JORNADAS MERCOSUL: MEMÓRIA,
AMBIENTE E PATRIMÔNIO
Judite Sanson de Bem
Zilá Bernd
Organizadoras
Canoas, 2013
Jornadas Mercosul: memória, ambiente e patrimônio
ISBN: 978-85-89177-23-8
UNILASALLE
Editora UnilaSalle
CIP - FICHA
APRESENTAÇÃO
A Memória, o Ambiente e o Patrimônio formam um tripé que afeta, direta ou indiretamente,
consciente ou inconscientemente, o modo de ver e de conhecer um povo, uma comunidade, uma
organização, uma família, enfim, o próprio ser que está inserido no meio em que vive e com o qual
interage.
No processo de busca da melhor compreensão do significado, da abrangência e do conhecimento acumulado e daquilo que necessita ser agregado, MERCOSUL: Memória, Ambiente e Patrimônio
apresenta os resultados de ampla reflexão que reuniu pesquisadores do Brasil, Uruguai e Argentina.
Foram discutidos, identificados e consolidados conhecimentos e procedimentos que possibilitam o
uso e a aplicação dessas complexidades no dia a dia.
As reflexões aqui apresentadas, as quais refletem uma fértil troca de informações e experiências, deverão contribuir para o desenvolvimento de ações e práticas que poderão vir a subsidiar políticas na perspectiva do MERCOSUL, voltadas para uma expansão de investimentos sustentáveis na
área de abrangência da Memória, do Ambiente, do Patrimônio, da Educação Ambiental e do Turismo
Cultural.
A presente coletânea de artigos apresenta-se através de nove eixos temáticos: Turismo Cultural
no Mercosul, Educação Ambiental, Museu e indústrias criativas como instrumento do patrimônio e do
desenvolvimento, Proteção jurídica do ambiente e da saúde no Mercosul, Patrimônio Cultural, Tecnologia social, desenvolvimento e cidades inteligentes, Engenharia ambiental, pesquisa acadêmica e
educação ambiental, Produção e usos da memória e gestão cultural.
Tais eixos temáticos revelam os temas predominantes de três Programas de Mestrado do Unilasalle/Canoas: Mestrado Profissional em Memória Social e Bens Culturais e Mestrados Acadêmicos
em Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração e em Educação. Trazê-los aos leitores em forma
de e-book incrementará a visibilidade dos mesmos para a comunidade profissional, acadêmica, social,
empresarial e governamental como integrantes do sistema de troca de informações e experiências,
contribuindo efetivamente para o desenvolvimento de ações e práticas que possam subsidiar políticas
voltadas para uma expansão de investimentos sustentáveis na área de abrangência da Memória, do
Ambiente e do Patrimônio.
Judite Sanson de Bem
Zilá Bernd
Organizadoras
Sumário
Apresentação
Judite Sanson de Bem e Zilá Bernd
1. TURISMO CULTURAL NO MERCOSUL
1.1 PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU
CONSERVACIÓN...............................................................................................................................13
Aníbal Manavella - Universidad de Córdoba, Argentina
1.2 TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY. UNA COMPLEJA PERO NECESARIA
ALIANZA.............................................................................................................................................31
Alejandro Gimenez - Ministério do Turismo e Desporto do Uruguai
2. EDUCAÇÃO AMBIENTAL
2.1 EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DISCURSOS MIDIÁTICOS: MODOS DE SER SUJEITO NA
CONTEMPORANEIDADE................................................................................................................45
Paula Henning - PPGEA – FURG
2.2 URGÊNCIA ECOLÓGICA E AS CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE.............................53
Balduino Antônio Andreola - UNILASALLE
3. MUSEU E INDÚSTRIAS CRIATIVAS COMO INSTRUMENTO DO PATRIMÔNIO E DO
DESENVOLVIMENTO
3.1 CENTRO HISTÓRICO DE PORTO ALEGRE – UMA RELAÇÃO ENTRE ARQUITETURA,
MÍDIA E HISTÓRIA...........................................................................................................................67
Éder dos Santos Carvalho e Simone Cardoso
3.2 PLANO MUSEOLÓGICO E ESTRATÉGIAS DE SUSTENTABILIDADE PARA MUSEUS:
ESTUDO DE CASO – O MUSEU HISTÓRICO MUNICIPAL DE DOIS IRMÃOS – RS...............77
Andréa Cogan
3.3 PERSONALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MUSEU
CONTEMPORÂNEO........................................................................................................................83
Luciano Alfonso
3.4 CINEMAS DO MERCOSUL: POLÍTICA DE INCENTIVO, CO-PRODUÇÕES E IDENTIDADE CULTURAL .................................................................................................................................97
Rosângela Fachel de Medeiros
5
3.5 ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO:
ESTUDO DO CONSINOS NO PERÍODO DE 2000 A 2010...........................................................109
Judite Sanson de Bem, Nelci Maria Richter Giacomini, Moisés Waismann
4. PROTEÇÃO JURÍDICA DO AMBIENTE E DA SAÚDE NO MERCOSUL
4.1 PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A GÊNESE JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA
CONSTITUINTE DE 1987/88 ....................................................................................................... 121
Yussef Daibert Salomão de Campos
4.2 O PROERD COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO NO COMBATE AO USO DE DROGAS
NO MUNICÍPIO DE SÃO LEOPOLDO/RS ................................................................................. 131
Arlindo Weber de Oliveira
5. PATRIMÔNIO CULTURAL
5.1 A CULTURA E O PATRIMÔNIO IMATERIAL DE POVO NOVO ....................................... 139
Alexandre da Silva Borges, Helissa Renata Gründemann e Jean Baptista
5.2 NOS CAMINHOS DO SANTO MONGE ................................................................................. 147
Fabian Filatow
5.3 O CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR NA SALA DE AULA, A PARTIR DO ESTUDO
DE PAISAGEM NAS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI ............................................................ 159
Delcimara Batista Caldas, Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho e Heridan de Jesus
Guterres Pavão Ferreira
5.4 COMPLEXO CULTURAL BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO: EXPRESSÃO CULTURAL
AFRODESCENDENTE E PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL ......................................... 169
Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho e Delcimara Batista Caldas
5.5 ESTALEIROS NAVAIS RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA: EMBARCAÇÕES, EDUCAÇÃO E
SABERES CULTURAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL ..................................................... 181
Antônio Jorge Pantoja Gualberto
5.6 USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA – UMA DISCUSSÃO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE PREFEITURAS MUNICIPAIS E O PATROCÍNIO À PRODUÇÃO DE HISTÓRIA LOCAL ........... 193
Sandra Cristina Donner
5.7 PROGRAMA DE EXTENSÃO EM DEFESA DO PATRIMÔNIO COMUNITÁRIO – COMUNIDADES FURG ............................................................................................................................... 207
Helissa Renata Gründemann, Alexandre da Silva Borges e Jean Baptista
6
5.8 PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE DIVINÓPOLIS/
MG .................................................................................................................................................. 217
Vanessa Regina Freitas da Silva e Carolina Goes Eloi
5.9 “O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURAL POLÍTICA EM UMA
REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO ............................................................................. 225
Douglas Souza Angeli
5.10 MEMÓRIAS E AUSÊNCIAS NAS VEREDAS DO PASSADO: A ESTRADA DE MANGARATIBA A SÃO JOÃO DO PRÍNCIPE COMO MONUMENTO HISTÓRICO-AMBIENTAL ...... 239
Cesar Augusto Ornellas Ramos
5.11 LIBROS Y EDITORIALES: REGISTRO Y DOCUMENTACIÓN DE LA CULTURA INMATERIAL? .............................................................................................................................................. 251
Jenny González Muñoz
6. TECNOLOGIA SOCIAL, DESENVOLVIMENTO E CIDADES INTELIGENTES
6.1 BRINCAR: UM DIREITO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL ........................ 263
Silvia Adriana da Silva Soares e Rosa Maria Castilhos Fernandes
6.2 SEGURANÇA ALIMENTAR: UM PROJETO SOCIAL NO ÂMBITO ESCOLAR .............. 269
João Bosco Torres Santos, Miguel Ângelo Ribeiro de Ribeiro e Rosa Maria Castilhos
Fernandes
6.3 TECNOLOGIA SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE: OS CAMINHOS DE UMA INVESTIGAÇÃO ............................................................................................... 277
Rosa Maria Castilhos Fernandes
6.4 UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA ........................................................................................................................................... 281
Rodrigo Barcelos da Silva, Pablo Marcel Parada, Patrícia Kayser Vargas Mangan, Abraham
Lincoln Rabello de Sousa
7. ENGENHARIA, PESQUISA ACADÊMICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL
7. 1 AVALIAÇÃO DO IMPACTO DA POLUIÇÃO SONORA SOBRE OS USUÁRIOS DE TRANSPORTE COLETIVO NA BR 116 NO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS ......................................... 295
Geraldo José Rodrigues Alves e Saulo Padoin Chielle
7.2 PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E
PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS ...................................................................................... 305
Alexandra Fachinello
7
7.3 A SUSTENTABILIDADE DE UM EMPREENDIMENTO SOLIDÁRIO: DESAFIOS DO COOPERATIVISMO CONTEMPORÂNEO ........................................................................................ 327
Joel Luís Dumke, Patrícia Abel Balestrin e Nathália Stedile
7.4 A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS ............................................ 337
Fernanda Piedade de Freitas e Maria Luiza Steiner Fleck
7.5 UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DE RIO GRANDE ............................................................. 349
Ângela Torma Pietro e Maria Ângela Mattar Yunes
7.6 CAAPÃO DAS CANOAS, RS: ESPÉCIES DA FLORA AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO .... 357
Sérgio Augusto de Loreto Bordignon, Inga Ludmila Veitenheimer Mendes e Felipe Marcon
Pezda
7.7 UM PRIMEIRO OLHAR À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE
SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS ....................................................................... 365
Cristiane Paim da Cunha e Rubens Müller Kautzmann
7.8 O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE
NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL: SUBSÍDIOS PARA AÇÕES DE EDUCAÇÃO
AMBIENTAL ................................................................................................................................. 375
Carlos Gilberto Kisiolar Machado, Rubens Muller Kautzmann, Luciano Scarello Azeredo
8. PRODUÇÃO E USOS DA MEMÓRIA
8.1 GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO EM
QUEDA .......................................................................................................................................... 387
Glauce Stumpf
8.2 O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA
ARTÍSTICO-CULTURAL .............................................................................................................. 397
Ana Lígia Trindade, Patrícia Kayser Vargas Mangan e Nádia Maria Weber Santos
8.3 “BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE ............... 411
Vanessi Reis
8.4 MODERNIDADE DE REVISTA E REPRESENTAÇÃO DO INDIVIDUAL NA REVISTA
CARETA ........................................................................................................................................... 423
Cláudio de Sá Machado Júnior
8
9. GESTÃO CULTURAL
9.1 AS COMUNIDADES DE PRÁTICA E A APRENDIZAGEM INFORMAL NA GESTÃO
CULTURAL ................................................................................................................................... 437
Telmo Telles, Tamara Cecília Karawejczyk e Maria de Lourdes Borges
9.2 IMPLICAÇÕES DA CULTURA E DA ACULTURAÇÃO NO COMPORTAMENTO DO
CONSUMIDOR .............................................................................................................................. 447
Maria Regina D’Ambrosi da Silva Uster e Flávio Régio Brambilla
9.3 GESTÃO EM ARQUEOLOGIA .............................................................................................. 457
Rafaela Nunes Ramos
9.4 NOÇÕES SOBRE GESTÃO DA CULTURA E DO MARKETING CULTURAL .................. 469
Flávio Régio Brambilla
9
1. TURISMO CULTURAL NO MERCOSUL
JORNADAS MERCOSUL
PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN
A. Aníbal Manavella*
Introducción
El Patrimonio cultural es el conjunto de todos los bienes, materiales (tangibles) o inmateriales (intangibles), que, por su valor propio, deben ser considerados de interés relevante para la permanencia de la identidad y la cultura de un pueblo. Es la herencia propia del pasado, con la que un pueblo
vive hoy, y que transmitimos a las generaciones futuras.
El patrimonio en general, — del latín patrimonium: lo que se hereda —, incluye una pluralidad
de bienes que en conjunto dan forma a la identidad de los pueblos. Es más que una reunión de objetos muebles e inmuebles, es un conjunto de bienes materiales e inmateriales de una comunidad con
respecto a un territorio;1 no centra su objetivo principal en los objetos y su conservación, sino que
se entiende como un recurso para el desarrollo, siendo su objetivo las personas y su calidad de vida.
La Arq. Marina Waisman sostiene: “Para mí patrimonio es todo lo que puede ayudar a una
comunidad a mantener su identidad. No necesita ser un gran monumento, puede ser una calle, un
área… y preservación es mantener vivo a ese patrimonio, mantener ese difícil equilibrio entre la
conservación y el cambio, que evite, por un lado el congelamiento de la ciudad, y por el otro, la destrucción de la identidad”.
La ciudad está integrada por una variedad de hechos físicos que, sumados a la estructura humana, llamamos patrimonio, patrimonio general en su más amplia aplicación. Su función es materializar
la historia de la comunidad, permitirle “figurarse las sucesivas imágenes”2 de su pasado. Toda esta
masa de elementos es lo que heredamos de generación en generación.
Cuando a mediados de Siglo XX el Hombre toma conciencia de la finitud de esos referentes
materiales de la memoria de un pueblo, aquellos que si se destruían impedían “leer e interpretar” la
historia de la humanidad, comienza a preocuparse por la salvaguarda de los mismos.
En un primer momento, sólo se propone conservar aquellos de escala monumental, esos que,
indudablemente, debían preservarse, por ejemplo, el Partenón griego, testigo fundamental del mundo
occidental.
¿Pero qué sucede si sólo conservamos los monumentos y dejamos librado al azar aquellos
bienes de escala doméstica? Quedarían siendo mudos testigos inconexos, incapaces de permitir interpretar una línea histórica. No representarían a la totalidad de la comunidad, sólo a una parte de ella.
1
ROMERO MORAGAS, C. Ponencia: “Patrimonio, Turismo y Desarrollo”. Bilbao. España. 1996
2
Carta de Atenas, 1941 (adoptada por UNESCO)
PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN
En la segunda parte del Siglo XX, el Hombre supera el concepto de Patrimonio Cultural
asociada a la de Monumento y reelabora otro: el de Bienes Culturales.
Entendiendo a los mismos como creaciones del hombre que se traducen en obras y hechos
sustentados por elementos materiales de diversas formas y escalas; y por elementos inmateriales sin
forma real, que perduran a través de la tradición
“Un bien cultural es un objeto que ha acumulado teoría, práctica, experiencia e investigación,
en definitiva, es el resultado del conocimiento humano acumulado”, sostiene Ballart.3
Los Bienes Culturales pueden ser clasificados4 de la siguiente forma:
Como se puede observar en el cuadro anterior, del patrimonio cultural forman parte bienes
inmuebles como fortalezas, castillos, templos, casas, plazas, conjuntos urbanos, obras rurales y otros
lugares con valor para la historia, la arqueología, la paleontología y la ciencia en general.
Los bienes muebles incluyen pinturas, esculturas o artesanías. Como bienes intangibles se consideran la literatura, la música, el folclore, el idioma, las costumbres y especialmente los saberes propios, como el conocimiento de la biodiversidad, la concepción del territorio o la medicina tradicional.
De este modo, el patrimonio cultural está constituido por todos los bienes y valores culturales
que son expresión de la nacionalidad o identidad de un pueblo, tales como la tradición, las costumbres
y los hábitos, así como el conjunto de bienes inmateriales y materiales, muebles e inmuebles, que
poseen un especial interés histórico, artístico, estético, plástico, arquitectónico, urbano, arqueológico, ambiental, ecológico, lingüístico, sonoro, musical, audiovisual, fílmico, científico, testimonial,
documental, literario, bibliográfico, museológico, antropológico y las manifestaciones, los productos
3
4
BALLART, J. “El Patrimonio histórico y arqueológico: valor y uso”. Ariel. Barcelona. 1997
Clasificación propuesta por el Instituto Colombiano de Cultura. Cuadro elaborado por la Arq. M. R. Medina. FAUD. UNC
14
A. Aníbal Manavella
y las representaciones de la cultura popular.
De este modo, la totalidad de las manifestaciones culturales de una comunidad están contempladas y, por lo tanto, merecen ser preservadas y protegidas. Ésta es la forma en la cual se puede lograr
una dialéctica entre bienes culturales de diferentes escalas, todas ellas imprescindibles a la hora de
conformar la identidad de una comunidad.
Es decir que, antes de proponer acciones y normativas, se debe reflexionar sobre el tipo de
patrimonio cultural que se posee y la intervención que le corresponde. Nuestro patrimonio cultural
– el que define la escena artificial donde se desarrolla la vida de la ciudad –, no acaba en los bienes
coloniales y en los edificios emblemáticos del siglo XIX, abarca además sectores carentes de monumentalidad, pero que constituyen gran parte de nuestro patrimonio urbano-arquitectónico, realidades
urbanas del siglo XIX y las modernas realidades que renovaron cada ciudad a mediados del siglo XX
y que hoy son historia; conjunto que carece de atención y de valoración como bien cultural; y que, en
consecuencia, sufre intervenciones que alteran definitivamente su esencia.
El Arq. Rodolfo GALLARDO avanzó hace algunas décadas al respecto, y expresó: “Siendo la
arquitectura la respuesta a esas formas o modos de vida también es justo ampliar el concepto no solo
atendiendo a aquellos edificios o palacios que son una reserva artística donde vivió la clase dirigente
de alto status económico-social, sino también se insertan en la historia otras realidades sociales escalonadas en las clases medias o intermedias, y a la arquitectura urbana y rural que son memoria también
de determinadas épocas, como el conventillo y el rancho o ejemplos de la arquitectura industrial o
utilitaria”.
Este patrimonio abarca lo monumental y lo doméstico, que en general no cuenta con características artísticas relevantes. Dado su función utilitaria y social masiva, representan la evolución de formas de hábitos de uso, constructivos, económicos, de gusto, de modelos, etc. Por su función original
y, tal vez actual, la continuidad del uso de este tipo de patrimonio es corriente y lo protege en primera
instancia de su pérdida total.
El Turismo es una actividad que le puede otorgar continuidad y vitalidad a los Bienes de Interés Cultural, siendo una actividad que adquiere una importancia relevante en este juego entre Patrimonio Cultural, Desarrollo Sostenible y Desarrollo Sustentable.
Se puede definir al turismo como un conjunto de acciones que una persona desarrolla mientras
viaja y pernocta en un lugar distinto al de su lugar de residencia.
El Turismo nacional e internacional sigue siendo uno de los medios más importantes para el
intercambio cultural, ofreciendo una experiencia personal no sólo acerca de lo que pervive del pasado,
sino de la vida actual y de otras sociedades. El Turismo es cada vez más apreciado como una fuerza
positiva para la conservación de la Naturaleza y de la Cultura. El Turismo puede captar los aspectos
económicos del Patrimonio y aprovecharlos para su conservación generando fondos, educando a la
comunidad e influyendo en su política. Es un factor esencial para muchas economías nacionales y
regionales y puede ser un importante factor de desarrollo cuando se gestiona adecuadamente. (Carta
Internacional sobre Turismo Cultural, 1999).
15
PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN
Dicho documento expresa en su Principio 1, que “Desde que el Turismo nacional e internacional se ha convertido en uno de los más importantes vehículos para el intercambio cultural, su
conservación debería proporcionar oportunidades responsables y bien gestionadas a los integrantes
de la comunidad anfitriona así como proporcionar a los visitantes la experimentación y comprensión
inmediatas de la cultura y patrimonio de esa comunidad”.
Y, si bien en su Principio 5 menciona que los beneficios deberían ser para la comunidad anfitriona, la gestión adecuada del turismo permitirá la sostenibilidad y sustentabilidad del patrimonio
cultural. Por eso deben tomarse todas las medidas adecuadas para ello, con el objetivo de preservar
las características del bien, para que no se pierda el objeto como un recurso atractivo al turismo, no
sólo para quienes se benefician en la actualidad con los favores de dicha actividad, sino pensando,
sobre todo, en las generaciones futuras, quienes tienen el derecho de conocerse y re-conocerse en ese
patrimonio cultural, referente material de su propia identidad.
La sosteniblidad o el desarrollo sostenible surgen en los ’70 denominándose como “eco-desarrollo” y fue perfeccionándose durante el transcurso de las últimas décadas del siglo pasado.
Se basa, en la constatación, corroborada por otra parte por el sentido común, de que en la naturaleza nada crece indefinidamente, sino que, al alcanzar determinados umbrales máximos, en todo
proceso se produce el colapso y la degradación y las componentes degradadas o fragmentadas pasan
a formar parte de nuevos procesos de desarrollo.5
Asimismo, la Cumbre de la tierra de Río de Janeiro (1992), sostiene en su Principio 1, que “Los
seres humanos constituyen el centro de las preocupaciones relacionadas con el desarrollo sostenible.
Tienen derecho a una vida saludable y productiva en armonía con la naturaleza”; y en su Principio 4,
que “Para alcanzar el desarrollo sostenible, la protección del medio ambiente debe ser parte del proceso de desarrollo y no puede ser considerado por separado.”
De este modo, para preservar las características identitarias de un objeto considerado de valor
patrimonial se deben arbitrar todas las normas necesarias para lograr ese objetivo, su permanencia, es
decir, ser sostenible en el tiempo.
Para ello, la sustentabilidad debe ser un elemento de alta significatividad.
El desarrollo sustentable es considerado como el “desarrollo que satisface las necesidades del
presente sin comprometer las capacidades que tienen las futuras generaciones para satisfacer sus propias necesidades” (Comisión Mundial para el Medio Ambiente y el Desarrollo, establecida por las
Naciones Unidas, 1983).
La sustentabilidad implica pensar el desarrollo económico en términos cualitativos y no sólo
cuantitativos, estableciendo interrelaciones entre aspectos sociales, ambientales y económicos, en un
campo cultural democrático y representativo, avanzando simultáneamente en estos ámbitos, sin que la
preservación signifique detener el avance del progreso.
Para ello, es importante diseñar un Plan de Gestión adecuado a cada objeto de valor patrimo5
http://extensionacademica.wordpress.com/2010/03/26/el-concepto-de-sustentabilidad-y-la-importancia-de-cuidar-el-medioambiente/ [en línea, consultado el 28/07/2012]
16
A. Aníbal Manavella
nial, siempre teniendo en cuenta la importancia de preservar los valores de su entorno.
La planificación y la gestión del patrimonio cultural y natural de un sitio – según lo que propone la Carta de Ename, Interpretación de lugares pertenecientes al patrimonio cultural ICOMOS,
2004–, deben “contribuir a la conservación perdurable de los lugares con valor patrimonial y potenciar
la calidad de vida de las comunidad receptora de los visitantes”.
Uno de los principales desafíos al cual se enfrenta quien diseña un Plan de Manejo de un Sitio
Histórico, es lograr ese delicado equilibrio que permita preservar las características patrimoniales que
le otorgan ese rango y, por otro lado, no interferir en el normal desarrollo del mismo. Se requiere de
una política de planeamiento y gestión urbana que se responsabilice por la conservación de la autenticidad e integridad del sector.
Es por ello, que en el momento de realizar el Plan de Manejo se debe convocar a todos los actores partícipes: propietarios; usuarios; inversores — en nuestro medio, muchas veces mal llamados
“desarrollistas” —; arquitectos y planificadores urbanos; especialistas en la temática del patrimonio
cultural; historiadores; sociólogos; antropólogos; abogados; y, por supuesto, a representantes de los
diferentes estamentos gubernamentales.
Una preocupación central de las intervenciones físicas y funcionales es realzar la calidad de
vida y la eficiencia productiva, mejorando las condiciones de trabajo y de recreación, así como mediante la adaptación de los usos, no poner en riesgo los valores existentes, derivados éstos del carácter
y el significado de la materia y de la forma urbana de naturaleza histórica. Ello significa no solamente
mejorar los niveles técnicos, sino también una rehabilitación y un desarrollo contemporáneo del ambiente histórico, basado en un inventario adecuado y en la detección de sus valores, además, añadir
expresiones culturales de alta calidad.
Una de las herramientas imprescindibles para la protección de los bienes de valor históricocultural es la legislación. La misma aborda la problemática asignándole la importancia que dicho bien
se merece y aporta aspectos pedagógicos, por lo que la difusión de la misma es imprescindible para
lograr el objetivo. Si así no lo hiciere, sería totalmente ineficaz, es más, actuaría de manera contraproducente.
Entre las organizaciones que se debe convocar de manera imperiosa para la gestión del patrimonio cultural, figuran las instituciones educativas, ya que es allí en donde se construyen conocimientos que pueden ser derivados hacia ese campo académico y es ahí en donde se reproducen prácticas
culturales que pueden ser muy útiles a la hora de preservar el bien cultural, pudiéndose crear verdaderos “ejércitos” defensores del mismo.
En el caso particular de Argentina, la ausencia de contenidos acerca del Patrimonio Cultural en
su currícula formal puede ser una de las causas por las cuales se pierden, día a día, enorme cantidad
de vestigios identitarios, sumado al hecho de una legislación flexible, permeable e ineficaz. Es sumamente necesario diseñar un proyecto curricular educativo que integren dichos contenidos como parte
de la gestión cultural a la cual se alude.
17
PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN
La Gestión urbanística en las áreas históricas tendrá que prestar la debida consideración a las
escalas preexistentes, particularmente en lo relativo a los volúmenes y alturas de los edificios, minimizando los impactos directos en los elementos históricos importantes.
La preservación de los sitios del Patrimonio Mundial supone también el diseño del espacio
público: deberá prestarse especial atención a la funcionalidad, la escala, los materiales, la iluminación,
el mobiliario urbano, la publicidad y la señalética y a la vegetación, por nombrar sólo unos pocos elementos. El planeamiento de la infraestructura urbana en zonas patrimoniales deberá incluir todo tipo
de medidas de respeto al tejido histórico, a las edificaciones existentes y al contexto, así como mitigar
los efectos negativos del tráfico vehicular y los estacionamientos.
También la intervención en el interior de los objetos de valor patrimonial debe ser cuidadosa.
La mutación de sus usos originales puede, en la mayoría de los casos, repercutir en las cualidades de
los espacios públicos, también el vaciado interior de los volúmenes edificados no constituye un medio
apropiado de intervención en sitios de valor cultural.
El plan de manejo para un lugar cultural debe incluir lo que por otra parte llamamos plan de
conservación, pero generalmente abarca otros aspectos del manejo del lugar que el plan de conservación no incluye, por ejemplo si fuera un área grande6.
Los mismos autores sostienen que “manejo” en este contexto consiste en identificar el rango
de opciones disponibles para cada lugar patrimonial de acuerdo con su significado estimado, hacer un
balance de estas opciones respecto de otras consideraciones tales como la disponibilidad de fondos
y recursos humanos y el posible conflicto con otros objetivos administrativos ya sea para el mismo
territorio o para uno adyacente; y luego elegir las opciones más apropiadas y perseguirlas como una
política de manejo. La identificación y adopción de tal proceso se denomina “planificación de manejo”
y su elaboración por escrito “plan de manejo”. Mientras que la preservación es el aspecto principal en
la administración de un lugar, el plan que se obtiene es generalmente llamado “plan de preservación”.
De este modo, una planificación de manejo adecuada es la clave para una administración efectiva del lugar patrimonial, ya que sin esto no hará un inventario adecuado, una tasación, y cuando
sea posible, la preservación del recurso. El manejo de recursos culturales es diferente al manejo de
recursos naturales, ya que los recursos culturales se deterioran con el tiempo y no se regeneran por sí
mismos como lo hacen la mayoría de los elementos de los sistemas naturales. Por lo tanto, la administración mediante la exclusión de usos incompatibles y la protección contra influencias dañinas externas, las cuales permitirían que un recurso natural viviera por sí mismo o se regenerara, no lograría
necesariamente la preservación de una amplia cantidad de recursos culturales.
El documento anteriormente citado presenta la siguiente etapabilización para el proceso de
diseño de un Plan de manejo:
6
PEARSON, M. SULLIVAN, S. Op. Cit.
18
A. Aníbal Manavella
Todo Plan de Manejo debe partir de un diagnóstico exhaustivo del significado que posee el BIC
para la comunidad. Entender el grado de conocimiento y valoración que hace una sociedad del mismo,
permite armar un esquema previo de ese plan, diagramando líneas directrices en el mismo.
Para la realización de este diagnóstico, como se lo mencionara anteriormente, debe incluirse
las opiniones de todos los actores involucrados, sumado a las condicionantes legales y técnicas que
afectan al sitio o al bien.
El gestor tiene una responsabilidad clara de evaluar el significado de un lugar objetivamente.
De la misma manera, existe una responsabilidad clara de tener en cuenta otras restricciones y consi19
PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN
deraciones y hacer un balance entre el valor patrimonial y las necesidades de la sociedad. Mientras
mayor sea el entendimiento del valor del lugar, mayores serán las posibilidades del gestor de encontrar
razones convincentes para superar los problemas de administración para lograr la preservación.
El ICOM sostiene que la política de preservación debe identificar la forma más apropiada
para cuidar la estructura y el entorno de lugar teniendo en cuenta el significado y otras restricciones.
A esta política se la conoce, en ocasiones, como política de administración, especialmente
cuando no es posible o apropiada la preservación completa del lugar, o cuando la preservación es
sólo uno de los tantos objetivos en una situación específica en el manejo de un lugar. Algunos sitios
pueden poseer un alto grado de significancia, pero otros factores dominantes (restricciones) pueden
hacer imposible su conservación porque, por ejemplo, pueden estar en medio de un terreno a utilizar
de un valor abrumador. En esos casos será necesario especificar, en una política de administración, los
métodos para minimizar los daños provocados al lugar, con su consecuente detrimento de valoración,
y la forma en que se debe recuperar cualquier información relevante que pueda perderse.
Independientemente de que se trate de un plan de manejo que posibilite la preservación total
del BIC o no, deben presentarse las siguientes tres etapas:
•
Evaluación de significado.
•
Desarrollo de políticas.
•
Implementación de una estrategia y prácticas específicas y apropiadas de administración.
En el caso específico de este trabajo, plan de manejo de usos, se sugiere que, sin importar el
nivel de valoración que posea el sitio en cuestión, si en el mismo existe una propuesta de intervención
en la cual se mutarán los usos preexistentes en pos de beneficios comunitarios de alta significatividad,
la única solución es realizar un relevamiento pormenorizado de los componentes valiosos del lugar
y gestionar un plan de recuperación y remoción de esos vestigios, se entiende, en el caso de sitios
arqueológicos. Si bien sostienen, además, que en el caso de que el sitio posea un grado de valoración
muy alto, esto debería frenar cualquier intento de mutación de usos.
La selección de la opción u opciones adecuadas de administración dentro del proceso de planificación, (…) debe estar basada en factores tales como el objetivo de la dedicación y uso de la zona
involucrada, el nivel apropiado de preservación implicado, basado en la evaluación de la importancia
del lugar y la evaluación de otras restricciones, el grado y tipo de uso público, la posibilidad de arrendamiento u otros usos y los costos de preservación7.
Diseñar un Plan de Manejo requiere que el gestor tenga un buen conocimiento de los esquemas
de planificación municipal y el reglamento de desarrollo que opera en ese lugar, entendiendo que la
herencia cultural no es solo el pasado, sino el presente que interactúa con ese pasado en un crecimiento
continuo de tradición formativa, evitando desarrollar enfoques estereotipados del patrimonio de otras
culturas. Cada elemento requiere un método diferente, pero el total de la estructura debe ser integrada
para mantener el valor patrimonial del lugar.
La administración de tales lugares debe estar basada en la comprensión y respeto por la propie7
PEARSON, M. SULLIVAN, S. Op. Cit.
20
A. Aníbal Manavella
dad cultural que le pertenece a la comunidad y, una vez que eso esté establecido, por la preservación
del lugar, evaluación de la demanda pública para tener acceso y control de visitas.
Además, hay que entender que dicho plan no debe circunscribirse solamente al BIC, también
su entorno es importante, pues la comprensión del valor histórico del paisaje cultural del conjunto es
fundamental al diseñar la política de administración para el mismo, ya que, las decisiones relacionadas
con el uso de la tierra son importantes para asegurar la permanente existencia de los elementos de ese
paisaje.
Los demás elementos significativos que el gestor debe considerar para diseñar la política de
administración son:
•
las circunstancias en general;
•
el tipo y severidad de restricciones;
•
la naturaleza de las oportunidades de administración que un lugar puede ofrecer.
Una vez más, el gestor sólo puede hacer esto efectivamente si se conoce el contexto de administración estatal o regional. Es decir, el gestor necesita saber no sólo la importancia total de ese lugar,
sino también la política de administración regional relacionada a ese lugar.
El gestor de un solo edificio patrimonial necesita conocer el contexto de la filosofía de preservación local o regional, la asistencia de financiación, los esquemas de planificación, y los lugares
similares que son preservados, más allá de entender el contexto histórico y social del lugar.
En teoría, es necesario también conocer la política del uso regional de la tierra, uso planificado
de la tierra, la distribución de zonas y otras restricciones en el uso de la tierra. Esto es preciso para
evaluar el rango de posibles alternativas para el futuro de la tierra en donde está ubicado.
Por consiguiente, a veces es difícil diseñar una política de preservación o administración para
un lugar determinado cuando falta la planificación patrimonial estatal o regional, debido a que no se
tiene información ni una política contextual. Por lo tanto, la planificación estatal y regional son prioridades importantes en la preservación patrimonial.
La planificación del uso de la tierra local y regional le proporciona al gestor importantes herramientas potenciales y objetivos en la protección de lugares patrimoniales. En general, es posible en
algunos estados dividir la tierra en zonas con valor patrimonial importante para que de este modo se
reconozca su valor y se proteja el área de futuros usos inapropiados que dañen o no protejan la tierra.
Por lo tanto, un área puede ser dividida para preservar paisajes o conservar la historia y aplicar las restricciones adecuadas para el uso de la tierra. También es posible, en un plan ambiental local, identificar
zonas con valor patrimonial potencial (por ejemplo, en lugares donde todavía no se han realizado informes exhaustivos para localizar las áreas aborígenes), y requerir un mayor trabajo de identificación
como parte de cualquier propuesta de desarrollo.
De la misma manera, las organizaciones que administran tierras necesitan de una política abarcadora y de estrategias para la administración de patrimonios. La política debe esbozar la responsabi21
PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN
lidad sobre lugares patrimoniales, y debe identificar las oportunidades de preservación y necesidades
de planificación, y las políticas y procedimientos para tratar temas y situaciones específicas8.
Teniendo en cuenta lo anteriormente mencionado, se infiere que la persona que diseñe un Plan
de Manejo debe identificar las políticas, prioridades y procedimientos para realizar una planificación
efectiva de uso del suelo, tanto a nivel local, regional y nacional. Tal vez, no pueda tener injerencia en
esos niveles, pero puede promover sus requerimientos, cuando lo crea necesario.
La Dra. María Isabel Hernández Llosas9, plantea diez pasos para la realización de un Plan de
Administración.
En un primer momento, define al lugar patrimonial como un área o sitio específico, tal vez un
área extensa como toda una región o un paisaje, o una pequeña área como una edificación particular,
que es valorada por las personas por su importancia patrimonial en lo natural y/o en lo cultural. Manifiesta, además, que “protegemos el patrimonio porque estrecha los lazos de identidad personal de
grupo, queremos transferirlo y porque representa una obligación legal, social, espiritual o ética”.
A partir de esas definiciones, se propone una serie de interrogantes-pasos para diseñarlo:
a) ¿Cuál es su lugar patrimonial?
b) ¿Quiénes tienen interés en él?
c) ¿Qué es lo que necesitas saber?
d) ¿Por qué este lugar es importante?
e) ¿Cuáles son los problemas?
f) ¿Qué es lo que necesitas lograr?
g) ¿Qué es lo que necesitas hacer?
h) ¿Cuál es el plan?
i) ¡Hazlo!
j) ¡Revísalo!
A partir de lo cual se comienza a ampliar los contenidos pertinentes a cada paso:
Paso 1: ¿Cuál es su lugar patrimonial?
Los lugares patrimoniales son importantes para diferentes personas de distinta manera. Pueden
tener elementos históricos, indígenas o naturales que son significativos y les ayudará a quienes se involucran en el mismo a contar historias acerca de sus tierras y de sus personas.
Describe las características claves y determina si su importancia patrimonial es natural, indígenas y/o histórica.
8
PEARSON, M. SULLIVAN, S. Op. Cit.
9
Citado por la Dra. Hernandez Llosas en el desarrollo de la Asignatura Diseño de Administración. Maestría Patrimonio Cultural
Material. FFyH. FDyCS. UNC
22
A. Aníbal Manavella
Paso 2: ¿Quiénes tienen interés en él?
Permite identificar a quiénes le preocupa el sitio y cuáles son los responsables del lugar. De esta
manera, se asegura que las personas involucradas sean las correctas; ayuda a determinar la importancia del patrimonio y certifica que todos los temas de importancia serán considerados.
En función de lo anteriormente mencionado, deriva una serie de preguntas que son significativas para diseñar el Plan:
•
¿Quiénes tienen conocimiento sobre el sitio?
•
¿Quiénes son los dueños de la tierra y quiénes operan en el lugar?
•
¿Quiénes son los custodios y los cuidadores?
•
¿Quiénes guardan los registros y la información?
•
¿Quiénes serán afectados?
Paso 3: ¿Qué es lo que necesitas saber?
En esta etapa se debe relevar la información básica sobre el sitio a gestionar, demarcando los
límites del mismo y si posee alguna declaración de interés patrimonial. También es importante chequear si todos los aspectos de relevancia patrimonial han sido tenidos en cuenta y cuáles podrían ser
los vacíos en este tipo de información, como así también, tomar notas acerca de toda información
adicional necesaria a tener en cuenta.
Paso 4: ¿Por qué este lugar es importante?
Esta etapa permite entender la relevancia del lugar, su valor patrimonial a través de sus elementos significativos, de manera tal, de poder entender y conocer cuál es su importancia, para poder
protegerlo.
Tras lo cual, se debe redactar una declaración de significancia, que puede ser expresada mediante la exhibición de videos, canciones y/o manifestaciones artísticas.
Paso 5: ¿Cuáles son los problemas que afectan al lugar?
Se entienden los problemas hablando y consultando abiertamente con los actores involucrados
e identificando prioridades.
Deriva los siguientes cuestionamientos:
•
¿Cuál es su condición?
•
¿Cuáles son las leyes que se aplican?
•
¿Cuáles son las amenazas y predisposiciones que lo afectarían?
•
¿Qué recursos están disponibles?
23
PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN
En función de las cuales se podrían puntear los problemas-clave del sitio:
•
Amenazas sobre la significación.
•
Las condiciones del lugar.
•
Arreglos actuales de manejo.
•
Otros problemas clave.
Paso 6: ¿Qué es lo que necesitas lograr?
Lo que se quiere alcanzar, por lo general, está escrito como objetivos, preguntándose:
•
¿Qué resultados se quieren alcanzar?
•
¿Cómo se quiere que el lugar esté conservado en el futuro?
•
¿Qué significado se quiere mantener?
•
¿Cuáles son las prioridades?
Paso 7: ¿Qué es lo que necesitas hacer?
En este paso se propone desarrollar estrategias para mantener lo relevante del sitio —haz tanto
como sea necesario y tan poco como sea posible—, entendiendo que cada lugar es único y que la buena administración consiste en encontrar soluciones creativas y apropiadas, entendiendo que a veces la
mejor solución es no hacer nada.
Plantear estrategias y acciones posibles, deriva de ciertos cuestionamientos a tener en cuenta:
•
¿Cada uno de los objetivos cuenta con una estrategia?
•
¿Fueron cubiertos los aspectos más importantes?
•
¿De qué manera la estrategia protege lo más relevante?
•
¿En qué grado la implementación de determinada estrategia modifica las características del
lugar?
Paso 8: ¿Cuál es el plan?
Las respuestas a los primeros siete pasos dan los componentes claves del Plan de administración. El mismo debe incluir quién o quiénes son los responsables y de qué, cómo y cuándo será monitoreado su progreso o desarrollo y cuándo y cómo el plan deberá ser revisado.
Se debe poner especial atención en que el mayor grado de interesados e intereses estén reflejados en los objetivos, que la estrategia esté reflejada también allí y determinar quién o quiénes serán
los responsables de implementar el plan.
Paso 9: Ejecución del plan
Esta es la etapa en que se pone en marcha el plan, en la cual se deben realizar las acciones sistemáticamente de acuerdo al mismo y registrar su progreso.
Se debe recordar que la administración de un proyecto requiere de un administrador de proyecto y que se debe mantener, a la gente involucrada, informada.
24
A. Aníbal Manavella
Paso 10: Revisión
Todos los planes y proyectos requieren de una sistemática y regular revisión, para ello, el Plan
debe especificar en qué momento realizarla. En el caso de se presenten alteraciones en las características del BIC con respecto al momento en el que se lo diseñó, el plan debe ser modificado.
Registrar los resultados de las revisiones y las circunstancias por las cuales hay que alterarlo,
es necesario.
Este proceso de retroalimentación de los planes de administración o preservación se plantea,
también, en el documento de Pearson y Sullivan y en la Carta de Burra.
Este documento, adoptado por UNESCO en 1999, también plantea un proceso-circuito de diez
pasos para diseñar y llevar a cabo el plan, si bien los define de manera un tanto distinta:
1. Identificación del sitio y asociaciones: asegurar el sitio y protegerlo.
2. Recopilación y registro de la información sobre el sitio suficiente para comprender la significación: documental, oral, física.
3. Evaluar la significación.
4. Preparar una declaración de significación.
5. Identificar las obligaciones que emanan de la significación.
6. Recopilación de información sobre otros factores que afectan el futuro del sitio: necesidades y recursos de propietario/administrador, factores externos, condición física.
7. Desarrollo de la política: identificar opciones, considerar las opciones y verificar su impacto sobre la significación.
8. Preparar la declaración de una política.
9. Administrar el sitio de acuerdo con la política: desarrollo de estrategias, implementación de
estrategias mediante un plan de gestión, relevamiento del sitio antes de realizar cualquier
cambio.
10. Monitoreo y revisión.
A pesar de las sutiles diferencias que se pueden encontrar en los diversos documentos analizados, en casi todos los casos, los elementos principales deben ser incluidos cuando el gestor está
preparando un plan para la administración de un patrimonio cultural. Estas discrepancias reflejan la
realidad de la situación administrativa en la que se encuentran la mayoría de los gestores de lugares
patrimoniales: el proceso de manejo está basado primero y principal en una obligación legal, la cual
puede fomentar o desalentar las acciones de preservación. Generalmente, el trabajo principal del gestor es encontrar el modo de interpretar las restricciones legislativas para hacer posible la conservación
de los valores culturales y naturales del BIC.
Conclusiones
En síntesis, VALOR; PATRIMONIO CULTURAL; GESTION; TURISMO; SUSTENTABILIDAD; SOSTENIBLIDAD, son conceptos sumamente interrelacionados e interdependientes.
25
PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN
El valor del Patrimonio Cultural (PC) viene determinado por su función como representación
de la memoria histórica; siendo, en muchos casos, el Patrimonio Arquitectónico la materialización de
esa memoria. 10
Sin embargo, dentro de esta amplia definición se vislumbran diferentes matices. De este modo,
tanto el pasado histórico como su concreción material tienen distintos valores, entre ellos11:
-El Patrimonio como seña de identidad, como proceso de reconocimiento intergeneracional,
dando sentido a la pertenencia de grupo, de comunidad; reconocida la comunidad en su patrimonio se
presenta a los demás.
-Como fuente de placer; el pasado y los objetos provenientes de aquel, en muchos casos, comportándose como “fetiches” del mundo moderno.
-El Patrimonio como fuente de ingresos económicos, directos o indirectos; ya sea con la venta
de antigüedades y entrada de museos o venta de libros, como así también por la creación de motivos
o campañas de venta fundamentadas en recocidos símbolos del pasado, así, como por su capacidad
por dinamizar, a través de proyectos de puesta en uso de ese Patrimonio, a partir de la creación .de
infraestructuras como de puestos de trabajo.
-El Patrimonio como recurso susceptible de ser científicamente investigado; de tal forma, que
los beneficios que de este se deriven sean los puramente propedeúticos con relación al pasado; es decir, el pasado como algo modélico, examinando nuestro presente bajo el prisma del pasado.
No obstante, tomar el patrimonio como un fin en sí mismo, es erróneo, pues en ese caso, se
corre el riesgo de la pérdida de los valores que lo definen como tal. El mismo debe ser considerado
como un medio, como un recurso, para llegar al conjunto de la sociedad, que al fin y al cabo es su
depositaria.
De igual forma, no se puede hacer referencia al PC, ni a su potencial, en cuanto a su funcionalidad o re-funcionalización se refiere, sin tener en cuenta los Campos Físico-Espacial y Socio-Cultural
en los que éste se encuentra inserto, ya que el valor que los Bienes Culturales adquieran, no será un
valor elegido al azar, sino el compendio de situaciones históricas y sociales reales.
El derecho nos dice que un bien es tal cuando tiene valor y que el valor se mide en la aptitud
que tiene dicho bien para satisfacer alguna necesidad del hombre.
Una primera mirada a un bien patrimonial nos sugiere que estamos ante algo que tiene valor.
Valor, en sentido de valía, es decir de percepción de cualidades estimables en una cosa, por
la utilidad que manifiestan o por su aptitud para satisfacer necesidades o proporcionar bienestar.12No
sólo son sus cualidades físicas objetivas y cuantificables las que prevalecerán –como superficie,
terminaciones, instalaciones, etc.– sino las subjetivas que dependen de la percepción y de la conducta
10
CRIADO BOADO, F. El futuro de la Arqueología, ¿La Arqueología del Futuro?, en Trabajos de Prehistoria, 53, Nº.1, pp. 15- 35.
Madrid. 1996
11
12
BALLART, Josep. El patrimonio histórico y arqueológico: valor y uso. Ariel. Barcelona. 1997
BALLART, Josep. Op. Citada
26
A. Aníbal Manavella
que el hombre desarrolle para con ese bien patrimonial construido –historia, significado, importancia,
etc.– dependerá del marco socio cultural que modele la conducta del individuo y de la comunidad,
la actitud que se tenga frente al objeto, la cual podrá variar entre el valor supremo y lo despreciable.
Los bienes culturales que no tienen escala monumental, e incluso el que lo es, debe ser comparado entre dos o más cosas para establecer su valor, a los fines jurídicos. ¿Con qué se comparan
nuestros bienes culturales para valorarlos? Generalmente con los europeos, arquitectura y urbanismo
cuyo contexto y evolución, aunque tomados históricamente en forma modélica, siempre dejarán nuestra realidad en inferioridad de condiciones al no contar con ejemplos del siglo II d. C., ni catedrales
góticas, ni viviendas del siglo XVIII cuyo barroco no admite discusiones acerca de sus valores históricos, artísticos y arquitectónicos. Apelamos a “falta” de estos valores, a agregarle a nuestros recursos
culturales valores transferidos por la personalidad de aquella persona ilustre que los usó, o habitó,
edificó o construyó, para ser o parecer.13
Un bien cultural histórico patrimonial tiene un valor ante todo referido a sus potencialidades
como recurso para hacer presente el pasado. En sociedades de carácter inestable, la conciencia de
cambio y paridad da lugar al “paradigma preservacionista posmoderno”.14 El pasado, que existe más
allá de toda duda, da tranquilidad y seguridad a las personas, proporciona consuelo, frágil si sólo se
apoya en la memoria humana, pero fortalecido cuando encuentra vestigios materiales que lo respalden. El pasado se erige entonces como una referencia inmune a las mutaciones que impone el presente, en el marco de identidad y la memoria colectiva, en el modelo probado a seguir.
En las últimas décadas del Siglo XX, las naciones han demostrado un interés significativo por
el patrimonio cultural, la preservación del mismo, pero también su desarrollo.
Para ello, han tomado conciencia acerca de los beneficios que puede aportar la actividad turística, y el turismo sostenible ha cobrado importancia para la conservación de los valores patrimoniales
y la relación con su territorio, teniendo en cuenta su valorización, gestión y promoción, de manera tal
de diseñar un plan de gestión de los Bienes de Interés Cultural y Natural, con el objetivo de arribar a
la valorización turística sostenible de dichos bienes.
Persiguiendo este fin, es necesario recordar que para lograr el desarrollo sustentable es imprescindible convocar a todos los actores que tengan ingerencia para diseñar y gestionar el turismo, con el
objetivo de hacer sostenible el Patrimonio Cultural.
Por supuesto, que la legislación y el poder de policía también son necesarios para frenar y/o
impedir el proceso de deterioro que pueden sufrir los bienes y espacios de valor patrimonial, cuyas
intervenciones pudiesen obedecer a intereses individualistas y espurios.
13
NASELLI, César. Ideología de la preservación patrimonial: divagaciones subyacentes a un concepto. Sumarios 123
14
DELLAVEDOVA, D. MARICONDE, M. Posmodernidad y patrimonio: el monumento arquitectónico en Córdoba. Ediciones
Eudecor. Córdoba. 1997
27
PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN
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* Mgtr. Arq. A. Aníbal Manavella
Institución: Centro de Estudios de Historia Urbana Argentina y Latinoamericana (CEHUALA);
Facultad de Arquitectura, Urbanismo y Diseño; Universidad Nacional de Córdoba; Argentina
30
TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA
Alejandro Giménez Rodríguez*
Precisando los términos
Para comenzar es muy importante precisar los términos. Por Turismo podemos entender el
“Fenómeno social que consiste en el desplazamiento voluntario y temporal de individuos fuera de su
lugar de residencia habitual, por un período superior a las 24 horas, generando interacciones con otros
entornos sociales, económicos y culturales” (1).
Por Cultura definimos un “Conjunto de los rasgos distintivos espirituales y materiales, intelectuales y afectivos que caracterizan a una sociedad o a un grupo social. Además de las artes y las letras,
la cultura abarca los modos de vida, las maneras de vivir juntos, los sistemas de valores, las tradiciones
y las creencias” (2).
Como síntesis, por Turismo Cultural entendemos “… las actividades orientadas a conocer,
comprender y disfrutar del conjunto de rasgos y elementos distintivos de un pueblo/ grupo social
concreto” (3).
Procurando establecer las tipologías del Turismo Cultural, este concepto comprende:
•
Asistencia a exposiciones/ eventos/ espectáculos culturales (teatro, cine, festivales de música, museos, centros culturales).
•
Recorridos/ visitas a monumentos y conjuntos patrimoniales/ históricos/ castillos/ iglesias/
conjuntos arquitectónicos.
•
Visitas a yacimientos arqueológicos/ paleontológicos.
•
Conocimiento/ Participación en actividades artísticas y expresiones culturales locales.
•
Asistencia y participación en fiestas locales y nacionales.
•
Visita a complejos industriales (refinerías, destilerías).
Aplicando estas tipologías, el concepto es sumamente abarcativo. Es Turismo Cultural una bienal de artes visuales, citando como ejemplo la que realiza el departamento de Salto (500 quilómetros
al noroeste de Montevideo); un mega-recital, como el que el ex – beatle Paul Mc Cartney realizó en
abril de 2012 en el Estadio Centenario de Montevideo; la asistencia a un museo o a un ciclo literario
compuesto por varias conferencias, sobre todo los que se realizan en la temporada estival en alguno
de nuestros principales centros balnearios.
También la visita a la zona del ex- Frigorífico Anglo de Fray Bentos, a 300 quilómetros al
TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA
noroeste de la capital del país, que contiene el Museo de la Revolución Industrial y las antiguas casas
de los obreros y los jerarcas de la compañía inglesa que explotaba ese emprendimiento, y que ha sido
presentada su candidatura como Patrimonio de la Humanidad ante la UNESCO.
Asimismo, son Turismo Cultural la más de un centenar de fiestas tradicionales que se desarrollan anualmente en todo el territorio nacional, como la Fiesta de la Patria Gaucha, que tiene lugar
en Tacuarembó, 400 quilómetros al noreste de Montevideo; o las de las comunidades de inmigrantes,
como las que se realizan en Nueva Helvecia, una comunidad fundada por suizos a 120 quilómetros de
Montevideo, hacia el oeste. Y también la Fiesta de la Nostalgia, que desde 1978 congrega a miles en
la noche del 24 de agosto, vísperas del feriado por la Declaratoria de la Independencia Nacional, que
se dan cita en reuniones bailables en las que la música es únicamente la de los años 60, 70, 80 y 90.
También son expresiones de Turismo Cultural el único Patrimonio de la Humanidad- nominado
en diciembre de 1995 -que tiene el Uruguay, la ciudad histórica de Colonia del Sacramento, 180 quilómetros al oeste de la capital uruguaya, frente al Río de la Plata y a Buenos Aires, capital argentina.
En lo que se refiere a manifestaciones intangibles, los ritmos del Tango y el Candombe son
Patrimonio Inmaterial de la Humanidad desde setiembre de 2009, presentada la postulación de ambas
por Montevideo, y en el primer caso junto a Buenos Aires, constituyendo ambas (o intentando serlo)
productos turístico culturales que hacen a nuestra identidad y que son atracción para quienes visitan
nuestras tierras (4).
Zona de conflictos y encuentros
Cuando a menudo encontramos un grupo de turistas en la puerta de un museo gestionado por
el Ministerio de Educación y Cultura cerrado en la Ciudad Vieja de Montevideo, pese a que los folletos editados por el Ministerio de Turismo y Deporte dicen que ese día y a esa hora debe estar abierto,
entramos en una zona de conflicto.
La autoridad que dispone el horario de apertura del museo no coincide con la que dispone la
publicación del folleto, y hasta dependen de distintos ministerios. El gestor del museo dirá que no
tiene recursos humanos para abrirlo al público la mayor cantidad de días y horas como para que el
visitante uruguayo y extranjero pueda recorrerlo.
Al mismo tiempo quién brinda la información a través del folleto argumentará en su favor, ante
la queja del turista, que los datos que allí aparecen son los brindados por la autoridad bajo la que esta
el museo, deslindando responsabilidades por esa causa.
Otra situación se produce en uno de los puntos turísticos más importantes del país y referencia
mundial del Uruguay en el mundo: Punta del Este. En la Isla Gorriti, ubicada frente a nuestro principal
balneario, pueden verse restos de cuatro baterías defensivas que datan de fines del siglo XVIII.
Si bien hace unos años un equipo de arqueólogos de la Facultad de Humanidades y Ciencias de
la Educación realizó un trabajo exhaustivo en el lugar, esos vestigios, cuya salvaguarda depende de
la Intendencia de Maldonado, están en un vertiginoso estado de deterioro, pese a que en los veranos
32
Alejandro Giménez Rodríguez
funciona en la isla un emprendimiento gastronómico. Todos los años los informativos de televisión
realizan un informe realzando las bondades de la zona, y en la mayoría de las ocasiones ni mencionan
lo que podría ser un excelente producto de turismo histórico, como son las fortificaciones..
Estos dos ejemplos de conflictos y desencuentros entre turismo y cultura no son los únicos.
A menudo ambas áreas parecen estar en permanente desavenencia. Desde el turismo suele verse el
producto cultural como de segunda mano y elitista. Desde la cultura la visión del producto turístico
tradicional es la de una expresión frívola y “light” alejada de los ámbitos académicos.
En los últimos años, sobre todo a partir de la llegada en marzo de 2005 de las fuerzas de
izquierda al gobierno uruguayo, han sido diversos y encomiables los intentos de articulación entre
Turismo y Cultura, intentando superar las diferencias y buscando hacer confluir dos caminos que parecían estar muy alejados.
En ese sentido, el autor de esta ponencia puede relatar la experiencia desde ambos lados del
mostrador, ya que ocupó entre 2005 y 2010 el cargo de Coordinador de Museos del Ministerio de
Educación y Cultura, y desde 2010 a la fecha se desempeña como Asesor Cultural en el Ministerio de
Turismo y Deporte.
La primera experiencia que merece destacarse es la de 2009, año que tuvo como consigna de
ICOM (Consejo Internacional de Museos) la de “Museos y Turismo”. El 21 de mayo de ese año-en el
marco del Día de los Museos -pudimos reunir a gestores de museos y operadores turísticos públicos y
privados en torno a una misma mesa y hacer un diagnóstico de la situación.
Aquel taller que llamamos “Museos uruguayos. Una mirada desde el Turismo”, tuvo una serie
de opiniones muy interesantes de ambos lados, y conclusiones que resumimos (5):
•
Los museos uruguayos no tienen una estrategia de cara al turismo, debido a la falta de
recursos humanos y económicos, más allá de acciones puntuales, como el trabajo que algunos realizan en la atención de visitantes arribados en cruceros, si bien se reconoce los
problemas que hay para que los museos de gestión pública abran en esas ocasiones.
•
Se valora la importancia de elaborar un plan estratégico, como el diseñado por Osvaldo
Lombardi en Argentina, apostando a “abrir cabezas” que en muchos casos están cerradas.
Elaborar proyectos, aplicarlos y evaluar su retorno. Ir hacia la sponsorización y tomar real
conciencia de país turístico, para lo que es fundamental la permanencia del turista, evitando
que los museos cierren los fines de semana.
•
Hay que consolidar una verdadera gestión turística a nivel cultural.
Si bien aquella actividad puntual no tuvo una continuidad, los lazos quedaron extendidos para
seguir conversando el tema y apuntar a la búsqueda de puntos de coincidencia entre ambas áreas.
Dos años después, organizado por el Museo de la Casa de Gobierno de Presidencia de la República y el Ministerio de Turismo y Deporte, el 6º Encuentro Nacional de Profesionales de Museos
33
TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA
tuvo como temática “Museos y Turismo, una necesaria alianza estratégica”.
El viejo edificio “Gral. José Artigas”, antigua sede del Poder Ejecutivo, frente a la Plaza Independencia, tuvo nada menos que 120 asistentes a esta jornada, desarrollada el 8 de junio de 2011,
lo que mostró la avidez por discutir y reflexionar sobre estos temas. En la oportunidad se contó con
ponentes de Montevideo y el Interior, conviviendo gestores culturales y turísticos públicos y privados,
contando también con la presencia de Osvaldo Lombardi, ex director de Turismo de la ciudad de Buenos Aires y en ese momento asesor turístico del Museo Isaac Fernández Blanco de esa urbe.
Las conclusiones fueron en esta ocasión mucho más concretas, denotando en la oportunidad un
mayor nivel de claridad en los conceptos (6):
•
Se valora como muy importante la articulación de los agentes culturales con las cámaras
empresariales y los operadores turísticos.
•
El producto turístico cultural debe contener patrimonio, actividades, infraestructura y servicios.
•
A los efectos de tener mediciones, se sugiere la creación de un observatorio de turismo
cultural.
•
El producto turístico cultural puede ser un elemento que estimule el desarrollo local.
•
Debe verse el Museo desde el lugar turístico, como una alianza para llevar al turista hacia
lo que le interesa ver.
•
Se debe tender a crear una red e intercambio de experiencias y realidades entre ambos
sectores.
•
Debe procurarse por medio de la relación del turismo y los museos vencer la estacionalidad, impulsar la descentralización permanente y aumentar la capacidad de gestión.
•
Diversificar, especializar, y crear nuevas ofertas.
•
Generar corredores y circuitos turísticos (históricos, artísticos, literarios, gastronómicos,
etc.).
•
Los museos son importantes en la cadena de valor turístico.
•
Los profesionales del turismo y los museos deben generar espacios comunes y explorar
oportunidades, sin perder de vista que no todos los museos son turísticos.
•
Creación de un Fondo Nacional para proyectos turístico-culturales.
•
Ir hacia una coordinación permanente que permita llevar adelante proyectos autosustentables que revolucionen la oferta turística.
34
Alejandro Giménez Rodríguez
Algunas articulaciones que veremos a continuación demuestran que estos pasos no han sido en
vano, pese a la dificultad de generar institucionalidad en este tema.
Es muy resaltable la tarea que está cumpliendo el Conglomerado de Turismo de Montevideo
(Asociación Turística de Montevideo). Un Conglomerado es un conjunto de empresas que comparten
un territorio y una cadena de valor, o cadenas conexas. Las empresas no compiten solas, lo hacen formando parte de una cadena en la que intervienen otros actores esto lleva a que parte de su capacidad
de competir dependa de su habilidad para articular y cooperar.
Trabaja desde octubre de 2008 en la articulación de la cadena de valor turística de Montevideo,
como forma de mejorar la competitividad de las empresas y del Destino Montevideo en su conjunto.
También reforzar la comunicación interna entre el Conglomerado y sus socios y fortalecer la comunicación e imagen externa del destino Descubrí Montevideo. El intercambio de información y las
relaciones entre las empresas generan un entorno más propicio para la innovación, ayuda a identificar
soluciones y a trasmitir el conocimiento (6).
¿Cómo se relaciona la Cultura con el Conglomerado de Turismo?
•
La MOCE (Mesa de Oferta Cultural y Entretenimiento) es un sector integrante del Conglomerado, junto a otros como Hoteles, Restaurantes, Agencias de viaje, etc.), en una articulación horizontal (público-privado; público-público; privado-privado).
•
Integran la MOCE distintos subsectores: Museos y Salas de Exposiciones, Teatros, Bodegas, Diseño, Audiovisual, Salas de Espectáculos, Productores Teatrales, Música, Deporte,
Juego, Carnaval, Guías de Turismo, Turismo Idiomático, Club de Tango, Turismo Familiar,
Turismo Comunitario, Friendly Montevideo y Montevideo Oeste).
•
Objetivos- Promover la generación de productos turísticos, que permitan transformar a
Montevideo en un destino turístico basado en una oferta cultural diversificada.
Quizás el producto más importante salido de la MOCE en 2011 fue la Guía de Museos de Montevideo, un catálogo de fichas de 30 museos, con los datos más requeridos por el turista (historia de
la institución, horarios, temática) con una ficha por museo y un plano de ubicación por zonas, como
para el armado de circuitos por parte del turista.
Otras instancias de articulación entre Turismo y Cultura, a nivel institucional:
•
Tecnicatura Universitaria en Museología- Planteada por ICOM – Uruguay en el 2000, después de estar más de un lustro guardado el proyecto en un cajón, la iniciativa fue reflotada
en 2006, y por fin instrumentada por la Universidad de la República (Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación) en setiembre de 2011, financiada por los ministerios de
35
TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA
Turismo y Deporte (Minturd), de Educación y Cultura (MEC); y la Intendencia de Montevideo. En su primera generación superó los 700 estudiantes anotados, mostrándose la
necesidad que existía por contar con ese tipo de carrera terciaria.
•
Guía y seminario de Fiestas Tradicionales – Por un Convenio entre MEC, Minturd, y la
Oficina de Planeamiento y Presupuesto (OPP) (7), se llevaron a cabo acciones tales como
la realización del primer Seminario de Fiestas Tradicionales en mayo de 2011, con la presencia de más de 100 organizadores de ese tipo de eventos en todo el país, y la publicación
de un Guía de Fiestas Uruguayas, de próxima aparición.
•
Museos en la Noche – Organizado por el MEC y auspiciado por el Minturd, este evento
se realiza desde 2005 el segundo viernes de diciembre, y en el mismo casi un centenar de
museos en todo el país abren sus puertas en horas de la noche, brindando espectáculos artísticos y propuestas académicas.
En la muy necesaria búsqueda de sinergias, sin bien aún persisten focos de resistencia de
ambos lados que obstaculizan estas alianzas, también es cierto que de ambos sectores hay señales
inequívocas del nacimiento de una conciencia de que la sobrevivencia de propuestas rentables a nivel
cultural, ante el claro repliegue de los presupuestos públicos.
En conclusión:
¿ Por qué el Turismo debe apostar a la Cultura ?
Para vencer la estacionalidad.
Para generar un producto identitario.
Para diversificar la oferta.
¿ Por qué la Cultura debe apostar al Turismo ?
Para lograr la autosustentabilidad.
Para integrar la agenda turística.
Para obtener mayor difusión nacional e internacional.
“El Turismo puede captar los aspectos económicos del Patrimonio y aprovecharlos para su
conservación generando fondos, educando a la comunidad e influyendo en su política. Es un factor
esencial para muchas economías nacionales y regionales y puede ser un importante factor de desarrollo cuando se gestiona adecuadamente” (8).
36
Alejandro Giménez Rodríguez
Un ejemplo de Turismo Cultural: visita histórico-turística “De Cubo a Cubo”
Antecedentes
Se trata de una visita guiada histórica – patrimonial - turística por restos de fortificaciones de
Montevideo Colonial, que se inició en 2004 con 20-30 personas, y se transformó en un éxito de más
de 200, entre sábado y domingo en el Día del Patrimonio 2011 y 2012.
En 2010 la propuesta incorporó actores y candombe a la propuesta y hasta se hizo el recorrido en las ediciones 2010, 2011 y 2012 de Museos en la Noche. Al mismo tiempo el espacio cultural
“Al pie de la Muralla, organizador de este recorrido, logró la apertura de nuevos sitios con restos de
muralla, como el Predio del Banco de Seguros, hoy convertido en centro cultural “Muralla Abierta”
(Museo de las Migraciones), y el del Consejo Educación Secundaria).
Entre los objetivos de esta actividad, está el de transformar esta visita guiada en un producto
turístico, sin perder el rigor histórico pero buscando la autosustentabilidad y la generación de ingresos,
explotando la fascinación que produce el tema. Busca redescubrir la ciudad, resignificar la mirada
(hacer visible lo cotidiano) y agudizar los sentidos.
Si queremos ir hacia la creación de propuestas culturales que constituyan productos turísticos,
es importante precisar algunos términos. En primer lugar, ¿que entendemos por producto y por producto turístico?
“Producto es cualquier cosa que se puede ofrecer a un mercado para la atención, adquisición,
el uso o el consumo para satisfacer a un deseo o una necesidad (…); cada componente o combinación
de componentes del destino (turístico) (en cuanto a Producto Turístico Global) pueden concebirse
como un Producto Turístico Específico en sí mismo. Este Producto Turístico incluye objetos físicos,
servicios, sitios, organización e ideas” (9).
Otro concepto de producto turístico se lo debemos al investigador argentino Gustavo Capecce,
que dice que producto turístico “es una combinación de prestaciones e infraestructuras que los turistas
consumen en pos del logro de algún beneficio, …”. Pero …“Para que existan productos, como primera medida necesitamos recursos. Pero para que los mismos se transformen en ofertas, junto con ellas
resulta imprescindible que se visualicen sus atributos, existan la voluntad y capacidad de aprovecharlos, y además se detecte la voluntad y capacidad de consumirlos” (10).
37
TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA
Este producto turístico se compone de 12 estaciones:
1) Las Bóvedas.
2) Cubo del Norte (reconstrucción simbólica
3) Muralla entre el Baluarte de San Pascual y el Cubo del Norte y Contraescarpa del Baluarte de San
Pascual (Predio “Muralla Abierta”).
4) Espacio Cultural “Al pie de la Muralla”
5) Portón de San Pedro (cruce de calles 25 de Mayo y Bartolomé Mitre)
6) Baluarte de San Luis (Local de ex empresa Lancer y Consejo de Educación Secundaria).
7) Puerta de la Ciudadela.
8) Baluarte de San Sebastián (Bartolomé Mitre y Buenos Aires)
9) Contraescarpa del Parque de Artillería (Reconquista y Juan Carlos Gómez).
10) Parque de Artillería (Plaza España).
11) Portón de San Juan (Plaza España).
38
Alejandro Giménez Rodríguez
12) Cubo del Sur (Rambla Sur).
Analizamos las potencialidades y problemas del producto histórico - turístico :
Fortalezas:
1. Se trata de un recorrido guiado que se realiza desde hace ocho años, que ha sido planificado
cuidadosamente y estudiado académicamente.
2. El interés que ha despertado en un grupo de gente que multiplica día a día la acción de “Al
pie de la Muralla” en pos de la defensa y difusión de los restos de fortificaciones.
3. La fascinación que motiva un tema que si bien tiene mucho que ver con nuestro pasado
colonial, no fue estudiado en profundidad y no ha sido objeto de explotación turística.
Debilidades:
1. La extensión del recorrido (ha durado hasta dos horas y media) lo que atenta contra la creación de un producto para turistas de poco tiempo en el destino.
2. La dificultad del cobro, sobre todo porque se ha mostrado como un recorrido en el que el
público a menudo es cambiante.
3. Es una visita guiada al aire libre, por lo que está sujeta a las condiciones climáticas.
Oportunidades:
1. El momento que vive Montevideo como destino de primer nivel en la región y uno de los
principales puertos cruceristas (119 desembarcos en temporada 2011-2012; 154.976 turistas desembarcados, con un gasto total de U$S 9.834.529) (11).
2. El auge en el mundo de los llamados “walkings tours” , del turismo de ciudad y de las rutas
y circuitos patrimoniales.
3. Un Ministerio de Turismo que apoya la creación de nuevas ofertas turísticas, buscando
vencer la estacionalidad (2.960.000 turistas en Uruguay en 2011: 58% argentinos, 15%
brasileños y 1,5 % paraguayos) (12).
4. La aparición de otras iniciativas de rescate y resignificación de restos de fortificaciones, lo
que facilitaría la creación del circuito temático.
Amenazas:
1. La inseguridad de algunas zonas de la Ciudad Vieja de Montevideo, que puede desestimu39
TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA
lar la presencia de eventuales consumidores del producto.
2. La falta de limpieza de algunas de las calles que se atraviesa el recorrido.
3. La escasa experiencia de los gestores culturales uruguayos en lo que se refiere a la explotación de productos turísticos.
Entre las acciones para consolidar el producto se destacan:
•
La asistencia a seminarios académicos y ferias de turismo en Uruguay y el exterior.
•
Buscar la presencia del mismo en prensa escrita, radial, televisiva y electrónica, así como
en las redes sociales.
•
Procurar la coordinación con actores públicos, buscando el posicionamiento y la comercialización del producto, mediante visitas de sensibilización.
•
Coordinación con un producto gastronómico mediante descuentos en el almuerzo en un
restaurant ubicado en el recorrido para quienes hayan realizado ese día la visita.
•
Facilitar la accesibilidad a través de vehículos eléctricos (segways) y lenguaje de señas
para sordomudos.
•
Articulación con Policía Turística, siempre presente en las visitas, y con el Municipio “B”
(en el cual se realiza el recorrido), para mantener la limpieza en las calles y espacios públicos a ser transitados.
•
El circuito “Montevideo fortificada” está por primera vez en el folleto publicado por el
Ministerio de Turismo y Deporte que se entrega a los turistas que llegan a Montevideo en
cruceros
Algunas reflexiones finales:
•
Tenemos el convencimiento de que este es el momento para generar un producto turístico
con este recurso que es la muralla de Montevideo, en el momento en que se consolida la
acción del Conglomerado de Turismo de la capital del país.
•
Las dudas pasan acerca de cómo consolidar ese producto, cual es la mejor forma de comercializarlo y de qué manera captar al cliente.
•
Parece claro que se debe afirmar un recorrido de menor duración, con participación artística, propuesta gastronómica, menos detalles técnicos constructivos, y un relato que profundice en las características de la Montevideo amurallada, su vida y costumbres.
•
Debe irse hacia la creación de dos opciones de ruta: Una guiada y otra para que el turista
40
Alejandro Giménez Rodríguez
realice libremente, apoyado por señalética y folletería realizada por el Minturd y la Intendencia de Montevideo.
Para terminar, una frase que intenta ser una conclusión:
“Los nuevos productos turísticos relacionados con la oferta cultural deben generar una experiencia en el visitante; para ello la autenticidad, la estética y la sustentabilidad pasan a ser valores
insoslayables del objeto y su entorno”. (13)
Osvaldo Lombardi (Coordinador de Turismo Cultural del Museo Isaac Fernández Blanco de
Buenos Aires)
41
TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA
Citas Bibliográficas
1. Plan Nacional de Turismo Sostenible, Minturd - BID, basado en: De la Torre Padilla, FCE, 1980).
2. Declaración Universal sobre la Diversidad Cultural, UNESCO, 2001.
3. Definición del BID (Banco Interamericano de Desarrollo).
4. Resolución del Comité Intergubernamental de la Organización de las Nacionales Unidas para la
Educación, Ciencia y la Cultura (Unesco), en reunión en Abu Dhabi, 30 de setiembre de 2009.
5. Conclusiones de Jornada Taller “Museos uruguayos. Una mirada desde el Turismo”, 21 de mayo de
2009, Ministerio de Educación y Cultura y Ministerio de Turismo y Deporte.
6. Declaración final de 6º Encuentro Nacional de Profesionales de Museos, “Museos y Turismo, una
necesaria alianza estratégica”, 8 de junio de 2011, Museo de la Casa de Gobierno (Presidencia de la
República) y Ministerio de Turismo y Deporte.
7. www.descubrimontevideo.uy
8. Carta Internacional sobre Turismo Cultural, ICOMOS, 1999.
9. “Manual de Productos Turísticos”. Programa de Mejora de la Competitividad de los Destinos Turísticos Estratégicos, Minturd BID, Montevideo, 2011.
10. “Turismo, la esencia del negocio”, Cencage Learning, Buenos Aires, 2008).
11. www.turismo.gub.uy/ estadisticas
12. www.turismo.gub.uy/ estadísticas
13. Documento “Mi visión”, Declaración final de 6º Encuentro Nacional de Profesionales de Museos,
“Museos y Turismo, una necesaria alianza estratégica”, 8 de junio de 2011, Museo de la Casa de
Gobierno (Presidencia de la República) y Ministerio de Turismo y Deporte.
* Prof. Alejandro Giménez Rodríguez (Ministerio Turismo y Deporte – Uruguay)
42
2. EDUCAÇÃO AMBIENTAL
JORNADAS MERCOSUL
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DISCURSOS MIDIÁTICOS: MODOS DE SER SUJEITO NA
CONTEMPORANEIDADE1
Paula Corrêa Henning*
Introdução
O aquecimento global, o derretimento das geleiras, as toneladas de lixo produzidas por nós
viraram moedas fortes e recorrentemente tratadas no interior da mídia. Ao percebermos na atualidade
a crise ambiental que Guattari (1990) nos anunciava, podemos entender um dos porquês do discurso
ambiental estar cada vez mais presente em nossas vidas. Não há dúvida que do início da década de 90
para cá começamos a sentir uma forte preocupação com o futuro do nosso planeta tanto por empresas
governamentais e não-governamentais, como por parte da sociedade de uma forma geral. Com isso, a
educação ambiental tomou força e vem se constituindo num campo de visibilidades diante da preocupante devastação do meio ambiente. Um dos espaços em que estes discursos circulam recorrentemente
é a mídia, produzindo verdades e saberes acerca da crise vivida no século XXI.
Podemos dizer que este espaço configura-se como uma importante Pedagogia Cultural
(STEINBERG, 1997; STEINBERG e KINCHELOE, 2001) que vem ensinando nossos alunos a pensar sobre o meio ambiente, a natureza, o homem e a cultura em que estamos inseridos. Discursos
midiáticos têm indicado maneiras de se comportar no meio ambiente, de experienciar a natureza, de
consumir produtos, de desejar modos de vida e, com isso, vão gerenciando o cotidiano dos sujeitos nos
tempos atuais. Frente a isso, é correto dizer que a mídia é um importante espaço de circulação e criação de novas aprendizagens. Nela não vimos apenas se exibir determinados gestos, informar notícias,
mas se produzir formas de vida, constituindo o que é certo, legítimo e verdadeiro na experimentação
do mundo, da natureza, do meio ambiente, da vida. Assim, é possível afirmar que ela – a mídia – é um
outro lugar, além da escola, em que se ensinam e se fabricam aprendizagens.
Com este aporte teórico, gostaríamos de pensar acerca da produtividade de alguns discursos
midiáticos, capturando-nos para agirmos frente aos problemas sócio-ambientais. Nossa intenção é
provocar o pensamento para uma ecosofia mental, procurando “antídotos para a uniformalização midiática e telemática” (GUATTARI, 1990, p.16). O presente estudo tem como objetivo analisar como a
mídia ensina sobre Educação Ambiental, especialmente a partir de propagandas, filmes de animação,
histórias em quadrinhos e revistas de ampla circulação nacional.
Meio Ambiente e Natureza nos estratos midiáticos
A pesquisa ora apresentada se dá na interlocução potente entre o campo de saber da Educação
Ambiental e os estudos da mídia como artefato cultural que vem ensinando e produzindo formas de
existir e conviver no mundo contemporâneo. Para isso, colocamos sob exame alguns discursos que se
1
Pesquisa financiada pelo Programa Observatório da Educação/CAPES e Ciências Humanas/CNPq Brasil
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DISCURSOS MIDIÁTICOS: MODOS DE SER SUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE
proliferam na Educação Ambiental. Direcionamos nosso olhar sobre algumas propagandas, de maneira especial, veiculadas no rádio, na televisão e na internet; sobre histórias em quadrinhos; sobre filmes
de animação e sobre reportagens da Revista Veja que tratam especialmente do campo da Educação
Ambiental. Pretendemos provocar o pensamento sobre tais discursos, entendendo-os atrelados as relações de saber-poder, no intuito de “preservar o meio ambiente”.
De acordo com Fischer (1997), pode-se falar em um Dispositivo Pedagógico da Mídia, que
se caracteriza como uma lógica produtora de sujeitos e sentidos, selecionando os discursos que terão
visibilidade. Essa visibilidade, a princípio, reflete o mundo em que vivemos, e constitui o real. A verdade, assim, aparece como relação de poder e evidencia quem tem a primazia de elegê-la. E também
de enunciá-la. Gomes ressalta que “enquanto mostram, as mídias disciplinam pela maneira de mostrar, enquanto mostram elas controlam pelo próprio mostrar” (2003, p. 77). Dessa maneira, os modos
de vida que são sugeridos pelo discurso midiático atravessam os receptores, e ajudam a construir – e
manter – o que Foucault chama de “corpos dóceis” (2002). Nesse sentido, as notícias não deixam de
integrar um sistema, um funcionamento, um tipo de estratégia – a disciplinar. Por outro lado, ao escolher dar visibilidade a determinados fatos e não a outros, elas controlam. A mídia, então, pode ser
vista como um processo de adestramento do sujeito, de acordo com os ideais da massa, de maneira
permanente e contínua. É este, como diz Hara (2007), o primado da comunicação: minuto a minuto
ela molda nossa subjetividade com os ideais da massa ao nos convidar a participar, ao nos persuadir a
jogar. Vemos isso nos excertos das propagandas abaixo:
O Nosso Planeta está ficando: cada vez mais poluído; cada vez mais quente. Mas
com atitudes muito simples você pode ajudar a preservar o Meio Ambiente. Por
exemplo: economizando energia; evitando o desperdício de água; separando o
lixo e o óleo de cozinha usado para reciclagem; reduzindo o uso de veículos
– dê carona para seus amigos! Não atirando fogo em matas e nos quintais ou
fazendo suas compras no Modelo. Sim! Por que o Modelo apresenta a primeira
sacola biodegradável de Mato-Grosso. Ela se decompõe com facilidade na natureza.
Uma questão de atitude! Juntos podemos fazer mais pelo nosso planeta. (Propaganda
Super-mercados Modelo, 2009) [grifos nossos]
Consumo Consciente. Escolha hoje o mundo de amanhã. Cada brasileiro joga fora
cerca de 880 sacolas plásticas por ano. Vamos juntos preservar o meio ambiente para
cada um viver melhor. Use sacolas retornáveis. (Propaganda em banners da rede de
supermercados Nacional, 2010) [grifo nosso]
Frente a isto, entendendo o quanto a mídia constitui modos de vida, olhamos para alguns discursos que ela produz e colocamo-nos a pensar sobre a fabricação de verdades no campo da Educação
Ambiental. É por entender a mídia como ferramenta potente na constituição das subjetividades que
olhamos para ela e a colocamos em exame.
Para realização desse estudo pautamos nossa pesquisa no importante estudo realizado por Michel Foucault (2002a; 2004) ao longo de sua obra: a análise do discurso. Operando com alguns dos
enunciados que circulam na atualidade sobre a Educação Ambiental, buscamos problematizar os ditos, examinando suas recorrências e descontinuidades. Nessa pesquisa não procuramos categorias
previamente definidas. A partir do campo teórico colocamos luz e contorno à pesquisa agrupando as
recorrências e as séries discursivas e também os acasos que rompem com as séries discursivas.
Nesse sentido, não nos movimentamos numa vertente teórica que assume uma concepção inata
46
Paula Corrêa Henning
para Educação Ambiental, mas entendemos que essas concepções são fabricadas e produzidas pela
contingência da história. Essa história vem sendo produzida pelos saberes, pelos sujeitos e, consequentemente, pelos enunciados do discurso da Educação Ambiental. Assim, percebemos que é de
fundamental importância entender que contingência é essa e quais enunciados vêm sendo narrados
nesse campo de saber, tendo como recorte as enunciações que circulam nas mídias.
Como recorte empírico foram selecionados alguns estratos midiáticos que circulam/circularam
especialmente a partir da última década (2000- 2012), já que há uma proliferação potente da crise ambiental que vivemos. Com isso selecionamos trinta propagandas veiculadas no rádio, na televisão e na
internet; trinta histórias em quadrinhos da Editora Abril; Editora Globo; quatro filmes de animação da
Walt Disney (Madagascar, 2005; Madagascar 2, 2008; Os Sem Floresta, 2006 e Wall.e, 2008) e vinte
reportagens de capa da Revista Veja.
A escolha desse material empírico não é sem razão. É por entendermos que tais artefatos pedagógicos e midiáticos são de ampla penetração na vida dos sujeitos contemporâneos, crianças, jovens
e adultos que os escolhemos para colocá-los em exame. Pensando na crise ambiental vivida por cada
um de nós, parece-nos necessário colocar luz nesses ditos e examinar os efeitos éticos e políticos que
vem sendo desdobrados de discursos tão caros no cenário ambiental do século XXI.
Com os materiais empíricos da investigação já é possível identificar três enunciados recorrentemente tratados no interior do discurso midiático de Educação Ambiental: 1- o terror e o medo pela
perda do planeta; 2- uma necessária conscientização ambiental e 3- a beleza de uma natureza intocada.
Neste momento, a pesquisa vem adensando as análises a partir desses três enunciados recorrentes nos
materiais analíticos. Para este texto, apresentamos algumas análises sucintas do primeiro enunciado
encontrado.
Queremos deixar claro que analisar alguns discursos produzidos pelas mídias sobre Educação
Ambiental não se vincula a criticar ou defender posição a respeito de tais anúncios midiáticos. Vincula-se, isso sim, a provocar o pensamento e pensar a Educação Ambiental para além da impregnação
naturalista e romântica do “contato com a natureza” ou para além da “imagem de uma pequena minoria de amantes da natureza ou de especialistas diplomados” (GUATTARI, 1990, p.36). Aceitando
o convite de Carvalho, perguntamo-nos: “quais expectativas e valores sócio-históricos estão contidos
nessa construção sobre a natureza? Afinal, essa não e a única maneira de pensá-la, embora tenhamos
de reconhecer que tal representação está fortemente inscrita em nosso ideário ambiental” (2008, p.35).
Para nós, tal campo vincula-se também a estratégias de disciplina, segurança e controle da sociedade,
eventualmente úteis e justificadas, já que os discursos de Educação Ambiental estão preocupados com
o futuro de nosso planeta.
