das vias possíveis de solução pacífica de pendências entre
Estados. A era das organizações internacionais trouxe consigo
alguma coisa nova. A arbitragem hoje concorre, no plano das
vias jurisdicionais, com as cortes permanentes, entre as quais a
da Haia aparece como o grande exemplo. Além disso, fora do
âmbito jurisdicional, construiu-se uma variante do acervo de
meios diplomáticos: cuida-se do recurso às organizações inter­
nacionais, destacadamente àquelas de vocação política, na ex­
pectativa de que seus órgãos competentes componham as partes
e resolvam o conflito. É usual que se denominem meios políticos
de solução de conflitos internacionais os mecanismos existentes
no âmbito dessas organizações. Eles pouco diferem dos meios
diplomáticos no que tange à plasticidade de sua operação e de
seus resultados. Aqueles, a seu turno, poder-se-iam também
qualificar como políticos, dado que a política é o subs­trato maior
da diplomacia em qualquer circunstância, mas nota­damente num
quadro conflituoso. Uns e outros — os meios diplomáticos e os
chamados meios políticos — identificam-se entre si, e distin­
guem-se dos meios jurisdicionais, pelo fato de faltar-lhes um
compromisso elementar com o primado do direito. Com efeito,
ao juiz e ao árbitro incumbe aplicar ao caso concreto a norma
jurídica pertinente: mesmo quando inexistente, incompleta ou
insatisfatória a norma, eles irão supri-la mediante métodos in­
tegrativos de raciocínio jurídico, a analogia e a equidade. Já o
mediador, a junta de conciliação, o Conselho de Segurança das
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Nações Unidas não trabalham à base desse compromisso. In­
cumbe-lhes resolver o conflito, compondo as partes ainda que
com o eventual sacrifício — ditado pelas circunstâncias — da
norma jurídica aplicável. Se conseguem promover entre as par­
tes a recomposição, pondo termo ao conflito, terão realizado a
tarefa que lhes é própria. Se o fazem garantindo, ao mesmo
tempo, o primado do direito, tanto melhor.
Seção I — MEIOS DIPLOMÁTICOS
233. O entendimento direto em sua forma simples. O desa­
cordo, neste caso, resolve-se mediante negociação entre os
contendores, sem que terceiros intervenham a qualquer título.
O entendimento direto faz-se em caráter avulso ou no quadro da
comunicação diplomática existente entre os dois Estados, e
tanto pode desenvolver-se oralmente quanto — o que é mais
comum — por meio de troca de notas entre chancelaria e em­
baixada. Ter-se-á chegado a bom termo quando as partes mutu­
amente transijam em suas pretensões, ou quando uma delas
acabe por reconhecer a validade das razões da outra.
O entendimento direto responde, no dia a dia, pela solução de elevado núme­
ro de conflitos internacionais. Talvez não se perceba essa realidade em razão de
uma generalizada tendência a não qualificar como conflitos verdadeiros aqueles
tantos que não produzem maior tensão nem ganham notoriedade: são estes, justa­
mente, os que melhor se habilitam a resolver-se pela mais simples das vias possíveis,
qual seja a negociação entre os contendores, sem qualquer apoio, instrumental ou
substancial, de outras pessoas jurídicas de direito das gentes. Entretanto, na medi­
da em que crescem o vulto e a seriedade do litígio, a eficácia do entendimento di­
reto passa a depender, em regra, de um certo equilíbrio entre as forças litigantes. A
disposição para transigir, fundamental no quadro do entendimento direto, tende a
abandonar o Estado simultaneamente cioso da importância dos interesses em jogo
e da sua própria superioridade ante a parte adversa.
234. Bons ofícios. Cuida-se, aqui também, de um entendimento
direto entre os contendores, entretanto facilitado pela ação amis­
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tosa de um terceiro. Este — o chamado prestador de bons ofí­cios
— é uma pessoa de direito internacional, vale dizer, um Estado
ou organização, embora não seja raro que se individualize colo­
quialmente a iniciativa, indicando-se pelo nome o chefe de Es­
tado ou o ministro que exterioriza esse apoio instrumental aos
litigantes. Instrumental, aqui, vale dizer que o terceiro não pro­
põe solução para o conflito. Na realidade, ele nem sequer toma
conhecimento das razões de uma e outra das partes: limita-se a
aproximá-las, a proporcionar-lhes, muitas vezes, um campo
neutro de negociação, por haver-se convencido de que a descon­
fiança ou o ressentimento reinantes impedirão o diálogo espon­
tâneo entre os Estados contendores. Assim compreendidos os
bons ofícios, fácil é perceber que eles não costumam ser solici­
tados ao terceiro pelas partes, ou por uma delas. São em geral
oferecidos pelo terceiro. Podem ser recusados, mas a iniciativa
de prestar bons ofícios nunca se entenderá como intromissão
abusiva.
A história diplomática do Brasil registra uma série de casos de prestação de
bons ofícios pelo Império, e mais tarde pelo governo republicano; como também
de litígios em que o Brasil foi parte e recolheu o benefício da ação amistosa de
terceiro Estado. Assim, Portugal foi em 1864 o prestador de bons ofícios para que
o Brasil e a Grã-Bretanha, rompidos desde o incidente Christie, restabelecessem
seu relacionamento diplomático.
Como exemplo contemporâneo de bons ofícios prestados com êxito indica-se
a ação dos Estados Unidos da América, sob o governo Carter, na aproximação
entre o Egito e Israel, que teve por desfecho, em 1979, a celebração do acordo de
Camp David. Nesse caso, contudo, é provável que tenha havido participação, em­
bora informal, do governo americano no levantamento de alternativas e na propo­
sição do arranjo convencional, o que de certo modo terá quebrado a pureza da
instrumentalidade dos bons ofícios. Melhor exemplo, na segunda metade do último
século, foi seguramente a ação do governo francês quando, em 1968, aproximou
os Estados Unidos e o Vietnã — então em plena guerra no sudeste asiático —, ofe­
recendo-lhes como campo neutro a cidade de Paris, onde negociaram até a conclu­
são, em 1973, dos acordos que conduziram ao fim da guerra.
Exemplo variante: reunidos em Cozumel em 23 de outubro de 1991, os pre­
sidentes do México, da Colômbia e da Venezuela resolveram oferecer seus bons
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ofícios conjuntos aos governos de Cuba e dos Estados Unidos para facilitar-lhes o
diálogo. De imediato Fidel Castro e George Bush agradeceram e recusaram a ofer­
ta. As causas da animosidade que nessa época opõe os dois governos parecem mais
profundas que uma simples indisposição para o diálogo.
235. Sistema de consultas. O que este nome significa não é
senão um entendimento direto programado. Não há, no caso da
consulta, intervenção substancial ou sequer instrumental de
terceiro. As partes consultam-se mutuamente sobre seus desa­
cordos, e o fazem não de improviso, mas porque previamente o
haviam combinado. Assim, nada mais temos no chamado siste­
ma de consultas que a previsão — normalmente expressa em
tratado — de encontros periódicos onde os Estados trarão à mesa
suas reclamações mútuas, acumuladas durante o período, e bus­
carão solucionar, à base desse diálogo direto e programado, suas
pendências.
O sistema consultivo é de consagrado uso no quadro pan-americano, embora
também experimentado alhures. França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e Japão
concluíram em Washington, em 1921, um tratado em que programaram consultas
periódicas para solução de suas desavenças e harmonização de pontos de vista no
domínio da política colonial das quatro potências no Pacífico.
Antes mesmo da fundação da OEA, no velho contexto das conferências inte­
ramericanas que remontam a 1890, as reuniões de consulta têm permitido aos pa­
íses do continente, pela voz de seus ministros das relações exteriores, que se enten­
dam sobre conflitos existentes e lhes encontrem solução. Na Carta da OEA, vigen­
te desde 1951, as reuniões de consulta dos chanceleres integram a estrutura orgâ­
nica da entidade.
236. Mediação. Tal como sucede no caso dos bons ofícios, a
mediação importa o envolvimento de terceiro no conflito. Aqui,
entretanto, este não atua instrumentalmente aproximando as
partes: ele toma conhecimento do desacordo e das razões de cada
um dos contendores, para finalmente propor-lhes uma solução.