Dessa forma os discursos “educam” para o controle minucioso da ação individual pela “autoconsciência” e, assim, tendem a regular o cotidiano, sob a ambivalente política da prevenção e do
medo. O endereçamento de tais ditos não se veicula apenas para um sujeito, mas para o coletivo que
deve, junto, se mobilizar para que ações individuais repercutam na transformação do meio ambiente. O campo de efetivação desse dispositivo intervém sobre a coletividade valendo-se do espírito da
época, o compromisso com a suposta “liberdade” de vontade e de estilo de “cada um”. Assim, precisa-se estar constantemente prevendo, calculando, antecipando, medindo, colocando em operação os
47
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DISCURSOS MIDIÁTICOS: MODOS DE SER SUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE
dispositivos que visam assegurar estrategicamente o bem-estar dessa massa de indivíduos, e para isso
se conta com o engajamento de cada um. Mas não mais apenas o engajamento racional ou militante,
e sim o engajamento individual sustentados pela aura de periculosidade e risco que as mídias ajudam
a propagar.
A natureza está agora cobrando a conta pelos excessos cometidos na atividade
industrial, na ocupação humana dos últimos redutos selvagem e na interferência do
homem na reprodução e no crescimento dos animais que domesticou. (2001, p. 93)
[grifos nossos]
Para onde vamos com nossas agressões ao Planeta? O pessimismo da resposta varia,
mas há um consenso: a hora de agir é já. (2005, p. 84) [grifos nossos]
Novas pesquisas científicas dissiparam a mínima dúvida de que o aumento repentino da
temperatura planetária se deve à ação humana, com escassa contribuição de qualquer
outra influência da natureza. Até os ecocéticos aceitam agora a idéia assustadora de
que o tempo disponível para evitar a catástrofe global está perigosamente curto.
(2006, p.139) [grifos nossos]
A realidade do aquecimento global criou uma preocupação com o ambiente como
nunca se viu: todo mundo quer fazer a sua parte para salvar o planeta (Veja,
outubro de 2007, p. 87) [grifos nossos].
Na atualidade podemos dizer que os medos e pavores da vida urbana vêm tomando força e se
constituindo cada vez mais rápido. Um desses medos parece ser aquele que envolve as questões planetárias da continuidade da vida humana na Terra. Diante de tanta devastação ambiental, aquecimento
global, toneladas de lixo produzidos por nós a cada dia, e tantos outros exemplos que poderíamos
citar, percebemos que a preocupação com o meio ambiente tornou-se questão central neste tempo que
vivemos. Nesse sentido, não é a toa que vemos eclodir essa preocupação nas escolas, em Organizações
Não-Governamentais, nas Redes de Supermercados, nos Bancos e, com toda potência, na mídia de
forma geral.
Os excertos acima evidenciam o quanto a mídia fabrica verdades e sentidos acerca da crise
ambiental que vivemos. Para isso é necessário a chamada persuasiva a cada um e a todos, na busca
pela salvação do planeta. Tais estratos dão condições de possibilidade para que o enunciado do terror
e medo pela perda do planeta seja colocado em evidência na atualidade.
Isso também é recorrentemente tratado no filme de animação Wall.e (2008), anunciando aos
seus espectadores o que poderá ocorrer em nosso Planeta, caso não tenhamos cautela com os recursos
naturais e com a forma de vida que vimos experimentando junto à natureza.
Na trama, o mundo foi soterrado pelo lixo produzido e gerado pelo consumo exacerbado da humanidade. Sem alternativas, a empresa BNL, a única empresa do mundo, cria uma estação no espaço
denominada de Axiom, na qual os humanos poderiam viver por um período de cinco anos, enquanto
a limpeza da Terra fosse realizada e o mundo se tornasse novamente habitável. Máquinas identificadas como Wall.e (Levantadores de Carga para Alocação de Lixo - Classe “Terra”) não suportaram as
condições precárias em que se encontrava o Planeta Terra e acabaram deixando de funcionar. Apenas,
um único exemplar de Wall.e, permaneceu e continuou funcionando. Durante 700 anos ele trabalha
sozinho, cumprindo a tarefa que foi programado para fazer. Num dia como tantos outros, chega dos
céus uma nave e Wall.e recebe a visita de EVA (Examinadora de Vegetação Alienígena), uma nova
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Paula Corrêa Henning
espécie de robô, enviada ao Planeta para cumprir uma rápida missão de procurar exemplares de vegetais vivos, o que significaria que a vida se tornou sustentável novamente. A felicidade da personagem,
porém, dura pouco e, quando EVA é chamada de volta à estação espacial Axiom, Wall.e agarra a nave
que a transporta para segui-la. A planta, quando colocada no holo-detector, faz a nave localizar e ir a
Terra. Mas os bots Auto, Geomis e robôs comissários da Axion, negam o procedimento de retorno a
Terra por causa de uma diretriz recebida há quase 700 anos antes, enviada pelo presidente da BNL.
Então, durante as aventuras ao longo do filme, inicia-se uma aventura de retorno a Terra.
O que o filme evidencia é que em alguns anos podemos estar experimentando a vida de outras
formas e em outros locais devido as nossas ações atuais com a natureza e o Planeta Terra. Nesse sentido, a potência dos enunciados que se apresentam nos filmes não está na veracidade ou não desses
fatos, mas nos efeitos que o discurso da devastação ambiental produz, fazendo com nossas atitudes
sejam revistas e redefinadas a favor do Planeta. “[...] o principal não é o medo do perigo, mas aquilo no qual esse medo pode se desdobrar, o que ele se torna” (BAUMAN, 2007, p.15). Os discursos
midiáticos vão fabricando modos ecológicos de vida, nos persuadindo a jogar o jogo da preservação
do planeta e da espécie humana. O que queremos colocar em evidência são os discursos de periculosidade e medo que muitas vezes a mídia ajuda a propagar, fazendo-nos crer que, caso não mudemos
nossas atitudes com o meio ambiente, dificilmente teremos este mundo para viver ou pelo menos para
viver dignamente...
Não queremos com isso dizer que não devemos agir pensando no futuro. Talvez pensar nas
ações por vir se torne fundamental para nossa vida na Terra. No entanto, a proposta de nossa pesquisa
não se vincula a desqualificar aquelas ações que chamamos de “ecologicamente corretas”. De modo
algum. O que gostaríamos é que nosso estudo suscitasse questões pouco problematizadas por nós:
qual força e produtividade têm os discursos midiáticos que nos conduzem a ações diante do cenário contemporâneo? Valeria pensarmos em o quanto nossas ações docentes como professores podem
contribuir para provocar o pensamento de nossos alunos, problematizando verdades instauradas no
interior da mídia sobre a Educação Ambiental e a Crise Ambiental que vimos experienciando no Planeta Terra. Talvez Foucault (2002; 2008) nos ajude a entender os mecanismos de poder, tão evidente
em algumas mídias, como uma ferramenta que fabrica verdades, produz sentidos e constitui modos
de existir e conviver.
Alguns delineamentos finais
Na tentativa de buscar uma maneira diferente de pensar os problemas ambientais e seus desdobramentos, Guattari (1990) nos sugere lançar nossos olhares para além dos desastres naturais, e então
pensarmos em uma articulação ético-política, possível com uma comunicação e cooperação entre os
três registros ecológicos: o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade.
O questionamento de ditas verdades “ecologicamente corretas” seria o primeiro passo para
uma autonomia individual, mas ao mesmo tempo, necessariamente coletiva, ecológica, a fim de tornarmos agentes ativos na preservação do nosso planeta, pois cada vez mais, os equilíbrios naturais
dependerão das intervenções humanas (GUATTARI, 1990). Ao pensamos a partir de uma articulação
ético-política estaríamos praticando uma forma de resistência, pois, enquanto houver relações de po49
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DISCURSOS MIDIÁTICOS: MODOS DE SER SUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE
der há possibilidade de resistência. A resistência é combate entre o poder e a vontade de liberdade,
segundo Foucault (1995). Resistência a quê? Resistência à massificação dos sujeitos; à imposição de
modos de vida e de valores; à fabricação de subjetividades e às metanarrativas que impõem verdades.
Diante disso, gostaríamos que nosso texto pudesse provocar outras discussões no campo da
Educação Ambiental, entendendo-a como um importante instrumento de ação política na sociedade
atual. Talvez ele pudesse agir como uma singela ferramenta para constituição de uma máquina de
guerra (DELEUZE e GUATTARI, 2007), tornado-se uma possibilidade de resistência e criação ao
olhar a Educação Ambiental para além do discurso do risco e da periculosidade por um lado e, do
anacrônico e romântico naturalismo, de outro. Talvez pudéssemos, aceitando o convite de Guattari
(1990), pensarmos na criação de uma ecosofia, produzindo espaços éticos e políticos para o campo da
Educação Ambiental.
REFERÊNCIAS
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São Paulo: Editora Cortez, 2008.
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Realidade. Porto Alegre, v. 22, n. 2, dez. 1997. p. 59-80.
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Apêndice da 2ª edição. Michel Foucault entrevistado por
Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. In.: DREYFUS, Hubert e RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma
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_________. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 25ª ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002.
_________. A arqueologia do saber. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002a.
_________. A ordem do discurso. 10ª ed. São Paulo, Edições Loyola, 2004.
_________. Segurança, Território e População: curso no Collège de France (1977- HARA, Tony. Sociedade da Comunicação: controle e captura da singularidade. In.: Revista Aulas – Dossiê Foucault. São
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1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990.
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50
Paula Corrêa Henning
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STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe L. (Orgs.) Cultura Infantil? A construção corporativa da infância. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
* Doutora em Educação. Professora do Instituto de Educação, do Programa de Pós-Graduação em
Educação Ambiental e do Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Subjetividade e Políticas de
Formação.
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URGÊNCIA ECOLÓGICA E AS CONTRIBUIÇÕES DE FREIRE
Balduino A. Andreola*
A ecologia ganha uma importância fundamental neste fim de século.
Ela tem de estar presente em qualquer prática educativa de caráter radical, crítico e libertador. (Paulo Freire)
Quando há cinco ou seis décadas surgiram, entre nós, os primeiros movimentos na defesa do
verde, da natureza, a maioria talvez de nossa geração os via com um misto de estranheza e quase de
compaixão, como se fossem idealistas românticos. Não nos dávamos conta, sequer, que muito antes
deles, houvera, mais do que previsões, constatações muito sérias sobre a gravidade do problema ecológico. “Já o velho cacique Seattle, em sua carta ao presidente dos Estados Unidos, na qual se dirigia
a ele, em 1854, como o “Grande Chefe Branco de Washington”, advertindo-o severamente nestes
termos: “Contamina os vossos leitos, e uma noite morrereis, sufocados nos vossos próprios detritos”.
Lembro aqui que eu citava em 1982 (ANDREOLA, 2010: p. 14), o grande cientista alemão Wernher
Von Braun, falecido em 16 de junho de 1977 que deixou escrito, em seu testamento espiritual:
As incríveis ambições humanas converterão, algum dia, o planeta Terra em um lugar
desolado e inabitável. Por isso é preciso chegar-se a outros planetas virgens, nos quais
a mão do homem não tenha deixado pousar todo o peso de sua destruição.
Dois eminentes pensadores do nosso tempo lançaram, em meados do século passado, advertências semelhantes, com relação às ameaças nucleares. Emmanuel Mounier (1962: p.356-357), após
a tragédia de Hiroshima e as experiências nucleares de França nas ilhas Bikini, escreveu que a humanidade fora surpreendida por um poder único, ou seja, o poder de explodir o planeta. Segundo ele:
Agora a humanidade como tal deverá escolher, e precisará, com certeza, de um esforço heróico para não escolher a facilidade, o suicídio. Pode-se dizer que sua maturidade começa neste momento.
Mounier morreu aos 45 anos, em 1950. Seu grande amigo e parceiro de lutas, Paul Ricouer,
cujo centenário de nascimento ocorre neste ano de 2013, escreveu em 1955:
Pode-se mesmo dizer que o perigo nuclear nos faz ainda um pouco mais conscientes
dessa unidade da espécie humana, de vez que, pela primeira vez, podemos sentir-nos
ameaçados em nosso corpo globalmente.
Este tom de “urgência” planetária, que marca as advertências das personalidades citadas, nós
os encontramos nos escritos de muitos pensadores mais recentes. Limito-me a citar um, Leonardo
Boff. Ele inicia seu livro “Saber Cuidar” (1997: p. 17) declarando que o mesmo “vem escrito a partir
de uma perspectiva de urgência”. O mesmo teólogo prefaciou o livro “Teologia para outro mundo
possível” (SUSIN- org., 2006), sob o título que por si só já nos interpele: “Duas utopias urgentes para
o século XX”, e declarou: “Vivemos no olho de uma crise civilizacional, de proporções planetárias.
Toda crise oferece a chance de transformação, bem como o risco de um fracasso desolador (BOFF,
2006: p.239).
TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA
O livro prefaciado por Leonardo Boff reuniu as palestras do “Fórum Social Mundial para uma
teologia da libertação global”, realizado no bojo do 3º Fórum Social Mundial, em 2003. Na palavra
“urgência”, ou o tom de urgência extrema dos problemas apontados, o tema perpassa vários pronunciamentos daquele Fórum.
A participação dos teólogos de libertação no Fórum Social Mundial me oportuniza o registro
de que lá estiverem também representantes da pedagogia e da filosofia de libertação, bem como o
Augusto Boal, com vários grupos de teatro do oprimido, e numerosos participantes dos movimentos
de cultura popular. Isto para desmentir os que desatualizaram estes movimentos de libertação e os
respectivos intelectuais orgânicos, como se tivessem ancorado ou se enclausurado nos debates e nas
lutas da década de 60, enquanto estão na linha de frente, comprometidos com as novas formas de luta
e as urgências dos termos mais urgentes que a realidade nos propõe.
Frente às severas advertências e aos apelos quase que proféticos das personalidades citadas anteriormente, cabe perguntar-nos qual a contribuição de Freire para o problema ecológico, um dos mais
graves embates da realidade. A pergunta me foi lançada, aliás, há uns quinze anos, pelo Prof. Sírio
Velasco, da FURG. Naquela hora eu respondi que a pergunta dele estava me pegando totalmente de
surpresa. Eu nunca havia lido Freire na ótica da ecologia. Daí por diante, em todas as minhas releituras
de sua obra, ao preparar uma aula, uma palestra, ao escrever um artigo, eu ficava atento também a esta
dimensão ecológica, e fiz muitas descobertas precisas, que lancei numa carta ao colega da FURG, que
ele, por sua vez, lançou na internet. Retomando alguns daqueles achados e outros, que fui reunindo
sucessivamente, procurarei trazer de novo Freire para este “simpósio” planetário, em defesa de nossa
“Mãe Terra”. E faço-o até com exigência de resposta ao último grito veemente dele em defesa da vida,
na sua “Terceira Carta Pedagógica”, que nos deixou inconclusa, sobre sua mesa de trabalho, incluída
no seu primeiro livro póstumo, intitulado muito significativamente “Pedagogia da Indignação” (FREIRE, 2000: p.65-67).
Seu grito de indignação e de protesto, provocado pelo assassinato do índio pataxó Galdino dos
Santos, inicia com estas palavras:
Cinco adolescentes mataram hoje, barbaramente, um índio pataxó, que dormia tranqüilo, numa estação de ônibus, em Brasília. Disseram à polícia que estavam brincando
[...] Que coisa estranha, brincar de matar índio, de matar gente. Fico a pensar aqui,
mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado diante da perversidade intolerável desses moços desgentificando-se no ambiente em que decresceram
em lugar de crescer (FREIRE, 2000: p. 65-66).
Perante a enormidade do que aconteceu, Paulo expressa o sentimento de espanto que irrompe
do fundo de seu corpo consciente e proclama:
O acatamento ao outro, o respeito ao mais fraco, a reverência à vida não só humana
mas vegetal e animal, o cuidado com as coisas, o gosto da boniteza, a valoração dos
sentimentos, tudo isso reduzido a nenhuma ou quase nenhuma importância. Se nada
disso, a meu juízo, diminui a responsabilidade desses agentes da crueldade, o fato em
si de mais esta trágica transgressão da ética nos adverte de como urge que assumamos
o dever de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais como do respeito à vida
dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e
das florestas. Não creio na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos tornamos capazes de amar o mundo (p. 66-67).
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Alejandro Giménez Rodríguez
Esta defesa da ética enquanto compromisso com a vida, não apenas a humana, mas aqui toda a
riqueza de suas expressões, no mundo da natureza, se transforma, na derradeira “Carta Pedagógica” de
Freire, numa proclamação da urgência extrema do problema ecológica, proclamação cuja importância
me levou a colocá-la como epígrafe deste estudo.
Logo adiante, na mesma “Carta”, ele declara: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.
É surpreendente como Paulo Freire proclama, com o mesmo vigor dramático, nesta sua mensagem derradeira, as exigências da Ética, da Ecologia e da Educação. Nunca estes três temas apareceram, talvez, tão indissociáveis como nesta carta de Freire.
Depois de citar o primeiro livro póstumo, nesta rápida revoada “ecológica” sobre a vasta obra
de Freire, permito-me voltar aos dois primeiros livros dele, “Educação como Prática da Liberdade” e
“Pedagogia do oprimido”. Embora estas duas obras não contenham referências explícitas à temática
da ecologia, eu vejo nelas duas contribuições extremamente importantes para esta temática.
Primeiramente, parece-me que nos cabe reconhecer um profundo sentido ecológico da pedagogia freireana de libertação. O sentido maior, com efeito, de toda a prolongada luta de Freire constitui-se num empreendimento sem trégua de denúncia e de luta contra todas as formas de opressão.
Feita esta consideração, podemos perguntar-nos se uma das modalidades mais cruéis da opressão não
consistiria, talvez, em invadir a casa do outro, pessoa ou povo, expulsá-lo de sua casa, arrasando-a.
A pergunta que nos propomos significa dizer que a “Pedagogia do Oprimido” tem, com certeza, um
sentido ecológico radical, frente à ameaça cada vez mais concreta e iminente de destruição da casa
comum da humanidade, o Planeta Terra.
Em “Educação como Prática da Liberdade”, o problema ecológico aparece relacionado com o
tema da terra, mais especificamente, sob o ângulo do problema agrário, salientando o compromisso
histórico de Paulo Freire com a Reforma Agrária. Isto significa também denúncia do latifúndio como
uma das estruturas mais perversas de nossa história e, como tal, grande responsável pelas relações de
dominação e opressão da maioria dos grupos subalternos no Brasil e na América Latina.
A preocupação de Freire com esta problemática no Brasil perpassa muitas páginas do livro
“Educação como prática da liberdade”, como também no outro livro seu, “Extensão ou Comunicação?”, no contexto da Reforma Agrária realizada no Chile durante o governo de Eduardo Frei. A citação destas dimensões da obra de Freire, num trabalho sobre ecologia, se justifica porque a propriedade
ilimitada e concentradora da terra nas mãos de uma minoria gananciosa, comandada unicamente pela
ética do mercado e da especulação, nos parece um dos fatores principais e mais iníquos na devastação
da terra e da destruição do meio ambiente.
Mas há outra dimensão importante deste engajamento de Freire na defesa da Terra, em favor
da vida. Trata-se da sua solidariedade histórica com as lutas dos trabalhadores rurais e, em particular,
aqui no Brasil, com o MST. No livro póstumo “Pedagogia da Indignação”, ele fala apaixonadamente
da luta destemida dos Sem-Terra em várias passagens da Primeira e da Segunda Cartas Pedagógicas.
Na Segunda Carta (p. 60-62), escreve: “O Movimento dos Sem Terra, tão ético e pedagógico quanto
cheio de boniteza, não começou agora, nem há dez ou quinze, ou vinte anos”.
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TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA
Depois de referir-se às lutas dos Quilombos e das Ligas Camponesas, fala da combatividade
do MST, e lembrando a grande marcha que realizaram até Brasília, tendo partido dos recantos mais
longínquos de todo o Brasil, assim conclui a Carta:
A eles e elas, sem-terra, a seu inconformismo, à sua determinação de ajudar a democratização deste país devemos mais do que às vezes podemos pensar. E que bom
seria para ampliação e a consolidação de nossa democracia, sobretudo para sua autenticidade, se outras marchas se seguissem à sua. A marcha dos desempregados, dos
injustiçados, dos que protestam contra a impunidade, dos que clamam contra a violência, contra a mentira e o desrespeito à coisa pública. A marcha dos sem-teto, dos
sem-escola, dos sem-hospital, dos renegados. A marcha esperançosa dos que sabem
que mudar é possível.
Neste momento histórico, em que o gesto do novo Papa emocionou o mundo, ao escolher que
queria ser chamado Francisco, em homenagem ao “poverello” Francisco de Assis, autor do “Cântico
Irmão Sol”, profeta e poeta do amor universal, não só a todos os seres humanos, mas também a todas
as criaturas da natureza, sinto que não exagero ao ver uma sintonia profunda de Freire com este espírito ecológico franciscano de “respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos
pássaros, à vida dos rios e das florestas.” Inspirado nesta confissão de amor cósmico de Freire, ensaiarei uma revoada rápida sobre alguns outros de seus livros, pinçando, cá e lá, fragmentos ao menos de
sua paixão pelas irmãs árvores. Nesta viagem prazerosamente ecológica com Freire, através do livro
“Cartas à Guiné-Bissau”, vamos com ele para a África.
Depois de lembrar que seu primeiro encontro com a África não se deu com a Guiné-Bissau,
mas sim com a Tanzânia, ele observa:
Faço esta referência para sublinhar quão importante foi, para mim, pisar pela primeira vez o chão africano e sentir-me nele como quem voltava e não como quem chegava
(Freire, 1978:13).
Justificando a sua sensação de volta, Freire proclama emocionado:
Daquele momento em diante, as mais mínimas coisas – velhas conhecidas – começaram a falar a mim, de mim. A cor do céu, o verde-azul do mar, os coqueiros, as mangueiras, os cajueiros, o perfume de suas flores, o cheiro da terra; as bananas, entre elas
a minha bem-amada banana-maçã; o peixe ao leite de coco; os gafanhotos pulando
na grama rasteira; o gingar do corpo das gentes andando nas ruas; os corpos bailando
e ao fazê-lo, “desenhando o mundo”, a presença, entre as massas populares, da expressão de sua cultura que os colonizadores não conseguiram matar, por mais que se
esforçassem para fazê-lo, tudo isso me tomou todo e me fez perceber que eu era mais
africano do que pensava (Ib.: 13-14).
Falando daquele encontro, Freire o qualifica: “um reencontro comigo mesmo”. E referindo-se
à Guiné-Bissau escreve: “Poderia dizer: quando ‘voltei’ à Guiné-Bissau”.
Podemos dizer, com razão, que se trata de um “reencontro” profundamente ecológico. Paulo
se sente “em casa” (oikos). Encontro/reencontro com os povos africanos, com as árvores, as frutas, a
natureza exuberante, a terra, a cultura, com a Mãe África, filha primogênita da Mãe Terra.
Estas lembranças de Freire nos levam a salientar uma presença extraordinária, quase que ontológica, poética e até mística, das árvores na vida e nos escritos de Paulo Freire voltando com ele da
África para o Brasil. Bastaria lembrar o título do livro “À sombra desta mangueira”, e contemplar a
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Alejandro Giménez Rodríguez
figura patriarcal de Freire se deliciando daquela sombra, para entender o quanto às árvores eram suas
amigas. Citemos o primeiro parágrafo daquele livro (p. 15):
As árvores sempre me atraíram. As frondes arredondadas, a variedade do seu verde,
a sombra aconchegante, o cheiro das flores, os frutos, a ondulação dos galhos, mais
intensa ou menos intensa em função de sua resistência ao vento. As boas-vindas que
suas sombras sempre dão a quem a elas chega, inclusive a passarinhos multicores e
cantadores. A bichos, pacatos ou não, que nelas repousam.
As duas páginas iniciais, intituladas “Primeiras palavras”, são um verdadeiro poema às árvores. Quanto ao título, Freire justifica: “(...) é uma licença que me permito e com a qual sublinho a
importância que teve na minha infância a sombra das árvores (...)”. Da p. 23 a 26 fala do quintal da
sua infância. Daquele quintal, ele fala em muitas oportunidades. Na entrevista do Pasquim, assim o
lembra:
(...) vivíamos numa casa grande, com um quintal enorme, que na época dava para
duas ruas, uma era a do Encanamento e a outra era a rua de São João. No meio das
duas, o quintal ligando-as, era o meu mundo. Cheio de árvores, de bananeiras, cajueiros, fruta-pão, mangueiras. Eu aprendi a ler à sombra das árvores, o meu quadro
negro era o chão, meu lápis um graveto de pau.
Uma aluna minha da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo escreveu, num trabalho sobre Freire, que o que mais a impressionara, em seus livros, ao falar tanto e tão lindamente das árvores,
parecia nos estar convidando sempre para conversar, à sombra das árvores, no quintal de sua casa. Ela
acrescentou que todos nós temos, talvez, saudade de algum quintal. Quem sabe se a nostalgia profunda do paraíso perdido.
Depois de acompanhar Freire para seu “re-encontro” com a África, e em sua volta à “sombra”
nordestina de mangueira, não poderíamos recusar seu convite para um vôo do qual nos fala em seu
livro “Pedagogia da Esperança”, para bem mais longe, na sua turnê através da Austrália, Nova Zelândia, e de Papua-Nova Guiné, Freire descreve um extraordinário ritual com que foi recepcionado por
uma comunidade indígena, nas ilhas Fuji, no Pacífico Sul, ritual que envolvia um “longo período de
silêncio” por parte do homenageado. Ao relatar sua fala de agradecimento por aquela acolhida extraordinariamente amorosa, Freire escreve (p.185):
Disse da alegria e da honra de ter podido falar depois de um longo período de silêncio.
Minha fala, acrescentei, estava acrescida de um significado que antes não tinha. Era,
no momento, disse, uma fala que se legitimava noutra cultura em que a comunhão
não era apenas a de homens e de mulheres e de deuses e ancestrais mas também a comunhão com as diferentes expressões de vida. O universo da comunhão abrangia as
árvores, os bichos, os pássaros, a terra mesma, os rios, os mares. A vida em plenitude.
A comunhão cósmica de Paulo com as árvores, com a natureza, com a terra, nos convida a um
vôo para a Amazônia do profeta e mártir da ecologia Chico Mendes e da batalhadora Marina Silva. O
professor Alberto Damasceno, da Universidade Federal do Pará, escreveu um depoimento breve, mas
extraordinariamente rico para o livro “Paulo Freire: uma biobibliografia” (1996: 231-232). O título:
“Paulo Freire, a Amazônia e o boto”. Freire se encantou com a narração da lenda relativa à força sedutora do boto, admirando na mesma não apenas o encanto poético, mas “uma determinada forma de
ação cultural”. Fiel a seu compromisso com o diálogo, segundo o professor Damasceno, Freire “fala
com o povo da Amazônia e aprende com este o saber da floresta; [...]” e discorre a respeito
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[...] do gosto pela liberdade de ser, de estar sendo, da liberdade de andar, da liberdade
de parar, da liberdade de voltar, da liberdade de perguntar, da liberdade de sonhar, da
liberdade de dizer não, da liberdade de farrear, da liberdade de aplaudir, da liberdade
de achar bonita a lua que aparece, da liberdade de me banhar, da liberdade de acreditar ou não acreditar na potência e na força do boto.
O professor Damasceno confessa encantado:
A cada palavra sobre a terra, as águas, os bichos, as plantas; sobre nossos gostos, cheiros e cores e, ainda, da gente do Norte e seus hábitos indígenas, ouvia-se de sua boca
uma frase carregada de paixão pedagógica. Creio tratar-se de sua insistente crença na
sabedoria popular e na necessidade imperiosa do diálogo com os oprimidos, para,
daí Foi uma experiência e tanto ciceroneá-lo nesta viagem ao coração da Amazônia,
produzir-se o verdadeiro conhecimento.
Nesta viagem ecológica com Freire através de seus livros e suas viagens, não poderia deixar de
voltar com ele para casa, já que eco-logia (oikos-logo) é a palavra, a fala da casa. E esta volta é com o
convite à leitura gostosa de um livro intitulado, “Cartas a Cristina”, no qual Paulo dedica longas páginas à sua prazerosa convivência com os rios, os córregos, as árvores e com a boniteza das cores e dos
cantares dos pássaros, no período de sua vida que ele transcorreu em Jaboatão. A par das alegrias que
aquele ambiente multicolorido lhe proporcionava, Paulo fala também de sua experiência da pobreza e
da fome, bem como dos castigos da poluição e da morte a que eram submetidas as águas e os peixes da
região. “Cartas a Cristina” é um livro autobiográfico, de reminiscências e confidências, escrito como
“cartas” à sobrinha Cristina. Trata-se de um livro que merece uma nova leitura demorada e amorosa,
na ótica da ecologia, tema poética e politicamente enfatizado em muitas de suas páginas.
As reminiscências ecológicas e poéticas de Freire não significam saudosismo, em dissonância
com seus engajamentos político-pedagógicos. Para percebê-lo basta lermos o que ele escreve ainda no
livro “À sombra desta mangueira” (p. 26-27):
Minha terra é boniteza de águas que se precipitam, de rios e praias, de vales e florestas,
de bichos e aves. Quando penso nela, vejo o quanto ainda temos de caminhar, lutando
para ultrapassar estruturas perversas de espoliação. Por isso, quando longe dela estive,
dela a minha saudade jamais me reduziu a um choro triste, a uma lamentação desesperada. Pensava nela e nela penso como um espaço histórico, contraditório, que me
exige como a qualquer outro decisão, tomada de posições, ruptura, opção.
Nesta mesma ótica dialética do encanto e da denúncia, quanto às andanças de Freire pelos caminhos da Guiné-Bissau, não podemos omitir a lembrança de um momento triste sob o ponto de vista
ecológico. Depois de contar uma visita ao interior do país, ele escreve:
Na volta a Bissau, olhando pela janela do helicóptero dirigido por pilotos soviéticos,
junto aos quais dois jovens nacionais continuavam sua aprendizagem, via, lá embaixo,
as frondes das árvores queimadas pelo napalm. Olhava atentamente, curiosamente.
Nenhum animal. Uma ou outra ave maior voava calmamente. Lembrava-me do que
nos dissera o Presidente Luiz Cabral, em nosso primeiro encontro, quando nos falava
de diferentes instantes e aspectos da luta, com a mesma sobriedade com que o jovem
diretor do Internato conversara com Elza e comigo. “Houve um momento, disse o
Presidente, em que os animais da Guiné ‘pediram asilo’ aos países vizinhos. Somente
os saguins permaneceram, refugiando-se nas zonas libertadas. Tinham horror aos
‘tugas’. Depois, coitados, passaram a temer-nos. É que nos vimos forçados a começar a
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Alejandro Giménez Rodríguez
comê-los. Espero que, em breve, os nossos animais retornem – concluiu o Presidente
– convencidos de que já não há guerra”. Da janela do helicóptero olhava atentamente,
curiosamente. Não havia ainda, pelo menos naquelas bandas do país, indícios daquele
retorno... (Ib.: 38).
Esta paisagem de tristeza e desolação ecológica, resultado cruel do colonialismo e da guerra,
me lembra o que escreveu Ladislau Dowbor ao prefaciar o livro “A sombra dessa mangueira” (p.10):
Uma África devastada chora as suas últimas árvores, e vê seus solos desprotegidos,
carregados pelos ventos e pelas chuvas torrenciais, enquanto o Ocidente que a devastou lhe recomenda cuidados ambientais. Mas temos cada dia melhores computadores,
vídeo-cassetes, e discos laser.
A constatação melancólica do Presidente Luiz Cabral, de Paulo e Elza e do genro deles Ladislau Dowbor, nos mostram com evidência gritante que o problema ecológico não é apenas um problema de espaço físico ou geográfico, mas sim como espaço político, social e cultural, do qual muitos são
expulsos, me transfere agora para outro livro dele intitulado “Extensão ou Comunicação?” Na p.41,
lemos:
Entre as várias características da teoria antidialógica da ação, nos deteremos em uma:
a invasão cultural. Toda invasão sugere, obviamente, um sujeito que invade. Seu espaço histórico-cultural, que lhe dá sua visão de mundo, é o espaço de onde ele parte
para penetrar outro espaço histórico-cultural, superpondo aos indivíduos deste seu
sistema de valores. O invasor reduz os homens do espaço invadido a meros objetivos
de sua ação.
A alusão de Freire à invasão cultural, enquanto invasão do espaço histórico-cultural do outro,
nos leva a outros textos dele que se referem espaços devastados, depredados ou negados, onde os problemas ecológicos estão intimamente ligados a problemas de ordem política e social, que reclamam,
por sua vez, decisões e ações com sentido pedagógico-político
Em seu último livro publicado em vida, em 1997, intitulado “Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa”. Paulo Freire pergunta:
Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade
descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos
e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos
que oferecem à saúde das gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros ricos e
mesmo puramente remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é considerada em
si demagógica e reveladora da má vontade de quem a faz. É pergunta de subversivo,
dizem certos defensores da democracia (FREIRE, 1997: p. 33).
Em continuidade, como no livro “Pedagogia da Indignação”, Freire associa os problemas ecológicos às exigências éticas e aos problemas éticos e sociais ou, mais explicitamente, aos problemas
de discriminação de classe:
Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante
e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que
não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes
pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? (p. 33-34).
No mesmo livro, Paulo Freire se refere ao espaço como elemento fundamental de uma educação condizente com a dignidade humana de todos os alunos. Assim escreve ele:
59
TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA
Há uma natureza testemunhal nos espaços tão lamentavelmente relegados das escolas. Em A Educação na cidade chamei a atenção para esta importância quando discuti
o estado em que a administração de Luiza Erundina encontrou a rede escolar da cidade de São Paulo em 1989. O descaso pelas condições materiais das escolas alcançava
níveis impensáveis. Nas minhas primeiras visitas à rede quase devastada eu me perguntava horrorizado: Como cobrar das crianças um mínimo de respeito às carteiras
escolares, às mesas, às paredes se o Poder Público revela absoluta desconsideração à
coisa pública. É incrível que não imaginemos a significação do “discurso” formador
que faz uma escola respeitada em seu espaço. A eloqüência do discurso “pronunciado” na e pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na higiene dos sanitários, nas
flores que adornam. Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço
(p. 49-50).
No capítulo 2º de “Pedagogia da Autonomia”, sob o título “Ensinar exige alegria e esperança”,
Freire relata uma caminhada que realizou em Olinda com o professor Danilson Pinto, através de uma
favela onde o ambiente não fala muito de alegria, e onde a esperança parece quase impossível. Ouçamos seu relato:
Caminhávamos, Danilson Pinto e eu, com alma aberta ao mundo, curiosos, receptivos, pelas trilhas de uma favela onde cedo se aprende que só a custo de muita teimosia
se consegue tecer a vida com sua quase ausência, ou negação, com carência, com
ameaça, com desespero, com ofensa e dor. Enquanto andávamos pelas ruas daquele
mundo maltratado e ofendido eu ia me lembrando de experiências de minha juventude em outras favelas de Olinda e Recife, dos meus diálogos com favelados e faveladas
de alma rasgada (p. 82).
No livro “Extensão ou Comunicação?” Freire se refere a outro problema de espaço
devastado, denunciado também por Ladislau Dowbor com relação à África. Trata-se da erosão.
Concomitantemente com a discussão problemática da erosão e do reflorestamento,
por exemplo, se faz indispensável a inserção crítica do camponês em sua realidade
como uma totalidade. A discussão da erosão requer (em uma concepção problematizante, dialógica da educação e não antidialógica) que a erosão apareça ao camponês,
em sua “visão de fundo”, como um problema real, como um “percebido destacado em
si” em relação solidária com outros problemas. A erosão não é apenas um fenômeno
natural, uma vez que a resposta a ele, como um desafio, é de ordem cultural (...).
Esta exigência de situar o problema ecológico interligado com outros problemas, numa visão
de totalidade, é muito bem salientada pela Profª Christina Schachtner (1999: p.123-137), em sua
conferência no Congresso Internacional Paulo Freire, na UNISINOS, em 1998. Esta estudiosa de
Marburg (Alemanha) relatou iniciativas de vários grupos ou movimentos, sobretudo ligados à Agenda
21 da ONU, comprometidos em promover “um desenvolvimento social, ecológico e econômico que
leve em conta a idéia de sustentabilidade”. Segundo ela, os elementos teóricos formulados por Freire,
“determinam substancialmente o pensamento e a ação desse novo movimento sócio-ecológico”. Ela
situa as mudanças exigidas na linha do que Freire denomina pela, sua urgência, “situações- limites”.
Ao situar os problemas da ecologia na perspectiva das “situações-limites”, a professora Christina quer salientar a extrema gravidade dos mesmos, enquanto nos colocam frente à ameaça de uma
iminente destruição total da vida em nosso Planeta. Nesta mesma linha de reflexão, podemos pensar
a “Pedagogia do Oprimido” de Freire, enquanto projeto utópico de transformação, na ótica de uma
“Pedagogia das grandes urgências planetárias”. (ANDREOLA, 2011: p. 313-330).
60
Alejandro Giménez Rodríguez
Voltando ao tema do espaço, cabe dizer que Freire expressa, em toda a sua forma de existir
e estar-no-mundo, e em toda a sua obra, uma comunhão cósmica com o espaço, com a terra, com o
planeta, em todos os seus recantos. Numa longa entrevista com Claudius Ceccon e Miguel Paiva,
para o Pasquim (1978, nº 462), falando de sua experiência nos mais variados espaços do exílio, Freire
declara:
(...) o que eu quero dizer é que sou, existencialmente, um bicho universal. Mas só sou
porque sou profundamente recifense, profundamente brasileiro. E por isso comecei a
ser profundamente latino-americano e depois mundial. Eu sou capaz de querer bem,
enormemente, qualquer povo.
Na emoção desta viagem ecológica através da obra e da vida de Paulo Freire comungando com
seu espírito franciscanamente poético, concluirei também com alguns versos ecológicos.
Grito de Mãe (colocar a cores)
Eu sou a Mãe Terra.
Do ódio esquecidos,
Cansada de guerra.
Na casa reunidos.
De ódio e violência,
Sem medo e sem fome
A aparência
Que a muitos consome.
Não é mais aquela
Do imenso cansaço
Da Mãe grande e bela,
Dos longos caminhos,
Que Deus quis e fez.
Voltai meus filhinhos,
Pra muitos, em vez
Ao meu grande abraço.
De casa e jardim,
Anseio de novo
De mãe até o fim,
O amor de meu povo,
Sou vil propriedade.
Que encontre em mim
No campo ou cidade
A casa e o jardim
Vendida ou comprada,
A mãe que Deus quis
Ferida, estuprada,
Formosa e feliz,
A mãe já não sou,
A Mãe que Deus fez
E o filho de outrora,
Pra todos vocês.
Porto Alegre, 3º Fórum Social Mundial,
janeiro/2003
Meu dono de agora,
Virou gigolô...
Com passos incertos,
Balduino Antonio Andreola
De braços abertos,
Tateando no escuro,
Meus filhos procuro
E os quero de volta,
Da mesa em volta,
61
TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA
REFERÊNCIAS
ANDREOLA, Balduino A. Emmanuel Mounier et Paulo Freire: Une Pédagogie de la Personne et de
la Communauté. Thèse de Doctorat. Louvain-la-Neuve, Université Catholique de Louvain, Faculté de
Psychologie et des Sciences de l’Éducation, 1985.
ANDREOLA, Balduino A. Por uma pedagogia das grandes urgências planetárias. Educação. Santa
Maria, UFSM, 2011. p. 313 - 330.
ANDREOLA, Balduino A. Dinâmica de Grupo: Jogo da Vida e Didática do Futuro.
polis, Vozes, 2011.
28º Ed. Petró-
CECCON, Claudius ; PAIVA, Miguel. Paulo Freire, no exílio, ficou mais brasileiro ainda (Entrevista
com Paulo Freire). In: Pasquim: nº Especial 2: As Grandes Entrevistas Políticas. Rio de Janeiro, nº 468,
1978. p. 5-11.
DAMASCENO, Alberto. Paulo Freire, a Amazônia e o boto. In: GADOTTI, Moacir (org.) et al. Paulo
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231-232.
DOWBOR, Ladislau. Prefácio a FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d’água,
1995. p. 7-14.
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Maria Araújo Freire. São Paulo, Edit. UNESP, 2000.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Prefácio de Francisco C. Weffort. 23ª Ed. Rio
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FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Trad. Rosisca Darcy de Oliveira.
3ª Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
FREIRE, P. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Notas de
Ana Maria Araújo Freire. São Paulo, Ed. UNESP, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Prefácio de Edina
Castro de Oliveira. 2ª Ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1997.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Prefácio de Ernani M. Fiori. 46ª Ed. Rio de Janeiro, São
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FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo, Olho d’água, 1995.
FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. 2ª Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
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GADOTTI, Moacir. Paulo Freire: Uma biobibliografia. São Paulo, Cortez: Instituto Paulo Freire; Brasília, UNESCO, 1996.
SCHACHTNER, Christina. A recepção do enfoque teórico de Paulo Feire na Europa. Trad. De Luís
62
Alejandro Giménez Rodríguez
M. Sander. In:. STRECK, Danilo R. (org.) et al. Paulo Freire: Ética, Utopia e Educação. 7ª Ed.; 1ª Ed.
Petrópolis, Vozes, 1999. p.123-137
STRECK, Danilo R. (org.) et al. Paulo Freire: Ética, Utopia e Educação. 7ª Ed.; 1ª Ed. Petrópolis, Vozes,
1999.
* Professor, Dr. Mestrado em Educação UNILASALLE.
63
3. MUSEU E INDÚSTRIAS CRIATIVAS COMO INSTRUMENTO
DO PATRIMÔNIO E DO DESENVOLVIMENTO
JORNADAS MERCOSUL
CENTRO HISTÓRICO DE PORTO ALEGRE – UMA RELAÇÃO ENTRE ARQUITETURA,
MÍDIA E HISTÓRIA
Eder dos Santos Carvalho*
Simone Cardoso**
Introdução – Análise, Origem e Evolução do Centro Histórico de Porto Alegre
A modernização e o desenvolvimento das cidades durante o século XX ocasionou novas conexões econômicas e sociais na região de influência de grandes centros urbanos, ao mesmo tempo
em que trouxe o abandono para as áreas centrais, portuárias e industriais. Como conseqüência desse
abandono, tornou-se necessário repensar a construção e a renovação das cidades a partir da preservação cultural de seus patrimônios.
Segundo Ortegosa (2009, pág. 02), A arquitetura e os lugares da cidade constituem o cenário
onde nossas lembranças se situam e, na medida em que as paisagens construídas fazem alusão a significados simbólicos, elas estão evocando narrativas relacionadas às nossas vidas. Assim, a maneira
como interpretamos nossas experiências no espaço converte-se em nossa realidade e possibilita-nos
dar significado ao nosso mundo físico. Com o passar do tempo, uma constelação de signos se estratificam na memória coletiva constituindo uma cidade análoga. Ainda segundo a mesma autora, citando
Carvalho (2009, pág. 02):
Como ilustra Maria Alice Rezende de Carvalho, “uma praça das grandes manifestações políticas, uma esquina boêmia, um ponto da praia com seu velho pier, um
Café centenário, um edifício bisonho que parece ter resistido ao ímpeto destrutivo da
moderna linguagem arquitetônica são os fundamentos dessa cidade análoga”, que se
repõe insistentemente, mesmo que a cidade real se altere.
O centro histórico é um centro simbólico que alimenta a imaginação e a recordação do passado,
através de seu acervo de imagem que mostra o olhar da história. Um centro histórico não é lugar de
comemorar o que passou, ele é também o lugar das sensações instantâneas de agora. Ele não conta
uma única história, mas muitas histórias. Ao se falar de um retorno ao centro como forma de resgatar
o passado, não se pode esquecer também que esta intervenção significa readaptá-lo às novas funções
da cidade contemporânea.
As cidades surgem, crescem e se desenvolvem a partir de seus centros, onde está sua parte mais
antiga. Porém, as urbes têm a propriedade de aumentar, de se densificar, de crescer de forma desmedida, e consequentemente, seus centros são os primeiros a sofrer estas transformações. Este crescimento
das cidades leva a uma diluição do centro como coordenada espacial, fortalecendo a idéia de centro cívico, comercial e especialmente, de repositório de expressões físicas de experiências coletivas. Dessa
forma, os centros urbanos sofrem os desgastes físicos intrínseco à passagem do tempo e ao uso social
desses espaços, além de sofrer com as alterações de uso, que alteram e destroem a função original
dos mesmos, e por fim, estas regiões centrais podem ser acometidas de uma perda de significado, de
memória e de sentido histórico.
CENTRO HISTÓRICO DE PORTO ALEGRE – UMA RELAÇÃO ENTRE ARQUITETURA, MÍDIA E HISTÓRIA
Estudos sobre centros urbanos que buscam resgatar a história e a memória destes locais para a
cidade, deparam-se hoje com a questão da especulação imobiliária e com processos de enriquecimento
e empobrecimento presentes na sociedade atual. Já o turismo atua como um instrumento fomentador
de valorização dos centros urbanos, desde que conte com atrações e infra-estrutura bem definidos. O
turismo cultural em centros urbanos se sustenta em uma espécie de nostalgia do passado, uma expectativa de reencontro com as origens. Porém, para além dessas estratégias, impõem-se uma parte prática para ser definida. Faz-se necessário que além do olhar apurado do estudioso da cidade, se viabilize
recursos financeiros, tanto do poder público como da iniciativa privada. Valorizar centros históricos
requer um alto investimento, mas compensa. E esses investimentos necessitam de vontade política, de
parcerias público-privadas e pessoas capacitadas para executar estas ações.
Origem e Evolução do Centro de Porto Alegre
O centro de Porto Alegre sempre foi reconhecido por sua riqueza cultural, onde o pedestre mais
atento depara-se com uma riqueza arquitetônica ímpar, onde vários estilos se manifestam, formando
um conjunto rico e heterogêneo, abrangendo as mais variadas manifestações arquitetônicas. Monumentos neoclássicos, arquiteturas ecléticas e protomodernistas e as chamadas reminiscências de um
passado colonial – casas baixas, de porta e janela e platibanda simples, construídas em lotes estreitos
– configuram os diálogos, as memórias e as lembranças do local de fundação de Porto Alegre, local
este que segundo Cuty (2007, pág. 2): “carrega a mais expressiva imagem externa desta cidade, ou
seja, aquela que é percebida e comprada pelos que vêm de fora.”
O povoamento do centro de Porto Alegre iniciou por volta de 1732, com a fixação de algumas
famílias à beira do lago Guaíba. Em 1752 chegam ao local cerca de 60 famílias açorianas, juntandose mais tarde a uma nova leva de açorianos, fixando-se então junto ao porto, razão pela qual o local
passou a ser conhecido como Porto dos Casais. No dia 26 de março de 1772, data oficial da fundação
da cidade, foi elevada a Freguesia, sob o nome de Freguesia de São Francisco do Porto dos Casais.
No ano seguinte, é transformada pelo Governador Marcelino de Figueiredo em capital da Província.
A partir de então, passou a assumir seu novo papel de capital, quando foram construídas obras
como o Arsenal da Guerra, a primeira Igreja Matriz e o Palácio do Governador. Também nessa época
começaram a tomar forma algumas das praças mais antigas de Porto Alegre, com a Praça XV, a Praça da Matriz e a Praça da Alfândega. Durante a Revolução Farroupilha (1835-1845), o crescimento
ficou estagnado, voltando a crescer após 1845, tendo iniciado nesse período a construção de aterros
no litoral e a construção de equipamentos públicos, como fontes para abastecimento de água, o Teatro
São Pedro, a ampliação do Mercado Público, consolidação da Santa Casa de Misericórdia e da Beneficência Portuguesa.
Em seguida, quando Júlio de Castilhos assumiu o governo do estado (1891), com uma política
orientada pelo positivismo, foi dada ênfase à modernização da cidade, que passou a ser vista como
cartão de visitas do Rio Grande do Sul. Nessa onda de melhorias da infra-estrutura urbana, o centro
recebeu muitos incentivos, ao mesmo tempo em que se desencadeava um intenso programa de obras
para construção de prédios públicos imponentes.
68
Eder dos Santos Carvalho / Simone Cardoso
Esta aceleração do crescimento, que durou até meados da década de 30, renovou a paisagem
urbana, sendo influenciada pela estética do ecletismo e pelos ideais do positivismo. Neste período,
ergueram-se alguns dos mais significativos prédios públicos da capital, muitos carregados de simbolismos éticos, sociais e políticos, detalhes estes que se revelavam na decoração alegórica das fachadas.
Com exemplos dessa arquitetura temos o Palácio Piratini, o Paço Municipal (Prefeitura), a Biblioteca
Pública, o Banco da Província, Os Correios e Telégrafos e a Delegacia Fiscal; sendo que muitos desses
prédios forma construídos por arquitetos e engenheiros de origem alemã.
Na gestão do Prefeito Otávio Rocha, empreendeu-se uma reforma urbana, visando transformar
a capital numa “nova Paris”. Para isto, foi prevista a construção de largas avenidas, bulevares e rótulas, mas para que essas obras fossem levadas adiante, vieram abaixo muitos casarões, especialmente
na área central. Neste período surge o Viaduto Otávio Rocha, um dos marcos do centro de Porto
Alegre. Os ideais positivistas influenciaram também o plano cultural, através da fundação de estabelecimentos que mostravam o interesse do governo pelas diversas áreas da vida social e intelectual do
Estado Republicano, como o Arquivo Público, o Instituto Livre de Belas Artes, e o Museu Júlio de
Castilhos, ao mesmo tempo em que se desenvolviam cada vez mais as atividades das primeiras faculdades, instaladas desde o século XIX.
O centro de Porto Alegre atingiu o auge na década de 1950, quando já era densamente edificado e tinha a Rua da Praia como a principal rua da região central, transformada em zona de comércio
elegante e atraindo a instalação de inúmeros cafés, confeitarias, cinemas e restaurantes. Tornou-se
também o local preferido para manifestações políticas. Nas décadas seguintes, diante de uma abordagem tecnicista e moderna, desapareceram inúmeros edifícios antigos, empobrecendo a fisionomia do
centro e levando a região ao declínio.
A partir da década de 1960, camelôs “cegos” se instalam no centro, tomando conta das ruas
centrais, gerando como conseqüência o fechamento de inúmeras lojas já estabelecidas. Outros fatores,
nas décadas seguintes, contribuíram para desvalorizar a região, como o declínio do antigo distrito industrial, a elaboração de um novo padrão de zoneamento urbano, fazendo com que o centro perdesse
muito de sua função residencial, a especulação imobiliária, o aumento da criminalidade e a descentralização de investimentos.
Em 1981, é criada a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural, que inicia um processo de
estudo e resgate dos bens culturais de propriedade do município, sistematizando dessa forma os tombamentos. Também se reconheceu a existência do “Centro Histórico” como um núcleo urbano de interesse social e cultural específico, tendo como marco importante desse reconhecimento a recuperação
da Usina do Gasômetro, em 1991, desencadeando uma mudança na maneira como a população via o
Centro Histórico.
Recentemente, a prefeitura inaugurou um camelódromo com espaços alugados aos comerciantes. Dessa forma, a saída desses camelôs do coração do Centro Histórico propiciou a reorganização da
Praça XV, juntamente com o restauro do seu famoso chalé. Outros programas, como o Programa de
Arrendamento Residencial, o Programa Monumenta e o projeto Viva o Centro buscam alternativas de
valorizar a região central.
69
CENTRO HISTÓRICO DE PORTO ALEGRE – UMA RELAÇÃO ENTRE ARQUITETURA, MÍDIA E HISTÓRIA
Estes projetos começam a dar resultados, como o aumento da população, retorno de investimentos e valorização dos imóveis. A elite cultural, que “consumiu avidamente” o centro na primeira
metade do século XX, começa a retornar para o espaço onde mantêm as lembranças de sua memória,
onde estão suas referências, como os antigos cafés, livrarias e confeitarias. Para esses novos moradores, o centro voltou a ficar elegante como no passado.
Centro de Porto Alegre – A Arquitetura, Mídia e a História como divulgação do
Patrimônio Cultural
O Patrimônio Histórico e a memória de uma cidade não se limitam apenas aos monumentos,
mas também aos documentos, aos registros da história de uma sociedade e a sua divulgação através da
mídia – rádio, TV, jornal e Internet. Os meios de comunicação, a divulgação da história de um lugar
e a arquitetura tem a capacidade de contribuir para a reflexão e a discussão sobre a conservação do
patrimônio e da memória das cidades.
Na era da informação e da divulgação de todos os fatos que acontecem na cidade, o habitante
tem consciência do que acontece com o lugar onde vive, e por conseqüência, consigo mesmo. Ao
procurar preservar a identidade do lugar, o habitante preserva também a sua própria, através da conservação de monumentos históricos, artísticos e arquitetônicos relevantes.
A arquitetura induz, através de materiais, técnicas e formas construtivas, a função, o uso e o
valor do espaço, constituindo assim o suporte pelo qual a cidade se constrói como meio comunicativo, possibilitando sociabilidades e interações em constantes transformações. A técnica e a função da
arquitetura constroem a cidade que se comunica através de imagens midiáticas.
Aqui faz se necessário uma reflexão da relação entre Patrimônio Cultural e a memória coletiva.
As lembranças coletivas de uma sociedade se dão através do contato e da interpretação do que vemos
hoje acerca dos vestígios deixados pelo homem ao longo de sua existência. Esses vestígios seriam os
chamados bens culturais e imateriais que compõem o Patrimônio Cultural. Dessa forma temos então
o estabelecimento da relação entre a memória social e o Patrimônio Cultural. Os bens culturais têm
o poder de evoca - lá e configuram-se como uma espécie de externalização dessa. Segundo Santiago
(2007, pág. 25), os materiais remanescentes do passado, produto de um juízo de valores, que formariam o Patrimônio Cultural, são objetos potenciais de memória, onde essa pode se ancorar. De um
modo geral, patrimônio e memória relacionam-se à medida que os bens culturais, que constituem esse
patrimônio, configuram-se como suporte, externalizações, marcos ou pontos de apoio para ela.
A memória, a partir da segunda metade do século XX, passa por um desenvolvimento que
constitui uma verdadeira revolução, através do surgimento da memória eletrônica, trazendo consigo
uma série de transformações de ordem teórico-metodológicas. Esses novos conceitos de memórias coletivas conduzem a uma história imediata onde a mídia aparece como novo fio condutor desta ordem,
tornando-se essencial como meio de informação e registro do passado, apreendendo e transmitindo
este passado de forma diferente do campo historiográfico.
O envolvimento da imprensa na divulgação da memória e da preservação contribui para o
70
Eder dos Santos Carvalho / Simone Cardoso
entendimento das questões de salvaguarda do patrimônio. Dessa forma a atuação da mídia tem um
papel importantíssimo como informante especializada sobre processos e formas de preservação do
patrimônio e do legado da memória coletiva.
A memória social, bem como a evolução da mídia, segundo Santiago (2007, pág. 32), configura-se através de cinco estágios, que são: 1) nas sociedades sem escrita; 2) na Pré-História à Antiguidade; 3) na Idade Média; 4) no Século XIX com a invenção da imprensa, e finalmente 5) com o
desenvolvimento das mídias eletrônicas. Destas cinco fases de evolução, não cabe aqui detalhar cada
uma delas, visto não ser este o objetivo deste artigo. Apenas a última fase merece uma análise mais
pormenorizada, por ser este período de evolução da mídia presente até os dias atuais.
Este período evolutivo, segundo Debray (1994), citado por Santiago (2007, pág. 32), é conhecido também por videosfera, onde o período aberto pela técnica do audiovisual, em que a transmissão
analógica e digital dos dados, modelos e narrações, ocorre principalmente através da tela, quando
então os limites de armazenagem de informação do livro impresso são ultrapassados pelos suportes
audiovisuais, e como exemplo desse aparato temos o rádio, a TV, o telefone, o computador e a internet.
Nesse período da videosfera consolidou-se também a atual noção de patrimônio cultural, através de um processo evolutivo que começou em meados do século XIX e culminou com as Cartas Patrimoniais, editadas ao longo do século XX. A videosfera levou ao surgimento de diversos modos de
documentação do patrimônio cultural, ampliando dessa forma a bagagem cultural da sociedade acerca
das lembranças coletivas.
A memória coletiva, após se desenvolver em ambientes de comunicação caracterizados pela
oralidade, escrita fonética e impressão gráfica, é influenciada hoje pela popularização das chamadas
tecnologias da informação e comunicação, onde, segundo Santiago (2007, pág. 55), possuímos os melhores instrumentos de “ressureição” e da “viagem no tempo” à nossa disposição. Tais instrumentos
permitem a armazenagem de qualquer tipo de documento por meio de sua digitalização, seja ele um
documento oral, texto, imagem ou vídeo, sendo este documento acessível a qualquer pessoa em tempo
real, através da internet.
Para entendermos as potencialidades de salvaguarda e disponibilização de bens culturais, segundo Santiago (2007, pág. 55), é importante a análise de três fatores: a comunicação – modo de
acessar o conteúdo referente ao patrimônio cultural e a memória através da mídia digital; a virtualização – modo de converter o conteúdo referente ao patrimônio cultural e por fim, os sistemas – modo de
organizar a informação referente ao patrimônio cultural.
A comunicação, no que se refere à digitalização e disponibilização de bens culturais, é compreendida de duas formas – a relação usuário-interface computacional, o modo como o conteúdo é
apresentado ao usuário e a relação usuário-tecnologia informacionais, onde dá se o entendimento e o
acesso do código pelo usuário. A virtualização relaciona-se à finalidade da tradução de um bem cultural para o ambiente virtual, facilitando e ampliando seu entendimento. Nesse ambiente virtual, tanto o
patrimônio material quanto o imaterial, utilizam-se, além de textos, de uma série de recursos multimídia, como vídeo, áudio, modelagens tridimensionais, imagens, etc. Segundo Santiago (2007, pág. 73):
“... nunca devemos perder o bem cultural concreto de vista, sem o qual a simulação vir-
71
CENTRO HISTÓRICO DE PORTO ALEGRE – UMA RELAÇÃO ENTRE ARQUITETURA, MÍDIA E HISTÓRIA
tual perderia seu significado, sua alma e seu referencial....”
Os sistemas de comunicação, dada a sua rápida evolução ao longo dos últimos anos, fazem
com que cada vez mais documentos sejam transformados em dados, armazenados em complexas bases de sistemas de montagem da história. Porém, diante de uma quantidade excessiva de informação,
o usuário dessas interfaces da mídia poderia interpretar equivocadamente as particularidades desse
assunto, não dando a devida importância para fatos que necessitam de um olhar mais atento. Dessa
forma, é necessário um pensar sistêmico, que garanta que as informações não apenas se acumulem nas
bases de dados, mas que sejam organizadas de modo a contribuir para a construção do conhecimento.
Diante desta análise, temos que o patrimônio cultural é traduzido ao ambiente virtual, onde
suas informações são filtradas por um ator ⁄ observador, sendo estas informações organizadas em um
mapa, ou seja, a passagem do bem do território (concreto), para o mapa ou sistema (virtual). (Santiago,
2007, pág. 88).
Importante salientar a interface entre saberes e fazeres da educação patrimonial e da educação
para a mídia. A primeira visa conscientizar os indivíduos da importância de seu repertório cultural local, e a segunda, no sentido de ajudar a compreender as novas codificações, imagens, sons, articulação
entre o verbal, o visual e o escrito, bem como as articulações empresariais, comercias e políticas do
complexo de comunicação. A mídia carrega um grande potencial educativo, de mobilização social, de
suporte da memória e de divulgação cultural, que pode ser usado para proporcionar lazer, emocionar,
envolver os sujeitos no sistema cultural que vivenciam diariamente em suas comunidades.
Partindo das definições e dos conceitos anteriormente expostos, passamos a análise da divulgação do centro histórico de Porto Alegre na mídia impressa e na mídia digital. O chamado Centro Histórico de Porto Alegre se caracterizou, ao longo dos últimos anos, como uma identidade a ser vendida,
um marco referencial na capital gaúcha. Essa identidade, para ser vista não somente pela população
local, mas também para ser “exportada” como marco da cidade, necessita de divulgação, para que
possa ser valorizada e atrair as pessoas para o local.
Esta divulgação tem-se dado através de programas como o Monumenta, Cais do Porto, do
Blog Centro Histórico de Porto Alegre (http://centrohistoricodeportoalegre.blogspot.com.br/) e também com o programa Viva o Centro, que leva as pessoas não só da comunidade, mas também de outros lugares do estado, do país e também do exterior, a visitar os principais monumentos e edificações
do centro. Também há a divulgação em sites relacionados à preservação do patrimônio cultural das
ações de preservação no local, além da divulgação destas mesmas ações em jornais da capital, além
de exposições em museus.
As ações do Monumenta, do IPHAN, o principal projeto de revitalização do centro, são divulgadas no site do programa (http://www.monumenta.gov.br/site/?page_id=205), e recentemente foi
lançado um livro com as ações já realizadas pelo Monumenta. Este programa inicialmente elaborou
um levantamento e interpretação do centro histórico, com um conjunto de ações visando democratizar
o acesso ás informações históricas da cidade, contribuindo para a apropriação do patrimônio pelos visitantes e pela população local. Em seguida e este levantamento, começaram as obras de recuperação
de prédios e praças da região central, hoje ainda com obras em andamento. Todavia, o Projeto Viva o
Centro, um plano de governança solidária da área central da cidade, busca tornar o centro um bairro
72
Eder dos Santos Carvalho / Simone Cardoso
de oportunidades para todos, estruturado em três diretrizes básicas: qualificação do espaço urbano,
valorização da imagem pública do Centro e fortalecimento de sua dinâmica funcional.
O fascínio do Centro Histórico se constitui num espaço de encantamento, propiciando uma
ponte entre o passado e o presente, despertando a população para a valorização de sua memória coletiva, aonde ações simbólicas nos conduzem para a magia de épocas não vividas, trazidas até nós
através do elo entre a memória ancestral e o cotidiano atual. Dessa forma, os programas já citados
anteriormente, que buscam revitalizar e valorizar o centro prevêem o uso da interpretação como ferramenta informativa. A interpretação é uma técnica de comunicação contemporânea, usada ao redor
do mundo para apresentar centros históricos, edificações, espaços públicos, sítios arqueológicos e
monumentos. Tem como objetivo tornar acessível aos diferentes tipos de visitantes, a historia, a cultura, o patrimônio material e imaterial, despertar o interesse em conhecer, explorar e refletir, por meio
da evidenciação de detalhes, pistas, significados e relações. Num projeto interpretativo, podem ser
utilizadas como suporte as mídias da museografia, de acordo com as peculiaridades de cada situação,
organizando percursos, visitas guiadas, folhetos, ilustrações, sinalizações, livros, filmes, encenações
e mídia eletrônica.
Ações de divulgação na mídia dos projetos de revitalização da região central estimulam não só
a valorização da memória coletiva, mas também a valorização dos imóveis, a volta das pessoas para
as ruas, para as praças, investimentos em segurança, infraestrutura e equipamentos urbanos.
Conclusão
O centro histórico de uma cidade é o local de encontro, da presença constante de diferentes grupos, habitantes ou em passagem; esses encontros, aliados a polifuncionalidade do local – habitação,
comércio, serviços – faz desse local o coração da cidade. Valorizar e divulgar essas “peculiaridades”
do local é tarefa de planejadores urbanos, conjuntamente com o poder público e a mídia.
Os investimentos particulares nos centros priorizam o retorno econômico ou a valorização da
imagem institucional, ocupando prédios públicos e restringindo o acesso a esses locais (Meneguello,
pág. 4), enquanto os investimentos públicos criam representações falsas de hábitos comunitários. Hábitos e cenas interpretados para os olhos dos transeuntes, por atores que muitas vezes deslocam-se de
grandes distâncias para atingir o centro, “fantasiados” de dançarinos de rua, artesãos, músicos, e com
trajes típicos se deixam fotografar por visitantes. Segundo Meneguello (pág. 4), enquanto os passantes
se divertem com essas interpretações, a outrora população local, que muito contribuiu para manter os
aspectos arquitetônicos do local, é deixada à margem desses eventos.
Experiências como percorrer, olhar, observar e ser observado é a forma que temos de apreender
a cidade e assim reconhecermos a imagem interna que cada um de nós carrega de sua própria cidade.
Cada habitante elenca um rol de lugares em sua memória e os projeta numa situação futura, e segundo
Cuty (pág. 12), nesta mescla de colecionadores de “cidades internas” encontram-se os legisladores,
planejadores e preservacionistas a fim de executar a difícil tarefa de ler tempos e filtrar espaços a
serem preservados, e incluiríamos aqui também a mídia, com seu papel destacado em divulgar estes
espaços para o habitante da cidade e para o turista.
73
CENTRO HISTÓRICO DE PORTO ALEGRE – UMA RELAÇÃO ENTRE ARQUITETURA, MÍDIA E HISTÓRIA
Intervenções pontuais e de preservação do patrimônio material e imaterial superpõem-se para
formar a imagem da cidade, a imagem do bem cultural que vai ser “comprado e observado” pelo turista. Esta imagem á que torna a cidade legível, como acontece em Veneza, com suas pontes e canais, em
Paris, com seus bulevares e em Barcelona, com as grelhas ortogonais do plano urbanístico de Cerdá,
para citarmos alguns exemplos clássicos. Em Porto Alegre, o centro histórico revela a influência estrangeira no traçado de parques e na arquitetura monumental dos prédios públicos, registrando, dessa
forma, o período de imigração alemã e italiana. E é esta imagem multicultural nos prédios e espaços
públicos, que estimula a sociedade a um melhor entendimento na compreensão da origem da cidade.
REFERÊNCIAS
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74
Eder dos Santos Carvalho / Simone Cardoso
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WEIMER, Günter. Origem e evolução das cidades Rio-grandenses. Porto Alegre: Livraria do Arquiteto, 2004. 223 p. ISBN 85-87455-58-3.
* Eder dos Santos Carvalho - Estudante de Arquitetura e Urbanismo - UNISC – Universidade
de Santa Cruz do Sul – RS
** Simone Cardoso - Jornalista, DRT 15990, Prefeitura Municipal de Encruzilhada do Sul –
Encruzilhada do Sul – RS
75
PLANO MUSEOLÓGICO E ESTRATÉGIAS DE SUSTENTABILIDADE PARA MUSEUS:
ESTUDO DE CASO – O MUSEU HISTÓRICO MUNICIPAL DE DOIS IRMÃOS,
RIO GRANDE DO SUL, BRASIL
Andréa Cogan *
Os museus há muito deixaram de ser considerados locais estagnados, destinados a guardar
“coisas velhas”. Segundo Gonçalves (2005, p.8), o “campo de atuação da instituição museu renovouse no decorrer dos anos e tornou-se muito mais amplo, desenvolvendo, principalmente a partir da
segunda metade do século XX, mecanismos de aproximação com a sociedade”.
A relação entre os museus e as cidades nas quais estão instalados não obedece a regras, fórmulas ou preceitos. O tamanho da cidade, o número de habitantes, as opções de lazer e cultura, por um
lado, e os museus e suas especificidades, por outro lado, estabelecem uma dinâmica que está constantemente mudando, de visitação e até mesmo de aceitação. (VALENTE, 2003). Isso ocorre porque,
em sua quase totalidade, os museus foram criados por mecanismos alheios aos interesses das comunidades, as quais nem foram participes de suas concepções. À exceção dos museus comunitários e dos
ecomuseus, nos quais a preservação da identidade coletiva é uma necessidade da própria comunidade,
a prática da criação dos museus é muitas vezes dissociada do local no qual se inserem.
Apesar de todos os problemas e descaminhos ainda enfrentados, os museus, independentemente de sua tipologia, não podem ser desprezados por aqueles que falam em preservação, em gestão, em
globalização cultural, economia em museus e sustentabilidade. Para cada uma destas esferas, comuns
aos dilemas contemporâneos, os museus têm implicações e responsabilidades muito definidas.
No caso específico deste trabalho, o interesse pela temática de gestão, plano estratégico e
museológico com sustentabilidade esteve sempre relacionado à missão institucional e fez com que
centrássemos os estudos no Museu Histórico Municipal de Dois Irmãos (MHMDI) localizado no Rio
Grande do Sul que, desde sua fundação, percebia a necessidade da valorização e resgate da cultura
local.
O MHMDI foi criado em 03 de junho de 1989, contemplando uma tipologia de museu histórico
local, mantido pela Prefeitura Municipal, desde sua inauguração, trabalhando dentro de uma filosofia
embasada nos princípios da Nova Museologia, realizando trabalhos convencionais a uma instituição
do gênero. Para este trabalho, partiu-se da hipótese que o museu municipal da cidade de Dois Irmãos,
como museu histórico em um contexto local podia proporcionar benefícios a todos os segmentos da
sociedade em que está inserido, associados ao desenvolvimento de projetos educativos socioculturais.
O grande desafio estava em propor estratégias para que o museu pudesse inserir a comunidade dentro
dele e buscasse estabelecer mecanismos para que este efetivamente colaborasse para o desenvolvimento sócio cultural dessa comunidade.
PLANO MUSEOLÓGICO E ESTRATÉGIAS DE SUSTENTABILIDADE PARA MUSEUS
Metodologia
A metodologia envolveu, em um primeiro momento, revisão bibliográfica e outras fontes disponíveis (relatórios de atividades, visita ao museu, consulta ao Departamento Municipal de Cultura),
direcionados para a conceituação e definição do papel histórico do Museu; identificação dos problemas e dificuldades de recursos, incluídos os financeiros, enfrentados pelo Museu e identificação de
formas de sustentabilidade do Museu, compatível com a sua missão. Em um segundo momento, nos
dedicamos à realização de diagnóstico e análise dos problemas e dificuldades enfrentados pelo MHMDI para o cumprimento da sua respectiva missão. E, num terceiro momento, resultou na proposição
e organização de Plano Museológico e Estratégico para o MHMDI, tomando como orientação a Lei
11.904 de 2009 que instituiu o Estatuto dos Museus, mais especificamente, os artigos 44 a 47 - dedicados ao Plano Museológico - e a Portaria Normativa nº1/2006 do Ministério da Cultura, que dispõe
sobre a elaboração do Plano Museológico dos Museus do IPHAN.
Para um diagnostico museológico objetivo partimos do registro da realidade do MHMDI (aspectos internos e externos), abarcando indicadores de todas as áreas de funcionamento, institucional,
espaço físico e instalações, acervo, segurança, atividades e público, realizamos uma análise DAFO
(Debilidades, Ameaças, Fortalezas, Oportunidades), ou seja, analisamos os Pontos Fortes, Pontos Fracos, Oportunidades e Ameaças – sendo as questões organizadas em assuntos internos (fortalezas e
debilidades) e externos (oportunidades e ameaças). (FERRELL, 2000).
Sistematizadas e interpretadas, as informações consubstanciaram o diagnóstico da instituição,
documento que evidenciou suas fragilidades e seus pontos fortes, embasando as demais etapas do Plano. O diagnóstico seguiu eixos ou roteiros específicos de análise que se articularam com os programas,
dando sustentação aos projetos e ações dos programas constituídos no Plano Museológico1.
Partimos da idéia da memória como construção e do museu como locus privilegiado de institucionalização destas memórias. Para tanto, o diagnóstico museológico realizado foi pensado como uma
análise global e prospectiva da instituição. Nosso interesse era a instituição como um todo, portanto,
este diagnóstico buscou contemplar diferentes aspectos que auxiliassem na construção do Plano Museológico e Estratégico do MHMDI de acordo com a sua realidade e a da comunidade envolvida. Para
tanto tomamos como base o resultado das entrevistas, a partir da aplicação dos formulários específicos
para cada categoria de entrevistado2.
O diagnóstico da situação incluiu aspectos internos e externos ao museu. Foi necessário iniciar
o diagnóstico interno procurando identificar quais pareciam ser os problemas básicos que o museu enfrentava. Procuramos para esta análise envolver o maior número possível de pessoas, ou seja, a equipe
interna do MHMDI, principalmente.
1
Segundo o Art.3º da Portaria Normativa nº1/2006 do Ministério da Cultura, a elaboração do Plano Museológico baseiase em diagnóstico completo da instituição, levando em conta os pontos fortes e frágeis, as ameaças e oportunidades, os
aspectos socioculturais, políticos, técnicos, administrativos e econômicos pertinentes à atuação do museu.
2
Foram realizadas 30 (trinta) entrevistas, no período dezembro de 2011 a janeiro de 2012, com empregados/
funcionários, colaboradores, direção, num total de 07 (sete) entrevistados, com moradores do município de Dois Irmãos
e/ou eventualmente pessoas moradoras de municípios vizinhos, visitantes e representantes de diferentes segmentos da
comunidade, num total de 10 (dez) entrevistados, e representantes do comércio/indústria da comunidade, num total de 13
(treze) entrevistados. Cada entrevistado preencheu, previamente, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE,
Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Unilasalle (Processo nº 11/065).
78
Andréa Cogan
A Construção do Plano Museológico e Estratégico para o MHMDI
A DAFO mostrou-se como uma ferramenta analítica poderosa que em geral, possibilitou um
exame minucioso quanto ao desempenho do museu na atualidade e o que ele será capaz de fazer no
futuro (diagnóstico interno). Assim sendo, o diagnóstico, por princípio, não pode ser muito extenso,
fizemos um esforço de síntese, sendo que todas estas informações subsidiaram a formulação de estratégias para o plano museológico.
No caso do MHMDI, propusemos a implantação de um plano museológico com possibilidades
de sustentabilidade, observando os resultados obtidos através do diagnóstico que serviu de base para
a construção do Plano. O roteiro de diagnóstico tratou das seguintes questões: Institucional (dispositivos institucionais de organização e gestão, organograma, quadro funcional, dispositivos institucionais
de administração e finanças), espaço físico e instalações, acervo (gestão e controle do acervo e armazenamento e conservação), segurança (recursos humanos e equipamentos e medidas de segurança),
atividades, público e Técnica DAFO.
O diagnóstico serviu como base para a estruturação do Projeto de Sustentabilidade Institucional e foi pensado com base nos princípios da sustentabilidade, ou seja, a criação de atividades que
abrangessem aspectos culturais, sociais e econômicos, associados à missão do museu garantindo a
dignidade e a manutenção do MHMDI.
Para efeitos de enquadramento da reflexão sobre a aplicação do conceito de sustentabilidade
para os museus e ainda sobre o papel destes para um desenvolvimento sustentável, quatro componentes ou pilares da sustentabilidade foram usados nesse trabalho. Essas quatro dimensões da sustentabilidade - a ecológica/ambiental, a social, a econômica e a cultural - foram de forma integrada e ativadas
através da participação das pessoas - individualmente ou enquanto membros de uma comunidade.
No caso do MHMDI, trabalhamos com um Projeto em que o museu pudesse checar se estava
atingindo suas metas, seguindo sua missão e satisfazendo suas funções junto à sociedade/comunidade.
O foco do MHMDI estaria em mostrar a história de Dois Irmãos, visando integrar a comunidade ao Museu com um trabalho de resgate da identidade cultural e da valorização da história dos
imigrantes alemães, que a partir de 1825, chegaram à cidade. Assim, um questionamento sempre foi
feito, voltado naturalmente à missão deste Museu: como abordar as questões sociais, econômicas,
ambientais e culturais relacionadas com o tema da sustentabilidade de forma a contribuir para o esclarecimento e a educação do público que visita o Museu e da equipe responsável por sua gestão?
Ao pensarmos um projeto sustentável, não poderíamos deixar de pensar nos pilares da sustentabilidade, isto é, “como conquistar público cativo, recursos financeiros de longo prazo e marca
reconhecida.” (OLIVIERI e NATALE, 2010, p. 153).
Falarmos de sustentabilidade para instituições museológicas é falarmos de uma racionalização
da gestão que possibilite uma redução da ineficiência administrativa e do desperdício de recursos,
contribuindo para a construção dessa sustentabilidade, fundamental para atravessar os momentos de
boa fase econômica, mas particularmente os de crise. Entendemos aqui a sustentabilidade numa perspectiva não só financeira (econômica), mas integrada com outras dimensões de sustentabilidade como
79
PLANO MUSEOLÓGICO E ESTRATÉGIAS DE SUSTENTABILIDADE PARA MUSEUS
ecológica/ambiental, a social e a cultural - ancorada num modelo democrático de gestão.
O primeiro passo foi pensar em profissionalizar a estrutura interna com capacidade e mandato
para construir sustentabilidade. Mas para isto, a estrutura precisaria estar apta a responder ao novo
contexto do setor museológico e gerar o real desenvolvimento institucional almejado pela instituição.
Sabemos, que as estruturas internas de organizações culturais, como os museus, não se desenvolveram
de forma favorável a sua sustentabilidade. As novas demandas que hoje aparecem, precisam ser lideradas por gestores de dentro da instituição que compreendem suas complexidades e potencialidades.
Assim, a nossa proposta de instituição sustentável contem necessariamente a contribuição de
três elementos fundamentais: ter um projeto de futuro, ter competência para realizá-lo e ter credibilidade para garanti-lo.
Ter um projeto significava que a instituição deverá dispor de um plano estratégico, no qual
seja explicitado o seu rumo futuro, através do estabelecimento de uma missão, objetivos e diretrizes
claramente definidas e ajustadas às mudanças do ambiente externo.
Ter competência significava que a instituição deverá construir, em seu ambiente interno, as
condições indispensáveis à plena operacionalização de seu projeto institucional. Inclua-se, entre essas
condições, não só o aperfeiçoamento de sua capacidade técnica (atividades-fins), como também a modernização de sua capacidade organizacional, administrativa e estrutural (atividades-meios).
Ter credibilidade significa que a instituição deverá manter elevado seu nível de aceitação junto
à principal clientela, aos parceiros e aos segmentos da sociedade, estes últimos beneficiários finais.
Este comprometimento permitirá que esta credibilidade seja traduzida em apoio institucional e financeiro, que garanta a continuidade da execução das suas atividades.
Pensamos a gestão do MHMDI encima de cinco campos de atuação e desenvolvimento: sociedade, serviços, recursos, pessoas e direção.
A relação entre todos esses campos possibilitaria esclarecer a missão, os valores, a visão de
futuro, as estratégias, os objetivos, as metas e os programas do Museu. Fica claro, portanto, que a
missão do museu terá que ser revista periodicamente. Porque assim como a sociedade muda, as expectativas e condições das pessoas também mudam, interna e externamente. Não é necessário mudar
permanentemente. Apenas rever-se e repensar-se de tempos em tempos para seguir adiante consciente
da direção que está sendo tomada.
Visando apresentar sugestões de melhorias para o MHMDI, na área de Gestão, procuramos
elencar alguns aspectos a serem trabalhados pelo Projeto de Sustentabilidade Institucional. A gestão
de pessoas, a satisfação do público, os redesenhos dos processos, a clareza da missão e perspectiva
de futuro, o trabalho em equipe e compromisso coletivo, a criatividade e inovação e o aprimoramento
contínuo.
A gestão de pessoas no sentido de pensar em qualidade que o Museu oferecerá em seus serviços. Pensar no atendimento das necessidades e expectativas do público interno e externo. Só que é
praticamente impossível, atender às expectativas do público externo sem satisfazer as necessidades do
80
Andréa Cogan
público interno. Segundo Barçante e Castro (1995, p. 20), “ao ouvir a voz do público interno, ou seja,
dos funcionários, a empresa (no caso, o museu) estará tratando-o como um aliado e não só como um
mero cumpridor de ordens, estará vendo que dele dependem os seus bons resultados.” (BARÇANTE
e CASTRO, 1995).
A satisfação do público no sentido de que somente os funcionários que são bem tratados dedicar-se-ão a esta tarefa, nada fácil, de conquistar o público externo.
Os redesenhos dos processos no sentido de racionalizar os sistemas produtivos e administrativos; sensibilizar as pessoas para a mudança de postura e para que não haja a resistência às mudanças.
A clareza da missão e perspectiva de futuro no sentido de que todos devem conhecer claramente a missão do museu; isto fará com que as prioridades sejam estabelecidas e cumpridas e que não se
gastará tempo com trabalhos inócuos para a instituição.
O trabalho em equipe e compromisso coletivo no sentido de que quando o museu se preocupa
com o bem estar dos funcionários, o compromisso deles aumenta, bem como sua motivação para dar
o melhor de si para o sucesso da instituição.
A criatividade e inovação no sentido de que a área diretiva deverá prover algum programa que
contemple a motivação, que influencie diretamente na capacidade de criação.
O aprimoramento contínuo no sentido de que a área diretiva deverá propiciar as condições
necessárias para capacitação e qualificação continuada do público interno do Museu.
Nos museus públicos, em que a estabilidade no emprego, a mudança freqüente das lideranças,
entre outras variáveis, podem afetar muito o desempenho das equipes, algumas práticas podem ser
determinantes para implementar a motivação e o senso de equipe. Não se pode falar em motivação,
sem se falar da teoria da “hierarquia das necessidades”, formulada por Abraham Maslow (1908-1970)
psicólogo americano, considerando o pai do humanismo na psicologia. De acordo com esta teoria, o
ser humano possui diversas necessidades que podem ser separadas em categorias hierarquizadas. Para
motivar uma pessoa, você deve identificar qual é a categoria mais baixa na qual ela tem uma necessidade, e suprir esta necessidade antes de pensar em outras categorias mais altas.
Com o objetivo de poder ser melhor entendido, acessível e prático a quem se destina – o próprio MHMDI e as instâncias administrativas ao qual encontra-se vinculado - a “Proposta do Plano
Estratégico e Museológico para o MHMDI” foi organizado na forma de uma Manual eletrônico
disponibilizado em DVD.
Partimos para um Projeto que pensasse a sustentabilidade não só na questão econômica, mas
as questões sociais, ambientais e culturais, levando em consideração alguns aspectos fundamentais
como a valorização da dignidade humana, a promoção da cidadania, o cumprimento da função social,
a valorização e preservação do patrimônio cultural e ambiental, a universalidade do acesso, o respeito,
a valorização à diversidade cultural e o intercâmbio institucional.
Acreditamos que com esse trabalho estamos contribuindo, efetivamente, para que dentro de
uma nova perspectiva de atuação, o Museu possa alcançar um patamar sustentável com o estabeleci81
PLANO MUSEOLÓGICO E ESTRATÉGIAS DE SUSTENTABILIDADE PARA MUSEUS
mento de uma nova postura, por parte dos públicos interno e externo, postura esta predominantemente
prudente do ponto de vista ecológico, igualitária do ponto de vista social, viável do ponto de vista
econômico e plural do ponto de vista político-cultural.
REFERÊNCIAS
BARÇANTE, Luiz Cesar, CASTRO, Guilherme Caldas de. Ouvindo a voz do cliente interno. Rio de
Janeiro: Qualitymark Ed., 1995.
FERRELL, O.C. Estratégia de marketing. São Paulo: Atlas, 2000.
OLIVIERI, Cristiane, NATALE, Edson. Instituições Culturais. In: Guia brasileiro de produção cultural
2010-2011. São Paulo: Edições SESC, 2010.
VALENTE, Maria Esther. A conquista do caráter público do museu. In: GOUVÊA, Guaraciara et
al.(Orgs.). Educação e museu: a construção social do caráter educativo dos museus de ciência. Rio de
Janeiro: Access, 2003.
* Socióloga. Mestre em Memória Social e Bens Culturais (Unilasalle). Especialista em Organização
de Arquivos para Centros de Documentação e Pesquisa pela USP (1997). Especialista em Museologia
e Patrimônio Cultural pela UFRGS. (2003). Professora do Curso Técnico de Guia de Turismo – Faculdades SENAC/RS.