Em essência, o desempenho do mediador não difere daquele do
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árbitro ou do juiz. A radical diferença está em que o parecer
— ou a proposta — do mediador não obriga as partes. Daí re­
sulta que essa via só terá êxito se os contendores, ambos, enten­
derem satisfatória a proposta e decidirem agir na sua conformi­
dade — qual sucedeu com a mediação de João Paulo II no
conflito argentino-chileno sobre o canal de Beagle, em 1981.
O mediador, quando não seja nominalmente uma personalidade de direito
das gentes — o Estado X, a organização internacional Y, a Santa Sé —, será no
mínimo um estadista, uma pessoa no exercício de elevada função pública, cuja
individualidade seja indissociável da pessoa jurídica internacional por ele repre­
sentada (Henry Kissinger, pelos Estados Unidos, mediando na Palestina, nos anos
setenta, o conflito entre Israel e os Estados árabes; e ali mesmo, com igual missão
em 1948, o conde Bernadotte, pela ONU). Diversamente do que sucede vez por
outra com o árbitro, o mediador nunca é escolhido em função exclusiva de seus
talentos pessoais, e à margem de qualquer vínculo com Estado ou organização
internacional.
Há registro de casos de mediação exercida coletivamente por Estados vários:
assim a Argentina, o Brasil e o Chile foram mediadores, em 1914, num conflito
entre os Estados Unidos e o México, finalmente resolvido com a celebração de
tratado bilateral. As mesmas três repúblicas, agora somadas aos Estados Unidos,
ao Peru e ao Uruguai, exerceram mediação ao longo da guerra do Chaco, onde se
confrontavam Bolívia e Paraguai, entre 1935 e 1938 — ano em que os contendores
se compuseram.
O mediador deve contar vestibularmente com a confiança
de ambos os Estados em conflito: não existe mediação à revelia
de uma das partes. Ela pode ser oferecida pelo terceiro — sem
que isso represente intromissão indevida —, e pode ser solici­
tada pelos contendores. É lícita a recusa de prestar a mediação,
como lícita é a recusa de aceitá-la, exteriorizada por uma das
partes em conflito ou por ambas. Se a mediação se instaura, isto
significa que os litigantes depositam no mediador confiança
bastante para que se proponham expor-lhe seus argumentos e
provas, e para que se disponham, mais tarde, a examinar com
boa vontade seu parecer, sua ideia de composição do conflito.
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Nada mais que isso. A solução proposta pelo mediador não é
obrigatória, e basta que uma das partes entenda de rejeitá-la para
que essa via de solução pacífica conduza ao fracasso.
237. Conciliação. O que temos, aqui, é uma variante da media­
ção, caracterizada por maior aparato formal, e consagrada por
sua previsão em bom número de tratados, alguns recentes e de
capital importância como a Convenção de Viena sobre o direito
dos tratados (1969) e a Convenção das Nações Unidas sobre o
direito do mar (1982). Caracteriza esta variante o fato de ser
coletivo seu exercício: não há um conciliador singular, mas uma
comissão de conciliação, integrada por representantes dos Es­
tados em conflito e elementos neutros, em número total ímpar.
É grande a incidência de opções pela fórmula em que cada liti­
gante indica dois conciliadores de sua confiança, sendo um
deles de sua nacionalidade, e esses quatro personagens apontam
em comum acordo o quinto conciliador, a quem será confiada a
presidência da comissão. A presença de elementos parciais dá
maior elasticidade ao sistema e permite a cada litigante um
acompanhamento permanente dos trabalhos. Tomam-se decisões
por maioria, desde aquelas pertinentes ao procedimento até a
decisão final e essencial, qual seja o relatório em que a comissão
propõe um deslinde para o conflito. Este, a exemplo do parecer
do mediador, não tem força obrigatória para as partes, e só será
observado quando ambas o entendam conveniente.
A Convenção de Viena sobre o direito dos tratados (art. 66) e a Convenção
das Nações Unidas sobre o direito do mar (art. 284) indicam, para a solução de
controvérsias inerentes a seus respectivos textos, o uso da conciliação, e chegam
ao ponto de disciplinar, cada qual num anexo próprio — a que o artigo remete —,
o procedimento. Em ambos os casos prevêem-se amplas listas de personalidades
suscetíveis de serem escolhidas para compor comissões de conciliação, e nessas
listas, preferencialmente, serão escolhidos os elementos da confiança dos Estados
litigantes e o conciliador neutro. As duas grandes Convenções são explícitas em
recordar que o relatório da comissão de conciliação, bem como suas eventuais
conclusões ou recomendações, não obrigam as partes.
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238. Inquérito: uma preliminar de instância. Em direito in­
ternacional público o uso do termo inquérito tem servido para
significar um procedimento preliminar de instância diplomática,
política ou jurisdicional, sendo ele próprio um meio diplomáti­
co de se estabelecer antecipadamente a materialidade dos fatos.
O inquérito costuma ser conduzido por comissões semelhantes
às de conciliação, visto que integradas por representantes das
partes e investigadores neutros. Essas comissões não têm por
encargo propor o que quer que seja, mas tão só apurar fatos
ainda ilíquidos, de modo que se prepare adequadamente o in­
gresso numa das vias de efetiva solução do conflito. Parece
óbvio, assim, que não há falar em inquérito senão quando uma
situação de fato reclama esclarecimento — o que não sucede,
por exemplo, se o litígio diz respeito apenas à interpretação de
normas convencionais.
Não se exclui entretanto a possibilidade de que, esclarecidos os fatos, uma
das partes veja desde logo transparecer sua responsabilidade e dispense qualquer
procedimento subsequente. Por acaso foi isso que se deu quando da primeira ex­
perimentação do inquérito, em 1904, após o incidente naval do Dogger Bank, en­
volvendo Rússia e Grã-Bretanha. Findos os trabalhos da comissão de inquérito,
presidida pelo almirante Fournier, da marinha francesa, resultou clara a responsa­
bilidade da marinha russa, de tal modo que o governo imperial indenizou de pron­
to o tesouro britânico. Pouco tempo depois a Convenção da Haia de 1907 recomen­
daria o uso do inquérito para bom encaminhamento da solução de conflitos onde
houvesse um quadro de fatos a esclarecer.
Seção II — MEIOS POLÍTICOS
239. Órgãos políticos das Nações Unidas. Tanto a Assembleia
Geral quanto o Conselho de Segurança das Nações Unidas podem
ser utilizados como instâncias políticas de solução de conflitos
internacionais. Dois tópicos singularizam essa via: ela não deve
ser tomada senão em presença de conflitos de certa gravidade,
que constituam pelo menos uma ameaça ao clima de paz; ela
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pode, por outro lado, ser assumida à revelia de uma das partes
— quando a outra toma a iniciativa singular de dirigir-se à As­
sembleia ou ao Conselho —, e mesmo de ambas, na hipótese de
que o secretário-geral da organização, ou terceiro Estado dela
integrante, resolva trazer o conflito à mesa de debates.
A Carta das Nações Unidas faculta, desse modo, o acesso
tanto dos litigantes quanto de terceiros a qualquer de seus dois órgãos
políticos na tentativa de dar solução — eventualmente definitiva,
mas em geral provisória — a conflitos internacionais graves. A
prática revela que o Conselho de Segurança merece a preferência
dos reclamantes, por estar permanentemente acessível — ao passo
que a Assembleia se reúne apenas durante certo pe­ríodo do ano —,
e por contar com meios eficazes de ação, caso decida agir. Com
efeito, se é certo que ambos os órgãos têm competência para in­
vestigar e discutir situações conflituosas, bem como para expedir
recomendações a respeito, certo também é que em caso de ame­
aça à paz só o Conselho tem o poder de agir preventiva ou corre­
tivamente, valendo-se até mesmo da força militar que os membros
das Nações Unidas mantêm à sua disposição.
Para que isso ocorra é necessária a outrora difícil conjugação favorável das
forças políticas que compõem o Conselho de Segurança — destacadamente as que
ali detêm poder de veto. Não faltaram, ao longo de anos, resoluções do Conselho
determinando o cessar-fogo e o restabelecimento da paz na região palestina, e ainda
no golfo pérsico, onde se defrontaram demoradamente dois membros da ONU, o
Irã e o Iraque. Ao final de 1992 o esquema militar do Conselho pouco conseguira
ajudar no quadro da guerra civil entre os povos europeus outrora reunidos na Iugos­
lávia, e mesmo no conflito tribal, associado a extremos de miséria, que se abateu
sobre a Somália. A crise do Golfo parecera revelar uma ONU mais unívoca e efi­
ciente: o gesto truculento da invasão do Kuwait por tropas do Iraque em 2 de agos­
to de 1990 e a inconsistência de seus pretextos produziram rara convergência reati­
va, não tendo sido difícil a tomada de decisões pelo Conselho, e não havendo falta­
do, tampouco, Estados cujo interesse geopolítico recomendou que tomassem de
armas para executar tais decisões, restaurando a soberania territorial kuwaitiana.
Mas a falta de um consenso no Conselho sobre qualquer ação na Iugoslá­
via quando do agravamento da crise no Kosovo, em 1999, permitiu que a OTAN
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tomasse a iniciativa de agir, chamando a si uma autoridade que não tinha, em
detrimento da credibilidade da ONU como guardiã da paz e da segurança coleti­
vas5. As Nações Unidas — e a comunidade internacional, e a ciência do direito
— seriam marginalizadas de modo ainda mais grave quando, em 2003, os Estados
Unidos, com o apoio de alguns outros governos, desencadearam a guerra no
Iraque, a pretexto de neutralizar “armas de destruição em massa” afinal nunca
encontradas, e de levar àquela parte do mundo a democracia e o respeito pelos
direitos humanos…
O foro político representado pelo Conselho de Segurança
da ONU possui indiscutível mérito como desaguadouro de ten­
sões internacionais, e só a publicidade assegurada por sua con­
sagração a certo litígio tem contribuído grandemente com a
causa da paz, na medida em que fomenta uma consciência crí­
tica na opinião pública e dá ensejo à manifestação construtiva
dos Estados neutros. Mas suas limitações não se resumem na
dramática dependência, para qualquer deliberação eficaz, do
consenso dos cinco membros permanentes. Há também o pre­
ceito do art. 2, § 7, da carta, que frustra a intervenção da ONU
“em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição inter­
na de qualquer Estado”. Esta norma tem sido o argumento jus­
tificativo de uma série de atitudes de indiferença ou rebeldia ante
as recomendações pacificadoras do Conselho. Ela conforta, por
outro lado, a proposição doutrinária segundo a qual os meios
políticos, a exemplo dos meios diplomáticos, não produzem
soluções legalmente obrigatórias para as partes em conflito. Para
todos os efeitos, e apesar dos riscos em que esse procedimento
faria incorrer um Estado militarmente modesto, a desobediência
a uma recomendação do Conselho de Segurança ou da Assem­
bleia Geral da ONU não configura um ato ilícito — como seria
a desobediência a uma sentença arbitral ou judiciária.
5. V. retro o § 168.
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240. Esquemas regionais e especializados. Organizações de
alcance regional e vocação política, como a Liga dos Estados
Árabes (1945) e a Organização dos Estados Americanos (1951),
dispõem de mecanismos essencialmente análogos aos das Nações
Unidas para solução pacífica de litígios entre seus integrantes.
As duas organizações regionais citadas têm conselhos perma­
nentes, dotados da representação de todos os países-membros,
e prontos a equacionar politicamente os conflitos de âmbito
regional antes que as partes busquem socorro no foro maior, o
das Nações Unidas.
Está claro que esses mecanismos não operam sobre o conflito que oponha um
membro da entidade regional a um Estado que lhe seja estranho. Assim, não foi ao
Conselho da OEA, mas ao Conselho de Segurança da ONU que se dirigiu diretamente
a Argentina quando reclamou contra Israel, em 1960, após a violação de sua soberania
territorial representada pelo sequestro de Adolf Eichmann. Da mesma forma os diver­
sos incidentes envolvendo Cuba e outras nações do continente, a partir de 1962, tiveram
por foro político imediato o Conselho de Segurança, visto que Cuba havia sido exclu­
ída da organização regional por voto majoritário de seus restantes membros.
Não são obrigatórias as recomendações e propostas do
Conselho Permanente da OEA. Tampouco o são as decisões do
Conselho da Liga Árabe, exceto quando a contenda tenha sido
trazida a seu exame por ambas as partes e a matéria não afete
sua independência, soberania ou integridade territorial. Neste
caso, segundo o art. 5º do pacto de 1945, os próprios contendo­
res não terão direito a voto no Conselho.
Organizações especializadas dispõem eventualmente de
mecanismos não jurisdicionais de solução de controvérsias entre
seus membros, delimitadas ratione materiae. Assim, o Conselho
da OACI está habilitado pela carta da organização (Chicago,
1944) a examinar e propor deslinde para os conflitos que anta­
gonizem seus membros, no domínio da interpretação e aplicação
da própria carta e de compromissos bilaterais concernentes à
aviação civil internacional.
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Seção III — MEIOS JURISDICIONAIS
241. Conceito. Jurisdição é o foro especializado e independente
que examina litígios à luz do direito e profere decisões obrigató­
rias. No plano internacional, a arbitragem foi ao longo de séculos
a única jurisdição conhecida: sua prática remonta, no mínimo,
ao tempo das cidades gregas. Mas da arbitragem diz-se, com
acerto, que é um mecanismo jurisdicional não judiciário. Isso
porque o foro arbitral não tem permanência, não tem profissio­
nalidade. As primeiras jurisdições judiciárias internacionais
instalaram-se já no século XX, com características muito seme­
lhantes às da jurisdição doméstica que, em todo Estado, atende
aos pleitos das pessoas comuns: o juiz é um especialista, é inde­­
pendente, decide à base do direito aplicável, e suas decisões têm
força compulsória; mas além de tudo isso o juiz é um profissio­
nal: sua atividade é constante no interior de um foro aberto, a
toda hora, à demanda que possa surgir entre dois indivíduos ou
instituições. O árbitro não tem esta última carac­terística: ele é
escolhido ad hoc pelas partes litigantes, que, já em presença do
conflito, confiam-lhe a função jurisdicional para o fim transitório
e único de decidir aquela exata matéria. Contudo, embora assim
de modo avulso, sem profissionalidade, ele é, por breve tempo,
e no que diz respeito ao litígio entregue à sua arbitragem, um
verdadeiro juiz: não lhe incumbe apenas serenar os ânimos e
promover contemporizações políticas, mas fazer primar o direi­
to; e o produto de seu trabalho não é um laudo, um parecer, uma
recomendação ou uma proposta, mas uma sentença obrigatória.
Adiante, uma primeira subseção versará a arbitragem. A
segunda cuidará da via judiciária, dando notícia de alguns tri­
bunais regionais e especializados, e proporcionando maior in­
formação sobre a Corte da Haia.
Subseção 1 — A ARBITRAGEM
242. Jurisdição ad hoc. Ficou visto que a arbitragem é uma via
ju­risdicional, porém não judiciária, de solução pacífica de litígios
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internacionais. Às partes incumbe a escolha do árbitro, a descri­
ção da matéria conflituosa, a delimitação do direito aplicável. O
foro arbitral não tem permanência: proferida a sentença, termi­
na para o árbitro o trabalho judicante que lhe haviam confiado
os Estados em conflito. Da boa-fé, da honradez das partes de­
penderá o fiel cumprimento da sentença, cujo desprezo, entre­
tanto, configura ato internacionalmente ilícito.
243. Árbitros e tribunais arbitrais. No princípio, e por largo
espaço de tempo, a escolha do árbitro recaiu sobre soberanos,
sobre chefes de Estados monárquicos. Ainda hoje é comum que
as partes prefiram por árbitro o estadista de primeiro nível, em­
bora cientes de que o estudo do caso e a redação da sentença
estarão, na realidade, a cargo de anônimos conselheiros jurídicos,
nem sempre os mais qualificados. Há também, neste caso, o
risco de que a motivação da sentença arbitral seja sumária e por
vezes nebulosa, à conta do receio que o estadista eventualmen­
te nutre de proferir teses que, no futuro, podem voltar-se contra
seu próprio interesse.