82
PERSONALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA
NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MUSEU CONTEMPORÂNEO
Luciano Alfonso *
Introdução
A partir da leitura do material jornalístico sobre a Fundação Iberê Camargo - FIC1 - buscamos
verificar a preponderância da utilização do fenômeno da personalização, evidenciando-se o funcionamento de um discurso que cria efeitos de sentido mais amplos a partir da notoriedade. Desde logo
é necessário esclarecer que alguns autores2 utilizam a palavra personificação para abordar questões
semelhantes a que vamos discutir aqui. No entanto apostamos no uso do termo personalização por entendermos mais adequado ao sentido do que é investigado no trabalho, ou seja, a questão de personalizar o discurso jornalístico, representar por meio de uma pessoa, pessoalizar. Personificação poderia
remeter a sentidos mais abstratos ou psicológicos.
A verificação da utilização do fenômeno da personalização no discurso sobre a Fundação cria
efeitos de sentido mais amplos a partir da notoriedade e se dá a partir de alguns pressupostos, quais
sejam: 1) o jornalismo é uma esfera do discurso com gêneros, onde o modelo é o da credibilidade; 2)
o jornalismo cultural é um lugar especializado de construção de sentidos sobre a arte; 3) o museu é um
ambiente físico e simbólico de importantes significados sobre a contemporaneidade; 4) o discurso é o
resultado de estratégias narrativas. Assim, considerando que o jornalismo é um discurso que constrói
sentidos sobre a cultura e também que a personalização é uma estratégia discursiva recorrente no jornalismo cultural, buscamos responder que sentidos contemporâneos são construídos sobre arte e sobre
museu por meio desta estratégia.
Por algumas das características, principalmente àquelas ligadas a arquitetura, a museologia e
a economia da cultura, a consolidação de um projeto como a nova sede da Fundação, inaugurada em
2008, pode ser vista como um marco cultural em qualquer parte do mundo. A intenção preponderante
do projeto institucional no entanto é reverenciar e salvaguardar a obra de um dos maiores nomes da
arte brasileira do século XX, de acordo com a crítica especializada3.
Pertencente à geração de pintores que despontou nos anos 40 no Brasil, Iberê Camargo foi
pintor, gravador e desenhista. Nasceu em 1914 na cidade gaúcha de Restinga Seca e morreu, em 1994,
em Porto Alegre. Viveu durante décadas no Rio de Janeiro para onde foi continuar os estudos de pintura em 1942, tendo aulas com mestres como Guignard (de onde surge o grupo com o mesmo nome) e
Goeldi, sempre buscando superar o academicismo. No final da década vai estudar na Europa por dois
anos com nomes como André Lothe, De Chirico e Carlo Petrucci. Participou ao longo da carreira de
1
http://www.iberecamargo.org.br
Johan Galtung e Mari Holmboe Ruge (1999) em capítulo do livro organizado por Nelson Traquina “Jornalismo: Questões, Teorias e
“Estórias” e, também, na obra de Cristina Ponte (2005) “Para entender as notícias: Linhas de análise do discurso jornalístico”.
3
O crítico Ronaldo Brito em livro organizado por Lima (2005) reúne três textos publicados por ele na imprensa brasileira entre os anos
de 1987 e 1994, onde contextualiza a importância de Iberê Camargo na arte brasileira.
2
PERSONALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MUSEU CONTEMPORÂNEO
exposições nacionais e internacionais, sem nunca estar diretamente filiado a movimentos estéticos.
A Fundação Iberê Camargo era um projeto tanto do artista que deu nome à instituição cultural
como de sua viúva, Maria Coussiart Camargo. A FIC foi criada em outubro de 1995, pouco mais de
um ano após a morte de Iberê, tendo o apoio do empresário do ramo do aço e colecionador de arte
Jorge Gerdau Johannpeter. Hoje a instituição, com a nova sede inaugurada em 30 de maio de 2008,
projetada pelo arquiteto português Álvaro Siza – agraciada com o Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza em 2002, além de mérito especial da Trienal de Design de Milão –, é uma referência arquitetônica internacional em termos de museu, sendo capa e tema de reportagens em diversos
países. O projeto foi premiado já em sua concepção e mostrou-se inovador, sob o ponto de vista da
tecnologia utilizada. Neste prédio estão mais de 4.000 obras de Iberê Camargo, das mais 7.000 que
produziu. A instituição funciona também e, principalmente, como um espaço de exposição e reflexão
de arte contemporânea, aberta a atividades com outros acervos e artistas.
O projeto da nova sede tornou-se viável através de uma parceria público-privado com aspectos
de ineditismo na história cultural brasileira, onde além de um terreno doado pelo governo do Estado
do Rio Grande do Sul houve a união de sete patrocinadores centrais4 para bancar o investimento.
Para este trabalho, definimos os primeiros sete meses de 2008 como recorte temporal para coleta do material empírico por tratar-se de um momento significativo que abrange o período anterior e
posterior à inauguração da nova sede da Fundação Iberê Camargo.
Jornalismo versus fato cultural versus sociedade
O cerne desta pesquisa reside na compreensão de que o jornalismo exerce uma importante mediação entre o fato cultural e a sociedade. O que se esboça aqui é uma análise do discurso que circula
nos jornais sobre a Fundação Iberê Camargo, focada no entendimento das perspectivas projetadas pelo
jornalismo sobre a realidade cultural contemporânea, a estética e o sistema artístico-cultural.
O jornalismo emerge de dois princípios de legitimação: o reconhecimento pelos pares e o reconhecimento pela maioria. Além disso, assim como o campo literário ou o campo artístico, o campo
jornalístico é o lugar de uma lógica específica (BOURDIEU, 2006). E é a partir da compreensão dos
modos de produção jornalística, de suas lógicas temporais e de suas funções sociais (FRANCISCATO, 2005) que se pode caracterizar o jornalismo tanto como atividade profissional quanto como instituição.
A notícia ou a informação continua a ser o principal produto do jornalismo e resultado da mediação jornalística ativa, seja de um acontecimento ou de um personagem não-ficcional. É preciso,
então, entender “as notícias como uma ‘construção’ social, o resultado de inúmeras interações entre
diversos agentes sociais” (TRAQUINA, 2005). Este raciocínio objetiva enfatizar que esta pesquisa
está inscrita no paradigma construcionista, que entende as notícias como construções, narrativas, “estórias”. Nele, o jornalismo é visto como produtor de um conhecimento particular sobre os fatos do
4
Grupo Gerdau, Petrobras, RGE, Vonpar, Itaú, De Lage Landen e Instituto Camargo Correa e R$ 40 milhões investidos no projeto: R$
24,3 milhões (60,8%) através de leis de incentivo federal e estadual, e R$ 15,7 milhões (39,2%) dos patrocinadores (ARRUDA, 2008,
p. D1 e D2).
84
Luciano Alfonso
mundo, mas também como lugar de reprodução dos conhecimentos gerados por outras instituições
sociais.
O jornalismo conecta uma multiplicidade de vozes, sentidos e códigos diferenciados, os quais
fazem, fizeram ou passarão a fazer parte do horizonte cultural em que o mesmo se constitui (GADINI,
2007). É neste espaço de construção social da realidade que o discurso jornalístico circula e desempenha suas funções. Conectado ao mundo, o produto jornalístico materializa uma variedade enorme
de fenômenos, desenhando um mapa do universo social de onde são recortados os acontecimentos
noticiados pela mídia.
Já o jornalismo cultural, segundo Golin (GOLIN, 2010), este recorte genérico de cultura que
é apropriado pelo jornalismo em produtos e cadernos especializados ancora-se no uso cotidiano do
vocábulo relacionado à educação, à ilustração e ao refinamento, assim como de aptidões estéticas e
intelectuais, insere-se num quadro mais amplo, que compreende o campo jornalístico como complexo
e pleno de significados no que diz respeito à produção, à circulação e ao consumo de bens simbólicos.
Ciente de que o jornalismo alicerça e constrói a memória simbólica, o jornalismo cultural é o local
fértil para que tudo aquilo que tenha prestígio, ou capital simbólico acumulado, conquiste maior possibilidade de se tornar visível no sistema cultural.
Apesar de ser perceptível uma ligação direta com a agenda do mercado na produção textual
do jornalismo cultural contemporâneo, existem outras lógicas para a circulação de notícias. Uma de
suas características, de acordo com Faro (apud GOLIN, 2009), seria abrigar o trânsito pela avaliação e
análise da produção simbólica capaz de garantir aos periódicos a legitimidade interpretativa, a defesa
do ideário de determinadas escolas e correntes de pensamento, tangenciando a esfera acadêmica, um
universo geralmente constituído por suplementos de jornais diários ou revistas especializadas, constituindo-se naquilo que Faro chama de “plataforma interpretadora”.
A complexidade tanto do campo da cultura como do jornalístico – que trabalha predominantemente sob a dinâmica mercadológica – cada vez mais exige clareza sobre os elementos utilizados pelo
jornalismo para atuar em cada situação em particular. Entre esses recursos, é de grande pertinência
e importância no contexto deste trabalho o tratamento dos fatos culturais a partir do sujeito, a personalização, aspecto que ganhou força ainda maior na pós-modernidade por meio da abordagem de
assuntos sob o viés da autoria. A personalização se soma a outros elementos, como a predominância
nos últimos anos do uso de imagens, pois, como afirma Golin (2010, p. 199), “uma boa visualidade
passa a ser critério de seleção estratégico na editoria de cultura”.
O fenômeno de personalização, segundo Tuchman (2005), é essencial ao processo de noticiabilidade. É através da personalização que a mídia busca atrair o público, pois de acordo com a socióloga
norte-americana, os editores acreditam que os leitores se interessam por pessoas específicas em lugares específicos, com papéis específicos ou associados a tópicos específicos. Isso significa que a mídia
acaba estabelecendo uma espécie de enquadramento onde existem limites de um consenso e de uma
coerência no mundo social. Outros autores, Galtung e Ruge (1999), afirmam que fatores culturais influenciam a transição dos acontecimentos para notícias. Entre eles está a percepção do acontecimento
em termos pessoais, a ação de indivíduos específicos. Esta personalização é resultado de um idealismo
cultural; da necessidade de significado e consequentemente de identificação; do fator-frequência de
85
PERSONALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MUSEU CONTEMPORÂNEO
fixação de pessoas na mídia em relação às estruturas; e de dar uma cara a apresentação das notícias ao
invés de um corpo de entrevistados sobre uma determinada instituição.
Este discurso jornalístico contribui para organizar a vida coletiva. No ato de discurso5 o jornalismo ocupa um lugar privilegiado de produção e circulação de valores e sentidos, por ancorar-se na
noção de credibilidade – em princípio, e na moldura dos diversos discursos midiáticos possíveis. O
relato jornalístico é aquele que busca mais se aproximar da verdade dos fatos, ou, pelo menos, o que
tem esta aproximação como ideal normativo. O jornalismo transforma-se, assim, em um poderoso
ambiente de análise sobre a cultura.
Cultura e Museu na Contemporaneidade
O momento histórico presente trouxe a necessidade de atenção especial às mediações entre
economia e a cultura. Já não cabe à cultura apenas um papel de significação na vida social; ela agora
está além do social, num mapa de interdependências e equilíbrios de poder no campo social, como
especificamente entre os especialistas de bens simbólicos que atuam próximos a especialistas econômicos e políticos. E é nesta complexidade das relações estabelecidas no mundo atual que se deve compreender o momento histórico e cultural em que surge, em Porto Alegre, a Fundação Iberê Camargo. É
um contexto com feições globalizantes, onde modos de produção e circulação da arte também passam
por profundas transformações, entre as quais a construção de grandes equipamentos culturais.
Harvey (2008), utilizando Roland Barthes6 numa reflexão sobre arquitetura e comunicação,
aponta que a cidade deve ser encarada como uma forma discursiva e, consequentemente, como uma
linguagem, que nos cobra uma atenção ao que nos está sendo dito. Isto porque “absorvemos essas
mensagens em meio a todas as outras múltiplas distrações da vida urbana” (HARVEY, 2008, P. 70).
Este raciocínio serve de ponto de partida para delimitar como se configura o campo da arquitetura e
do projeto urbano, a partir do pós-modernismo, onde o museu é um dos espaços mais emblemáticos
desta cultura contemporânea.
O museu como templo da arte é um conceito burguês sacralizado com o modernismo. O museu
sempre foi um acontecimento político, por mais neutra e apoliticamente que se comporte (BELTING,
2006). Vistos como paradigma das atividades culturais contemporâneas, os tipos de museus são hoje
quase ilimitados, o que justificaria que o termo seja usado “indistintamente para elementos de um
conjunto heterogêneo formado por milhares de instituições espalhadas pelo mundo todo, que possuem ou não acervos próprios” (LARA FILHO, 2006, p. 10). Outro aspecto levantado por Belting é
a politização do museu que parte, hoje, de grupos de interesses que atuam internacionalmente sob o
conceito de “intercâmbio cultural”, uma espécie de disputa pelo reconhecimento com base em conceitos curatoriais, na maioria das vezes estabelecidos pelos próprios grupos de interesses.
Huyssen (1997) investiga esta mania pelos museus surgida nos anos 80, que acabou por
5
Resultado da combinação das circunstâncias em que se fala ou escreve com a maneira pela qual se fala, numa imbricação de condições
extradiscursivas e de realizações intradiscursivas que produz sentido. In CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. São Paulo:
Contexto, 2006.
6
Escritor, crítico literário, sociólogo e filósofo francês (1915-1980), Barthes foi um crítico dos conceitos teóricos complexos que
circularam dentro dos centros educativos franceses na década de 50.
86
Luciano Alfonso
recolocar este espaço institucional como de uma verdade canônica e de uma cultura de autoridade. Suas conclusões apontam para três modelos explicativos. O primeiro, centrado na cultura como
compensação, num historicismo expansivo da cultura contemporânea, uma espécie de obsessão pelo
passado, que tem no pensamento de Hermann Lübbe sua matriz explicativa. Segundo o autor, “a modernização é acompanhada pela atrofia de tradições válidas, pela perda da racionalidade e pela entropia das últimas experiências estáveis e reais” (HUYSSEN, 1997, p. 239). Neste sentido, o museu
compensaria a perda de estabilidade. O segundo modelo, defendido pelos franceses Jean Baudrillard
e Henri Pierre Jeudy , fundamenta que a explosão de museus é uma “tentativa da cultura contemporânea de preservar, controlar e dominar o real com o intuito de esconder o fato de que o real está
em agonia devido à expansão da simulação” (HUYSSEN, 1997, p. 245). Já o terceiro modelo é mais
sociológico e crítico, que defende o surgimento de um novo estágio do capitalismo consumista. Segundo esse modelo, a televisão teria despertado na sociedade um desejo irrealizável de experiência e
de acontecimentos que a musealização parece suprir – uma materialidade do artefato exibido que se
opõe à imagem sempre fugaz na tela.
Sperling (2005), ao abordar a cultura contemporânea, ressalta que a arquitetura de performance
– como denomina a arquitetura dos museus contemporâneos – é uma espécie de “resolução apaziguadora das tensões existentes entre as premissas da arquitetura moderna e as proposições formuladas
pela arquitetura pós-moderna”. Uma arquitetura eficaz para a produção de pequenas narrativas para
a reprodução do capital.
Personalização como Estratégia Discursiva
O percurso metodológico desta pesquisa é bastante longo e começa muito antes da definição
do recorte temporal do corpus e do método de análise deste corpus. Havia diversas possibilidades de
estudo da personalização como recurso discursivo. No entanto, foi a figura de Álvaro Siza que possibilitou ir ao cerne do que queríamos debater: as relações entre jornalismo, cultura, arte e museu. A
proeminência adquirida pela arquitetura – ela mesma tomada como arte – no mundo contemporâneo
é incorporada ao jornalismo cultural de tal modo, que articula noções também contemporâneas sobre
o que seja a arte e o que seja o museu. O jornalismo transforma-se, assim, em um poderoso ambiente
de análise sobre a cultura.
Trabalhando o jornalismo como linguagem fizemos a escolha metodológica da Análise de Discurso (AD). Não apenas porque é um método que permite trabalhar com os significados, mas especialmente porque ele se inscreve na mesma raiz paradigmática do interacionismo que norteia nossa
compreensão sobre o jornalismo. Essa relação fica explícita em Mariani (1999):
Se as notícias publicadas trazem na sua constituição textual traços histórico-sociais,
e isso faz parte dos processos de significação, é porque linguagem e história se constituem mutuamente e os sentidos precisam ser pensados na sua historicidade. Os
sentidos não estão presos ao texto nem emanam do sujeito que lê, ao contrário eles
resultam de um processo de inter-ação texto/leitor.
Benetti (2008) enfatiza que os discursos e seus modos de produção podem ser uma maneira
de perceber uma sociedade. No entanto, lembra que estes registros devem ser ponderados de acordo
87
PERSONALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MUSEU CONTEMPORÂNEO
com as formas sociais e históricas que em determinada época ou situação os tornaram possíveis. Este
parâmetro de análise inclui o jornalismo e o debate sobre o contexto em que é produzido.
Para se pensar o jornalismo como um gênero discursivo, a autora aposta no conceito de contrato de comunicação, sistematizado por Charaudeau, a partir de cinco elementos essenciais que devem ser associados às regras do campo jornalístico. “O contrato de comunicação assenta-se sobre
a compreensão dos elementos que constituem um quadro de referência, a moldura onde o discurso
acontecerá”, explica Benetti (2008, p. 39). Sobre os elementos fundamentais são eles:
[...] “quem diz e para quem”, “para quê se diz”, “o que se diz”, “em que condições se diz”
e “como se diz”. Todos estes elementos se misturam em um conjunto que só é possível
dividir sob o aspecto metódico, mas jamais processual. Para pensar o gênero jornalístico, é preciso considerar a totalidade desses elementos”.
O fato de o discurso ser construído de forma intersubjetiva – ele só existe em um espaço entre
sujeitos – exige compreendê-lo como histórico e subordinado aos enquadramentos sociais e culturais.
Este dizer e este interpretar são movimentos de construção de sentidos. Assim, na análise do discurso
jornalístico é necessário perceber o texto como decorrente de um movimento de força exterior e anterior. Se, então, a notícia é entendida como um processo de construção de um acontecimento por meio
da linguagem:
Cabe ao jornalista/enunciador ir ao já acontecido para produzir a notícia, mediando,
assim, os interesses sociais e construindo, pela enunciação, sentidos. Sentidos de vida,
de trabalho, de conflito, de política; fazendo ideologia e mesclando temporalidades
(BENETTI, 2008, p.10)
Berger (1996) faz uso das noções bourdianas de campo, capital e capital simbólico para demonstrar o poder do jornalismo enquanto discurso. É preciso reconhecer o capital simbólico deste
campo, que tem “poder de fazer coisas com palavras”, segundo o próprio Bourdieu. Com a credibilidade como seu mais importante capital, o jornalismo detém privilegiadamente o capital simbólico
na medida em que é da natureza deste campo fazer crer. Esta credibilidade provém da compreensão
social de que o jornalismo é uma prática autorizada a narrar a realidade.
Compreendido isto, se pode afirmar que a realidade é constituída por aquilo que se torna visível
através da mídia. Esta função simbólica, com efeitos normativos, é praticada pela mídia como um todo
e pelo discurso jornalístico em particular.
De outra maneira, o que interessa, à Análise de Discurso, é compreender o funcionamento de
um discurso, ou como este discurso significa. E é exatamente o que buscamos fazer aqui: mais do
que simplesmente localizar os sentidos, desvendar uma estratégia discursiva. A estratégia discursiva,
porém, não é evidente. Ela está recoberta pelos sentidos, e é preciso vasculhar o discurso para trazê-la à luz. Podemos ver uma estratégia por sua recorrência, pelo procedimento analítico que, em AD,
denominamos paráfrase. A paráfrase é a reiteração do mesmo. Um sentido pode ser expresso por
diferentes palavras em diferentes textos, pode ser enunciado por diferentes sujeitos e inscrito em diferentes temporalidades. Ainda assim, ele pode ser repetido, reiterado, reafirmado de forma incessante.
É essa dispersão, ao longo de textos, termos e temporalidades, que constitui a densidade e a força de
permanência deste sentido.
88
Luciano Alfonso
Para este trabalho, mobilizamos dois conceitos importantes da AD: formações discursivas e
paráfrase. Como mostraremos a leitura dos textos apontou que o personagem Siza ancora sentidos
mais amplos sobre arte e sobre museu. Acreditamos que estas Formações Discursivas (FDs) podem
ser encontradas em outros objetos empíricos que tratem do mesmo tema, por meio da personalização
mobilizada por outro personagem.
Foi a terceira seleção de textos que constituiu nosso corpus consolidado, que numeramos –
para fins de sistematização do método – como Texto 1 a Texto 11.
Trazemos, a seguir, os resultados da análise. Optamos por apresentá-los organizados segundo
as formações discursivas predominantes, citando exemplos dos sentidos que localizamos. Assim, os
trechos que ilustram o relato estão sempre indicados com o número do texto [T1, T2 etc.] que lhe
corresponde e com o número da sequencia discursiva [SD1, SD2 etc.] que lhe conferimos no processo
da análise. Por fim, salientamos com negrito as marcas discursivas que permitiam, em nossa leitura, a
filiação daquela sequencia discursiva à formação discursiva em análise.
A Personalização cria sentidos sobre a Arte
“Fazer época é impor sua marca”, diz Pierre Bourdieu (2006, p. 88), em certa altura do ensaio A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Lá, também, ele
enfatiza que
[...] as palavras, nomes de escolas ou de grupos, nomes próprios, só têm tanta importância porque eles fazem as coisas: como sinais distintivos, eles produzem a existência
em um universo em que existir é diferir, “fazer-se um nome”, um nome próprio ou
nome comum (a um grupo).
Este discurso desmistificado do pensador francês com relação aos campos sociais se mostra
mais claro se compreendermos o processo histórico de constituição desta crença, como veremos a
seguir. O entendimento deste universo é essencial para que as categorias elencadas do artista, do
estrangeiro, do profissional e do humano, através da personalização em Siza, possam ser mais bem
visualizadas. Essas quatro categorias são as formações discursivas hegemônicas, as formações que
ancoram os sentidos mais gerais sobre arte no discurso jornalístico que estamos analisando.
Inicialmente podemos demonstrar como se estrutura a formação discursiva do artista. Nos
textos jornalísticos que analisamos os sentidos que consolidam esta formação mostram Siza como
criador, genial, canônico, autoral e detentor de um estilo próprio. É possível observar como esses
sentidos nos remetem a aspectos relacionados a um ideal romântico.
Por outro lado, cada projeto do arquiteto-artista que é o Siza traz uma coisa particular,
individual e escultórica que não se repete e nem se reinventa. [T3, SD39]
A primeira obra de Siza no Brasil é um salto na internacionalização. A obra-prima,
inesperada e jovem, é um museu em Porto Alegre. [T10, SD 96]
Por entre os 1200 convidados para a inauguração da obra que arrancou em 2003, está
Rômulo Afonso. O estudante de Arquitetura em São Paulo quis ver a obra “de um
gênio”. “É único, é histórico. Siza Vieira está ao nível de Niemeyer, é um mito”, contou.
[T10, SD102]
89
PERSONALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MUSEU CONTEMPORÂNEO
Observamos também a construção do sentido do cânone, do produtor de um modelo de beleza
arquitetônica ou valor artístico, aquele que detém uma autoridade, uma assinatura, como diz Bourdieu
(2006, p. 28), que “não é outra coisa senão o poder, reconhecido a alguns, de mobilizar a energia
simbólica produzida pelo funcionamento de todo o campo”.
De fato, o edifício concebido por Álvaro Siza para a Fundação Iberê Camargo, em
Porto Alegre, apresenta qualidades muito altas. Sutileza, sentido plástico dos interiores, silêncio que se associa à calma da formas, acabamento admirável, iluminação
neutra, desenho cuidado de cada detalhe. [T4, SD41]
La nueva sede de La Fundación Ibere Camargo pretende ser, según Siza, “casi una
escultura del expresionismo, con luz, textura, mucho movimiento y con el espacio
cuidadosamente explotado para enriquecer más el contacto con el trabajo del maestro”. 7 [T9 SD85]
A segunda formação discursiva que sobressai nos textos jornalísticos analisados é aquela que
traz Siza a partir da identidade portuguesa ou como um arquiteto internacional. O estrangeiro.
A imagem do estrangeiro ou do sujeito que transita entre várias nações, o internacional, já nos
foi traçada principalmente pela literatura e, na contemporaneidade, em grande parte nos é formatada
pelo jornalismo ou pelos meios de comunicação. A soma histórica desta identidade agregada a novas
impressões oferecidas no dia-a-dia em cada cultura nos permite a reprodução de estereótipos sobre
como é ser brasileiro, português, francês e assim por diante.
No jornalismo, é comum que a origem de um personagem ajude a identificá-lo. No caso dos
textos sobre a Fundação Iberê Camargo, porém, vemos a presença constante desta adjetivação, nem
sempre necessária. É dentro desta perspectiva identitária que observamos os sentidos sobre o estrangeiro, como nos exemplos a seguir:
Fundação dedicada a divulgar e preservar a obra do pintor brasileiro ganha sede em
Porto Alegre, projetada pelo premiado arquiteto português Álvaro Siza. [T1, SD1]
Percebemos, então, que era preciso buscar um arquiteto com experiência internacional na elaboração de um museu, com conhecimento da melhor tecnologia de preservação e exposição. [T2, SD15]
Também é possível pensar a identidade como uma relação social que, como diz Silva (2000),
está sujeita a relações de poder e força:
Vencedor do Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza em 2002, é tido, já há
algum tempo, como um grande projeto do português Álvaro Siza. [T2, SD19]
A presença de um arquiteto internacional de prestígio como Álvaro Siza no meio
brasileiro, muito fechado sobre si, é ruptura importante, estimulante e positiva. [T4,
SD40]
Como parte da estratégia de personalização, uma formação discursiva hegemônica é a que
constrói sentidos em torno da competência do profissional. Nessa formação, destaca-se a noção do
arquiteto fartamente premiado.
Vejamos, a seguir, como é perceptível, em sequencias discursivas, o sentido dado ao papel de
7
A nova sede da Fundação Iberê Camargo pretende ser, segundo Siza, “quase uma escultura do expressionismo, com luz, textura, muito
movimento e com o espaço cuidadosamente explorado para enriquecer mais o contato com o trabalho do mestre”. [tradução nossa]
90
Luciano Alfonso
Siza como arquiteto singular, distinto, muito acima da média dos profissionais do campo e capaz de
idealizar projetos singulares:
Avesso a exibicionismos tecnológicos e preocupado em dialogar com os diversos contextos nos quais as suas obras se implantam (as peculiaridades do terreno, a tradição
construtiva local, a história), Siza é considerado o expoente destacado de uma corrente que se chamou de “regionalismo crítico”. Corrente de arquitetos empenhados
em recuperar tradições culturais locais e idiossincráticas – normalmente artesanais
-, ameaçadas de desaparecimento pelo impacto de uma globalização niveladora. Suas
intervenções, portanto, são discretas e respeitosas. [T2, SD20]
El arquitecto portugués Álvaro Siza es todo un referente.8 [T11, SD116]
A seguir, trazemos exemplos de sequencias discursivas que enaltecem as qualidades do profissional Álvaro Siza, algumas com sentidos específicos, como as que se referem à experiência como
arquiteto de museus:
Antes da primeira lista de arquitetos, uma pessoa do conselho da fundação sugeriu
o nome do brasileiro Oscar Niemeyer, mas como diz Justo Werlang, mais de uma
década atrás a idéia era chamar um profissional que tivesse experiência ampla com
construções de museus, o que não ocorria na cena brasileira. [T1, SD5]
O arquiteto português venceu a competição e recebeu total apoio da viúva do artista,
a presidente de honra da Fundação Iberê Camargo, Maria Coussirat Camargo. Os
projetos do Museu de Arte Contemporânea de Santiago de Compostela, na Espanha,
e o Museu de Serralves no Porto, em Portugal, credenciaram-no para tal missão, mas
ele releva jamais ter conhecido os trabalhos dos outros concorrentes da competição.
[T3, SD31]
O desempenho profissional de Siza dá sentido ao reconhecimento de seus pares, assim como
lhe confere um estilo peculiar, enaltecido e caracterizado nos textos jornalísticos, como no exemplo:
Pero el concepto y la estética de la obra no solo respetan las bases del movimiento,
también refleja la marca de Siza. Por ejemplo, la textura y la imagen dinámica se parecen a las del Museo Serralves em Oporto, y al Centro Gallego de Arte Contemporánea
en Santiago de Compostela.9 [T9, SD86]
Além dos sentidos produzidos a partir do profissional Álvaro Siza, há outras características e
fases da rotina de trabalho do arquiteto que estão presentes em praticamente todos os textos examinados, retratando-o positivamente. São peculiaridades que vão além da figura do arquiteto, chegando a
algo mais essencial como indivíduo obsessivo, detalhista, minucioso e centralizador:
Álvaro Siza cuidou de todos os detalhes do projeto, até mesmo desenhou o mobiliário
da sede da Fundação Iberê Camargo. [T1, SD6]
Outro motivo de “pânico” era a presença constante de Siza na construção, materializada no desenho de cada detalhe. “Ele traçou até os encaixes das pedras”, diz o engenheiro. Mas, como salienta Canal, a harmonia entre projeto e obra, entre equipe e
projetista, entre cliente e executor acabou acontecendo. [T7, SD70]
Os textos também conferem exclusivamente a Siza todas as atividades de criação do novo
prédio da FIC, construindo um discurso que relata praticamente todos os processos do projeto da
8
O arquiteto português Álvaro Siza é uma referência completa. [tradução nossa]
Mas o conceito e estética da obra só respeitam as bases do movimento, também reflete a marca Siza. Por exemplo, textura e imagem
dinâmica semelhante ao Museu de Serralves em Porto, e o Centro Galego de Arte Contemporânea em Santiago de Compostela. [tradução
nossa]
9
91
PERSONALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MUSEU CONTEMPORÂNEO
Fundação unicamente a partir do arquiteto, personalizado, como se pode observar nestas sequencias
discursivas:
Como a obra de Iberê Camargo é extensa e variada, Siza Vieira pensou em um espaço
que possibilitasse mostras de diferentes abordagens. O arquiteto optou por flexibilidade de uso, sem diferenciar os ambientes destinados a exposições temporárias e
permanentes. [T3, SD33]
Seguindo o modelo do Guggenheim de Wright, Siza Vieira lançou mão de um sistema
de rampas contínuas que percorre o volume de cima a baixo. [T3, SD35]
A última formação discursiva hegemônica que localizamos neste quadro em que a personalização serve de veículo de construção de sentidos para a arte, é a centralização na figura humana. O
arquiteto é retratado como um sujeito de sua época, preocupado com questões que dizem respeito ao
multiculturalismo, ao meio ambiente e, também, avesso à notoriedade, simples no jeito de ser e agir.
O aspecto humano pode ser observado nas sequencias discursivas que seguem:
A proposta de Siza respeitou a paisagem, conquistando gaúchos e agregados. [T3,
SD34]
Desde 1975 hasta hoy, sus proyectos se han mostrado en instituciones de arte del
mundo entero y su trayectoria ha sido reconocida y premiada en numerosas ocasiones. En Porto Alegre, ciudad que acoge uno de sus últimos proyectos – la Fundação
Iberê Camargo -, nos encontramos con el arquitecto portugués. Amable, conversador,
con un discurso pausado y nada teorizante, mezcla crítica y amenidad, e inspira complicidad con sus palabras.10 [T8, SD 80]
A Personalização cria sentidos sobre o Museu
Agora refletimos sobre a estratégia discursiva de personalização – novamente a partir da ancoragem em Siza – para criar sentidos não sobre o personagem, e sim sobre o museu. Percebe-se que a
maioria das sequencias discursivas surge numa projeção do autor pela obra e vice-versa.
O final do século XX marca o retorno do museu como instituição de uma verdade canônica e
de uma cultura da autoridade. Esta aura que a arte traz consigo também tem sido levada em conta no
planejamento de novos museus, principalmente daqueles edifícios assinados por grandes arquitetos. A
chamada arquitetura de marca agrega autenticidade, singularidade e outras distinções.
Assim, uma instituição cultural como a Fundação Iberê Camargo, idealizada por um arquiteto
com a marca da distinção como Álvaro Siza, eleva o capital simbólico da sociedade porto-alegrense,
do Estado e mesmo do país, além de aumentar marcos de distinção já existentes. Nossa análise localizou 15 sequencias discursivas sobre o museu. Duas formações podem ser percebidas mais claramente:
a que cria sentidos sobre o museu-edifício como uma verdadeira obra de arte e a que vê ligações entre
a edificação e o contexto social, numa dinâmica de organicidade. As seções a seguir apresentam estas
formações.
O espaço da arquitetura com frequência acaba tendo uma inter-relação com o da arte.
10
Desde 1975 até hoje, seus projetos têm sido mostrados em instituições de arte em todo o mundo e sua carreira tem sido reconhecida
e premiada diversas vezes. Em Porto Alegre, uma cidade que hospeda um dos seus mais recentes projetos - a Fundação Iberê Camargo encontramos com o arquiteto português. Amável, conversador, com um discurso pausado e nada teorizante, mistura crítica e amenidade,
e inspira cumplicidade com suas palavras. [tradução nossa]
92
Luciano Alfonso
A intenção de desfrutar da experiência estética, a partir da arquitetura do museu, tão presente nas últimas décadas, pode ser percebida em sequencias discursivas a seguir:
Na Avenida Padre Cacique, em Porto Alegre, às margens do Rio Guaíba, a sede é o
primeiro projeto de Siza no Brasil. A geometria irregular marcante é desafiadora e ao
mesmo tempo fluida, sua organização de planos e linhas curvas e angulares, exalam
pitadas de diferentes influências: Frank Lloyd Wright, Mies Van der Rohe e Le Corbusier [T5, SD44].
Marco, fortaleza, passadiço, recipiente, mirante, máquina de contemplação e transformação, dispositivo de meditação e mediação, o museu de Siza vivifica a interação de
cidade e geografia – enquanto reafirma o valor da tradição arquitetônica culta, com
nada de saudade e carradas de caráter. Penhorada, a cidade já sorri [T7, SD74].
Outra característica observada em boa parte dos projetos de novos museus, mundo afora, é
pensá-los a partir de um todo social ou da natureza em especial. A relação dialética com a natureza
parte da ideia de que os edifícios influenciam profundamente as pessoas que neles residem ou trabalham, sendo o arquiteto um agente social que modela os indivíduos.
Esta linha de pensamento ou atuação de Siza é perceptível em diversas sequencias discursivas
analisadas, como algumas que listamos a seguir:
O prédio se insere numa encosta exuberante, que não devia ser tocada pela construção. Há um diálogo entre a natureza e a construção, que se relacionam mas não se
tocam [T1, SD11].
En su primera obra en Brasil, Siza construyó sobre una colina pero, en lugar de sacar
más volúmenes sobre la montaña, ubicó parte del edificio bajo tierra11 [T9, SD90].
Considerações Finais
Independentemente de qualquer julgamento já feito ou que venha a ocorrer sobre as qualidades
da produção artística de Iberê, a universalidade almejada pelo artista vem se consolidando, principalmente através do jornalismo. Não apenas a partir de suas obras, mas muito através da emblemática
edificação da nova sede da Fundação Iberê Camargo, projetada pelo arquiteto português Álvaro Siza,
e do discurso jornalístico em torno dela. Não se trata apenas da concretização de um sonho do artista em preservar sua produção ou de mais um exemplo bem-sucedido de construção. Por diversos
aspectos que levantamos neste trabalho, como valor simbólico, ineditismo e viabilidade econômica
do projeto – e outros aqui não estudados – a viabilização de um edifício-museu dentro dos moldes
idealizados por nosso mundo globalizado é vista como um acontecimento cultural ao sul do Equador.
A partir desses pressupostos, a nossa proposta de análise se inseriu dentro do processo complexo de
que é feita a vida urbana na sociedade da pós-modernidade e que a cada dia necessita de mais estudos
na busca de interpretá-la melhor.
No caso do projeto e edificação da nova sede da Fundação Iberê Camargo e no período que
examinamos o fenômeno da personalização no jornalismo impresso, ela se dá, majoritariamente, sob
a imagem de Siza. Um processo que nos fez refletir também sobre outros personagens envolvidos que
11
Em sua primeira obra no Brasil, Siza construiu sobre uma colina, mas em lugar de tirar mais volumes sobre a montanha, pôs parte do
edifício embaixo da terra. [tradução nossa]
93
PERSONALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MUSEU CONTEMPORÂNEO
foram deixados à margem ou esquecidos, como, por exemplo, outros arquitetos capazes de idealizar
obra semelhante à de Siza, patrocinadores e seus interesses na FIC, assim como dar voz a outros representantes ligados a aspectos determinantes do novo equipamento cultural tanto da cidade de Porto
Alegre, como do Brasil ou mesmo do sistema de arte como um todo. Personalizando o discurso jornalístico acabamos por ter uma opinião focada, uma espécie de porta-voz da fala sobre determinado
tema. Trabalhando por meio da autoria, o jornalismo cultural une obra e artista como algo inseparável.
Este discurso é seletivo nos fatos e organizador do pensamento social, por isto a tentativa foi de compreendê-lo no contexto histórico e a partir de enquadramentos sociais e culturais por que passa em
nossos dias.
Assim, entendemos que tornamos mais evidente que a realidade na maioria das situações é
constituída por aquilo que se torna visível através da mídia ou destacado por ela. Ou seja, dando grande visibilidade a determinados fatos ou pessoas, o jornalismo se mostra como um elemento criador
importante do campo cultural na contemporaneidade, embora se saiba que este perpassa outros campos da vida social.
Através das análises realizadas concluímos que a personalização constrói formações discursivas predominantes sobre arte e museu. Sobre arte, quatro sentidos são destacados: o sentido do
“artista” que consolida Siza como criador, genial, canônico, autoral e detentor de um estilo próprio,
resultado de gestos individuais e solitários; “o estrangeiro”, uma identidade que permite a reprodução
de estereótipos sobre como é ser português no caso do arquiteto, agregando valores positivos que
passam pela supremacia cultural, numa visão eurocêntrica que provoca sedução, veneração e respeito;
“o profissional”, sentido dado ao papel de Siza como de arquiteto distinto, muito acima da média dos
profissionais do campo e capaz de idealizar projetos singulares; e “o humano”, onde Siza é retratado
de maneira quase que inversa a todo o restante do discurso proposto, uma visão de um sujeito avesso
à notoriedade, próximo a qualquer indivíduo.
Chegamos também às formações discursivas hegemônicas a outros dois sentidos predominantes relacionados à imagem de museu: o museu como espaço, visto sob a ótica da arquitetura como uma
“obra de arte”, uma experiência estética; e o museu “orgânico” , que estabelece sentidos de integração
entre o ambiente e a arquitetura, numa visão mais humanizada e que leva em conta, por exemplo,
conquistas tecnológicas.
Constatadas estas formações discursivas hegemônicas é possível reafirmar que o jornalismo
prefere cada vez mais, ao invés de abordar os acontecimentos como o resultado de determinadas forças sociais, utilizar-se da ideia da personalização. Se por um lado facilita o trabalho jornalístico no
sentido prático de coleta e apresentação de uma notícia, por outro lado os argumentos referentes ao
todo quase sempre se perdem. Na maioria dos casos uma interpretação mais estrutural da sociedade
ou do tema acaba por não ocorrer.
94
Luciano Alfonso
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Luciano Alfonso *. Doutorando em Comunicação e Informação pelo Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2010).
96
CINEMAS DO MERCOSUL: POLÍTICAS DE INCENTIVO, COPRODUÇÕES E
IDENTIDADE CULTURAL.
Rosângela Fachel de Medeiros *
Ao falarmos em Cinemas do Mercosul estamos identificando as produções cinematográficas
da região a partir do reconhecimento de um acordo geopolítico e econômico, o Tratado de Assunção,
firmado em 1991, que criou o Mercado Comum do Sul – MERCOSUL. Proposta de integração econômica entre os países do sul: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, que tem como propósito “promover
o desenvolvimento cientifico e tecnológico dos Estados Partes e de modernizar suas economias para
ampliar a oferta e a qualidade dos bens de serviço disponíveis, a fim de melhorar as condições de vida
de seus habitantes”.1
E ao declaramos a existência de Cinemas Mercosulinos estamos participando na instituição de
uma auto-representação simbólica da região e na geração de um sentimento de pertencimento regional. Pois o cinema, enquanto constructo cultural, que se constitui na articulação entre o hollywoodiano
(popular) e o artístico, o comercial e o cultural, o global e o local, o nacional e o transnacional, pode
ser ao mesmo tempo ferramenta e resultado da integração econômica, política e cultural da região. E
o desejo de desenvolver e promover a produção cinematográfica do Mercosul está arraigado a questões econômico-culturais que visam propiciar a estes cinemas condições de enfrentar a hegemonia
hollywoodiana que domina as salas de exibição da região e que, por conseguinte, colonizam o imaginário dos espectadores mercosulinos.
Neste contexto, são reconhecidos como Cinemas do Mercosul aqueles produzidos pelos países
Membros: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela; e países Associados: Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru. Os cinemas mercosulinos abarcam então os cinemas nacionais e transnacionais da região e estão também abarcados no âmbito dos cinemas americanos, latino-americanos, sul-americanos e ibero-americanos. Estes cinemas articulam assim várias instâncias políticas, econômicas,
culturais e identitárias (nacionais, regionais, lingüísticas) sendo por essência híbridos e transculturais.2
E esta autoafirmação mercosulina instaura uma nova condição identitária forjada a partir de um contexto econômico e político que reconstrói o local e esvaecesse as fronteiras nacionais, tornando-as
espaços permeáveis e de convívio, que se expandem pelos territórios nacionais.
As questões culturais estiveram por muito tempo à margem nas discussões mercosulinas apesar da existência de ações nessa direção. Já em 1992, foi criada a Reunião Especializada em Cultura
para promover a difusão da cultura dos Estados Parte, a qual foi substituída, em 1995, pela Reunião de
1
Tratado de Assunção. Disponível em: <http://www.mercosul.gov.br/tratados-e-protocolos/tratado-de-assuncao-1/>.
Acessado em 14 setembro 2012.
2
Sobre a questão da transculturação nos Cinemas do Mercosul proponho a leitura de meu artigo “A transculturação como
estética dos Cinemas Latino-americanos”. MEDEIROS, Rosângela Fachel de. “A transculturação como estética dos
Cinemas Latino-americanos”. In: Imagofagia. Nº. 6. Argentina, 2012. Disponível em: http://www.asaeca.org/imagofagia/
sitio/index.php?option=com_content&view=article&id=240%3Aa-transculturacao-como-estetica-dos-cinemas-latino-am
ericanos&catid=48&Itemid=132>. Acessado em: 20 outubro 2012.
CINEMAS DO MERCOSUL: POLÍTICAS DE INCENTIVO, COPRODUÇÕES E IDENTIDADE CULTURAL
Ministros e Responsáveis de Cultura. E, ainda em 1995, na reunião de Buenos Aires fez-se referencia
pela primeira vez ao “MERCOSUL Cultural”, dando visibilidades à dimensão cultural dos processos
de integração, mas ainda sem o objetivo de constituir uma identidade regional mercosulina. Em 1996,
foi criado o Parlamento Cultural do MERCOSUL (PARCUM) com o objetivo de compatibilizar as
legislações culturais dos países, visando a livre circulação de bens e serviços culturais, a proteção e
difusão do patrimônio cultural, a promoção e consolidação das indústrias culturais e a implicação
dos meios de comunicação para a difusão da cultura do MERCOSUL. Neste mesmo ano foi criado o
“Selo MERCOSUL Cultural” e foi assinado o Protocolo de Integração Cultural do MERCOSUL com
o intuito de que o processo de integração transcendesse o âmbito comercial, objetivando fomentar a
criação de espaços culturais e priorizando às coproduções de ações culturais. Pois como diz o acordo:
la cultura constituye un elemento primordial de los procesos de integración, y (…) la cooperación
y el intercambio cultural generan nuevos fenómenos y realidades.3 Mas apesar destas propostas de
cooperação no âmbito cultural poucas ações foram efetivamente implementadas.
Em contrapartida, muitos agentes não-governamentais têm desenvolvido importantes projetos
culturais que fomentam o conhecimento cultural mútuo e o diálogo de seus cidadãos, estreitando assim
as relações entre os países vizinhos como, por exemplo: a Bienal do MERCOSUL (criada em 1997),
a Rede das Mercocidades (criada em 1995), a Associação de Universidades do Grupo Montevidéu –
AUGM (fundada em 1991), o Programa DocTv Iberoamérica (criado em 1998) e o Porto Alegre em
Cena (criado em 1994). Percebe-se assim que muito da integração cultural do MERCOSUL decorre
destas ações como destaca Escobar:
En efecto, desde casi enseguida después de firmado el Tratado de Asunción en marzo
de 1991, instituciones no gubernamentales de diferentes características, así como artistas e intelectuales, comenzaron a organizar, usando el membrete del MERCOSUR,
tareas puntuales de intercambio cultural: exposiciones de arte, festivales y encuentros,
debates, seminarios y publicaciones. Aunque realizadas al margen de un programa
común que los vértebra en objetivos coordinados, estos quehaceres dispersos fueron
entretejiendo redes e instalando circuitos que ocupaban el espacio semivacío asignado a la cultura y lo llenaban de ecos y de espesores. Superpuestas aquellas retículas e
interconectados estos circuitos, ambos generan entramados que podrían sostener el
peso de los proyectos oficiales y de enlazarlos con las expectativas civiles (ESCOBAR,
2006).4
E mesmo que relações econômicas sempre acarretem intercâmbios culturais, foi apenas no final dos anos 1990 que a cultura tornou-se objeto de discussão no Bloco, como destaca Octavio Getino:
En la mayoría de los esquemas subregionales de integración, la dimensión cultural,
aun que ella esté formalmente presente, se halla lejos de ocupar un lugar destacado
en las agendas de negociación de los gobiernos, y las políticas culturales han provocado jerarquizado tradicionalmente sólo algunas expresiones artísticas o folklóricas
(...) mientras han dejado casi siempre de lado las manifestaciones relacionadas con los
medios de comunicación y las industrias culturales, es decir, con aquellos campos de
la cultura que más han contribuido a la intercomunicación y al conocimiento de los
3
Protocolo de Integración Cultural del Mercosur. Disponível em: <http://www.urjc.es/ceib/espacios/observatorio/
cohesion/documentos/cultura_cohesion/SOC-V-05.pdf>. Acessado em: 14 setembro 2012.
4
ESCOBAR, Ticio. “15 Años del Mercosur: el debe y el haber de lo cultural”. In: BARBOSA, Rubens António (org.).
Mercosul quinze años. Fundação Memorial da América Latina, São Paulo, 2007, págs. 1-15 2006. Disponível em: http://
www.memorial.sp.gov.br/memorial/outros/TextoMercosul-TicioEscobar.doc>. Acesso em: 24 junho 2007.
98
Rosângela Fachel de Medeiros
diversos imaginarios colectivos (GETINO, 2005).5
Na primeira década de existência do Mercosul as questões relacionadas às produções audiovisuais estavam incluídas nas disposições gerais para as questões culturais. Mas a ideia de dar visibilidade aos Cinemas Mercosulinos e discutir as políticas para o desenvolvimento do setor na região já se
faziam presentes e deram origem no Brasil ao Cinesul, em 1994, e ao Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM), uma combinação de festival e fórum, em 1997. E, dois anos após, em 1999, foi criado
em Montevidéu o Mercocine, primeiro festival de cinema da região que teve apenas duas edições, mas
que, de certa forma, teve sua proposta incorporada pelo Festival Internacional de Cinema de Punta
del Este. No mesmo ano, o “Simpósio Cinema e Vídeo no Mercosul Cultural: a integração pela imagem” discutiu: a necessidade de regulamentação da livre circulação de bens e serviços voltados para o
setor; a formação de um fundo para a realização de coproduções; a criação de incentivos à distribuição
e o estímulo aos exibidores para a projeção dos filmes nascidos neste contexto. Em 2000, foi criada a
Asociación de Productores Audiovisuales del Mercosur (APAM) e foi firmado o Acordo de Integração
Cultural entre Argentina e Brasil. E a criação da Agencia Nacional do Cinema (ANCINE) no Brasil,
em 2001, deu novo impulso à produção regional, tendo como principais metas estimular a produção e
outros elos da cadeia do setor audiovisual, atuando em duas vertentes: o fomento indireto (através das
leis de incentivo fiscal) e o fomento direto (através de editais públicos).6
Em 2003, alicerçado nas ideias do Tratado de Assunção, do Protocolo de Ouro Preto, do Protocolo de Integración Cultural del Mercosur, do Protocolo de Montevideo sobre Comercio de Servicios
e das Decisiones del Consejo del Mercado Común, o Grupo del Mercado Común (órgão executivo
do Mercosul) criou a Reunión Especializada de Autoridades Cinematográficas y Audiovisuales del
Mercosur (RECAM)7 para incentivar a integração das indústrias cinematográficas e audiovisuais da
região a partir da constatação da importância de fortalecer o setor enquanto um instrumento capaz de
propiciar a difusão do processo de integração regional:
con la finalidad de analizar, desarrollar e implementar mecanismos destinados a promover la complementación e integración de dichas industrias en la región, la armonización de políticas públicas del sector, la promoción de la libre circulación de bienes y
servicios cinematográficos en la región y la armonización de los aspectos legislativos.8
Norteada pelos princípios de reciprocidade, complementaridade e solidariedade, a RECAM
almeja: adotar medidas concretas para a integração e complementação das indústrias cinematográficas
e audiovisuais da região; reduzir as assimetrias que afetam o setor, impulsionando programas específicos que favoreçam os países de menor desenvolvimento na área; harmonizar as políticas públicas e
os aspectos legislativos do setor; impulsionar a livre circulação de bens e serviços cinematográficos
e audiovisuais; implementar políticas para a defesa da diversidade e da identidade cultural dos povos
5
GETINO, Octavio. Aproximación al mercado cinematográfco del Mercosur. Período 2002-2005. 2005. Disponível em:
< http://www.recam.org/Estudios/mercado_intra_completo.doc>. Acesso em: 21 junho 2007.
6
Os incentivos mais significativos advêm da Lei do Audiovisual (Lei 8.698/93, modificado pela MP 2228/01), que
permite às pessoas físicas e jurídicas investirem até 3% do Imposto de Renda como despesa dedutível, até um limite de
R$3milhoes em cada projeto. Além disso, o Artigo 3 da Lei permite que distribuidores de filmes estrangeiros no Brasil
invistam em projetos de filmes brasileiros autorizados até 70% do imposto retido na fonte devido, calculado nas remessas
de royalties derivadas da distribuição de filmes estrangeiros.
7
Todos os documentos referentes à criação da RECAM, bem como aos acordos firmados através dela podem ser
consultados no site: <http://www.recam.org/>
8
Reunión Especializada de Autoridades cinematográficas y Audiovisuales del Mercosur. Disponível em:< http://www.
recam.org/_files/documents/gmc_resol_creacionrecam.pdf>. Acessado em: 155 setembro 2012.
99
CINEMAS DO MERCOSUL: POLÍTICAS DE INCENTIVO, COPRODUÇÕES E IDENTIDADE CULTURAL
da região; trabalhar em favor da redistribuição do mercado cinematográfico que garanta condições de
equidade para as produções nacionais e seu acesso ao mercado; garantir o direito do espectador a uma
pluralidade de opções que incluam especialmente expressões culturais e audiovisuais do Mercosul.
A Secretaria Técnica da RECAM está sediada no Edifício Mercosul na cidade de Montevidéu,
Uruguai. São membros plenos da RECAM: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai; são membros associados: Bolívia, Chile, Peru e Equador, e a Venezuela está em processo de adesão. Porém cada um dos
países possui aporte próprio para seu funcionamento através de entidades nacionais que participam
como autoridades da RECAM: no Brasil – ANCINE (Agência Nacional de Cinema); na Argentina –
INCAA (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales); no Uruguai – ICAU (Instituto del Cine y el
Audiovisual del Uruguay); na Venezuela – CNAC (Centro Nacional Autónomo de Cinematografía de
Venezuela) e a Distribuidora Nacional de Cine Amazonia Films; na Bolívia – CONACINE (Consejo
Nacional de Cine); no Chile – Consejo Nacional de Cultura y Artes; no Equador – CNCINE (Consejo
Nacional de Cinematografía de Ecuador); no Paraguai a produção audiovisual está a cargo da Dirección de Industrias Culturales Secretaría Nacional de Cultura, uma vez que ao contrário dos demais
países, o Paraguai ainda não possui um órgão específico para a questão.
E para promover a circulação intra-regional dos filmes produzidos por países do Mercosul, a
RECAM idealizou uma política de fomento à circulação de filmes mercosulinos não nacionais nos
cinemas de países da região. Brasil e Argentina, por serem os maiores produtores cinematográficos
da região e, por conseguinte, os mercados mais importantes, foram escolhidos para firmar o primeiro
acordo de codistribuição da região em 2003. O acordo objetivava estimular, através de apoio financeiro e institucional, a difusão de obras cinematográficas brasileiras na Argentina e de obras argentinas no
Brasil, contribuindo assim para a integração cultural entre os dois países. Os subsídios se destinavam
a cobrir parte dos custos com cópias, legendagem e translado das cópias, bem como parte dos custos com promoção e divulgação. Cada um dos países ficava responsável pela seleção e indicação de
possíveis filmes a serem distribuídos no país vizinho. No entanto, o acordo não funcionou da maneira
esperada, tendo êxito no território brasileiro, mas não no território argentino. Problemas com a entrada
das cópias, com os prazos de pagamentos e com o lançamento concomitante das obras na televisão
fizeram com que os distribuidores de obras brasileiras desistissem de participar dessa iniciativa e a
mesma fosse suspensa.
Durante a III Reunião do RECAM, em 2004, foi criado o Observatorio Mercosur Audiovisual
(OMA) com a finalidade de: obter, processar e disponibilizar dados e informações do audiovisual e do
cinema do Mercosul; e contribuir com o desenvolvimento da produção e com a integração da indústria
e da cultura audiovisual na região.9
Para superar a dificuldade de circulação das obras cinematográficas Mercosulinas não nacionais nas telas dos países da região e reconhecendo a importância da produção cinematográfica da região como instrumento de integração cultural e econômica foi criado, em 2006, o “Certificado de Obra
Cinematográfica Mercosul”. Pois apesar do crescente desenvolvimento da indústria cinematográfica
9
Dirigido por Octavio Getino de 2004 a 2007, quando de sua renuncia, o OMA realizou uma série de estudos valiosos
que são a única fonte de dados sistematizados sobre as indústrias audiovisuais dos países do MERCOSUL. Com a saída de
Getino, o OMA foi absorvido pelo RECAM e posteriormente foi colocado sob a supervisão do ANCINE, mas sem retomar
as atividades da época de Getino.
100
Rosângela Fachel de Medeiros
da região há necessidade de impulsionar políticas regionais que favoreçam a comercialização intra e
extra Mercosul. Para tanto, consideram-se obras cinematográficas Mercosulinas aquelas reconhecidas
como nacionais pelas autoridades competentes de cada país e em conformidade com suas respectivas
legislações para a área do audiovisual. Estas obras passam então a receber tratamento equivalente às
obras nacionais nos Estados Partes, estando aptas a usufruir das políticas públicas de incentivo destes.
Em 2007, foi criado pela RECAM o Foro de Competitividad del Sector Cinematográfico y Audiovisual del Mercosur, que teve sua primeira reunião em 2008, tendo como objetivo buscar soluções
para os problemas de produção, distribuição, exibição e infra-estrutura. No âmbito da produção propôs-se incrementar as coproduções regionais e estimular o intercâmbio de experiências. Em relação à
distribuição a ideia é promover a codistribuição através da associação de distribuidores independentes
e da formação de consórcios regionais de distribuição para ampliar a difusão internacional. Quanto às
dificuldades de exibição foi proposta a associação das cadeias de exibição cinematográfica nacionais
da região facilitando o acesso aos diversos mercados nacionais, promovendo o enlace entre distribuidores independentes e exibidores do Mercosul e incentivando as emissoras e canais de televisão
aberta à exibição de obras cinematográficas e audiovisuais Mercosulinas. Referente aos problemas de
infra-estrutura pretende-se facilitar a circulação regional de obras em processo e integrar as nuvens
tecnológicas digitais aos processos de produção, distribuição e exibição cinematográfica na região.
Ainda em 2007, na reunião do CAACI foi assinado o Acuerdo Iberoamericano de Coproduccion Cinematográfica.
E, em 2008, foi criado o Programa Mercosur Audiovisual a partir do convênio de financiamento estabelecido entre a Comunidade Européia e o Mercosul, o qual começou a vigorar em 2009, visando promover o acesso dos cidadãos da região a conteúdos próprios e, para tanto, foram estabelecidas
uma série de ações destinadas a incrementar a indústria cinematográfica, visando facilitar a circulação
intra-regional, fortalecer as capacitações técnicas e reduzir as assimetrias entre os cinemas nacionais
da região. Também em 2009, um convênio entre o INCAA e Le Marché du Film do Festival de Cannes
deu origem ao Ventana Sur,10 evento que promove a comercialização de filmes latino-americanos e
luta contra o eterno problema da falta de distribuição comercial.
Um aspecto decisivo para a busca por uma integração regional da produção cinematográfica é
o fato de os Cinemas realizados nos países do Mercosul, assim como a maioria dos cinemas realizados
fora do contexto hollywoodiano, não serem indústrias autossuficientes, tendo dificuldades para competir com as produções hollywoodianas no mercado internacional e, principalmente, em seus próprios
mercados nacionais. Estes cinemas só se mantêm graças às políticas de incentivo e de financiamento,
que podem advir de órgãos públicos, de acordos transnacionais ou de instituições supranacionais.
Desta forma, unir forças num contexto regional a partir das políticas econômicas inauguradas pelo
Mercosul é uma maneira de desenvolver não apenas uma indústria audiovisual, mas de promover a
hegemonia cultural dos países da região frente ao poderio globalizante da indústria cinematográfica
hollywoodiana.
Mas mesmo antes da criação do Mercosul já havia tentativas de produzir um maior intercambio
10
Site oficial do Ventana Sur: <http://www.ventanasur.com.ar/>
101
CINEMAS DO MERCOSUL: POLÍTICAS DE INCENTIVO, COPRODUÇÕES E IDENTIDADE CULTURAL
entre as indústrias cinematográficas da América Latina.11 O desafio de criar um cinema latino-americano que consolidasse uma identidade própria no panorama internacional, que fosse esteticamente
original e que confrontasse a homogeneização do fazer cinematográfico hollywoodiano eclodiu na
década de 1960 e foi compartilhado por vários realizadores latino-americanos: Glauber Rocha (Brasil,
1939 – 1981), Fernando Solanas (Argentina, 1936), Fernando Birri (Argentina, 1925), Miguel Littín
(Chile, 1942), Julio García Espinosa (Cuba, 1926), Tomás Gutiérrez Alea (Cuba, 1928 – 1996). E
subjacente aos filmes, manifestos, ensaios e teorias lê-se na ação destes cineastas uma preocupação
com os problemas intrínsecos à América Latina: as desigualdades sociais, o autoritarismo e a luta
pela democracia. Estes realizadores criticavam a admiração exacerbada e o “respeito” desmedido
ao modelo hollywoodiano e defendiam um posicionamento crítico tanto dos realizadores quanto dos
espectadores.
Coproduções: o caminho dos Cinemas do Mercosul
Atualmente o principal caminho para a sobrevivência e o desenvolvimento da produção cinematográfica no Mercosul é a realização de coproduções. A idéia de coprodução abrange toda a forma
de participação financeira, criativa ou técnica envolvida na realização de um filme, podendo ser entre
os setores públicos e privados de um mesmo país, ou entre produtoras de dois ou mais países. A coprodução tem sido a estratégia utilizada por quase todos os cinemas que tentam existir fora do contexto
hollywoodiano e vem crescendo desde a década de 1990. Como observa Steve Solot:
Desde principios de los años noventa han surgido en Iberoamérica innumerables
programas gubernamentales basados diversos estímulos que rápidamente un importante papel en el fomento de la producción de contenidos audiovisuales, así como en
la distribución, la exhibición y el desarrollo de proyectos. Junto con los tratados de
coproducción internacionales, son herramientas vitales para alcanzar muchos de los
objetivos de las políticas nacionales para promover la creación de industrias audiovisuales sostenibles y la formación de la cultura audiovisual, en el contexto audiovisual
globalizado y digitalizado. (SOLOT, Steve. 2011, p. V)12
As coproduções resultantes da cooperação entre países unem forças para promover suas expressões culturais e favorecem principalmente aos países cujas indústrias cinematográficas ainda são
incipientes, que podem assim ter acesso a recursos que de outra maneira não teriam. Uma vez que
os filmes agraciados por acordos de coprodução estabelecidos entre dois países ou mais, se tornam
obras “nacionais” nos territórios de seus coprodutores, estando assim credenciados a usufruir dos
incentivos fiscais e de todos os apoios que visam promover a produção, a distribuição e a exibição de
obras nacionais. A coprodução amplia assim as possibilidades financeiras e mercadológicas dos projetos cinematográficos e cria ligações e redes entre grupos de produtores e profissionais. Para Colin
Hoskins e Stuart McFadyen a opção pela coproduções resulta de oito potenciais benefícios: Fusão de
recursos financeiros; Acesso a incentivos e subsídios de governos estrangeiros; acesso ao mercado do
parceiro; acesso ao mercado de países terceiros; aprender com o parceiro; redução de risco; Insumos
11
Como, por exemplo, o I Congreso de la Cinematografía Hispanoamericana realizado em 1931, o Primer Certamen
Cinematográfico Hispanoamericano, em 1948, e a Unión Cinematográfica Hispanoamericana e o Convênio HispanoArgentino de Relaciones Cinematográficas de 1969.
12
SOLOT, Steve. “Introdução”. In: SOLOT, Steve (org.) Mecanismos Actuales de Financiación de Contenidos
Audiovisuales en Latinoamérica. Rio de Janeiro: Editora LATC, 2011.
102
Rosângela Fachel de Medeiros
mais baratos no país do parceiro; Locações estrangeiras desejadas.13 Além disso, conforme dados do
Observatório Audiovisual Europeu, apresentados por Steve Solot, presidente do Centro Latinoamericano de Treinamento e Assessoria Audiovisual:
1) As coproduções “viajam” melhor que os filmes de nacionalidade única: em média,
as coproduções são lançadas em duas vezes mais mercados. 77% das coproduções são
lançadas em pelo menos um mercado não-doméstico comparado com 33% de filmes
de nacionalidade única.
2) As coproduções faturam, em média, 2.78 vezes mais do que filmes de nacionalidade única.
3) Em termos de ingressos vendidos, os mercados internacionais são mais importantes para coproduções do que para filmes de nacionalidade única. Ingressos de mercados internacionais para coproduções representam 41% do total, comparado com 15%
para filmes de nacionalidade única.14
Em decorrência das várias vantagens advindas da realização de coproduções, em 1989, durante
a primeira Conferencia de Autoridades Cinematográficas de Iberoamerica (CACI) 15, que começaria a
vigorar em 1991, foi assinado o Acordo Latino-Americano de Coprodução Cinematográfica embasado
na idéia de que a atividade cinematográfica deve contribuir para o desenvolvimento cultural da região
e para a configuração e divulgação de sua identidade; e na consciência de que, para tanto, é necessário
promover o desenvolvimento cinematográfico da região.16 No final deste mesmo ano foi assinado o
Acuerdo para la Creación del Mercado Común Cinematográfico Latinoamericano17 com o objetivo
de implantar um sistema multilateral de participação de espaços de exibição para obras cinematográficas certificadas como nacionais pelos países signatários.
Como parte da política audiovisual da CAACI foi criado, em 1997, o Fondo Iberoamericano
de Ayuda Ibermedia18 para estimular a promoção e a distribuição de filmes Ibero-americanos. Entre os
objetivos do Ibermedia estão: financiar a coprodução de filmes ibero-americanos, buscando associarse às entidades nacionais de fomento à realização audiovisual; reforçar e estimular a produção e distribuição dos produtos audiovisuais nos países Ibero-americanos; fomentar a sua integração em redes
supranacionais de empresas de distribuição Ibero-americanas e incrementar a promoção. Os projetos
que solicitam o apoio do Fundo são pré-selecionados pela Unidad Técnica de Ibermedia, que os avalia
13
HOSKINS, Colin; McFADYEN, Stuart. “Canadian Participation in International Co-Productions and Co-Ventures in
Television Programming”. Canadian Journal of Communication. Alberta, 1993, v. 18, n. 2.
14
SOLOT, Steve. “A onda das co-produções latino-americanas e os incentivos na América Latina”. Cinema Sem Fronteiras.
Dez, 2010. Disponível em: <http://cinemasemfronteiras.ning.com/forum/topics/a-onda-das-coproducoes> . Acessado em:
22 setembro 2012. Todos os dados da pesquisa realizada pelo Observatório Audiovisual Europeu podem ser lidos no texto:
KANZLER, Martin. “The circulation of European co-productions and entirely national films in Europe 2001 to 2007”.
European Audiovisual Observatory. 2008. Disponível em: <http://www.coe.int/t/dg4/cultureheritage/culture/film/
paperEAO_en.pdf.>. Acessado em: 22 setembro 2012.
15
A CACI foi posteriormente rebatizada de Conferencia de Autoridades Audiovisuales y Cinematográficas de
Iberoamerica (CAACI) e atualmente é formada por autoridades cinematográficas dos seguintes países: Argentina, Bolívia,
Brasil, Colômbia, Cuba, Chile, Espanha, México, Panamá, Peru, Porto Rico, Portugal, República Dominicana, Uruguai,
Venezuela e, como observadores, Canadá e Costa Rica. Site oficial do Conselho. Site oficial da CAACI: <http://www.
caaci.int/ >
16
Esse Acordo só foi promulgado pelo Brasil em 1998.
17
Países membros: Argentina, Brasil, Cuba, República Dominicana, Equador, México, Nicarágua, Panamá, Peru e
Venezuela
18
Sediado na Espanha, o Ibermedia tem como membros: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile,
Equador, Espanha, Guatemala, México, Panamá, Peru, Portugal, Porto Rico, Republica Dominicana, Uruguai e Venezuela.
Site do Programa Ibermedia: <http://www.programaibermedia.com/langpt/index.php>
103
CINEMAS DO MERCOSUL: POLÍTICAS DE INCENTIVO, COPRODUÇÕES E IDENTIDADE CULTURAL
quanto aos pré-requisitos técnicos, enviando aqueles que cumprem estas questões para a avaliação
pelo Comité Intergubernamental, do qual participam um representante de cada um dos países da Conferência, responsável pela decisão de quais os projetos serão contemplados. Com certeza, a ação do
Ibermedia é decisiva para o crescimento de projetos compartidos pelos países da região. Na edição
do Festival de Gramado de 2011, cinco das seis películas estrangeiras em competição foram coproduzidas com a participação do programa Ibermedia: O casamento (El casamiento – 2011), coprodução
Uruguai/Espanha, de Aldo Garay; Garcia – 2010, coprodução Colômbia/Brasil, de José Luis Rugeles; Jean Gentil – 2012, coprodução México/República Dominicana/Alemanha, de Israel Cárdenas e
Laura Amelia Guzmán; La lección de pintura – 2011, coprodução Chile/Espanha/México, de Pablo
Perelman; e Medianeras – 2011, corpodução Argentina/ Espanha/Alemanha, de Gustavo Taretto.
Assim, quando falamos em cinemas mercosulinos estamos falando em coprodução. Desde sua
criação a RECAM promove a articulação entre os órgãos de fomento público à produção cinematográfica e audiovisual dos países da região para o investimento na coprodução, na codistribuição e na
exibição cruzada. No entanto, há vinte e um anos da criação do Mercosul e há nove anos da criação
da RECAM, a maior parte das coproduções realizadas por Brasil e Argentina, maiores produtores da
região, tem como parceiros países ibéricos: no caso do Brasil, Portugal, e no caso da Argentina, Espanha. Sendo a maioria das coproduções realizada graças ao Ibermedia.
Nestas duas décadas de existência do Mercosul, as indústrias cinematográficas da região se
desenvolveram individualmente, principalmente na Argentina e no Brasil. E o fato de a Argentina e o
Brasil possuírem indústrias cinematográficas mais consolidadas que nos demais países (que não podem pensar em produzir sem ser em coprodução) influencia na decisão de associação para a realização
de coproduções. Por outro lado, a diferença na maneira de subsidiar as produções na Argentina e no
Brasil acaba interferindo na realização de projetos conjuntos. Uma vez que enquanto na Argentina o
financiamento provém de fundos públicos administrados pelo INCAA (que possui regras estritas para
aprovar os projetos); no Brasil a maioria das produções cinematográficas é financiada por empresas
privadas que podem deduzir esse valor de seus impostos. Pois, como bem analisa Hernán Galperín
(1999)19, a maneira como os tratados de integração regional lidam com a indústria audiovisual e os
resultados que obtêm estão condicionados a três fatores: a estrutura industrial de cada país, as políticas domésticas sobre o setor e as distâncias culturais existentes. Desta forma, as diferenças entre
as políticas públicas de fomento à produção cinematográfica dos países envolvidos nas coproduções
Mercosulinas ainda são uma dificuldade a ser enfrentada.
No caso específico do Brasil, atualmente o ANCINE possui acordos bilaterais de coprodução
e/ou Protocolos de Cooperação com: Argentina, Chile, Colômbia, Uruguai e Venezuela, e, além disso,
participa de acordos multilaterais que envolvem a região como: o Acordo para a Criação do Mercado
Comum Cinematográfico Latino-americano; o Acordo Latino-Americano de Coprodução Cinematográfica e é também membro do programa Ibermedia.20 Aos poucos, o Brasil vem investindo em coproduções com seus vizinhos, um exemplo notório é O banheiro do Papa (El Baño del Papa – 2007),
de Enrique Fernández e César Charlone, coprodução Brasil/Uruguai/França realizada com o apoio do
Ibermedia.
19
GALPERIN, Hernán. “Cultural Industries policy in regional trade agreements: the case of NAFTA, the E.U. and
MERCOSUR”. Media Culture & Society, London, n.5. 1999. p. 1-68.
20
Todos estes acordos estão disponíveis no site da ANCINE: <http://www.ancine.gov.br/>
104
Rosângela Fachel de Medeiros
Mas além da união de forças econômicas para o desenvolvimento das indústrias cinematográficas nacionais, as instituições que fomentam as coproduções Mercosulinas objetivam também a consolidação de uma integração cultural regional, que visa o fortalecimento da interação entre os cinemas
nacionais da região, e a realização de filmes que sirvam como espelho e vitrine para as identidades
culturais nacionais. Desta forma, para ter acesso aos benefícios advindos dos acordos de coprodução
os projetos devem responder a editais, tendo de atender a pré-requisitos, que geralmente implicam a
avaliação do projeto quanto a sua importância cultural e o cumprimento de cotas de participação artística e técnica de mão-de-obra nacional dos países coprodutores.21
Cinemas do Mercosul: uma utopia de integração?
Apesar do Mercosul haver nascido por conjecturas comerciais, políticas e econômicas, o projeto cultural mercosulino vem aos poucos ganhando força, alicerçado em redes de trabalho intelectual
que buscam resgatar as raízes comuns, estabelecendo pontes de relação entre os países e seus povos
e a partir de então construindo novos elementos que congregam características comuns e individuais.
Apropriando-nos da reflexão de Flavio Aguiar (2002) a respeito da América Latina, poderíamos dizer
então que o MERCOSUL no âmbito cinematográfico ainda é, na verdade, um projeto, um “por-fazer”.
Pois apesar dos vários intentos da RECAM e do crescente número de acordos de coprodução firmados
pelos países do Mercosul, são poucos os resultados efetivos e contundentes na consolidação das indústrias cinematográficas nacionais da região, uma vez que as assimetrias ainda são enormes. E a real
integração em favor da criação de uma indústria cinematográfica regional ainda parece algo distante
e, por vezes, impossível.
No artigo “La política audiovisual del Mercosur y la influencia del modelo europeu”,22 Carmina Crusafon faz uma revisão dos documentos do Mercosul e da RECAM através da qual ela aponta
os principais eixos de ação da Política Audiovisual da região, que seriam: a criação de um mercado
comum (circulação interna de filmes, certificado de obra cinematográfica do Mercosul, cota de tela,
criação de um sistema regional de distribuição, acordo de codistribuição); a criação de um sistema de
informação sobre o audiovisual no Mercosul (criação do Observatório Mercosul Audiovisual, estudos
de legislação comparada, programa de redução de assimetrias); outras atuações culturais de cooperação internacional regional; e a cooperação com os países ibéricos (Espanha e Portugal) e com a União
Européia.
Conforme as questões pontuadas por Crusafon, sobre as quais discorremos também durante este artigo, podemos visualizar no centro das ações da RECAM o objetivo de criar um mercado
comum para o audiovisual da região, identificando os obstáculos a serem transpostos e propondo
ferramentas para isso, visando assim “proteger” a cultura da região e desenvolver suas indústrias do
audiovisual. Neste sentido são crucias duas propostas da RECAM que, contudo, ainda não geraram
projetos efetivos: a criação de fundos cooperativos para a produção cinematográfica e a cota de tela
21
Os acordos de coprodução em vigor no MERCOSUL podem ser consultados no site da RECAM no item Normativas:<
http://www.recam.org/?do=downloads&idCategory=3d49900ff81237a0a0f3ed7def36a489>
22
CRUSAFON, Carmina. “La política audiovisual del Mercosur y la influencia del modelo europeu”. In: Cuadernos de
Información. Nº 25. 2009, pp. 93-104. Disponível em: <http://comunicaciones.uc.cl/prontus_fcom/site/artic/20091216/
imag/FOTO_1220091216152156.pdf.> Acessado em: 27 junho 2012.
105
CINEMAS DO MERCOSUL: POLÍTICAS DE INCENTIVO, COPRODUÇÕES E IDENTIDADE CULTURAL
para a produção regional.
O desejo de implementar um fundo regional para a produção fundamenta-se na grande assimetria entre as indústrias, mercados e políticas cinematográficas dos países da região. Enquanto Brasil e
Argentina possuem órgãos específicos, respectivamente ANCINE e INCAA, e leis de regulamentação
e fomento à indústria cinematográfica, o Paraguai e o Uruguai não contavam com instituições nem
legislações específicas quando do início das atividades da RECAM. Assim, Paraguai e Uruguai, com
indústrias cinematográficas incipientes, necessitam de apoio financeiro e junto à RECAM solicitam
acesso aos fundos de Argentina e Brasil, que somados representam mais de 90% do total dos fundos da
região. Na mesma situação estão os demais países associados ao Mercosul e à RECAM que tampouco
possuem indústrias cinematográficas estruturadas. Mas sem o estabelecimento de um fundo regional,
apesar das iniciativas e vontades políticas, o suporte financeiro para as indústrias menores no contexto mercosulino vem dos acordos de coprodução bilaterais entre os países da região e de acordos bi e
multilaterais envolvendo países estrangeiros ao Mercosul.
A cota de tela tem sido outra questão delicada, uma vez que os empresários da área de distribuição e de exibição consideram perniciosas e autoritárias as intervenções do estado. E para muitos
a cota de tela não resolveria o verdadeiro problema que é a falta de interesse dos espectadores pelas
obras nacionais e Mercosulinas. Além disso, os produtores não têm interesse em que as cotas de
tela de seus países contemplem também produções de outros países do Mercosul. Conforme Líliana
Mazure, atual presidente do INCAA, um dos motivos para os problemas de distribuição inter-regional
é que os países da região se preocupam apenas com a sua realidade e com o seu cenário. Questão que
já fora percebida por Galperín (1999), pois para ele a proximidade cultural existente na região daria ao
Mercosul ótimas possibilidades de desenvolver uma política regional dirigida às indústrias culturais,
não fosse a carência de vontade política para fazê-lo.
Assim, as políticas cinematográficas seguem sendo patrimônios exclusivos dos países. E, desta
forma, as decisões mais importantes referentes ao setor: regulamentação, financiamento da produção,
cota de tela e as políticas para formação de público, são tomadas por cada um dos países e tendem a
ser restritas a sua indústria nacional. E essa ação está arraigada à dificuldade de instalar um espaço
regional como destinatário de políticas públicas. Pois como assinala Alejandro Grimson: […] incluso
entre quienes tienen una visión muy positiva de la integración regional, los intereses y sentimientos
nacionales predominan sobre los regionales (GRIMSON, 2007, p.585).23
Mas, apesar destas dificuldades, muitas das coproduções mercosulinas têm obtido reconhecimento da crítica em festivais internacionais. Além disso, os inúmeros festivais criados para prestigiar
o cinema Latino-americano, de maioria mercosulino, ao redor do mundo corroboram o crescente prestígio internacional destes cinemas. No entanto, a presença e o destaque cada vez maior destes filmes
em festivais não resultam em sua maior penetração nos mercados internacionais e nem tampouco em
um maior reconhecimento nos mercados nacionais da região. Pois apesar das várias ações de incentivo à produção cinematográfica e da qualidade e quantidade crescente de obras realizadas, a circulação intra-regional dos filmes mercosulinos é quase insignificante. E quando são exibidas, mesmo no
contexto dos filmes nacionais em seus respectivos países, estas obras em sua maioria estão relegadas
23
GRIMSON, Alejandro. Pasiones nacionales: política y cultura en Brasil y Argentina. Buenos Aires: EDHASA. 2007.
106
Rosângela Fachel de Medeiros
às salas marginais ao circuito comercial e a poucos espectadores. O dinheiro advindo de políticas
públicas de incentivo e de acordos de coprodução atravessa as fronteiras nacionais e torna viável a
realização de coproduções cinematográficas, mas estas, infelizmente, não são assistidas pela maioria
do público de seus países financiadores.
Por outro lado, as coproduções mercosulinas enquanto resultantes de processos de globalização econômica, fluxo de bens materiais (equipamentos, técnicos, profissionais, artistas, dinheiro); e
da mundialização cultural, fluxo de bens simbólicos (cultura, estética, narrativa), colocam em debate
as fronteiras políticas, culturais, sociais e econômicas, dando origem ao ainda nebuloso território dos
cinemas transnacionais, que tornam as fronteiras entre os cinemas nacionais permeáveis e movediças.
O que nos leva a pensar em uma real integração cultural da região, ainda por vir, que vá além da união
financeira e propicie um verdadeiro diálogo cultural, rearticulando e dando sentido às identidades
mercosulinas destes cinemas. Pois, transpondo para o âmbito da produção cinematográfica da região
a afirmação de Walter Salles de que “o cinema pode ajudar um país a se conhecer e também a se imaginar”,24 os Cinemas do Mercosul podem ajudar aos cidadãos mercosulinos e ao próprio Mercosul a
se reconhecerem e, sobretudo, a se imaginarem, ajudando assim na consolidação de um verdadeiro
sentido de cidadania mercosulina, o qual leve em conta a importância de defender a diversidade cultural dos povos da região.
* Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora do Grupo Cinemas Latino-americanos da Universidade Federal Fluminense (UFF).
24
Walter Salles em entrevista disponível em: < http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL42905-7086,00.html>.
Acessado em: 7 agosto 2012.
107
ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO:
ESTUDO DO CONSINOS NO PERÍODO DE 2000 A 2010
Judite Sanson de Bem *
Nelci Maria Richter Giacomini **
Moisés Waismann ***
Introdução
A economia da cultura estuda as relações entre as atividades culturais e as atividades produtivas de uma região, e seus reflexos sobre o emprego, geração de salários, lucros, prestação de serviços,
produção de bens para exportação, entre outros. A criatividade, de acordo com diferentes autores, é
um fator de melhoria e diferenciação entre diferentes produtos e regiões. Ela apresenta a capacidade
para alavancar o desenvolvimento, tanto internamente a uma unidade produtiva como da comunidade
local.
A relação entre economia e cultura passou a ser entendida como uma realidade científica a partir dos anos de 1960 e o termo “indústrias criativas” emergiu na Austrália em 1994 e posteriormente,
em 1997, quando o Reino Unido encomenda um trabalho com o objetivo de avaliar as atividades que
possibilitariam melhorar o desempenho do produto interno do país. Através do Departamento de Cultura, Mídia e Desporto criou-se o Creative Industries Task Force.
Os municípios do Coredes Vale do Rio dos Sinos - Consinos tem suas atividades concentradas na produção de químicos, petroquímicos, mas, sobretudo na indústria de calçados e todo o seu
complexo. A região desempenhou durante os anos de 1980 e 90 um papel relevante na produção e
exportação de calçados nacionalmente, destacando-se como principal pólo no país. A partir da década
de 1990, com a entrada do calçado chinês e de outros países asiáticos, viu sua participação decair e
aumentar os índices de desemprego e violência.
O objetivo deste trabalho é estudar novas possibilidades de desempenho de atividades produtivas que alavanquem o desenvolvimento desta região. Com base nos dados do MTE/RAIS utilizou-se
o número de vínculos e estabelecimentos, nas atividades criativas, entre 2000 e 2010.
Economia da Cultura e desenvolvimento: aspectos de uma mesma moeda
Desde a década de 1960, mais precisamente em 1966, as relações entre cultura e desenvolvimento passaram a ser trabalhadas sobre um enfoque mais técnico, ou seja, embasado cientificamente,
quando o trabalho de William Baumol e William Bowen intitulado “Performinhg arts: the economic
dillemma” foi publicado. No entanto é somente a partir das décadas de 1980/90 que a economia da
cultura e, por sua vez a importante da criatividade, passam a ser mais explorados.
A economia da cultura, assim, “[...] refere-se ao uso da lógica econômica e de sua
ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
metodologia no campo cultural. A economia passa assim a ser instrumental, emprestando
seus alicerces de planejamento, eficiência, eficácia, estudo do comportamento humano e dos
agentes do mercado para reforçar a coerência e a consecução dos objetivos traçados pela política pública. ( REIS, 2007, p.06)
Para relevância deste novo campo de estudos e seus reflexos no desenvolvimento podem ser
atribuídos à sua importância como gerador de investimentos, atração de empresas direta ou indiretamente relacionadas aos setores culturais, emprego de mão de obra e o aumento da qualificação desta,
articulação ex-ante e ex-post entre setores culturais, renda, tributos e fluxos de exportações, entre
ouros.
Diferentes organismos internacionais, como a ONU, UNESCO e a UNCTAD, têm salientado
a importância da cultura para o desenvolvimento econômico, entendendo que o acesso à cultura, nas
suas diferentes facetas, é importante indicador para avaliar a qualidade de vida.
Enxergamos cultura em toda a trama social. A cultura humana é tudo que resulta da
ação humana, de suas interferências sobre o mundo; é tudo que torna visível o pensamento do homem sobre si mesmo e sobre o ambiente que o cerca. Todas as nossas práticas sociais são diferentes formas de concretização da cultura de que fazemos
parte. Se estamos assistindo um show de música popular para milhares de pessoas,
a tendência natural é imaginar que somente os artistas e suas canções fazem parte da
cultura. Mas a tecnologia que criou a aparelhagem de luz e de som também é cultura;
as bebidas e lanches consumidos pelo público são produto da cultura; o sistema econômico de cobrança de ingressos e pagamento de cachês também é resultado de uma
cultura; a tradição social do congraçamento coletivo em praça pública, igualmente
é cultura; os meios de transporte usados pela equipe, a rede elétrica que alimenta o
palco, o palco e a engenharia de sua estrutura; tudo isso faz de um simples show o
produto de um tecido intrincado de diferentes culturas superpostas, que convivem
invisivelmente na mesma sociedade. ( MINC, 2012)
Assim, cabe ao conjunto de atividades que englobam a cultura um papel preponderante no
desenvolvimento regional. Entre os esforços para entender esta relação há trabalhos como o realizado
pela FIRJAN (2008 e 2012), UNCTAD em 2008 que apresentam o raio de compreensão da idéia de
cultura como cadeia produtiva e, portanto sugerem bases para o dimensionamento de sua ação.