O caso do Alabama, em que os contendores, Grã-Bretanha
e Estados Unidos, optaram pela via arbitral, representou em 1872
o marco de duas inovações salutares. A primeira foi a coleti­
vização do encargo arbitral, confiado não a uma personalidade
singular mas a um colégio de cinco pessoas, três das quais rigo­
rosamente neutras, as outras duas representando as partes em
litígio. A segunda consistiu no fato de que os árbitros verdadei­
ros, em número de três, não foram exatamente chefes de Estado,
mas representantes do presidente da Confederação Suíça, do rei
da Itália e do imperador do Brasil6, por estes escolhidos à con­
sideração de sua capacidade técnica.
6. Indicado por Pedro II, atuou pelo Brasil no tribunal arbitral do caso do Alabama o
visconde de Itajubá, Marcos Antônio de Araújo.
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Inovação ainda mais recente foi a escolha, pelos próprios
Estados contendores, de um ou mais árbitros desvinculados da
administração e independentes da indicação ad hoc de qualquer
Estado. Nestas hipóteses, o árbitro merece a confiança dos liti­
gantes por seu talento pessoal estritamente considerado, à mar­
gem do suporte político de uma bandeira, e é normalmente — po­
rém não necessariamente — escolhido no quadro da chamada
Corte Permanente de Arbitragem.
244. A Corte Permanente de Arbitragem. Não é uma corte
verdadeira. É uma lista permanente de pessoas qualificadas para
funcionar como árbitros, quando escolhidas pelos Estados litigan­
tes. Há na lista, hoje, pouco mais que duzentos nomes, e sua in­
dicação a uma secretaria atuante na cidade da Haia é obra dos
governos que patrocinam a entidade, cada um deles podendo in­
dicar no máximo quatro pessoas7. É comum — embora um tanto
impróprio — que se qualifique como “sentença da Corte Perma­
nente de Arbitragem” a decisão arbitral proferida por pessoa ou
grupo de pessoas escolhidas pelos litigantes dentro daquele rol.
No caso Canevaro (1912), a Itália e o Peru ali selecionaram os
senhores Calderón, Fusinato e Louis Renault para obrarem em
tribunal arbitral. No caso da Ilha de Palmas (1928), o árbitro singu­
lar escolhido pelos Estados Unidos e pelos Países Baixos foi o ju­
rista suíço Max Huber, também integrante da lista.
245. Base jurídica da arbitragem. Se dois Estados em confli­
to dispõem de ampla liberdade de escolha do meio pacífico de
solucioná-lo, e optam pela arbitragem, devem antes de mais nada
celebrar um compromisso arbitral. Esse compromisso é um
tratado bilateral em que os contendores (a) descrevem o litígio
7. Pelo Brasil integram hoje essa lista os professores Celso Lafer, Nádia de Araújo,
Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros e Eduardo Grebler.
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entre eles existente, (b) mencionam as regras do direito aplicável,
(c) designam o árbitro ou o tribunal arbitral, (d) eventualmente
estabelecem prazos e regras de procedimento, e, por último, (e)
comprometem-se a cumprir fielmente, como preceito jurídico
obrigatório, a sentença arbitral. É seguro que o árbitro deverá
ter sido previamente consultado: não se concebe que um tratado
bilateral crie encargos para terceiro sem seu expresso consenti­
mento.
Pode dar-se, contudo, que os litigantes recorram à arbitragem
não por tê-la escolhido já no calor do conflito específico, mas
por se acharem previamente comprometidos a assumir essa via,
e não outra. O compromisso prévio poderá ter sido tanto um
tratado geral de arbitragem quanto uma cláusula arbitral lan­
çada em tratado de qualquer outra natureza.
Quando celebram um tratado geral de arbitragem, dois ou mais Estados escolhem
em caráter permanente essa via para a solução de conflitos que venham a antagonizá-los no futuro. O tratado geral eventualmente estabelece restrições — excluindo, por
exemplo, determinada espécie de conflito do âmbito do recurso necessário à arbitra­
gem — e, como todo tratado de vigência dinâmica, pode limitar sua própria eficácia
no tempo, determinando um limite a partir do qual as partes decidirão sobre a con­
veniência de renová-lo. O Brasil celebrou tratados gerais de arbitragem, no século
XX, com algumas dezenas de nações: quase todas as do continente americano e
ainda a China, a Grã-Bretanha, Portugal, e os reinos escandinavos, entre 1909 e 1911
— época de grande prestígio dos tratados do gênero.
Podem também os Estados vinculados por tratado bilateral ou coletivo, sobre
qualquer matéria, lançar no seu texto uma cláusula arbitral, estabelecendo que os
litígios resultantes da aplicação daquele pacto, ou pertinentes à matéria nele versa­
da, deverão resolver-se mediante arbitragem. O Tratado de limites e navegação
Brasil-Colômbia, firmado em 24 de abril de 1907, indicou a arbitragem como meio
de solução de conflitos que acaso surgissem ao longo da demarcação da fronteira.
A Convenção sobre infrações a bordo de aeronaves (Tóquio, 1963) também indica
a arbitragem para a solução de controvérsias na interpretação de seu texto.
Como quer que seja, a preexistência de uma cláusula desse gênero, ou mesmo
de um tratado geral de arbitragem, apenas indica a necessidade de que as partes
adotem esse exato mecanismo, e não outro, para solver a contenda. Não fica dis­
pensada a celebração do compromisso arbitral. É que só diante do caso concreto,
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do conflito presente, pode-se realizar a escolha do árbitro e descrever-lhe a matéria
a ser resolvida. Acresce que cláusulas arbitrais e tratados gerais de arbitragem não
costumam encerrar aquele que é o dispositivo fundamental do compromisso tópico:
a afirmação de que as partes receberão a sentença do árbitro como comando obri­
gatório, a ser cumprido de boa-fé.
246. Natureza irrecorrível da sentença arbitral. A sentença
arbitral é definitiva. Dela não cabe recurso, visto que o árbitro
não se inscreve num organograma judiciário como aquele das
ordens jurídicas internas. Proferida a sentença, o árbitro se de­
sincumbe do encargo jurisdicional que assumira ad hoc, cabendo
às partes a execução fiel da sentença. Não obstante: (a) É sempre
possível que uma das partes ou ambas dirijam-se de novo ao
árbitro pedindo-lhe que aclare alguma ambiguidade, omissão ou
contradição existente na sentença. Isto, no plano internacional,
tem recebido o nome de “pedido de interpretação”. Corresponde
aos embargos declaratórios do direito processual brasileiro e, tal
como estes, não configura um recurso em sentido próprio. (b) É
ainda possível que uma das partes acuse de nulidade a sentença
arbitral, para eximir-se de cumpri-la, imputando ao árbitro uma
falta grave do gênero do dolo ou da corrupção, ou simplesmente
falando em abuso ou desvio de poder. Neste último caso — o
único que, felizmente, a prática registra — o que afirma a parte
inconformada é que o árbitro se desviou do encargo que lhe fora
traçado no compromisso arbitral, decidindo sobre mais, ou sobre
algo diverso do que lhe submeteram os litigantes, ou aplicando
normas jurídicas de evidente impertinência.
Foi com essa linha de argumento — o abuso ou desvio de poder pelo árbitro,
no caso a rainha Elizabeth II — que a Argentina arguiu nulidade e recusou-se a
cumprir a sentença relativa ao canal de Beagle, em 1977. O Brasil cumpriu de boa-fé a sentença arbitral de Vítor Emanuel III, rei da Itália, proferida em 1904 sobre
o litígio pertinente à fronteira da Guiana, que nos opusera à Grã-Bretanha. Naque­
le caso, não se poderia ter afirmado o abuso de poder, e menos ainda algum vício
grave que contaminasse o procedimento do árbitro, apesar dos diversos erros de
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fato e de direito por ele cometidos — e que mesmo a doutrina europeia reconheceu
e denunciou8.
247. Obrigatoriedade da sentença arbitral. O produto final da ar­
bitragem não é, como ficou claro, um parecer de aceitação subor­
dinada à benevolência das partes. É uma decisão de índole jurisdi­
cional, rigorosamente obrigatória. Deixar de cumpri-la significa
incorrer em ato ilícito, não em mera deselegância ou imprudência.