As atividades criativas apresentam uma ampla possibilidade de gerar efeitos multiplicadores
na economia e estes podem ser vistos na forma de crescimento do PIB, da competitividade, mais e
melhores empregos, desenvolvimento sustentável e inovação.
That leads to the perception that the arts and culture are marginal in terms of economic contribution and should therefore be confined to the realms of public intervention. This may explain to a large extent the lack of statistical tools available to
measure the contribution of the cultural sector to the economy whether at national
or international level, in particular compared to other industry sectors. (EUROPE
UNION, 2012, p.1)
A cultura e a produção de bens e serviços resultantes também impulsiona a coesão intra-regional e inter-regional dos povos a medida que pode ser considerada parte importante do capital humano.
A economia criativa, além de ser um setor em franca expanção, observa-se que em alguns
países cresce a um ritmo mais elevado do que os setores tradicionais, sobretudo nos empregos. Os
setores envolvidos oferecem possibilidades diferentes, muitas vezes demandando pessoas altamente
110
Judite Sanson de Bem, Nelci Maria Richter Giacomini, Moisés Waismann
qualificadas, o que acarreta em um crescimento, em termos de empregos, superiores a média da economia.
No Brasil, um trabalho pioneiro foi desenvolvido pela Federação das Indústrias do Estado do
Rio de Janeiro (FIRJAN). A figura 1 apresenta os diferentes elos da cadeia da indústria criativa considerados no trabalho.
Figura 1 – Elos da Cadeia das Indústrias Criativas
Fonte: FIRJAN, 2012
A abordagem adotada pelo trabalho da FIRJAN que norteou este artigo adotou uma visão de
cadeia. Este detalhamento tornou-se viável a partir da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE 2.0). Neste sentido, de um universo de 673 classificações econômicas, identificaram-se
185 categorias associadas às atividades criativas, separadas pelas esferas de núcleo, atividades relacionadas e apoio.
As indústrias criativas no Consinos, estudo das vaiáveis estabelecimentos e emprego, como forma de desenvolvimento regional
Os Conselhos Regionais de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul – COREDES/RS tem
como Marco Legal a Lei 10.283 de 17 de Outubro de 1994.
Fazem parte do Consinos os municípios de: Araricá, Campo Bom, Canoas, Dois Irmãos, Estância Velha, Esteio, Ivoti, Nova Hartz, Nova Santa Rita, Novo Hamburgo, Portão, São Leopoldo,
111
ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Sapiranga, Sapucaia do Sul. Sua disposição em relação ao RS está exposta na Figura 2. O Corede Vale
do Rio dos Sinos tinha uma população total em 2010 de 1.290.491 habitantes, e uma área de 1.398,5
km².
Figura 2 - Municípios do Consinos em 2008
Fonte: FEE, 2012
Os dados utilizados para análise das variáveis estabelecimentos e empregos foram obtidos da
Relação Anual Informações Sociais (RAIS) disponível no Programa de Disseminação de Estatísticas
do Trabalho (PDET) do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE/Brasil. Utilizou-se do método
da estatística descritiva para processar as informações obtidas. Espera-se a partir da pesquisa aqui
realizada oferecer estratégias competitivas para dinamizar os estabelecimentos e, por conseguinte os
empregos Coredes do Vale do Rio dos Sinos no conjunto das atividades criativas.
A tabela 1 apresenta os valores das variáveis estabelecimentos e empregos no período que
se estende do ano 2000 até o ano de 2010 no Coredes Sinos para o conjunto da Cadeia da Indústria
Criativa bem como individualmente nas atividades de Apoio, Núcleo e Relacionadas. O objetivo da
tabela é visualizar o movimento das duas variáveis ao longo do tempo de forma comparada entre elas
e também entre as atividades.
Tabela 1 – Quantidade de estabelecimentos e empregos nas atividades de Apoio, Núcleo, Relacionadas,
e no Total da Cadeia da Indústria Criativa no Coredes Sinos no período de 2000 a 2010.
112
Judite Sanson de Bem, Nelci Maria Richter Giacomini, Moisés Waismann
Ano
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
Apoio
Est.
1.245
1.275
1.395
1.399
1.417
1.444
1.271
1.326
1.487
1.641
1.902
Núcleo
Emp.
12.610
14.249
17.295
19.589
24.742
17.658
15.502
16.186
18.925
18.055
25.046
Est.
1.895
1.995
2.337
2.423
2.462
2.477
1.009
1.016
955
1.063
1.144
Relacionada
Emp.
16.682
16.738
22.673
23.540
24.696
27.883
12.575
14.314
13.884
15.422
15.145
Est.
4.952
5.325
5.745
6.019
6.239
6.602
5.053
5.197
5.321
5.455
5.822
Emp.
82.534
88.639
95.604
89.053
96.627
89.315
80.046
78.588
73.560
76.413
83.267
Total
Est.
Emp.
8.092
8.595
9.477
9.841
10.118
10.523
7.333
7.539
7.763
8.159
8.868
111.826
119.626
135.572
132.182
146.065
134.856
108.123
109.088
106.369
109.890
123.458
Fonte: Elaborado pelos autores
F.D.B: Bem, Giacomini (2012)
Na tabela 1 percebe-se que a quantidade de estabelecimentos e de empregos no total das atividades da Cadeia da Indústria Criativa apresenta movimentos diversos ao longo do período de estudo.
A variável estabelecimentos cresce até o ano de 2005, quando apresenta um acréscimo de 30% em relação ao ano 2000, recuperando os valores do ano 2000 somente em 2009. A variável emprego cresce
até 2004 quando atinge cerca de 31% a mais na quantidade de postos de trabalho, que no ano de 2000,
e volta a se recuperar e ultrapassa o valor inicial da série em estudo somente em 2010.
Quando o olhar passa às atividades de Apoio se percebe que a variável estabelecimentos apresenta crescimento em todo o período da análise, se comparado com o ano de 2000, chegando em 2010
com acréscimo de quase 50%. O mesmo ocorre com a variável emprego que chega em 2010 com
quase o dobro no número de empregos.
Analisando o Grupo de atividades Núcleo da Cadeia da Indústria Criativa observa-se que tanto
a variável estabelecimentos quanto a variável empregos tem as suas quantidades reduzidas em termos
absolutos no período em análise. A retração chega a 40% na quantidade de estabelecimentos e quase
10% na quantidade de empregos.
Movimento diverso ocorre com o segmento da atividade Relacionada na Cadeia da Indústria
Criativa, pois esta apresenta crescimento no período estudado nas variáveis estabelecimentos e empregos, apresentando nesta última um leve acréscimo.
Nas figuras 3 e 4 são apresentadas as proporções das atividades de Apoio, Núcleo e Relacionada no total de empresas e empregos da Cadeia da Indústria Criativa no Coredes Sinos nos anos de
2000 a 2010. A intenção dos gráficos é verificar a movimentação da proporção destas variáveis.
Figura 3 – Proporção das atividades de Apoio, Núcleo e Relacionada no total de empresas
113
ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
da Cadeia da Indústria Criativa no Coredes Sinos nos anos de 2000 a 2010.
Fonte: Elaborado pelos autores
F.D.B: Bem, Giacomini (2012)
Na figura 3 percebe-se que as atividades de Apoio que no ano 2000 que tinham 15% na participação total de empresas alcança 21% no ano de 2010, um crescimento de 6 pontos percentuais. Já as
atividades Núcleo passam de 23% para 13% no ano de 2010, uma redução de 10 pontos percentuais,
e as atividades Relacionadas cresce de 61% para 66% no final do período em análise.
A figura 4 mostra a proporção da variável emprego de cada elo da cadeia sobre o somatório
destes elos. Na ilustração é possível visualizar que a força de trabalho nas atividades de Apoio passam
de 11%, no ano 2000, para 20% em 2010, um acréscimo de 9 pontos percentuais. Na atividade Núcleo
os empregos tem a sua participação relativa diminuída em 3 pontos percentuais, resultado da queda de
15% no ano 2000 para 12% no ano de 2010. Na atividade de Apoio ocorre o mesmo movimento, passando de 74% para 67% nos anos 2000 e 2010 respectivamente, uma redução na participação relativa
de 7 pontos percentuais no período estudado.
Figura 4 – Proporção das atividades de Apoio, Núcleo e Relacionada no total de empregos da
Cadeia da Indústria Criativa no Coredes Sinos nos anos de 2000 a 2010.
114
Judite Sanson de Bem, Nelci Maria Richter Giacomini, Moisés Waismann
Fonte: Elaborado pelos autores
F.D.B: Bem, Giacomini (2012)
Para estimar, no período que se estende do ano 2000 até o ano 2010, a relação existente entre
a variável emprego e a variável estabelecimentos foi utilizado o método dos mínimos quadrados ordinários (MQO).
Tem-se como hipótese que a função básica de oferta de empregos seja demonstrada na equação
(1):
(1)
( Emp) t = β 0 + β1 ( Est ) t + ε d
Sendo a variável dependente (Emp) a quantidade de postos de trabalho nos setores de Apoio,
Núcleo e Relacionada indústria criativa, bem como no seu conjunto e a variável independente (Est)
números de estabelecimentos nos mesmos setores, no Coredes Vale do Rio dos Sinos.
O valor estimado para o β1 de cada grupo de atividades ou elo da Cadeia da Indústria Criativa
informa a quantidade de empregos que são criados, dado que surge uma empresa nova. E coeficiente
de determinação (R²) calculado para cada relação estimada entre as variáveis empregos e empresas
nas atividades da Cadeia informa o quanto da variação total é comum aos elementos que constituem
os pares analisados, ou seja, o quanto da geração de empregos pode ser explicada pela variação da
quantidade de empresas.
Neste sentido analisando os dados obtidos para a atividade de Apoio, observou-se um β apoio =
14,784 e um de R² de 0,5296. Significa dizer que para cada nova empresa neste segmento abre-se 15
novos postos de trabalho, e o R² informa que somente 52,96% desta criação de empregos podem ser
explicadas por esta nova empresa, os outros 57,04% devem ser buscados fora desta relação. Quando
se observa as atividades núcleo os valores são β núcleo = 7,1108 e R² de 0,8329, ou seja, agora a expli115
ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
cação sobe para 83,29%. Quando uma empresa desse segmento surge se abre 7 novas vagas de trabalho. Para a atividade Relacionada os parâmetros calculados foram um β relacionada = 9,1981 e um R² de
0,3991. Significa que para cada nova empresa 9 empregos são criados. Porém somente 39,91% desta
relação é explicada pela nova empresa.
Para o total da Cadeia da Indústria Criativa o βtotal calculado foi de 11,817 e o R² de 0,8861.
Pode-se então afirmar que para cada nova empresa desta Cadeia são criados 11,82 novos postos de
trabalho, e que segundo o coeficiente de determinação (R²) apurado, 88,61% é explicado somente por
esta nova empresa.
Considerações Finais
A região do Consinos é considerada o berço da imigração alemã no RS e distingui-se, nacionalmente, até os anos de 1990, por ser o principal pólo coureiro-calçadista brasileiro. Seus 14 municípios apresentam diferentes estágios de desenvolvimento e esta dinâmica pode ser verificada na
urbanização, na composição da população, do produto interno bruto, entre outros, variáveis estas que
não foram motivo deste trabalho.
No entanto quando se trata de desenvolvimento regional, envolvendo os diferentes elos da indústria criativa, percebe-se que há discrepâncias de acordo com a ótica de análise neste estudo.
Percebeu-se no conjunto da Cadeia da Indústria Criativa para cada nova empresa são criados
mais de 11 postos de trabalho, e que estes novos postos de trabalhos são 88,61% explicados pela
criação desta nova empresa. Mas esta informação por si só não indica que um investimento em novas
unidades produtivas em qualquer das atividades ou elos da Cadeia não representa este retorno de empregos.
No caso das atividades de Apoio são criados quase 15 empregos, contudo apenas 52,96% destes novos empregos são explicados por esta nova empresa, quando se observam as atividades Núcleo
são criados apenas 7 empregos quando comparado com as atividades de Apoio, porém 83,29% desta
variação pode ser explicada por esta nova empresa. Já nas atividades Relacionadas abrem-se 9 empregos para cada nova empresa porém somente 39,91% da criação destes novos empregos podem ser
explicados por esta novo estabelecimento.
Desta forma verifica-se a importância dos investimentos nas atividades Núcleo da Cadeia da
Indústria Criativa, pois se percebe que ocorre uma maior resultado na criação de empregos com o
surgimento de novas empresas.
Conclui-se que o desenvolvimento regional do Consinos requer um planejamento de médio a
longo prazo se o mesmo desejar modificar sua inserção nos diferentes ramos de atividades criativas
núcleo, pois além de ser as menos representativas no atual estágio de desenvolvimento da região,
no mundo são aquelas que maiores remunerações realizam. Assim as diferentes possibilidades de
116
Judite Sanson de Bem, Nelci Maria Richter Giacomini, Moisés Waismann
ocupação dos capitais disponíveis, do conhecimento, da criatividade, inovações e as competências
tecnológicas, presentes na economia traduzem a possibilidade deste outro leque de atividades.
REFERÊNCIAS
BEM, Judite Sanson de (Coord); GIACOMINI, Nelci Maria Richter. Avaliação das áreas homogêneas
e dos impactos econômicos da cultura e das indústrias culturais: estudo do COREDE do Vale do Rio
dos Sinos – Consinos no período de 2000 até 2011. Canoas: UNILASALLE, 2012. 91f
BRASIL. MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO (MTE). Bases Estatísticas RAIS / CAGED Acesso Online. Disponível em: <http://sgt.caged.gov.br/index.asp>. Acesso em: jan. 2012
BRASIL. MINISTÉRIO DA CULTURA ( MINC). Economia da Cultura para a América Latina.
http://www.cultura.gov.br/ Acessado em jan. 2013
EUROPE UNION - EU. The Economy of Culture in Europe- Executive Summary: European Comission. Disponível em: <http://ec.europa.eu/culture/pdf/doc895_en.pdf> Acessado em: dez.2011.
FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – FIRJAN. A cadeia da Indústria Criativa no Brasil. nº 2, Maio 2008. (Estudos para o desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro).
Disponível em: http://www.firjan.org.br/main.jsp?lumItemId=2C908CE9215B0DC40121737B1C8107C1&lumPageId=2C908CE9215B0DC40121793770A2082A. Acessado em: jan. 2012.
REIS, Ana Clara Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável: o caleidoscópio da
cultura. São Paulo: Manole, 2007.
UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. Creative
Economy. Report 2008. Geneva; New York: UNCTAD; UNDP, 2008, p. 9-16. Disponível em: http://
www.unctad.org/Templates/WebFlyer.asp?intItemID=5109&lang=1. Acessado em: Nov. 2011.
* Doutora em História pela PUCRS. Coordenadora Curso Economia e prof. Mestrado em Memória e
Bens Culturais do Centro Universitário La Salle (UNILASALLE) Rio Grande do Sul; BRASIL
**Mestre em Economia pela UFRGS, Profª Titular e Pesquisadora do IEPE/UFRGS–(Aposentada da
UFRGS), Profª de Economia do Centro Universitário La Salle (UNILASALLE) Rio Grande do Sul;
BRASIL
*** Economista, Doutor em Educação pela UNISINOS. Pesquisador do Observatório Unilasalle: Trabalho, Gestão e Políticas Públicas. Professor do Curso de Ciências Econômicas do Centro Universitário La Salle (UNILASALLE) Rio Grande do Sul; BRASIL
117
4. PROTEÇÃO JURÍDICA DO AMBIENTE E DA SAÚDE
NO MERCOSUL
JORNADAS MERCOSUL
PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A GÊNESE JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA
CONSTITUINTE DE 1987/88
Yussef Daibert Salomão de Campos*
A Constituição brasileira de 1988 é um marco jurídico e político da recente história nacional.
Conhecida como a “Constituição Cidadã”, a Carta Política de 1988 nasceu em um momento em que o
país se desvencilhou de mais de duas décadas de dominação autoritária, instituída pelo golpe militar
de 1964, passando a sonhar com dias iluminados pelos faróis da democracia. Mas o processo de desenvolvimento e criação da nova carta magna brasileira não foi simples e sumário: arrolou-se durante
quase dois anos de debates, disputas e conflitos políticos na elaboração das novas diretrizes constitucionais. Diversos temas foram discutidos de forma exaustiva, como a forma de inserção dos direitos e
garantias fundamentais do cidadão e da inclusão de novos instrumentos jurídicos de proteção de bens
difusos e coletivos. Entre esses temas destaca-se o patrimônio cultural e a forma elástica com a qual
a lei maior buscou trata-lo, introduzindo inovações jurídicas (como o registro do patrimônio cultural
imaterial) ao lado de formas tradicionais de preservação (tombamento do patrimônio material).
Todavia, indagamos: quais foram os atores, sociais e políticos, envolvidos no processo de
elaboração das determinações constitucionais de preservação do patrimônio cultural? Quais os movimentos sociais foram marcantes nesse momento constituinte, nos anos de 1987 e 1988? Como se
efetivou a preservação do patrimônio cultural imaterial como novidade jurídica no Brasil? De onde
nasceram as reivindicações de tutela dos sítios remanescentes de quilombos? Qual a intenção de enumeração de instrumentos jurídicos de preservação previstos no §1º do artigo 216 (inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação)? Com a aplicação e efetivação do artigo constitucional
citado, outros valores da Carta Política serão efetivados (cidadania e a dignidade da pessoa humana;
redução das desigualdades sociais; o direito de qualquer cidadão de propor ação popular que vise a
anular ato lesivo ao patrimônio público)? Será que a lei, em sentido amplo, pode funcionar como um
instrumento de criação e manutenção de identidades sociais?
Vale apontar que o processo constituinte “foi palco de grandes conflitos de interesse e de opinião que haviam permanecido latentes, irresolutos ou agravados, durante os anos da repressão” (PILATTI1, 2008, p.01). Nesse palco se enfrentaram progressistas, marcados por segmentos da resistência democrática ao regime ditatorial, e conservadores, representados por expressões que apoiaram o
golpe militar de 1964 (PILATTI, 2008).
A partir da ideia de que o documento é um vestígio (BLOCH2, 2001), a Constituição pode ser
interpretada não como um dado rígido, mas como um material a ser interrogado e interpretado, através da análise de sua elaboração e do estudo sobre seus atores, políticos e sociais. Observar-se que o
patrimônio cultural é uma seara formada por uma miríade de identidades (POULOT3, 2009), minada
por campos de conflitos e interesses econômicos, políticos e simbólicos, inerentes ao próprio patrimônio (CANCLINI4, 1994; LOWENTHAL5, 1998; 2005). Tais identidades, que constituem o campo
patrimonial, são constituídas por sentimentos de coesão protonacional (HOBSBAWM6, 2008.), que,
em conjunto, fundamentam o surgimento de comunidades imaginadas (HALL7, 2006; ANDERSON8,
PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A GÊNESE JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA CONSTITUINTE DE 1987/88
2008). Essas construções conceituais pautam a construção das apresentações do presente trabalho,
mostrando como a Constituição de 1988 permitiu a fortificação de uma identidade nacional, através
de diretrizes nascidas de elaborações políticas e sociais.
Determina o artigo 216 da Constituição de 1988 que constituem patrimônio cultural brasileiro
“os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira
(BRASIL9, 1988)”. Afirma ainda que ficam “tombados os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos” (§ 5º). Mas que identidade é essa?
Hobsbawm aponta que:
[...] não há conexão lógica entre o corpo de cidadãos de um Estado territorial, por
uma parte, e a identificação de uma nação em bases linguísticas, étnicas ou em outras
com características que permitam o reconhecimento coletivo do pertencimento de
grupo (HOBSBAWM, 2008, p.32).
A produção do passado apresenta-se como legitimador das políticas públicas apresentadas pelo
Estado, que visa suprir essa falta de conexão lógica. O patrimônio cultural, como expressão política
da memória, é fruto para uma série de debates e altercações. Seja sua preservação apontada como
reconhecimento de direitos humanos (HARDING10, 2005), passando pelas reivindicações por repatriações de objetos da cultura material (ZIMMERMAN11, 2005; FERREIRA12, 2008.) ou, ainda, pelas
discussões sobre qual a identidade de um fóssil humano (LIPPERT13, 2005) e até nomeando-o como
legitimador de posse de terra (GEARY14, 2005), as discussões perpassam a identidade social e cultural, assim como a construção de um passado em comum. A identidade é designada como legitimadora
da preservação e/ou destruição patrimonial, sendo distante o pensamento de que a equalização entre
patrimônio e identidade seja uma justificativa generalizadora (LOWENTHAL, 2005, p.393). Ferreira aponta que o patrimônio cultural “é capaz de mediar relações políticas e sociais, de fortalecer
hierarquias e poderes, legitimando-os por meio de testemunhos materiais que lhes dão sustentação”
(FERREIRA, 2008, p.38).
Mas é preciso salientar que conceitos como patrimônio e identidade não são construções naturais, e sim categorias discursivas construídas. De acordo com Tilley, são criações recentes, influenciadas pela globalização, advindas das novas relações imperiais (TILLEY15, 2006, p.09). O patrimônio
manipula identidades, que são, como produtos da modernidade, alcançadas e não mais atribuídas,
afirma o mesmo autor. O declínio do significado de Estado-nação, que tinha nos monumentos públicos
(e no patrimônio cultural material em geral) uma metonímia sua (TILLEY, 2006, p.23), possibilitou
o (res) surgimento de outras formas de identidades coletivas, sejam étnicas, religiosas, etc. (TILLEY,
2006, p.11), que buscam seu reconhecimento, entre outros modos, através da salvaguarda de seus
patrimônios culturais. Sobre a apropriação do patrimônio e sua relação com a identidade coletiva,
Canclini estabeleceu que:
Se é verdade que o patrimônio serve para unificar as nações, as desigualdades na sua
formação e apropriação exigem que o estude, também, como espaço de luta material
e simbólica entre as classes, as etnias e os grupos (CANCLINI, 1994, p.93).
As práticas patrimoniais visam restaurar o passado no presente para projetar possibilidades em
um futuro desejável (TILLEY, 2006, p.14), realizadas por agentes e atores do presente, à guisa de suas
122
Yussef Daibert Salomão de Campos
necessidades (WEISS16, 2007, p.571; LOWENTHAL, 2005, p.396), seja através das políticas públicas, seja através da elaboração de uma carta constitucional.
O uso da lei pode ser visto como meio de construção de identidades e memórias, a partir de
conflitos de poder, conflitos sobre qual identidade reconhecer e qual passado construir. A identidade
coletiva é edificada e as nações inventadas. Mas não só as nações são imaginadas. As coletividades
inseridas nessas nações são igualmente imaginadas. Para Anderson “qualquer comunidade maior que
a aldeia primordial do contato face a face (e talvez mesmo ela) é imaginada” (ANDERSON, 2008,
p.33), sendo que, em alguns casos, “já há sinais inequívocos de que as pessoas começam a se identificar com alguma coisa que ultrapassa as fronteiras nacionais” (ELIAS17, 1994, p.189).
A formulação de uma identidade em comum objetiva, primordialmente, a unidade e o sentimento de pertença de um grupo, com espectros políticos de dominação, já que a identidade traduz-se
em jogo de poder (HALL, 2006). Esse sentimento de pertença a uma nação (ou qualquer outra forma
de comunidade imaginada) é definido por Hobsbawm como “protonacionalismo popular” ou “coesão
protonacional”, explicado da seguinte forma:
A nação moderna é uma ‘comunidade imaginada’, na útil frase de Benedict Anderson,
e não há dúvida de que pode preencher o vazio emocional causado pelo declínio ou
desintegração, ou a inexistência de redes de relações ou comunidades humanas reais;
mas o problema permanece na questão de por que as pessoas, tendo perdido suas
comunidades reais, desejam imaginar esse tipo particular de substituição. Uma das
razões pode ser a de que, em muitas partes do mundo, os Estados e os movimentos nacionais podem mobilizar certas variantes do sentimento de vínculo coletivo já
existente e podem operar potencialmente, dessa forma, na escala macropolítica que
se ajustaria às nações e aos Estados modernos. Chamo tais laços de “protonacionais”
(HOBSBAWM, 2008, p.63).
Não será redundante afirmar que o patrimônio (como representação da identidade) é, portanto,
um campo de disputas; e essas se apresentam nas dicotomias ‘memória e esquecimento’, ‘preservação
e destruição’, ‘identidade e diferença’, visto que as práticas políticas patrimoniais se apropriam de
objetos patrimonializáveis em detrimento de outros. O patrimônio cultural é uma seara de batalhas: “o
conflito é endêmico ao patrimônio” (LOWENTHAL, 1998, p.234.); o patrimônio é “espaço de disputa
econômica, política e simbólica” (CANCLINI, 1994, p.100.).
Vale apontar o uso da identidade na formação de comunidades imaginadas. Anderson, ao analisar a colonização do Sudeste Asiático por países como Inglaterra, por exemplo, enumerou algumas
ferramentas de unificação dessas comunidades e do sentimento de pertença, como a língua, o hino
(“cantar a Marselhesa [...] oferece a oportunidade do uníssono, da realização física em eco da comunidade imaginada”) e a bandeira, entre outros que propiciaram também a formação dos Estados-nação
(ANDERSON, 2008, p.203). Acrescentou três instituições de poder que seriam fundamentais para
que as colônias se moldassem às comunidade imaginadas pelos Estados coloniais: os censos, os mapas e os museus. Seriam através deles que o Estado moldava e vislumbrava seu domínio: a natureza
dos indivíduos por ele governados, os limites da área colonizada e a legitimidade da fundação de seu
Império. Essa leitura pode ser feita tanto na ação de Estados coloniais tardios como na formação de
identidades nacionais de países independentes.
Por meio dos censos o Estado colonial categorizava identidades locais, através de “funda123
PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A GÊNESE JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA CONSTITUINTE DE 1987/88
mentos” raciais ou religiosos, por exemplo. “Mapeados de cima”, conforme determina Anderson, os
dominados eram rastreados e classificados com objetivos claros: determinar quem realmente poderia
ser tributado e recrutado pelo exército; organizar novas burocracias do sistema educacional, jurídico,
de saúde pública, política de imigração, etc. Os mapas, por sua vez, delimitaram fronteiras e estabeleceram limites que comprovaram a existência de uma comunidade imaginada em um determinado
espaço territorial. Já os museus criam um passado em comum, formando laços entre identidades coletivas. O museu e a arqueologia, que podem ser vistos, segundo Anderson, como agenciadores do
patrimônio cultural, atuam como legitimadores do poder estabelecido e como depositários de heranças
em comum.
O autor aponta a ingerência desses três instrumentos na criação de comunidades imaginadas
da seguinte maneira:
Assim, mutuamente interligados, censo, mapa e museu iluminam o estilo de pensamento do Estado colonial tardio em relação aos seus domínios. A “urdidura” desse
pensamento era uma grade classificatória totalizante que podia ser aplicada com uma
flexibilidade ilimitada a qualquer coisa sob o controle real ou apenas visual do Estado:
povos, regiões, línguas, objetos produzidos, monumentos, e assim por diante. O efeito
dessa grade era sempre poder dizer que tal coisa era isso e não aquilo, que fazia parte
disso e não daquilo. Essa coisa qualquer era delimitada, determinada e, portanto, em
princípio enumerável (ANDERSON, 2008, p.253).
De forma breve vimos como censo, mapa e museu podem contribuir para a construção de uma
comunidade imaginada e, portanto, de uma de uma identidade coletiva. Tenhamos em mente o objeto
desse trabalho: o patrimônio cultural é uma representação da identidade social; logo, é um campo
que permite ser usado como construtor de uma comunidade imaginada, não só por meio de museus
ou artefatos arqueológicos, mas através de todas as categorias subjacentes ao seu conceito, entre eles,
o patrimônio cultural. Mas será a lei18 capaz de ser instrumento estatal tal qual o censo, o mapa e o
museus?
Partamos para a lei como instituição de poder. O Estado se utiliza da lei tanto para erigir um
sentimento de identidade nacional como para permitir o fortalecimento de identidades locais. No artigo 216 de sua lei maior o constituinte brasileiro, através de seu poder parlamentar, tratou de definir
quais são os bens culturais que são “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, enumerando-os, em seus incisos, através das categorias patrimônio material e imaterial. E em seu parágrafo 5º determina que “ficam tombados todos
os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos” (BRASIL,
1988). Este é um exemplo esclarecedor de artigo de lei que determina um passado em comum, criando
uma coesão imaginada entre os cidadãos brasileiros. Mas a forma de elaboração e os agentes (sociais
e políticos) responsáveis por tal diretriz constitucional continua desconhecida ou inexplorada.
Dessa forma, a lei (seja através da Constituição ou das leis a ela dependentes), assim como o
censo, o mapa e o museu, atua de forma a criar uma ligação virtual entre aqueles que são classificados em etnias ou raças, que convivem em um território previamente traçado e que compartilham de
um passado em comum. É o Estado que manipula essas etnias, esse território e esse passado. E o faz
através da lei.
124
Yussef Daibert Salomão de Campos
O patrimônio cultural se apresenta assim: como um campo de disputas de identidades, manipuladas pelo poder político, que tem, como seu braço direito, a norma jurídica. A legislação permite
a aplicação de práticas públicas de preservação que refletem exigências de reconhecimentos de determinadas identidades em detrimento de outras. Conforme Poulot, o patrimônio é um “caleidoscópio de
identidades” (POULOT, 2009, p.32). E as identidades representadas nas mais diversas manifestações
culturais no Brasil buscam reconhecimento: é o embate político que tem, de um lado, a memória, a
identidade e a preservação, e de outro, o esquecimento, a diferença e a destruição. Através da ação
legiferante, o Estado cria massas de grupos identificáveis entre si, ao determinar mecanismos de gestão de patrimônios culturais que representaram coletividades que não podem se (re) conhecer pelo
simples contato individual. Elege os patrimônios a serem preservados e dita como tais bens culturais,
ao serem geridos e promovidos nos ditames da lei, refletirão e atenderão às necessidades daqueles que
reivindicam um lugar ao sol.
Vemos, então, que as eleições feitas sobre o que se deve preservar (logo o que se deve esquecer) são marcadas por disputas políticas e sociais, simbolizadoras de conflitos entre identidades
coletivas diversas e representantes de comunidades imaginárias distintas, sejam elas locais ou globais.
São as identidades espelhadas nas nuances material e imaterial do patrimônio cultural brasileiro que o
apontam como área de disputas e reivindicações por reconhecimento, que resultam em elaboração de
normas (como o artigo 216) bem como em políticas públicas de preservação e salvaguarda.
E o patrimônio cultural, como referência, como suporte da memória coletiva, como um “quadro social da memória” (HALBWACHS19, 2006) é, conforme afirma Rosário, “perpetuação da cultura” (ROSÁRIO20, 2002), de “valores”, de “expressões máximas do pensamento e do sentimento
humano coletivos”; que “a memória nos identifica como indivíduos e como coletividade”. Enfim, a
referência cultural pode ser observada a partir dos diversos domínios da vida social, aos quais são atribuídos sentidos e valores de importância diferenciada e que, por isso, constituem marcos e referências
de identidade para determinado grupo social. Michael Pollak apregoou que
Memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual
como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante
do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua
reconstrução de si (grifei) (POLLAK21, 1992, p.204).
Porém, como os constituintes de 1987-88 se apropriaram de conceitos como “cultura”, “memória” e “identidade” na elaboração do artigo 216? Artigo esse que se mostra complexo e dinâmico,
sendo reiteradamente regulamentado por leis infraconstitucionais, como o decreto 3551 de 2000, que
institui o registro como instrumento de preservação do patrimônio imaterial.
É preciso investigar: como as diretrizes de políticas públicas patrimoniais chegaram ao corpo
constitucional, se não pela disputa e o conflito? Mas quem eram os combatentes e os combatidos? Se
o patrimônio cultural é a expressão política da memória, quais grupos se fizeram representar no artigo
216 da Constituição e como atuaram para serem reconhecidos nas elaborações constituintes de 198788? Como indício de reivindicações sociais reconhecidas pelo poder público, podemos apresentar o
tombamento do Terreiro Casa Branca, em Salvador, visto que é o primeiro bem religioso não católico preservado pelo Estado. Mesmo sendo o tombamento um instrumento jurídico datado de 1937,
somente em 1986 (ano justamente posto entre o fim da ditatura militar e o início da Constituinte) foi
125
PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A GÊNESE JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA CONSTITUINTE DE 1987/88
homologado o tombamento do terreiro. Mas essas vozes se fizeram ecoar no processo constituinte dos
anos seguintes ao tombamento feito em esfera federal?
Em suma: deve ser objeto de pesquisa, como é desse pesquisador, a investigação das reivindicações sociais e dos confrontos de interesse que perpassaram a elaboração do artigo 216 da Constituição
Federal de 1988, assim como identificar os agentes políticos que imprimiram na carta política as vozes
daqueles que queriam ver arroladas suas expressões culturais como pontos de referência da identidade
e da memória nacional. Devemos inquirir se a memória como campo de conflitos (POLLAK22, 1989)
se aplica ao momento de construção de normas constituintes relativas ao campo patrimonial, sendo
este a expressão política da memória social. E, ainda, mostrar se os interesses populares puderam ou
não ser escamoteados no processo constituinte; quem cedeu e quem exigiu que se cedesse; o que foi
lembrado e o que foi esquecido.
A escassez de obras e trabalhos em torno da Constituinte de 1987-88, no que tange ao patrimônio cultural, se apresenta como indício da necessidade de pesquisa e inquirição sobre o tema que mais
salta aos olhos. Não existe um trabalho organizado e direcionado ao momento de elaboração constitucional de diretrizes voltadas ao patrimônio cultural. Os mais diversos profissionais que se apropriam
do patrimônio cultural como objeto de estudo utilizam, diuturnamente, da Constituição como ponto de
apoio jurídico em suas investigações em torno do tema. Mas inexiste pesquisa aprofundada que responda à seguinte questão: quais foram as vozes responsáveis pela elaboração do artigo constitucional
que define o patrimônio cultural e dita regras acerca de sua promoção e preservação? Quais foram os
agentes políticos que levaram tais reivindicações para as pautas de discussão da Assembleia Constituinte? Como se deu a construção política do texto do artigo 216? Quais foram as reivindicações,
atendidas ou não, nesse processo? E quem reivindicou?
O processo constituinte deve ser observado como um processo dialético entre forças opostas,
representadas, em 1987-88, por progressistas e conservadores. Esse ponto de vista é notado a partir da
leitura de Pilatti (PILATTI, 2008), que desenvolveu um trabalho de extrema relevância, pois apresenta
um verdadeiro fluxograma das atividades constituintes e da organização das comissões e subcomissões da Assembleia de 1987-88, o que permite identificar os congressistas envolvidos em cada uma
dessas áreas de atuação. Porém não há aprofundamento no desenvolvimento das normas de preservação do patrimônio cultural, passando esse à margem da obra, até por não ser esse o objeto de trabalho
do autor, assim como em Bonavides e Andrade23 e em Coelho24.
A presença de atores sociais na constituinte de 1987-88 certamente atesta a vocação cidadã da
Carta Constitucional de 1988. Mas a identificação precisa desses membros, assim como o apontamento dos constituintes que integraram, principalmente, a “Subcomissão da educação, cultura e esportes”
(integrante da “Comissão da família, da educação, cultura e esportes, da ciência e tecnologia e da
comunicação”, presidida esta por Florestan Fernandes), se faz primordial para a compreensão da elaboração do artigo constitucional 216. Um indício da disputa é que a subcomissão em questão dispunha
de 25 titulares, entre conservadores (PFL, PDS, PTB, PL e parte do PMDB) e progressistas (PDT, PT
e parte do PMDB), sendo que o PMDB contava com 13 representantes (entre conservadores e progressistas) e o então PFL com 7; e PL, PTB e PDS com um cada; enquanto PDT e PT só contavam
com um cada partido. Porém, o desenho final da Constituição não reflete exatamente simplesmente
a aritmética da assimetria entre conservadores e progressistas. Algo de qualitativamente significativo
126
Yussef Daibert Salomão de Campos
aconteceu no processo, resultando em um texto progressista (artigo 216), o que pode apontar, por um
lado uma maior participação popular, e por outro uma maior habilidade daqueles grupos sociais que
participaram, direta ou indiretamente, da discussão.
Cabe ainda inquirir a participação de técnicos e consultores na redação do artigo constitucional
em voga. Reconhecemos a relevância do tema contido no referido artigo; é preciso que se identifique
o processo de edificação das normas e diretrizes. Conforme afirma Olender:
Faz-se necessário (...) fortalecer aquele passado que se esvai, que se transforma, paulatina ou rapidamente, em ruínas, e que constitui a densidade de nossas memórias
coletivas – realizadas cotidianamente nos comportamentos e nos diversos graus e dimensões das manifestações culturais de nossas famílias, grupos e classes sociais. Memórias que são aliadas importantes e, mesmo, fundamentais na nossa luta cotidiana
de afirmação e reafirmação da vida social e da recuperação ou desenvolvimento de
suas qualidades. Densidade esta que, por sua vez, (...) constitui o tenso, necessário
e complexo quebra-cabeças de nossas manifestações culturais (OLENDER25, 1995,
p.145).
A construção da identidade de uma nação passa, necessariamente, pela invenção de seu patrimônio cultural. E que esse processo de invenção se mostra conflitivo, ao se enumerar bens para
preservação, assim como relegar outros ao esquecimento. Os grupos sociais e políticos envolvidos
na articulação do artigo 216 certamente abordaram, cada um ao seu modo, a necessidade de se reconhecer as mais diversas miríades de expressões culturais, sejam elas materiais ou intangíveis. Mas é
preciso que os identifiquemos para que entendamos o texto final promulgado em outubro de 1988.
O texto de sugestões apresentadas pelos cidadãos brasileiros à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, entre março de 1986 e julho de 1987, com vistas à elaboração do novo texto
constitucional, apresenta-se como um sinal de reivindicações populares. No documento “A Constituição Desejada”, podem ser identificados grupos que buscaram seu reconhecimento no texto constitucional, em especial no artigo 216. Textos integrais dos anteprojetos, dos substitutivos e dos projetos
de constituição que tramitaram durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 são potenciais
indicadores de grupos políticos envolvidos, assim como a íntegra das atas de reunião da subcomissão
responsável pela elaboração do artigo 216, qual seja, “Subcomissão da educação, cultura e esportes”.
Muito mais que respostas, encontramos nessa breve exposição problemas. Problemas esses que
surgem nas elucubrações de todo aquele que investiga a memória coletiva e a identidade social, através de sua expressão política: o patrimônio cultural. “Como conceitos, tais quais ‘referência cultural’,
‘identidade nacional’ e ‘memória’, são apropriados no momento de confecção de um artigo constitucional como o artigo 216?” e “por quem são apropriados?” são perguntas que não podem continuar
sem respostas. Mas esse alvo não é simples de ser atingido. Requer pesquisa e estudo. E os resultados
dessa busca o autor desse texto se compromete a apresentar em suas investigações doravante.
127
PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A GÊNESE JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA CONSTITUINTE DE 1987/88
REFERÊNCIAS
(Endnotes)
1
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2
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
3
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente. Séculos XVIII – XXI. São
Paulo: Estação Liberdade, 2009.
4
CANCLINI, Nestor Garcia. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional.
Revista do IPHAN. Brasília: IPHAN, nº 23, 1994, p. 94-115.
5
LOWENTHAL, David. El pasado es un país extraño. Madrid: Ediciones Akal, 1998.
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nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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HARDING, Sarah. Bonnischsen v. United States: Time, Place and the Search for Identity.
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Some Impacts of the Kennewick Man/Ancient One Decision. International Journal of Cultural Property, (12): 265-274, 2005.
12
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revista eletrônica de história, memória e cultura. Ano I, nº2, 2008. p. 37-62.
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Endeavor. International Journal of Cultural Property, (12): 275-280, 2005.
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15
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16
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17
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. SP: Zahar, 1994.
128
Yussef Daibert Salomão de Campos
18
Um esclarecimento deve ser feito. O termo Lei é aqui usado em seu sentido amplo, como
“regra ou conjunto ordenado de regras” oriundas do Estado (REALE, 2006). Como toda classificação
taxonômica temos a lei em sentido amplo (ato normativo) e as suas espécies, como leis complementares, ordinárias, decreto, etc.
19
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. – São Paulo: Centauro, 2006.
20
ROSÁRIO, Claudia Cerqueira. O lugar mítico da memória. Morpheus - Revista Eletrônica
em Ciências Humanas - Ano 01, número 01, 2002 - ISSN 1676-2924. Disponível em: www.unirio.
br/morpheusonline/Cláudia_Rosario.htm. Acesso em jul. 2008.
21
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
5, n. 10, 1992, p. 200-212.
22
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
23
BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal: Paz e Terra, 1989.
24
COELHO, João G. L. A nova constituição: avaliação do texto e comentários. Rio de Janeiro:
Ed. Renavan, 1991.
25
OLENDER, Marcos. Arquitetura, História e Vida. Revista Locus-UFJF, Juiz de Fora, v. 1, n.
1, p. 143-152, 1995.
* Yussef Daibert Salomão de Campos
129
O PROERD COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO NO COMBATE AO USO DE
DROGAS NO MUNICÍPIO DE SÃO LEOPOLDO/RS
Arlindo Weber de Oliveira *
INTRODUÇÃO
No mundo globalizado em que vivemos e de constantes transformações socioeconômicas e
políticas, as mutações interferem diretamente no ato de consumir da sociedade. É comum muitas
famílias não disporem te tempo para acompanhar as atividades realizadas pelos filhos. Várias são as
desculpas, busca por emprego melhor, salário melhor, aquisição de um patrimônio melhor do que recebeu para poder deixar para os filhos e por ai vai. São várias as justificativas. Muitas dessas famílias
não dispõem se quer de tempo para acompanhar e conversar com seus filhos sobre assuntos importantes. Quando criança e adolescente, muitas dúvidas surgirão e se a criança ou adolescente não estiver
assistida pela fala de um adulto, muitos irão ingressar na adolescência com respostas oriundas de
desconhecidos ou através de meios de comunicação. Seguindo nesse contexto, é o momento onde as
drogas aparecem como resposta e solução para vários problemas existentes. É a porta de acesso para
um mundo de tristeza e dor, tanto para o dependente quanto para a família que pertence.
Nos dias atuais, as escolas estão enfrentando uma série de problemas com relação ao comportamento das crianças e dos adolescentes pertencentes a essas instituições. Sabemos que muitas
mudanças, sejam elas biológicas ou psicossociais, são pertinentes da fase dos alunos que se encaixam
nas turmas atendidas pelo programa PROERD ( Programa Educacional de Resistência às Drogas e à
Violência) realizado no município de São Leopoldo/RS. Tais mudanças alteram o comportamento o
comportamento do indivíduo, vindo este a sofrer uma série de transformações e gerando alterações
significativas.
Partindo do contexto social onde as crianças e jovens, na sua maioria, passam a maior parte
do tempo com seus pares na escola do que com os seus pais ou responsáveis, esses sujeitos irão se
desenvolver buscando nos amigos do grupo, referências para a formação da sua identidade.
Para Oliveira, 2007, (p.21-29):
Assim, dada a ausência de um senso de identidade bem delineado, um ego frágil pode
levar ao menos a duas consequências:(1) o adolescente preenche a lacuna deixada
pela fragmentação do senso da identidade com imagens idealizadas que ele captura
do outro, individual ou grupal, de maneira acrítica; (2) ele compensa a baixa auto-estima decorrente da crise de identidade com a adoção de comportamentos narcisistas,
fúteis ou de risco.
Com a possibilidade de trabalhar em escolas com turmas de contextos sociais distintos, o
PROERD vem participando e colaborando do crescimento, e porque não dizer, da formação da identidade desses sujeitos abrangidos pelo programa. Os assuntos abordados viabilizam, através de práticas interdisciplinares, a realização da escuta ativa, o trabalho em equipe, o gerenciamento de classe e
O PROERD COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO NO COMBATE AO USO DE DROGAS NO MUNICÍPIO DE SÃO LEOPOLDO/RS
principalmente a busca pela reflexão a partir de uma decisão de forma consciente. O objetivo é trabalhar com a prevenção e redução do uso indevido de drogas e também a violência entre os estudantes,
procurando reconhecer e identificar o perigo que as drogas causam, os tipos de pressão que poderão
influenciá-los. Paralelo a isso, procura-se fortalecer a cultura da paz, do diálogo, contribuindo para
uma sociedade mais feliz e por uma sociedade democrática de direito.
O PROERD COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO NO COMBATE AO
USO DE DROGAS
Segundo o Manual de Facilitação, O PROERD (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência), é uma versão brasileira do programa norte-americano Drug Abuse Resistence
– D.A.R.E., surgido em 1983. No Brasil, o programa foi implantado em 1992 e hoje conta com 03
cursos: PROERD para 5º e 7º anos do ensino fundamental e Curso PROERD para Pais. O programa
possui como material didático o Livro do Estudante, o Livro dos Pais e o Manual do Instrutor auxiliando os respectivos cursandos e os Policiais PROERD no desenvolvimento das lições.
O programa consiste em uma ação conjunta entre o Policial Militar devidamente capacitado,
chamado Policial PROERD, professores, especialistas, estudantes, pais e comunidade, no sentido de
prevenir e reduzir o uso indevido de drogas e a violência entre estudantes, bem como ajudar os estudantes a reconhecerem as pressões e a influência diária para usarem drogas e praticarem a violência,
e a resistirem a elas.
De acordo com o Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito só será realmente possível com a participação de todos. A escola tem o papel de
instruir, orientar e formar crianças e jovens a viver e trabalhar em um mundo diversificado e em constante mudança. No entanto, a escola por si só não está conseguindo atender as adversidades existentes.
Para Roble, 2008( p.63):
Uma escola que não se importa com oque acontece na vida do aluno é aquela para a
qual o estudante é apenas um número, criando um ambiente em que a educação é vista unicamente como uma obrigação a cumprir. No entanto, sabemos que a educação
deve ser o grande projeto de vida das crianças e jovens, uma espécie de aglutinador de
suas vivências, para que variadas experiências possam ser objetos de reflexão e diálogo. Essa é uma importante dimensão da educação em seu sentido mais amplo e uma
tarefa importante para a escola.
De acordo com o Manual de Facilitação PROERD 2008, na metodologia proposta pelo PROERD, o instrutor faz a mediação das discussões dos grupos, corrigindo equívocos com novos questionamentos aos alunos, buscando que eles, em interação com seus pares, encontrem a solução. O
instrutor instiga e estimula os alunos para construírem juntos, um novo conhecimento, valorizando e
colocando em primeiro plano as discussões das alunos nas atividades realizadas em equipe. O Instrutor passa a ser um facilitador da construção coletiva do conhecimento, um mediador da aprendizagem.
A família, por sua vez, tem papel importantíssimo nesse processo. As motivações individuais
de consumo, estão relacionadas com a personalidade do indivíduo, sua história de vida e, portanto, seu
132
Arlindo Weber de Oliveira
contexto familiar. A importância da família para o desenvolvimento do indivíduo é fundamental para
a sua formação. O que se observa, diante de um mundo globalizado, é a ausência da família em vários
aspectos. As famílias estão sofrendo alterações ao longo dos tempos. É comum nos dias atuais, por
exemplo, famílias não conseguirem mais realizar uma refeição diária em conjunto. Isso revela que as
famílias não estão conseguindo gerenciar e controlar suas tarefas diárias.
Segundo Magnani ( 2009, p.37), os pais devem ter em mente que é preciso deixar claro para
seus filhos quais são as regras sociais e como elas devem ser seguidas, além de explicitar quais serão
as consequências caso elas não sejam respeitadas. Evidentemente que não está se afirmando que cada
lar deve se tornar um local de disciplina e vigilância, tal como um “quartel”, mas é essencial que todos
os membros de uma mesma família, que dividem o mesmo lar, saibam quais são as regras a serem respeitadas para que se tenha harmonia no ambiente doméstico. Além disso, é a partir da vida em família
que o adolescente percebe como deve se portar diante dos outros de sua comunidade.
ÍNDICES DE VIOLÊNCIA
Segundo a OMS, os índices de violência estão crescendo de forma preocupante no Brasil. Cidades da região metropolitana de Porto Alegre, entre elas São Leopoldo, estão entre as mais violentas
do Estado do Rio Grande do Sul. Os jovens são as principais vítimas dessa realidade, aparecendo em
destaque nas estatísticas sobre violência, desemprego, gravidez indesejada, falta de acesso as atividades culturais, entre outros indicadores.
Pesquisas comprovam que as drogas são uma das principais causas desses problemas, podendo
ser passíveis de prevenção. A partir desse momento é que se busca, de maneira interdisciplinar, com
a participação da família, da escola e da polícia buscar estratégias para a prevenção e o combate ao
uso de drogas. No município de São Leopoldo/RS, essa parceria vem sendo feita desde o ano de 2000,
tendo como alunos formados até o presente momento, mais 14.000 jovens. O uso de tal ferramenta
como traz o tema do artigo, veio para somar e colaborar com a formação de crianças e adolescentes
do município. A inserção do programa nas escolas do município, sejam elas municipais, estaduais ou
particulares, é cada vez mais requisitada.
Para tentar entender os motivos que levam as crianças que frequentam as escolas cadastradas
no programa PROERD, a experimentar bebida alcoólica ou cigarro, bem como entender se já sofreram violência física ou psicológica por causa das drogas, foi realizada uma pesquisa quantitativa com
310 sujeitos entrevistados. Os sujeitos entrevistados, foram os alunos do 5º ano que participaram do
PROERD no 1º semestre do ano de 2012 das escolas contempladas com o programa no município de
São Leopoldo/RS. O questionário foi elaborado pela equipe de instrutores do PROERD de São Leopoldo, contendo 07 questões sobre o uso de substâncias psicoativas conforme anexo.
Os resultados mostraram que 32% das crianças já fizeram uso de bebida alcoólica pelo menos
uma vez e 18% mais de uma vez. Segundo os entrevistados, os motivos são, por ordem, curiosidade
(55%), alguém mais velho em casa faz uso (39%) e a pressão dos amigos (6%). Mostrou também, que
5% das crianças já sofreram violência física, 5% violência psicológica e 16% já sofreram as duas.
Além disso, 24% dessas crianças e adolescentes já viram alguém da família sofrer agressão física e/
133
O PROERD COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO NO COMBATE AO USO DE DROGAS NO MUNICÍPIO DE SÃO LEOPOLDO/RS
ou psicológica.
Diante da pesquisa realizada com os alunos do PROERD, do 5º ano, das escolas abrangidas, do
município de São Leopoldo/RS, fica claro a participação das famílias como sendo, na grande maioria
dos casos, as responsáveis pela iniciação e consentimento no consumo de drogas lícitas. Práticas como
permitir que crianças e adolescentes bebam em festas de finais de ano ou aniversários, comprovam os
resultados. Além disso, várias crianças afirmaram, durante as aulas, que são responsáveis pela compra
de bebida e cigarros para integrantes de suas famílias.
Alguns autores relatam que o consumo
de álcool por adolescentes são “ritos de passagem” sinalizando o ingresso no mundo adulto. O álcool
causa no adolescente uma série de consequências, interferindo tanto na aprendizagem quanto no desempenho das atividades escolares. O organismo e o corpo estão em desenvolvimento e o consumo
precoce afetando o rendimento escolar. Estudos relacionados ao cigarro, comprovaram que existem
mais de 4.700 substâncias tóxicas na fumaça do cigarro e que o cigarro é a causa mais comum de câncer de pulmão. Outro fato observado nas respostas, foi com relação aos motivos pela busca das drogas:
a curiosidade é o atrativo dos jovens. Saber qual é a sensação, qual é o “barato” que dá quando se faz
uso de cigarro ou de álcool. Chama a atenção o segundo motivo. O fato de alguém mais velho fazer
uso, faz com que muitos jovens experimentam a partir do momento em que estão vendo alguém da sua
família ingerir álcool ou fumar cigarro. Muitas crianças relataram que percebem que após o uso, seja
de cigarro ou bebida alcoólica, seus pais ficam mais “alegres,” e relacionam essa “felicidade” ao uso
de drogas.
Ficou evidente que acontecem muitos atos de violência física e/ou psicológica por causa das
drogas e que muitas dessas ações são presenciadas pelos sujeitos da pesquisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nas dez lições que o programa apresenta e nas respostas obtidas através do questionário aplicado com os sujeitos, o PROERD exerce um importante papel de prevenção, uma vez que
proporciona a criança e ao adolescente uma série de informações necessárias, ajudando a reconhecer
os perigos que as drogas causam, reduzir o uso indevido de substâncias lícitas e ilícitas, bem como
auxiliar na escolha da decisão saudável de maneira confiante. O programa permite que os alunos,
através de um modelo de tomada de decisão, possam definir o problema ou oportunidade quando este
surgir, posterior analisar, pensando nas diferentes opções (pós e contras) e depois atuar tomando uma
decisão. Após feita a escolha os alunos avaliam se a escolha foi boa ou não.
Portanto, tal ferramenta vem tendo destaque pelas ações e resultados que vem obtendo. O fortalecimento de uma cultura de paz e a construção de uma sociedade mais feliz precisa da participação
e o empenho de todos juntos (escola, família e polícia).
134
Arlindo Weber de Oliveira
REFERÊNCIAS
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MAGNANI, Aline Iris Gil Parra. Intervenção e Aprendizagem: Adolescência. Curitiba: IESDE Brasil
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Manual de Facilitação PROERD, 3ª edição. 2008.
OLIVEIRA, Maria Cláudia Santos Lopes. Vínculos imaginários. Mente e Cérebro. São Paulo: v.2, p.2129, 2007. Série: O olhar adolescente: Os incríveis anos de transição para a idade adulta.
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ROBLE, Odilon. Escola e Sociedade. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2008.
* Mestrando em Memória Social e Bens Culturais ( UNILASALLE), Pós-Graduado em
Educação e Sociedade pela UNICID e Graduado em Geografia – Licenciatura Plena
- pela UNILASALLE. É Policial Militar ,Instrutor/Professor do PROERD ( Programa
Educacional de Resistência às Drogas e à Violência.) em Escolas Públicas e Privadas
no Município de São Leopoldo/RS.
135
5. PATRIMÔNIO CULTURAL
JORNADAS MERCOSUL
A CULTURA E O PATRIMÔNIO IMATERIAL DE POVO NOVO
Alexandre da Silva Borges *
Helissa Renata Gründemann **
Jean Baptista ***
Considerações iniciais e as proposições para o Patrimônio Imaterial
O seguinte artigo tem por objetivo apresentar alguns dos patrimônios imateriais da comunidade de Povo Novo (3º distrito de Rio Grande – RS) e, para tanto, tecer uma breve discussão acerca do
conceito de Patrimônio Imaterial. Por conseguinte, abordaremos um pouco da história da localidade,
para entendermos como se dá esta formação patrimonial. Esta comunidade, por ser distante do centro
de sua cidade, Rio Grande, e por sua ruralidade, acabou por tecer uma identidade própria. Obviamente
tal fato é comum no território brasileiro graças suas longas distâncias e por sua variada colonização.
Pensando de modo mais amplo e geral, podemos notar que a cultura brasileira representa-se
num grande mosaico, o qual tem suas diferenças e contornos derivados por diversos motivos: de cunho
étnico-racial, regional, devido ao clima, território, entre outros fatores decisivos para sua formação.
No final do século XIX, cientistas sociais voltaram-se seus estudos para o conceito de brasilidade.
Isso se deu pela necessidade de entendermos o que constituiu e o que constitui nossa identidade. Tais
cientistas se depararam com a seguinte realidade:
(...) grande heterogeneidade de traços culturais ligados à variedade dos grupos étnicos que coexistiam no espaço nacional que se distribuíam diversamente conforme as
camadas sociais. Os traços culturais não configuravam de modo algum um conjunto
harmonioso que uniria os habitantes, comungando nas mesmas visões do mundo
e da sociedade, nas mesmas formas de orientar seus comportamentos. Complexos
culturais aborígenes, outros de origem européia, outros ainda de origem africana coexistiam. (QUEIROZ, 1989, p.1)
Essa discussão é muito atual e presente em nosso cotidiano, quando nos deparamos com fatores
comuns em nossa sociedade, os quais apontam suas diversas características na forma de ser – seja na
música brasileira, tão variada quanto as suas danças; o sotaque que se diferencia de sul a norte deste
país, a vasta gastronomia, etc. No entanto, estes “cacos”, espalhados pelo território brasileiro, unemse de forma aleatória, mas com devido sentido e explicação histórica, formando distintos quadros da
sociedade brasileira.
Uma forma de se analisar estes “mosaicos” e seus “cacos”, e assim compreende-los, se dá na
observação da construção do patrimônio, neste caso local. O patrimônio tem seu sentido e fundamento
com as constâncias, tradições, através dos tempos. Como diria Ulpiano Bezerra de Menezes, na abertura da ANPUH-RS de 2012 na Universidade Federal do Rio Grande, a “identidade é o que permanece
na mudança”. Acreditamos que esta identidade representa-se no processo de elencar e escolher seu
patrimônio.
A CULTURA E O PATRIMÔNIO IMATERIAL DE POVO NOVO
Sabemos que, com o avanço tecnológico, como a internet e os canais midiáticos, o processo de
dialética entre culturas se dá em maior intensidade, a troca de saberes. Para muitos, este evento pode
significar uma perturbação na manutenção de práticas tradicionais ainda vivas em nossa sociedade.
Numa discussão sobre “multiculturalismo e educação intercultural”, Leunice Martins de Oliveira conclui que “os indivíduos co-existem num espaço-tempo dado, em que não apenas se mesclam, mas se
colocam numa situação em que o pensar e o agir de uns e outros trazem à tona as zonas conflitivas da
relação com a diferença cultural” (OLIVEIRA, 2008, p. 61).
Mas então, o quê é o Patrimônio Imaterial? Com o artigo 2º da Convenção para a Salvaguarda
do Patrimônio Imaterial Cultural Imaterial explica-se que patrimônio cultural imaterial é entendido
como:
[As] práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os
instrumentos – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural
imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza
e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana
(UNESCO, 2003 apud CAVALCANTI; FONSECA, 2008, p.11).
Para entendermos melhor sobre este conceito vamos decorrer sobre sua origem e sentido. O
Patrimônio Imaterial nasce no campo cultural, predisposto a dar visibilidade aos aspectos ímpares e
intangíveis de comunidades diversas, dentro de um contexto de transformações no mundo contemporâneo, visando agir contra as desigualdades e intolerâncias. Se antes “patrimônio” era considerado
como só as edificações, enfim, os aspectos materiais que o homem construiu e com os quais teceu
laços de significado, agora com o conceito de imaterialidade do patrimônio começa-se a pensar que
estes laços não dependem de algo físico, e que os aspectos culturais imateriais são tão importantes
quanto os materiais na formação e manutenção da identidade dos grupos humanos.
Em escala mundial, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência
e a cultura) desde sua criação, após a II Guerra Mundial, caracteriza-se pela defesa da diversidade
cultural. De maneira geral, as bases das ações entre as nações relativas ao Patrimônio Imaterial estão
no documento da UNESCO “Recomendações sobre a Salvaguarda do Folclore e da Cultura Popular” (1989), e na instituição do programa de “Proclamação das Obras-primas do Patrimônio Oral e
Imaterial da Humanidade” (1997). Porém, foi em apenas em 2003 que a UNESCO organizou a já
mencionada “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial” em Paris, que de fato
incentivava seus países-membros à criarem de políticas públicas específicas para a salvaguarda de
seus Patrimônios Imateriais. Consequentemente, desde este documento, nota-se um crescimento na
predisposição à salvaguarda destes patrimônios descortinados, com o interesse e “fomento ao diálogo
intercultural e à criatividade humana” (CAVALCANTI; FONSECA, 2008, p.7), através de políticas
públicas no intuito de fortalecer a diversidade cultural.
Podemos dizer que, no Brasil, esta discussão e interesse já são muito antigos, iniciando na
década de 1930 quando Mario de Andrade pensa e trabalha num amplo e detalhado tema acerca do
manejo do patrimônio cultural, que de fato colaborou para as primeiras diretrizes para o então denominado SPHAN (atual IPHAN). Já em 1988, a Constituição Brasileira, conforme seu artigo 216, diz:
140
Alexandre da Silva Borges, Helissa Renata Gründemann, Jean Baptista
“constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Deixa claro também que “O Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e
a difusão das manifestações culturais”.
Assim, para apoiar estas definições, o IPHAN, antecipando a própria Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da UNESCO, estabeleceu pelo Decreto nº 3.551 de 04 de agosto de
2000, os Instrumentos de Identificação e de Preservação dos Bens Culturais Nacionais, elegendo o Inventário Nacional de Referências Culturais como um conjunto teórico-metodológico para se evidenciar as manifestações de distintos grupos, suas dificuldades para manter a prática e os planejamentos
para evitar que a prática desapareça. Para o IPHAN, como descrito neste decreto, e em consonância
com a Constituição Brasileira e a legislação internacional, o patrimônio imaterial forma-se e define-se
pelos “saberes, os ofícios, as festas, os rituais, as expressões artísticas e lúdicas, que, integrados à vida
dos diferentes grupos sociais, configuram-se como referências identitárias”, merecendo, assim como
os patrimônios materiais (edificações) serem preservados.
Metodologia
Como base metodológica, utilizamos a pesquisa-ação. Por vezes considerada como uma “metodologia de ação” e não só como uma metodologia de pesquisa, seu objetivo primeiro é a ação social,
a mudança efetiva de uma situação específica (DIONNE, 2007, p.34-35). Esta metodologia surgiu
com a constatação cada vez mais evidente dos pesquisadores das Ciências Humanas dos limites da
pesquisa científica tradicional em relação aos problemas cruciais da nossa sociedade (BARBIER,
2006, p.19-20). Jean Dubost define pesquisa-ação como uma “ação deliberada visando a uma mudança no mundo real, [...] englobada por um projeto mais geral e submetendo-se a certas disciplinas para
obter efeitos de conhecimento ou de sentido” (DUBOST, 1987, apud BARBIER, 2006, p. 36). René
Barbier também explicita:
Se por muito tempo o papel da ciência foi descrever, explicar e prever os fenômenos,
impondo ao pesquisador ser um observador neutro e objetivo, a pesquisa-ação adota
um encaminhamento oposto pela sua finalidade: servir de instrumento de mudança
social. Ela está mais interessada no conhecimento prático do que no conhecimento teórico. Os membros de um grupo estão em melhores condições de conhecer sua realidade do que as pessoas que não pertencem ao grupo. A mudança na pesquisa clássica,
quando há lugar para isso, é um processo concebido de cima para baixo. (2006, p.53).
Assim, percebemos que a pesquisa-ação pode ser muito útil em projetos que visam agir na sociedade em prol de uma melhoria, assim como em uma abordagem que leva em conta a realidade da
comunidade em questão e de suas problemáticas, buscando auxiliar na resolução de demandas.
Tendo isto em vista, as abordagens entre os participantes do Programa e os membros da comunidade sempre são feitas de igual para igual, sem nenhum tipo de hierarquização de saberes. As ações
então são variadas, desde conversas com os moradores para melhor identificar determinadas situações e demandas; realização de Rodas de Memória; documentação e registro audiovisual, mediante
141
A CULTURA E O PATRIMÔNIO IMATERIAL DE POVO NOVO
permissão dos interessados, dos aspectos relevantes para determinado objetivo; entre outras que acabam sendo específicas de cada caso, pois aparecem com as demandas de cada comunidade.
Um breve histórico de Povo Novo
O turbulento contexto de surgimento de Povo Novo se dá com a invasão espanhola no Rio
Grande de São Pedro. Por este fato, muitos dos portugueses que ali viviam (habitando e protegendo a
fronteira da colônia) não permaneceram, fugindo para o interior, mais precisamente para a atual Ilha
da Torotama. Consequentemente ocorre o inchaço populacional da ilha, levando então à formação
de um novo povoado, Pueblo Nuevo del Torotama. A participação de Povo Novo para a sustentação
do Rio Grande foi importantíssima, já que em Torotama e Povo Novo os terrenos eram cultivados e,
como chácaras, “permaneceram responsáveis pela produção agrícola da Freguesia, que respondia pelo
abastecimento do mercado local” (QUEIROZ, 1987, p. 141).
O distrito surge como Freguesia de Povo Novo apenas em 1846, quando o mesmo é elevado
à Paróquia (Lei nº 35 da Assembléia Provincial de 06/05/1846). No entanto, o local já era habitado
muito anteriormente por açorianos, já que em 1777 é edificada uma casa para a celebração de missas
– prova de habitação. Não deveremos esquecer que, muito antes disso, já havia a presença indígena na
região, a qual é comprovada pelos materiais arqueológicos encontrados em Povo Novo.
O município de Rio Grande é formado por cinco distritos e um sub-distrito. Estes distritos
estão afastados do centro e, por conseqüência, acabam por não incorporar a identidade riograndina
da mesma forma que a região central, dois destes distritos são ilhas, o que dificulta uma maior interação. Um fator considerável e consequente é a negligência da administração municipal, a qual “dá
as costas”, graças à “conveniente” distância, servindo-se desta realidade como justificativa para o seu
desinteresse. Povo Novo está localizado a 40 km de distância de seu município e a 20 km da cidade de
Pelotas. Logo, a ligação do pongondó1 é mais intensa com esta última, principalmente quando falamos
em comércio, educação, saúde e lazer. Basicamente, o pongondó gasta em Pelotas, gerando lucros,
não à sua cidade, mas sim à cidade vizinha. Decorrente destas características, o distrito também não se
sente representado por Rio Grande, gerando a iniciativa local de se emancipar – ação esta sem êxito.
Povo Novo, uma comunidade que vive entre a ruralidade e o caótico “progresso” de sua cidade a qual
não discuti medidas administrativas que geram impactos à localidade, como as obras e suas conseqüências (caso da duplicação da BR-392).
Hoje em dia, Povo Novo é conhecido como terra açoriana, no entanto, é claro que também é
formado por negros e, antes mesmo de sua fundação, por indígenas que aqui permaneciam. Essa mistura étnico-racial possibilitou a diversidade cultural que o pongondó (habitante de Povo Novo) desfruta. No entanto, podemos dizer que esta é uma visão microscópica da configuração típica de nosso país:
uma mistura de raças, cores e sabores, os quais tecem esta trama chamada de diversidade cultural ou,
1
Este conceito é cunhado, segundo moradores, pelos espanhóis que ali passavam no período de formação de Povo Novo
(contexto de muita vulnerabilidade e miséria), os quais diziam “yo pongo dó”: afirmando que tinham pena da tal situação
marginalizada. Com isso, fica ao morador, habitante nascido ou não de Povo Novo, esta designação: pongodó. No entanto,
existem variâncias como: pogondó e pongondó, este último mais utilizado.
142
Alexandre da Silva Borges, Helissa Renata Gründemann, Jean Baptista
como dizem os portugueses, esta caldeirada2.
Figura 1: Demarcação do território que compreende Povo Novo.
O Patrimônio Imaterial de Povo Novo
Como vimos, Povo Novo é ligado e formado pela composição de valores da cultura luso-açoriana, e por tal fato, tem-se no distrito um sem número de manifestações típicas dessa origem. Citamos
como exemplo os Ternos de Santos, prática ainda viva na comunidade que consiste em um festejo
religioso em comemoração aos santos dos meses de junho e julho. Precisamente, os grupos (ternos)
realizam um trajeto e, de casa em casa, tocam músicas típicas de tal festejo, levando mensagens de
amizade e paz.
Para trazermos como exemplo uma característica cultural de outra etnia, temos como uma prática, tipicamente africana, o enrestar (trançar), modo de fazer as résteas (tranças) de cebola e/ou alho,
importante atividade para a economia local; o enrestar é antecedido por outra prática, que é o corte de
junco (planta aquática que serve para enrestar), o junco é retirado de seu habitat, sendo cortado, logo
após, o mesmo passa por um processo de prensa – o qual é feito por dois rolos, ou é batido por um
“macete”, após é posto ao sol para secar e vendido à quilo. O junco será comprado, geralmente, por
“banqueiros” (vendedores que utilizam bancas, às margens da BR-392, estes comerciantes vendem
frutas, verduras, legumes, etc.. Como podemos notar, há um entrelaçamento em todos estes aspectos:
culturais, econômicos, sociais, etc. A venda em bancas é peculiar em Povo Novo, logo, também tomamo-la como um fazer típico local.
A relação que Povo Novo tem com a cultural de matriz africana é marcante, no entanto negli
2
Em Portugal é comum a utilização da expressão caldeirada, caldeira étnica, que designa a variada formação da cultura
e identidade deste país, utilizada pelos portugueses para designar a mistura étnico-racial da formação lusa.
143
A CULTURA E O PATRIMÔNIO IMATERIAL DE POVO NOVO
genciada. Hoje, com os estudos da historiadora Treyce Ellen Goulart3, conhecemos uma comunidade,
familiar, localizada no Arraial de Povo Novo, que vive em condições idênticas a comunidades remanescentes de quilombo. A família Amaral descende de negros que atuaram no processo de escravização da localidade, mais precisamente, atuaram como escravos da família Mendonça. Estas relações de
subordinação e desapropriação de mantiveram até a atualidade.
A matriz africana está presente, também, na religiosidade pongondó. No distrito, apenas uma
casa de Umbanda permanece em atividade, aberta ao público externo: o Centro Espírita Umbandista
Seguidores do Pai Sete Flechas das Matas. Relacionada à religiosidade estão as benzeduras, as quais
também fazem parte do leque patrimonial de Povo Novo, práticas que sobrevivem com os mais idosos, fazendo parte do cotidiano pongondó, da mesma forma que os saberes da utilização de ervas para
a cura de doenças, uma “medicina alternativa”.
Vinculado à cultura indígena está a utilização de ervas e frutos naturais, como medicina alternativa, para a cura de doenças. Muitas das vezes, tal prática não é valorizada e conceituada como
típica da cultura indígena; o assado da tainha em taquara (peixe de água salgada, ou “saloba”) é
outra característica das práticas tradicionais indígenas. Devido ao antigo percurso dos nativos, como
os Kaingang, pela costa do Rio Grande do Sul (a península da Lagoa dos Patos), em busca de alimentos, sementes, etc., relacionamos o assado em estaca (cana, taquara) como uma gastronômica,
indígena (pelo seu modo prático e pelo material utilizado). Hoje em dia este modo de fazer, o assado
da tainha, tornou-se gastronomia típica da cidade de Rio Grande, atraindo turistas de todos os lugares,
concentrando grande público, principalmente na Festa do Mar e a Festa do Peixe; e o deslocamento
dos indígenas, de Iraí (norte do estado) até Rio Grande, se dá com o intuito de venda do seu artesanato.
Considerações Finais
Acima, elencamos alguns dos patrimônios imateriais de Povo Novo. O que trazemos como
preocupação é, justamente, a permanência destes fatores culturais na comunidade. Notamos, como
ameaça, o avanço do “progresso” da cidade que pouco volta os olhos para o seu distrito, o qual sofre
com as consequências das ações administrativas, as quais buscam a dinamização e melhoramento das
condições de acesso ao Super Porto. A duplicação da BR-392 é um exemplo: tanto o patrimônio ambiental da região, quanto o patrimônio edificado, está padecendo pelas “grandiosas” obras da bandeira
do progresso.
Um dos maiores banhados da região (o banhado 25) foi terraplanado para a construção da outra
via, ocorrendo o desmatamento de árvores e sua drenagem. O antigo prédio da Escola Estadual de Ensino Médio Alfredo Ferreira Rodrigues, está prestes a ser demolido para a construção de um viaduto.
Lembramos aqui do valor “simbólico” destes patrimônios: o prédio a ser demolido é uma referência da
comunidade, sendo que todos os que passam pela BR identificam Povo Novo pela escola. Para o pongondó a escola é um símbolo que representa aquele lugar. Sem falarmos dos inúmeros desalojamentos
3
Treyce Ellen Goulart é historiadora, formada pela Universidade Federal do Rio Grande e coordenadora do Programa de
Extensão Comunidades FURG (ComuF). Atua junto à comunidades quilombolas do município de Rio Grande: Quilombo
dos Macanudos (situado na Vila da Quinta – RG) e o quilombo (ainda em processo de reconhecimento) da família Amaral,
localizado no Arraial, em Povo Novo.
144
Alexandre da Silva Borges, Helissa Renata Gründemann, Jean Baptista
ocorridos e o fechamento das “bancas”, prática econômica típica de Povo Novo (que já citamos). Os
impactos da duplicação serão mais intensos, obviamente, para os que usufruíam da BR não duplicada
para a venda de “quitandas”. Sendo assim, sem bancas não haverá quem fará as résteas de cebola e
alho. Sem o profissional que enrresta, não haverá comprador de junco. Consequentemente, não haverá
porque continuar com a prática do corte de junco; acarretando o desaparecimento dos vários “cacos”
do mosaico patrimonial, enunciado no início de nosso texto, a cultura pongondó se esmaece, se perde
ou – para alguns – se “muta”. Portanto, acreditamos que não apenas o patrimônio material lidará com
as consequências do caótico “progresso”, mas também o imaterial.
Pelo viés cultural as condições de marginalidade do distrito oferecem um estado de “proteção”.
A resistência do patrimônio pongondó se dá, além de outras formas, principalmente pelo seu relativo
isolamento, considerando a distância que o distrito possui de sua cidade. No entanto, a preocupação
que temos, relativa à permanência das práticas tradicionais de Povo Novo, se dirigem à inexistência
de ações de salvaguarda neste campo. Logo, nosso trabalho como historiadores extensionistas nesta
comunidade está sendo o levantamento patrimonial e, por relatos orais, o registro da história e da
diversidade cultural pongondó.
REFERÊNCIAS
BARBIER, René. A Pesquisa-Ação. Brasília: Liber Livro Editora, 2007.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de
outubro de 1988.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio imaterial no Brasil – Legislação e Políticas Estaduais. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008.
DIONNE, Hugues. A Pesquisa-Ação para o Desenvolvimento Local. Brasília: Líber Livro Editora,
2007.
IPHAN. Decreto nº 3.551 de 04 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Agosto/2000.
OLIVEIRA, Leunice Martins de. Multiculturalismo e educação intercultural. In: La Salle: Revista de
Educação, Ciência e Cultura / Centro Universitário La Salle. – v. 1, n. 1 (outono/1996). Canoas: Centro Editorial La Salle, 1996.
QUEIROZ, Maria Bertuline. A Vila do Rio Grande de São Pedro 1737 – 1822. Rio Grande: FURG,
1987.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Identidade Cultural, Identidade Nacional no Brasil. In: Tempo
Social - Rev. Sociologia da USP. São Paulo: 1. sem 1989.
145
A CULTURA E O PATRIMÔNIO IMATERIAL DE POVO NOVO
Alexandre da Silva Borges *
Graduando de História Bacharelado na Universidade Federal do Rio Grande - FURG e Bolsista do
Programa de Extensão COMUF (PROEXT-2012/MEC/SESu)
Helissa Renata Gründemann **
Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG, graduanda de História Licenciatura na Universidade Federal do Rio Grande - FURG e Bolsista do Programa de Extensão COMUF
(PROEXT-2012/MEC/SESu)
Prof. Dr. Jean Baptista ***
Orientador e Coordenador do Programa de Extensão COMUF (PROEXT-2012/MEC/SESu)
146
NOS CAMINHOS DO SANTO MONGE
Fabian Filatow *
Introdução
O presente artigo tem como objetivo efetuar uma análise sobre as representações do sagrado
atribuídas ao santo monge João Maria. Personagem que obteve significativo destaque junto a diferentes comunidades da região sul do Brasil, tendo iniciado no século XIX e existente até a atualidade.
Sua representação esteve identificada com a ocorrência de movimentos sociais ocorridos na primeira
metade do século XX, como por exemplo, Monges do Pinheirinho (Encantado, RS – 1902); Guerra do
Contestado (1912 – 1916) e Monges Barbudos (Soledade, RS – 1935 –1938). Ainda hoje é possível
identificarmos sua presença no imaginário religioso popular, principalmente em localidades da região
sul do país, nas quais podemos identificar a existência de devotos deste santo popular.
O estudo tanto da origem história deste personagem quanto da construção da representação do
sagrado que lhe foi atribuída, contribuiu para uma melhor compreensão da cultura popular na região
sul do Brasil. Os espaços do sagrado, os quais foram e que ainda são identificadas com a figura do
santo monge, como as fontes d’água, contribuem para a sacralização do espaço e sendo assim, para a
confirmação da santidade do santo monge ao longo do tempo e do espaço. Estes espaços permanecem
até hoje como locais identificados com o santo monge, confirmando seus dons taumaturgos. Temos
ainda os conhecimentos sobre o uso das ervas, com fins medicinais, as quais operariam verdadeiras
curas, também estes saberes populares contribuíram para a construção da imagem do santo, conhecimento este que dialogava com os saberes das comunidades nas quais a representação do santo monge
obteve acolhida.
Assim sendo, o estudo sobre o santo monge contribui para uma melhor compreensão das representações do sagrado e das visões de mundo que estiveram presentes e que contribuíram para a
formação de identidade nos movimentos sociais aos quais nos referidos acima.
Almejando atingir os objetivos propostos, faz-se necessário explicitarmos os instrumentos teóricos que nos orientaram neste estudo, tais como santidade, representação, cultura, o que faremos em
seguida.
Segundo Rudolf Otto, a santidade é uma qualidade que adquirem certas pessoas, coisas, lugares, animais, ações e acontecimento em virtude de seu contato com um poder misterioso, sobrenatural.
O autor ressalta ainda o caráter ambíguo do conceito santoral, que significa, ao mesmo tempo, uma
ruptura e uma ligação. Para Otto, a santidade implica, por um lado, um rompimento com os elementos
profanos do mundo, e, por outro, o estabelecimento de elos com o divino. (OTTO, 1985)
Associado a concepção de santidade, temos a noção de santo. Ser santo está condicionado a
NOS CAMINHOS DO SANTO MONGE
ser visto e tratado como tal, ser aceito por uma determinada cultura, ou grupo social como santo. Para
André Vauchez, “só se pode ser santo em função dos outros e pelos outros” (VAUCHEZ, 1987, p.
290.), ou seja, na medida em que se é aceito, reconhecido e tratado como santo por outras pessoas,
podemos compreender a noção de santo como uma relação de alteridade. Ou seja, tanto a santidade
quanto o ser santo está atrelado ao grupo que o concebe como tal, o indivíduo, lugar ou objeto se torna merecedor da qualidade de santidade ou de santo através dos outros, não havendo uma relação de
imposição externa, mas um reconhecimento a partir da cultura do grupo que o qualifica, caso ocorrido
com a representação de João Maria, transformado em santo monge, sendo agraciado com a qualidade
de santidade e de santo, pois obteve uma identificação com a cultura nas regiões onde é cultuado.
Ao longo do tempo a presença do santo monge permaneceu viva no sul do Brasil. Esta permanência pode ser explicada pela representação do sagrado. Segundo o historiador Roger Chartier,
representações “são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam” (CHARTIER,
1990. p. 17). Neste sentido, devemos compreendê-las presentes também no sagrado compondo os
movimentos sociais destacados neste estudo, fazendo-se necessário relacionar o signo visível e o seu
referente por ele significado. Assim, estaremos utilizando o conceito de representação no sentido de
representar algo ausente, ou seja, ‘algo que está no lugar de’.
As representações se forjam inseridas numa cultura, estando a ela relacionada. Segundo Cliford Geertz, cultura é “[...] um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em
símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais
os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à
vida”. (GEERTZ, 1978. p. 103).
Podemos assim definir que as representações do sagrado se encontram relacionadas com a realidade social dos sujeitos que compuseram os movimentos citados, as quais estavam inseridas na sua
cultura, sendo uma forma de sua expressão. Analisar as representações do sagrado possibilita compreender melhor a cultura dos sujeitos que compuseram os movimentos sociais destacados no início
deste trabalho. Possibilita igualmente compreender um dos elementos que pode ter contribuído para a
formação de uma identidade alicerçada numa concepção religiosa, numa concepção de sagrado. Casos
que são mais evidentes em movimentos como do Contestado e dos Monges Barbudos, que tiveram na
figura do santo monge a sua formação sócio-religiosa.
Neste sentido, Duglas Teixeira Monteiro, estudando o movimento do Contestado, apresentou
uma análise da representação do monge frente à do padre. A pedagogia dos sujeitos reconhecidos
como monges se encontrava em sintonia com a cultura dos caboclos, desenvolvendo suas ações e pregações a partir desta cultura, ou seja, criando uma identificação com a cultura dos caboclos. Monteiro
apresentou a função do monge da seguinte maneira:
Em contraste com o padre - porta-voz de uma instituição estranha - que, saindo de sua
sede paroquial, situada numa vila ou cidade, também percorria o sertão, o monge vivia
no sertão. [...] Ao contrário do padre, esses estranhos se deixavam assimilar. Conquanto
vivessem uma vida apertada e cultivassem hábitos mais ou menos ascéticos, passavam a
fazer parte integrante da vida social sertaneja, como se fossem uma florescência natural
da religião católica rústica. Representava o monge, desse modo, um papel equivalente
ao do padre, mas estava a serviço e era a expressão da autonomia do mundo religioso
148
Fabian Filatow
rústico. (MONTEIRO, 1974. p. 81).
Assim sendo, a figurada do santo monge conquistou sua posição de destaque junto à comunidade porque legitimava e dava sentido às práticas religiosas das mesmas, bem como às visões de
mundo dos caboclos. Além disso, movia-se com destreza junto as suas necessidades, quando havia
doença, prescrevia receitas com plantas e ervas conhecidas pela população na lida diária com a terra,
bem como orações e ritos que operavam “milagres”. Enfim, os monges valorizavam a tradição oral da
cultura cabocla, tanto para a transmissão quanto para a sobrevivência dessas narrativas, inserindo-se
nesta cultura lograram se perpetuar ao longo do tempo.
A recepção dos ensinamentos do monge passa por essas interpretações das práticas com dimensões simbólicas, como os rituais de batismo e de curas que eram realizadas junto às fontes sagradas.
Elas possibilitavam a sacralização do espaço, contribuindo para a permanência do monge, através das
representações, tornando-os lugares de memória, memória do sagrado, memória da cultura cabocla,
cultura de resistência.
Os caminhos do santo monge na historiografia
A produção historiográfica sobre a presença dos monges no sul Brasil já é de longa data. Inicialmente temos que o estudo destes personagens nomeados monges esteve associado com o estudo
da Guerra do Contestado principalmente. Nas primeiras décadas do século XX a historiografia foi
dominada inicialmente por militares e políticos tendo divulgação também na imprensa. De maneira
geral, estas produções identificaram o movimento do Contestado, e demais movimentos ocorridos
no campo, como oriundos do fanatismo e das crendices populares típica dos caboclos, estas historiografias acusavam os camponeses de ignorantes, declarando que estes se deixaram conduzir pelo
fanatismo religioso, muitos destes liderados e divulgados pelos monges. Temos assim, uma produção
historiográfica que visava negar a existência tanto da cultura quanto do grupo social camponês.
Ao longo da década de 1960, a Guerra do Contestado vivenciou um período de redescobertas
e foi retomada a discussão sobre os movimentos sociais camponeses. Destacamos aqui dois trabalhos
de referência deste período, o primeiro produzido por Maurício Vinhas de Queiróz em 1960 e o segundo elaborado por Duglas Teixeira Monteiro no ano de 1974. Nesta fase, as pesquisas buscaram
compreender o religioso inserido no campo cultural caboclo, distanciando-se das concepções que os
identificavam como resultados da ignorância ou do fanatismo. Nestes trabalhos as figuras do monge
João Maria e José Maria receberam atenção e estudos qualificados, relacionando-os com a realidade
social dos camponeses1.
A historiografia produziu diversas obras sobre os monges, especialmente João Maria. Trabalhos que confirmam a necessidade de realizarmos pesquisas sobre o assunto, pois ainda persistem
questões relevantes a serem discutidas. Dentre as obras que se dedicaram a estudo e interpretação do
santo monge, temos o livro produzido por Oswaldo Rodrigues Cabral em 1960, o qual foi intitulado
1
A historiografia sobre a Guerra do Contestado é vasta e oriunda de diversas áreas do conhecimento. Não temos a
pretensão de esgotar esta discussão neste momento, apenas pretendemos indicar alguns momentos significativos para
contextualizar os estudos sobre os monges.
149
NOS CAMINHOS DO SANTO MONGE
João Maria: interpretação da Campanha do Contestado2. Na referida obra, o autor buscou compreender o movimento do Contestado através da história deste personagem.
Na década de 1990, tivemos dois trabalhos que também se dedicaram ao estudo da trajetória do
monge. Em 1992, Célio Alves de Oliveira produziu a pesquisa que foi intitulada A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus na região do Contestado, Santa Catarina, na qual buscou
analisar a origem do mito João Maria e o significado da sua reelaboração no ideário religioso regional.
Destacou que o mito não poderia ser pensado como um dado neutro, fora do contexto sócio-cultural e
religioso, este mito, segundo o autor, contribuiu para a construção da identidade regional.
Ainda na década de 1990, mais precisamente no ano de 1995, José Fraga Fachel publicou seu
livro intitulado Monge João Maria: recusa dos excluídos. Estudo que teve como objetivo pesquisar a
origem do monge João Maria e seus desdobramentos nos diferentes movimentos sociais nos quais sua
representação este associada.
Ao longo do ano de 2007 foram produzidos dois novos tendo novamente a figura do monge
João Maria como centro da pesquisa. O primeiro foi produzido por Cesar Hamilton Brito Goes, na sua
tese de doutorado em Sociologia, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo o
trabalho como título Nos caminhos do Santo Monge: religião, sociabilidade e lutas sociais no sul do
Brasil. A pesquisa abordou a formação religiosa dos grupos populares do sul do Brasil, destacando
principalmente os caboclos. Analisou a formação da identidade dos grupos e formação social através
da devoção ao santo monge ou São João Maria.
O segundo trabalho realizado em 2007 foi produzido por Tânia Welter, a tese de seu doutoramento em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina, a qual foi intitulada O
profeta são João Maria continua encantando no meio do povo. A pesquisa analisou os discursos a
respeito de João Maria em Santa Catarina, destacando que estes foram construídos pelos devotos a
partir da sua cultura histórica. Este discurso é que deu legitimidade a figura de João Maria.
Em 2012, Alexandre de Oliveira Karsburg defendeu sua tese de doutorado em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua pesquisa dedicou-se ao estudo do primeiro monge, trabalho
este que está intitulada O eremita do Novo Mundo: a trajetória de um peregrino italiano na América
do século XIX. Pesquisa esta que contribuiu significativamente para uma melhor compreensão do
personagem histórico Giovanni Maria de Agostini, reconstruindo sua trajetória tanto no território brasileiro como nos demais países da América ao longo do século XIX.
Enfim, esta breve revisão historiográfica nos possibilita evidenciar o interesse existente sobre
estes personagens intitulados monges e que estiveram atrelados aos movimentos sociais camponeses
no passado e que na atualidade ainda estão presentes no campo do sagrado das populações do Brasil
meridional.
A presença deste santo se efetiva pelas representações do sagrado. A seguir, nos dedicaremos
ao estudo destas representações.
2
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. João Maria: interpretação da Campanha do Contestado. São Paulo: Nacional, 1960. A
segunda edição, revisada foi publicada em 1974, com o título A Campanha do Contestado, pela Editora Lunardelli.
150
Fabian Filatow
O santo monge e as representações do sagrado
Na localidade de Sorocaba se realizavam as feiras e em consequência desta atividade econômico-comercial que movimentava o transporte de animais e erva-mate, principalmente, construiu-se
o itinerário dos tropeiros, ligando os estados de São Paulo e Rio Grande do Sul. Inserido neste contexto sócio-econômico, onde se cruzavam camponeses, peões, tropeiros e operários, temos referência
a presença do monge João Maria d’Agostinho3, que do alto do Araçoiaba, atraía inúmeros visitantes.
Uns por curiosidade, outros em busca de lenitivos espirituais ou materiais para seus males. Da Pedra
Santa ou Pedra do Monge, como ficou conhecida, corria uma fonte de água límpida e que passou a ser
considerada como milagrosa. (FACHEL, 1995, p. 16 -18).
Podemos perceber a sacralização do espaço, ou seja, da relação do monge com a natureza nasce à água tida como sagrada, o que será um fator aglutinador dos diversos monges que existiram no
sul do Brasil. Podemos perceber que a relação natureza e o sagrado como sendo uma constante nos
demais personagens que assumiram o papel de santo monge. Também percebemos a fonte de água,
outro lugar do sagrado que servirá para a preservação e confirmação da presença do santo monge nas
diferentes regiões dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, principalmente.
No trabalho produzido por Oswaldo Cabral temos a descrição física de João Maria. Segundo o
autor este monge “(...) vestia um hábito, [...] tinha cabelos compridos e a barba longa. Dormia sobre
uma tábua e alimentava-se de frutos, [...]. Às vezes, na calada das noites, em sua gruta, entoava a plenos pulmões os seus salmos e as suas orações [...]”. (CABRAL, 1960. p. 108-109).
Podemos indicar que tanto a vestimenta quando os hábitos contribuíram para a construção da
qualidade de santidade e consequentemente de santo deste personagem pelos sujeitos que com ele
conviveram ou que tiveram contato, direta ou indiretamente.
Outro ponto que merece destaque na trajetória de construção deste personagem em santo monge está atrelado ao dito poder de cura. Segundo relatos diversos o santo monge realizava curas. Estas
estavam associadas a fontes de água as quais teriam sido criadas pelo próprio monge e seriam portadoras de faculdades curativas.
No município de Soledade, interior do Rio Grande do Sul, localidade onde ocorreu o movimento dos Monges Barbudos, encontramos o relato do senhor Sebastião Firmino Nunes, morador
daquele município que mencionou a existência da fonte de água sagrada e que a mesma teria origem
da vontade do santo monge.
Olha, isto aqui é dos tempos mais agudos, isto é, dos tempos mais antigos, quase no
início do mundo. Meu avô contava muita coisa. Meu pai, que hoje teria 105 anos,
contava que o “padre santo” fez nascer a fonte. [...] O monge parou para descansar.
Plantou uma cruz de madeira aí mesmo. Olha, tem ainda o sinal. Aqui os demônios
perderam ele. Perderam o rastro, como se diz. Quando sentiu sede, não tendo água,
levantou a mão e disse: ‘Esse lugar é abençoado; dará água para mim tomar; o doente
será curado e vai as almas salvar’. Todos que se virem perdidos ou perseguidos se
salvam com esta água. Daí estourou a vertente, brotou água pura. (VERDI, 1987. p.
205-206).
3
A grafia segue a utilizada pelos autores em suas referidas obras.
151
NOS CAMINHOS DO SANTO MONGE
Na continuidade do seu relato, o senhor Sebastião Nunes lembra outro milagre também atribuído à fonte sagrada, o caso de dona Elísia Pereira que sofria de uma doença que cobria o corpo todo
de chagas e que estava quase cega, “não havia remédio que a curasse. Um dia sua irmã [de Sebastião]
levou a enferma até a fonte. Lá lavou o corpo e o rosto da doente. Ficou limpinha. Viveu muitos anos.
Ainda enxergava bem, quando morreu aos 115 anos”. (VERDI, 1987. p. 206).
No que foi descrito acima, podemos identificar que as fontes de água se encontram no lugar do
santo monge, elas servem tanto para confirmar sua presença quanto seu poder taumaturgo, ou seja, estes lugares do sagrado o representam em sua ausência. O espaço sagrado torna-se assim uma maneira
de expressar a cultura através da religiosidade e legitimar sua existência através do tempo.
Chamamos a atenção para a presença do tempo nas citações destacadas acima. Assim como
o santo monge também suas curas estão associadas a um longo tempo, no caso do relato do senhor
Sebastião Nunes a longa vida da pessoa que recebeu a cura da fonte sagrada também demonstra a
santidade do monge.
As representações do sagrado contribuem para a permanência de João Maria, o santo monge.
A seguir, analisaremos um caso específico em Soledade, no qual poderemos perceber a permanência
do sagrado através da natureza e das representações do santo monge.
Nos caminhos do santo monge e o espaço do sagrado: estudo de caso
Nesta última etapa deste estudo, gostaríamos de realizar um breve exercício de análise de um
caso específico de devoção ao santo monge João Maria na atualidade. A seguir apresentaremos algumas imagens da localidade de São Tomé, no município de Soledade – RS, nas quais visualizaremos
uma construção do espaço sagrado, destacando as representações do sagrado.
Numa percepção geral temos o local composto pelos símbolos do sagrado, ou seja, temos a
fonte de água, a cruz e no interior da capela a foto do santo monge João Maria.
152
Fabian Filatow
Figura 1. Foto: Adriana França (2011) - Arquivo do autor
Podemos perceber na inscrição feita na cruz a frase “Água do Santo Monge, graça alcançada,
DIDI F.F.”. A representação do santo monge ainda permanece na localidade por fazer parte da cultura.
A cruz serve como símbolo para marcar o lugar sagrado da graça alcançada.
Figura 2. Foto: Adriana França (2011) - Arquivo do autor
Na imagem 2, apresentada acima, podemos visualizar a existência de um capitel, com o objetivo de proteger os símbolos do sagrado depositados no seu interior.
Nas imagens número 3 e 4, logo a baixo, podemos perceber o interior deste santuário em destaque, no qual estão depositados os diferentes símbolos do sagrado, crucifixo, a imagem de Nossa Senhora e um quadro do santo monge João Maria, que foi, segundo a inscrição na cruz analisada acima,
o motivador da construção deste espaço do sagrado.
153
NOS CAMINHOS DO SANTO MONGE
Figura 3. Foto: Adriana França (2011) - Arquivo do autor
Figura 4. Foto: Adriana França (2011) - Arquivo do autor
(Ampliação da imagem interna, quadro do santo monge)
154
Fabian Filatow
Na última imagem selecionada deste estudo de caso, destacamos a Fonte d’Água. Como apresentado ao longo do trabalho, a figura do santo monge está diretamente relacionada à Fonte d’Água.
Em todos os momentos e lugares que fizeram referência a este personagem na qualidade de santo
temos a presença deste símbolo sagrado. A fonte representa o santo monge na sua ausência, em diferentes tempos e espaços.
Figura 5. Foto: Adriana França (2011) - Arquivo do autor
Acreditamos ser fundamental a preservação destes lugares como parte do patrimônio imaterial. Sendo necessário um mapeamento destes ao longo das regiões que tiveram e mantém a devoção
ao santo monge, destacadamente nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Pois a
preservação destes locais contribuiu para manutenção da expressão cultural das comunidades caboclas e camponesas.
Considerações finais
Como fechamento deste trabalho, o qual nos levou a refletir sobre a figura do santo monge e
sua relação com os movimentos sociais, salientamos que ainda há possibilidades de pesquisas e questionamentos a serem realizadas neste campo do conhecimento que possibilita o diálogo do social, do
político, do religioso e do cultural.
Na permanência da devoção ao santo monge e a manutenção dos lugares do sagrado, com as
fontes de água, as orações, os ensinamentos sobre o manuseio das ervas medicinais, todas estas relacionadas com a figura do monge nos permitem destacar esta prática religiosa como prática cultural,
transmitida ao longo do tempo e por gerações. Mais ainda, podemos identificar esta permanência como
uma resistência frente ao combate que lhe foi movida quando da ocorrência da Guerra do Contestado
e da repressão imposta ao movimento dos Monges Barbudos. Estes movimentos foram duramente
reprimidos, cada um no seu tempo e no seu contexto político e social, porém destacamos que ambos
tiveram seus sujeitos identificados pelos grupos repressores como caboclos ignorantes e fanatizados,
como despossuídos de cultura, os quais necessitavam ser integrados ao projeto modernizante imposto
ao país.
155
NOS CAMINHOS DO SANTO MONGE
Neste sentido, a trajetória do santo monge bem como o corpus sagrado a ele atribuído nos possibilita dar maior visibilidade a um grupo social que por longo período na história brasileira teve sua
cultura subjugada, negada, silenciada, a cultura cabocla.
Para compreendermos as permanências desta cultura ao longo do tempo se faz necessário
analisarmos as diversas formas de expressão religiosa no seu contexto sócio-político bem como a relevância da representação do santo monge no interior destas comunidades. Caso contrário iremos dar
continuidade ao muro cultural construído ao longo do tempo, no qual percebemos uma imposição da
visão do litoral sobre o interior, onde o litoral é percebido como modelo de civilização, modernidade e
progresso. Ao interior ficaram impostas as noções como atraso e ignorância, visões estas perceptíveis
na historiografia produzida ao longo do século XX sobre os movimentos sociais camponeses. Estas
noções marcaram profundamente as concepções sobre as populações caboclas ao longo do último
século.
REFERÊNCIAS
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Contestado, Santa Catarina. Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1992.
156
Fabian Filatow
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Contestado, Santa Catarina. Dissertação de mestrado em Antropologia Social. Universidade Federal
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Antropologia Social. Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, 2007.
* Fabian Filatow
Mestre em História (UFRGS) - Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Bolsista CAPES.
157
O CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR NA SALA DE AULA, A PARTIR DO ESTUDO
DE PAISAGEM NAS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI
Delcimara Batista Caldas *
Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho **
Heridan de Jesus Guterres Pavão Ferreira ***
Introdução
O pensamento científico até o final do século XIX foi marcado por um paradigma denominado
positivista, que concebe a ciência como dona da verdade, separando sujeito e objeto do conhecimento.
Este pensamento influenciou as diversas áreas do conhecimento, entre elas educação.
No século XX, porém, houve significativas mudanças no pensamento científico. Tais mudanças ocorreram porque as soluções e/ou explicações propostas pelo paradigma positivista já não conseguiam responder aos problemas que se apresentavam na sociedade contemporânea.
Nessa perspectiva, grandes cientistas foram responsáveis pela ruptura com o pensamento cartesiano-newtoniano, podendo-se citar Einstein e sua Teoria da Relatividade, Heisenberg com Princípio
da Incerteza, Niels Bohr com a Lei da Complementaridade e Prigogine e seu conceito de Estruturas
Dissipativas (MORAES, 2010).
A partir de então, surge uma nova forma de pensar ciência enquanto proposta de interpretação.
Nesta nova visão, o conhecimento científico é construído, desconstruído e reconstruído pelo sujeito
histórico que está interconectado com o seu objeto do conhecimento e ambos estão imbricados em
uma realidade dinâmica, mutável, ou seja, um todo relacionado, onde se insere este estudo sobre a
paisagem, o qual visa relacionar o conhecimento formal com os saberes advindos da sociedade.
Neste sentido, objetivando contextualizar o conhecimento formal e o empírico, este estudo
visa relacionar paisagem, toadas de bumba-meu-boi e as disciplinas abordadas em sala de aula, mostrando que é possível trabalhar-se a partir de um novo paradigma, ou seja, buscando estabelecer uma
relação direta com o ambiente em que vivem os discentes.
Vale ressaltar que, assim como a língua, a cultura popular está em constante mutação dentro
das suas formas de manifestação, quer seja pela mudança promovida pela forma como ela é transmitida a outras gerações, quer seja pela pouca interferência da escola na vida dos alunos (FAZENDA,
1996).
Nesta perspectiva, observando-se a necessidade de aperfeiçoar uma metodologia para o trabalho docente nas séries iniciais, este artigo enseja um estudo sobre paisagem, na perspectiva real de
entrelaçar as principais disciplinas abordadas em sala de aula, a partir da análise de algumas toadas de
conhecidos nomes da cultura maranhense.
O CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR NA SALA DE AULA, A PARTIR DO ESTUDO DE PAISAGEM NAS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI
Para tanto, é necessário entender primeiramente o que significa o estudo de paisagem e qual
a relação que pode ser feita entre ele e o conteúdo que se almeja em alcançar em sala, fugindo dos
velhos métodos tradicionais que, muitas vezes afastam o aluno do professor e da escola.
Ressalta-se, portanto, que é bastante eficaz no contexto do ensino e da aprendizagem promover
a aproximação do estudante do ambiente onde o mesmo se insere, pois assim pode-se atender melhor
às suas expectativas e ainda colocá-lo em contato com a cultura e com os demais conhecimentos, sem
deixa-lo à margem do processo, em uma posição de pouca relevância, como muitas vezes ainda ocorre.
O que é o estudo de paisagem?
A paisagem é uma parte perceptível ao observador, na qual é descrita uma série de fatores visíveis e invisíveis, além de interações realizadas em momentos simultâneos, onde se vai considerar a
busca do todo e não apenas um aspecto isolado. Assim, Passos (1998) diz que a paisagem é percebida
e descrita a partir de formas, as quais são resultantes de dados do meio ambiente natural ou que ainda
podem representar consequências de modificação, alteração do homem, onde este possa imprimir sua
marca neste espaço.
A combinação da natureza com elementos sociais resulta em traço comum da paisagem. Assim, a cada alteração sofrida pelo ambiente, representa uma alteração sofrida pelo homem em sua
crescente busca pela superação e pelo desejo de satisfazer necessidades. (SANTOS, 1986).
No sentido de contextualizar o estudo realizado, pode-se dizer que a aprendizagem efetiva
dos discentes perpassa por múltiplas habilidades que dificilmente são exploradas e, com um trabalho
diferenciado, a partir do entendimento do que é paisagem e da sua relação direta com as toadas aqui
apresentadas e de tantas outras existentes na história do bumba-meu-boi, o conhecimento passa a ter
um significado especial em sala de aula, pois as relações extrapolam o usual.
O conhecimento transdisciplinar na sala de aula, a partir do estudo de paisagem nas
toadas de bumba-meu-boi
O Maranhão é um dos estados brasileiros com maior diversidade de sons e ritmos. Sua música
é materializada principalmente nas manifestações folclóricas, que vivificam-se no meio do povo durante todo o ano, seja no carnaval, no período junino onde o bumba meu boi, o tambor de crioula, o
lelê e o cacuriá embalam corpos frenéticos seja em homenagens aos santos católicos ou apenas como
folguedos populares, herança dos antepassados maranhenses.
Com tanta diversidade cultural, é inadmissível que a escola enquanto espaço onde se entrelaçam saberes formais e informais não aproveite os conhecimentos populares em prol da construção e
reconstrução de conhecimentos essenciais para a formação de um senso crítico e participativo, essenciais para o exercício da cidadania.
Assim, pensando no sentido de se contribuir com a melhoria do processo de ensino e de apren160
Delcimara Batista Caldas, Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho, Heridan de Jesus Guterres Pavão Ferreira
dizagem, apresentam-se algumas das toadas escolhidas para a composição deste trabalho. Vale, porém, destacar os autores Moraes e Batalloso Navas (2010) quando dizem que há necessidade de se
acreditar na mudança da educação, principalmente diante de tantas dificuldades enfrentadas por todos
os que nela exercem sua atividade profissional. A adaptação a uma nova cultura de trabalho requer
profunda revista na forma de ensinar e de aprender.
As toadas do bumba meu boi
As toadas são os cânticos entoados no bumba meu boi. Expressam os modos de sentir e vivenciar o mundo que rodeia os amos ou cantadores, como são conhecidos os que compõem ou cantam
uma toada.
As toadas podem falar do cotidiano, de contextos políticos, de amor, de amizade ou mesmo
como forma de atingir adversários reais ou imaginários, observando-se que há nesse contexto, uma
relação com o trovadorismo português, nos séculos V e VI. Enaltecem ainda, os lugares onde vivem,
os costumes e também se constituem como forma de construção de identidades.
Nesse sentido, as toadas que são gêneros textuais de bastante relevância para a análise e interpretação de textos são uma estratégia de resistência e preservação cultural, razão pela qual ilustram
este trabalho sobre o estudo de paisagem, buscando uma interdisciplinaridade entre a Língua Portuguesa e outras áreas de conhecimento.
Maranhão, meu tesouro, meu torrão
Fiz esta toada, pra ti Maranhão
Maranhão, meu tesouro, meu torrão
Eu fiz esta toada, pra ti Maranhão
Terra do babaçu
Que a natureza cultiva
Esta palmeira nativa
É que me dá inspiração
Na praia dos lençóis
Tem um touro encantado
E o reinado
Do rei Sebastião
Sereia canta na proa
Na mata o guriatã
Terra da pirunga doce
E tem a gostosa pitombatã
E todo ano, a grande festa da Jussara
No mês de Outubro no Maracanã
161
O CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR NA SALA DE AULA, A PARTIR DO ESTUDO DE PAISAGEM NAS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI
No mês de Junho tem o bumba-meu-boi
Que é festejado em louvor à São João
O amo canta e balança o maracá
A matraca e pandeiro
É quem faz tremer o chão
Esta herança foi deixada por nossos avós
Hoje cultivada por nós
Pra compor tua história, Maranhão !
Acredita-se que todo maranhense, seja pequeno, ou adulto já ouviu essa toada de bumba meu
boi, seja na voz marcante da cantora maranhense Alcione, reconhecida nacionalmente, pela sua voz e
talento musical, seja na expressiva voz do Guriatã, Humberto de Maracanã.
A toada carrega consigo a representação da identidade de um povo, pois a mesma descreve
lugares, a fauna, a flora e o cotidiano de um povo e de um lugar chamado Maranhão. O poeta dá uma
aula de Geografia do Maranhão, salientando os aspectos sociais, geográficos e históricos do estado,
que fica localizado no extremo norte do Brasil, na região nordeste.
Verifica-se que o cantador inicia a toada evocando seu estado, para que os ouvintes o identifiquem. Ele afirma ainda seu apreço ao dizer que o Maranhão é seu tesouro, seu torrão, ratificando a
importância do estado para sua vida em: “Maranhão, meu tesouro, meu torrão. Fiz esta toada pra ti
Maranhão”.
Em “Terra do babaçu, que a natureza cultiva. Esta palmeira nativa que me dá inspiração”, o
autor faz alusão aos babaçuais, que caracterizam a flora maranhense e já evocada em “Canção do Exílio”, do poeta Gonçalves Dias.
Os versos que dizem “Na praia dos lençóis tem um touro encantado e o reinado do Rei Sebastião” verifica-se que o autor chama a atenção para a Praia dos Lençóis, que considerada uma das
belezas naturais do mundo. Faz alusão ainda a uma das muitas lendas maranhenses, que diz que o rei
Sebastião1, vive sob as areias dos lençóis maranhenses, aparecendo em noites de lua cheia, sob a forma de um touro negro, com uma estrela2 na testa. Contam que no dia em que alguém conseguir acertar
a estrela do touro negro, o reino submerso emergirá em toda sua plenitude.
Essa lenda se relaciona com a lenda da serpente encantada, na Ilha de São Luís, que conta que
sob a cidade há uma serpente adormecida, que se despertada, dará um abraço na cidade, fazendo-a
desaparecer sob as águas do Atlântico.
Nos versos “Sereia canta na proa, na mata o Guriatã, terra da pirunga doce e tem a gostosa
pitombatã. E todo o ano, a grande festa da Jussara, no mês de outubro, no Maracanã”, verifica-se que
o poeta alude ainda a uma divindade dos mares e da religião de matriz africana e indígena, a sereia.
No texto a sereia canta na proa da embarcação, o que pode se constituir um perigo para o pescador, em
razão da proximidade, pois uma lenda conta que o cantar da sereia encanta o pescador causando-lhe
1
2
Segundo a história, o Rei português D. Sebastião foi morto em combate com os mouros.
Mancha, pinta branca.
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Delcimara Batista Caldas, Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho, Heridan de Jesus Guterres Pavão Ferreira
a morte.
O poeta alude ainda a uma festa do calendário maranhense, a Festa da Juçara, que ocorre durante todo o mês de outubro em uma comunidade da periferia ludovicense, conhecida por Maracanã,
enfatizando as frutas da região, tais como a pitomba. Verifica-se aí, uma contextualização com datas
e lugares, além de lendas maranhenses, que possibilitam um estudo da paisagem, de forma interdisciplinar, situando a língua portuguesa, a história, a geografia, além dos temas transversais Pluralidade
Cultural e Meio Ambiente.
Em “No mês de Junho tem o bumba meu boi, que é festejado em louvor a São João. O amo
canta e balança o maracá. A matraca e pandeiro É quem faz tremer o chão”. Os versos chamam a
atenção para o período onde o bumba meu boi alcança seu auge no estado: o mês de junho. Ele descreve ainda o papel do amo ou cantador, que canta e balança (toca) seu maracá, que é um instrumento
percussivo muito usado no bumba meu boi, assim como o pandeiro e a matraca, os quais na toada
fazem o chão tremer a partir de seus sons.
A toada é finalizada com os versos “Esta herança foi deixada por nossos avós, hoje cultivada
por nós, pra compor tua história, Maranhão!” Observa-se que há uma ênfase em colocar o boi e todas
as belezas naturais e lendas enquanto heranças dos antepassados do cantador, assim como de mostrar
que as novas gerações se preocupam em preservar os valores herdados.
Assim sendo, em um mundo onde se tem muitos recursos didáticos e no qual o mapa não
perdeu sua utilidade em sala de aula; pelo contrário, ganhou uma roupagem mais dinâmica nos aplicativos que existem nos dias hodiernos, disponíveis na web, fazer uma leitura de paisagem não se
tendo uma figura, mas uma letra de música é pode fazer o processo inverso, ou seja, a partir do texto
escrito escrever, ou melhor, reescrever, tendo como contexto a realidade, o cotidiano, o espaço, onde
é valorizada a experiência empírica.
Para se conseguir atingir esses objetivos, necessita-se perpassar por pelo menos dois atores
do processo de ensinar e aprender, o professor e o aluno. Nele, cada um tem seu papel definido como
temos descrito por Schäffer (1998, p. 91),
O papel do professor, planejando com atenção a leitura da paisagem e sensibilizando o
grupo para o exercício, permite aprofundar o trabalho e qualificar os resultados. Com
frequência afirma-se que não é possível promover um aluno leitor sem que haja um
professor leitor. Também, para que haja um aluno leitor de paisagem, é indispensável
que o professor consiga fazer essa leitura, ultrapassando, no seu planejamento, o objetivo da mera retratação do que ali é oferecido como visível.
Fica bem definido que por esse processo, o qual envolve professor e aluno, passa por diversas
áreas: o ler e o escrever que perpassam as aulas de português; o ler os mapas contextualiza o ensino
de geografia; os fatos ocorridos em um determinado espaço, em tempos mais remotos estimulam e
referendam o ensino da história. SCHÄFFER (1998) afirma que, na geografia, ler exige conhecimento
e interpretação do espaço geográfico e, na escrita, a representação deste espaço.
Atualmente, estudos diversos, como os de WAGNER e MIKESELL (2003), entre outros discorrem acerca do estudo da paisagem. A publicação dos PCN culminou com o alavancamento desse
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O CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR NA SALA DE AULA, A PARTIR DO ESTUDO DE PAISAGEM NAS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI
estudo, pois insere o aluno em seu ambiente, ou seja, o bairro, a cidade, o estado onde vive e até mesmo a escola onde estuda, trazendo pra perto do discente esses espaços.
Verifica-se desse modo que o estudo da paisagem possibilita, entre outros aspectos, a visitação
de lugares como recurso no auxílio da aprendizagem, que é uma prática que acompanha o ensino de
geografia desde seu adentramento no universo escolar.
SCHÄFFER (1998, p. 91) possibilita um vislumbrar de matizes no contexto do ensino e da
aprendizagem de diferentes componentes curriculares ao analisar os Parâmetros Curriculares Nacionais, no que os mesmo fomentam nas aulas das escolas:
O conceito de paisagem como um recorte visível do espaço geográfico é ao mesmo
tempo, importante recurso pedagógico. Ler a paisagem na perspectiva dos procedimentos tradicionais significa observar e descrever (relatar) o maior número de elementos presentes. É relatar, tornando estático aquele momento, naquele lugar, ler a
paisagem, na perspectiva da construção de um conhecimento mais significativo voltado à construção de um conhecimento mais significativo e voltado à construção da
identidade do sujeito, parte da definição prévia dos objetos desta leitura.
Há ainda outra composição de Humberto que fala das vinte e sete aldeias que formavam a Ilha
do Maranhão, que na toada chama a capital do estado de Upaon-Açu, um dos primeiros nomes da Ilha
de são Luís.
UPAON-AÇU
Upaon-Açu é São Luís presente
Tinha vinte e sete aldeias
Hoje em alguns povoados moram os seus descendentes
Inhauma, TaimTendá, Mojó
Cumbique, Uarapirâ
Juçatuba, Iguain, Tajipuru
Araçagi, Miritiua, Turu e Maracanã
Arapapaí, Mapaúra, Itapicuraìba
Tibiri, Mocajutuba, Itapera,Pinandiba
Parnauaçu e Maioba, Pindaí, Ubatuba e Vinhais
Panaquatira e Igaraú
As aldeias da Ilha foram dos Tupinambás
Juniparã era uma aldeia
Lugar dos índios chamada hoje pelo povão
Japiaçu foi o seu Morubixaba
E de todas as aldeias da ilha do Maranhão
Assim como na música “Maranhão meu tesouro meu torrão”, pode-se trabalhar na toada
Upaon-Açu, outras matérias de forma conjunta e interdisciplinar potencializando o aprendizado tanto
do aluno como do professor, com relação a isso Barbosa (2005, p. 74) assevera:
Como a competência implica uma visão cultural e também um posicionamento político
do educador, considero que a interdisciplinaridade poderá caminhar naturalmente na
164
Delcimara Batista Caldas, Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho, Heridan de Jesus Guterres Pavão Ferreira
prática pedagógica, realizando-se de forma plena quanto às finalidades cognitivas e de
produção do conhecimento que se propõe.
Assim como nas aulas de geografia, as de história podem ajudar os alunos de forma geral a
descobrir sua identidade a partir deste estudo de paisagem, refletindo de forma coletiva sobre suas
origens, possibilitando que os mesmos sejam conduzidos a lugares onde nunca estiveram e que alguns
só conhecem por nome e outros porque moram nele, mas sequer sabem o porquê do nome do bairro.
A partir do trabalho com a toada Upaon-Açu, pode-se ter uma ideia ampla de como a Ilha de
São Luís mudou com o passar dos anos sugerindo-se aos alunos um estudo mais aprofundado sobre os
nomes dos bairros, por exemplo.
Pode-se ainda, solicitar aos estudantes, a identificação dos lugares que conheçam, assim como
também, dos lugares onde residem, fazendo assim um trabalho de campo, onde serão trabalhados
os limites geográficos, a origem dos nomes. Outra atividade que pode ser realizada é a entrevista de
campo, ou seja, os estudantes entrevistam seus avós e outros familiares ou vizinhos, resgatando informações que possivelmente jamais serão encontradas em livros. Assevera-se que o conhecimento
ligado só a livros didáticos muitas vezes, amarra as possibilidades de os alunos crescerem independentemente. Veja o que diz Seffner (1998):
O livro didático é, muitas vezes, a única leitura histórica que o aluno tem à disposição.
Se ficarmos apenas nele, as possibilidades de discussão e troca de idéias se empobrecem muito. A leitura do livro didático deve ser estimulada, mas não como sendo a
única fonte de explicação histórica. Nesse sentido, é bom trabalhar com diferentes
livros didáticos, percebendo as diversas modalidades de construção de cada episódio
histórico, e consultando também, acerca do mesmo episódio, as enciclopédias, os dicionários (históricos ou não) e os atlas históricos. (SEFFNER, 1998, p. 113).
O fato de o livro didático constituir-se muitas vezes, o único recurso do qual dispõe professores e alunos na abordagem dos conteúdos, faz com que o estudante seja cerceado em seu direito de
construir novos conhecimentos, razão porque é fundamental que a escola esteja atenta, no sentido de
estimular um olhar para além dos recursos que dispõe, lançando mão dos saberes populares na abordagem dos saberes formais.
Considerações Finais
A construção de conhecimentos é assunto bastante importante no contexto da sala de aula, que
faz com que educadores e estudiosos venham ao longo dos tempos, empreendam meios no sentido de
fazer com que haja sucesso em sua consecução.
Para facilitar o alcance do objetivo na sala de aula verifica-se que na maioria das vezes, o conhecimento é fragmentado, dividido em disciplinas e matérias, sem preocupação com a integração
entre elas.
Ainda que muitos avanços tenham sido observados no contexto do que é ensinado e aprendido
na escola o conhecimento continua sendo repassado da mesma forma para diferentes alunos em diferentes realidades, cabendo tão somente a preocupação com a fixação do conteúdo e com o cumpri165
O CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR NA SALA DE AULA, A PARTIR DO ESTUDO DE PAISAGEM NAS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI
mento do currículo estabelecido. Esse processo educativo é concebido como via de mão única, produzindo indivíduos incapazes de se conhecerem como protagonistas de sua própria história (MORAES;
BATALLOSO NAVAS, 2010).
Entre as estratégias efetivadas no sentido de impingir significado no âmbito da construção de
conhecimentos está o uso dos saberes oriundos do povo, entre eles, da cultura popular.
O estudo acerca da paisagem ao entrelaçar-se com o bumba meu boi possibilita ao educando
a construção significativa de saberes, constituindo-se elemento importante no âmbito de uma metodologia cujas bases são os aspectos da vida dos educandos, superando-se o tradicionalismo que ainda
impera no processo de ensinar e aprender.
Este estudo teve, pois, enquanto pretensão mostrar que é possível associar conhecimentos diversos, oriundos do cotidiano, possibilitando ao aluno a aprender a partir do ambiente em que está inserido e da cultura da qual faz parte, cabendo, para tanto, apenas uma dose de criatividade e sabedoria,
pela escola e seus educadores.
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166
Delcimara Batista Caldas, Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho, Heridan de Jesus Guterres Pavão Ferreira
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compromisso de todas as áreas. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 1998, 107 – 120.
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(Org.). Introdução à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, 27-61.
*
Mestra em Educação pela Universidade Católica de Brasília (UCB), Professora da Faculdade Atenas
Maranhense – FAMA e Pitágoras São Luís.
**
Professor da rede pública Estadual e Municipal de ensino do Maranhão e Mestrando em educação
pela Universidade Católica de Brasília (UCB)
***
Professora do Curso de Linguagens e Códigos, Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
167
COMPLEXO CULTURAL BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO: EXPRESSÃO CULTURAL
AFRODESCENDENTE E PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL
Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho *
Delcimara Batista Caldas **
BUMBA-BOI: origem
Em 1840, surge o primeiro escrito, em Recife, sobre a brincadeira bumba-meu-boi. A intenção era criar um sermão que chamasse a atenção da sociedade sobre a figura do sacerdote no evento
(LOPES GAMA, 1996). A segunda ocorrência deu-se em 1859, em Manaus, quando Avé-Lallémant
descreve uma dança do boi com um pajé, introduzido em festa que homenageava São Pedro e São
Paulo. Vale lembrar que, nessa época, a figura do padre não mais fazia parte da dança.
O folguedo ganhou muitos nomes no Brasil, devido às variações de região para região. Assim,
no Amazonas e no Pará é Boi-Bumbá; no Rio Grande do Norte, Boi Calemba; na Paraíba, Cavalo
Marinho; no Rio de Janeiro, Boi Pintadinho; no Espírito Santos, Bumba de Reis ou Reis de Boi; em
Santa Catarina, Boi de Mamão; e, no Maranhão, Bumba-Meu-Boi. Além disso, também ocorre em
diferentes épocas, dependendo da região: Norte, acontece no período junino; Nordeste, ciclo natalino;
Sudeste, destacando o Rio de Janeiro, durante o Carnaval (CAVALCANTI, 2011).
A origem do Bumba-Meu-Boi é datada por muitos estudiosos como sendo do século XVIII,
resultado de crítica à situação social dos negros e dos índios. Ressalta ainda a fragilidade do homem e
a força de um boi a partir de elementos da comédia, do drama, da sátira e da tragédia. A união de elementos da cultura européia, da africana e da indígena só poderia resultar em uma dança tão instigante
e envolvente como esta. Resgata aspectos religiosos, pois sua origem enseja o trabalho desenvolvido
pelos jesuítas que encenavam peças na luta contra o paganismo. Eles usavam o bumba-meu-boi para
evangelizar os negros, os indígenas e os próprios portugueses. A dança possui o seguinte enredo: um
fazendeiro rico tinha um boi muito bonito e mimoso e que sabia dançar. Um trabalhador da fazenda, de
nome Pai Chico, rouba o boi para satisfazer o desejo de sua esposa grávida, comer a língua desse boi.
Quando o fazendeiro sente falta do boi, envia seis empregados para procurá-lo e o encontram doente.
Os pajés são chamados e curam-no. O fazendeiro descobre que Pai Chico foi o responsável e o perdoa,
celebrando a saúde do boi (CABRAL, 2011).
Segundo Silvio Essinger (2011), o bumba-boi surgiu no Nordeste, nas últimas décadas do século XVIII. Naquele período, a criação de gado era realizada por meio da mão-de-obra escrava. Logo, os
cativos, a partir da mistura de suas tradições africanas às dos senhores (como as touradas espanholas),
criaram danças que tematizavam as relações de poder e certo cunho religioso. Na maioria das vezes,
eles eram repreendidos.
COMPLEXO CULTURAL BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO: EXPRESSÃO CULTURAL AFRODESCENDENTE E PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL
O BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO EM SOTAQUES
No Maranhão o bumba-boi é diversificado na forma de se apresentar. Têm-se alguns tipos (sotaques) oriundos de várias partes do Estado, todos possuem sua história e suas características próprias
dependendo da região-origem. No período junino, o bumba-boi em seu plano ritual é constituído de
quatro etapas, que são: Ensaio, batizado, brincadas, e morte.
Os ensaios compreendem do período logo após o carnaval, que compreende os meses de abril
e maio, já o batizado acontece no mês de junho, que é o momento que o boi ganha um novo couro,
as toadas são renovadas bem como algumas das roupas do ano anterior, logo após o batizado vem o
período das brincadas, que é o momento de mostrar no mês inteiro o fruto do empenho de uma comunidade inteira, é o momento que o vou vai vadiar nos terreiros do Maranhão e do Mundo, visto
que alguns grupos recebem convites para se apresentarem fora do estado e em outros países, por fim,
vem o período da morte, que é o final de um ciclo que começou em abril e se encerra entre os meses
de agosto e setembro, eventualmente alguns bois morrem nos meses posteriores, completando assim,
um ritual secular que é considerados por muitos uma obrigação a São João, São Pedro e São Marçal.
Como já foi mencionado o bumba boi no estado do Maranhão foi dividido em categorias que
pretendiam organizar as mesmas são chamadas de sotaque as quais se conhecerá a seguir:
Sotaque de matraca - é o mais popular, pois é o que as pessoas conseguem interagir de forma mais
ativa com matracas facilitando sua integração a percussão da brincadeira. O instrumento que dá nome
ao sotaque é composto por dois pequenos pedaços de madeira, o que motiva os fãs de cada boi a
engrossarem a massa sonora de cada “Batalhão”. Além das matracas, são usados pandeirões e tambores-onça (uma espécie de cuíca com som mais grave). Na frente do grupo fica o cordão de rajados,
caboclos de fitas, índias, vaqueiros e caboclos de pena. O sotaque de Matraca também é chamado de
Ilha por ter sua origem na ilha de São Luís, tendo como grupos principais os bumba-bois da Maioba,
Maracanã, Madre Deus, Ribamar, Pindoba entre outros.
Sotaque de Zabumba - Ritmo original do bumba-meu-boi, este sotaque marca a forte presença africana na festa. Pandeirinhos, maracás e tantãs, além das zabumbas, dão ritmo para os brincantes.
No vestuário destacam-se golas e saiotas de veludo preto bordado e chapéus com fitas coloridas. O
sotaque de Zabumba é hoje o que menos cresce no Estado, diz-se que o sotaque nasceu na região da
cidade de Guimarães e os brincantes do bumba-boi de Guimarães dizem que o sotaque é chamado de
Guimarães tocado na Zabumba, é dos ritmos o que tem mais pegada de ritmo afrodescendente. Dentre
os grupos, podemos ressaltar: o de Guimarães, da Fé em Deus, da Liberdade.
Sotaque de Orquestra - Ao incorporar outras influências musicais, o bumba-meu-boi ganha neste
sotaque o acompanhamento de diversos instrumentos de sopro e cordas, como o saxofone, clarinete
e banjo. Peitilhos (coletes) e saiotes de veludo com miçangas e canutilhos são alguns dos detalhes
nas roupas dos brincantes. Diz-se que o sotaque nasceu de um encontro de pessoas de um grupo de
sotaque de zabumba com alguns músicos nos entornos da cidade de Rosário. Os grupos mais famosos
são os de Axixá, de Morros, de Nina Rodrigues. Com o passar dos anos esse se tornou o sotaque com
o maior número de grupos no Estado do Maranhão devido ao forte apelo visual, pelo bailado e pelo
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Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho, Delcimara Batista Caldas
ritmo acelerado da orquestra.
Sotaque da Baixada - Embalado por matracas e pandeiros pequenos, um dos destaques deste sotaque
é o personagem Cazumbá, uma mistura de homem e bicho que, vestido com uma bata comprida, máscara de madeira e de chocalho na mão, diverte os brincantes e o público. Outros usam um chapéu de
vaqueiro com penas de ema. Este sotaque é também conhecido como sotaque de Pindaré, por ter no
Boi de Pindaré seu maior representante; grupo onde cantou por muitos anos até a sua morte, o cantador Cochinho, autor de várias belas toadas. Para esse sotaque,como maiores representantes têm-se: o
próprio boi de Pindaré, o boi de Viana e de São João Batista.
Sotaque Costa de Mão –Esse sotaque é marcado pelo uso de zabumbas, caixas, pandeiros e maracás,
embora tenha uma batucada parecida com o sotaque de zabumba, seu ritmo é mais suave e seu andamento é mais cadenciado (IPHAN, 2011). Típico da região de Cururupu, cidade que fica na baixada
do estado do Maranhão, ganhou este nome devido a uns pequenos pandeiros tocados com as costas
da mão. Caixas e maracás completam o conjunto percussivo. Além de roupa em veludo bordado, os
brincantes usam chapéus em forma de cogumelo, com fitas coloridas e grinaldas de flores.
O bumba-meu-boi e a Religião
Além desses sotaques que foram mencionados, vê-se no Maranhão uma grande ligação do
bumba-boi com a religião de onde se tem também os bois chamados de bois de mina. Essas brincadeiras surgem a partir de promessas feitas a encantados, havendo essa estreita relação por ter a semelhança do bumba-meu-boi com a lenda de Dom Sebastião. Sobre essas promessas REIS (2001, p. 61)
nos diz que
O Bumba foi para a Mina devido à promessa (comprometimento) de entidades com
São João e São Pedro: é bem diversificado: alguns caboclos forçam o aparelho (cavalo)
a saírem pelas ruas acompanhando os grupos tradicionais de Bumba. [...] Outros, por
seu turno, realizam suas festas em particular, nas residências, em sítios emprestados
ou mesmo em terreiros organizados.[...]Entidades existem que fazem os seus bois
formados com garotos; outras, com os próprios irmãos e, assim, sucessivamente. O
que de fato desejam é uma brincadeira de Bumba, a fim de cumprir a promessa empenhada e, naturalmente, dançarem. [...] De uma maneira ou de outra, obedecem ao
mesmo roteiro do grupo tradicional, isto é, constando de batizado, ensaio- redondo
(ou geral), festas, ladainhas e finalmente, a “morte” com o mourão, mesa de doce e
comidas dos mais exóticos sabores.
Alguns grupos de bumba-meu-boi são organizados para pagar promessa, essas promessas consistem em pessoas que tem entes enfermos e nesse caso prometem a um dos santos de junho que caso
seja concedida a graça da cura, a pessoa decide organizar um boi, por um determinado tempo ou por
tempo indefinido, ou como eles costumam dizer: “até que eu tenha força nas mãos e nos pés”. Dessa
forma, fica constituída a promessa, e o boi é colocado na rua, alguns brincantes ainda fazem sacrifícios nos dias de santo, como São Pedro e São Marçal, onde acendem fogueiras, entram de joelhos em
capelas, dentre outras coisas buscando, assim, renovar a promessa com o santo.
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COMPLEXO CULTURAL BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO: EXPRESSÃO CULTURAL AFRODESCENDENTE E PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL
Em outros casos os bois são constituídos pela tradição do local, e assim é passado de pai para
filho. Já o boi de Encantado, a própria entidade pede um boi, e nos terreiros são organizados os bois
para que sejam, assim, instrumento em prol de uma ou várias entidades de terreiros de Umbanda, de
Mina e de Pajelança.
No Maranhão esse sincretismo religioso é muito forte, é o momento em que o sagrado e o profano se encontram, elementos de várias religiões interagindo harmoniosamente, fruto da junção das
três raças que compõem a população Maranhense, o negro, o índio e o branco, essa união é bem representada nas brincadeiras. Alguns bois são batizados, ou recebem suas bênçãos na igreja, onde o padre
dá a benção ao boi e aos brincantes, e logo em seguida a mesma brincadeira é levada a um terreiro para
receber a benção do pai de santo, que muitas vezes tem a função do pajé indígena que abençoa o boi e
seus brincantes para que nada de mal lhes aconteça na temporada inteira, que começa exatamente com
o ritual do batizado e se estende pelas brincadas e acaba no ritual da morte.
Além desses elementos das três raças, o Bumba-boi recebe influencia de outras lendas que
enriquecem ainda mais a maior manifestação popular do estado do Maranhão, uma delas é a Lenda
do Rei Sebastião.
Ferretti (2011) diz que a crença em um rei encantado que virá para salvar seu povo essa crença
está presente em várias regiões, podendo ser considerada uma das manifestações do messianismo.
No Maranhão a crença do sebastianismo é muito forte e difundida, a mesma tem como fundo
histórico a lenda do Rei Sebastião que desapareceu em batalha na África contra os Mouros, e segundo
a lenda, reencarnou em um boi negro que anda por cima das dunas na ilha dos lenções no município
de Cururupu.
No Maranhão, essa crença foi tão forte no passado que O padre Antônio Vieira foi processado
pelo tribunal de inquisição, mas foi absolvido, anos mais tarde, pelo Papa como se pode ver a seguir.
O sebastianismo possui manifestações e peculiaridades em diferentes regiões do Brasil. Uma de suas fontes de difusão foram os jesuítas. [...] em 1656, ao falecer D. João
IV, o padre Antônio Vieira pregou na matriz do Maranhão, que D. João estava morto,
mas haveria de ressuscitar. Diz que este sermão se perdeu como alguns outros feitos
de improviso, mas suas ideias permaneceram, sendo responsável, inclusive, por Vieira
ter sido processado pelo Tribunal do Santo Ofício por ter defendido as profecias de
Bandarra, ter pregado a volta de D. João IV e previsto o advento do Quinto Império.
O Padre Antônio Vieira, que viveu durante vários anos no Maranhão, foi condenado
pela Inquisição em 1667, mas, em 1675, foi absolvido pelo Papa. (FERRETTI, 2011,
p.2).
Cadabumba-boi tem seu estilo e forma peculiar de brincar, e suas toadas têm as diversas temáticas, as mais comuns são para Jesus, para Deus, para o Sol, para a Lua além de para algumas
entidades da encantaria, como podemos ver na toada de Humberto do Boi de Matraca, intitulada Reis
na encantaria.
Salve os terreiros que o pai oxalá mandou/Turquia, Casa das Minasea Casa de Nagô.
Viva Deus! Viva as Rainhas e os Reis da Encantaria! Rei Badé, Rei Verequete/ O Rei
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Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho, Delcimara Batista Caldas
da Alexandria. Rei Guajá, Rei Surrupira, Rei Dom Luís, Rei Dom João./Rei dos feiticeiros, dos Exus e Rei Leão. Rei Oxossi, Rei Xangô, Rei Camungá, Rei Xapanã e Barão
Rei de Guaré. Protejam o Boi do Maracanã, Rei da Bandeira, o Rei da Maresia, Rei
de Itabaiana, salve o Rei da Bahia./E os Reis que eu não falei em verso, falo no meu
coração. Salve o Rei dos Índios. Salve o Rei Sebastião.(Bumba-meu boi de Maracanã,
sotaque de matraca)
O boi de orquestra traz consigo grandes toadas dentre elas pode-se mencionar uma das mais
bonitas de todos os tempos, toada essa que mais jovens e mais velhos se lembram; Bela mocidade é
uma toada que carrega todo o sentimento bucólico retratando as belezas do Maranhão, Bela mocidade
diz assim:
Quando eu me lembro,/Da minha bela mocidade./Eu tinha tudo a vontade,/Brincando no boi
de Axixá./Eu ficava com você,/Naquela praia ensolarada,/E a tua pele bronzeada,/Eu começava
a contemplar./Mas é que o vento buliçoso balançava teus cabelos,/E eu ficava com ciúme do
perfume ele tirar./Mas quando o banzeiro quebrava,/Teu lindo rosto molhava,/E a gente se rolava na areia do mar./Morena veja como é tão bonito/Quando a lua vem surgindo /E começa a
clarear o mar/É quando eu me lembro/Dos tempos passados /Eu era o seu namorado/E vivia a
contemplar/Naquela praia tão linda /Noite e dia a clarear,/O vento soprava forte/Querendo o
teu lindo cabelo açoitar./Naquela praia tão linda /Noite e dia a clarear,/O vento soprava forte/
Querendo o teu lindo cabelo açoitar./Mas é que o vento buliçoso balançava teus cabelos,/E eu
ficava com ciúme do perfume ele tirar./Mas quando o banzeiro quebrava,/Teu lindo rosto molhava,/E a gente se rolava na areia do mar.(Bumba-meu-boi de Axixá, sotaque de orquestra).
Pode-se destacar no Boi de Pindaréa toada Novilho Brasileiro, toada essa imortalizada na voz
do cantador Coxinho que foi cantador do Boi de Pindaré por muitos anos até sua morte.Essa toada é
hoje o hino do São João do Maranhão, tendo de ser tocada na abertura de todos os arraiais do Maranhão antes de começarem as apresentações da noite. A toada diz:
Lá vem meu boi urrando,/subindo o vaquejador,/deu um urro na porteira,/meu vaqueiro se espantou,/o gado da fazenda/com isso se levantou./Urrou, urrou, urrou,
urrou/meu novilho brasileiro/que a natureza criou/Boa noite meu povo/Que vieram
aqui me ver/Com essa brincadeira/Trazendo grande prazer/Salve grandes e pequenos/Este é meu dever/Saí pra cantar boi bonito pro povo ver/São João mandou/Que
é pra mim fazer/Que é de minha obrigação/Eu amostrar meu saber/Urrou, urrou,
urrou, urrou/meu novilho brasileiro/que a natureza criou/Viva Jesus de Nazaré/E a
Virgem da Conceição/Viva o Boi de Pindaré/Com todo seu batalhão/São Pedro e São
Marçal/E meu senhor São João/Viva as armadas de guerra/Viva o chefe da nação/São
Cosme e São Damião/Urrou, urrou, urrou, urrou/meu novilho brasileiro/que a natureza criou.(Bumba-meu-boi de Pindaré, sotaque daBaixada).
No sotaque de Zabumba, pode-se destacar uma toada que, onde é apresentada, emociona: a toada Força da promessa do Boi de Leonardo é uma toada que, com seu ritmo cadenciado no começo e
depois intensificado pelo toque dos tamboritos e da batida estridente da zabumba, deixa os brincantes
e a assistência em transe nos terreiros no período das festas Juninas. A toada mensagem Divina no som
da zabumba faz com que ecoe a mensagem aos brincantes.
Sistença que tá na bancada /Levanta que meu boi chegou /O terreiro tava triste/Nesse momento se alegrou /Porque /Recebemo uma mensagem /Lá de cima que Jesus
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COMPLEXO CULTURAL BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO: EXPRESSÃO CULTURAL AFRODESCENDENTE E PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL
mandou.(Bumba-meu-boi da Liberdade, sotaque de Zabumba).
Os bois de terreiro também têm suas todas, as mesmas são ditas por brincantes em transe como
nesses bois também se vê a presença da cura como é demonstrado por em:
Em alguns terreiros, o Rei Sebastião se incorpora nos devotos na forma de um touro,
chamado de boi Turino e a pessoa que o recebe dança ajoelhada, com as mãos ciscando o chão e bufando como um touro. Geralmente este transe dura pouco tempo, como
se ver em São Luís, no terreiro de Margarida Motta e na cura de dona Raimundinha,
a qual se comentará a seguir. No terreiro de Santa Luzia, de dona Benedita, no Bairro
da Aurora, assiste-se a uma visita do grupo de bumba-meu-boi Boizinho Encantado,
que possui muitas músicas relacionadas a Dom Sebastião.FERRETTI(2011, p.7).
Uma das toadas desses bois de mina, apresentar-se-á abaixo, já que na mina os rituais são bem
secretos e muitas delas são inéditas:
Vaqueiro, vai buscar Meu Boi/ Vaqueiro, vai buscar Meu Boi, /Trazendo logo/ A vara
de ferrão. / Eu só te peço, / Meu vaqueiro, amigo /que não me fere/ O nosso coração. /
Morena, Saia no Terreiro/ Morena, saia no terreiro, / Olha para o tempo (bis) / E veja
que eu já vou. / Faço que vou, / Mas eu fico aqui mesmo, / na minha eira, / Que tenho
meu valor. REIS (2000, p 63)
OS ELEMENTOS PERSONAGENS DO AUTO
No auto do bumba-boi não pode faltar o que se chamam as toadas de cativeiro, como um dos
amos de um tradicionalíssimo boi de São Luís chama aquelas todas, que sempre são tocadas, e não
podem faltar em uma apresentação, como: o guarnicê, o lá vai, o chegou, o urro, a despedida. Essas
toadas compõem no tempo do São João as apresentações do auto resumido do bumba-boi por conta
das apresentações terem obrigatoriamente de durar cerca de uma hora pela grande quantidade de
grupos que têm de se apresentar nos terreiros dos bairros onde se tem arraiais. Os personagens desses
autos são:
Dono da Fazenda - é senhor dono da fazenda. Usa a roupa mais rica e um apito para coordenar a festa.
É o responsável pela organização do Batalhão e, em alguns casos, é também o cantador.
Pai Francisco - vaqueiro, veste-se com roupas mais simples. Seu papel durante a brincadeira é provocar risos na plateia. Cada boi pode ter vários deste personagem.
Mãe Catirina - mulher de Pai Francisco. Normalmente representada por um homem vestido de mulher.
Índias - mulheres cobertas por penas no peito, mãos e pernas.
Miolo - brincante responsável pelas evoluções e coreografias do boi.
Vaqueiros - empregados da fazenda. Usam roupas de veludo e chapéus de pena com longas fitas coloridas.
Mutuca - para não deixarem os brincantes dormirem durante as maratonas de apresentação dos bois,
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Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho, Delcimara Batista Caldas
os mutucas são responsáveis pela distribuição de cachaça a todos.
Caboclo de fita” - brincantes enfeitados com chapéus de fita coloridos e que se misturam aos vaqueiros
durante a festa.
Caboclo de pena - homens cobertos por penas e com um grande chapéu ou cocá que também é feito
de penas, representando os homens da tribo nos rituais.
O auto foi recontado por TEIXEIRA apud MARQUES(1999, 105-107) dessa forma,
Depois de conferir o gado pelas capoeiras e ver que faltava o novilho de estimação do amo, o vaqueiro
chega na fazenda preocupado e matutando a sorte de tal atrapalho.
AMO - Rumbora, desembucha vaqueiro. Isso é cara?
VAQUEIRO - É aquele touro novo, meu amo. Sumiu! Acho que foi furto...
AMO - O quê? Quem foi o filho de égua que me traiu?
VAQUEIRO - Siô! Num sei não.
AMO - Vai atrás desse boi, vaqueiro! Quero ele aqui, inda hoje, junto com o chifrudo do ladrão, sendo
é tu que vai entrar no relho.
O vaqueiro vai e volta sem encontrar o touro bonito, nem tampouco o lalau.
VAQUEIRO - Meu amo, só tem um jeito. É chamar as índias², que elas conhecem bem o mato e não
se avecham com cobra de duas cabeças.
AMO - As capetas-de-pena? Vai buscar!
No clarão da lua, as índias, já sabedoras do acontecido, partem armadas de arco e flecha. Atravessam
rios e morros cantando para afastar a caipora, sem nada encontrar.
VAQUEIRO - Nem boi, nem cabra, meu amo.
AMO - Ah! Hoje eu viro o diabo pelo avesso, mas amarro o rabo desse mequetrefe no pau do chiqueiro!
VAQUEIRO - Amo! Dei uma volta no miolo e encontrei outro buraco. Conheço um marido e uma
mulher que podem dar uma resposta para essa teima. É o Pai Francisco e a Mãe Catirina, dois mutucas
de asa... Sabem de tudo!
AMO - Intonce. Manda chamar!
Chega o Nego Chico desconfiado que nem tralhoto, querendo assuntar e desassuntando. Cara lavada,
mas não é besta.
CHICO - Patrão, como vai a família? Tá gorda, hem? Mas, pro que lhe pergunte ...
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COMPLEXO CULTURAL BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO: EXPRESSÃO CULTURAL AFRODESCENDENTE E PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL
AMO - Não tem que perguntar. O Sinhô é que vai me dizer se viu um touro assim, assim, que sumiu
do campo sem deixar nem rastro de cocô.
NEGO CHICO - Não vi, não. Juro!
VAQUEIRO - Ora! Sei num sei. Só sei que Mãe Catirinatava com uma vontade doida de comer língua
de boi. Desejo de mulher prenha, meu amo!
AMO - Ah, então tá explicado...
Mãe Catirina vendo tudo perdido, assoa o nariz e reza o terço, mas não se faz de rogada. Com o bucho
no pescoço, mascando fumo, bota um pé na frente e outro atrás.
CATIRINA - Não é fio, meu amo. É barriga d’água! Oia como sacode... É, num é, Chico?
CHICO - Verdade, é o fato!
AMO - Nem choro, nem pagamento. Pensa que me engana? Quero meu boi de volta, igualzinho como
nasceu, senão o cacete come!
CATIRINA - Vige Maria!
Chico e Catirina saem correndo, de mãos dadas, já sentindo o couro arder. Resolvem então roubar
numa fazenda vizinha, um novilho parecido com o touro do amo, a quem entregam a prenda. No terreiro do patrão todo mundo cerca o novilho para ouvir o seu urro.AMO - Quero ver se esse boi tem
culhão
CATIRINA - Vige Maria. E não é que o boi urrou bonito?”
PROCESSO DE PATRIMONIZAÇÃO
Antes da abordagem acerca do título recebido pelo Bumba-Boi do Maranhão de Patrimônio
Cultural Imaterial do Brasil, vale ressaltar alguns conceitos básicos implicados a essa nova condição.
A palavra Patrimônio vem do grego pater e significa pai. Ela se relaciona a tudo que é deixado
como legado, transmitido de pai para filho. Com as inovações e mudanças sociais, esse termo passou
a representar um conjunto de bens materiais, relacionados intimamente com a identidade, a cultura ou
o passado de um povo (ALVES, 2011).
Alves (2011) declara ainda que o conceito de último de patrimônio está associado à Revolução
Francesa que exacerbava a necessidade de se eleger monumentos que refutassem o passado, a qual
deveria estar ligada à noção de melhoria, evolução e progresso.
Recentemente, a definição de patrimônio relaciona-se a duas categorias distintas: material e
imaterial. O material envolve as construções, obeliscos, esculturas, acervos documentais, museológicos e de belas artes; já o imaterial pressupõe regiões, paisagens, comidas, bebidas típicas, danças,
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Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho, Delcimara Batista Caldas
manifestações religiosas e festividades tradicionais.
Para Alves (2011), a necessidade de preservação desses patrimônios envolve uma preocupação
em democratizar os saberes e fortalecer a noção de cidadania, além de favorecer o diálogo entre os
diferentes grupos sociais e culturais.
Já que se aborda o termo cultura no conceito de patrimônio, é importante resgatar o que assevera a Unesco (1989) sobre cultura tradicional e popular:
A cultura tradicional e popular é um conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundada na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e
que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, as
línguas, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, o artesanato, a
arquitetura e outras artes(UNESCO, 1989).
Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan (2011), patrimônio
imaterial é transmitido de geração a geração, recriado constantemente devido ao ambiente, interação
com a natureza e com a história. Equivale às representações, práticas, expressões, conhecimentos,
técnicas, instrumentos, objetos, artefatos reconhecidos pelos integrantes dos grupos sociais como representação maior da cultura.
Na lista de bens imateriais brasileiros estãoa festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, a
Feira de Caruaru, o Frevo, a capoeira, o modo artesanal de fazer Queijo de Minas e as matrizes do Samba no Rio de Janeiro. (IPHAN, 2011).
Patrimônio cultural imaterial do Brasil
O bumba-boi do Maranhão recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. O
projeto foi apresentado ao Iphan em 2008, tendo como relator Luiz Phelipe Andrés, conselheiro Integrante da Câmara Imaterial.
O registro foi concedido pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural dia 30 de agosto de
2011, no Iphan, Brasília. O Conselho Consultivo do Iphan é formado por vinte e dois conselheiros de
instituições como Ministério do Turismo, Instituto dos Arquitetos do Brasil, Sociedade de Arqueologia Brasileira, Ministério da Educação, Sociedade Brasileira de Antropologia e Instituto Brasileiro de
Museus (Ibram) e da sociedade civil, pelo presidente, Luiz Fernando de Almeidae por especialistas de
diversas áreas, como cultura, turismo, arquitetura e arqueologia.
Segundo a historiadora Zelinda Lima, o bumba-meu-boi representa uma tradição de mais de
duzentos anos, alvo de proibições da polícia do século XIX e atualmente recebe o maior reconhecimento de todos: principal manifestação cultural popular do Maranhão. Ressalta-se ainda que a brincadeira é de suma importância na coesão da sociedade maranhense, na construção da identidade do povo
maranhense e nas relações sociais que ela estabelece e isso dentro de uma cadeia produtiva.
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COMPLEXO CULTURAL BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO: EXPRESSÃO CULTURAL AFRODESCENDENTE E PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL
Considerações finais
Percebe-se a necessidade, diante do exposto, de fazer com que a sociedade conheça um pouco
mais de sua cultura, principalmente o Bumba-Boi do Maranhão, hoje Patrimônio Cultural Imaterial
do Brasil.
Esse projeto aprovado pelo Iphan só veio endossar a ideia de que as relações culturais constituem a gênese das relações entre os povos. Favorece a divulgação de produções de um povo e atua
como agente modificador de uma sociedade.
A dança, tida por muitos como apenas brincadeira de passar tempo, mostra seu verdadeiro
papel social. Espera-se, contudo que as autoridades não se deem por satisfeitas com esse capítulo da
história, mas que invistam em outros bens imateriais.
Resgatar valores é acima de tudo preservar a identidade de um povo, seus aspectos tradicionais
responsáveis pelas prováveis modificações do pensar e agir de outras gerações, das vindouras.
REFERÊNCIAS
ALVES, Elder Patrick Maia. Diversidade cultural, patrimônio cultural material e cultura popular: a
Unesco e a construção de um Universalismo global. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/sobre/
cultura/patrimonio/patrimonio-material-e-imaterial>. Acesso em: 27 jul. 2011.
AZEVEDO NETO, A. Bumba-meu-boi no Maranhão. 2.ed. São Luís: Alumar, 1983. 86p, il.
CABRAL, Gabriela. Bumba-meu-boi. Disponível em: < www.brasilescola.com/folclore/bumbameuboi> Acesso em: 20 jul. 2011.
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CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Ouro, 1949.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. CAO Boi-Bumbá de Parintins, Amazonas: breve história e etnografia da festa. Disponível em: < www.brasilescola.com/folclore/bumbameuboi>. Acesso em:
20 jul. 2011.
ESSINGER, Sílvio. Bumba-meu-boi. Disponível em: < www.brasilescola.com/folclore/bumbameuboi>.
Acesso em: 27 jul. 2011.
FERRETTI, Sergio F. Encantaria Maranhense de Dom Sebastião, Congresso Europa das Nacionalidades: Mitos de Origens, discursos Modernos e Pós-Modernos – Universidade de Aveiro, Portugal 2011.
IPHAN (Maranhão). Bumba-meu-boi som e movimento. São Luís: Imprima Soluções Gráficas, 2011.
252 p. (1).
178
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MARQUES, Francisca Ester de Sá. Mídia e experiência estética na cultura popular: o caso do bumbameu-boi. São Luís: Imprensa Universitária, 1999.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1988.
REIS, J.R.S. dos. Bumba-meu-boi, o maior espetáculo popular do Maranhão. 3.ed. São Luís: LITHOGRAF, 2000.
UNESCO. Recomendação Sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular
(1989). Paris.
* Professor da rede pública Estadual e Municipal do Maranhão, Mestrando em Educação pela Universidade Católica de Brasília - UCB e pesquisador da Cátedra UNESCO de Juventude, Educação e
Sociedade da UCB e do grupo de Linguagens, Cultura e Identidades da UFMA.
** Mestra em Educação pela Universidade Católica de Brasília (UCB), Professora da Faculdade Atenas Maranhense – FAMA e Pitágoras São Luís.
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ESTALEIROS NAVAIS RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA: EMBARCAÇÕES, EDUCAÇÃO E
SABERES CULTURAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL
Antônio Jorge Pantoja Gualberto1
APRESENTAÇÃO
Este artigo é resultado de uma investigação realizada em uma Carpintaria Naval na Cidade
de Vigia, conhecida por Estaleiro Esperança, localizado no Bairro de Arapiranga. A escolha do lócus
investigativo reside na importância histórica e geográfica desse município, que se constituíram como
base na formação cultural da sociedade vigiense contemporânea.
Verificou-se que os saberes que circulam neste estaleiro foram construídos historicamente,
que através da rememoração de práticas passadas e concomitantemente da verbalização das mesmas,
acontece o repasse de saberes que envolvem a carpintaria, entre a geração mais velha para a mais nova.
Destacamos a “Cultura de Conversa” 2, segundo Oliveira (2007, p. 51) como constituidora dessa tessitura cultural observada dentro do estaleiro, pois o ato de conversar também é o de educar, e se
há educação, há circulação de saberes entre as pessoas que estão envolvidas na arte do saber-fazer uma
embarcação. Consideramos que essas relações educacionais se transformaram e ainda se transformam
constantemente em “situações de aprendizagens” (BRANDÃO, 2007, p.18), onde o observar e o escutar se constituem como a primeira fase do aprendizado, que obedece a uma relação sócio-histórica
construída pelos membros dessa comunidade ribeirinha em seu devido Tempo Histórico.
ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DE VIGIA DE NAZARÉ
Vigia de Nazaré é um município localizado na Mesorregião do Nordeste Paraense, e Microrregião do Salgado, banhada pelo Rio Guajará-Mirim. Esse rio exerceu no passado colonial, como uma
importante via de acesso marítimo que além de ligar Vigia a Belém, capital do Grão-Pará, servia com
ponto estratégico para a vigilância da região contra corsários estrangeiros (franceses, ingleses e holandeses), ou como posto alfandegário.
A cidade tem localização privilegiada, pois está próxima a desembocadura de duas grandes bacias Hidrográficas do Brasil, a Bacia Amazônica e a Araguaia-Tocantins; e perto do Litoral Oceânico,
ou seja, faz parte de uma região que é rica em “fauna ictiológica marítima” (VERISSÍMO, 1895, p.
05). Essa riqueza transformou a região de Vigia em um grande pólo pesqueiro de expressão nacional
na atualidade.
1
Mestre em Educação em 2009 pela Universidade do Estado do Pará com a defesa da Dissertação intitulada “Embarcações,
Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval Ribeirinho da Amazônia”; Especialista em Educação em 2007 pela
Universidade do Estado do Pará com a defesa da Monografia intitulada “A Educação Neoliberal e suas Repercussões no
Ensino Superior”; Bacharelado e Licenciado em História em 1995 pela Universidade Federal do Pará. E-mail: jorge_
[email protected]
2
Transmissão oral de saberes a partir do acúmulo das experiências sociais construídas historicamente, dentro de uma
relação de solidariedade entre os membros da comunidade ribeirinha envolvida.
ESTALEIROS NAVAIS RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA: EMBARCAÇÕES, EDUCAÇÃO E SABERES CULTURAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL
Se a cultura da sociedade vigiense está alicerçada na pesca, um dos fatores para essa tradição cultural está na posição geográfica onde se estruturou historicamente esse município. Veríssimo
(1895) já destacava em finais do século XIX essa riqueza marítima, quando cita a geografia da região
e o pescado que nela abunda, afirmando que “[...] A costa chamada da Vigia e a fronteira, a leste de
Marajó, entre Soure e o Cabo Maguari, são o principal campo das pescarias de tainhas e na Contracosta, a da gurijuba” (VERÍSSIMO, 1895, p. 61). Na atualidade, outro fator que destacamos, está na
produção de embarcações, principalmente para a pesca, que tem suas origens desde tempos coloniais,
as quais eram construídas e utilizadas para a catequese e para patrulhamento local.
ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICO DE VIGIA DE NAZARÉ
Visitar a cidade de Vigia no primeiro decênio do século XXI caminhando por suas ruas estreitas, passando próximo aos prédios públicos como o Trem de Guerra, “casa quartel do tempo da
Cabanagem” (LOUREIRO, 1987, p.57) e das diversas igrejas construídas na época da colonização no
século XVIII, como a Igreja da Madre de Deus, descrita pela antropóloga Loureiro, como: [...] Talvez,
a única no Brasil, munida de vinte e duas colunas laterais, de origem toscana. (LOUREIRO, 1987,
p.52), é vivenciar um passado em tempo presente.
A Igreja Matriz de Nossa Senhora de Nazaré é outro monumento histórico desta cidade que tem
um “estilo Barroco” (Ibidem) e a Capela do Senhor dos Passos, “construída em pedras superpostas e
sem reboco, causa profunda impressão de primitivismo e originalidade” (Ibidem). Ambas construídas
no século XVIII abrigaram e serviram ao longo desses séculos, como locais de grandes debates religiosos, políticos e administrativos entre os membros da sociedade vigiense.
Saindo da Capela do Senhor dos Passos indo no sentido norte da cidade, chegando até as
margens do Rio Guajará-Mirim, é sentir a nostalgia de um passado em tempo presente, pois assim
os colonizadores utilizaram essa via marítima para monitorar a entrada de embarcações estrangeiras
que ameaçassem a capital do Grão-Pará e a Amazônia. Ocorreu também o ir e vir dos missionários
Jesuítas que se locomoviam em pequenas embarcações para catequese dos indígenas tanto na Ilha
do Marajó, quanto nos sertões da Amazônia. A origem desse município data do primeiro decênio do
século XVII, provém de um núcleo missionário chamado pelos Tupinambá de Uritá3, lá ergueu-se as
bases da cidade de Vigia.
De localização geográfica estratégica para a vigilância da região contra as invasões estrangeiras, Vigia se constituiu como parte integrante de um mega projeto da Coroa Portuguesa para a conquista da Amazônia, que ao utilizarem o rio que banha a cidade, o Rio Guajará-Mirim, o transformou
em corredor principal para as embarcações nativas, mestiças ou lusitanas, para o deslocamento de
pessoas que se dirigissem a Belém do Grão-Pará, ou seguindo rumo ao Rio Tocantins ou Rio Pará, até
chegar ao Amazonas.
Em tempos atuais, esse rio ainda exerce grande importância econômica para a sociedade
vigiense, apesar das estradas rodoviárias que se constituírem nesse primeiro quartel do século XXI
3
Palavra de origem língua Tupi-Guarani, cujo seu significado é cesto de pedra (Uru = cesto, Itá = pedra).
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como o meio principal de transporte de carga ou de passageiros.
O ir e vir de pequenas, médias e grandes embarcações amazônicas no rio Guajará-Mirim,
vindas do Marajó ou da Zona Costeira persistem, ratificando a base economia do município, que
desde sua origem estava voltada para a pesca e produção de barcos. Esse frenesi de embarcações em
frente da Cidade de Vigia faz-nos aflorar as reminiscências desse passado cujas embarcações foram
fundamentais para a conquista do Vale Amazônico, seja pela Catequese ou por busca das “Drogas do
Sertão”.
Prado Júnior (1992) em sua obra “Formação do Brasil Contemporâneo” comenta a importância
dessas vias marítimas para os colonos na conquista da Amazônia, quando diz:
[...] para as distâncias enormes que cobrem seus trajetos, contados por centenas e
centenas de léguas, de que meios de transporte e condução dispunham os colonos? É
para a navegação, particularmente à fluvial, que estavam melhor aparelhados (PRADO JÚNIOR, 1992, p. 258).
Na orla marítima desse rio, no passado, eram as Ubá4, Igarité5 e Vigilengas6 cruzando o Guajará-Mirim; hoje, são as embarcações a motor, que transitam por essa mesma via fluvial marítima rumo
a desembocadura do Rio Tocantins até ao Delta do Amazonas, contornando a Ilha do Marajó, em
busca de espécies de peixes como a gurijuba e a pescada amarela; outras trafegam a grande avenida
marítima deste rio para entrarem em “ruas e travessas”, ou seja, nos furos e igarapés, no sentido de
descerem esse rio rumo à Boca da Laura7, para chegarem a Baía do Sol (Ilha de Mosqueiro) até alcançar o Furo do Maguari (Ilha de Outeiro), passando por Icoaraci, seguindo para Belém, para descarregar e verificar o peso do pescado e comercializá-lo, em seguida fazem o mesmo trajeto para o retorno.
Chegar dessas viagens e fazer uma limpeza geral ou um reparo na embarcação na orla do rio
Guajará-Mirim se constitui, no passado e no presente, uma prática comum entre os pescadores com
seus barcos. É comum ouvir em tempos atuais o barulho de motosserras, serrotes, martelos, além das
conversas e gargalhadas. É nesse local que muitos diálogos que envolvem política, economia, religião
e saberes acerca da pesca, do ritmo das águas e da carpintaria naval são verbalizados entre os atores
envolvidos nesse segmento social de Vigia.
Esse movimento verificado transforma a orla do Rio Guajará-Mirim em uma oficina náutica
a céu aberto e porque não dizermos numa Escola Técnica a céu aberto! Lá o conteúdo principal se
desenvolve a partir da observação, da gesticulação, da verbalização e do repasse de saberes de gerações passadas às gerações mais novas sobre a arte de se construir uma embarcação, que a partir da
Cultura de Conversa (OLIVEIRA, 2007, p.51) constrói-se uma relação educacional autônoma de
ensino-aprendizagem entre os sujeitos envolvidos no ofício da carpintaria.
Quando me refiro que esse espaço é um “Liceu natural a céu aberto”, chamo assim, por não
ter muros e delimitações espaciais, nem regras institucionais de uma escola regular. Nesse sentido,
compartilho com a ideia de Brandão sobre escola e/ou espaço escolar, quando diz:
4
5
6
7
Nome indígena de canoa feita de um Tronco só de árvore.
Nome indígena de canoa grande feita de um tronco só de árvore.
Embarcação mestiça originária da fusão de saberes da carpintaria naval entre portugueses e nativos.
Nome dado pelos pescadores locais para o final do rio Guajará-Mirim.
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ESTALEIROS NAVAIS RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA: EMBARCAÇÕES, EDUCAÇÃO E SABERES CULTURAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL
Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único
lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única
prática e o professor profissional não é o seu único praticante [...] Existe a educação
de cada categoria de sujeitos de um povo (BRANDÃO, 2007, p.9).
É nesse ambiente que alguns mestres carpinteiros repassam seus saberes, a exemplo do mestre
Albo, carpinteiro natural da Cidade de Bragança, que ao expor sua experiência aos curiosos que estão
por lá, seja para fazer reparos e limpezas em embarcações, contribuem de certa forma para um aprendizado àqueles que observam, constituindo-se assim como um dos “educadores” dessas “escolas”.
Assim é o cotidiano de muitos trabalhadores que estão envolvidos na arte da carpintaria naval
em Vigia na atualidade, como a de outros “educadores” que se constituíram como sujeitos desta pesquisa, mestre Dorival Dantas (pai), Jaci Dantas (filho), Juraci Dantas (filho) e Ubiraci Dantas (filho),
que além de frequentarem esse “Liceu natural a céu aberto”, frequentam também outra “Escola sem
muros” – o Estaleiro Esperança.
ESTALEIRO ESPERANÇA: LICEU DE ARTES E DE OFÍCIOS DE CARPINTARIA NAVAL EM VIGIA
Atualmente a cidade de Vigia possui três estaleiros de carpintaria naval em atividades de construção e restaurações de embarcações. O Estaleiro Esperança é um deles, foi o lócus desta pesquisa.
Localizado no Rio Açaí (braço do rio Guajará-Mirim), de propriedade dos irmãos e mestres da carpintaria naval: Zuzinha, Joaquim e Marivaldo, filhos e herdeiros do ofício da carpintaria naval do mestre
Zuza - já falecido.
Nesse estaleiro se faz presente também outros mestres da arte de construir embarcações, mesmo não sendo proprietários, mas que compõem a mão-de-obra qualificada no desenvolvimento do
ofício da carpintaria naval, a exemplo, de mestre Bolero e Mineirinho.
Outro exemplo que encontramos que desenvolve as atividades da carpintaria naval é o Senhor
Jaci. Mestre Jaci, de 35 anos de idade, também é herdeiro de conhecimentos desse ofício que foram
repassados de geração a geração. Contudo a herança dos saberes da carpintaria naval deste jovem
mestre é oriunda de outra base familiar ligada à construção de barcos, a do mestre Dorival Dantas.
Com 65 anos de idade e 52 anos de profissão, Dorival Dantas se constitui como um arquivo
vivo de um passado ligado aos saberes seculares da carpintaria naval na Amazônia. Saberes esses
que ao atravessarem décadas foram construídos, reconstruídos e aprimorados, numa alusão descrita
por Paulo Freire em que somos seres “inacabados” (FREIRE, 2001, p. 55). Essa busca constante
pelo aprimoramento de seus conhecimentos na carpintaria naval nunca findou, atravessou décadas em
constante aperfeiçoamento, chegando a sua segunda geração com seus filhos Jaci, Juraci e Ubiraci,
que por estarem na qualidade de “seres do aprendizado, logo, da educação” (BRANDÃO, 2002, p.25),
dão continuidade naquilo que lhe fora ensinado nas “escolas sem muros”, constituindo-se assim num
“movimento longo, complexo, nunca completamente acabado” (CHARLOT, 2007, p. 53), que é condição natural do ser humano para sua sobrevivência, de sua cultura e de sua espécie.
Essas “escolas” surgiram dentro de um longo processo histórico de ocupação portuguesa na
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Amazônia. Começou com os Aldeamentos Missionários Católicos implantados na região no Período
da Colonização (XVII), numa longa conivência com os nativos. Esse encontro das duas culturas proporcionou a incorporação gradativa dos saberes indígenas ligados à carpintaria naval, que somados
aos ensinamentos missionários tiveram um papel fundamental para a transformação das ubá e igarité
em barcos de tábuas. Esse novo transporte atendeu as demandas comerciais oriundas da extração das
“drogas do sertão” e da catequese. O resultado dessa prática educativa utilizada pelos Jesuítas foi a
formação de muitos aldeados para o ofício da carpintaria naval, entre outros ofícios.
No entanto a utilização dessa mão-de-obra indígena qualificada ganhou impulso na segunda
metade do século XVIII, com a criação da Companhia de Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, no governo de Marques de Pombal, em decorrência das riquezas naturais da Amazônia a exemplo do cacau que se internacionalizou. Para isso, a necessidade de construção de embarcações que
propiciassem mais segurança, velocidade e capacidade de carga, levou a administração portuguesa na
Amazônia a providenciar a vinda de muitos mestres carpinteiros para a Região Amazônica, sobretudo
para a capital do Grão Pará.
Cruz (1973), ao citar em sua obra um documento oficial enviado em 1733 pelo Governador e
Capitão General do Estado do Maranhão e Grão Pará ao Rei Dom João V, menciona a ordem de construir um estaleiro em Belém que viesse a atender às necessidades do reino português.
Em 1761, o governador da Província Manoel Bernardo de Melo e Castro “escolheu a RIBEIRA
e praia do HOSPÍCIO DE SÃO BOAVENTURA” (CRUZ, 1973, P.229), - hoje Arsenal da Marinha para a construção do primeiro estaleiro no norte do Brasil, para isso “mandou levantar o telheiro e as
oficinas para a construção naval. De Lisboa vieram os operários especializados para a RIBEIRA DAS
NAUS” (Ibidem). Para que o estaleiro funcionasse regularmente, sem falta do material indispensável
à sua finalidade, estabeleceu-se o sistema de “cortes de madeira de construção náutica nos rios Acará
e Caraparú” (BAENA apud CRUZ, p. 330).
O resultado dessas medidas adotadas pelo governador Manoel Bernardo de Castro foi à construção de 22 embarcações sendo: “04 fragatas; 03 charruas; 03 bergantins; 12 chalupas artilhadas – e
muitas embarcações de baixo bordo para a navegação interna da capitania” (Ibidem, 1973, p. 330). E
para essa grande empreitada foi necessário o emprego da mão-de-obra indígena que totalizou aproximadamente:
2000 mil operários índios empregados no corte, na condução e no embarque das madeiras, e na construção dos ditos vasos da Real Armada, nas disposições da defesa da
cidade, nas embarcações armadas e nas expedidas a diversas diligências (CRUZ, 1973,
p. 330).
A vinda de diversas categorias de profissionais da Europa, ligados a carpintaria naval somada
aos trabalhadores indígenas e mestiços, fez de Belém um pólo convergente e irradiador de saberes na
fabricação de embarcações. Esses saberes foram sendo memorizados e transmitidos de geração em
geração entre os amazônidas. O mestiço, então, levou esses conhecimentos para suas cidades de origem, transformando as margens de rios e igarapés, e/ou nos quintais de suas casas, em seu ambiente
de trabalho ligado a carpintaria naval, o que denominamos de “escolas sem muros”.
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ESTALEIROS NAVAIS RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA: EMBARCAÇÕES, EDUCAÇÃO E SABERES CULTURAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL
Esses ambientes, atualmente chamados de estaleiros, são como liceus8, não em uma concepção institucional formal que cumpre uma carga horária pré-estabelecida, na garantia de certificação
e reconhecimento estatal do estudante, mas porque nesse local existe o ensino-aprendizagem. E por
existir ensino-aprendizagem técnico entre aqueles que estão envolvidos no ofício de construir uma
embarcação e “situações pedagógicas interpessoais, familiares e comunitárias” (BRANDÃO, 2007,
p. 20), consideramos o Estaleiro Esperança como umas “Escolas sem muros”, que abriga cotidianamente diversas pessoas e suas devidas categorias profissionais, sejam mestres carpinteiros, calafetes,
aprendizes e curiosos.
Entre aprendizes e curiosos, observamos presença constante de crianças e adolescentes neste
local. Talvez o fator das visitas constantes desses meninos reside na curiosidade na confecção dos
barcos, pois a arte na construção de um, requer a colocação de peça por peça para compor a obra
maior. Esses procedimentos assemelham-se a um brinquedo lúdico, um jogo de montar. Nesse sentido,
poderemos assim dizer que o Estaleiro Esperança é uma “escola de portas abertas” que atrai qualquer
pessoa, entre criança, jovens e adultos.