Mas o fundamento dessa obrigatoriedade não é qualquer virtude
mística do árbitro ou imposição de forças superiores: é, sim, o
compromisso antes assumido pelas partes, onde se prometeram
executar a sentença, cientes, embora, de que uma delas propenderia
a ser vitoriosa e a outra a sucumbir. É, pois, no tratado que serviu
de base jurídica à arbitragem que vamos encontrar o fundamento
da obrigatoriedade da sentença. Assim, em última análise, esse
fundamento assenta sobre o princípio pacta sunt servanda.
248. Carência de executoriedade. Embora definitiva e obriga­
tória, a sentença arbitral não é executória. Isto quer dizer que
seu fiel cumprimento fica na dependência da boa-fé e da honra­
dez das partes — destacadamente do Estado que sucumbe por
força da decisão do árbitro. Este último, proferida a sentença,
não conserva sequer a prerrogativa jurisdicional — exceto para
atender a um eventual pedido de interpretação. O árbitro não
dispõe de uma milícia que garanta pela força o cumprimento de
sua sentença caso o Estado sucumbente tome o caminho ilícito
da desobediência.
Subseção 2 — A SOLUÇÃO JUDICIÁRIA
249. Uma opção soberana. Vimos na subseção precedente que
a arbitragem, ao contrário das vias diplomáticas e políticas de
8. V. Accioly, III, p. 63-69.
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solução de conflitos internacionais, conduz a uma decisão obri­
gatória para os Estados contendores. Ficou claro, porém, que
essa obrigatoriedade jurídica só existe porque eles, os Estados
em conflito, livremente escolheram a via arbitral e pactuaram
garantindo-se mutuamente o cumprimento do que ficasse deci­
dido. As bases jurídicas da solução judiciária não diferem subs­
tancialmente disso. Aqui lidamos com jurisdições permanentes,
profissionalizadas, tradicionais e sólidas ao extremo. Contudo,
na sociedade internacional descentralizada em que vivemos
ainda hoje, essas cortes não têm sobre os Estados aquela auto­
ridade inata que os juízes e tribunais de qualquer país exercem
sobre pessoas e instituições encontráveis em seu território. A
jurisdição nacional impõe-se, pela ação cogente do Estado, a
indivíduos, empresas e entidades de direito público. A jurisdição
internacional só se exerce, equacionando conflitos entre sobe­
ranias, quando estas previamente deliberam submeter-se à au­
toridade das cortes.
250. Uma história recente. Ao contrário da jurisdição arbitral,
que conta mais de dois milênios de história, a jurisdição judici­
ária é um fenômeno recente na cena internacional.
A instituição pioneira — o primeiro órgão de jurisdição internacional perma­
nente — teve âmbito geográfico regional, e são raras as manifestações da doutrina
a seu respeito9. Trata-se da Corte de Justiça Centro-Americana, instituída por tra­
tado de 20 de dezembro de 1907 entre Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Hon­
duras e Nicarágua. Durou dez anos essa experiência, precoce a vários títulos. A
Corte era aberta até mesmo à ação do particular, nacional de um de seus Estados-membros, que em determinadas circunstâncias pretendesse processar outro Estado.
No seu breve período de existência a Corte de Justiça Centro-Americana julgou
uma dezena de feitos, quatro dos quais ajuizados por particulares.
9. V. uma análise ampla da Corte de Justiça Centro-Americana em Manley O. Hudson,
The Permanent Court of International Justice, Nova York, Macmillan, 1943, p. 42-70.
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A Corte da Haia vem a ser hoje não apenas o mais importan­
te dentre os tribunais internacionais em funcionamento, mas tam­
bém o mais antigo, visto que sua fundação data de 1920. Outras
cortes contemporâneas, ora regionais, ora especializadas ratione
materiae, só vieram à luz depois da segunda grande guerra.
251. A Corte da Haia: duas fases. Instalada na cidade da Haia
em 1922, ela se chamou, em sua primeira fase, Corte Permanen­
te de Justiça Internacional (CPJI). Não era o primeiro órgão
judiciário internacional (fora-o a então já extinta Corte de Jus­
tiça Centro-Americana), mas o primeiro dotado de vocação
universal, pronto assim a decidir sobre demandas entre quaisquer
Estados. Seus juízes foram desde o início quinze — embora se
qualificassem onze como efetivos e quatro como suplentes10.
Apesar de programada pelo art. 14 do Pacto da Sociedade das
Nações, a CPJI não era um órgão na estrutura da Sociedade — e
isto desperta interesse sobre o curioso problema de sua exata
natureza jurídica —, porém mantinha com a organização laços
estreitos, a ponto de que incumbisse ao Conselho e à Assembleia
Geral da SDN a eleição de seus juízes.
Tal como a Sociedade das Nações, a CPJI fechou as portas, de fato, em 1939,
quando da eclosão da segunda grande guerra. Nos seus quase vinte anos de funcio­
namento ela julgou trinta e um casos contenciosos (apenas seis acórdãos foram
unânimes) e emitiu vinte e sete pareceres consultivos. O Brasil esteve envolvido
num litígio com a França, apresentado à Corte em 1927, relativo a empréstimos
tomados pelo governo brasileiro anos antes. Em 12 de julho de 1929 a ação foi
decidida — por maioria de votos — em favor do governo francês11.
10. Integraram a CPJI dois brasileiros: Ruy Barbosa, para o mandato inicial (19211930), que veio a falecer no princípio de 1923, sem ter participado de qualquer sessão da
Corte; e Epitácio Pessoa, eleito em 1923 para completar aquele mandato.
11. Para um resumo do caso, v. Vicente Marotta Rangel, Controvérsia de interesse do
governo brasileiro julgada por tribunal internacional; BSBDI (1985/1986), v. 67-68, p. 151 e s.
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252. 1945: a ressurreição da Corte. Finda a segunda grande
guerra a Corte da Haia ressurge na mesma sede, com outro nome
oficial: ela é agora a Corte Internacional de Justiça (CIJ), e cons­
titui, nos termos da Carta da ONU, um órgão da organização.
Com mudanças representativas de pura adaptação às novas cir­
cunstâncias, o Estatuto da Corte volta a ser aquele que se editara
em 1920, conservada até mesmo a numeração dos artigos.
253. Juízes da Corte da Haia. São em número de quinze,
todos efetivos (no sentido de que não há suplentes). Elegem-nos, em voto separado, a Assembleia Geral e o Conselho de
Segurança das Nações Unidas. O mandato é de nove anos,
permitida a reeleição, e procedendo-se à renovação pelo terço
a cada três anos.
Isto significa que a cada três anos termina o mandato de cinco juízes, a serem
substituídos — reconduzindo-se, eventualmente, algum deles. Preserva-se, de tal
modo, certa continuidade, evitando-se a mudança abrupta de todo o quadro. Resul­
ta claro que quando da primeira eleição, em 1946, foi preciso, para instaurar-se o
sistema da renovação trienal pelo terço, que cinco dos quinze juízes fossem eleitos
para apenas seis anos, e outros cinco para três anos.
São elegíveis juristas que se possam ver como habilitados
a ocupar nos respectivos países as mais altas funções judiciárias
ou consultivas. Não se podem investir na Corte dois juízes de
uma mesma nacionalidade. Os quinze devem, por outro lado,
formar um conjunto representativo dos diversos sistemas con­
temporâneos do pensamento jurídico.
Não devem faltar na Corte, assim, juízes da escola romano-germânica ou da
common law. A realidade mostra que determinados países — membros permanen­
tes, observe-se, do Conselho de Segurança da ONU — sempre tiveram na compo­
sição da Corte um nacional seu. Tal o caso da França, do Reino Unido, dos Estados
Unidos e da Rússia. É também, desde os anos oitenta, o caso da China.
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Nesta segunda fase da Corte da Haia alguns juízes brasileiros ali tiveram assen­
to. Philadelfo de Azevedo, que fora ministro do Supremo Tribunal Federal, elegeu-se
logo em 1946, para um mandato de nove anos, interrompido, entretanto, por sua
morte na Haia, em plena atividade, em 1951. Levi Carneiro, antigo parlamentar e
consultor-geral da República, foi então eleito para completar aquele mandato, per­
manecendo na Corte até 1955. José Sette Camara, embaixador do Brasil, antigo
governador da Guanabara e prefeito de Brasília, foi juiz de 1979 a 1988, havendo,
por eleição de seus pares, exercido a vice-presidência da Corte entre 1982 e 1985.