Entretanto, para os mestres carpinteiros, a preocupação é clara quanto à utilização de mão-de-obra infantil, pois eles sabem sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que é uma lei que
proíbe qualquer tipo de trabalho infantil. Esse Estatuto gera desconfiança e insegurança entre os mestres que temem receber processos por terem adolescentes trabalhando no estaleiro, embora a mesma
abra concessão aos aprendizes, pois no Capítulo V do Estatuto em seu Artigo de nº 679especifica de
forma clara a regulamentação da utilização da mão-de-obra aprendiz.
Outro fator alegado pelos mestres carpinteiros, entre eles Joaquim, Dorival e Jaci, para a não
utilização desses jovens, está ligado à segurança, pois existem muitos equipamentos elétricos, que em
qualquer erro no manuseio pode-se perder a mão, o braço ou até mesmo a vida. Temem em machucar
esses jovens.
Apesar das restrições acima, isso não impede a presença espontânea de crianças e adolescentes
no Estaleiro Esperança. E mesmo que elas não façam parte como aprendizes no trabalho de construção
de barcos, no momento que elas param e observam os mestres Joaquim, Zuzinha, Bolero, Mineirinho
e Jaci, construindo ou fazendo reparação de barcos, de certa forma elas estão aguçando sua curiosidade sobre aquele ofício. Essa situação já se constitui como “situações de aprendizagens” (BRANDÃO,
2007, p.18), pois a observação se constitui como um dos princípios básicos de um aprendizado.
Em diversos momentos e dias diferentes, o espiar constante das crianças nos gestos e ações
dos mestres carpinteiros na construção de um barco, vai se constituindo em reflexões acerca das peças
confeccionas e acopladas. E por mais desinteressados que sejam o observar dos garotos, neste momento, eles estão recebendo cargas de conhecimentos num simples olhar, pois: “A criança vê, entende,
imita e aprende com sabedoria que existe no próprio gesto de fazer a coisa” (ibidem). E por terem
8
Liceu: Estabelecimento de ensino secundário e/ou profissional (DICIONÁRIO AURÉLIO, 2000, p. 426).
Ao adolescente empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho, aluno de escola técnica, assistido em entidade
governamental ou não governamental, é vedado trabalho: I - noturno, realizado entre as vinte e duas horas de um dia e às
cinco horas do dia seguinte; II - perigoso, insalubre ou penoso; III - realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao
seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social; IV - realizado em horários e locais que não permitam a frequência à
escola (ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente).
9
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uma mente bastante criativa e imaginativa, essas crianças vão aplicar alguns desses conhecimentos em
situações bem propícias de seu meio infantil - a construção de brinquedos - seja um simples barquinho
de papel de miriti ou cortiça.
A mesma curiosidade dessas crianças atuais foi a de diversos mestres no passado quando crianças, mas estes foram muito além de um simples ouvir ou do observar, mesmo porque seu tempo histórico era outro. A relação entre a necessidade material da comunidade e as dificuldades naturais da
região, onde o transporte marítimo fluvial era de extrema necessidade, permitiram-lhes a ingressar
com muita naturalidade nesse ofício. Uma vez munidos com um único instrumento – “a faquinha
amolada” – construíram suas primeiras embarcações feitas de miriti ou cortiça e, gradativamente,
passaram a confeccionar embarcações a serviço de suas comunidades.
Foi na brincadeira de criança de construir barcos de miriti, que o Sr. Dorival Dantas em seus
dez anos exercitou sua potencialidade cognitiva, sua sociabilidade ao interagir com o meio ambiente,
sua sensibilidade ao perceber as dificuldades materiais e seus anseios e de sua comunidade, tudo isso
desenvolvido através da “Cultura de Conversa”, pois o ouvir e observar foram o ponto de partida para
o despertar cognitivo. O conjunto dessa cognição serviu como potencializador de um tipo de aprendizado autônomo desenvolvido e aprimorado em sua fase adulta.
As necessidades materiais de sua comunidade o levaram precocemente a mudanças de compreensão de mundo onde vivia. Seu Dorival ainda criança sai de um estágio natural de sua ludicidade,
em que arte de fazer barquinhos de miriti expressava seu sentimento infantil, para um estágio de responsabilidade que desse solução às necessidades materiais – a falta de embarcações para transportar
sua comunidade.
Esse desafio fez a inocência ceder lugar a responsabilidade, e segundo Huizinga (2007, p. 225)
“quando a arte se torna autoconsciente, isto é, consciente de sua própria grandeza, ela se arrisca a
perder uma parte de sua eterna inocência infantil”. Na busca de se resolver em parte às necessidades
básicas de sua comunidade, fez do Sr. Dorival, ainda criança, sujeito e objeto de seu próprio aprendizado, que “através da experiência pessoal com o mundo ou com o outro” (BRANDÃO, 2007, p. 25)
fez torná-lo de forma precoce um mestre nos saberes da arte de fazer embarcações.
Ao ser indagado sobre onde aprendeu o ofício da carpintaria naval, ele responde que “trouxe
isso de nascença”. Esta vocação que o Sr. Dorival o atribui nada mais foi o conhecimento adquirido através de sua relação com o “mundo humano pré-existente [...] o mundo das relações sociais”
(CHARLOT, 2007, p. 52), desenvolvendo assim uma prática autônoma de aprendizado, mediada pela
dialética vivenciada em seu cotidiano.
Ressalta-se que a primeira forma manifestada para a socialização de seus saberes da carpintaria
se desenvolveu a partir da confecção de seus brinquedos - barquinhos de miriti e de cortiça - e como
toda e qualquer criança desta idade, qualquer objeto transformado ganha vida. No caso do Sr. Dorival,
morador da Ilha Pompé,10 esse objeto confeccionado tinha nome – embarcação – mesmo porque era o
meio de transporte principal dessa região, e o que mais vai ser observado por ele quando criança nessa
época são as embarcações que faziam costumeiramente o transporte de cargas e de pessoas entre uma
10
Pequena Ilha localizada próximo ao município de Chaves, no Arquipélago do Marajó.
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ESTALEIROS NAVAIS RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA: EMBARCAÇÕES, EDUCAÇÃO E SABERES CULTURAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL
ilha e a outra.
E como somos “seres da natureza alçados ao mundo da cultura que nós próprios criamos”
(BRANDÃO, 2002, p. 18). As canoas e barcos de características amazônicas, meio de transporte
essencial no cotidiano dos moradores da Ilha Pompé, serviram como arquétipos de seus primeiros
brinquedos e barcos de transporte e pesca feitos de cortiça11 e, sobretudo de miriti12, árvores encontrada às margens dos rios e igarapés no Marajó, cujos galhos por serem esponjosos e de fácil manuseio
ganhavam formas e vida nas mãos e na imaginação do Sr. Dorival quando criança.
Em uma das entrevistas concedidas pelo mestre Dorival no dia 12.04.2009, perguntou-se a ele
sobre o princípio de todo esse conhecimento no âmbito da carpintaria naval. Como resposta disse:
Eu aprendi a fazer barcos, foi só eu começar a fazer aqueles barquinhos de miriti e de
cortiça – a cortiça é uma árvore que tem a raiz dela é mole, e eu pegava aquela raiz e
eu desenhava tudinho e fazia do jeito que dava na minha cabeça. Eu nunca tinha visto
isso, navio, assim, coisa no estaleiro. Nada! Eu só via passar uma barca dessa qualquer,
mas eu desenhava igual.
Dessa sua narrativa, constata-se que o primeiro momento na aquisição dos conhecimentos no
ofício da carpintaria naval foi a observação das barcas que passavam e atracavam em Pompé. O segundo momento foi a curiosidade de querer saber qual a forma dada às peças de madeira que faziam
parte de uma embarcação e o terceiro momento provavelmente de sua cognição foram as perguntas
relacionadas às peças constituidoras de uma embarcação: Como são moldadas? De que forma se encaixam? Qual o tipo de madeira mais adequada para dá forma e leveza de um barco? Qual o melhor
posicionamento do mastro para dar o equilíbrio ao objeto?
Esses questionamentos levaram o Mestre Dorival a passar “por etapas sucessivas de inculcação
de tipos de categorias gerais, parciais ou especializadas de saber-e-habilidade” (BRANDÃO, 2007,
p.23). As respostas a esses atos cognitivos, que eram alimentados pela curiosidade acerca dos conhecimentos técnicos no querer saber fazer uma embarcação, começam a materializar quando ele passa a
confeccionar seus brinquedos de miriti ou de cortiça, ganhando reconhecimento de sua comunidade.
Mestre Dorival recorda que utilizava uma “faquinha bem amolada” para cortar e modelar o
miriti para a fabricação de seus brinquedos. Quando indagado de onde partiam as ideias, ele responde:
Era eu que fazia e ninguém dizia como era pra mim fazer, e eu não gostava que ninguém me desse ideia, porque eu tenho uma ideia que eu era tão coisa que eu não queria que ninguém me desse opinião pra mim poder fazer como dava da minha cabeça.
A habilidade demonstrada por Dorival na confecção de barcos de miriti e de cortiça em seus
momentos de lazer despertou em seu Neném (seu pai), a confiabilidade em seu filho, e provavelmente
o desejo de seu pai em resolver em parte o problema de transporte que muito dificultava a vida de sua
família naquela época. E ao observar a habilidade de seu filho quando confeccionava seus brinquedos
perguntou: “Meu filho será que tu não faz uma embarcação, uma de madeira?” O Sr. Dorival respondeu: “Papai se tiver as ferramentas eu faço”.
11
Quercus Súber, nome científico desse tipo de árvore que compõem a família dos carvalhos, muito encontrado em
Portugal e na Zona Mediterrânea.
12
Mauritia flexuosa, nome científico desse tipo de palmeira encontrada nas várzeas da Amazônia.
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O processo de “socialização” 13 conforme Brandão (2007, p. 23) de seu auto-aprendizado junto
à comunidade ocorreu quando seu pai passou a fornecer as ferramentas e material para o fabrico de
uma embarcação. Ele recorda que as ferramentas eram: “Plaina de serra, mas não era elétrica, na época
não tinha nada elétrico. Era enxó, serrote, compasso, grampos”. Eram equipamentos usados, dados
por um tio e seu padrinho. Comenta ainda que apesar de serem “velhas”, foram de muita serventia para
o início do ofício de carpinteiro naval.
Foi nessa perspectiva que amadurecem precocemente as habilidades do Sr. Dorival no âmbito
da carpintaria naval. A autonomia confiada de pai para filho na arte de confeccionar uma embarcação
constituiu-se como um dos princípios básicos de um tipo educação que perdura até a segunda geração
do mestre Dorival, na figura de seus filhos: Jaci, Juraci e Ubiraci.
Os princípios de autonomia e pragmatismo foram encontrados nas ações do Sr. Dorival desde
o desafio proposto pelo seu pai, quando lhe confiou à construção da primeira embarcação chamada
“Foi Deus”. Esta foi resultado da ludicidade praticada na confecção de seus barquinhos de brinquedos
feitos de miriti e cortiça.
Muitos estudos científicos que abordam sobre a ludicidade apontam que toda criança aprende
brincando, e “o que mais caracteriza a ludicidade é a experiência de plenitude que ela possibilita a
quem vivencia em seus atos” (LUCKESI, 1998, p.25).
Sua criatividade foi aprimorada a partir das técnicas adquiridas em sua prática cotidiana e
aplicada na construção de embarcações, que ao trocar a “faquinha amolada” que dava sentido e arte
no galho de miriti por novas ferramentas como a enxó, a plaina, o martelo e o serrote, além de passar
a dar outros significados na arte de fazer um barco. Isso serviu como o primeiro e único teste para o
reconhecimento de seu pai e da comunidade da Ilha Pompé de sua capacidade na construção de embarcações.
Nessa perspectiva, seu Dorival comentou que as peças que compuseram esta primeira obra
significativa para a comunidade da Ilha Pompé já não foram mais de miriti ou cortiça, mas das madeiras como a maúba e jataúba, que foram trabalhadas manualmente com as novas ferramentas, pois
na época, nada era elétrico. Como ele mesmo diz: “Até para parelhar a madeira, tinha que cortar com
enxó, aí tirava a grossura dela, a grossura que vai ficar, dobrava ela, depois disso eu passava a plaina
pra ela ficar lisa, não ficar aquele zinco da enxó”.
O mestre sustenta que a maúba e a jataúba eram o tipo ideal de madeira para a confecção de
embarcações, pois tinham qualidades como a de resistir mais ao tempo e de manejo para curva-lá. Em
sua sabedoria, afirma que outros tipos requerem a aplicação do maçarico para o aquecimento da madeira e dobrá-la, além da utilização do “sargento” 14 que ajuda a “disciplinar” a madeira no encaixe da
peça. Foi nesse jogo de montar que a embarcação “Foi Deus” se constituiu como a primeira de muitos
outros barcos, provavelmente trabalhada por ele com amor, dedicação, ou seja, repleta de ludicidade.
13
A socialização realiza em sua esfera as necessidades e projetos da sociedade, e realiza, em cada um de seus membros,
grande parte daquilo que eles precisam para serem reconhecidos como “seus” e para existirem dentro dela (BRANDÃO,
2007, p. 23).
14
Instrumento utilizado para apertar, comprimir ou ajustar uma peça a outra.
189
ESTALEIROS NAVAIS RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA: EMBARCAÇÕES, EDUCAÇÃO E SABERES CULTURAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL
Quando perguntado sobre essa embarcação, ele responde: “Ah, eu fiquei emocionado porque
não acreditava em mim mesmo!”. Ao ser indagado sobre a reação de seu pai ao ver a “Foi Deus”,
responde: “Meu pai ficou muito satisfeito. Não tinha igual. Eu fez o barco. Eu calafetei. Eu pintei e
aparelhei!”.
Portanto, apesar de seu Dorival na época ser uma criança, ele honrou o compromisso com seu
pai e com sua comunidade, conferindo-lhe respeito e reconhecimento como o pequeno-grande mestre
da Ilha Pompé.
O historiador Huizinga (2007) ao fazer referências do fator lúdico existente nas ações humanas, cita que nas artes plásticas:
Verificamos nas artes plásticas a existência de um certo sentido lúdico, inseparável de
todas as formas de decoração, isto é, vimos que a função lúdica se verifica especialmente quando o espírito e a mão se movem livremente. E ela se afirma sobretudo na
obra-prima expressamente encomendada, o tour de force, a prova palpável da habilidade do artista (HUIZINGA, 2007, p. 223).
Observa-se também que a construção de uma embarcação é como as artes plásticas, pois o
corpo e a alma do mestre estão em harmonia desde o princípio até a arte final, porque a construção
de um barco não se isenta de paixões humanas, como também de convenções pré-estabelecidas, pois
é uma obra de arte carregada de jogos (dedicação, sentimento, competição, concorrência, prazo) e
tensões (negociação do preço na prestação do serviço, contratação de operários do setor e pagamento
dos mesmos).
Essas relações Sócio-Históricas que ocorreram nas comunidades ribeirinhas em seu passado e
ocorrem no presente, o sujeito desde sua infância é estimulado pela vivência a apropriar-se de conhecimentos construídos pela geração mais velha, que se transformam ao longo do tempo em saberes que
vão identificar culturalmente a categoria de carpinteiros navais da Amazônia.
Esses saberes se fazem presente nos diversos campos do conhecimento na atualidade, como
no campo da Filosofia - quando se trata da ética profissional no cumprimento no que foi firmado no
ato de fazer uma embarcação ou da não exploração do trabalho infantil; no campo da Matemática - na
confecção das peças com seus pesos e medidas, calculadas a partir da vivência adquirida de gerações
passadas; no campo da Geometria - através da formas na composição de peças que vão “amarrar” melhor a embarcação; no campo da Física - quando se trata do equilíbrio da embarcação e da dilatação
das peças; no campo da Química, na composição do “tempero” para a calafetagem da embarcação;
no campo da Administração, Economia e Contabilidade no que se refere a compra do material, na
contratação de pessoal e no cumprimento do tempo estabelecido para a entrega .da embarcação; no
campo da Educação - no ato de ensinar com base na autonomia do sujeito e da avaliação, seja para
o ingresso de um aprendiz no ofício, ou da própria obra a ser confeccionada, onde a observação e o
diálogo se constitui como elemento fundamental em toda etapa educativa e no campo da História no
ato de rememorar o passado.
É a partir dessa dialética e da relação desenvolvida entre o dono da encomenda e o mestre
carpinteiro e seus ajudantes, seja na ribeira do Guajará-Mirim ou no Estaleiro Esperança, que os saberes nunca deixaram de circular, passando a constituir-se como um Patrimônio Cultural Imaterial da
190
Antônio Jorge Pantoja Gualberto
Região Amazônica, pois esses ambientes são locais de circulação de sabres, seja em conhecimentos e
técnicas ou em artefatos, mantendo assim uma Tradição Cultural construída historicamente, o Barco
Mestiço da Amazônia.
Hoje, aos 66 anos de idade, e de muita contribuição no setor da carpintaria naval, Mestre Dorival Dantas ingressou seu pedido de aposentadoria junto ao INSS (Instituto Nacional de Seguridade
Social), deixando a herança cultural dos saberes na construção de barcos mestiços para sua segunda
geração, com seus filhos Jaci, Juraci e Ubiraci, e por estarem na qualidade de “seres do aprendizado,
logo, da educação” (BRANDÃO, 2002, p.25), dão continuidade naquilo que lhe fora ensinado, e
repassando para as gerações mais novas, constituindo-se assim num “movimento longo, complexo,
nunca completamente acabado” (CHARLOT, 2007, p. 53), que é condição natural do ser humano para
a sua sobrevivência de sua cultura e de sua espécie.
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191
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192
USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA – UMA DISCUSSÃO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE PREFEITURAS MUNICIPAIS E O PATROCÍNIO À PRODUÇÃO DE HISTÓRIA LOCAL.
Sandra Cristina Donner *
Se “fazer História” é fruto de uma intricada rede, podemos sempre perguntar quem a escreveu
e porque foram elaboradas tais questões. Por que este objeto e não outro? Por que este corte temporal
e não o anterior ou o seguinte? Por que esta biografia e não aquela? Essa perspectiva abre a possibilidade de pensarmos a produção histórica no seu contexto e sua relação com as demandas da sociedade
que a produziu. Pois, segundo Certeau:
Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio,
uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um
texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da ‘realidade’ da qual trata, e que
essa realidade pode ser apropriada ‘enquanto atividade humana’, ‘enquanto prática’
(CERTEU, 1982, PP. 66)
No Rio Grande do Sul existem múltiplas operações em História, uma delas é encontrada em
trabalhos de história municipal e local. Cerca de metade destes livros foram editados pelas Prefeituras
e Secretarias Municipais de Cultura e Educação. Outros foram promovidos por grupos de intelectuais
e historiadores, sob a forma de seminários, com participação de cronistas e jornalistas locais e posteriormente publicados. O objeto deste estudo são os livros editados a partir de simpósios e seminários
de História local, especialmente na coleção Marcas do Tempo, publicados pela EST Editora, e promovido por diversas prefeituras municipais, a partir de um evento chamado: Simpósio sobre Imigração
Alemã no Litoral Norte.
Nos trabalhos de História Municipal, as administrações públicas colocam os seus conceitos
sobre o que é História ao incentivarem estas publicações. Sabemos que, dentre as diversas obras
solicitando incentivos, sempre existe uma escolha sobre os projetos que serão patrocinados. Junto às
comunidades, uma nova configuração sobre sua identidade acaba sendo forjada por esse material. Isso
ocorre especialmente nos seminários ou simpósios de História Local. Pois ao “se lerem” os moradores apropriam-se dessas informações e elaboram suas próprias representações sobre esse passado em
comum.
As publicações patrocinadas pelas prefeituras, os simpósios e os congressos que originaram
estes textos proporcionaram uma valorização da memória. Nos prefácios, escritos pelos secretários
de cultura, prefeitos e organizadores, aparece como destaque a presença da comunidade seja de forma
espontânea, pelo público, seja de forma obrigatória, os alunos das escolas municipais. Por isso, além
da discussão sobre qual memória foi construída através destes eventos e livros, é preciso observar
qual o papel dos historiadores acadêmicos que participaram legitimando, ou não, essa memória que
aflorou sem sistematização ou reflexão. Pois sabemos que Memória e História estão longe de serem
sinônimos, todavia, são tratadas como semelhantes nestes trabalhos.
USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA
Sendo assim, o objeto deste trabalho é analisar, através dos prefácios e textos publicados na
abertura dos livros, quais conceitos sobre História aparecem na fala destas autoridades municipais
e avaliar como a promoção da História Municipal pode ser apropriada por estas administrações. A
reflexão sobre estas questões ainda está em andamento, sendo parte de um projeto de doutorado em
História, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dentro da linha de pesquisa de História e
Representação.
História e Memória
As questões sobre Memória e Identidade têm sido valorizadas nas últimas décadas. Todavia,
no início do século XX, na obra de Maurice Halbwachs, esse tema já havia entrado em pauta. Em seu
trabalho sobre memória individual e memória coletiva, esse sociólogo apresentou sua teoria indicando
como ocorria a formação de ambas, e, também a relação entre memória coletiva e a História. Ele colocou a elaboração da memória coletiva como uma produção do grupo/comunidade, que só faz sentido
pela sua interação com os membros: “Toda a memória coletiva tem por suporte um grupo limitado
no espaço e no tempo.” (HALBSWACHS, 1990, pp. 86) por isso, essa necessidade de abdicação da
memória individual, diluída na memória coletiva, já que a primeira passaria para o último plano.
Segundo Halbwachs1, a memória coletiva é construída enquanto estamos em contato com os
grupos sociais nos quais estamos inseridos. Sendo assim, nossa memória “concorda” com a dos outros desde que haja pontos de contato entre as lembranças e estas possam ser construídas sobre um
fundamento comum:
Não é suficiente reconstruir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que essa reconstrução se opera a partir
de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no
dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte da mesma comunidade.
(HALBSWACHS, 1990, pp. 35)
Paul Ricoeur dedicou uma parte de sua obra: A memória, a história, o esquecimento, a refletir
sobre Halbwachs, mas foi além. Ele apresentou as diversas condições a que foi submetida a memória:
memória e a imaginação, os usos e abusos da memória, e sua contrapartida, o esquecimento. Pois, se
as pessoas utilizam sua memória de maneira subjetiva, ou seja, às vezes as lembranças nos arrebatam,
e eventualmente é necessário esquecer e realizar o luto dando um tratamento “racional” à memória, o
historiador tem o dever de, ao trabalhar com as fontes, desvelar a memória manipulada:
Nesse nível aparente, a memória imposta está armada por uma história ela mesma ‘autorizada’, a história oficial, a história aprendida e celebrada publicamente. De fato, uma memória exercida é, no plano institucional , uma memória ensinada; a memorização forçada encontra-se assim arrolada em benefício da rememoração das peripécias da história comum.
O fechamento da narrativa é assim posto a serviço do fechamento identitário da comunidade. História ensinada, história aprendida, mas também história celebrada. À memorização
1
Acompanhamos o debate sobre os conceitos propostos por Halbwachs no artigo de Regina Weber!Elenita Malta
Pereira!!. Halbwachs e a Memória: Contribuições à História Cultural. Todavia, por questões de espaço, não entraremos
nesta discussão ao longo deste projeto.
194
Sandra Cristina Donner
forçada somam-se as comemorações convencionadas. Um pacto temível se estabelece assim
entre rememoração, memorização e comemoração. (RICCEUR , 2007, pg. 98).
Essa memória forjada dentro dos grupos sociais é entendida por Michel Pollak como promotora de um sentimento de identidade, este, visto superficialmente, como a construção de sua própria
representação, de como a pessoa vê a si mesma e de como pretende ser vista pelo grupo. Para a construção de identidade, três elementos seriam fundamentais: a unidade física, a continuidade no tempo
e o sentimento de coerência (POLLAK, 1992, pp. 205).
Esses elementos citados podem ser promovidos pela valorização desta ou daquela memória
do grupo. Para Pomian (2007), a memória coletiva costuma ser preservada por um grupo de indivíduos especializado em memória e em quem o “povo” confia, mas ela se realiza e se projeta em ritos
e festividades onde participam todos. Esses memorialistas, promotores dos livros de História local e
dos eventos de história são, geralmente, pessoas da própria cidade, ou antigos moradores que mesmo
vivendo em outros lugares, buscam essa filiação simbólica a fim de legitimar o seu lugar de fala.
A importância da memória como constituinte de identidade reside nas referências que a comunidade toma sobre o seu local e sobre sua posição frente ao outro. Justamente por esse caráter negociável, que a construção das memórias coletivas deve ser sempre questionada pela História. Isso nos
leva a discussão sobre o papel do Historiador, e sua representação na sociedade. Segundo Ricoeur:
(...) Uma coisa é um romance, mesmo realista; outra coisa, um livro de história. Distinguem-se
pela natureza do pacto implícito ocorrido entre o escritor e seu leitor. Embora formulado, este
pacto estrutura expectativas diferentes, por parte do leitor e promessas diferentes por parte do
autor. (...) Ao abrir um livro de história, o leitor espera entrar, sob a conduta de um devorador
de arquivos, num mundo de acontecimentos que ocorreram realmente. (RICCEUR , 2007,
pp. 274).
Quanto às falas dos encontros que foram posteriormente publicadas, a temática dos artigos
remete à fundação e colonização das cidades, muito pouco é mencionado sobre o passado recente. Em
todos os trabalhos a questão da identidade calcada em uma trajetória comum aparece, ou de forma
subliminar, ou conclamando os leitores como parte deste grupo, elaborando laços identitários. Segundo Diehl, “Tempo como força de corrosão, espaço como lócus da experiência da rememorização e o
movimento como estrutura simbólica da cultura são os elementos constituidores da(s) memória(s) e
da(s) identidades(s).”(2002, pp. 114)
Além dos livros, os eventos promoveram uma efervescência nos municípios, os participantes
sentiam-se chamados a mostrar suas memórias sobre a região quebrando a rotina do local:
Com extensa programação desde a inauguração do busto do Coronel Niederauer na
localidade de Itaquí, fazendo-se presentes dois batalhões do Exército vindos de Santa
Maria, palestrantes relatando fatos e esclarecimentos sobre a nossa história, comunidade, alunos buscando com mais interesse descobrir e redescobrir a origem de seus
antepassados, realizou-se em 1999 o I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral
Norte/RS e Raízes de Terra de Areia II.(1998, pp. 12) Simpósio Marcas do Tempo, em
Terra de Areia
Existe um “pacto” entre o leitor e o historiador, em que este se propõe a apresentar
195
USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA
reconstruções aproximadas do que foi um dia real, são as exigências e expectativas colocadas nos
escritos de História. Esse compromisso leva a perguntar: quais usos podem ser feitos do passado, se a
memória é um elemento de produção coletiva, a História, é uma produção datada e com intencionalidades conscientes ou não?
Cultura Histórica:
O conceito de Cultura Histórica, embora seja relativamente novo como categoria interpretativa, já foi observado por vários pensadores. Passou pelas reflexões de Nietzsche nas suas Considerações Extemporâneas:
Aquilo que é celebrado nas festas populares, nos dias comemorativos religiosos ou
guerreiros, é propriamente um tal “efeito em si”: é ele que não deixa dormir os ambiciosos, que está guardado como um amuleto no coração dos empreendedores, e não
a conexão verdadeiramente histórica de causas e efeitos que, completamente conhecida, só provaria que nunca sairá de novo um resultado exatamente igual no jogo de
dados do futuro e do acaso. (1996, pp. 61)
Claro que o filósofo não pretendia elaborar um conceito ao escrever suas reflexões, mas este
texto tornou-se muito importante pois vários historiadores passaram a analisar a forma como a História é produzida em cima das denúncias de Nietzsche sobre a onda comemoracionista.
Também encontramos estas discussões sobre memória e tempo na obra de Ricceur (2007);
pelas questões sobre as definições e construção da idéia contemporânea de História, na obra de Koselleck (2006), e, no Brasil, encontra-se presente na obra de Manoel Luiz Salgado Guimarães e Astor
Antônio Diehl. Como é necessário delimitar esse conceito, será utilizada a proposta de Guimarães e
Diehl, ainda que de forma provisória.
A maioria dos historiadores citados anteriormente apresenta a noção atual de História como
fruto do Iluminismo e da construção do Estado Nação. Sendo assim, a História como saber disciplinado, ou domesticado, como diria Elias (1993), é uma parte do “processo civilizatório”. Segundo
Guimarães:
Forjada a partir da experiência revolucionária de 1789, essa cultura histórica problematizaria de forma cada vez mais intensa a relação entre o passado e presente, agora
definitivamente separados por uma experiência radical de ruptura. A integração do
passado a partir de categorias como a de desenvolvimento e progresso poderia assegurar ao presente um sentido e um ponto de ancoragem, indicando, no mesmo movimento os caminhos do futuro. (GUIMARÃES, 2006, pg. 11)
Em sua análise sobre as construções historiográficas, Guimarães coloca que toda a produção
de discursos sobre o passado possui uma historicidade, que é fruto dos lugares, do contexto e dos
autores que a produziram. Todavia, é uma tendência silenciar sobre esse processo, e aceita-lo como
natural. A “versão” vencedora acaba por impor-se sem sofrer questionamentos.
Essa ideia de História, surgida no período oitocentista, conecta o passado com o futuro, como
196
Sandra Cristina Donner
se neste passado, o futuro já estivesse sinalizado e os acontecimentos do momento fossem o óbvio
desfecho de todo um movimento anterior:
Ao construir o passado como projeção do presente e desejo de futuro, a história é
capaz de disciplinar este passado segundo os sentidos importantes para o presente
em construção, conjurando incertezas e dúvidas próprias de um mundo vivendo em
meio ao turbilhão de mudanças que parecem inviabilizar uma referência ao passado
nos termos de uma busca de comparações com o presente, como forma de extrair
soluções para a ação no mundo. (GUIMARÃES, 2000, pg. 26.)
Essa sensação de permanência do passado no presente é um indicativo de que uma das funções
do processo histórico é construir identidades que se relacionam em uma vivência política e social. Isso
fica claro quando pensamos na história disciplina escolar ou na que é promovida pelas administrações
públicas. Essa afirmação se materializa na escolha dos elementos celebrativos que virão à luz e dos
eventos e monumentos do passado que constituirão a memória e a história continuamente relembrada,
ou ruminada, uma Cultura Histórica, como acusava Nietzsche:
Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante aquele que se forçasse a abster-se de dormir, ou ao animal que tivesse de sobreviver apenas
de ruminação e ruminação sempre repetida. Portanto, é possível viver quase sem lembrar e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente impossível, sem
esquecimento, simplesmente viver. (1996, pp. 65)
Neste texto o autor critica as práticas celebrativas cheias de ufanismo e otimismo conectando
um passado glorioso com um futuro que não pode lhe deixar nada a dever. Mas, diferente da ruminação tediosa, os elementos mudam a cada geração que repensa seu passado e o comemora.
Essa onda comemorativa do passado, que aparece de maneira muito concreta nos eventos do
Projeto Marcas do Tempo, estudada para esse projeto de doutoramento, pode ser explicada por duas
vias. Astor Dihel (2002, pp. 101) indica que o ato de rememorar leva a uma repoetização do passado,
criando uma nova estética deste passado e, por sua vez, resignificando as identidades sociais presentes
no grupo que celebra.
Participar da comemoração dos aniversários de emancipação, da chegada dos imigrantes, as
datas nacionais, todos esses eventos levam a chancela do órgão promotor, em geral, as secretarias de
cultura e desporto e as prefeituras. Sabemos que, sobretudo nas pequenas comunidades, estes eventos
são marcos importantes no calendário pessoal, portanto, ligar-se a um trabalho bem feito é um passaporte seguro para a memória da cidade, pelo menos durante algum tempo.
Usos da História:
Nos últimos anos do século XX ocorreu uma valorização da História junto ao público, na mídia, nas publicações, os temas históricos ocupam espaços novos. Nas discussões políticas os historiadores também foram chamados a interferir. No Brasil essas questões ainda não ocupam o espaço dado
a elas na Europa, mas encontramos insinuações desse processo, por exemplo, nas leis para inclusão
de conteúdos específicos da História nos currículos (o caso da obrigatoriedade de ensino da história
197
USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA
e cultura africanas pelas disciplinas de história, literatura e artes) por lei federal, ou nas áreas desapropriadas por serem regiões de quilombolas.
Sobre estas relações entre a História e o seu uso para legitimar posições políticas, Hartog e Revel, organizaram um livro com as recentes questões sobre esse tema. Em sua introdução eles indicam
três elementos que devem ser considerados: o primeiro apresenta a necessidade de reflexão sobre os
debates abertos pela história recente, pois eles causam impactos políticos culturais tais como: conflitos
internacionais, guerras civis, processos de legitimação e de deslegitimação de regimes autoritários,
etc.
O segundo elemento está relacionado com um alcance tanto historiográfico como público que
ocorre pela deformação da História por motivos nacionalistas, isso gera a necessidade de construir
uma imagem de nação que soe coerente, gratificante, enraizada ou voltada ou para o futuro, ou para
a tradição.
A terceira contribuição indica o risco do uso dos métodos e das formas propostas das sistematizações ou das classificações históricas que, voluntariamente ou não, coincidem com as imagens das
estruturas políticas e sociais dominantes ou reforçam sua legitimidade, em particular no estudo dos
fenômenos históricos de longa duração. (HARTOG e REVEL, 2001, pg. 8.)
Esse renovado interesse pelo passado, segundo os autores, está diretamente relacionado com
as ondas de comemoração que iniciaram com o bicentenário da Revolução Francesa, as datas relativas
a fatos da I e II Guerra Mundiais e as questões de perseguidos políticos, nos casos de regimes autoritários, mas principalmente, judeus, ciganos, e outras minorias que sofreram com o regime nazista.
Hoje na França, na Itália e na Espanha, a história não é mais pensada nos programas escolares
como um instrumento de compreensão da formação, aprofundado na longa duração das realidades
nacionais e nas mudanças complexas do mundo. Ao contrário está tratando do senso comum histórico,
marcado pelo factual e pelo tempo curto, transformou a idéia de que os fatos recentes são, por definição, mais importantes do que aqueles do passado. E por isso ganham mais espaço na grade curricular
(é o caso também do Brasil onde o último ano é dedicado exclusivamente ao século XX): “Cela a
engendré um élargissement du contemporain, et une schématisation, une simplification du passe plus
éloigné: l’histoire a été transformée em nouvelles.”(HARTOG, 2001, pp.30)2.
Por fim, o uso político da História mais presente no Brasil, está ligado às comemorações, mas
também, pode ser encontrado no prestígio alcançado pelas prefeituras ao patrocinarem livros sobre
história da região, e de como colocavam-se (nos prefácios, ou artigos) como “guardiões” dessa memória que estava por ser perdida. Através do trabalho de Torres podemos compreender o fenômeno
que ocorre próximo a nós:
Dans tous ces cas de figure, l’historie occupe le centre du débat politique et sert à justifier les
opinions et les actions les plus diverses. Mais, même là où ne se manifstent pas ces próblèmes,
l’histoire renforce aujourd’hui ses liens avec la politique. Lescommémorations qui se succèdent à la demande des institutions ou des gouvernements en sount un exemple pattent. Cela
2
Livre tradução: “Isso levou à expansão contemporaneidade, e um mapeamento, uma simplificação do passado mais
distante: a história foi transformada em literatura.”
198
Sandra Cristina Donner
est également illustré par l’invention d’historiens influents dans les médias quand il s’agit
de traiter d’affaires de politique intérieure ou internationale et d’orienter l’opinion dans ces
domaines. Nous pourrions même evoquer ici les stragégies politiques, plus ou moins dissimulées, d’un certain type de livres et de revues historiques de vulgarisation, de même que les
mémoires qui ontproliferé ces derniéres jusqu’a devenir des objets de consommation de masse.
Tous ces exemples se recontrent également en Espagne, à commencer, bien entendu par le
fievré des commémorations (HARTOG e REVEL, 2007, pp, 132)3
Beatriz Sarlo (2005), observa que essa História massiva, possui em si um principio organizador
simples, que reduz o número de hipóteses sobre o passado e simplifica a História para torná-la própria
para o consumo:
La historia de circulación masiva, en cambio es sensible a las estrategias con que el
presente vuelve funcional el asalto del pasado y considera que es completamente legítimo ponerlo en evidencia . Si no encuentra respuesta en la esfera pública actual, ha
fracasado y carece completamente de interés. La modalidad no académica (aunque
sea un historiador de formación académica quien la practique) escucha los sentidos
comunes del presente, atiende las creencias de su público y se orienta en función de
ellas. (SARLO, 2005, pg. 14 e 15)
Esse “consumo” da História passa por um enquadramento da memória aos interesses do órgão
promotor do estudo, da sociedade onde está inserido, do contexto político e social. Claro que não estamos falando de um maniqueísmo fácil, mas sim, de uma culminância de interesses em torno de determinado tema histórico. Pollak sugere o estudo da memória coletiva em relação a sua função, como
uma forma de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais: “A referência ao passado
serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu
lugar respectivo, sua complementaridade, mas também suas oposições irredutíveis.” (POLLAk, 1989,
pg. 9). Sendo assim, a História Local figura como um desses elementos de “coesão” da sociedade e,
por isso, um alvo deste enquadramento de memória, passível de ser utilizado pelos órgãos públicos.
Essa sensação de permanência do passado no presente, através da relação entre uso político e
memória, é um indicativo de que uma das funções do processo histórico é construir identidades que se
relacionam em uma vivência política e social. Essa afirmação se materializa na escolha dos elementos
celebrativos que virão à luz e dos eventos e monumentos do passado que constituirão a memória e
a história continuamente relembrada, ou ruminada, como acusava Nietzsche Uma Cultura Histórica.
Mas, diferente da ruminação tediosa, os elementos mudam a cada geração que repensa seu passado e o
comemora. Segundo Guimarães(2000), a Cultura Histórica é uma cultura da lembrança, um processo
de mapeamento das construções sobre história promovidas pelas sociedades e que fogem ao controle
acadêmico, ou seja, as comemorações, a história vulgarizada, a história simplificada ou massiva.
3
Livre tradução: “Em todos esses casos, a história ocupa o centro do debate político e é usada para justificar as opiniões
e ações mais diversas. Mesmo onde esses problemas não se manifestam, a história sempre reforça as suas ligações com a
política. As comemoraçoes que se sucedem, a pedido de instituições ou governos sao um exemplo patente. Esto também é
ilustrado pela intervençao de historiadores influentes na mídia quando se trata de lidar com questões de política interna e
da opinião pública internacional e orienta as opinioes nessas áreas. Poderíamos tambem citar as estrategias politicas, mais
ou menos ocultas, de um certo tipo de livros históricos e extensão revistas, bem como memórias recentes que tornam-se
objetos de consumo de massa. Todos esses exemplos são também recorrentes na Espanha, começando naturalmente pela
febre de comemorações “
199
USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA
“Projeto” Marcas do Tempo e o uso da História pelas prefeituras
O Projeto Marcas do Tempo encontra-se entre aspas no título porque não é um projeto propriamente dito, e sim, um movimento que organizou vários simpósios sobre a história da imigração alemã
no Litoral Norte do Rio Grande do Sul.
Entre 1998 e 2006 foram realizados quatro Simpósios Sobre Imigração Alemã no Litoral Norte nos municípios de Terra de Areia (1998), Torres (2001), Três Cachoeiras (2004) e Arroio do Sal
(2006). Eles foram organizados pela historiadora Nilsa Huyer Ely, que, ao indicar sua biografia, apresentava-se como professora e historiadora, embora não seja graduada. Todavia, ela trabalhou na equipe de outro projeto, encabeçado pela Drª Vera Lucia Maciel Barroso, e já havia participado do comitê
de outros encontros na região do Litoral Norte.
Estes eventos foram elaborados a partir do Projeto Raízes, uma série de seminários sobre os
municípios que se desligaram de Santo Antônio da Patrulha, compondo uma rede de “municípiosfilhos” e “municípios-netos” desta cidade. Estes encontros foram promovidos pela historiadora Vera
Lucia Maciel Barroso, junto as comunidades. O Projeto Raízes era apresentado às prefeituras municipais que utilizaram, na maioria dos casos, as datas de emancipação, para apresentarem um seminário
sobre a história da cidade. Este movimento foi pioneiro na região, tanto que, alguns autores do projeto
“Marcas do Tempo” fazem referência ao interesse na História local que foi suscitado por esse primeiro
evento.
Os Simpósios sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS seguiram o mesmo caminho. O
mote era a comemoração de emancipação, no caso de Terra de Areia (comemorava-se 12 anos de
emancipação), ou s centenários, como no evento de Torres, que foi realizado em comemoração aos
175 anos de imigração alemã para a região, e em Três Cachoeiras, que foi lembrado, simultaneamente,
os 180 anos de imigração alemã para o Brasil, e os 178 anos de imigração para a região.
Os textos apresentados nos simpósios foram compilados em livros e publicados nos anos seguintes, todos pela EST Edições, e têm como organizadora Nilza Huyer Ely. Os autores/palestrantes, dividem-se em historiadores acadêmicos como Martin Dreher, Eloísa Helena Capovila, Marcos
Antônio Witt, Telmo Lauro Muller, Vera Lúcia Maciel Barroso entre outros. Além dos historiadores,
a maioria dos artigos foi escrita por memorialistas ou amadores, que, ao citarem as credenciais dos
autores, estes são denominados “profissão” e historiador, por exemplo: há um pároco e historiador (
Pe. Rizzieri Frederico Delai), tabelião e historiador (Cláudio Leal Domingos), etc. Também há os que
se autodenominam apenas “pesquisadores” sem apresentar sua formação. Outras falas são de professores, biólogos, padres, advogados, e, inclusive, artigos curtos escritos por estudantes de escolas
municipais da região.
Em todos os livros a primeira parte é composta de uma apresentação pela organizadora, e
depois prefácios de autoridades municipais expondo sobre a importância do evento para a cidade,
de como este trabalho reflete uma postura da administração municipal, e, sobretudo, apresentando a
importância do mesmo para a preservação de uma “memória” ou de uma “história” que se encontra
perdida:
200
Sandra Cristina Donner
Ao apresentarmos Terra de Areia-Marcas do Tempo, I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS e Raízes de Terra de Areia II, devemos registrar que esta obra
só se tornou real graças à visão da administração pública municipal de Terra de Areia,
na pessoa de seu prefeito Dr. Generi Máximo Lippert que, com perseverança e através
da cultura, persegue um futuro promissor para sua comunidade. (Terra de AreiaMarcas do Tempo, pp. 11)
A população de Torres, orgulhosa de sua bela natureza e ambiente acolhedor, está
motivada pelas mesmas perguntas, quando parte dos munícipes é descendente de
imigrantes do século XIX. E não é por menos, que historiadores com a visão lúcida de Nilsa Huyer Ely, filha do antigo distrito de Guananazes, pertencente então ao
Município de Torres e hoje parte integrante do município de Três Forquilhas, terra
da imigração alemã ao lado da antiga Colônia de São Pedro, apoiada pelo secretário
municipal de Turismo, Esporte e Cultura, Dr. Alexandre Turatti de Rose e pela dirigente municipal de Cultura, professora Terezinha C. de Borba Quadros, na dinâmica
gestão do Prefeito Dr. José Batista da Silva Milanez entenderam a importância do
anseio popular e organizaram, com o patrocínio da Prefeitura Municipal de Torres, o
II Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS, programado para os dias 30
de agosto a 1º de setembro de 2001. (Torres- Marcas do Tempo, contracapa)
Foi pensando nos jovens do nosso município que abraçamos a realização do III Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte, proposto pela sua idealizadora, a
incansável historiadora Nilza Huyer Ely. (...) Sabemos que somos transitórios nesta
vida, mas o que deixamos registrado por escrito, será lembrado pelas gerações que nos
sucederam, as quais saberão o quanto valorizamos a cultura e o esforço que empreendemos na realização deste Simpósio. (Torres - Marcas do Tempo, prefácio)
Como estão exemplificadas nos relatos acima, as prefeituras realizam um uso político desta
história através da imagem dos imigrantes, pioneiros, que ocuparam a região. A necessidade de memória, alicerçada nos primeiros colonizadores, neste caso, constitui-se em uma verdade forjada, já que,
havia um núcleo populacional já estabelecido nestes povoados antes da chegada dos alemães.
A retomada das epopéias de imigração, através dos eventos públicos não é um fenômeno exclusivo do Rio Grande do Sul, ou do Brasil. Encontramos reflexões sobre isso na descrição dos usos
da história francesa, e podemos traçar paralelos:
A esse respeito, pode-se dizer que existem na França verdadeiras ‘políticas públicas de memória’, isto é, formas de gestão públicas do passado que tentam levar em conta essa necessidade de
história e de contribuir, às vezes de maneira muito voluntarista, para a formação de um imaginário do passado. Essas políticas manifestam-se sob várias formas. (ROUSSO, 1997, pp. 10)
Os espaços de manifestação desta memória retomada/recolocadas pelos órgãos públicos são
as comemorações e as políticas de patrimonialização. As comemorações com motivos históricos pretendem unir os moradores através da partilha desta memória coletiva. Ao reviver as narrativas dos
antigos moradores, eles sentem-se incluídos no grupo, reforçam os laços de pertencimento. Para o
poder público, é interessante estar ligado a promoção desta memória. O passado é visto, então dentro
de um presente constante, e os administradores, então, sempre estiveram ali, é um passado para ser
consumido:
201
USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA
Isso significa que vivemos em sociedades que parecem, de um lado ter perdido o
‘sentido’ da história, em sua acepção tradicional, entendido como um movimento
contínuo e linear do progresso. Vivemos, assim, no presente, até mesmo na instantaneidade. Mas, por um lado, as referencias ao passado, à história, são cada vez mais frequentes no discurso comum, tanto quanto no político. A demanda social da história
nunca esteve tão forte, a memória – ou seja, a presença do passado – nunca foi parte
tão integrante da atualidade cotidiana: é particularmente claro na França, com tudo o
que diz respeito às lembranças da última guerra. (ROUSSO, 1997, PP. 16)
É mais confortável hoje pensar no passado do que no futuro, isso seria uma das razões, para a
atual vontade de memória pelos órgãos públicos e do interesse comercial da mídia:
Questões cruciais da cultura contemporânea estão precisamente localizadas no limiar
entre a memória dramática e a mídia comercial. É muito fácil argumentar que os
eventos de entretenimento e os espetáculos das sociedades contemporâneas midiatizadas existem apenas para proporcionar alívio ao corpo político e social angustiado
por profundas memórias de atos de violência e genocídio perpetrados em seu nome,
ou que eles são montados apenas para reprimir tais memórias. É também muito fácil
sugerir que os espectros do passado que assombram as sociedades modernas, com
uma força nunca antes conhecida, articulam realmente, pela via do deslocamento, um
crescente medo do futuro, num tempo em que a crença no progresso da modernidade
está profundamente abalada. (HUYSSEN, 2000, pp. 20)
Nestas obras, confunde-se história com memória. Como já foi debatido anteriormente, a história entra em cena tomando o lugar do a memória. Mas, para estas administrações, o grande objetivo,
expresso de forma clara nos prefácios e capítulos de abertura, é tornar-se memória, apropriando-se do
aval da história:
Vivemos naqueles dia momentos inesquecíveis pela qualidade dos palestrantes que
aqui se apresentaram com temas envolventes, despertando nosso interesse pela história da nossa região. (...) Aos que vieram comunicar ou ouvir relatos de famílias, resgatando as raízes e valorizando seus antepassados. Resta-me afirmar que sem dúvida
foi um dos acontecimentos marcantes que jamais sairá de nossa memória; devendo
servir de modelo às administrações que vem nos sucedendo. Sabemos que as crianças
daquela época, alunos que participaram empolgados com pesquisas, danças e momentos culturais, hoje são cidadão atuantes e influentes na política social do município podendo com suas ações mudar os rumos, baseados na educação e experiência
que vivenciaram. Deli dos Reis Medeiros, secretária de educação de Terra de Areia
durante o I Simpósio. (Dom Pedro de Alcântara - Marcas do Tempo, 2010, pp. 35)
O Prefeito Municipal de Torres, Dr. José Batista Milanez, que foi um grande apoiador
da Cultura, juntamente com o Secretário Municipal de Turismo, Cultura e Desporto, Sr. Alexandre Turatti de Rose, respaldaram a realização deste evento, com muita dedicação, contribuindo para o resgate de nossa história lá no pretérito, sendo,
na realidade, uma demonstração de eterna gratidão a estes pioneiros. Terezinha de
Borba Quadros, diretora da APAE Torres (Dom Pedro de Alcântara - Marcas do Tempo, 2010, pp. 36)
É sabido que as prefeituras dispõem de poucos recursos na área da Cultura, o que
202
Sandra Cristina Donner
dificulta muito a realização de eventos nesta área. Quando assumimos este compromisso, sabíamos que a verba da cultura seria exclusivamente disponibilizada para o
livro, e que todos os recursos usados durante os 3 dias do Simpósio deveriam ser
buscados na comunidade através do patrocínio junto às empresas através da boa vontade e permanente dedicação do Prefeito Pedro Lumertz. Clarice Scheffer Borges, exsecretária de educação do município de Três Cachoeiras (Dom Pedro de Alcântara
- Marcas do Tempo, 2010, pp. 38)
Como fica claro nos exemplos acima, ligar o seu nome à promoção da “história” dos municípios é uma estratégia política largamente utilizada na França, nos governos estaduais e até mesmo nas
pequenas cidades. Talvez nestas, a força do registro em livro, da sua divulgação nas escolas, na participação da comunidade nos eventos pode colocar estas pessoas como “guardiões” da história local.
Este pequeno artigo não pretendeu dar conta de todas as discussões, elas ainda estão em andamento nas pesquisas do projeto de doutoramento, sendo o próximo passo analisar como a memória
vira história nestas comunidades e o seu papel nos usos da História.
Livros Marcas do Tempo:
I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS- Terra de Areia Marcas do Tempo
(2000). Organizado por Nilza Huyer Ely. EST Editora, Porto Alegre.
II Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS- Torres Marcas do Tempo (2003),
Organizado por Nilza Huyer Ely. EST Editora, Porto Alegre.
III Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte- Três Cachoeiras Marcas do Tempo
(2004) Organizado por Nilza Huyer Ely. EST Editora, Porto Alegre.
IV Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte- Arroio do Sal Marcas do Tempo (2006).
Organizado por Nilza Huyer Ely. EST Editora, Porto Alegre.
V Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte- Dom Pedro de Alcântara Marcas do
Tempo (2010). Organizado por Nilza Huyer Ely, EST Editora, Porto Alegre.
203
USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA
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∗
Doutoranda em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
205
PROGRAMA DE EXTENSÃO EM DEFESA DO PATRIMÔNIO COMUNITÁRIO –
COMUNIDADES FURG
Helissa Renata Gründemann*
Alexandre da Silva Borges**
Prof. Dr. Jean Baptista***
Considerações iniciais
A cidade de Rio Grande, localizada ao extremo sul do Rio Grande do Sul, foi a primeira do
Estado e possui inúmeras riquezas culturais, muitas vezes menosprezadas. Aqui não citamos apenas
os prédios históricos, que ela possui em abundância, mas principalmente os patrimônios periféricos,
historicamente escanteados por não representarem a elite local, que logicamente apenas desejou registrar e salvaguardar sua própria memória e história.
Nos últimos anos, a cidade portuária vem passando por um intenso investimento econômico
relacionado ao polo naval. Entretanto, este chamado “progresso” por muitas vezes acaba causando
mais mal-estar e dificuldades para a população do que de fato melhoria nas condições de vida no
município. Vemos isto pela falta de planejamento urbano, que a cada dia demonstra que não suporta
o crescimento populacional exacerbado; pela poluição crescente nas lagoas do entorno, assim como
na própria área urbana, etc. Um exemplo é a obra de duplicação da BR-392 onde, em Povo Novo, o
podemos observar o desmatamento, o desalojamento e a destruição de prédios históricos e característicos do distrito (símbolos da localidade). O descaso com as situações de vulnerabilidade encontradas
nos distritos do município são evidentes há longa data1.
Assim, tendo em vista esta situação, surge no segundo semestre de 2010, as primeiras ações
que, posteriormente, geraram o Programa de Extensão COMUF, uma reunião de projetos, tendo como
bolsistas alunos do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande, em parceria com os
movimentos sociais e as comunidades envolvidas. O Programa tem como objetivo a defesa do patrimônio comunitário e distrital, assim como o registro de suas histórias, para que estas possam ser
também conhecidas pelos moradores e, principalmente, alunos do município. Isto se dará pela geração
de material didático, com base nas pesquisas e ações realizadas pelos projetos. O Programa se institucionaliza, então, em 2011, concorre ao edital PROEXT e ganha a verba de R$ 150.000 reais para ser
aplicada neste ano de 2012. Assim, no presente artigo iremos abordar de forma mais profunda as ações
que estão sendo realizadas neste ano.
1
O município de Rio Grande é divido entre 5 distritos: o 1º é a própria Cidade de Rio Grande, tendo como subdistrito
o Balneário Cassino; o 2º tem como sede a Ilha dos Marinheiros; o 3º tem como sede Povo Novo; o 4º tem como sede o
Taim; e o 5º tem como sede a Vila da Quinta.
PROGRAMA DE EXTENSÃO EM DEFESA DO PATRIMÔNIO COMUNITÁRIO – COMUNIDADES FURG
Aporte teórico-metodológico
O Programa COMUF parte da percepção de que faz parte do papel social das Universidades
Federais, já que estas utilizam para sua sobrevivência o dinheiro dos contribuintes, que elas desenvolvam projetos que de alguma forma contribuam para uma melhoria social. Assim, acreditamos que
extensão universitária pode auxiliar neste objetivo, pois valorizando o que há fora da Universidade, e
não considerando que todo “o conhecimento” está restrito apenas dentro dos muros universitários, podemos de fato cumprir nosso papel social. Como historiadores, acreditamos que possuímos importante
função, pois podemos colaborar na valorização de histórias e memórias que ao longo do tempo vem
sendo negadas e menosprezadas. Como explana Boaventura Sousa de Santos, o objetivo principal é
se emancipar e responder de forma efetiva às demandas sociais, mudando de rumo uma história que
até agora foi de exclusão de vários grupos sociais e seus saberes justamente por parte da universidade
(SANTOS, 2008, p.51).
Conforme Boaventura dos Santos (2008, p.13-14)), a universidade em fins do século XX viuse apreendida por três crises: a institucional, a da hegemonia e a de legitimidade, fenômenos oriundos
da crise que a própria ideia de Estado passou a experimentar a partir da intensificação do capitalismo neoliberal. Descapitalizada mediante a redução do financiamento público, sofrendo o impacto da
vinculação da produção intelectual com a lógica capitalista e pressionada pela era da comunicação, a
universidade viu seu propósito descaracterizar-se mediante a mercantilização: o mercado, sim, passara a ser o responsável pelo andamento do processo de educação, então entendida como um produto.
Críticas sociais passaram a permitir que não apenas a academia criticasse a universidade, como convencionalmente o fazia, mas também a sociedade passasse a fazer críticas contundentes sobre a universidade, provocando um conhecimento pluriversitário responsável pela cobrança de outra relação
universidade-comunidade. A própria ideia de nação e de ciência, antes a cabo da universidade, passa
a estar comprometida.
Em termos de Boaventura dos Santos, uma “reforma criativa, democrática e emancipatória”,
proporia “uma globalização alternativa”, “solidária” e “contra-hegêmonica” acompanhada de uma
“democratização radical do bem público universitário”, onde novas redes, novas pedagogias e novos
processos de construção de conhecimento podem compor alternativas à crise contemporânea.
Ao assumir o pacto social, a lógica de pesquisa e extensão da universidade sofrem profundas
alterações. Trata-se de se questionar a extensão mediante o propósito de pesquisa-ação atenta às demandas sociais. Em busca da superação da crise mediante uma nova instituição e uma nova legitimidade pós-colonial, é importante ressaltar o papel da extensão universitária que nos últimos anos vem
ganhando destaque e concretizando o papel social das Universidades. Em relação a isto, Santos afirma:
A área de extensão vai ter no futuro próximo um significado muito especial. [...] a
reforma da universidade deve conferir uma nova centralidade às actividades de extensão (com implicações no curriculum e nas carreiras dos docentes) e concebê-las
de modo alternativo ao capitalismo global, atribuindo
às universidades uma participação activa na construção da coesão social, no aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão social e a degradação ambiental, na
defesa da diversidade cultural. (SANTOS, 2008, p.66-67).
208
Helissa Renata Gründemann, Alexandre da Silva Borges, Jean Baptista
Com o mesmo intuito, o COMUF propõe a união de dois importantes conceitos para a luta
emancipatória e a radicalização da democracia: o de educação não-formal e o de Patrimônio Imaterial. Devidamente regulamentados, condizentes com as orientações da UNESCO e do Ministério da
Educação do Brasil, a educação não-formal junto ao conceito de patrimônio imaterial oferece o acesso
das comunidades ao interior da universidade, uma nova postura dos universitários quando entre as
comunidades e uma alternativa na conquista dos direitos cidadãos. Ao reduzir as escalas hierárquicas
dos saberes, reconhecendo os saberes das comunidades como motores de todas as ações universitárias,
a educação não-formal e o conceito de patrimônio imaterial (junto com sua legislação), possibilitam o
aproveitamento da ideia de geração de ações patrimoniais (inventários, registros, ações civis, políticas
de salvaguarda) como pesquisa-ação. Ou seja: não se trata de conceber a educação como algo a ser
passado, como corre o risco de uma percepção recorrente de educação patrimonial, e o patrimônio
como algo a ser fossilizado, como se incorre quando se possui apenas a perspectiva histórica e conservacionista dos bens, mas, sim, entende-se tanto a educação quanto o patrimônio como algo a ser
vivido em um propósito solidário, criativo e político.
Seguindo os princípios da educação não-formal, entende-se esta como atividades ou programas
organizados fora do sistema regular de ensino mas que não precisa excluí-lo: pelo contrário, pode
transformá-lo quando destinado ao aprimoramento das competências de todos os envolvidos no que
diz respeito ao fortalecimento da cidadania.
Como resultado, conforme Maria da Glória Gohn (2006, p. 33), a própria ideia de avaliação e
de fins da educação são redimensionados: não se espera respostas exatas como poderia ocorrer na educação formal, mas, sobretudo, a geração de uma consciência de organização sobre o trato com o outro,
meios para se articular em prol de um sentimento de identidade e de rejeitar preconceitos mediante o
desejo de luta “para ser reconhecidos como iguais (enquanto seres humanos) dentro de suas diferenças
(raciais, étnicas, religiosas, culturais, etc)”. Enfim, a educação não-formal “forma o indivíduo para a
vida e suas adversidades (e não apenas capacitação para entrar no mercado de trabalho)” (Gohn, 2006,
p. 33).
Por seus fins e campos de ação, a educação não-formal se relaciona diretamente com o conceito
de Patrimônio Imaterial. Conforme Cavalcanti e Fonseca (2008, p. 11-12), o conceito de Patrimônio
Imaterial no Brasil, orientando pelo artigo 2° da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (UNESCO, 2003), e pelo posterior Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, “compreende o Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro como os saberes, os ofícios, as festas, os rituais,
as expressões artísticas e lúdicas, que, integrados à vida dos diferentes grupos sociais, configuram-se
como referências identitárias na visão dos próprios grupos que as praticam”. Por meio da Resolução
nº 1, de 3 de agosto de 2006, ainda segundo as autoras, o patrimônio é acrescido do caráter dinâmico,
processual, dado que rompe com cobranças puristas sob as comunidades e se assenta na compreensão
de cultura com direito à transformação. Tal aspecto possibilitou a inserção dos povos indígenas contemporâneos, tidos até então como empobrecidos ou aculturados, assim como as demais sociedades
tradicionais que compõem o Brasil.
Em consonância, a Constituição Brasileira de 1988, conforme seu artigo 216, diz: “constituem
patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou
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PROGRAMA DE EXTENSÃO EM DEFESA DO PATRIMÔNIO COMUNITÁRIO – COMUNIDADES FURG
em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Deixa claro também que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício
dos direitos culturais e às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão
das manifestações culturais”. No seu primeiro parágrafo, o artigo apoia o caráter pluricultural das políticas públicas: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares e indígenas e afro-brasileiras...”. Tratava-se, de fato, como veio a ser consagrado pela Emenda Constitucional n° 48, de 2005,
inciso IV, da “democratização do acesso aos bens de cultura”. Estes dados constitucionais constituem
a principal base legal de todas as ações do COMUF.
Para apoiar estas definições, o IPHAN estabeleceu pelo Decreto n° 3551, de 2000, os Instrumentos de Identificação e de Preservação dos Bens Culturais Nacionais, complementando, assim críticas brechas deixadas pela Constituição de 88, elegendo o Inventário Nacional de Referências Culturais como um conjunto teórico-metodológico para se evidenciar as manifestações de distintos grupos,
suas dificuldades para manter a prática e os planejamentos para evitar que a prática desapareça.
O IPHAN também propôs em 2000 que o Estado estimulasse uma política de produção de
inventários em nível nacional, compartilhando a tarefa de identificação e salvaguarda dos bens com
toda a nação. Trata-se do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, amplo setor de convênios
com instituições, onde as universidades federais destacam-se como agentes considerados prioritários.
Fomentos em larga escala para sustentar projetos de no mínimo três anos passaram a se tornar uma
prática estimulada pela autarquia. A questão negra e indígena passou a integrar os projetos de salvaguarda nacional desde a instalação do Decreto n° 3551. A recomendação do Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial é a de que essas produções venham a alcançar a sociedade civil como um todo,
agindo de forma imediata no processo educacional. Tal recomendação visa atender demandas abertas
pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, de 1997, que pregam que a Pluralidade Cultural da sociedade brasileira deve ser incluída como um dos eixos transversais do ensino nacional.
Outro documento que é base do Programa é a Declaração de Durban, composta na III Conferência Mundial contra Racismo e Discriminação da ONU, em Durban, África do Sul. Este documento
fortalece a necessidade de uma reflexão pluricultural das políticas de Estado e de ensino, determinando a instalação de ações afirmativas entre os países associados. Somado à pressão dos movimentos
sociais de indígenas e de afrodescendentes, o Estado sancionou a lei 10.639 em 2003, incluindo na
Constituição a obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, lei, esta, alterada em
2008 pela inclusão da obrigatoriedade do ensino de história indígena.
Como base metodológica, utilizamos também a pesquisa-ação. Por vezes considerada como
uma “metodologia de ação” e não só como uma metodologia de pesquisa, seu objetivo primeiro é
a ação social, a mudança efetiva de uma situação específica (DIONNE, 2007, p.34-35). Esta metodologia surgiu com a constatação cada vez mais evidente dos pesquisadores das Ciências Humanas
dos limites da pesquisa científica tradicional em relação aos problemas cruciais da nossa sociedade
(BARBIER, 2006, p.19-20). Jean Dubost define pesquisa-ação como uma “ação deliberada visando a
uma mudança no mundo real, [...] englobada por um projeto mais geral e submetendo-se a certas disciplinas para obter efeitos de conhecimento ou de sentido” (DUBOST, 1987, apud BARBIER, 2006,
p. 36). René Barbier também explicita:
210
Helissa Renata Gründemann, Alexandre da Silva Borges, Jean Baptista
Se por muito tempo o papel da ciência foi descrever, explicar e prever os fenômenos,
impondo ao pesquisador ser um observador neutro e objetivo, a pesquisa-ação adota
um encaminhamento oposto pela sua finalidade: servir de instrumento de mudança
social. Ela está mais interessada no conhecimento prático do que no conhecimento
teórico. Os membros de um grupo estão em melhores condições de conhecer sua
realidade do que as pessoas que não pertencem ao grupo. A mudança na pesquisa
clássica, quando há lugar para isso, é um processo concebido de cima para baixo.
(2006, p.53).
Assim, percebemos que a pesquisa-ação pode ser muito útil em projetos que visam agir na sociedade em prol de uma melhoria, assim como em uma abordagem que leva em conta a realidade da
comunidade em questão e de suas problemáticas, buscando auxiliar na resolução de demandas.
Tendo isto em vista, as abordagens entre os participantes do Programa e os membros da comunidade sempre são feitas de igual para igual, sem nenhum tipo de hierarquização de saberes. As ações
então são variadas, desde conversas com os moradores para melhor identificar determinadas situações
e demandas; realização de Rodas de Memória; documentação e registro audiovisual, mediante permissão dos interessados, dos aspectos relevantes para determinado objetivo; entre outras que acabam
sendo específicas de cada caso, pois aparecem com as demandas de cada comunidade.
Os projetos do COMUF
O COMUF se divide basicamente em 4 projetos gerais:
1) Quilombolas Somos Nós
A partir das demandas apresentadas pelos quilombolas da região, o projeto pretende dimensionar as memórias deste grupo, sobre a existência de quilombos na região. Sobretudo, a partir de
rodas de memória com moradores que se declaram descendentes dos quilombos, procura-se fornecer
uma crítica à sociedade do distrito que se concebe luso-açoriana, assim como fornecer subsídios que
superem o espaço de esquecimento da história afro-brasileira na região. Com a atividade as demandas
apresentadas pela comunidade estão sendo atendidas, tais como: a realização de mostras e simpósios
nas localidades assim como levantamento e inventários dos membros quilombolas remanescentes e,
sobretudo, a reunião da documentação necessária para regulamentação de suas terras, luta empreendida por movimentos sociais que buscam apoio da universidade. No ano de 2012, a partir de pesquisa
documental e oral as atividades se concentraram na reunião de subsídios para o processo de certificação das duas comunidades de remanescentes de quilombos junto a Fundação Palmares, e na produção
de material didático; assim como a luta para implementação de vagas específicas para quilombolas na
Universidade Federal do Rio Grande; e no apoio à criação do Coletivo de Estudantes Negras e Negros
da Universidade, nomeado “Macanudos” em homenagem a uma das comunidades quilombolas da
região, cuja família possui este apelido.
2) Kaingangs no Cassino
A cada ano, famílias Kaingang deslocam-se de Iraí até a praia do Cassino em busca da venda
de seu artesanato, a principal fonte de renda indígena contemporânea. Não se trata, contudo, de um
211
PROGRAMA DE EXTENSÃO EM DEFESA DO PATRIMÔNIO COMUNITÁRIO – COMUNIDADES FURG
simples deslocamento comercial, mas sim de uma prática histórica fundamental para a manutenção
de caros saberes indígenas. Entretanto, o que encontram longe está de corresponder às principais necessidades do grupo. Uma profunda aversão da comunidade local, manifesta em distintas situações
de agressões verbais, boicote comercial, acusações jurídicas (seriam camelôs ilegais e exploradores
do trabalho infantil, conforme relatos de comerciantes), entre outras formas de constrangimento e discriminação, afeta a venda de artesanato que não chega a proporcionar os resultados necessários para
atender à população.
Assim, são objetivos do projeto colaborar para assegurar a vinda dos Kaingangs todo o verão
para o Cassino, pois é da venda de artesanato no verão que eles tiram sua renda anual, assim como
fomentar ações e discussões que inibam o preconceito, e garantam seu bem-estar durante a sua estadia.
No ano de 2012, através de pesquisa documental e oral, o trabalho que vem sendo realizado
se concentrou em ações de registro e salvaguarda da presença Jê na cidade e na elaboração de material didático sobre esta temática, a ser distribuído nas escolas do município. Também há o apoio aos
estudantes indígenas da Universidade Federal do Rio Grande, que participam ativamente do projeto,
contribuindo e divulgando suas demandas, como por exemplo a construção de uma Casa de Estudante
Indígena.
3) Memória e Resistência LGBT
A partir de reuniões abertas ao público para criação da disciplina História da Homofobia na
graduação em História em 2010, gerou-se uma série de ações em combate à homofobia no campus
da FURG e nas escolas da região. A ação do dia 28 de junho de 2011, realizada pelo COMUF, teve o
objetivo de integração e de promoção da diversidade que procurou, além de contar um pouco da história do movimento LGBT, fazer uma reflexão sobre o evento “Stonewall” e construir coletivamente
a primeira bandeira da diversidade da FURG. A bandeira foi estendida no Centro de Convivência,
de onde dois dias depois desapareceu. Outras ações do projeto foram ações contra homofobia dentro
e fora da Universidade; apoio ao Coletivo LGBT “Camaleão”; realização de palestras e oficinas em
escolas sobre diversidade afetiva.
Em 2012, as ações se concentram na pesquisa documental e oral em relação à comunidade
LGBT, resultando no mapeamento de casos de homofobia no município; ações pró-respeito à homoafetividade e a produção de material didático.
4) Saberes e Fazeres
Este grande projeto está subdivido em três frentes de ação:
a) Terreiras (projeto em construção)
Com o intuito de proteção e fomento das práticas culturais de matriz afro-brasileira, de modo a
salvaguardar o patrimônio negro da região, surge o interesse em trabalhar com as comunidades tradicionais de terreiros dos distritos de Rio Grande, as terreiras. Lembramos que estes espaços de religiosidade sofrem grande preconceito, devido suas origens. No entanto, devem ser reconhecidos como espaços de memória e resistência negra, vindo a ser um patrimônio cultural. Neste ano, desenvolvemos
ações junto à última terreira aberta de Povo Novo (3º distrito de Rio Grande), o C. E. U. Seguidores
212
Helissa Renata Gründemann, Alexandre da Silva Borges, Jean Baptista
do Pai Sete Flechas das Matas. Com o objetivo de atender suas demandas, capacitamos os seus membros para a elaboração de um estatuto, necessidade da casa, para a geração do CNPJ (que resultaria
na isenção de imposto e possibilidade de participação em editais pró-cultura, memória e patrimônio).
O registro da história das terreiras dos distritos riograndinos também é objetivo deste projeto,
que ainda está em construção. Para tanto, foi produzido um documentário (vídeo) de uma das atividades da terreira de Povo Novo, a Procissão de Ogum Guerreiro e conversas com os caciques (líderes
espirituais) da casa, os senhores Jorge Pintanel e Adriano Borges. Com a mesma intenção, contatamos
a única terreira da Ilha da Torotama, localizada em Rio Grande, com o nome de Centro Espírita Reino
de Yemanjá.
b) O modo de fazer Jurupiga: inventário, registro e salvaguarda de uma produção artesanal
Este projeto tem por objetivo a salvaguarda do modo de fazer Jurupiga, uma bebida artesanal
à base de uva produzida na Ilha dos Marinheiros, 2º distrito de Rio Grande. Sabemos que a Jurupiga
é uma herança portuguesa de nosso município. Esta bebida, assim como o vinho e o suco de uva, foi
produzida em abundância desde a metade do século XIX à metade do século XX. Devido às enchentes ocorridas na década de 1940, que devastaram o cultivo de uva na Ilha, foi instaurada uma praga
especialmente prejudicial às videiras. Também, a chegada dos imigrantes alemães e italianos na Serra
gaúcha e sua crescente produção de vinho e formação de associações, causou um declínio da produção
de vinho e jurupiga na Ilha. No início do século XXI, então, nos deparamos com apenas uma família
que ainda produzia a bebida em maior escala e para comercialização, assim como voltou a cultivar a
uva, barateando o custo da produção pois não precisa importar a fruta de outras cidades.
Entrando em contato com esta família, composta por Hermes da Silva Dias e Rosângela Maria
da Costa Dias e seus dois filhos Gabriel e Samuel, descobrimos que estes estavam passando por uma
situação jurídica que colocava em risco a continuidade de seu sustento. Foram intimados pelo Ministério da Agricultura a se enquadrarem nas normas de produção de bebida alcoólica industrial, o que
significa taxas altíssimas que não são compatíveis com uma produção artesanal e familiar. Sabendo
disto, através de pesquisa oral e documental pudemos perceber que a bebida é uma referência cultural da localidade, que vem passando de geração em geração e se encaixa na definição de Patrimônio
Imaterial. Assim, com a legislação patrimonial e a Constituição Federal em mãos, que garantem que é
papel da população como também do Estado velar pela continuidade destes bens culturais imateriais,
buscamos junto a Prefeitura a possibilidade de um registro como patrimônio cultural imaterial para a
bebida, que a salvaguardasse enquanto um modo de fazer artesanal, impedindo que haja cobranças de
taxações que não condizem com sua natureza.
Assim, estas ações e reuniões com o poder público resultaram, em dezembro de 2010, na lei
municipal de número 6.972/2010 (ver Anexo) que salvaguarda, enquanto Patrimônio Cultural Imaterial, o modo artesanal de fazer Jurupiga, se tornando um importante passo para a defesa desta produção em risco.
Em relação às ações de 2012, o projeto realizou uma Roda de Memória com a colaboração dos
produtores de Jurupiga Hermes e Rosângela Dias. Estiveram presentes 14 produtores e seus familiares
e 10 estudantes do curso de História, que juntos conheceram um pouco mais do primeiro patrimônio
imaterial da cidade. A Roda possibilitou a troca de saberes entre os produtores de Jurupiga da Ilha,
213
PROGRAMA DE EXTENSÃO EM DEFESA DO PATRIMÔNIO COMUNITÁRIO – COMUNIDADES FURG
que contaram suas memórias em relação à produção desde a sua infância, e fortaleceu o registro do
modo de fazer, pois reunindo as informações obtidas na Roda foi possível detalhar as especificidades
e as mudanças que houveram com o tempo no preparo da bebida. Também a partir disto, será gerado
material didático sobre a história da Ilha dos Marinheiros e da produção de Jurupiga à ser distribuído
nas escolas municipais.
c) Vivências com a terra
Este projeto visa propiciar a integração de saberes comunitários relacionados com à terra e
aqueles produzidos pelas reflexões históricas, geográficas e sociais da Academia. Nesse sentido, procura propor uma alternativa didática para as comunidades rurais, de forma que se some a questões
relativas à identidade e memória social da região. O grupo que se dedica a esta atividade ainda tem
alcançado resultados significativos na mobilização da equipe e conexão com as escolas da região, bem
como na geração de hortas comunitárias. Em 2012 as ações se concentraram na produção de horta na
E.M.E.F. Professor Jayme Gomes Monteiro, articulando o processo do plantio e colheita com o conteúdo de História, buscando ampliar os muros da sala de aula a partir de outras vivências.
O produto final deste Programa serão os Dossiês “Nosso Patrimônio”, que visam reunir todas
as pesquisas e resultados obtidos nos projetos, contando histórias e registrando memórias excluídas da
“História Oficial” da cidade, e que serão distribuídos nas escolas municipais.
Considerações Finais:
Concluindo, as atividades do Programa de Extensão Comunidades - FURG (COMUF), que
acabamos de expor, são realizadas por meio da interação da academia, os movimentos sociais, o poder público e as comunidades. Desta forma, buscamos o atendimento das demandas comunitárias de
nossa região, as quais surgem meio a este intercâmbio, sendo assim repletas de sentido real e dotadas
de um caráter legítimo. É importante ressaltar que nosso entendimento sobre as ações realizadas pelo
grupo não são de “ajuda” ou auxílio às comunidades, mas sim capacitação e formação conjunta. Como
conseqüência, temos uma troca mútua de saberes e fazeres, onde apreendemos muita mais com as
comunidades do que elas conosco.
Da mesma forma, as ações desenvolvidas vão de encontro às diretrizes dos Direitos Humanos
e à proteção do Patrimônio Cultural destas comunidades em situação de vulnerabilidade, que até então vem sofrendo com o preconceito e a exclusão social. Isso resulta na visibilidade e fortalecimento
das identidades destes grupos. Essas ações referem-se à salvaguarda dos bens patrimoniais, temos
como exemplo o caso da Jurupiga, da Ilha dos Marinheiros. Consequentemente, estas ações geram a
capacitação e a auto-gestão patrimonial das comunidades, por meio da memória social e a museologia
comunitária.
O Programa COMUF, novamente, foi aprovado no edital do PROEXT e, sendo assim, seguirá
a desenvolver suas ações em 2013. Outros novos projetos serão inclusos no programa: abarcando, por
exemplo, a comunidade cigana e as comunidades de terreira. No entanto, muitos projetos encerraram
214
Helissa Renata Gründemann, Alexandre da Silva Borges, Jean Baptista
suas atividades, com êxito: devido ao alcance dos objetivos planejados. Citamos como exemplo o
projeto O modo de fazer Jurupiga: inventário, registro e salvaguarda de uma produção artesanal, o
qual encerrou suas atividades com o registro de salvaguarda (lei municipal 6.972/2010) e a roda de
memória com os produtores desta bebida, onde foram reunidas e trocadas informações sobre o modo
de fazer, artesanal.
Outro resultado, satisfatório, foi a geração das vagas específicas, da mesma forma para os
indígenas (onde é aplicada uma prova diferenciada) para quilombolas. A demanda surgiu a partir de
pesquisas do projeto Quilombolas Somos Nós, onde constatou-se que o caráter de vulnerabilidade da
comunidade quilombola se destaca meio a comunidade negra em geral. A partir da geração de um
relatório que especifica tais características e sua apresentação à Pró-reitoria de Graduação em agosto
de 2012, a proposta das vagas quilombolas foram aprovadas: cinco vagas, para membros oriundos de
comunidades remanescentes de quilombo da península deste estado. Assim sendo, percebemos que as
atividades realizadas no Programa tiveram efetivas ações em prol do reforço às identidades de grupos,
até então excluídos, valorizando a história, a cultura, a memória e o patrimônio comunitário desta
região, fortalecendo o pertencimento e a cidadania.
REFERÊNCIAS
BARBIER, René. A Pesquisa-Ação. Brasília: Liber Livro Editora, 2007.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de
outubro de 1988.
BRASIL. Decreto nº 3.551 de 04 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Agosto/2000.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio imaterial no Brasil – Legislação e Políticas Estaduais. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008.
DIONNE, Hugues. A Pesquisa-Ação para o Desenvolvimento Local. Brasília: Líber Livro Editora, 2007.
GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal, participação da sociedade civil e estruturas colegiadas
nas escolas. In: Ensaio: avaliação das políticas públicas da Educação Púbica. Educação: Rio de Janeiro,
v.14, n.50, p. 27-38, jan./mar. 2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Capítulo 1 - A Universidade no Século XXI: Para uma Reforma Democrática e Emancipatória da Universidade. In: ALMEIDA FILHOS, Naomar de; SANTOS, Boaventura de Sousa. A Universidade no Século XXI: Para uma Universidade Nova. Coimbra, 2008.
215
PROGRAMA DE EXTENSÃO EM DEFESA DO PATRIMÔNIO COMUNITÁRIO – COMUNIDADES FURG
*Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG, graduanda de História
Licenciatura na Universidade Federal do Rio Grande - FURG
** Graduando de História Bacharelado na Universidade Federal do Rio Grande - FURG
*** Coordenador do Programa de Extensão COMUF (PROEXT-2012/MEC/SESu)
ANEXO
216
PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE DIVINÓPOLIS/MG
Vanessa Regina Freitas da Silva *
Carolina Goes Eloi **
Introdução
Divinópolis é um município localizado no centro-oeste de Minas Gerais, distante 120 km da
capital, Belo Horizonte. Contando com 213 mil habitantes aproximadamente, completou 100 anos de
emancipação no dia 1º de junho de 2012. O importante marco temporal inspirou a elaboração de diretrizes para as intervenções de restauro do prédio da Estação Ferroviária do município.
A memória do lugar, representada pelo prédio da estação valoriza a importância que o período
do “ápice ferroviário” teve para o desenvolvimento divinopolitano, principalmente nas décadas de 50
e 60. Nesse período a estrada de ferro contribuiu para projetar Divinópolis no cenário nacional, como
centro emanador de decisões políticas e como pólo regional aglutinador de comércio e indústrias. Por
esse motivo enfatiza-se o valor da ação de restauração para o bem edificado.
O projeto tem como objetivos valorizar e preservar os bens históricos culturais ferroviários;
readequar a ocupação atual da edificação de modo a oferecer espaços diversificados para apropriação
e fruição dos usuários; indicar as intenções do governo federal e do governo estadual mineiro para a
revitalização da linha férrea para o transporte de passageiros entre Divinópolis e Belo Horizonte.
Restauração como ação de preservação do patrimônio arquitetônico
Edificações que fazem parte do acervo cultural de um município, consideradas exemplares do
patrimônio arquitetônico do lugar, devem sofrer intervenções visando a preservação de suas características. Segundo (COSTA, 2008), “preservação” é o processo de tomada de consciência do valor
de um bem cultural. Implica observação, sensibilização, critérios de escolha, análise e decisão. E
para preservar existem caminhos a seguir, resumidamente através da conservação e da restauração. A
“conservação” é o conjunto de procedimentos técnicos adotados para garantir a integridade física do
objeto o mais próximo possível do estado original, uma ação permanente; enquanto “restauração” é o
conjunto de procedimentos técnicos científicos usados para recuperar objetos danificados, uma ação
excepcional.
Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/PHAN, o estado de conservação não pode ser confundido com o estado de preservação, pois o primeiro refere-se ao seu grau de
integridade físico-material, enquanto o segundo está relacionado à manutenção das características originais; independente do período em que foi construído (IPHAN, 2001). Assim, ações de conservação
podem ser igualadas às ações de manutenção, pois é como a edificação se apresenta quanto às con-
PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE DIVINÓPOLIS/MG
dições de habitabilidade, limpeza, segurança estrutural, etc. Enquanto as ações de preservação visam
a manutenção de aspectos da composição arquitetônica de uma construção, os quais a caracterizem
como pertencente à uma época ou estilo. E a restauração surge como uma possibilidade de reverter
problemas de conservação e de preservação.
A “Carta de Burra”, carta patrimonial elaborada na Austrália, de 1980, surgiu como norteadora
dos conceitos e parâmetros a serem utilizados nas intervenções arquitetônicas ainda hoje utilizadas.
Nesse documento, “conservação”, “manutenção” e “preservação” são termos definidos que corroboram as demais definições apresentadas anteriormente:
- o termo conservação designará os cuidados a serem dispensados a um bem para
preservar-lhe as características que apresentem uma significação cultural. De acordo
com as circunstâncias, a conservação implicará ou não a preservação ou a restauração, além da manutenção; ela poderá, igualmente, compreender obras mínimas de
reconstrução ou adaptação que atendam às necessidades e exigências práticas.
- o termo manutenção designará a proteção contínua da substância, do conteúdo e do
entorno de um bem e não deve ser confundido com o termo reparação. A reparação
implica a restauração e a reconstrução, e assim será considerada.
- a preservação será a manutenção no estado da substância de um bem e a desaceleração do processo pelo qual ele se degrada.
- a restauração será o restabelecimento da substância de um bem em um estado anterior conhecido. (CURY, 2004, p. 247-248)
Anos antes, em 1964, a “Carta de Veneza” afirma que “conservação e restauração dos monumentos constituem uma disciplina que reclama a colaboração de todas as ciências e técnicas que
possa contribuir para o estudo e a salvaguarda do patrimônio monumental” (CURY, 2004, p.92). E
ambas as ações “visam a salvaguardar tanto a obra de arte quanto o testemunho histórico” (CURY,
2004, p.92). Aponta ainda, em seus artigos 4º ao 8º, que a conservação exige manutenção permanente
e é favorecida pela utilização do bem para fins sociais úteis. Esta utilização não deve alterar a disposição ou a decoração dos edifícios e apenas dentro destes limites que as modificações exigidas pela evolução dos usos e costumes poderão ser admitidas. A conservação de um monumento implica manter
o seu entorno proporcionado e conservado não devendo ser permitidas quaisquer novas construções,
demolições ou modificações que possam alterar as relações volumétricas e cromáticas.
Tem-se ainda a “Carta do Restauro” de 1972, elaborada na Itália, e que promove definições
importantes como “salvaguarda” e “restauração”:
Artigo 4º - Entende-se por salvaguarda qualquer medida de conservação que não
implique a intervenção direta sobre a obra; entende-se por restauração qualquer intervenção destinada a manter em funcionamento, a facilitar a leitura e a transmitir integralmente ao futuro as obras e os objetos definidos nos artigos precedentes. (CURY,
2004, p.148)
O documento proíbe remoções ou demolições que apaguem a trajetória da obra através do tempo, a menos que sejam elementos inseridos que alteraram valores históricos da obra ou que a falsificaram. E ainda valoriza as medidas de caráter preventivo que evitam outras posteriores mais profundas.
O projeto de restauração realizado considerou os aspectos e discussões sobre esse tipo de intervenção,
conforme visto a seguir.
218
Vanessa Regina Freitas da Silva, Carolina Goes Eloi
A estação ferroviária: referência na paisagem e relação com memória do lugar
O prédio da Estação Ferroviária de Divinópolis compõe o acervo arquitetônico e histórico da
cidade, sendo considerado patrimônio municipal pelas suas qualidades formais e a sua grande importância para a história da economia e cultura regional. No ano de 1916 o prédio foi construído, ocupando uma área de aproximadamente 320 m². Representou um símbolo máximo da modernidade naquele
momento, revolucionou as noções de tempo e de espaço, fazendo com que ocorresse a aproximação
mais rápida entre as pessoas e fazendo uma ligação mais rápida entre os diferentes lugares. Qualquer
estação ferroviária da época tinha o crucial significado de porta da cidade, era um cartão postal que
deveria impressionar o visitante e orgulhar o cidadão.
Os bens edificados simbolizam como a sociedade viveu como referenciais de um lugar. Segundo a “Recomendação de Paris” de 1968 os bens culturais são “o produto e o testemunho das diferentes
tradições e realizações intelectuais do passado e constituem, portanto, um elemento essencial da
personalidade dos povos” (CURY, 2004, p.123). E afirma ainda que “é indispensável preservá-los, na
medida do possível e, de acordo com sua importância histórica e artística, valorizá-los de modo que
os povos se compenetrem de sua significação e de sua mensagem e, assim, fortaleçam a consciência
de sua própria dignidade” (CURY, 2004, p.123).
As lembranças se relacionam aos lugares e aos objetos que os compõem, confirmando que a
memória coletiva representa a estreita relação de um grupo (ou grupos) com o espaço. As imagens
espaciais desempenham um papel na memória coletiva e todo lugar recebe as marcas de todas as ações
dos grupos existentes:
A capacidade de lembrar é determinada, não pela aderência de um indivíduo a um
determinado espaço, mas pela aderência do grupo do qual ele faz parte àquele mesmo
espaço: um espaço em que se habitou, um espaço em que se trabalhou, um espaço em
que se viveu. Um espaço, enfim, que foi compartilhado por uma coletividade durante
um certo tempo, seja ele a residência familiar, a vizinhança, o bairro o local de trabalho. (ABREU, 1998, p. 84).
É esse destaque dado ao lugar que importa como referência para a memória coletiva, denominada aqui especificamente como memória do lugar ou, ainda, memória da cidade. A memória da cidade pode ser definida como “o estoque de lembranças que estão eternizadas na paisagem ou nos registros de um determinado lugar, lembranças essas que são agora objetos de reapropriação por parte
da sociedade” (ABREU, 1998, p. 89). Assim fica claro que “as lembranças se apóiam nas pedras da
cidade” (BOSI, 2004, p.71), quando os lugares ajudam a contar a história de vida dos habitantes: “a
cidade, como a história de vida, é sempre a possibilidade desses trajetos que são nossos percursos,
destino, trajetória da alma” (BOSI, 2004, p.75).
São os aspectos culturais locais que diferenciam os lugares; e, invariavelmente, é através do
patrimônio edificado que se indicam aspectos de singularidade. A busca dessa individualidade se
apóia no passado perpetuado no patrimônio edificado e reafirmado pela memória coletiva:
O passado é uma das dimensões mais importantes da singularidade. Materializado
na paisagem, preservado em “instituições de memória” ou ainda vivo na cultura e no
cotidiano dos lugares, não é de se estranhar, então, que seja ele que vem dando suporte
mais sólido a essa procura da diferença. (ABREU, 1998, p.79)
219
PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE DIVINÓPOLIS/MG
Nesse contexto, a memória do lugar ajuda a fortalecer a singularidade através das expressões
arquitetônicas do passado que constituem o patrimônio edificado preservado.
Proposta de intervenção na estação ferroviária
Com o fim do transporte ferroviário de passageiros, a Estação Ferroviária de Divinópolis foi
entrando num processo de degradação. Houve um período sem ocupação, quando o prédio transformou-se involuntariamente em moradia de mendigos, menores e usuários de drogas que inclusive o
utilizavam como banheiro. Ainda hoje é possível observar espaços residuais com mato alto que atrai
animais peçonhentos devido ao mato alto nos trilhos.
Atualmente o prédio (FIGURA 01) é ocupado pela Academia de Letras de Divinópolis, com
exposição de livros e realização de reuniões e assembleias; o MUNDI (Movimento Unificado Negro
de Divinópolis) que realiza manifestações da cultura negra; e pelo Ateliê do Artesanato, que além de
incentivar o aprendizado possui uma loja cujos rendimentos são destinados para as próprias artesãs.
Esses usos favorecem a manutenção do bem quando bem direcionados e cuidadosos com os espaços
ocupados (FIGURA 02).
A fachada frontal apresenta expressão plástica e compositiva que se destaca no conjunto urbano (FIGURA 03 A e B). Vale ressaltar que, apesar da recente pintura da parte exterior frontal, o prédio
encontra-se em estado precário de conservação das alvenarias, pisos e esquadrias principalmente. A
avaliação geral do bem foi possível com a realização de um laudo de estado de conservação; fundamental para colocar em prática as intenções projetuais1.
De um modo geral, percebe-se que a edificação reflete a ausência de uma proposta de utilização permanente, que garanta a sua visibilidade no cenário das atividades histórico-culturais locais e a
manutenção de forma continuada. Na proposta de intervenção foi mantida a Academia Divinopolitana
de Letras com aumento de espaços relacionados a essa temática como espaços de leitura, ambiente
para contação de histórias e sala de reuniões dos membros e para lançamento de livros. Também manteve-se os ambientes relacionados ao Artesanato (local de produção e venda), articulando-os de modo
a valorizar a prática artesanal. Foram incorporados novos espaços como: o Memorial do Ferroviário
para expor artefatos e peças que fizeram parte da história da estação e da ferrovia em Divinópolis; espaço para informações sobre eventos e atividades culturais que ocorrerem na cidade; lanchonete; um
jardim lateral; adaptação dos banheiros para acessibilidade universal; além das estruturas relacionadas
à estação ferroviária propriamente dita, como bilheteria e administração. Outra intervenção importante foi a retirada de um volume lateral de banheiros incorporado à construção de maneira precária e
1
O laudo elaborado segue a metodologia utilizada para trabalhos relacionados à Lei n.º 13.803/2000 do estado de Minas
Gerais referente à distribuição do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços/ICMS - critério do patrimônio
cultural. Essa metodologia está de acordo com a deliberação normativa do Conselho Curador do Instituto de Patrimônio
Histórico e Artístico/IEPHA-MG n.º 01/2005. O laudo elaborado apontou as questões mais problemáticas visíveis sobre
todos os aspectos da construção: estrutura, alvenaria, cobertura, revestimentos, vão e vedações, pisos, forros, elementos
externos integrados, instalações elétricas, hidráulicas e de segurança. Formou-se um quadro geral do estado de conservação
do bem, visando à restauração do mesmo. Tanto o laudo elaborado quanto as intervenções de restauro propostas para
eliminação de patologias estão apresentados detalhadamente no TCC como exemplificação das atribuições do profissional
arquiteto urbanista. No artigo apresentado procurou-se resumir as questões de intervenção do projeto quanto à modificação
dos espaços e usos.
220
Vanessa Regina Freitas da Silva, Carolina Goes Eloi
descaracterizante (FIGURAS 04 a 07).
Essencialmente o projeto elaborado propõe a retomada da função original do bem – estação
ferroviária – e a reformulação dos espaços internos, com novas funções, aproveitando melhor os
ambientes e criando mecanismos para atender de forma mais efetiva os anseios e as necessidades da
comunidade. Devolve à cidade uma edificação reabilitada como um símbolo mais integrado e atraente, especialmente como objeto de memória. E a revitalização da linha férrea contribui para o entendimento de que há a possibilidade de retomar um tipo de transporte sustentável e eficiente. Valoriza-se,
portanto, a estrada de ferro e a edificação como referenciais sobre a memória do lugar.
O trabalho elaborado demonstra reflexão sobre um bem cultural da cidade e a proposição de
soluções reais, funcionais e possíveis para a reinserção do patrimônio no cotidiano do lugar.
REFERÊNCIAS
ABREU, Maurício de Almeida. Sobre a memória das cidades. Revista da faculdade de Letras – Geografia I. Porto, vol. XIV, p.77-97, 1998.
BOSI. Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial. 2004.
219p.
COSTA, Heloísa Helena Fernandes Gonçalves da. Atribuição de valor ao patrimônio material e imaterial: afinal, com qual patrimônio nos preocupamos? In: CARVALHO, C. S. de; GRANATO, M; BEZERRA, R. Z; BENCHETRIT, S. F. (orgs.). Um Olhar Contemporâneo sobre a Preservação do Patrimônio Cultural Material. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2008, p.119-129.
CURY, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004. 407p.
IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Departamento de Identificação e
Documentação. Inventário Nacional de Bens Imóveis – Sítios Urbanos Tombados: manual de preenchimento, versão 2001. Brasília.
SILVA, Vanessa Regina Freitas da. Patrimônio, Memória e Mercadoria: uma reconstrução arquitetônica
em Ouro Preto, Minas Gerais. Dissertação Mestrado Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPel.
2011.
*Arquiteta Urbanista pela UFMG; Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel/RS
Docente na Faculdade Presidente Antônio Carlos de Bom Despacho/MG
** Arquiteta Urbanista pela Faculdade Presidente Antônio Carlos de Bom Despacho/MG
221
PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE DIVINÓPOLIS/MG
Imagens
FIGURA 01 – Fachada Frontal do prédio da Estação Ferroviária de Divinópolis.
Foto: acervo pessoal Carolina de Goes Eloi, junho/2012.
FIGURA 02 – planta atual (hachura indicando espaços ociosos).
Fonte: levantamento e digitalização – Carolina de Goes Eloi, junho, 2012.
FIGURA 03 A e B – Inserção urbana.
Foto: acervo pessoal Carolina de Goes Eloi, junho/2012
222
Vanessa Regina Freitas da Silva, Carolina Goes Eloi
FIGURA 04 – planta proposta
Fonte: levantamento e digitalização – Carolina de Goes Eloi, junho, 2012
FIGURA 05 – Aspecto frontal do projeto.
Fonte: Visada em 3D Trabalho de Conclusão de Curso de Carolina de Goes Eloi, junho/2012
FIGURA 06 – Implantação do bem.
Fonte: Visada em 3D Trabalho de Conclusão de Curso de Carolina de Goes Eloi, junho/2012
223
PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE DIVINÓPOLIS/MG
FIGURA 07 A e B – Detalhes intervenção externa (jardim).
Fonte: Visadas em 3D Trabalho de Conclusão de Curso de Carolina de Goes Eloi, junho/2012
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“O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA EM
UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO
Douglas Souza Angeli *
INTRODUÇÃO
Gaúcho de São Borja, Getúlio Dorneles Vargas chegou à Presidência da República através
da Revolução de 1930, permanecendo no cargo até ser deposto em 1945. Em 1950, eleito pelo voto
direto, assumiria o posto para um mandato que seria abruptamente interrompido pelo seu suicídio em
24 de agosto de 1954. Entretanto, a letra fria de um resumo biográfico é incapaz de abarcar toda a
complexidade desse processo político, tampouco de satisfazer a necessidade de compreensão desse
mito da história política brasileira.
Segundo o jornalista Flávio Tavares, Getúlio Vargas foi “o homem mais poderoso do Brasil,
amado por muitos milhões e odiado por outros milhões – e por isso, mais poderoso ainda, pois foi
capaz de se apoderar do amor e do rancor dos demais” (2004, p. 51). O presente artigo intenciona
compreender uma das muitas formas pelas quais Vargas e seus aliados se apoderaram desse “amor”:
o uso de imagens que, ao longo do tempo, foram capazes de produzir uma memória social em torno
da figura do ex-ditador.
Para tal, selecionamos as fotografias publicadas na Revista do Globo em 25 de novembro de
1950, logo após as eleições de 1950 – razão pela qual o título da reportagem de capa dessa edição é
“O descanso do vencedor”1. Para interpretar tais imagens, optamos por trazer um breve resumo do
contexto político em que a revista publicou-as, apresentando, na sequência, a descrição das fotos e
da própria reportagem, destacando em seguida o aporte teórico que consideramos fundamental para
preceder a leitura das mesmas.
GETÚLIO VARGAS: IMAGEM CONSTRUÍDA
As eleições de 1950 marcaram o retorno de Getúlio Vargas à presidência da República, após
cinco anos de afastamento. O período anterior, entre 1930 e 1945, foi composto de fases distintas: a
primeira, da Revolução de 30 à Constituição de 1934, foi o governo provisório; a segunda foi o governo constitucional, que durou até o Golpe de 1937; a terceira é a fase ditatorial, o chamado Estado
Novo, encerrado com a deposição de Vargas em 19452.
Angela de Castro Gomes e Maria Celina D’Araújo afirmam, em Getulismo e Trabalhismo, que
Vargas demonstrava-se um hábil político desde o início de sua carreira. No entanto, salientam que sua
“imagem popular” seria firmada gradativamente, se consolidando somente durante o Estado Novo
(1989, p. 06). Durante a ditadura varguista, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) soube
1
O DESCANSO do vencedor: uma reportagem em cores com Getúlio. Revista do Globo. N.º 522. 25 nov. 1950. P. 45-48.
A ERA Vargas: dos anos 20 a 1945. CPDOC – Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/
dossies/AEraVargas1/apresentacao. Acesso: 12/08/2012; 17h28min.
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“O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA EM UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO
utilizar, com fins de propaganda política, os novos meios de comunicação, como o rádio e cinema,
sendo também responsável pela “organização de rituais totalitários de culto à personalidade do ditador” (DEL PRIORE; VENANCIO, 2010, p. 258).
Embora o Estado Novo, em alguns aspectos, seja similar aos regimes totalitários europeus,
Maria Helena Rolim Capelato ressalta que a propaganda estadonovista (de modelo nazifascista), apresentou características particulares e produziu efeitos distintos das congêneres europeias:
A propaganda política desencadeia uma luta de forças simbólicas, que visa ao reforço
da dominação, ao consentimento em relação ao poder e à interiorização das normas
e valores impostos através das mensagens propagandistas. No entanto, como esclarecem De Certeau e Chartier, a incorporação da dominação pelo receptor não exclui a
possibilidade de desvios. A eficácia das mensagens depende dos códigos de afetividade, costumes e elementos histórico-culturais dos receptores. Por isso, o efeito não é
unívoco (2003, p. 202-203).
No clássico A invenção do trabalhismo, Angela de Castro Gomes ressalta que a figura de Getúlio Vargas enquanto mito foi construída em um tempo não muito longo e que coincide com o período
do Estado Novo. Citando as falas que o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, Alexandre Marcondes Filho, difundia via Hora do Brasil nas quintas-feiras durante dez minutos, a autora destaca:
“Vargas era citado de forma contundente. A simples menção de seu nome como o chefe do Estado
Novo, ao longo de semanas e semanas, seria suficiente para criar uma memória” (GOMES, 2005, p.
219).
Além dessa memória (ou memórias), o Estado Novo pode ser considerado também o fundador
de uma nova cultura política. Conforme ressaltaram Mary Del Priore e Renato Venâncio, o fim do
Estado Novo sugeria que as antigas oligarquias teriam chances de retornar ao comando político do
Estado brasileiro:
Mas isso só na aparência, pois o Brasil dos anos 1940 era profundamente diferente
daquele que havia existido durante a Primeira República. [...] Em consequência das
reformas educacionais e da incorporação do voto feminino, os índices de participação
eleitoral, em declínio desde fins do Império – quando os analfabetos foram excluídos
de votar, aumentam sensivelmente. Por volta de 1945, além de mais numerosos do
que nunca, os eleitores brasileiros apresentam um perfil cada vez mais urbano (2010,
p. 262).
Essa mudança no eleitorado implicou, consequentemente, na alteração profunda do perfil dos
candidatos. Com votantes cada vez menos sujeitos aos coronéis, pertencer à elite agrária já não era
pré-requisito fundamental para os candidatos, que passavam a depender “do próprio carisma, da representatividade junto aos trabalhadores ou de uma máquina clientelista capaz de conceder favores
e empregos” (DEL PRIORE; VENANCIO, 2010, p. 262-263).
Por esta e outras razões, a candidatura de Getúlio Vargas em 1950 tem como principal característica o caráter personalista, ao afirmar sua condição de independência frente aos interesses políticos
organizados. Apresentando-se nesse formato, Vargas colocou-se como “defensor daqueles que, por
suas condições precárias de vida, não haviam conseguido ainda se fazer representar nem merecer a
atenção quer das agremiações políticas, quer do poder estabelecido” (GOMES; D’ARAÚJO, 1989, p.
54). Nota-se aí, uma das formas pelas quais o indivíduo é “atingido no coração pelo poder público”:
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Douglas Souza Angeli
“quando é atingido na sua imagem de si, na relação que tem consigo mesmo enquanto obedece ao
Estado ou à sociedade” (VEYNE, 1987, p. 10).
Todos esses fatores, somados à comoção popular após o suicídio presidencial de 1954, fizeram
de Vargas um mito da política brasileira. Ao tratar dos partidos políticos, Serge Berstein ressaltou que
sua doutrina não está sempre explícita e sim presente por meio de referências implícitas, expressandose em lembranças históricas comuns, heróis consagrados, documentos fundamentais, símbolos, bandeiras, comemorações, vocabulário decodificado, gestos e ritos (1996, p. 87-90). A imagem de Vargas
enquanto herói consagrado foi sendo transmitida ao longo do tempo especialmente pelos trabalhistas,
como no caso do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em Canoas/RS:
O diretório do bairro Niterói chamava-se “Getúlio Vargas”. Não por acaso, um dos
pontos da proposta de orientação da campanha eleitoral de 1963 incluía uma reunião
com candidatos e presidentes dos diretórios para lançar a campanha em 24 de agosto. Tais gestuais ritualísticos fazem sentido aos correligionários. Dessa forma, não é
difícil imaginar que, em meio a uma reunião do diretório municipal do PTB, uma citação à memória de Getúlio Vargas deflagrasse um frenesi nos trabalhistas (ANGELI;
COLLING, 2011, p. 06-07).
Essa imagem construída de Getúlio Vargas nos faz recordar a citação de José Murilo de Carvalho com relação à criação de outro mito: Tiradentes, no livro A formação das almas. Carvalho destaca
os heróis enquanto símbolos poderosos e fulcros de identificação coletiva: “são, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes
políticos” (1990, p. 55).
UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO
Sereno Chaise descreveu, em seu diário político, momentos do casamento de Leonel Brizola e
Neusa Goulart, ocorrido em 1º de março de 1950. A cerimônia foi realizada na Fazenda Iguaraçá, em
São Borja/RS. O relato de Chaise destaca um pedido de Jango Goulart antes de dormir (por volta de
quatro horas da manhã): “Eu vou deitar e daqui uma hora e meia tu me chamas”. E continua:
Às cinco e meia chamei o Jango. Ele se levantou, lavou o rosto e disse: “Vamos?”.
Respondi: “Vamos!”. Eu só não estava sabendo aonde. Foi quando embarcamos no
Lodstar. [...] Decolamos com as luzes do avião acesas porque era noite ainda. Estavam
saindo os primeiros raios de sol. Aí eu disse: “Jango, aonde estamos indo?”. Ele respondeu: “Buscar o Doutor Getúlio” (KLÖCKNER, 2007, p. 28).
E na sequência, Getúlio Vargas e seu cenário despontam na narrativa: “Coxilhas verdes, tudo
de grama. [...] Chegamos ao local, a porta da casa se abre, aparece o doutor Getúlio, de pijama listrado. [...] Convidou-nos a entrar e tomar café. A mesa tinha charque, feijão mexido, mandioca” (KLÖCKNER, 2007, p. 28).
A cena descrita por Sereno Chaise serve como rastro do que seria estar na presença de Getúlio
Vargas enquanto este descansava (e articulava os próximos passos) em sua fazenda, aguardando o
momento de retornar à capital federal como Presidente da República. O cenário é quase o mesmo que
nos proporciona a Revista do Globo editava alguns dias após a vitória de Vargas nas urnas. A matéria
tem chamada e foto que monopolizaram a capa daquela edição: “O descanso do vencedor: uma repor227
“O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA EM UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO
tagem em cores com Getúlio”.
A foto da capa [figura 1] dá o tom de toda a reportagem: O presidente eleito, sorridente, usando
óculos de grau e um lenço azul em volta do pescoço que entrava blusão adentro. Sem terno, sem gravata, sem cartola: o ex-ditador usava uma bombacha clara. A imagem produzida pela revista conduz
o pensamento à ideia de informalidade: Vargas está abraçado a uma menina que timidamente sorri,
com seu pequeno blusão que se sobrepõe ao vestido. Trata-se de Adelaide, de sete anos, neta do deputado Batista Luzardo (dono da fazenda São Pedro, em Uruguaiana/RS, onde Vargas era um ilustre
hóspede)3.
Figura 2 - Getúlio Vargas toma chimarrão com aliados políticos (p. 45).
3
A MENINA da capa. Revista do Globo. N.º 522. 25 nov. 1950. P. 01.
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Apesar de o título mencionar o termo descanso e as fotos mostrarem Getúlio Vargas em momentos de lazer, a reportagem faz questão de alertar: “descanso em termos, porque num só domingo
o próximo Presidente da República recebeu exatamente 400 pessoas, das quais 160 vindas do Rio e
96 de São Paulo” (p. 45). A imagem principal dessa página [figura 2] é Getúlio tomando chimarrão
juntamente com outros três homens igualmente vestidos de bombacha e lenço gaúcho. A legenda é:
“O chimarrão, a palestra e o ar puro repousam o candidato Getúlio e temperam o presidente Vargas”
(p. 45).
Na mesma página há uma descrição de Getúlio: “de bombachas em marrom discreto, botas de
cano curto, e blusa cinzenta, com a pele queimada de sol e fisionomia serena, era um simples hóspede” (p. 45). Há uma breve narrativa sobre a cavalgada do presidente [figura 3]:
Às 7 da manhã monta a cavalo, um simples zaino de pelo arrepiado, e sai a parar rodeio,
como um peão ou a correr como um bom cavaleiro. Volta cansado e satisfeito. [...] E
em todos os seus passos é fielmente seguido por um cão malhado, vindo não se sabe de
onde, que se roça carinhoso em suas botas e lhe sugere esta observação ouvida por
nós: “Coitado! Também aderiu à última hora” (p. 45).
O mencionado cão adesista foi destacado em uma das fotos da página 46, onde novamente
aparecem Getúlio e a menina Adelaide [figura 4]. A reportagem enfatiza que na fazenda de São Pedro,
o presidente tinha à sua disposição “uma planície para galopar, um rio para navegar e um torre onde
pensar no melhor destino para 50 milhões de brasileiros”. Outra imagem que se destaca é a de Vargas
na varanda da casa, de bombacha clara, lenço no pescoço e charuto na mão. À sua frente, um homem
negro4 de chapéu olha para o presidente com um sorriso largo [imagem 5].
4
Muito provavelmente trata-se do famoso Gregório Fortunato.
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“O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA EM UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO
Figura 5 - Getúlio “fuma em paz o seu charuto” (p. 46).
Um corredor de árvores frondosas serve de cenário para a imagem que domina a página 47
[imagem 6]. Nela, o ditador do Estado Novo, então presidente eleito pelo voto direto, aparece com
um grupo de crianças, todos de braços dados: são meninas e meninos de cores e tamanhos diferentes.
A terceira menina (que parece ser Adelaide) mantém uma perna à frente da outra e o corpo levemente arqueado para o lado, indicando que caminhava jogando o corpo de um lado ao outro. Vargas, no
centro, demonstra uma expressão alegre, de mãos dadas a terceira e quarta crianças (da esquerda para
a direita). O quinto menino, de macacão azul parece pular, dando um sinal da alegria proporcionada
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pela brincadeira de posar para fotos. É, aliás, nessa página que consta o registro do autor das fotografias: Antônio Ronek.
Figura 6 - Getúlio Vargas: “um amável companheiro para as belas tardes campestres” (p. 47).
A legenda da foto acima descrita diz muito sobre a intencionalidade da foto: “A garotada da fazenda, pretos e brancos, encontra no próximo presidente da República mais um amável companheiro
para as belas tardes campestres, e esta é realmente a hora em que o vencedor descansa” (p. 47).
A última foto preenche completamente a página 48: É Getúlio Vargas, com o mesmo traje típico de antes, excetuando-se a adição de um chapéu, montado em um cavalo negro [imagem 7]. Não
há legenda e nem faz falta, posto que sintetiza as páginas anteriores: O “vencedor” que descansa é um
“simples hóspede” montado num “simples zaino”. Porém, sua “fisionomia serena”, indica a certeza de
ser “um bom cavaleiro” quando está com as rédeas na mão.
Figura 7 - Presidente Vargas a cavalo (p. 48).
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“O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA EM UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO
Sobre a Revista do Globo há um aspecto importante a ser mencionado. Vargas já havia sido
capa do periódico gaúcho em novembro de 1938, meses após a implantação do Estado Novo. Quem
nos traz essa informação é Cláudio de Sá Machado Junior, no livro Imagens da sociedade Porto-Alegrense: vida pública e comportamento nas fotografias da Revista do Globo (década de 1930). Segundo ele, “a proximidade de Getúlio Vargas com a Revista do Globo data desde sua fundação” e “sua
imagem foi algo constante nas páginas do periódico” (2009, p. 76). A edição de novembro de 1950
fornece mais um indício dessa proximidade. E mais uma vez, Vargas estava com as rédeas na mão.
APORTE TEÓRICO PARA A LEITURA DAS IMAGENS
Diante das fotografias da reportagem “O descanso do vencedor”, e considerando a potencialidade das mesmas para a pesquisa histórica, selecionamos alguns subitens que julgamos importantes
para a interpretação dessas imagens em consonância com os pressupostos teóricos da História Cultural.
a) Fontes históricas: A história não é uma área do conhecimento onde tudo pode ser dito ao
sabor da livre interpretação, pois a atividade do historiador tem métodos que a legitimam. Para José
Carlos Reis, a história é o conhecimento “cientificamente conduzido” do passado humano – problematizante, hipotético, comunicável, técnico, documentado, e que pretende obter a verdade de seu
objeto através da investigação, da interrogação e do controle das fontes (REIS, 2003, p. 101).
Na abordagem de Sandra Jatahy Pesavento, os historiadores de hoje têm consciência de que,
embora sua meta seja chegar à verdade, o máximo que poderão atingir será sempre a construção de
“versões possíveis, plausíveis, aproximativas daquilo que teria ocorrido” (2008, p. 18). Ao mesmo
tempo, é o método que garante meios de controle e verificação do conhecimento, permitindo fazer da
história uma ficção controlada (PESAVENTO, 2004, p. 68-69).
Ao destacar o trabalho dos historiadores nos arquivos após a queda do Muro de Berlim, Étienne François convidava à percepção de que “os arquivos não falam a verdade por si só”, mas devem
ser submetidos a uma crítica exigente das fontes (1998, p. 157). Segundo esse historiador francês,
existem quatro exigências para o trabalho em arquivos: a crítica das fontes (quem constitui? Em que
condições? Para quê? O que expressam? O que dizem, o que não dizem?); a interrogação das fontes;
a consciência de que as fontes não dizem tudo, e portanto é necessário o cruzamento com outros tipos
de fontes; e um trabalho ético (1998, p. 157-159).
Defendendo a crítica das fontes, Jacques Le Goff ressalta que “nenhum documento é inocente.
[...] Todo documento é um monumento que deve ser desestruturado, desmontado” (2003, p. 110).
Nessa ótica, o documento “não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder” (LE GOFF, 2003, p.
535-536). Ainda, segundo Jean Boutier e Dominique Julia, na Nova História todo documento é útil
para o historiador (1998, p. 36). Assim, a questão das fontes históricas é central no debate historiográfico e, independentemente do tipo de documento utilizado, a mudança mais significativa está nas
perguntas que o historiador faz, pois como nos alerta Étienne François, as fontes só falam quando as
interrogamos (1998, p. 158).
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b) Fotografia e História: Para Boris Kossoy, no livro Fotografia e História, a fotografia enquanto documento deve ser articulada com outras fontes históricas, possibilitando a busca de pistas
sobre a atuação do fotógrafo e de suas intenções. Para além da “verdade iconográfica”, o autor nos
convida a considerar que o significado mais profundo da imagem não está necessariamente explícito.
Kossoy nos diz que “o vestígio da vida cristalizado na imagem fotográfica passa a ter sentido no
momento em que se tenha conhecimento e se compreendam os elos da cadeia de fatos ausentes da
imagem” (1989, p. 80).
Embora a fotografia tenha trazido a possibilidade da fixação de uma imagem, registrando um
personagem ou evento, é preciso estar atento ao fato de que a fotografia não é neutra, pois “traduz
sempre um significado, do ponto de vista do fotógrafo ou do ponto de vista da mídia que veicula a
imagem” (FERREIRA; FRANCO, 2009, p. 121).
c) História Cultural e imagens: Em História e História Cultural, Sandra Pesavento destaca o
fato de as imagens terem valor documental, mas não mimético, posto que são representações do mundo elaboradas para serem vistas: “toda a imagem se dá a ver, todo o texto se dá a ler” (2004, p. 84-85).
As imagens são simbólicas e, portanto, portadoras de significados para além daquilo que é mostrado
(PESAVENTO, 2008, p. 99). Dessa forma, “a imagem é sempre uma construção, uma interpretação,
uma recriação do real” (idem, p. 103).
Conforme enfatizado por Pesavento, as imagens suportam em si tensões, e a primeira delas é o
fato de se situarem entre mímeses e o fictio; a segunda tensão diz respeito ao que é exibido enquanto
forma, composição, figura e cor, e os silêncios e lacunas que ela possui; há também a tensão entre o
todo que proporciona a visão do conjunto e o detalhe que carrega as sutilezas; e ainda a tensão entre
o subjetivo e o social: a imagem não somente é produzida, mas há também sua recepção, leitura e
consumo (2008, p. 106-107).
Sandra Pesavento salienta que a imagem é uma narrativa que conta e explica algo e, assim, toda
a imagem “suportaria uma mensagem discursiva” (2008, p. 108). Segundo ela, o que os historiadores
querem com relação às imagens é o seu valor de texto, permitindo a leitura e, dessa forma, o acesso
aos traços visíveis do passado (idem, p. 113).
Citando Paul Ricoeur, Pesavento traça aproximações entre a hermenêutica da leitura e a leitura
das imagens, em três etapas: 1) Fase da pré-figuração, na qual as perguntas formuladas buscam dar
conta de uma contextualização, delimitando a historicidade do processo criativo; 2) Fase da configuração, na qual se buscaria o “tema (o quê) e o ‘como’ do objeto, assim como o seu ‘porquê’”. É o
momento da delimitação e análise dos “elementos da trama, da ação, dos personagens, dos materiais
empregados”; 3) Fase da refiguração, momento em que o leitor remete-se a outros textos e imagens,
quando ocorre a atribuição de significados ao texto ou imagem (2008, p. 114-115).
d) Representações: Sandra Pesavento ressalta que indivíduos e grupos dão sentido ao mundo
por meio das representações que constroem sobre a realidade, e que as representações são matrizes
geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora, coesiva e explicativa do real
(2004, p. 39). Assim, representar é estar no lugar de, é presentificação de um ausente; substituição que
recoloca uma ausência e torna sensível uma presença (idem, p. 40). Para ela, “a força da representa233
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ção se dá pela sua capacidade de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade social”
(ibidem, p. 41).
A historiadora também destaca que os historiadores se apropriaram do conceito de representações, sendo elas a chave para a análise desse fenômeno presente em todas as culturas ao longo do
tempo: “os homens elaboram ideias sobre o real, as quais se traduzem em imagens, discursos e práticas sociais que não somente qualificam o mundo como também orientam o olhar e a percepção sobre
essa realidade” (2008, p. 13). As representações derivam de outro conceito, o de imaginário, que
alude ao “sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas,
construíram para si, dando sentido ao mundo” (2004, p. 43).
e) Memória Social: Maurice Halbwachs constatou, na primeira metade do século XX, a dimensão social da memória, até então associada ao campo psicológico. Há nessa constatação uma
inspiração na Sociologia de Emille Durkheim, que considerava a participação no grupo social como
determinante no processo de reconstrução das lembranças (Félix, 2004, p. 40-41). Halbwachs também
enfatizou as diferenças entre a memória e a história: “a memória liga-se à lembrança das vivências e
esta só existe quando laços afetivos criam o pertencimento ao grupo, e ainda os mantém no presente”
(idem, p. 42). Loiva Otero Félix destaca a importância das lembranças: “constituídas nas relações
sociais, são mantidas nos diversos grupos de referência e também nos espaços sociais da família, do
trabalho, do lazer, da religiosidade” (ibidem, p. 42-43).
Michel Pollak destacou a memória enquanto constituidora do “sentimento de identidade, tanto
individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo” (1992, p. 204). Para ele, são
elementos constitutivos da memória: os acontecimentos vividos pessoalmente ou pelo grupo; os lugares; e os personagens. Quanto aos últimos, salienta que podem tratar-se de “personagens realmente
encontradas no decorrer da vida, de personagens frequentadas por tabela, indiretamente, mas que,
por assim dizer, se transformaram quase que em conhecidas” (idem, p. 201).
f) Cultura Política: Sobre a expressão cultura política, Ricardo de Aguiar Pacheco, citando
Giaccomo Sani, menciona o seu uso para designar o “conjunto de atitudes, normas, crenças, mais ou
menos largamente partilhados pelos membros de uma certa unidade social e tendo como objetivo o
fenômeno político” (2008, p. 174). Para Pacheco, a noção de cultura política tem sido uma ferramenta teórica importante para os historiadores que buscam identificar o modo como os diferentes grupos
sociais percebem o processo político no qual estão inseridos (idem, p. 174).
A historiadora Angela de Castro Gomes também destacou a utilização do conceito pelos historiadores. Segundo ela, a cultura política permite interpretações sobre o comportamento político dos
atores (individuais e coletivos), “privilegiando suas percepções, suas lógicas cognitivas, suas vivências, suas sensibilidades” (2005, p. 30). E Pacheco ressalta que a política é uma “rede de sentidos”,
razão pela qual “entender o campo político passa por rastrear, nos indícios deixados pelo passado, os
significados atribuídos às representações e práticas sociais” (2008, p. 172).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS: “UM AMÁVEL COMPANHEIRO PARA AS BELAS TARDES CAMPESTRES”
Nesse artigo, buscamos apresentar uma fonte histórica em potencial que pode nos ajudar na
compreensão do getulismo enquanto fenômeno político. Trata-se da reportagem em cores com Getúlio Vargas, publicada pela Revista do Globo poucos dias após as eleições de 1950. Angela de Castro
Gomes e Maria Celina D’Araújo destacam o getulismo como um “movimento de opinião pública
favorável, e até mítico, à figura de Getúlio Vargas” (1989, p. 08). E como tal fenômeno baseava-se
nos sentimentos populares perante a imagem do líder trabalhista, a veiculação de imagens (como as da
edição da revista citada nesse artigo) é elemento fundamental na construção simbólica do getulismo e
também do trabalhismo.
Sendo que o historiador necessita de fontes para produzir versões plausíveis e possíveis do
passado, o presente artigo não teve a pretensão de analisar tais imagens de forma irrefragável, mas
sim apresentá-lo e propor instrumentos teóricos que possibilitem a sua interpretação. Primeiramente,
o elemento que mais chama a atenção é a característica geral das fotografias da reportagem: não são
poses formais como a de um político que trabalha em um escritório ou que discursa em uma tribuna,
mas sim o registro (produzido) de momentos informais do presidente Vargas enquanto este “descansava” em uma fazenda de Uruguaiana/RS.
Considerando a afirmação de Kossoy, o trabalho do historiador com relação às imagens deve
considerar a importância dos “fatos ausentes da imagem” (1989, p. 80). Da mesma forma, Sandra Pesavento, remetendo à hermenêutica de Paul Ricoeur, nos chama à atenção para as etapas da leitura das
imagens, já que “toda a imagem se dá a ver, todo o texto se dá a ler” (2004, p. 84-85). E os primeiros
aspectos que devemos considerar para a interpretação dessas fotografias de Vargas é a construção da
figura mítica em torno do presidente e o contexto de uma eleição em que o carisma passava a contar
de forma significativa para a legitimação dos atores no exercício político.
Há nessas imagens, que traduzem representações e tomam parte da construção simbólica de
um imaginário político, diversos elementos que colaboram para o entendimento da cultura política e
da produção de sentidos promovida pelo getulismo. Os efeitos de tais imagens na memória social só
podem ser apreendidos com um posterior desdobramento desse artigo, pois seria necessária uma pesquisa em outras fontes que sejam capazes de indicá-los. Entretanto, a historiografia já nos indica que a
construção de uma memória social sobre Getúlio Vargas passa pelas representações do líder enquanto
ser que teria ultrapassado os limites da política institucional, tornando-se uma espécie de herói mítico
capaz de provocar o amor e ódio citado por Flávio Tavarez (2004, p. 51). A imagem que parece ter
ficado gravada na memória social (e não estamos classificando em termos de verdade ou mentira) não
é a do ditador, mas a do líder que, trajando bombachas e segurando as rédeas, era capaz de conduzir o
governo do país com o mesmo carisma que o tornava um “amável companheiro para as belas tardes
campestres”.
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“O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA EM UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO
REFERÊNCIAS
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* Graduado em História pelo Centro Universitário La Salle – Unilasalle. Professor do Instituto Estadual de Educação Dr. Carlos Chagas, Canoas, RS. E-mail: [email protected].
237
MEMÓRIAS E AUSÊNCIAS NAS VEREDAS DO PASSADO: A ESTRADA DE
MANGARATIBA A SÃO JOÃO DO PRÍNCIPE COMO MONUMENTO
HISTÓRICO-AMBIENTAL
Cesar Augusto Ornellas Ramos *
O que é um monumento?
No contexto da trajetória das sociedades humanas, uma das preocupações mais presentes é a
produção de marcas, de indícios de sua passagem pelo mundo, símbolos legados à posteridade. Dentre
as várias manifestações de cunho simbólico, podemos ressaltar os monumentos como as mais perceptíveis, em virtude de sua concretude.
Artefato cultural, sinal sensível, vestígio das ações humanas, os monumentos são portadores de
discursos, de mensagens elaboradas no âmbito das interações sociais ao longo da História. Segundo
Peter Burke, originalmente os monumentos foram concebidos para perpetuar a memória dos “grandes
feitos”, geralmente políticos e/ou militares, não apenas para as futuras gerações, mas também e, sobretudo, para a reafirmação do discurso hegemônico (BURKE, 1991, p.17)
Considerando os monumentos como patrimônio cultural, podemos destacar que os mesmos
contribuem para a formação de identidades, cristalizando-as no espaço. Com base nas considerações
de Ulpiano Bezerra de Menezes, as identidades estão condicionadas à legitimidade social:
A identidade, quer pessoal, quer social, é sempre socialmente atribuída, socialmente
mantida e também só se transforma socialmente. Isto é, não se pode ser humano
por si, por representação própria: os valores, significações, papéis que me atribuo,
necessitam de legitimidade social, de confirmação por parte de meus semelhantes.
(MENEZES, 1984, p.33)
Numa concepção tradicional, os monumentos são artefatos criados para a apreciação pública, em logradouros, destinados à ostentação simbólica e à reafirmação de fundamentos ideológicos.
Dessa forma, a memória dos acontecimentos históricos e a evocação de personalidades, de “vultos
históricos”, são os temas preferenciais de tais obras. Imortalizar em pedra e cal, mármore e bronze, no
coração das cidades, recortes, versões construídas sobre a realidade.
Assim sendo, considerando os monumentos como obras que concretizam identidades e ponderando que um dos elementos fundamentais das identidades é a memória (MENEZES, 1984, p.33),
podemos argumentar que esta última oscila entre a seletividade e a indução, tanto no plano individual
como na esfera coletiva. Nesta perspectiva, podemos ressaltar pois que a visão positivista acerca dos
monumentos, calcada no “culto ao passado”, como modelo de valores, representa uma prática oposta a
concepção histórica, sendo esta última um processo dinâmico. Ainda de acordo com Ulpiano Bezerra
de Menezes:
MEMÓRIAS E AUSÊNCIAS NAS VEREDAS DO PASSADO: A ESTRADA DE MANGARATIBA A SÃO JOÃO DO PRÍNCIPE COMO MONUMENTO HISTÓRICO-AMBIENTAL
Exilar a memória no passado é deixar de entendê-la como força viva do presente
(...). Em outras palavras: a memória gira em torno de um dado básico do fenômeno
humano, a mudança. Se não houver memória, a mudança será sempre um fator de
alienação e desagregação. (MENEZES, 1984, p.34)
Observando os monumentos ainda pela ótica tradicional, podemos ressaltar que os mesmos
delimitam espaços, possuindo compromisso com a posteridade. Segundo Roberto Da Matta, tudo o
que se refere ao poder político, no contexto da sociedade brasileira, é “ conotado como duradouro e
eterno, marcado pelos monumentos e palácios” (DA MATTA, 1984, p.08). Dessa forma, os monumentos imortalizam , via de regra, alianças simbólicas entre o “intérprete e a massa”, ambos sujeitos
ao legado das determinações do passado e ao sistema de valores, partes integrantes de uma totalidade
interdependente.
Por outro lado, interpretando as propostas de Jacques Le Goff, podemos transcender o conceito
clássico de monumento, tomado não apenas como um artefato cultural, mas também como documento
histórico, como fonte a ser decifrada, analisada de acordo com parâmetros metodológicos definidos.
Com isto, a perspectiva memorialística, base da construção de identidades, passa por um processo de
requalificação, notadamente através da análise crítica documental. De acordo com Le Goff:
A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual e coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e
das sociedades de hoje. (...) Mas a memória coletiva não é somente uma conquista, é
também um instrumento de poder. (LE GOFF, 1996, p.476)
Ao lado da questão da singularidade, tão cara a uma visão tradicional dos monumentos, temos
a noção de representatividade das ambiências históricas e das paisagens, naturais e alteradas pela ação
antrópica, ampliando de forma significativa o conceito de monumento. Na presente concepção, não
apenas as estátuas em praça pública, os palácios e as igrejas seriam considerados como monumentos,
mas também os conjuntos arquitetônicos e os complexos paisagísticos naturais.
Por exemplo, no contexto do patrimônio cultural do Estado do Rio de Janeiro, em termos coloniais, podemos assinalar, no litoral sul fluminense, o conjunto arquitetônico do centro histórico de Paraty1, como altamente significativo para a compreensão da ambiência histórica de uma vila mercantil
do século XVIII. O traçado urbanístico setecentista mesclado ao casario da primeira metade do século
XIX, o posicionamento das igrejas, suas relações com o Rio Perequê-açu e com a enseada de Paraty,
fazem do referido conjunto paisagístico uma referência.
Envolvendo a mesma região, temos o Parque Nacional da Serra da Bocaina2, extensa unidade
de conservação ambiental, domínio privilegiado da floresta tropical atlântica. As matas locais, outrora
atravessadas por peabirus3 abertos por indígenas, também foram rasgadas, em princípios do século
XVIII, pelo Caminho Velho4, itinerário de tropeiros, trecho integrante da Estrada Real, via de penetração em áreas paulistas e mineiras, em tempos de exploração aurífera.
1
Antiga Vila de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty, fundada em 28 de fevereiro de 1667.
Unidade de conservação criada pelo Decreto nº 68.172 de 04 de fevereiro de 1971, situada entre os estados do Rio de
Janeiro e São Paulo, com área total de 134 mil hectares.
3
Trilhas antigas abertas na mata por comunidades indígenas, com a finalidade de estabelecer vias de acesso a regiões de
caça ou ainda ligar aldeias, tendo sido largamente aproveitadas pelos colonizadores.
4
Antigo caminho de escoamento do ouro oriundo das Minas Gerais, aberto por volta de 1701, ligando Paraty ao interior
do “Sertão do Rio das Velhas”, cercanias de Vila Rica, atual Ouro Preto-MG
2
240
Cesar Augusto Ornellas Ramos
Considerando o exemplo acima, podemos enfatizar que tanto o conjunto arquitetônico e urbanístico de Paraty como a Serra da Bocaina, com seus caminhos e veredas coloniais, em plena Mata
Atlântica, representam referências monumentais, notadamente pela ambiência paisagística evidenciada. Segundo Benedito de Toledo:
O monumento não se pode desligar da paisagem, urbana ou natural, que o rodeia.(...)
Existem paisagens, lugares, sítios e monumentos cuja conservação não pode levar-se
a cabo independentemente de um conteúdo espiritual próprio ou de um contexto
imaterial firmemente ligado aos mesmos. Por outras palavras: tal como uma paisagem
pode materializar a lembrança de um acontecimento, o bairro antigo de uma cidade,
para conservar todo o seu interesse cultural, não pode entender-se desligado de certas
características ambientais e vivenciais. (TOLEDO, 1984, p.29)
Ao compreenderemos tal ponto de vista, estaremos relativizando o primado dos monumentos
como registros de efemérides, nos quadros de uma História oficial e personalista. Convém ressaltar
que tal maneira de pensar não se trata de uma postura iconoclasta, mas sim de uma perspectiva de
análise histórica que valoriza a produção da cultura material de forma ampla, e não apenas a “parte”
destacada de um “todo” repleto de contradições e possibilidades.
Entretanto, um ponto estratégico a considerar consiste na percepção das paisagens urbanas e
naturais como monumentos, dotados de trajetórias e códigos próprios. As paisagens são dinâmicas,
transformam-se pelas interferências humanas e através de processos naturais. O que interessa aos
historiadores é identificar, estudar e compreender a “genealogia” das paisagens, contribuindo para sua
preservação. Segundo David Lowenthal: “as relíquias tangíveis sobrevivem em forma de acidentes
da natureza e artefatos humanos. A consciência de tais relíquias envolve o conhecimento adquirido
através da memória e da História.”(LOWENTHAL, 1985, p.238)
A educação do olhar sobre a cidade e sobre a natureza consiste no esforço de contestar a afirmação de que “sempre foi assim”, rótulo homogeneizante que, aliado à apologia do “novo”, muito tem
contribuído para a descaracterização de monumentos, tanto de artefatos culturais como de paisagens
naturais. As transformações são inexoráveis, variando de ritmo e intensidade, de acordo com elementos contextuais e conjunturais; contudo, o que consideramos essencial é a necessidade de rastrear suas
histórias, interpretando-as.
Monumentos como evocações: índices de memória
Considerando esta noção mais ampla de monumento, que incorpora os conjuntos arquitetônicos e as paisagens naturais, bem como suas respectivas ambiências, podemos argumentar sobre os monumentos como evocações, como verdadeiros índices de memória. Via de regra, os monumentos nos
remetem ao período histórico no qual foram erguidos e/ou percebidos, estabelecendo conexões entre
o observador e as representações de uma determinada época. As evocações são múltiplas, variando de
acordo com as formas de percepção dos monumentos, no decorrer das gerações.
Em termos de exemplificação, no âmbito do patrimônio histórico fluminense, podemos mencionar a Fortaleza de Santa Cruz da Barra, fortificação de origem colonial, erguida na entrada da Baía
de Guanabara, em sua margem oriental, no atual Município de Niterói. Originalmente uma pequena
241
MEMÓRIAS E AUSÊNCIAS NAS VEREDAS DO PASSADO: A ESTRADA DE MANGARATIBA A SÃO JOÃO DO PRÍNCIPE COMO MONUMENTO HISTÓRICO-AMBIENTAL
bateria construída por Villegagnon, em 1555, durante a presença francesa na região, em virtude da
fundação da França Antártica5, a fortaleza em questão foi lentamente ampliada e aperfeiçoada, ao longo de mais de três séculos, até sua última forma, definida por ocasião das obras de 1870.
Base de apoio fundamental para a defesa do Rio de Janeiro durante os períodos colonial e imperial, a referida fortificação foi citada em inúmeros relatos de viajantes como sendo inexpugnável.
Ao longe, sua silhueta na longínqua barra, evocava diferentes percepções em distintas épocas: cenário
de combates contra corsários e piratas; calabouço para presos políticos; referência de regozijo público
através das salvas de canhões (pelo nascimento de príncipes, casamentos imperiais, etc.); última edificação a ser vista pelos navegantes que velejavam no rumo do vasto oceano.
Nesta perspectiva, tomando-se os monumentos como evocações, como índices, como “janelas” para a compreensão de determinadas realidades históricas, podemos destacar que os mesmos são
recortes, fragmentos. De acordo com Jacques Le Goff:
O que sobrevive não é um conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha
efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da
humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado, os historiadores. (LE
GOFF, 1996, p.535)
Assim sendo, podemos observar que os monumentos, tanto os resultantes do trabalho humano,
como os definidos à partir das paisagens naturais, constituem a fixação de recortes, pontos de vista,
gestados e consolidados no interior de estruturas ideológicas, egressos de relações sociais, políticas
e culturais, datadas historicamente. Os monumentos são caminhos de acesso ao imaginário de uma
época, testemunhas físicas e determinadas maneiras de ver o mundo e a trajetória das sociedades humanas. Monumentos são formas de concretizar modelos, diante da passagem inexorável do tempo.
Entretanto, como já mencionamos, os mesmos foram produzidos/percebidos num contexto de classe,
revelando olhares e juízos de valor característicos de determinados segmentos sociais, projetados ou
não, numa esfera mais abrangente. Segundo as ponderações de Pierre Bourdieu:
A classe dominante é o lugar de uma luta pela hierarquia dos princípios da hierarquização: as frações dominantes, cujo poder se assenta no capital econômico, tem em vista impor a legitimidade de sua dominação, quer por meio da própria produção simbólica, quer por intermédio dos ideólogos conservadores. (BOURDIEU, 2001, p.12)
Contudo, apesar de identificarmos a hegemonia das elites dominantes, no âmbito da produção
simbólica referente aos chamados monumentos, digamos, mais comuns (estátuas e ermas em praça
pública, por exemplo), com o objetivo de reafirmar discursos de classe, não estamos limitados aos
mesmos, visto que temos como referência os monumentos como evocações de ideias e concepções
oriundas do trabalho humano, bem como das percepções sobre o mundo natural (ARENDT, 2001,
p.19). Assim sendo, buscamos relativizar as concepções elitistas acerca dos monumentos, valorizando
as interpretações do conjunto das sociedades acerca dos mesmos “índices” de memória. Os monumentos como documentos, detentores de gênese específica, porém, passíveis de múltiplas decodificações.
5
Colônia francesa estabelecida na Baía de Guanabara em 1555, com o patrocínio do Almirante Gaspar de Coligny,
calvinista, sob o comando de Nicolas Durand de Villegagnon. A fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, na
mesma região, em 1º de março de 1565, fez parte da estratégia portuguesa voltada para a expulsão definitiva dos franceses,
o que de fato ocorreu em 1567. Ver: LERY, Jean de. História de uma viagem feita à terra do Brasil também chamada
América [1579].
242
Cesar Augusto Ornellas Ramos
Como ilustração das reflexões acima, voltemos ao caso de Paraty. De vila tropeira seiscentista à porto estratégico para o escoamento do ouro das Minas Gerais até 1720; de entreposto cafeeiro
em meados do século XIX à “cidade morta”6 em fins do Oitocentos, redescoberta pelo turismo após
a abertura da Rodovia Rio-Santos, na década de 1970. Enfim, Paraty atravessou diversas fases socioeconômicas e políticas, momentos de prosperidade e decadência, desenvolvimento e imobilismo.
Abandono e revitalização. Tais fases deixaram marcas nas pedras polidas de suas ruas, em seus becos
floridos, nas fachadas de suas casas (da humilde “porta-e-janela” até os sobrados abastados), nos
campanários de suas igrejas, entre o verde do mar e o da Serra da Bocaina. Paraty foi tombada como
patrimônio histórico e artístico nacional em 1958. Dessa forma, “tornou-se” monumento, inscrito
em livros de tombo, notadamente pela singularidade de seu conjunto arquitetônico remanescente do
período colonial.
Diante do exemplo supra citado, um questionamento essencial deve ser aqui posicionado: Paraty “tornou-se”, de fato, monumento à partir de seu tombamento por instituições oficiais, no contexto
dos parâmetros de um discurso de preservação do patrimônio histórico, atrelado à política de reafirmação do estado nacional,através do resgate das “raízes” brasileiras,ou a mesma vila colonial já era
considerada veneranda, “monumental”, aos olhos dos caiçaras e tropeiros dos séculos XVIII e XIX ?
Justamente sobre tal indagação podemos refletir acerca das relações entre singularidade e ambiência monumental, enfatizando que os monumentos, enquanto evocações, não estariam circunscritos ao domínio das elites letradas ou ao universo da “história de bronze” do Estado. Traçados urbanísticos, conjuntos arquitetônicos, vias de comunicação, por exemplo, estão na esfera da execução
e da percepção coletiva dos espaços, sugerindo diversas possibilidades de interpretação, recortando
a realidade de acordo com parâmetros e concepções historicamente datadas. Em síntese, a noção de
monumento está atrelada a ideia de posteridade (LIMA,1986, p.271), de imortalidade, possibilitando
por vezes conexões entre as dimensões do “como era” e do “como foi lembrado”, sentido, transmitido
ou omitido no cotidiano das relações humanas.
A Estrada de Mangaratiba a São João do Príncipe: traço de união entre a dimensão histórica e o patrimônio ambiental
Ao percorrermos os caminhos remanescentes de outras épocas, nos deparamos com vestígios
do passado. Tais indícios podem ser objetivos como edificações, preservadas ou arruinadas, subjetivos, conservados na lembrança dos habitantes, ou ainda, mesclados aos novos usos, inseridos em
novos contextos, adquirindo novos significados. O viajante que esteja hoje na cidade de Mangaratiba,
litoral sul fluminense, e deseje atravessar a Serra do Piloto, na direção da cidade de Rio Claro, rumo ao
Vale do Paraíba, percorrerá invariavelmente a RJ-149, rodovia estadual recentemente asfaltada. Entretanto, a viagem em questão deve ser realizada de modo atento a paisagem, a começar pela própria
rodovia, pois suas características e contornos evocam a sua remota origem: a Estrada de Mangaratiba
6
Expressão que designa uma vila de comércio, outrora próspera, relegada à decadência econômica e social. Ver: LOBATO,
José Bento Monteiro. Cidades mortas [1918] São Paulo: Brasiliense, 1997.
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MEMÓRIAS E AUSÊNCIAS NAS VEREDAS DO PASSADO: A ESTRADA DE MANGARATIBA A SÃO JOÃO DO PRÍNCIPE COMO MONUMENTO HISTÓRICO-AMBIENTAL
a São João do Príncipe, uma das primeiras estradas de rodagem do Império do Brasil, construída entre
1843-1857.
Em termos históricos, a referida região foi uma área marcada por múltiplas ocupações. Originalmente habitada por nativos, notadamente pelos tupinambá, o território do litoral sul e do Médio
Paraíba foi sendo efetivamente colonizado à partir da primeira metade do século XVIII, inicialmente
pela abertura de fazendas policultoras e, posteriormente, pela implantação da cafeicultura, em fins do
século XVIII e princípios do século XIX.
Vila pioneira no cenário da expansão das lavouras de café na direção do Vale do Paraíba, São
João Marcos ou São João do Príncipe7 foi um relevante núcleo urbano, fundado em 1739, tornandose responsável pelo escoamento das safras através de veredas de tropeiros que cruzavam a Serra do
Piloto8, demandando os portos litorâneos, tais como Mangaratiba9, Ariró, Jerumirim e Mambucaba.
O café descia a serra em lombo de mulas cargueiras, por dias e dias, em longas e perigosas viagens,
percorrendo caminhos abertos sobre trilhas indígenas (peabirus) ou rumos assinalados na mata pelos
próprios tropeiros, seguindo roteiros mantidos pelo uso e pela tradição. Segundo Monsenhor Pizarro10:
A cana doce, mandioca, milho, arroz, legumes e café são ordinariamente os objetos
da cultura do país, cujas terras pródigas em suas produções, pagam com exuberância
os trabalhosos desvelos dos agricultores. Em todo o distrito da Freguesia [de São João
Marcos] criam os fazendeiros muitas varas de porcos e as carnes desses animais, cevados à milho, se preparam perfeitamente, podo-as em conserva para o sustento das
famílias, além da porção destinada para o comércio. Os efeitos do país se conduzem
à Cidade [do Rio de Janeiro] por caminho de terra firme. (PIZARRO, 1820, p. 205)
Um dos relatos mais antigos sobre a existência de um caminho trafegável na região de São
João Marcos nos foi legado pelo Barão Ludwig von Eschwege11, em 1810, denunciando as péssimas
condições de conservação dos velhos caminhos de tropeiros, bem como nos apresentando uma das
primeiras descrições do povoado de São João Marcos, pouco antes do mesmo ter sido elevado à categoria de Vila:
O arraial de São João Marcos é pequeno e o número de casas mal chega a 100, mas
mesmo assim querem elevá-lo à categoria de vila. Como lá não havia hospedaria, fui
para a casa que me indicaram, onde fui servido alternadamente pelo ajudante do regimento que lá residia e por um capitão. Como aqui se une a estrada principal, que vai
de São Paulo ao Rio de Janeiro, por ela voltei a esta última cidade. Mesmo tratando-se
da estrada principal, nada mais é do que uma miserável trilha gasta, que quase se torna intransitável após as chuvas fortes. (ESCHWEGE, 1818, p. 202)
Redutos de poderosas oligarquias de cafeicultores, em meados do século XIX as regiões
7
Povoado criado em 1739, na região do Médio Paraíba, com a denominação de São João Marcos, elevado à condição de vila, por
Alvará de 21 de fevereiro de 1811, com o nome de São João do Príncipe, em homenagem ao Príncipe Regente D.João, então futuro Rei
de Portugal (D.João VI)
8
Trecho da Serra do Mar, na região centro sul fluminense, divisor de águas com o Vale do Paraíba. A denominação da serra é muito
antiga e se refere ao ofício de piloto, cosmógrafo que integrava a tripulação dos navios, sendo responsável pela determinação dos rumos.
Em terra os pilotos atuavam como agrimensores.
9
Antigo aldeamento indígena, fundado pelos jesuítas em 1688, no litoral sul, com o nome de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba,
elevado à condição de vila em 11 de novembro de 1831.
10
Monsenhor José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo (1753-1830), bacharel em Cânones, clérigo visitador, autor da obra
“Memórias históricas do Rio de Janeiro” [1820]
11
Barão Wilhelm Ludwig Von Eschwege (1777-1855), geólogo germânico, autor de várias obras, dentre elas “Jornal do
Brasil” (1811-1817), pioneiro da metalurgia na América portuguesa.
244
Cesar Augusto Ornellas Ramos
de Mangaratiba e de São João do Príncipe eram politicamente chefiadas pela família Sousa Breves,
cujo representante mais famoso foi o comendador Joaquim José de Sousa Breves (1804-1889), denominado “Rei do Café”, senhor de inúmeras propriedades rurais e de centenas de escravos negros. Segundo Alberto Ribeiro Lamego12, a família Sousa Breves possuía mais de vinte fazendas e, de acordo
com a tradição, o viajante poderia transitar da fronteira com a Província de Minas Gerais até a restinga
da Marambaia13 sem sair dos domínios territoriais da família supra citada.
Com o fim do período regencial (1831-1840) e a consolidação da monarquia constitucional
no Império do Brasil, notadamente após a coroação do Imperador D. Pedro II, em 1840, o ambiente
político favoreceu a implantação de projetos no sentido de contribuir para o desenvolvimento econômico, com ênfase para a produção de matérias-primas e gêneros primários, no contexto da tradição
agrícola brasileira oitocentista. Uma das maiores preocupações do Governo Imperial e dos Presidentes
de Províncias era a ruptura do isolamento das áreas produtivas em relação aos núcleos consumidores
e/ou exportadores de gêneros, notadamente através da implantação de estradas gerais, muitas delas
aproveitando antigos caminhos coloniais.
Com o incremento da lavoura cafeeira na região do Médio Paraíba, por volta de 1843, durante
a gestão de João Caldas Viana como Presidente da Província do Rio de Janeiro (1843-1844), foi pela
primeira vez apresentada uma proposta de construção de uma estrada de rodagem para carroças e
carruagens, ligando Mangaratiba a São João do Príncipe. Tal projeto era apoiado pelos Sousa Breves
e seus aliados, pois tinha por finalidade viabilizar o escoamento mais eficiente da produção de café e
outros gêneros oriunda de fazendas existentes nas cercanias de São João do Príncipe, buscando atingir
inclusive a região de Barra Mansa. Assim sendo, em 30 de dezembro de 1843, o empreiteiro Bernardino José de Almeida arrematou o contrato para a execução das obras da Estrada de Mangaratiba,
obrigando-se a concluir os trabalhos no prazo máximo de dois anos.14
Segundo relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro, Aureliano de Sousa e Oliveira
Coutinho [Visconde de Sepetiba], encaminhado à Assembleia Provincial em 1º de março de 1846, as
condições da antiga vereda entre a Vila de São João do Príncipe e o “lugar do Piloto” não eram das
melhores:
Tendo ultimamente muitos cidadãos negociantes estabelecidos no lugar do Saco, termo de Mangaratiba, representado o péssimo estado em que se achava, em consequência das muitas águas, a parte da estrada que vai desde o lugar do Piloto, em São João
do Príncipe, até esta vila, a ponto de terem perdido muitos animais e sofrido prejuízos
na exportação de seus gêneros, encarreguei em data de 13 de janeiro último ao cidadão Joaquim José de Sousa Breves os reparos necessários nesta parte da estrada.15
(SOUZA, COUTINHO, 1853, p.27)
Após inúmeras interrupções nas obras da estrada, em consequência de problemas técnicos e
questões de natureza administrativa, bem como em virtude do falecimento do empreiteiro Bernardino José de Almeida, o então Presidente da Província do Rio de Janeiro, Luís Antônio Barbosa,
12
LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e a serra. Setores da evolução fluminense, v. 04. 3ª ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. p. 56
Uma das maiores restingas fluminenses, integrando o território de três municípios: Rio de Janeiro, Itaguaí e Mangaratiba, com cerca
de 42 km de praias, sendo um dos elementos definidores da Baía de Sepetiba. Atualmente mais de dois terços da restinga é administrada
pelo Exército, sendo área destinada a exercícios militares. Em sua porção noroeste existe uma comunidade remanescente de quilombos.
14
Relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro (Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho). Niterói: Tipografia de Amaral &
Irmão, 1853. p. 24
15
____________________________.(Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho). Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1853. p. 27
13
245
MEMÓRIAS E AUSÊNCIAS NAS VEREDAS DO PASSADO: A ESTRADA DE MANGARATIBA A SÃO JOÃO DO PRÍNCIPE COMO MONUMENTO HISTÓRICO-AMBIENTAL
encaminhou providências para o atendimento do clamor dos fazendeiros e negociantes de São João do
Príncipe: autorizou a fundação de uma empresa, a Companhia da Estrada de Mangaratiba, firmando o
contrato da mesma em 26 de fevereiro de 1855, sendo diretor da firma o desembargador Joaquim José
Pacheco. Tal empresa tinha como objetivo retomar a construção da estrada em pauta, ligando Mangaratiba a Rio Claro16, com prolongamento até Pouso Seco e Barra Mansa, de acordo com seu projeto
original. Além da retomada das obras, a referida companhia se comprometia em oferecer um serviço
de transporte de cargas e passageiros, mantendo para tanto linhas regulares de carroças e diligências.
O contrato em questão, respaldado na Lei Provincial nº 724, de 25 de outubro de 1854, apresentava rígidas condições, revelando a importância estratégica do caminho rodoviário em construção.
Por exemplo, a cobrança de multa se a empresa não cumprisse o cronograma de obras:
2ª condição – O empresário fica sujeito a uma multa de quatro contos de réis, imposta
pelo Governo Provincial, em favor dos cofres da Província, se dentro de seis meses,
contados da data do presente contrato, a companhia não se achar incorporada e não
se houver dado começo às obras da primeira seção da estrada, que é a de Mangaratiba
à Vila de São João do Príncipe.17 (BARBOSA, 1856, p.11)
O diretor da Companhia da Estrada de Mangaratiba, desembargador Joaquim José Pacheco, de acordo com as disposições contratuais, estava se comprometendo a construir uma estrada de
rodagem dentro dos mais modernos padrões técnicos da época, conforme a 14ª condição do contrato:
A estrada para se achar conforme o disposto no artigo primeiro, deverá ter, pelo menos, 32 palmos de largura [7,04 m], além das valetas e sua declividade longitudinal
não poderá exceder de um em vinte palmos, a exceção de certas distâncias, que não
excedam a 80 braças [176 m], nas quais poderá, em atenção as dificuldades do terreno, elevar-se a declividade até um em dezesseis (...) e o leito da estrada, em toda a largura, será calçado pelo sistema de Mac-Adam, como atualmente executado na estrada
normal de Petrópolis.18 (BARBOSA, 1856, p.11)
Ao longo das gestões de Luís Antônio Barbosa (1853-1857) e de Antônio Nicolau Tolentino
(1857-1858), a frente da presidência da Província fluminense, as obras da Estrada de Mangaratiba
prosseguiram, apesar dos grandes percalços, tendo sido inaugurada pelo Imperador D. Pedro II em 13
de julho de 1857. Entretanto, o trecho concluído compreendeu apenas a 1ª seção do projeto original,
entre o cais de Mangaratiba e a Vila de São João do Príncipe, tendo aproximadamente 4 léguas e ½ de
extensão [29,7 km]. A 2ª seção, que ligaria esta última vila a Rio Claro e daí chegaria a Barra Mansa,
apesar de iniciada, permaneceu inconclusa.
De acordo com o relatório do engenheiro-chefe da Estrada de Mangaratiba, E.B. Webb, datado
de 02 de maio de 1857, apesar dos trabalhos de construção da 1ª seção terem quase atingido a sua fase
final, as dificuldades com o terreno e a falta de madeira causavam atrasos consideráveis às obras:
Um dos armazéns na Vila de São João do Príncipe está pronto e o outro devia estar
acabado, porém, as demoras efetuadas pelos embaraços a respeito do terreno tem
atrasado tudo. Hoje este armazém está em progresso. Nesta divisão a estrada sobe até
a altura de 2.314 palmos [509,8 m] acima do nível do mar, e então desce até a Vila de
São João do Príncipe, onde a altura é de 1.939 palmos [426,58 m] (...) Diariamente
16
Atual Rodovia RJ-149, recentemente asfaltada em grande parte de seu percurso, com exceção dos trechos de interesse histórico, nos
quais o revestimento oitocentista foi parcialmente preservado.
17
Relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro (Luís Antônio Barbosa). Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1856. p. 11
18
__________ (Luís Antônio Barbosa). Niterói: Typographia de Amaral & Irmão, 1856. p. 14
246
Cesar Augusto Ornellas Ramos
por toda a extensão da estrada, andam carroças sem obstáculos. Há pedras deitadas
para o capeamento ou macadam que falta, mas a estrada é tão larga (38 palmos, com
os esgotos) que a passagem está livre. Não tem passado o Ribeirão das Lages carros ou
carroças cheios, por falta de madeira.19 (TOLENTINO, 1857, p.04)
Durante a finalização das obras da 1ª seção da estrada, uma demanda judicial contribuiu para
o atraso ainda maior das mesmas, pois a viúva de Bernardino José de Almeida, que em 1843 era o
empreiteiro responsável pelas obras da referida estrada, questionou os direitos e os trabalhos técnicos
da Companhia da Estrada de Mangaratiba, visto que o contrato com o falecido Bernardino não havia
sido revogado e a viúva em questão prosseguia com as obras da estrada, num trecho oposto as obras
da Companhia, esperando receber indenização do Governo Provincial. As contendas se prolongaram,
ao lado de denúncias que resultaram no declínio da credibilidade da empresa dirigida por Joaquim
José Pacheco. O contrato pendente com a viúva de Bernardino Almeida foi revogado pelo Governo da
Província do Rio de Janeiro, em 30 de março de 1856, ficando a Companhia responsável pelo pagamento da indenização. As obras da 2ª seção foram paralisadas. A estrada foi hipotecada como garantia
para o pagamento de dívidas da empresa construtora, em atendimento aos protestos de seus acionistas.
No trecho concluído e aberto ao tráfego de carruagens, seges, carroças e diligências, as reclamações eram muitas. De acordo com as impressões de Luís Alves Leite de Oliveira Belo, Presidente
da Província do Rio de Janeiro (1861-1863), os usuários da Estrada de Mangaratiba manifestavam
frequentes insatisfações, seja pelo excesso de tarifas , seja pela insuficiência de viaturas para o transporte de gêneros:
Muitas queixas, porém, se tem levantado contra o modo por que é cobrada a taxa fixada (...) Queixam-se os negociantes de Mangaratiba e os fazendeiros de serra acima de
que a companhia, possuindo vinte carros unicamente, não pode transportar todos os
seus gêneros; e que são obrigados a fazer seguir suas tropas ainda para Mangaratiba;
que as taxas neste caso são custosas e pesadas. Porque se cobra 10 réis por arroba [15
kg] e mais a taxa dos animais; que menos oneroso lhes é procurar, ainda que mais
longínquos, os portos de Jurumirim e Itaguaí; que de mais a mais arbitrariamente se
marca taxa pelos gêneros de importação.20 (BELO, 1861, p. 112-113)
Convém ressaltar que o declínio e posterior abandono da Estrada de Mangaratiba, na década de
1860, ocorreu ao mesmo tempo em que os trilhos da Estrada de Ferro D.Pedro II chegavam a Barra do
Piraí, por volta de 1864. Por ligar diretamente o Vale do Paraíba ao Rio de Janeiro, tal ferrovia representou um importante fator de impulsão da cafeicultura, visto que os carregamentos e o escoamento
das safras passaram a ser efetuados de maneira mais rápida e economicamente menos onerosa.
Um dos relatos mais detalhados sobre a Estrada de Mangaratiba a São João do Príncipe foi
redigido em 1876, pelo então Bispo do Rio de Janeiro, D.Pedro Maria de Lacerda21, durante uma de
suas visitas pastorais ao sul da Província do Rio de Janeiro. Além das impressões acerca do estado
geral das freguesias visitadas, os escritos do bispo são ricos em descrições das características naturais,
paisagísticas e, principalmente, de cunho social. Partindo de Mangaratiba, a cavalo, o clérigo fez sua
19
WEBB, E.B. Exposição sobre o estado dos trabalhos da Estrada de Mangaratiba, apresentada ao Exmº Sr. Presidente da Província do
Rio de Janeiro, pelo engenheiro chefe da mesma. São João do Príncipe, 02 de maio de 1857. IN: Relatório do Presidente da Província
do Rio de Janeiro (Antônio Nicolau Tolentino). Niterói: Typographia de Amaral & Irmão, 1857. Anexos. p. 04
20
Relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro (Luís Alves Leite de Oliveira Belo). Niterói: Typographia de Amaral & Irmão,
1861. p. 112-113
21
D.Pedro Maria de Lacerda (1830-1890), Conde de Santa Fé, Bispo do Rio de Janeiro de 1868 a 1890.
247
MEMÓRIAS E AUSÊNCIAS NAS VEREDAS DO PASSADO: A ESTRADA DE MANGARATIBA A SÃO JOÃO DO PRÍNCIPE COMO MONUMENTO HISTÓRICO-AMBIENTAL
ascensão à Serra do Piloto, no rumo da então Vila de São João do Príncipe, registrando de forma pormenorizada o que via pelo caminho, num momento em que a estrada em pauta já se encontrava em
declínio, relegada ao atendimento das demandas locais.
Concluída a planície, começamos a subir a serra [do Piloto] e encontramos umas 6
ou 8 carroças que levavam carga para a Vila de São João do Príncipe. Esta estrada é a
melhor que conheço no Brasil, depois da União e Indústria; é larga e de suave declive;
podem por ela subir e descer seges, mas na atualidade carece de reparos em algumas
partes. (...) É diferente da antiga e velha, por onde subiu Monsenhor Pizarro, que tanto se queixou dela, como li em um seu manuscrito. (LACERDA apud LEMOS, 1987,
p.349)
Considerando as formas de transporte de cargas e passageiros existentes na então Província do
Rio de Janeiro, no decorrer de meados do século XIX, encontraremos a antiga tradição dos tropeiros
que conduziam suas tropas de mulas pelos caminhos e veredas, estabelecendo, por vezes, conexões
com trapiches e embarcadouros fluviais ou marítimos. Ao lado de tal sistema, herança do período
colonial, vamos encontrar a implantação de estradas de rodagem, notadamente para o trânsito de
carroças, carruagens, seges e diligências. Somente a partir da década de 1860 a malha ferroviária começou a ganhar relevância no contexto imperial brasileiro, principalmente após os empreendimentos
de Irineu Evangelista de Sousa (1813-1889), Barão e Visconde de Mauá, responsável pela construção
das primeiras estradas de ferro no Brasil.
A Estrada de Mangaratiba a São João do Príncipe foi a concretização, por um período efêmero, de um determinado modelo de sistema viário em terras fluminenses. Anterior a implantação das
ferrovias e buscando retificar antigos caminhos coloniais, o modelo em pauta simbolizou o poder do
baronato do café, pois a estrada foi construída por influência das famílias Almeida Portugal e Souza
Breves, grandes proprietárias rurais escravistas, pioneiros da cafeicultura na região, no contexto oitocentista. Segundo Maria de Fátima Gouvêa:
O trabalho de construção enfrentou várias adversidades, fazendo com que a estrada
alcançasse apenas o município de São João do príncipe, uma distância de apenas 30
km [de Mangaratiba]. Apesar disso, a estrada, parcialmente construída, trouxe um
considerável grau de recuperação econômica para a região de Mangaratiba. Entretanto, esse quadro teve curta duração, pois a chegada da Estrada de Ferro D.Pedro II
ao Vale do Paraíba estabeleceu uma completa reorientação do tráfego em direção aos
meios de transporte mais eficientes, deixando o porto de Mangaratiba numa dramática posição. (GOUVÊA, 2008, p.52)
A referida estrada atravessa atualmente uma parte significativa do Parque Estadual Cunhambebe , importante unidade de conservação ambiental no território fluminense. A área na qual foi
implantado o parque em questão, abrangendo porções dos municípios de Itaguaí, Mangaratiba, Rio
Claro e Angra dos Reis, apresenta um relevante conjunto de características ambientais e históricas de
grande representatividade. Em termos da biodiversidade, o Cunhambebe estabelece ligações entre o
Parque Nacional da Serra da Bocaina e a Terra Indígena do Bracuí, contribuindo para a preservação
de espécies da flora e da fauna, através da manutenção da diversidade genética no âmbito das mesmas.
22
Apesar de ter sido asfaltada em grande parte, a antiga estrada imperial ainda conserva trechos
22
Unidade de conservação fluminense criada pelo Decreto Estadual nº 41.358 de 13 de junho de 2008, possuindo cerca de 38 mil
hectares, nos quais ainda existem expressivas áreas remanescentes da Mata Atlântica, sobretudo, a partir da cota 100 m acima do nível
do mar. A denominação foi uma homenagem ao cacique tupinambá Cunhambebe, líder da Confederação dos Tamoios (1560)
248
Cesar Augusto Ornellas Ramos
originais, sobretudo nas cercanias das ruínas da Vila de São João do Príncipe, atualmente integrantes
do Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos23, inaugurado em 2011, em terras da Light
S.A., revelando um grande potencial para o desenvolvimento de projetos de educação patrimonial e
ambiental. Ambos os parques, por suas características peculiares, apresentam condições favoráveis ao
resgate da função social dos monumentos, sejam históricos ou naturais, compreendidos não apenas
como marcos de identidade, mas, sobretudo como núcleos difusores de conhecimento, cultura e bem
estar para o conjunto da sociedade.
Em suma, no artigo em questão procuramos refletir sobre a relevância da preservação de sítios históricos, integrados às unidades de conservação ambiental, exemplificada pelos esforços de
pesquisa em torno da Estrada de Mangaratiba a São João do Príncipe, antiga trilha de tropeiros, incorporada em parte ao traçado da estrada provincial, em meados do século XIX. Desde a criação do
Parque Estadual Cunhambebe, em 2008, tanto o INEA (Instituto Estadual do Meio Ambiente), como
instituições privadas dedicadas a implantação de projetos de conservação ambiental, vem articulando
ações no sentido de transformar a referida via numa “estrada parque”, dotada de sinalização especial
e de infraestrutura adequada para a recepção de visitantes, bem como para a realização de pesquisas
científicas voltadas principalmente para o estudos históricos, antropológicos, geológicos, da flora e da
fauna, além de iniciativas relevantes no campo da educação ambiental / patrimonial.
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LAMEGO, Alberto Ribeiro.O homem e a serra. Setores da evolução fluminense, v. 04. 3ª ed. Rio de
Janeiro: IBGE, 2007.
23
Parque histórico-ambiental, com 930 mil m², criado em 09 de junho de 2011, no Município de Rio Claro-RJ, nas
cercanias da represa de Ribeirão das Lages, área da antiga Vila de São João do Príncipe, demolida em 1941. Importante
conjunto de sítios arqueológicos, com relevância histórica e ambiental.
249
MEMÓRIAS E AUSÊNCIAS NAS VEREDAS DO PASSADO: A ESTRADA DE MANGARATIBA A SÃO JOÃO DO PRÍNCIPE COMO MONUMENTO HISTÓRICO-AMBIENTAL
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1996
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RELATÓRIO DO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO.(Aureliano de Sousa e Oliveira) Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1853
RELATÓRIO DO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO.(Luís Antônio Barbosa)
Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1856
RELATÓRIO DO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO.(Antônio Nicolau Tolentino) Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1857
RELATÓRIO DO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO.(Luís Alves Leite de Oliveira Belo) Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1861
* Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense-UFF. Professor pesquisador do
Centro Universitário La Salle do Rio de Janeiro (Unilasalle), em Niterói-RJ. Coordenador do Laboratório de História do Brasil e do Laboratório de Estudos do Patrimônio Cultural – LEPAC.
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LIBROS Y EDITORIALES: ¿REGISTRO Y DOCUMENTACIÓN DE LA CULTURA
INMATERIAL?
Jenny González Muñoz *
Introducción
El término cultura describe el “cultivo” de algo material o inmaterial, lo cual tiene que ver con
la capacidad creadora y la consecuente necesidad de labrar, ejercitar, preservar, en concordancia con
los avatares y circunstancias del tiempo y el espacio.
Etimológicamente alude al cultivo de la tierra, así como al cultivo de las artes, porque
el intelecto sólo dará frutos intelectuales y aun espirituales, sólo si se cultiva apropiadamente. La cultura como conocimiento refiere igualmente a un conjunto de saberes
más o menos estructurados en diversos soportes y que se atesoran por cuanto constituyen un acervo para una determinada sociedad. (CRUZ, 2007, p. 99)
La cultura es catalogada como una serie de conocimientos que han nacido desde la creación
intelectual que se genera desde el propio sentir (de allí lo espiritual) en franca conjunción con un engranaje social que la cataloga, la sostiene, la ve como suya, por cuanto en ella radica su proceso hacia
la concreción de la identidad nacional, regional e incluso local.
Desde el punto de vista antropológico la cultura es vista como un contexto social en el que se
manifiestan acontecimientos a través de signos y símbolos (Geertz, 1992), teniendo en cuenta que éstos obedecen al entorno, contexto y temporalidad de los pueblos involucrados en el proceso cultural.
Kroeber y Kluckhohn (1952 apud BARTOLOMÉ 2006), definen la cultura como “pautas de comportamientos, explícitas o implícitas, adquiridas o transmitidas mediante símbolos” (p. 90), estos “símbolos”, pueden ser incluso objetos tales como construcciones arquitectónicas, esculturas, cerámica,
entre otros. En tanto, Bartolomé (2006) acota que:
(…) la tradicional concepción antropológica de la cultura de comienzos del siglo XX,
que la entiende como el conjunto de técnicas e ideaciones que nuestra especie ha desarrollado para adaptarse al medio ambiente y que reemplazan o tienden a reemplazar
el determinismo biológico de los instintos. Es decir que la cultura es la naturaleza del
hombre y base de su potencial adaptativo. (p. 90)
Según el citado investigador la necesidad de adaptación del ser humano es lo que lo ha
llevado a utilizar una serie de “técnicas e ideaciones” que le ayudan en ese proceso, maximizando
sus capacidades tanto individuales como sociales. La cultura, entonces, se convierte en una especie
de tabla de salvación que el mismo ser humano crea para preservar su existencia en el mundo. Estas
“técnicas e ideaciones”, incluyen, por supuesto, las manifestaciones que tienen que ver tanto con lo
netamente espiritual (lo llamado inmaterial), es decir, mitos, ritos, ceremonias, como con lo material,
construcciones y creación de herramientas e instrumentos de carácter utilitario o no, lo cual engloba a
LIBROS Y EDITORIALES: ¿REGISTRO Y DOCUMENTACIÓN DE LA CULTURA INMATERIAL?
los símbolos y signos de los que habla Clifford Geertz.
Desde el punto de vista de la Historia, la cultura va de la mano con el arte y la conservación
de los bienes patrimoniales, entendiendo por estos no solamente aquellos relacionados con procesos
artísticos, sino también los que se manifiestan a través de la naturaleza aprehendida por el hombre
como agregado imprescindible en el desarrollo de su vida. Así, el patrimonio se convierte en un garante que hace perdurar en el tiempo la huella de las diferentes formas culturales que ha ido creando
el ser humano, lo cual lo lleva, sin lugar a dudas, a un acercamiento a los cambios y evoluciones que
han sostenido las diferentes sociedades.
En los textos recogidos por la UNESCO emanados de las conclusiones de la Conferencia
Mundial sobre las Políticas Culturales (México, 1982), de la Comisión Mundial de Cultura y Desarrollo (1995) y de la Conferencia Intergubernamental sobre Políticas Culturales para el Desarrollo
(Estocolmo, 1998), se considera a la cultura como:
la unión de rasgos distintivos espirituales y materiales, intelectuales y afectivos que
caracterizan a una sociedad o un grupo social y engloba tanto las artes como las letras,
los modos de vida, las facetas de la vida incluso, los sistemas de valores, las tradiciones
y las creencias. (UNESCO, 2001, p. 4).
De esto se puede inferir que cultura es todo aquello que hace el ser humano, incluso en sus
momentos más íntimos. Es un condicionante social del hombre y su hechura según sus necesidades
como ser social, por ello se desenvuelve y evoluciona de distintas maneras.
Pero más allá de esto, los procesos culturales son institucionalizados siendo objeto de normatizaciones, entrando a escena la concepción de patrimonio, en este sentido, el grupo de investigadores
que colaboran en los textos de la Revista Amanecer en Los Andes, editada por la Comisión de Desarrollo y Medio Ambiente de América Latina y El Caribe (1997) devela:
(…) si la cultura es el conjunto de las formas de comportamiento de los pueblos, el
patrimonio cultural debe entenderse más allá del arte (...) es la capacidad de transformar y administrar recursos y medios; las tendencias ancestrales en la selección de los
asentamientos y las redes de articulación económica; el conocimiento empírico y las
ciencias acumuladas en el manejo de plantas curativas o alimenticias o en el uso de
recursos construidos y la evocación colectiva en el trabajo y la distribución. (p. 63).