Antes do término de seu mandato nenhum juiz pode ser
excluído da Corte, salvo por decisão unânime dos demais, o que
nunca sucedeu. O presidente e o vice-presidente são eleitos para
mandatos trienais, e são reelegíveis. Os salários são apropriados
(equivalem à retribuição média de juízes do mais alto nível nos
países industrializados), e correm, como as demais despesas da
Corte, à conta do orçamento das Nações Unidas.
254. Competência contenciosa. Mediante aplicação do direito
internacional (tratados, costumes, princípios gerais e outras
normas porventura pertinentes) a Corte exerce sua competência
contenciosa julgando litígios entre Estados soberanos. Ela não
é acessível, no exercício desta sua competência primordial, às
organizações internacionais, tampouco aos particulares. É ne­
cessário, de todo modo, que os Estados litigantes aceitem a ju­
risdição da Corte para que ela possa levar a termo seu trabalho.
Esta assertiva impõe as explicações seguintes:
a) O Estado autor de uma demanda evidencia sua submissão
à autoridade da Corte pelo só fato de ajuizar o pedido ini­cial.
Citado, o Estado demandado que por outro motivo não esteja
obrigado a aceitar a jurisdição da Corte prova essa disposição
se, abstendo-se de rejeitar o foro, contesta o mérito.
Foi o que fez a república da Albânia em 1947, quando citada pela Corte em
vista da ação britânica relativa ao incidente naval do estreito de Corfu. Logo em
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seguida o governo albanês pretendeu atribuir a um equívoco sua contestação de
mérito, e declinar do foro. A Corte não valorizou esse intento, dando como carac­
terizado, àquela altura, o forum prorogatum, com a instauração da instância.
b) Qual sucede com a arbitragem, dois Estados podem acei­
tar em tratado bilateral a submissão de certo litígio à Corte.
Neste caso, as partes a ela se dirigirão em conjunto — não se
distinguindo, portanto, um autor e um demandado; ou estabe­
lecerão que a primeira delas a deduzir suas razões ingressará na
Corte com uma demanda contra a outra, cabendo a esta argu­
mentar a título de contestação, e eventual reconvenção.
Foram levados à Corte pela ação comum das partes, entre outros, o litígio
relativo às ilhas Minquiers e Ecréhou (1951, França x Reino Unido) e aquele per­
tinente à sentença arbitral do rei da Espanha (1957, Honduras x Nicarágua). Em
2002 deram entrada, dessa mesma forma, dois casos em que as partes, em comum,
pediram que a Corte decidisse em câmara, não em plenário (El Salvador-Honduras,
revisão do acórdão de 1992 sobre fronteiras, caso julgado em 2003; Benin-Níger,
fronteiras, caso de decisão programada para 2005).
No caso do direito de asilo (Haya de la Torre), Colômbia e Peru pactuaram
no sentido de submeter à Corte sua desavença, ficando o ajuizamento da ação a
cargo daquele entre os dois países que primeiro organizasse seus argumentos. A
Colômbia propôs a ação em 1949. O Peru reagiu contestando e reconvindo.
c) O Estado réu não tem a prerrogativa de recusar a jurisdi­
ção da Corte quando está obrigado a aceitá-la por força de tra­
tado, ou por ser signatário da cláusula facultativa de jurisdição
obrigatória.
Diversos são os tratados bilaterais e coletivos que contêm cláusula — da
mesma natureza da cláusula arbitral — estabelecendo que os litígios acaso super­
venientes entre as partes serão levados à Corte da Haia. Esse tipo de cláusula tem
feito com que países refratários à jurisdição internacional permanente e obrigatória
se abstenham de ratificar compromissos coletivos que, quanto ao mais, mereceriam
sua participação. Tal o caso da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados,
cujo art. 66 remete à competência da Corte os conflitos resultantes de sua interpre­
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tação, desde que num prazo de doze meses não tenham sido resolvidos de outro
modo.
255. Cláusula facultativa de jurisdição obrigatória. Esta cláu­
sula, agregada ao Estatuto da Corte desde o início de sua pri­
meira fase, é de aceitação facultativa: pode o Estado ser mem­
bro das Nações Unidas e parte no Estatuto, preferindo, contudo,
não firmá-la. Seus signatários se obrigam por antecipação a
aceitar a jurisdição da Corte sempre que demandados por Esta­
do também comprometido com a cláusula — o que vale dizer,
em base de reciprocidade. Colocam-se, assim, em face da Cor­
te, naquela mesma posição que têm os indivíduos perante os
tribunais do país onde se encontram: não se lhes pergunta, pre­
liminarmente, se aceitam ou não a jurisdição na qual foi ajuiza­
da contra eles uma demanda.
Nos debates preparatórios do Estatuto da Corte, ao romper da década de
vinte, ficou claro que havia numerosas resistências à ideia de um órgão de jurisdi­
ção cronicamente obrigatória para todos os Estados. A cláusula, nesse contexto, foi
imaginada pelo representante do Brasil, Raul Fernandes, e resultou disciplinada
pelo art. 36 do Estatuto.
Sessenta e seis Estados estão hoje comprometidos pela cláu­
sula — entre eles o Reino Unido, o Canadá, o México, o Japão,
a Austrália, o Egito, a Nigéria, Portugal, a Espanha, os reinos
escandinavos. Rússia nunca esteve; Estados Unidos e China não
quiseram permanecer. Também o Brasil, que esteve vinculado à
cláusula em períodos do passado, preferiu não continuar, reto­
mando seu velho gosto pelos meios diplomáticos de solução de
conflitos internacionais, e pela arbitragem quando inevitável. A
França, cuja adesão à cláusula facultativa fizera-se por tempo
limitado, não quis permanecer comprometida depois do caso
dos testes nucleares, em que litigou com a Austrália e a Nova
Zelândia, em 1974.
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O Estatuto da Corte permitiu o ingresso na cláusula por
prazo determinado, sujeito, pois, quando de seu término, à re­
novação. Diversos países usaram de tal faculdade. Alguns foram
além, e estabeleceram limites ratione materiae a seu compro­
misso com a jurisdição da Corte. A França, por exemplo, afir­
mara excluir do âmbito de sua jurisdicionalidade os conflitos
relacionados com o tema da defesa nacional. Quando acionada
pela Austrália e pela Nova Zelândia em razão das experiências
nucleares que vinha fazendo no Pacífico, invocou sua reserva,
mas sem sucesso: a Corte entendeu que o caso deveria ter curso
normal, e foi este o motivo por que a França entendeu, em se­
guida, de não manter seu compromisso.
Os Estados Unidos, hoje fora da cláusula, haviam-na firma­
do em 1946, com diversas especificações e ressalvas. Ao renovar
o compromisso, em 6 de abril de 1984, o governo americano
inovou uma ressalva curiosa e sugestiva: sua aceitação da auto­
ridade da Corte não se aplica a conflitos com países da América
Central, ou atinentes a fatos e situações ali ocorridos...
No caso das atividades militares na Nicarágua, ajuizado por essa república
contra os Estados Unidos em 1984 — antes que produzisse efeito a última ressalva
referida —, a Corte afirmou sua jurisdição apesar de contestada pelo país réu, que
pretendeu valer-se tanto do teor das especificações de seu próprio compromisso
quanto do argumento da ausência de reciprocidade, à base de uma crítica da vali­
dade do compromisso da Nicarágua com a cláusula facultativa. Havendo sucumbi­
do na preliminar, pelo acórdão de 26 de novembro de 1984, os Estados Unidos
abandonaram o processo. A decisão de mérito, proferida em 27 de junho de 1986,
julgou procedente a demanda e condenou o governo americano à reparação dos
pre­juízos causados à Nicarágua12.
256. Linhas gerais do procedimento. As línguas de trabalho da
Corte da Haia são o francês e o inglês, e a trilha do processo não
12. Recueil CIJ (1984), p. 169 e s. e 392 e s.; (1986), p. 14 e s.
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difere substancialmente do curso dos feitos cíveis num foro inter­
no do gênero do nosso. Admitem-se as provas usuais e as razões
escritas, bem como sustentações orais em sessão de julgamento.
As decisões são tomadas por voto majoritário, e tanto podem os
vencidos juntar ao acórdão seus votos dissidentes quanto pode
qualquer integrante da maioria juntar também sua argumentação
individual, se isso lhe parecer bom. As diversas comunicações, da
citação inicial à publicidade do acórdão, ficam a cargo do cartório
da Corte, atuante em sua sede predial, na Haia.
Quando contendem dois Estados, um dos quais tem na Corte um juiz de sua
nacionalidade, é permitida ao outro a indicação de um nacional seu para atuar como
juiz ad hoc no feito. Se nenhum dos dois contendores tem na Corte um nacional, a
ambos é facultada a nomeação de juízes ad hoc. Estes propendem às vezes a votar
em prol de suas pátrias, razão por que a investidura ad hoc é vulnerável à crítica.
Os juízes efetivos, por seu turno, preservam uma sólida tradição de independência,
tendo acontecido com frequência — desde a época da CPJI — de votarem contra
a posição de seus Estados patriais.
257. Natureza do acórdão. O acórdão da Corte da Haia é, tal
como as sentenças arbitrais, definitivo e obrigatório.
Seu caráter irrecorrível não exclui, contudo, a possibilidade de embargos
declaratórios, que ali levam o nome de “pedido de interpretação”. Um pedido des­
sa espécie foi feito pela Colômbia em novembro de 1950, dada sua perplexidade
ante o primeiro acórdão relativo ao caso do direito de asilo (Haya de la Torre).
Quanto à obrigatoriedade do acórdão, seu fundamento também costuma ser,
em última análise, o princípio pacta sunt servanda. A Corte não exerce jurisdição
a menos que as partes a ela se submetam, mediante prévio compromisso, na maio­
ria dos casos, e eventualmente como decorrência do ajuizamento da lide pelo autor,
e da abstenção, por parte do réu, de declinar do foro.
No estudo da sentença arbitral, vimos que ela é definitiva,
obrigatória e não executória. O acórdão da Corte, por sua vez,
pode ser executório em circunstâncias excepcionais. Com efei­
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to, o art. 94 da Carta da ONU começa por dizer que os Estados-membros se comprometem a cumprir as decisões da CIJ que
lhes digam respeito. Até aí, nada de extraordinário: sabemos que
o não cumprimento do acórdão da Corte, tanto quanto o não
cumprimento da sentença arbitral, representa um ato ilícito. Mas
o referido artigo da Carta de São Francisco prossegue dizendo
que em caso de recalcitrância a outra parte poderá denunciar o
fato ao Conselho de Segurança, e este, caso julgue necessário
(entenda-se: à luz do seu dever primordial de preservar a paz e
a segurança coletivas), tomará medidas próprias para fazer cum­
prir o acórdão.
De 1945 até hoje, o primeiro condenado recalcitrante foi a Albânia (caso do es­
treito de Corfu, acórdão de 9 de abril de 1949), e o último, os Estados Unidos da
América (caso das atividades militares na Nicarágua, acórdão de 27 de junho de
1986). Em caso algum o Conselho de Segurança entendeu válido fazer uso de sua
força física para obrigar o sucumbente ao cumprimento do acórdão. A atitude da
Albânia foi vista como incapaz de representar risco para a segurança coletiva: afinal,
a parte vitoriosa — a Grã-Bretanha — não iria perder o sangue-frio por haver deixa­
do de embolsar alguns milhões de libras a mais, na sua longa trajetória de sucesso
em todas as formas de comércio. Já no caso Nicarágua, a impossibilidade de qualquer
ação educativa do Conselho de Segurança resultou do vício essencial que marca seu
funcionamento. O réu sucumbente, na espécie, é um dos membros permanentes do
órgão, dotados do poder de veto. Para a tomada de qualquer decisão avessa a seus
interesses, seria preciso que ele renunciasse ao voto, ou votasse contra si mesmo...
Obrigatório sempre se entendeu o acórdão mas havia dúvi­
da sobre as decisões relativas a medidas cautelares, em função
da ambiguidade da linguagem do Estatuto anexo à Carta das
Nações Unidas, que diz que a Corte “…terá o poder de indicar,
se pensa que as circunstâncias o exigem, medidas cautelares...”,
e que “...será dada notícia ao Conselho de Segurança das medi­
das sugeridas...”13.
13. Art. 41 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.
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Em duas ocasiões recentes a Corte teve conhecimento da iminência da execução
de réus estrangeiros nos Estados Unidos sem que, ao longo do processo penal, os
respectivos cônsules tenham sido avisados, como manda a Convenção de Viena de
1963, para poderem cogitar de orientar ou assistir à defesa. Acionados em 1998 pelo
Paraguai (caso Breard) e em 1999 pela Alemanha (caso LaGrand), os Estados Unidos
reconheceram, no sumaríssimo procedimento sobre as cautelares, que as autoridades
estaduais processantes se omitiram de fazer o que manda a convenção consular, mas
que os processos foram corretos e que o resultado, ou seja, a condenação à morte,
dificilmente poderia ter sido outro. A Corte indicou, num e noutro dos casos, a óbvia
medida cautelar assecuratória de que a futura decisão definitiva pudesse fazer sentido
se favorável ao Estado autor, ou seja, a suspensão da execução da pena capital. Breard
e LaGrand foram, não obstante, executados logo em seguida, na Virgínia e no Arizo­
na respectivamente. As gestões do governo federal junto aos dois Estados foram
singulares, e não se lhes disse de um dever de atender à Corte, mas da conveniência
de não expor, lá fora, cidadãos americanos a situações semelhantes... A própria Su­
prema Corte não quis tratar as medidas cautelares como um imperativo, confirmando,
no mais alto nível interno, a convicção de que o Estatuto a que se subordina a Corte
da Haia não lhe permite determinar medidas cautelares14.
No acórdão sobre o mérito do caso LaGrand, em junho de
2001, a Corte finalmente fez ver que apesar da ambiguidade de seu
estatuto e do silêncio de sua jurisprudência ao longo de anos, as
medidas cautelares só fazem sentido se obrigatórias. Nada mais
evidente, ainda que tardio. Não é próprio da instituição judi­ciária,
em parte alguma do mundo, fazer sugestões cujo acolhimento
dependa da boa vontade do demandado. Nem realizaria a liminar,
se assim fosse, seu objetivo básico: evitar que a decisão de mérito,
quando favorável ao impetrante, seja afinal perfeitamente inútil.
LEITURA
Voto vencido do autor como Juiz da Corte Internacional de Justiça no caso do
Mandado de prisão de 11 de abril de 2000 (caso Yerodia, Medida cautelar, R.
D. do Congo vs. Bélgica, 2000):
“Na maioria dos sistemas de direito contemporâneos aprende-se, de
maneira bastante uniforme, o que é uma medida cautelar, notadamente quais
14. Caso Breard: Ordem de 9 de abril de 1998, Recueil CIJ (1998), p. 248 e s.
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os seus fundamentos e quais os seus efeitos. Não obstante o silêncio do Esta­
tuto e do Regulamento da Corte Internacional de Justiça, que enunciam a este
respeito apenas normas de procedimento, a Corte tem seguido alguma orien­
tação sobre a matéria, além da que provém de sua própria jurisprudência.
A questão aqui não é a dos efeitos, mas a dos fundamentos. Estes são o
fumus boni juris — a procedência, à primeira vista, da tese que o requerente in­
voca como base de sua pretensão; e o periculum in mora — os riscos da demora,
o perigo de que, reconhecido o direito do requerente, não tenha este sua preten­
são devidamente satisfeita por não lhe haver a Corte assegurado com antecipação,
ainda que de forma parcial, o benefício da medida liminar por ele solicitada.
A procedência do pedido formulado pela República Democrática do
Congo é aqui apenas transparente. Esta é a primeira vez que um Estado se
dirige à Corte para dizer que um membro de seu governo é objeto de um man­
dado de prisão expedido pela jurisdição de outro Estado, e que o governo
deste último patrocina o referido mandado de prisão, fazendo-o circular na
comunidade internacional.
Independentemente da qualidade funcional da pessoa a quem a medida
se dirige e da questão dos privilégios de que gozam certos agentes do Estado
no plano internacional, é também a primeira vez que a Corte enfrenta o pro­
blema de um ato de jurisdição local que se diz fundado tão só no princípio da
justiça universal ___ sem apoio nem na territorialidade da infração, nem na
defesa de bens e valores essenciais do Estado do foro, nem tampouco na na­
cionalidade do agente ou na das vítimas, e sem que a pessoa acusada se en­
contre no território do Estado do foro. Prima facie, parece-me válido o argu­
mento da ofensa à regra fundamental da igualdade soberana entre as nações.
No que diz respeito à urgência, considero que a situação descrita no
pedido, isto é, a realidade do mandado de prisão expedido contra membro do
Governo congolês e o apoio do Governo belga ao seu implemento constituem
restrição contínua e permanente ao pleno exercício da função pública da pes­
soa em causa, além de ofensa, também contínua e permanente, à soberania do
Estado requerente.
Qual a dimensão do dano, e qual o seu consequente grau de urgência?
Não se trata de saber se a manutenção em vigor do mandado de prisão contra
o ministro congolês causa prejuízo irreversível. Poucas coisas além da morte
são irreversíveis. Trata-se de ver se a concessão da medida cautelar pode acaso,
ela própria, produzir dano mais grave que aquele que se pretende evitar a títu­
lo provisório. Quanto a mim, não vejo nenhum inconveniente maior em sus­
pender os efeitos do mandado de prisão expedido por um juiz de instrução de
Bruxelas, ou o caráter internacional que o Governo belga lhe conferiu, até que
a Corte estatua em definitivo sobre essa questão jurídica, de importância e
atualidade incontestáveis. Para este fim, e contrariamente ao que pensa a maio­
ria, eu atenderia ao Congo concedendo a medida cautelar”.
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258. Competência consultiva. Além de acórdãos, resultantes
do exercício de sua competência contenciosa, a Corte da Haia
emite também pareceres consultivos a pedido da Assembleia
Geral ou do Conselho de Segurança da ONU, bem como de
outros órgãos ou entidades especializadas que a Assembleia
Geral tenha autorizado a requerer tais pareceres15.
Dentre os mais importantes pareceres proferidos pela Corte em sua segunda
fase figuram aqueles que dizem respeito à personalidade, aos poderes e ao funcio­
namento da ONU, contribuindo com a gênese de uma teoria geral da organização
internacional: assim os pareceres de 1948 e de 1950 sobre a admissão de novos
membros na ONU — matéria que deu origem aos primeiros desentendimentos
entre a Assembleia e o Conselho; o parecer de 1949 sobre a proteção funcional que
a ONU exerce sobre seus agentes (caso Bernadotte); os diversos pareceres que,
desde 1950, esclareceram o problema do mandato e da subsequente tutela do Su­
doeste africano (hoje a Namíbia); o parecer de 1962 sobre o conceito de despesas
da organização, de custeio obrigatório para seus Estados-membros; o parecer de
1999 sobre a imunidade dos agentes da ONU à jurisdição interna dos países onde
atuem (caso Cumaraswamy).
259. Cortes regionais e especializadas. A Corte da Haia não é
o único foro judiciário internacional em funcionamento. Nos
anos anteriores à virada do século o número dessas instituições
cresceu a ponto de que alguns publicistas se preocupem com
uma hipotética dispersão no entendimento do direito internacio­
nal como resultado da multiplicação das sedes de jurisprudência.
Além dos tribunais penais já versados16, que julgam indivíduos
por crimes definidos em direito das gentes, diversas outras cor­
tes, ora de âmbito regional, ora especializadas em razão da
matéria, operam na cena internacional desde algum momento
15. Há uma lista oficial de órgãos e organizações autorizados pela Assembleia Geral
da ONU a pedir pareceres consultivos à Corte. Ali figuram, por exemplo, o Conselho Eco­
nômico e Social da própria ONU, a OIT, a FAO, a UNESCO, a OMS, a OACI, o Banco
Mundial e o FMI.
16. V. retro o § 85.
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do século XX. Todos esses organismos são avulsos e indepen­
dentes: não há, no plano internacional, uma hierarquia judiciá­
ria como aquela que existe no interior de cada Estado.
Certas organizações internacionais — como a OIT, e a própria ONU — pos­
suem tribunais administrativos, onde se resolvem, no contencioso, problemas
concernentes à função pública internacional. As partes ante tais foros são em regra
a organização mesma, de um lado, e de outro alguém que lhe preste ou lhe tenha
prestado serviços, ou tenha com ela estabelecido algum vínculo contratual.
Merece destaque a Corte de Justiça da União Europeia, se­
diada no Luxemburgo. Além de regional, ela é especializada no
direito comunitário: incumbe-lhe assegurar, no contencioso, a
correta interpretação e aplicação do vasto acervo normativo que
rege as comunidades europeias desde suas origens, na década de
cinquenta. Essa instituição judiciária é aberta não só aos Estados
membros das comunidades como também a particulares, indiví­
duos ou empresas nacionais daqueles mesmos Estados.
No tocante ao contencioso internacional relacionado especificamente com os
direitos humanos, vale mencionar a Corte Europeia e a Corte Interamericana, es­
pecializadas no trato dessa matéria, e já versadas no primeiro capítulo da segunda
parte deste livro, sob o título proteção internacional dos direitos humanos (pará­
grafos 132 a 137).
A Convenção de Montego Bay, de 198217, instituiu uma
jurisdição universal especializada, composta por vinte e um
juízes eleitos pela Assembleia dos Estados-partes e sediada em
Hamburgo, na Alemanha: o Tribunal Internacional do Direito
do Mar. Seu domínio temático é a Convenção de 1992 e, pois,
todo o moderno direito referente aos espaços marinhos e às suas
17. V. retro o § 200.
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extensões. Têm acesso ao tribunal os Estados-partes e ainda,
sobre o tema dos fundos marinhos, a autoridade e a empresa
interna­cionais que a Convenção instituiu, bem como as empre­
sas privadas que tenham estabelecido algum vínculo contratual
com uma ou outra.
As regras de procedimento desse tribunal asseguram exemplar expediência.
A Convenção de 1992 estabelece ainda, de modo expresso, que as medidas caute­
lares prescritas pelo tribunal do mar são obrigatórias18.
Em 17 de janeiro de 2000 uma ação foi ajuizada pelo Panamá contra a Fran­
ça, cuja marinha havia apresado o barco panamenho Camouco e seu comandante,
sob acusação de pesca ilegal. Na segunda semana de fevereiro, já consumada a
instrução com memoriais e debates, o tribunal do mar proferiu sua decisão, satis­
fazendo ao pedido panamenho.
18. V. o art. 98, § 6, da Convenção de Montego Bay. Sobre medidas cautelares na
Corte da Haia, v. retro o § 257.
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Capítulo II
A GUERRA FRENTE AO
DIREITO INTERNACIONAL
CONTEMPORÂNEO
260. Jus in bello. Este nome latino refere-se ao direito da guer­
ra, ao conjunto de normas, primeiro costumeiras, depois con­
vencionais, que floresceram no domínio do direito das gentes
quando a guerra era uma opção lícita para resolver conflitos
entre Estados. Jus in bello, o direito aplicável na guerra, era,
pois, aquele conjunto de normas cujo entendimento não tinha
que ver com a ideia preliminar do jus ad bellum, o chamado
direito à guerra, o direito de fazer a guerra quando esta pareces­
se justa. A noção de guerra justa ilustrou a obra dos clássicos.
Santo Agostinho assim qualifica aquela que obedece a um desíg­
nio divino e lembra que, para outros pensadores, justa é também
a guerra que vinga injúrias ou força a restituição do que fora
indevi­damente tomado — embora lhe pareça que a natureza
humana recolhe sofrimento de todas as guerras, e que o homem
sábio as encara com contrição e dor, ainda que justas1. Muito
tempo correu até que ganhasse certa generalidade a ideia —
contudo elementar — de que em bom número de casos a “jus­
tiça” pode encontrar-se com um e outro dos beligerantes, não
excluída a perspectiva de que a certeza de obedecer a um desíg­
nio divino domine o espírito de ambos. De todo modo
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Direito Internacional Público - Francisco Rezek