Dicha normatización no quiere decir que vise estatizar las manifestaciones de los pueblos, pero
si busca una organización que, como dice la cita anterior, va más allá del mero hecho artístico. En lo
que se refiere concretamente al patrimonio cultural como tal, éste ha sido catalogado como material o
inmaterial, aunque evidentemente ya es harto conocido que intentar hacer un distanciamiento rígido
de ambas categorías sería una tarea imposible, aparte de peligrosa, puesto que uno se complementa
con el otro, “la clasificación del patrimonio cultural en material e inmaterial no es tajante, pues uno
y otro se entrelazan” (GALLART, 2008, p. 10,) aun así, a la hora de hacer procesos de registro y documentación dicha diferenciación es necesaria, tal como se verá más adelante.
Registro y documentación del patrimonio cultural inmaterial: juegos de distancias
Las propias características de la cultura inmaterial, al englobar ceremonias, música, rituales,
252
Jenny González Muñoz
sistemas de creencia, mitos, leyendas, danzas, entre otras cuestiones que están íntimamente relacionadas con la simbología, en el trabajo de registro y documentación, obliga a observar y entender dichas
manifestaciones desde perspectivas distintas a la cultura material. En el ámbito internacional durante
las últimas décadas del siglo XX con extensión a lo que va del XXI, instituciones tanto gubernamentales como no gubernamentales han venido haciendo un esfuerzo para maximizar los instrumentos en
este respecto, pues a partir de ello se desarrolla también un trabajo necesario de salvaguarda, cónsono
con lo establecido en la Convención para la salvaguarda del patrimonio cultural inmaterial (Paris,
2003) y las normativas pertinentes de acuerdo a las necesidades y características de cada nación, como
es el caso de Venezuela con la existencia de la Ley de Protección y defensa del Patrimonio Cultural
(1993).
Cuando se habla de patrimonio cultural se hace referencia al acervo de elementos tanto materiales como inmateriales, que conforman la identidad de un pueblo, puesto que sus miembros se apropian de ellos construyendo una suerte de cofradía en la que el sentido de pertenencia está presente en
todos los momentos de la vida y de la muerte1, tal las emergencias políticas, económicas, sociales de
la contemporaneidad, pero también en aquellas que conforman los trazos históricos heredados de los
antepasados, o las que se sitúan por medio de las simbologías religiosas, creencias, rituales, y demás.
Esos elementos que cada sociedad considera suyos los toma más aun cuando se enfrenta a adversidades (BONFIL, 1999) como desastres naturales, guerras, migraciones masivas de desplazados; como
aconteció en la época de la instauración de la esclavitud de la mano de obra africana en tierras de
América cuando los esclavizados se aferraron a su cultura inmaterial para sostener su propia identidad
cultural; en la contemporaneidad, los pueblos desplazados, por ejemplo, hacen lo propio llevando sus
costumbres, tradiciones, vestimentas, música, creencias, ceremonias, a los nuevos espacios donde
comienzan a hacer vida. De esta manera, se van conformando otras formas de memoria y de llevar a
cabo las diversas manifestaciones de la cultura inmaterial, de allí la importancia, tanto de la declaratoria de patrimonio como de un registro y una documentación pertinentes puesto que la característica
de dichos procesos culturales está en continuo dinamismo. Así el proceso de patrimonialización es
trascendental pues responde a una demanda social de memoria (GIMÉNEZ MONTIEL 2007 apud
ARIZPE 2008), ya que las incesantes transformaciones pueden traer como consecuencia la desvirtualización de lo tradicional, llegando a ser olvidado o suplantado.
Siendo el patrimonio cultural los bienes que una sociedad produce y define conscientemente
(IPC, 2001) se debe entender, entonces, que no conforma la totalidad de las creaciones sociales, a
pesar de la existencia de diversos tipos de patrimonios relacionados con la cultura, entre los que se
cuenta los arqueológicos, muebles, y lo que se ha llamado “patrimonio vivo” que es:
el conjunto de manifestaciones humanas, tales como las tradiciones, costumbres, vivencias, folklore, ritos, creencias, música, vestido, calzado, tecnología, tesoros humanos vivos, lenguas, entre otros. Este es el término manejado por la ley venezolana y
por el Instituto de Patrimonio Cultural, la UNESCO lo llama patrimonio inmaterial.
(IPC, 2001, p. 8)
Cabe destacar que dicha denominación obedece a la condición dinámica y no a las personas
físicas vivas que tanto lo producen como la portan, e incluso a aquellas que han sido detectadas patrimonio formando parte del inventario regional y/o nacional. Tomando en cuenta lo dicho, y añadiendo
que el patrimonio cultural en si es “sólo una selección valorizada de la misma [la cultura] que funge
253
LIBROS Y EDITORIALES: ¿REGISTRO Y DOCUMENTACIÓN DE LA CULTURA INMATERIAL?
como simbolizador privilegiado de sus valores más entrañables y emblemáticos” (ARIZPE, 2008, p.
28), se hace más importante aun registros y documentación cónsonos con las características nombradas. En este sentido, la experiencia venezolana es interesante porque se vincula al trabajo realizado
por el Instituto de Patrimonio Cultural (IPC) y el Centro de la Diversidad Cultural (CEDIVER), ambos pertenecientes al Ministerio del Poder Popular para la Cultura, instituciones que tienen a su cargo
velar por el patrimonio cultural. Entre sus objetivos el IPC lleva a cabo Registro General del Patrimonio Cultural del país, acotado a su vez en la Ley de Protección y Defensa del Patrimonio Cultural y su
Reglamento (2005), teniendo por objeto la “identificación de todo aquello que es característico y significativo para la identidad cultural de los venezolanos, en correspondencia a sus valores artísticos,
históricos, plásticos, ambientales, arqueológicos, paleontológicos o sociales”. (p. 49) En este punto
es interesante el inventario que se ha realizado de los diversos tipos de patrimonio publicados en 336
cuadernos, fuente de los resultados del censo patrimonial 2004-2007, elaborado por empadronadores
focalizados por municipios en cada una de las entidades federales del país. Por su parte, el CEDIVER
en su oficina de Gestión de Colecciones, realiza el archivo, registro y documentación del patrimonio
cultural inmaterial contenido en sus compilaciones fotográficas, audiovisuales, bibliográficas, etnográficas, correspondientes a 28 países de América Latina y El Caribe. (GONZÁLEZ-MUÑOZ, 2012)2
La existencia de instrumentos de registro de patrimonios como el instructivo que regula el Registro General del Patrimonio Cultural venezolano y los bienes que lo integran, incluido en la citada
Ley de Protección y Defensa del Patrimonio Cultural3 y las herramientas tecnológicas, también de
documentación, de CEDIVER constituyen avances significativos, incluso aunque pudieran aun tener
sus fallas4, en los trabajos que apuntan a la salvaguarda de las diversas manifestaciones de la cultura
inmaterial.
No obstante, a raíz de las rupturas de paradigmas cada día más crecientes en las diferentes áreas
del conocimiento humano, la incorporación de otras alternativas de registro y documentación se alzan
como propuestas de mayor alcance a nivel global, tal es el caso del libro y las editoriales.
El libro como herramienta de registro del patrimonio cultural inmaterial
En el año 1974 el intelectual uruguayo Ángel Rama y el político y escritor venezolano José
Ramón Medina, crean la editorial Biblioteca Ayacucho5, teniendo como objetivo principal la publicación de clásicos latinoamericanos y caribeños para difundir las obras más relevantes en diversas áreas
del conocimiento político, social, filosófico, artístico, literario. La editorial nace con un libro de suma
importancia para la transformación política de parte de América: Doctrina del Libertador, de Simón
Bolívar, abriendo así las puertas a una nueva manera de ver la integración latinoamericana pensada
por los héroes libertarios. Luego, la Colección Clásica comienza un proceso de inclusión de textos
que van desde la literatura indígena prehispánica hasta los tratados políticos de temáticas en boga en
el siglo XXI.
En el discurso pronunciado por Ernesto Sábato en el acto de instalación del “Encuentro de
Escritores e Investigadores de la Cultura Latinoamericana”, celebrado en Caracas el 18 de noviembre
de 1975 con motivo de la puesta en marcha de la Biblioteca Ayacucho, editado bajo el nombre “Libros y liberación” e incluido en la parte preliminar del Catálogo 1974-20076 de Biblioteca Ayacucho,
254
Jenny González Muñoz
el escritor argentino, hablando del rol que ha tenido el quehacer literario a lo largo de los diferentes
procesos históricos de la cultura occidental, plantea:
No sólo la obra de liberación política y social ha de provenir de los libros, sino que,
a mi juicio, la salvación del hombre puede provenir de nuestra literatura de ficción.
No porque yo quiera sobrevalorar el oficio a que estoy condenado, sino porque las
literaturas latinoamericanas, como en otro tiempo fue la rusa y luego la norteamericana, son, en sus más grandes expresiones, literaturas de salvación, ya que tratan
del hombre y su destino, del sentido o sin sentido de su existencia, de la esperanza y
de la muerte. Grandes y permanentes temas metafísicos que hacen la salvación de la
criatura humana. (p. 13)
Esas palabras del autor de Sobre héroes y tumbas (número 117 de la Colección Clásica de Biblioteca Ayacucho), describen el verdadero papel del libro un cúmulo de conocimientos que se puede
hacer presente de diversas maneras y abarcar cantidad de contextos, y en esa “salvación” del ser humano se traduce en la conservación de su historia, en registrar su memoria colectiva y social, lo cual
es parte de la cultura inmaterial, logrando en el libro una herramienta significativa. Dice Borges en la
Biblioteca de Babel:
Cuando proclamó que la Biblioteca abarcaba todos los libros, la primera impresión
fue de extravagante felicidad. Todos los hombres se sintieron señores de un tesoro
exacto intacto y secreto. No había problema personal o mundial cuya elocuente solución no existiera en algún hexágono. El universo estaba justificado, el universo bruscamente usurpó las dimensiones ilimitadas de la esperanza. (BORGES, 2004, p. 124)
El caso de Biblioteca Ayacucho ilustra de manera clara cómo teniendo al libro como soporte,
las diversas temáticas focalizadas en textos específicos son registradas, asimismo el pensamiento de
los autores, la situación del momento, los saberes de los pueblos, el contexto, permitiendo a los lectores e investigadores hacer un arqueo de datos de las manifestaciones del patrimonio cultural inmaterial
desde México hasta Argentina, pasando por naciones del Caribe como Cuba, Puerto Rico, República
Dominicana y Haití, por medio de lo registrado no solo en los textos de los autores como tal, sino en
los trabajos preliminares, estudios comparativos, cronologías, presentados.
Para registrar el patrimonio cultural inmaterial, además de la utilización obligatoria de las fichas, se precisa incluir un análisis de contenido cualitativo desde el punto de vista de la valorización
social de la expresión cultural, Además las tareas de registro de patrimonio deben estar sustentadas en
un proceso investigativo y analítico, constituyendo un registro capacitado para ser conservado en el
tiempo, más allá de la tradición oral, pero de no haber dicho trabajo de documentación, el libro mismo
pasaría de ser una potencial herramienta de registro y documentación para convertirse en un mero
objeto de colección.
Como ejemplo se puede tomar el libro Literatura maya, número 57 de la Colección Clásica
de la citada editorial. Este tomo compone un verdadero registro de la tradición oral de dicho pueblo
ancestral ya que recoge textos como el Popol Vuh, el Chilam Balam de Chimayel, Rabinal Achí, las
Historias de los Xpantzay, documentándolos por medio de análisis preliminares. Siendo las artes escénicas uno de los componentes de la cultura inmaterial, se puede leer lo siguiente:
Entre los mayas de Yucatán había también espectáculos teatrales, con cierto predominio del ademán sobre la palabra, y estrechamente ligados a la música, a juzgar por
lo que de ellos nos dicen los cronistas e historiadores. Fray Diego de Landa, a quien
255
LIBROS Y EDITORIALES: ¿REGISTRO Y DOCUMENTACIÓN DE LA CULTURA INMATERIAL?
cita Lopez de Cogolludo en su Historia de Yucatán, afirma que Chinchén Itzá “tenía
delante la escalera del Norte, algo aparte, dos teatros de cantería pequeños de cuatro
escaleras y enlosados por arriba, en que dicen representaban las farsas y comedias
para solaz del pueblo”. (GARZA, 1992 p. 292)
La información precedente está hecha con la finalidad de ubicar al lector en el tema para, o bien
ampliar sus conocimientos o explicar lo desconocido, no obstante, constituye una forma de documentar los textos mayas recopilados y publicados en el libro. Más delante se lee:
La obra que aparece a continuación, se representó periódicamente, a lo largo de los
tres siglos que duró el dominio de España en esta parte del continente americano. Posiblemente las autoridades eclesiástica y civil – que no desterraron por completo esta
clase de espectáculos, en Mesoamérica – permitieron, y aun estimularon, esas representaciones. Algunas de ellas formaban parte de las diversiones públicas, y se repetían
anualmente, el día del santo patrono, en la festividad de cada lugar se conservaron
esas tradiciones. (Ibidem, p. 293)
Cita que devela una parte de la historia del pueblo maya en materia de artes escénicas, enriqueciendo el carácter documental del texto preliminar que, como se acotó no está concebido con la
intención de hacer dicho trabajo, pero indudablemente es una herramienta excelente que, combinada
con el hecho de editar el Rabinal Achí, se transforma en una forma de registro y documentación del
patrimonio cultural inmaterial de dicho pueblo ancestral, instaurado en sus mitos y leyendas.
Bien es sabido que los cronistas se Indias se dieron a la tarea de registrar por medio de sus escritos, los acontecimientos históricos de los pueblos indígenas, constituyéndose sus documentos fuentes para investigaciones sobre las culturas precolombinas, mas aun en lo que respecta a civilizaciones
que sostuvieron sus bases culturales en la tradición netamente oral. Los textos de Huamán Poma de
Ayala, Pedro de Cieza de León, el Inca Garcilaso de la Vega, per se ya constituyen un registro, de manera que la incorporación de análisis contemporáneos sustentados a partir de las nuevas terminologías
y la apertura hacia el diálogo intercultural, son de vital importancia para ampliar las perspectivas de
documentación respecto a la etnohistoria de los pueblos indígenas, tanto precolombinos como los que
están presentes en la contemporaneidad, ya que tanto ellos como la diversidad de idiomas originarios,
han sido elevados a calidad de patrimonio cultural inmaterial7. En este sentido, el rol de las editoriales
como casas que hacen posible la edición de libros, debe abocarse a la tarea no sólo de dar a conocer
obras o autores nuevos o reafirmar la importancia de los grandes clásicos, sino de incentivar la concepción hermenéutica hacia la variedad de elementos que se constituyen en la emergencia de los tiempos
del siglo XXI.
Teniendo en cuenta que el concepto de patrimonio históricamente estuvo vinculado con aquello que ha sido transmitido o entregado generación tras generación, una herencia colectiva cuando se
habla de la humanidad, por ende afín con el pasado, con un legado que formaba parte de la identidad
de los sectores a los que pertenecía, su valor tendió a ser focalizado en aquellas cuestiones materiales
o inmateriales que forman parte de lo que ya no existe, dejando de lado los factores sociales, económicos, políticos y demás, que constituyen el presente, lo cual le dio una valorización diferente.
(…) la idea de patrimonio se asocia a cosa de valor y al mismo tiempo comprendemos que este valor sirve para establecer algún tipo de vínculo entre individuos, es
decir, que genera un nexo entre transmisor y receptor, podemos resumir diciendo, al
menos, que patrimonio es un activo valioso que trascurre del pasado al futuro relacio-
256
Jenny González Muñoz
nando a las generaciones. (BALLART; TRESSERAS, 2007, p. 12)
Partiendo de lo citado, dicho vínculo que forma un nexo transmisor – receptor equivale a rol
del libro frente al lector, pues es perentorio que el texto no sólo se presente para dar un conocimiento
o servir de factor de “distracción”, su función debe ser despertar interrogantes en quien lo lee, crear
una visión analítica en el lector, construir un lector cómplice, capaz de indagar en otros textos y
otros autores (CORTÁZAR, 2005)8, acto que se le desarrolla individualmente multiplicándose a otros
lectores y, evidentemente activa la característica valorativa del patrimonio estudiado realizando una
suerte de ritualización del texto al traerlo al presente con una visión de futuro, no sólo desde el punto
de vista de la proyección, sino como otra herencia generacional con miras a consecutivos procesos de
conservación y salvaguarda.
El rol del libro en su vinculación obviamente con la lectura, ha sido significativo como soporte
del pensamiento como conocimiento y como ficción del ser humano, pasando por diversos procesos
de transformación, como todo lo que tiene que ver con lo social, aun y cuando en la contemporaneidad
se hayan levantado discusiones sobre la posible desaparición del libro en su versión física de tinta y
papel. La incursión precisamente de las nuevas tecnologías producto tanto de la creatividad como de
las diferentes necesidades de las sociedades, han dado al libro como soporte otra visión de alcance, su
llamada virtualidad, al estar presentado por medio de los sistemas tecnológicos brinda la posibilidad
de un mayor alcance en una suerte de maximización de lo masivo, pues viaja rápidamente por medio
de la red, se minimiza en el espacio real en instrumentos como el CD, Tablet, así como tantos otros que
pueden almacenar inclusive más de 300 libros en máquinas de tamaños y manejos bastante cómodos,
todo lo cual acrecienta cada vez más la importancia de considerar al libro de estudio, de análisis, como
herramienta de intereses para ser tomada en cuenta a la hora de documentar la diversidad de manifestaciones de la cultura inmaterial que los pueblos, con sus infinitos saberes, han conservado a lo largo
de los tiempos, posibilitando la comprensión de las mismas lo cual conlleva a la instauración progresivamente del conocimiento y la profundización investigativa, puntos de partida para la tolerancia y
respeto de la cultura del “otro” (TODOROV, 2008)9 y orgullo de la propia. Al tener develados satisfactoriamente dichos valores se llega a la autoconstitución y autoreconocimiento, bases importantes
para la consciencia sobre la identidad cultural, fundamental para el desarrollo de los pueblos en vía a
una verdadera integración latinoamericana.
A modo de epílogo
La Recomendación sobre la salvaguardia de la cultura tradicional y popular, París 1989,
habla de ella como un conjunto de creaciones producidas por las comunidades luego de haber sido
heredadas por medio de un proceso de tradición oral, a partir de lo cual dichas comunidades encuentran las expresiones de su identidad cultural. Posteriormente, la UNESCO comienza a promover entre
sus Estados miembros, la investigación, con la finalidad de elaborar inventarios, “crear sistemas de
identificación y registro (acopio, indización, transcripción) o mejorar los ya existentes por medio de
manuales, guías de recopilación, catálogos modelos, etc.” (CONSEJO NACIONAL DE LAS CULTURAS Y DE LAS ARTES, 2009, p. 11), ya que se entiende la necesidad de salvaguardar dichas
manifestaciones, ahora llamadas de la cultura inmaterial, para las futuras generaciones. Muchos desde
257
LIBROS Y EDITORIALES: ¿REGISTRO Y DOCUMENTACIÓN DE LA CULTURA INMATERIAL?
ese entonces han sido los mecanismos y las herramientas utilizadas para registrar las expresiones,
detectadas o no como patrimoniales, tanto de la cultura material como de la inmaterial, no obstante,
aún se adolece de una documentación abocada exclusivamente a esta última, puesto que ella precisa
de tratamientos hechos a base de una investigación propensa a análisis, reflexiones e interpretaciones
fundamentadas en los papeles de trabajo de aquellos que hicieron los registros bien sea fotográficos,
audiovisuales, etc., quienes generalmente son especialistas o harto conocedores en el área.
Con la incursión cada vez mayor de editoriales tanto públicas como privadas, se hace interesante ver al libro también como una herramienta que permite tanto registrar parte del patrimonio cultural inmaterial, es decir, los saberes de los pueblos, mitos, ritos, leyendas, música, danzas, tradiciones,
como documentarlas al incluir estudios analíticos e incluso comparativos, para traerlas al presente y
de ese modo abrir campos de debate, apoyando la tesis de Cortázar sobre el lector cómplice, en lo que
se ha llamado acá una ritualización del patrimonio cultural. Concretamente en Venezuela, el trabajo
desplegado por la editorial Biblioteca Ayacucho (actualmente adscrita al Ministerio del Poder Popular
para la Cultura) desde hace 37 años al, tanto publicar obras que son parte de dicho patrimonio fundamentado en la tradición oral y el pensamiento de las diversas culturas latinoamericanas y algunas de
caribeñas, como proporcionar al lector prólogos, cronologías y estudios comparados que las documentan, se levanta como una novedosa forma de salvaguardar la herencia devenida de las distintas épocas
que han contribuido a la formación, instauración y transformación de la América Latina.
REFERÊNCIAS
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Antonieta, GALLART (org.) Cuaderno de trabajo 1. Patrimonio Cultural Inmaterial. México: Consejo
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en América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006.
BONFIL, Guillermo. Pensar nuestra cultura. México: Alianza, 1999.
BORGES, Jorge Luis. Ficciones-El Aleph- El Informe de Brodie. 2° edic. Caracas: Biblioteca Ayacucho,
2004.
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CRUZ, José. Una representación simbólica de Doña Bárbara. En Literatura y Cultura. Caracas: IPASME,
2007
GALLART, María Antonieta. Cuaderno de trabajo 1. Patrimonio Cultural Inmaterial. México: Consejo
Nacional para la cultura y las Artes, 2008
258
Jenny González Muñoz
GARCÍA, Enrique; IGLESIAS, Eduardo; ZUMBADO, Fernando. Amanecer en Los Andes. Lima: CAFPNUD, 1997.
GARZA, Mercedes de la (Comp.). Literatura Maya. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1992.
GEERTZ, Clifford. Conocimiento local. Barcelona: Paidós, 1994.
INSTITUTO DE PATRIMONIO CULTURAL. Patrimonio al alcance de todos. Caracas: CONAC, 2001.
Ministerio del poder popular para la Cultura. (2005). Ley de Protección y Defensa del Patrimonio Cultural y su Reglamento. Disponible: http://www.ipc.gob.ve/images/stories/ley/leypatrimonio
SÁBATO, Ernesto. Discurso al “Encuentro de Escritores e Investigadores de la Cultura latinoamericana” Catálogo 1974-2007. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2007. Disponible en: <www.bibliotecayacucho.
gob.ve>. Acceso en: 14 nov. 2011.
UNESCO. Declaración Universal de la UNESCO sobre la Diversidad Cultural. (31ª reunión de la Conferencia General de la UNESCO). (2001, Noviembre 2). Paris, Noviembre, 2001.
Notas:
(1) Se refiere, por ejemplo, a las numerosas culturas indígenas que tienen ritualizaciones en torno a la
muerte tal puede ser la wayúu, de Venezuela y Colombia. O aquellas más contemporáneas tal el caso
de México y la celebración del Día de los Muertos y la incorporación de la carcancha de manera prácticamente cotidiana.
(2) Para mayor información leer GONZÁLEZ MUÑOZ, Jenny. How to registrer memory? Documentation, recording, archiving and preservation of intangiblecultural heritage in Venezuela. IN ZANCHETI, Silvio Mendes; SIMILÄ, Katriina (org.). Measuring heritage. Conservation performance. Olina &
Rome: CECI & ICCROM, 2012, pp. 53-58.
(3) Providencia Administrativa N° 012/05. Caracas, 30 de junio de 2005. Capítulo 1 “Del registro general del patrimonio cultural”.
(4) Dichas fallas tienen que ver con la documentación que acompaña al registro de diversos patrimonios inmateriales, concretamente encontradas por la autora del presente ensayo, en catálogos del IPC,
donde personas solo son registradas con su nombre, oficio y una brevísima reseña que no indica de
modo alguno la causa por la cual son consideradas patrimonio vivo; lo propio se ha señalado con la
colección fotográfica de los países del ALBA, perteneciente a CEDIVER, que fue levantada por la autora en un trabajo de documentación utilizando las herramientas tecnológicas de la institución, pero
dándoles el carácter de cultura inmaterial a los registros, ya que el archivo fotográfico solo tenía informaciones técnicas, descartando el carácter simbólico de las ceremonias, danzas, procesiones, rituales, y
demás. Para mayor información se sugiere consultar el artículo GONZALEZ-MUÑOZ, Jenny. How to
resgistrer memory? Documentation, recording, archiving and preservation of intangible cultural heritage
in Venezuela. IN: ZANCHETI, Silvio Mendes; SIMILÄ, Katriina (org.) Measuring Heritage. Conservation performance. Olinda & Rome: CECI & ICCROM, 2012, pp. 53-58.
(5) En honor a la Batalla de Ayacucho, hecho cumbre en la historiografía venezolana. Sus antecedentes
se instalan en el contacto existente entre Ángel Rama y la obra del escritor Rufino Blanco Bombona,
quien en 1924, en ocasión del primer centenario de dicha batalla, incluyó en su editorial una colección
que tituló “Biblioteca Ayacucho”, para editar solo temas de Historia.
259
LIBROS Y EDITORIALES: ¿REGISTRO Y DOCUMENTACIÓN DE LA CULTURA INMATERIAL?
(6) Disponible en línea en www.bibliotecayacucho.gob.ve
(7) Lo propio se puede acotar sobre temáticas relacionadas con las diferentes manifestaciones populares de los pueblos afroamericanos, sobre todo en los casos de Cuba, República Dominicana y Brasil.
(8) La tesis de Julio Cortázar explicitada en Rayuela, mediante sus famosas morellianas, en la que
expresa que dicha novela está escrita para un lector que se haga cómplice del escritor y no para un
lector-hembra que sólo se conforme con leer y no vaya más allá, no busque, no haga una indagación.
Para Cortázar, el propósito de la literatura es transmitir, pero precisa de un trabajo en conjunto con el
lector, quien debe rebatir e interpretar, en fin, ser hermenéutico. Dice Morelli, respeto a la novela: “no
engaña al lector, no lo monta a caballo sobre cualquier emoción o cualquier intención, sino que le da
algo así como una arcilla significativa, un comienzo de modelado, con huellas de algo que quizá sea
colectivo, humano y no individual. Mejor, le da como una fachada, con puertas y ventanas detrás de
las cuales se está operando un misterio que el lector cómplice deberá buscar (de allí la complicidad)
y quizá no encontrará (de ahí el compadecimiento). Lo que el autor de esta novela haya logrado para
si mismo se repetirá (agigantándose, quizá, y eso sería maravilloso) en el lector cómplice. En cuanto
al lector-hembra, se quedará con la fachada y ya se sabe que las hay muy bonitas, muy trompe l’oeil, y
que delante de ellas se pueden seguir representando satisfactoriamente las comedias y las tragedias del
bonnête homme”. (CORTÁZAR, Julio. Rayuela. 2° edic. Caracas: Biblioteca Ayacucho. 2005, p. 454).
(9) Tzvetan Todorov, al referirse a los sucesos acaecidos con los pueblos originarios del Abya Yala
(término de origen karibe-kuna, aceptado actualmente por pueblos indígenas latinoamericanos para
referirse a la territorialidad que va desde México hasta la Patagonia, y que puede ser traducido como
“continente en expansión”) a partir de la llegada de Cristóbal Colón en el siglo XV, hace una serie de
análisis sobre dichas problemáticas, una de ellas se relaciona con la visión de los colonizadores y más
específicamente del propio Colón cuando se encuentra frente a los llamados indígenas, donde la identificación se confunde con el asimilacionismo y es por ello que los ve iguales, no como una horizontalidad que se devela ante él, sino como idénticos entre si, es decir, los convierte en una especie de objetos,
de allí las consecuentes relaciones con “sin alma”, “sin inteligencia”, “salvajes”, y demás. En este caso, el
respeto a la cultura del otro, del que no se conoce por ser diferente es lo que establece la identidad, o
sea, de la identidad nace de la diferencia, pues es solo posible conocerse cuando se acepta que existen
otros diferentes. Se recomienda leer TODOROV, Tzvetan. La conquista de América. El problema del
otro. 2° edic. México: Siglo XXI. 2008.
Jenny González Muñoz *
Dra. Cultura Latinoamericana y del Caribe- Instituto Pedagógico de Caracas – Universidad
Pedagógica Experimental Libertador - Venezuela
Mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural – Universidade Federal de Pelotas –Brasil
260
6. TECNOLOGIA SOCIAL, DESENVOLVIMENTO E
CIDADES INTELIGENTES
JORNADAS MERCOSUL
BRINCAR: UM DIREITO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Silvia Adriana da Silva Soares*
Rosa Maria Castilhos Fernandes**
INTRODUÇÃO
É por meio de atividades como o brincar que as crianças aprendem novos conhecimentos e
como elas realmente são. A partir de determinadas situações aprendem novas habilidades e experimentam diferentes vivencias. Além das brincadeiras, o brinquedo é considerado um complemento imprescindível na formação da criança e, portanto parte dos processos pedagógicos da educação infantil.
No Brasil, os aspetos legais que tratam do entendimento em torno da atenção educativa às
crianças foi alterado, pois a compreensão sobre a educação infantil é aquela oferecida por instituições
de ensino e que visa o desenvolvimento integral da criança na faixa etária dos zero aos cinco anos
de idade, constituindo-se na primeira etapa da educação básica. Nessa perspectiva, as necessidades
de cuidar/educar articulam-se, rompendo com a concepção anterior, focada apenas no cuidar. Desse
modo, as legislações brasileiras vêm acompanhando o avanço do debate em torno dos benefícios da
educação infantil ao desenvolvimento da criança. A Constituição Federal de 1988 reconhece, no seu
artigo 6º, a educação como um dos direitos sociais, como pode-se observar no artigo 208 que garante
o “atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (BRASIL, 1988, p.
138).
Neste contexto normativo, destaca-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei nº 8.
069/90 de 13 de julho de 1990), que no art. 16, sobre o direito à liberdade compreende, entre outros,
de acordo com o inciso IV- “brincar, praticar esportes e divertir-se” faz parte do desenvolvimento
infantil. Associar este direito de brincar com o direito à educação infantil, nos remete a reflexão sobre
a importância do papel dos educadores, no sentido de desencadearem projetos pedagógicos que reconheçam o brincar como um instrumento que contribui para o desenvolvimento integral da criança.
Para tratar sobre a temática, este artigo está estruturado em duas partes: na primeira faz-se uma
reflexão teórica sobre o brincar e sua importância na construção do conhecimento para o desenvolvimento infantil; na segunda, discorremos sobre a experiência pedagógica vivenciada no Projeto “Brincando, Construindo e Vivendo” que foi desenvolvido numa escola de educação infantil, com uma
turma de pré-escola I, no município de Nova Santa Rita, no Rio Grande do Sul, as crianças tinham de
04 e 05 anos de idade.
O Brincar: uma categoria teórica no âmbito pedagógico
Inicialmente é preciso reconhecer que o lúdico exerce papel importante na vida das crianças
BRINCAR: UM DIREITO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
sendo possível reunir o brincar e o educar, desmistificando o papel do brincar, que não é apenas um
mero passatempo, mas sim um valioso recurso pedagógico na aprendizagem e no desenvolvimento
das crianças.
A brincadeira é algo que pertence à criança, através do brincar experimenta, organiza-se, regula-se, constrói normas para si e para o outro. Ela cria e recria, a cada nova brincadeira, o mundo que
a cerca. O brincar é uma forma de linguagem que a criança usa para compreender e interagir consigo,
com outro e com o mundo que a cerca. A criação de uma situação imaginária não é algo gratuito na
vida da criança; pelo contrário, é a primeira manifestação da emancipação em relação às restrições
situacionais.
Para Buscaglia, a criança aprende,
captando as habilidades pelos dedos das mãos e dos pés, para dentro de si. Absorvendo hábitos e atitudes dos que a rodeiam, empurrando e puxando o seu próprio mundo. Assim a criança aprende, mais por experiência do que por erro, mais por prazer
do que pelo sofrimento, mais pela experiência do que pela sugestão e a dissertação, e
mais por sugestão do que por direção. Também aprende pela afeição, pelo amor, pela
paciência, pela compreensão, por pertencer, por fazer e por ser. (BUSCAGLIA, apud,
MOLFETT, 1998, p. 165).
Com a forma lúdica de brincar com o corpo ou com os materiais que estão ao seu alcance, à
criança, ainda bebê, tem a possibilidade de pegar, bater, sugar, agarrar, e é através do outro, pela sua
voz, seu gesto, seu toque, sua palavra ou canção que o bebê será estimulado a perceber, descobrir e
conhecer de forma prazerosa o mundo que o rodeia.
Se a criança for ajudada de modo conveniente, ela irá desenvolver a linguagem, o andar e o equilíbrio. Tanto é verdade que, através das mãos estabelecemos relações com
meio externo, adquirindo e manuseando elementos dispostos no ambiente que nos
despertam interesse, o movimento também contribui para o desenvolvimento psíquico e intelectual. Isso vem ao encontro da idéia da educadora: O ritmo do movimento
faz parte do indivíduo, é uma característica inata. (MONTESSORI, 1965, p. 106).
Os jogos e brincadeiras vão possibilitando às crianças a experiência de buscar coerência e lógica nas suas ações, elas passam a pensar sobre suas ações nas brincadeiras, sobre o que falam e sentem,
não só para que os outros possam compreendê-las, mas também para que continuem participando da
brincadeira.
A criança nos primeiros anos de vida faz aquisições importantes desenvolvendo diferentes
comportamentos do mais simples aos mais complexos como diferenciação e construção do seu eu, desenvolvimento da autonomia, da socialização, da coordenação motora, entre outros. A interação com
os adultos, com outras crianças e o brincar contribuirão para
o processo de socialização, ajudando-a a perceber os papéis familiares e sociais e as
diferenças de gênero, a compreender e aceitar regras, a controlar sua agressividade,
a discernir entre fantasia e realidade, a cooperar, a competir e compartilhar, dentre
outras habilidades para o convivo social (CONANDA, 2006, p. 26).
264
Silvia Adriana da Silva Soares, Rosa Maria Castilhos Fernandes
No Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil encontramos a seguinte concepção sobre brincar:
Brincar é uma das atividades fundamentais para o desenvolvimento da identidade e
da autonomia. O fato da criança, desde muito cedo, poder se comunicar por gestos,
sons e mais tarde representar determinado papel na brincadeira faz com que ela desenvolva sua imaginação. Nas brincadeiras, as crianças podem desenvolver algumas
capacidades importantes, tais como atenção, a imitação, a memória, a imaginação.
Amadurecem também algumas capacidades de socialização por meio da interação e
da utilização e experimentação de regras e papéis sociais. (BRASIL, 1998, p. 21).
Brincando a criança experimenta, descobre, inventa, exercita, enfim o brincar auxilia no desenvolvimento de todas as aprendizagens. O brincar estimula a curiosidade, a iniciativa e a autoconfiança,
pode proporcionar o desenvolvimento da linguagem, do pensamento e da concentração. Brincar e
indispensável para a saúde física, mental e intelectual da criança. É uma arte um dom natural que,
quando bem cultivado contribuirá para a eficácia e o equilíbrio tanto no presente quanto no futuro da
criança.
Através de jogos e brincadeiras simples como: pular corda, jogar amarelinha, jogar bola, brincar de roda, de pega-pega, virar cambalhota, cantar músicas, caçada ao tesouro, contação de histórias,
confecção de bijuterias, confecção de jogos. Como já foi falado, são brincadeiras simples, mas que
podem incidir na evolução das crianças em suas aprendizagens.
Assim é importante ressaltar que a criança a partir do momento que começa a frequentar outros
contextos sociais além da família, como na educação infantil, por exemplo, a criança tem seus referenciais sociais e culturais ampliados. É, então, “nesse período que ela constrói novos relacionamentos
e é influenciada por novos estímulos: educadores, companheiros da mesma idade, livros, brinquedos,
brincadeiras e mídia” (CONANDA, 2006). Desse modo, os educadores da educação infantil, estão
desafiados a reinventar brincadeiras cotidianamente, neste processo de formação das crianças.
O relato de uma experiência: o projeto “brincando, construindo e vivendo”
Nesta parte do texto publicizamos a experiência pedagógica vivenciada no Projeto “Brincando, Construindo e Vivendo”. Este projeto teve como objetivo oportunizar, através de brincadeiras, o
desenvolvimento dos sentidos, adquirir habilidades para usar as mãos, reconhecendo objetos e suas
características, texturas, formas, tamanhos, cores e sons; favorecer a conscientização para a necessidade de aprender com atividades que desafiem suas potencialidades; despertar nos alunos o interesse
pela brincadeira, pois é através dela que a criança entra em contato com o ambiente, relaciona-se com
o outro, desenvolve o seu físico, a sua cognição, captando habilidades e absorvendo hábitos e atitudes,
tornando-se ativa, autoconfiante e curiosa.
Uma das primeiras atividades realizadas com as crianças foi a contação da história dos “Três
porquinhos”, de Bia Villela. Para contá-la levamos um avental de feltro e confeccionamos os personagens da história. Eles gostaram tanto da novidade que tivemos que contar mais duas vezes a mesma
história. Depois trabalhamos com eles a reconstrução da história com diversos materiais como: tecido,
265
BRINCAR: UM DIREITO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
jornal, folhas de papel coloridas, tesoura, giz de cera, cartolina. Com o exercício de pintar, recortar e
colar, foi possível observar a concentração, a motricidade fina ao trabalharem na construção dos seus
personagens e cenários, e se conseguiam interpretar a história, através da reprodução, visando à criatividade e coerência dos fatos.
A partir da história dos “Três porquinhos”, (Bolinha, Quadrado e Triângulo) começamos a
trabalhar com as crianças formas geométricas, quantidade e algumas cores. Introduzimos o tema, promovendo um passeio pelos corredores e pátio da escola para que as crianças observassem a presença
das várias formas geométricas no prédio, nas salas, nos móveis da escola. Conversamos com a turma
sobre as diversas formas de objetos que encontramos no dia-a-dia no supermercado, na farmácia e até
em nossa própria casa, como latas de refrigerantes, embalagens de creme dental, o prato que usamos
para comer, etc. No pátio montamos com eles um circuito com as formas geométricas pelas quais
tinham que passar por dentro de círculos, triângulos, quadrados e também outros obstáculos, como
colchonetes para virar cambalhotas, trilhas que tinham que percorrer em cima de uma corda em linhas
retas e curvas e obstáculos para saltos. Em sala de aula, confeccionamos com o auxílio deles um jogo
de bingo e um dominó com formas geométricas. Depois que o jogo ficou pronto e começamos a jogar
foi muito divertido, pois nunca tinham jogado dominó. No jogo do Bingo, conforme eram sorteadas
as formas geométricas, as quantidades e as cores eles marcavam direitinho, mas logo levantavam a
cartela e se abanavam, colocavam na boca e já não sabiam mais o que tinham marcado anteriormente.
Apesar disto tudo pudemos notar que alguns, quando querem, sabem seguir regras e levam muito a
sério a brincadeira, sabendo aproveitar as oportunidades para irem além do que já sabem.
Ao longo do desenvolvimento do projeto notamos que na sala de aula das crianças não havia
nada que pudesse identificar cada um deles, então resolvemos confeccionar um cartaz com seus nomes. Conversamos com eles e explicamos que ali estavam escritos os seus nomes e ao lado do nome,
cada um, junto com a professora, colaria a sua foto, para que conhecessem como era escrito o próprio
nome e assim começassem a fazer distinção entre desenho e escrita. O cartaz depois de pronto ficou
fixado na parede. No outro dia levamos crachás com os nomes das crianças escritos e espalhamos
sobre uma mesinha, onde eles tinham que comparar os nomes dos crachás com o nome ao lado da sua
foto e pegar o crachá com o seu nome. No terceiro dia que estávamos fazendo esta brincadeira todos
já conseguiam identificar corretamente o seu nome.
Outra atividade proposta foi a da caixa temática montada por nós e que demos o nome de
“Brinquemonte”. Foi formado um semicírculo pelos alunos e a professora no centro manuseava a
caixa temática, estimulando a imaginação das crianças, propondo que cada uma fosse até lá mexer na
caixa. A partir desse momento começamos a questionar as crianças sobre o que será que havia dentro
da caixa. Após todos mexerem na caixa, e após já terem dado várias sugestões possíveis do que poderia existir dentro da mesma, então abrimos para os alunos verem o conteúdo da caixa e continuamos
a instigá-los sobre o que fazer com o material encontrado. Depois de muitas sugestões, propomos a
eles que confeccionassem uma pulseira para ser dada de presente à mamãe, pois estávamos perto do
dia das mães. Eles adoraram a idéia de eles mesmos poderem fazer um presente para suas mamães e
realmente se dedicaram e se empenharam na confecção de um presente bem lindo.
Foram trabalhadas outras atividades como: caçada ao tesouro, onde escondemos no pátio uma
266
Silvia Adriana da Silva Soares, Rosa Maria Castilhos Fernandes
caixa com várias guloseimas e íamos dando pistas para as crianças procurarem. Primeiro em círculo,
sentados todos no chão, começamos a questioná-los: alguém conhece a história de Peter Pan? Já ouviram falar do Capitão Gancho? Alguns responderam que não, outros responderam que sim. Então
começamos a contar uma história: “Era uma vez, um pirata muito famoso chamado Capitão Gancho.
Ele era um pirata que conseguiu uma grande fortuna, ele gostava de guardar a sua fortuna em baús
de madeira.” Um dia ele resolveu enterrar suas riquezas.... e vocês sabem onde ele resolveu esconder
o seu tesouro? Aqui na escola! Onde será que ele escondeu o tesouro? Será que foi na pracinha? No
pátio? Mas foi aqui na escola! O que vocês acham de a gente procurar este tesouro? Também fizemos
massinha de modelar caseira, com farinha, água, sal, óleo e corante comestível, a qual todos ajudaram
a fabricar para depois brincar. Brincamos de jogar amarelinha, jogar boliche, pulamos corda, brincamos de roda, de casinha e cantamos. Eles ainda fizeram um cartão de cartolina em tamanho A4, todo
pintado com tinta guache e enfeitaram com gliter em pó brilhoso. A mensagem que foi colocada dentro
do cartão eles mesmos recortaram e colaram, o cartão foi dado de presente para mamãe junto com a
bijuteria (pulseira) que já tinham feito. Foram feitas muitas atividades nas quais as crianças tinham
que produzir e colaborar na construção das brincadeiras, mas percebemos que gostavam muito do que
estavam fazendo e se divertiram muito também.
As atividades desenvolvidas foram avaliadas durante todo o processo de ensino-aprendizagem,
a cada dia percorrido. Levou-se em conta a participação, o trabalho em grupo, o interesse, a criatividade, a desinibição, o gosto pela leitura. Se eles conseguiram estabelecer relações entre a realidade e a
prática, se houve desenvolvimento na evolução da motricidade, se conseguiram incluir novas expressões corporais em seu repertório. Por meio da observação e de registros avaliamos se houve avanços
significativos no desenvolvimento das crianças e na construção de novos conhecimentos.
Ao longo do desenvolvimento do projeto surgiram muitas dúvidas sobre a forma como trabalhar, se as brincadeiras e atividades propostas seriam boas, se realmente seriam atingidos os objetivos.
Por isto, no decorrer do desenvolvimento do projeto os ajustes da versão inicial, foram fundamentais
para que os objetivos fossem alcançados.
Reflexões finais
A experiência relatada neste artigo demonstra o quanto é possível por meio da brincadeira,
proporcionar a construção do conhecimento e incidir no desenvolvimento infantil de forma saudável.
Além disto, brincar é um direito de toda criança e cada vez mais a educação infantil precisa planejar
as atividades a serem desenvolvidas neste ciclo de vida.
No momento da brincadeira as crianças se apropriam dos elementos da realidade e dão a eles
novos sentidos e novos significados. Brincando a criança experimenta, descobre, inventa, exercita,
enfim o brincar auxilia no desenvolvimento de aprendizagens. O brincar estimula a curiosidade, a
iniciativa e a autoconfiança, pode proporcionar o desenvolvimento da linguagem, do pensamento e da
concentração. Brincar e indispensável para a saúde física, mental e intelectual da criança.
267
BRINCAR: UM DIREITO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
REFERÊNCIAS
BRASIL, MEC. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular para Educação Infantil.
Brasília: MEC SEF, 1998.
BUSCAGLIA, Leo. Vivendo, amando, aprendendo. 22. ed. Rio de Janeiro: Record: Nova Era, 1998.
Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes-Conanda. Plano Nacional de Promoção, Proteção e defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária.
Brasília, 2006.
MONTESSORI, Maria. A Descoberta da Criança. São Paulo: Flaboyant, 1965.
PIAGET, Jean. Para onde vai à educação? Rio de Janeiro, Olympio – Unesco, 1973.
PROJETO educação infantil. Brincar facilita o aprender. Disponível em: http://www.scribd.com/
doc/6883655/Projeto-Educacao-Infantil: Acesso em 18 de março de 2010.
SOARES, Silvia Adriana da Silva. Projeto Brincando, Construindo e Vivendo. Curso de Pedagogia, disciplina de Estagio Supervisionado II. Canoas: Unilasalle, 2010.
ZABALA, Antoni. A avaliação. In ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre.
Atmed, 1998.
* Graduada em Pedagogia pelo Unilasalle (2011). Atua como secretária do Pós-Graduação Stricto
Sensu do Centro Universitário La Salle.
** Graduada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1987),
mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1998) e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2008) com estágio
de doutorado sanduíche no Instituto de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto/
Portugal. Professora e Pesquisadora do Mestrado de Memória Social e Bens Culturais da UNILASALLE e Docente colaboradora do Mestrado de Educação da UNILASALLE.
268
SEGURANÇA ALIMENTAR: UM PROJETO SOCIAL NO ÂMBITO ESCOLAR
João Bosco Torres Santos *
Miguel Ângelo Ribeiro de Ribeiro **
Rosa Maria Castilhos Fernandes ***
INTRODUÇÃO
O Brasil é um país de contrastes. Apresenta-se como um dos maiores produtores de alimentos
do mundo e, em contrapartida, também registra um alto nível de insegurança alimentar e desperdício
de alimentos. Assim, muitos estudiosos consideram que o país necessita um programa contra o desperdício e a favor da segurança alimentar, envolvendo os governos federais, estaduais e municipais, as
empresas e a sociedade em geral, na busca de alternativas para o enfrentamento desta questão social.
Abordar o tema segurança alimentar, significa considerar que se trata de uma temática bastante ampla,
pois envolve vários aspectos, que vão desde a promoção de novos comportamentos alimentares e saudáveis, até a questão da vigilância sanitária.
Com o objetivo de estimular a mudança nas práticas de consumo e nos hábitos alimentares dos
estudantes, de seus familiares e da comunidade, contribuindo, consequentemente, com o desenvolvimento da política de segurança alimentar nacional, propõe-se a realização de um Projeto de Educação
Alimentar em Escolas Municipais da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS. Trata-se de um projeto social que pode ser realizado por meio de parcerias entre a Secretaria Municipal de Educação,
instituições educacionais públicas e privadas e a sociedade civil de um determinado município. O
processo poderá ser desenvolvido em três etapas, iniciando com um ciclo de palestras para a comunidade escolar (alunos, professores, entre outros), seguido de uma oficina destinada as merendeiras e
compradores dos alimentos para as escolas do município e os familiares dos estudantes e por último,
uma mostra de educação alimentar para toda a comunidade escolar e seus convidados.
O artigo está sistematizado em duas partes: a primeira contextualiza a temática no cenário brasileiro e discorre sinteticamente sobre os avanços no campo da segurança alimentar; a segunda, apresenta uma proposta de um projeto social denominado: “Projeto de Educação Alimentar”, que pode ser
desenvolvido em escolas de diferentes municípios do Estado.
Segurança Alimentar e Desenvolvimento
O Brasil, segundo Araujo, Rizzo e Zambon (2011), é um dos maiores produtores de grãos,
carnes, frutas, hortaliças e condimentos, tendo uma agricultura forte o suficiente para atender as necessidades internas. Em termos de exportação de alimentos, é a quarta maior potência do mundo. No
entanto, outras duas questões contemporâneas, observadas no cotidiano, intrigam os autores deste
artigo: a insegurança alimentar do povo brasileiro e o desperdício de alimentos.
A política de segurança alimentar para o Brasil, por meio do Programa Fome Zero, difere
SEGURANÇA ALIMENTAR: UM PROJETO SOCIAL NO ÂMBITO ESCOLAR
o termo “fome” do conceito de “segurança alimentar e nutricional”. Para o Programa, enquanto a
“fome” se refere à sensação corriqueira de vazio no estômago, um problema social ligado à pobreza e
às calamidades como a seca, a “segurança alimentar” é empregada no sentido de proporcionar a todos
os cidadãos e cidadãs o acesso a uma alimentação: digna (alguém que revira latas de lixo para obter
comida pode não ser subnutrido, mas não tem segurança alimentar), com regularidade (uma pessoa
que depende de doações ocasionais para matar a fome não tem segurança alimentar), qualidade (um
office-boy que todos os dias almoça um cachorro-quente na rua não passa fome mas não tem segurança alimentar) e quantidade (uma família que não tem dinheiro para comprar comida para todos os seus
membros, também não tem segurança alimentar).
Segundo dados do IBGE, por meio do estudo de segurança alimentar realizado em 2009, pelo
menos 11,2 milhões de brasileiros estavam sujeitos a não comer por falta de recursos financeiros. Segundo dados do Programa Fome Zero, a fome e a insegurança alimentar, no Brasil, não são causadas
pela falta de alimentos e sim pela falta de dinheiro para comprá-los. Nesse sentido, apresentam dados
da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura afirmando que o Brasil tem uma
disponibilidade de alimentos que equivale a 2960 kcal/dia por pessoa muito acima do mínimo recomendado de 1900 kcal/dia. Por outro lado, uma em cada dez pessoas ingere menos de 1650 kcal/dia,
em média. Outro dado, da organização não governamental Instituto Cidadania, estimou a população
em situação de insegurança alimentar em 44 milhões de pessoas em 1999 e, em 2001, de 46 milhões.
Já o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) chegou a um total de 57 milhões de pessoas pobres em 1999, utilizando como referência a linha de pobreza baseada na renda total per capita. Assim,
o Programa Fome Zero foi instituído no sentido de combater a fome e garantir a segurança alimentar
e nutricional da população, atacando as causas estruturais da pobreza.
Outra relevante iniciativa, no Brasil, é a criação do Programa Bolsa Família (PBF) que é um
programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema
pobreza em todo o País. O PBF integra o Plano Brasil Sem Miséria (BSM), que tem como foco de
atuação os 16 milhões de brasileiros com renda familiar per capita inferior a R$ 70 mensais, e está
baseado na garantia de renda, inclusão produtiva e no acesso aos serviços públicos (MDS, 2012). Na
esteira deste marco legal, no campo da segurança alimentar, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e
Nutricional (LOSAN- Lei nº11.346 de 15 de setembro de 2006), cria o Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada
e dá outras providências. De acordo com a LOSAN cabe ao poder público assegurá-lo, avançando na
institucionalização de uma política de segurança alimentar e nutricional. As ações, que vêm sendo
implementadas em diferentes territórios do país pelo do MDS, têm por objetivo garantir aos cidadãos
em insegurança alimentar e nutricional o acesso aos alimentos e à água em quantidade, qualidade e
regularidade suficientes, desenvolvendo, para tanto, iniciativas estruturantes e emergenciais por meio
de programas e projetos de apoio à produção, distribuição e consumo de alimentos (MDS, 2012).
Tratar sobre segurança alimentar, nos remete a discussão sobre o desperdício dos alimentos.
Estudos apontam que dos alimentos que os brasileiros compram, 1/3 vão para o lixo (ARAUJO, RIZZO E ZAMBON,2011). Talvez a riqueza do país em termos de produção alimentícia, como dita no
início do texto, faça com que os cidadãos não percebam a prática do desperdício cotidiano. Assim, o
Brasil é reconhecido como um dos países que mais desperdiçam alimentos no planeta. Nesse sentido,
270
João Bosco Torres Santos, Miguel Ângelo Ribeiro de Ribeiro, Rosa Maria Castilhos Fernandes
três pesquisas realizadas pela Fundação Getúlio Vargas, EMBRAPA e Instituto Akatu reforçam essa
linha de raciocínio: a Fundação Getúlio Vargas aponta que o índice de desperdício de alimentos no
Brasil pode chegar a 26,3 milhões de toneladas por ano; A EMBRAPA destaca que 14 milhões de
toneladas de frutas, hortaliças e grãos vão para o lixo todos os anos e o Instituto Akatu afirma que são
desperdiçados 22 milhões de toneladas por ano, o que seria suficiente para alimentar 30 milhões de
pessoas, aproximadamente, gerando um desperdício de R$ 4 bilhões por ano (ARAUJO, RIZZO E
ZAMBON, 2011).
Diante deste cenário quais seriam, então, as causas de tanto desperdício de alimento no Brasil?
Os motivos para tamanho desperdício, antes que os alimentos cheguem às mãos do consumidor, são
os mais variados, e isso se deve à complexidade do mercado e da cadeia produtiva. Segundo Araujo,
Rizzo e Zambon (2011) fatores como: calor em excesso, falta de umidade, manuseio inadequado,
embalagens inapropriadas, transporte e desqualificação para o reaproveitamento e processamento dos
alimentos, são evidenciados. Nesse sentido, citam um exemplo recente, acontecido na região sul do
Estado de Minas Gerais, onde foi presenciada uma cena, em que toneladas de batatas eram descartadas
no lixo ou viravam ração para o gado. O motivo, segundo a Associação dos Bataticultores do Sul de
Minas Gerais, é que a região produz, em média, 320 mil toneladas de batata/ano e, em 2011, serão produzidos de 360 mil a 380 mil toneladas, o que ocasiona a queda dos preços. Os autores dizem, ainda,
que além do esquema de produção, distribuição e comercialização, também, ocorre muito desperdício
por parte dos consumidores. Nas 10 principais capitais do país, cada habitante desperdiça 37 quilos de
alimentos por ano, ou seja, 2 quilos a mais do que se consome.
Acrescentaríamos também neste contexto, a falta de interesse político e os jogos do mercado
para garantir a lógica do consumo, o que reforça os ideários competitivos de uma sociedade que busca o crescimento econômico em detrimento do desenvolvimento social. Ao contrário desta lógica,
a implementação histórica com projetos de desenvolvimento tem demonstrado que a capacidade de
auto-organização local, a riqueza do capital social, a participação cidadã e o sentimento de apropriação do processo pela comunidade são elementos vitais em sua consolidação (DAWBOR, 2008). “O
desenvolvimento não é, meramente, um conjunto de projetos voltados ao crescimento econômico. É
uma dinâmica cultural e política que transforma a vida social” (DAWBOR, 2008, p.5).
É com base neste entendimento que acreditamos em um modelo de desenvolvimento que ocorra por meio da implementação de um conjunto de políticas, programas e projetos sociais que possam
impactar a realidade, por meio do qual o poder público, com a participação da sociedade civil organizada, desenvolvam ações com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada.
A Segurança alimentar no âmbito escolar: uma proposta de projeto
Os estudos em torno da temática segurança alimentar apontam que o Brasil necessita de um
conjunto de programas contra o desperdício, envolvendo os governos federais, estaduais e municipais,
as empresas e a sociedade na construção de projetos que incidam não somente na mudança da cultura
e dos hábitos alimentares, como também na melhoria das condições de vida da população. Uma das
alternativas está em realizar campanhas de conscientização familiar e no âmbito educacional, que
priorize o aprendizado em adquirir, manipular e consumir alimentos de maneira adequada e, também,
271
SEGURANÇA ALIMENTAR: UM PROJETO SOCIAL NO ÂMBITO ESCOLAR
investir em infraestrutura, melhorando a produção, distribuição e comercialização dos alimentos.
Em diferentes cidades da região metropolitana de Porto Alegre, essa realidade não é diferente.
Cotidianamente, nas feiras livres, que acontecem nos bairros da cidade, ou nos próprios mercados
municipais, nos domicílios particulares, nos restaurantes, e por que não dizer nas escolas, pode-se observar o desperdício de alimentos, o que sugere que a população ainda desconhece as consequências
dessa prática e a própria política de segurança alimentar nacional que vem sendo implementada pelo
Governo Federal.
Para construção desta proposta de projeto, toma-se como referência a reflexão sobre a importância da segurança alimentar no âmbito escolar com o intuito de provocar cada vez mais este debate
nas escolas do país. Com esta intenção surge, como resultado de um processo de formação sobre
elaboração e monitoramento de Projetos Sociais, a ideia de desenvolver um Projeto de Educação
Alimentar, com o intuito de contribuir com a política de segurança alimentar nacional e local, fomentando bons hábitos entre os membros da comunidade escolar, com ênfase em três pontos: aquisição
consciente dos alimentos, a manipulação e reaproveitamento dos alimentos e hábitos alimentares favoráveis à saúde e bem-estar.
Projetos sociais possuem uma estrutura de planejamento com definição de objetivos, metas,
cronograma, previsão de recursos e indicadores de avaliação, bem como, instrumentos para o monitoramento e avaliação, que são fundamentais para incidir em diferentes realidades.
No caso desta proposta, consideram-se as escolas como espaços democráticos que permitem
a educação integral aqui entendida como sendo aquela que “visa à formação e o desenvolvimento
humano global” (ANTUNES; PADILHA, 2010, p. 24). A compreensão de uma escola integral e cidadã prepara pessoas para que no seu processo de humanização, tenham acesso a um repertório sócio
cultural que as prepare para o diálogo, para conviver com a diferença, com a ética e com valores
sustentáveis. Entretanto, esta não é uma tarefa somente dos educadores, mas de diferentes atores sociais e profissões. Por exemplo: “ uma merendeira que mostra aos alunos de onde vêm os alimentos,
o tempo que leva para preparar e como ela faz “(ANTUNES; PADILHA, 2010, p. 24) podem incidir
nas mudanças de atitudes dos alunos de uma escola, visando à segurança alimentar. Acredita-se que
projetos sociais que tratem da segurança alimentar, se constituem em ações que possam ser o princípio
de uma mudança coletiva que se estenda além dos muros da instituição escolar, abraçando as famílias
e as comunidades dos municípios.
Neste sentido, o Projeto Educação Alimentar em Escolas Municipais tem como objetivo geral:
estimular a mudança nas práticas de consumo e nos hábitos alimentares dos estudantes, de seus familiares e de outros membros da comunidade das escolas municipais da Região Metropolitana de Porto
Alegre/RS, contribuindo com o desenvolvimento da política de segurança alimentar nacional. Como
objetivos específicos: refletir com a comunidade escolar sobre a importância de uma política de segurança alimentar, cadeia produtiva e uso consciente dos alimentos; melhorar a qualidade da merenda
escolar e da alimentação familiar dos estudantes; demonstrar, de forma prática e reflexiva, por meio
de uma Mostra de Educação Alimentar, a viabilidade de se realizar uma aquisição, reaproveitamento
e consumo alimentar adequado, bem como os resultados alcançados com essa prática no cotidiano.
Considera-se que da população beneficiada (direta e indireta): podem fazer parte a comunidade de um
272
João Bosco Torres Santos, Miguel Ângelo Ribeiro de Ribeiro, Rosa Maria Castilhos Fernandes
Município, merendeiras, alunos, professores, familiares e outros atores sociais.
A ideia do Projeto de Educação Alimentar é de cunho sócio educacional e sua operacionalização pode se dar em três etapas, a saber: período de sensibilização da comunidade escolar, um período
de realização das ações e um período final de edição de material e elaboração de relatório.
O período de sensibilização da comunidade escolar tem como objetivo despertar a atenção às
temáticas propostas e estimular a participação de todos (das merendeiras, professores, estudantes e de
seus familiares) no projeto. Será realizado por meio de cartazes informativos, murais e exposição de
vídeos sobre o desperdício alimentar, sobre a prática de alimentação saudável e política de segurança
alimentar, a ser exibido nos intervalos das aulas. Esta etapa prevê a realização de três palestras interdisciplinares com a comunidade escolar (alunos e seus responsáveis, merendeiras e demais interessados), ambas abordando os três eixos temáticos, a saber: Alimentação saudável: Segurança alimentar
e cadeia produtiva de alimentos; Alimentação saudável: aquisição, conservação, manipulação e reaproveitamento dos alimentos no cotidiano; Alimentação saudável: hábitos alimentares favoráveis à
saúde e ao bem-estar.
O período de realização constará de três etapas: ciclo de palestras, oficinas e mostra de educação alimentar. Essas etapas estão relacionadas, pois, o objetivo de uma é subsidiar a outra, promovendo ao final uma mudança no comportamento da comunidade acadêmica de Canoas, no que se refere
às práticas conscientes de aquisição, conservação e consumo de alimentos, favorecendo a saúde e o
bem-estar. Nessa etapa, podem ser desenvolvidas duas ações paralelas: as merendeiras do colégio e
os responsáveis pelos estudantes participarão de uma oficina focando a orientação sobre a aquisição,
manipulação, reaproveitamento e produção de alimentação favorável à saúde e bem-estar, a partir de
um cardápio voltado para a perspectiva de segurança alimentar; já os estudantes realizarão pesquisas
e elaborarão um painel para ser exposto na Mostra de Educação Alimentar.
Na 3ª etapa, como culminância do projeto, propõe-se a realização de uma Mostra de Educação
Alimentar, com o objetivo de demonstrar a viabilidade de se realizar uma aquisição, reaproveitamento
e consumo alimentar adequado, bem como os resultados alcançados com essa prática. Os estudantes
poderão expor seus painéis temáticos e os responsáveis dos estudantes e as merendeiras elaborarão
uma refeição para todos os participantes.
Os parceiros do projeto de Educação Alimentar contribuirão disponibilizando profissionais e
recursos materiais para a realização das palestras, oficinas e mostra. Entre os profissionais que podem
envolver-se com as ações destacam-se: nutricionistas, profissional de educação física, engenheiro de
alimentos, assistente social e gastrônomo.
Reflexões finais
Para finalizar, é importante destacar que a implementação de um projeto requer a participação
de todos os atores sociais envolvidos e beneficiados com as ações propostas. Requer a clareza das
metas a serem atingidas e dos indicadores quantitativos e qualitativos que constituirão a moldura de
monitoramento e avaliação do Projeto. No entanto, a intenção com este artigo, foi a de socializar a
273
SEGURANÇA ALIMENTAR: UM PROJETO SOCIAL NO ÂMBITO ESCOLAR
ideia, como forma de disseminação do conhecimento para que possa ser reaplicado e implementado
de acordo com as especificidades locais.
Portanto, esse artigo apresentou parte de um Projeto que foca a temática segurança alimentar e
que reconhece a importância do direito de todas as pessoas ao acesso regular e permanente a uma alimentação saudável, ou seja, a alimentos de qualidade nutricional e higiênico-sanitária adequadas e em
quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais (CONSEA, 2007)
Nesse cenário, a falta de planejamento que ocasiona a compra excessiva de alimentos, o armazenamento inapropriado e o reaproveitamento dos alimentos, são os principais fatores que incidem
nesse desperdício. Assim, de modo geral, tais questões nos levam a considerar que as duas principais
causas da insegurança alimentar do brasileiro são: a falta de dinheiro para alimentar-se e o desperdício
de alimentos.
Por isto, é preciso que cada vez mais sejam reinventadas iniciativas de práticas alimentares
promotoras de saúde, respeitando a diversidade cultural e social, econômica e ambientalmente sustentável; e também, iniciativas que combatam a vulnerabilidade alimentar como a fome, a obesidade, as
doenças associadas à má alimentação e ao consumo de alimentos de qualidade duvidosa ou prejudicial
à saúde (CONSEA, 2007).
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Ângela; PADILHA, Paulo Roberto. Educação Cidadã, Educação Integral: fundamentos e
práticas. São Paulo: Ed.L. 2010.
ARAUJO, Camila Brunassi de; RIZZO, Marçal Rogério; ZAMBON, Marcela Machado. Desperdício de
alimentos no Brasil. Jornal O Paraná. Cascavel/PR – 2011. Nº 10.586 - Ano 35 – página A2. Disponível
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CONSELHO NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (CONSEA). III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: por um desenvolvimento sustentável com soberania e segurança alimentar e nutricional – Documento Base, 2007. Disponível em: <www.mds.gov.br/
arquivos/documento_base.pdf/download>. Acesso em: 27 jan. 2009.
DOWBOR, Ladislau; VANNUCHI, Paulo; POCHMANN, Márcio; CACCIABAVA, Silvio; BRANCO,
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LOPES, Ana Kátia Moura Lopes; FÉ, Márcia Andréia Barros Moura; RICARTE, Michelle Pinheiro
Rabelo; SANTOS, Inez Helena Vieira da Silva. Avaliação do desperdício de alimentos em uma unidade
de alimentação e nutrição institucional em Fortaleza-CE. Porto Velho: SABER CIENTÍFICO, 2008, 158
274
João Bosco Torres Santos, Miguel Ângelo Ribeiro de Ribeiro, Rosa Maria Castilhos Fernandes
– 175.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME – MDS. Segurança alimentar. Disponível em: h•p://www.mds.gov.br/segurancaalimentar. Acesso em agosto de 2012.
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fomezero.gov.br/download/Seguranca_Alimentar.pdf h•p://www.mds.gov.br/segurancaalimentar. Acesso em agosto de 2012.
SANTOS, João Bosco Torres; RIBEIRO, Miguel Angelo Ribeiro de; RODRIGUES, Carla. Projeto Educação Alimentar. Trabalho Final apresentado na oficina de Elaboração, Monitoramento e Avaliação de
projetos Sociais. Mestrado de Memória Social e Bens culturais. Centro Universitário La Salle. Canoas,
julho de 2012.
* Graduado em Educação Física, licenciatura plena, pela Universidade Federal de Sergipe (1997). Especialista em Estudos Contemporâneos em Dança pela Universidade Federal de Bahia (2004) e em
Artes-Educação pela Faculdade São Luiz de França (2006). Mestrando do PG em Memória Social e
Bens Culturais da Unilasalle- Canoas/RS.
** Graduado em Comunicação Social pela UFRGS (1978), com habilitação em Relações Públicas, Publicidade e Propaganda. É Relações Publicas da UFRGS. Mestrando do PG em Memória Social e Bens
Culturais da Unilasalle-Canoas/RS.
*** Graduada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1987),
mestra em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1998) e doutora
em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2008) com estágio de
doutorado sanduíche no Instituto de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto/Portugal. Professora e Pesquisadora do Mestrado de Memória Social e Bens Culturais da UNILASALLE e
Docente colaboradora do Mestrado de Educação da UNILASALLE
275
TECNOLOGIA SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE:
OS CAMINHOS DE UMA INVESTIGAÇÃO
Rosa Maria Castilhos Fernandes *
Introdução
Tratar sobre tecnologia social (TS) significa reconhecer a existência no cenário brasileiro de
um conjunto de técnicas, processos e metodologias de intervenção social, deflagradas por diferentes
atores sociais, e que vêm incidindo na melhoria das condições de vida da população e na realidade
local em que vivem. Em que pesem os avanços sobre a produção em torno da temática, que se propõe
neste artigo, ainda se faz necessário deflagrar processos investigativos que possibilitem o conhecimento das experiências de TS e, principalmente, reconhecer a interface das mesmas com o desenvolvimento local sustentável.
Diferentes TSs desenvolvidas e que já foram reaplicadas em todo o Brasil, têm demonstrado o
quanto é possível, promover a inclusão social de trabalhadores, de zonas rurais ou urbanas, de sujeitos de diferentes ciclos de vida, de famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade e risco
social, que de forma coletiva vivenciam experiências que incidem não somente nas suas condições de
vida, transformando a si mesmos, como transformando o cenário socioeconômico da comunidade em
que vivem e do país, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável. Assim, é este cenário que nos
mobiliza para não somente desvelar as experiências de tecnologia social que estão sendo desenvolvidas na região metropolitana do Rio Grande do Sul, composta por 32 municípios, como para captar a
percepção dos atores sociais envolvidos com essas tecnologias, no que diz respeito as melhorias das
condições de vida e, sobretudo, a incidência no desenvolvimento local.
Para tanto, a pesquisa, que em parte é socializada neste artigo, denominada: “Tecnologia Social
na Região Metropolitana de Porto Alegre: um estudo para o desenvolvimento local sustentável” tem
como objetivo geral identificar as experiências de tecnologia social desenvolvidas na região metropolitana de Porto Alegre, para desvelar a percepção dos atores sociais envolvidos, visando a difusão e
reaplicação das mesmas, incidindo no desenvolvimento local sustentável da região.
Com base nesse escopo, este artigo trata, de forma sintetizada, sobre os aspectos teóricos que
subsidiam a reflexão sobre Tecnologia Social e desenvolvimento, sobre os caminhos metodológicos
da investigação que vêm sendo percorridos e socializam os resultados parciais da pesquisa desencadeada.
Contextualização da temática: Tecnologia Social e Desenvolvimento
Os atores fundamentais dos processos de desenvolvimento das TSs no cenário brasileiro são: os
movimentos sociais, as cooperativas populares, as organizações não-governamentais, as instituições
TECNOLOGIA SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE: OS CAMINHOS DE UMA INVESTIGAÇÃO
públicas de investigação, as divisões governamentais, entre outros em menor escala, que inovam fomentando iniciativas de inclusão e transformação social. Tais experiências, como: os empreendimentos econômicos solidários, os projetos de geração de renda, de bioenergia, de agricultura sustentável,
de segurança alimentar, de reciclagem de resíduos e todas aquelas que dinamizam o desenvolvimento
dos territórios de maneira integrada e equilibrada (DAWBOR, 2008), se constituem em exemplos de
tecnologias sociais, que vêm sendo implementadas em diferentes territórios do país.
Neste contexto, é preciso reconhecer que as organizações da sociedade civil, têm deixado marcas no processo histórico do debate acerca da tecnologia social e do papel da ciência, tecnologia e
inovação para a inclusão social, para o desenvolvimento sustentável e o enfrentamento da desigualdade social no Brasil. Paralelo às iniciativas de inclusão e desenvolvimento social, pautada na agenda
brasileira, está o poder público que vem tomando decisões para erradicar a miséria e reduzir a pobreza,
ainda que tardiamente, vem implementando políticas de incorporação da grande massa de excluídos
do desenvolvimento nacional. Por isto, a importância de olhar para o conjunto de ações que brotam
da própria iniciativa local, definindo mecanismos para estimulá-la, ou ainda, para reduzir os entraves
que a bloqueiam. Geralmente as TS têm uma dimensão local, pois são aplicadas às pessoas, famílias,
associações, cooperativas, citando estas como exemplo, o que a princípio pode ser considerado uma
vantagem, mas há também, uma dificuldade para que sejam vistas em termos de um projeto nacional
ou de políticas públicas.
Nesta perspectiva, a Tecnologia Social – TS têm emergido no cenário brasileiro como um
movimento que se caracteriza pela capacidade criativa e organizativa de segmentos da população em
gerar alternativas para suprir as suas necessidades e/ou demandas sociais (MACIEL; FERNANDES,
2010). Considera-se TS: “produtos, técnicas ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social” (RTS, 2009). É
importante ressaltar que as experiências de tecnologia social,
mais do que a capacidade de implementar soluções para determinados problemas,
podem ser vistas como métodos e técnicas que permitam impulsionar processos de
empoderamento das representações coletivas da cidadania para habilitá-las a disputar, nos espaços públicos, as alternativas de desenvolvimento que se originam das experiências invadoras e que se orientem pela defesa dos interesses das maiorias e pela
distribuição de renda (BAVA, 2004, p. 1 16).
Erradicar a miséria e reduzir a pobreza, é uma importante decisão política pautada na agenda
brasileira e que vem suscitando debates acerca dos mecanismos e das políticas de erradicação da pobreza em uma realidade social, que ainda experimenta a gravidade das mazelas provocadas pela desigualdade social, responsável pela exclusão de parte significativa da população brasileira. Apesar dos
avanços no campo das políticas públicas e a constituição de fundos públicos vivenciados nos últimos
anos no Brasil, em especial as políticas de transferência de renda, como o Programa Bolsa Família,
ainda visualizam-se índices que colocam o Brasil em destaque no ranking da desigualdade social.
Diante dessas questões, a defesa das Tecnologias Sociais se apresenta, também, como uma
estratégia promissora para superar os limites não somente do atual modelo e padrão de Ciência e
Tecnologia no país, mas como uma resposta mais sintonizada com as demandas da sociedade, por um
modelo de desenvolvimento social sustentável que tenha centralidade no processo de inclusão social
e que seja capaz de erradicar a miséria e reduzir a pobreza, tendo como atores principais a própria
278
Rosa Maria Castilhos Fernandes
sociedade (MACIEL; FERNANDES, 2011).
Processo Metodológico da Pesquisa
Esta pesquisa, de natureza qualitativa e quantitativa, utiliza como referencial epistemológico,
o método dialético crítico de investigação. Numa primeira etapa da pesquisa será realizada uma investigação exploratória nos bancos de dados/WEB, em bases oficiais com registros de TS, como as
experiências de TS incubadas pelas Instituições de Ensino Superior -IES e que estejam em desenvolvimento na região metropolitana de POA/ RS. O processo de identificação das experiências TS se dará
por meio do acesso aos bancos virtuais e produções específicas que contém TS sistematizadas. As TSs
serão agrupadas por temáticas (por exemplo: alimentação, saúde, recursos hídricos, renda, habitação,
educação, reciclagem de resíduos, meio-ambiente, entre outras) e sistematizadas em um espaço virtual
onde conterão informações tais como: temática, local, histórico, objetivo da TS, reaplicação, atores
sociais, cenário inicial, entre outros A definição da moldura amostral, dependerá das TS mapeadas e
suas respectivas temáticas sendo a partir de então, definidas as unidades de análise.
Para cada temática mapeada será selecionada uma TS, cujo critério se baseará no maior tempo
de implementação e desenvolvimento da TS, o que consistirá na segunda etapa da coleta dos dados.
Esta etapa, se realizará por meio de entrevistas abertas com os atores sociais envolvidos com as
experiências de tecnologia social. Serão feitos os contatos (por email, telefone, correio ou visita no
local) com os atores responsáveis pelo desenvolvimento da TS para esclarecê-los e sensibilizá-los a
participarem do processo de investigação. A definição do sujeito que participará da entrevista, será
feita pelos próprios atores sociais envolvidos com a TS.
O termo de consentimento livre e esclarecido, com informações do pesquisador sobre os objetivos da pesquisa e a garantia de sigilo sobre a fonte de informação, consentimento por escrito e autorizado, será assinado antes de iniciar a entrevista. O processo de tratamento estatístico dos dados e a
análise das informações, é a terceira etapa da investigação. Por meio da análise de conteúdo, será possível destacar as partes das narrativas de acordo com os objetivos e questões norteadoras da pesquisa.
Entre os resultados parciais, destacam-se até o momento: predominam entre os municípios da
região metropolitana que desenvolvem TS: Porto Alegre, Alvorada, Canoas, Cachoeirinha, Eldorado
do Sul, Gravataí, Sapiranga, Sapucaia do Sul, Araricá, São Leopoldo, Campo Bom, Novo Hamburgo,
Estância Velha, Nova Santa Rita e Esteio; entre as temáticas destacam-se: educação, meio ambiente,
geração de renda, alimentação, energia, recursos hídricos, reciclagem de resíduos sólidos. Até o mês
de julho de 2012 foram mapeadas 29 TS.
Conclusão
Com base no que foi possível trilhar até aqui, a investigação aponta a existência de um conjunto de TS que vem sendo desenvolvidas na região metropolitana de Porto Alegre e que podem ser
disseminadas e incorporadas como políticas públicas nos municípios da região.
279
TECNOLOGIA SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE: OS CAMINHOS DE UMA INVESTIGAÇÃO
Além disto, pode-se concluir que entre as principias contribuições e relevância deste estudo,
destaca-se: o reconhecimento da interface existente entre as experiências de tecnologia social e as políticas públicas, o que significa avançar na história da democratização do conhecimento, da ciência, da
tecnologia e da inovação social; a possibilidade de considerar a tecnologia social como uma dimensão
“estratégica” que poderá contribuir com a promoção do desenvolvimento sustentável e no combate às
desigualdades sociais e exclusões que ainda marcam profundamente a sociedade brasileira; a produção de conhecimento na perspectiva interdisciplinar; a contribuição com a difusão das tecnologias sociais uma vez que as mesmas são identificadas e ao serem sistematizadas, é possível a sua reaplicação
em diferentes comunidades da região metropolitana, incluindo aquelas que apresentam indicadores de
vulnerabilidade social; a importância do estudo sobre a percepção dos atores sociais envolvidos com
o desenvolvimento de TS, pois são estes os sujeitos que podem desvelar o significado da TS na melhoria de suas condições de vida; a criação de um especo virtual com informações, para potencialização
do trabalho desenvolvido no Tecnosocial da Unilasalle; a discussão que emergirá do processo investigatório sobre as relações entre ciência, tecnologia, inovação e sociedade, principalmente, quando se
trata de articular essas questões com o desenvolvimento local e com a possibilidade de inserção da
Tecnologia Social na agenda das políticas públicas no Brasil.
REFERÊNCIAS
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para o desenvolvimento. Fundação Banco do Brasil: Rio de Janeiro: 2004.
DOWBOR, Ladislau; VANNUCHI, Paulo; POCHMANN, Márcio; CACCIABAVA, Silvio; BRANCO,
Pedro Paulo Martone; PAULA, Juarez de. Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local. Nota
para a edição de 2008. São Paulo, outubro de 2008. Disponível no site: dowbor.org/09dlfinalnovaedica63p.doc. Acesso em agosto de 2012.
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MACIEL, Ana Lúcia Suárez; FERNANDES, Rosa Maria Castilhos. Tecnologias sociais: interface com as políticas públicas e o Serviço Social. Serviço Social e Sociedade. [online]. 2011, n.105, pp.
146-165. ISSN 0101-6628. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010166282011000100009&lng=pt&nrm=iso. Acesso em agosto de 2012.
* Graduada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1987),
mestra em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1998) e doutora
em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2008) com estágio de
doutorado sanduíche no Instituto de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto/Portugal. Professora e Pesquisadora do Mestrado de Memória Social e Bens Culturais da UNILASALLE e
Docente colaboradora do Mestrado de Educação da UNILASALLE.
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UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA
Rodrigo Barcelos da Silva*
Pablo Marcel Parada**
Patrícia Kayser Vargas Mangan***
Abraham Lincoln Rabelo de Sousa****
Introdução
O conceito Cidades Inteligentes1 – (CI) surgiu na década de 90 com o objetivo de incentivar a
definição de novas políticas de planejamento urbano.
Uma cidade inteligente tem o foco no uso racional de qualquer recurso existente contando
com envolvimento colaborativo entre a população das cidades e seus respectivos governos O termo
Cidade Inteligente possui várias definições na literatura científica especializada. Entretanto, todas as
definições convergem para o sentido do uso da Tecnologia da Informação e Comunicação – (TIC) no
tratamento de problemas urbanos. A ideia geral é usar toda a inovação tecnológica existente em prol
da sociedade via produtos e serviços que agreguem valor ao cidadão e proporcionem melhorias na
qualidade de vida.
Entre 2002 a 2005, grandes empresas de tecnologia se interessaram por cidades inteligentes, sendo algumas delas CaldWell1 , Cisco2 , IBM3 e Simens4 . Através do uso da informação
as cidades esperam criar uma visão, prover inovação, gerar oportunidades de emprego e aumentar a
qualidade de vida da população. (Harrison e Donnelly, 2011). O conceito cidade inteligente pode ser
dividido em subáreas conforme ilustrado na figura abaixo.
Figura 1. Uma visão simplificada do modelo urbano
Fonte: Theory of Smart Cities adaptado de (Harrison e Donnelly, 2011))
1
Do inglês Smart Cities.
UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA
No ambiente natural temos o foco na topografia, recursos naturais, geologia e entre outros recursos que envolvem o meio ambiente.
A infraestrutura tem como foco auxiliar em construções de rodovias, utilização da terra, construções entre outros recursos que envolvem a infraestrutura.
A camada de recursos representa os materiais que se originam e depois retornam ao ambiente
natural, após passar por alguns processos de refinação e recomposição.
Em serviços há os subitens relacionados a abastecimento de energia, abastecimento de água,
transporte público e entre outros relacionados a esse tipo subárea.
Na camada sociocultural são enfatizadas as pessoas, a cultura, comercio, política. Ou seja, temos as pessoas dos centros urbanos colaborando e trocando informações entre elas. Essa informação
pode ser processada por outros sistemas e de certa forma auxiliar na tomada de decisão de uma determinada situação dentro da cidade. (Naphade, Banavar, et al., 2011).
O foco deste trabalho esta relacionado aos sistemas socioculturais apresentados na (Figura 1).
Problema e objetivos
O problema de pesquisa explorado por esse estudo está relacionado à necessidade de investigação sobre os recursos requeridos para o desenvolvimento de uma infraestrutura arquitetural que
apoie o desenvolvimento de aplicações que suportem o conceito de cidades inteligentes com foco na
camada sociocultural. Assim, vislumbram-se algumas questões de pesquisa: a) Quais os requisitos
básicos? b) Quais os componentes de software podem ser utilizados? c) Como esses componentes
se relacionam/cooperam para a execução da aplicação? d) Qual estilo arquitetural o sistema deve ser
utilizado?
Desta forma, o objetivo principal deste trabalho é projetar e desenvolver essa infraestrutura
arquitetural para servir como ambiente laboratorial de desenvolvimento de aplicações móveis, com
foco no aspecto sociocultural da área de cidades Inteligentes. Em seguida, aplicar essa arquitetura
no desenvolvimento de uma aplicação piloto, i.e. um sistema de notificações, visando à avaliação da
viabilidade técnica e a observação das suas potencialidades e limitações.
Como objetivo especifico desta arquitetura, destacam-se: agregar diferentes serviços que serão
responsáveis pelo processamento dos dados; e a possibilidade de gerenciar informações. A Figura 2
ilustra o cenário onde aplicação do cliente vai requisitar determinada informação, que será encaminhada para um serviço intermediador e ela vai requisitar o processamento de um determinado serviço.
Após o processamento, o serviço retorna a informação solicitada para o serviço intermediário e ele
envia ao cliente.
282
Rodrigo Barcelos da Silva, Pablo Marcel Parada, Patrícia Kayser Vargas Mangan, Abraham Lincoln Rabelo de Sousa
Figura 2. Processo de execução
Fonte: Autoria própria
Justificativa
Para isso, vislumbra-se a criação de uma arquitetura de controle de serviços que possibilite a
centralização da informação; o acesso facilitado; a agregação de serviços conforme a necessidade; e
que seja uma ferramenta rápida e confiável. Além disso, espera-se remover a responsabilidade da aplicação cliente de processar os dados, enviado-os a um Web Service5 ou para alguma base dados aonde
um sistema específico.
Levando em consideração que o estudo de caso será uma aplicação para dispositivos móveis,
uma arquitetura capaz de remover a responsabilidade do processamento e armazenamento da informação se torna um estudo importante a ser realizado.
Bases teóricas
Segundo (Naphade, Banavar, et al., 2011), atualmente, as cidades enfrentam muitos problemas
infraestruturais resultantes do crescimento urbano, que se refletem com um aumento da procura por
recursos como água, energia, transporte, saúde, educação e segurança. As cidades veem buscando
cada vez mais a TIC para apoiar estratégias sustentáveis, de forma que melhorem a gestão de sua infraestrutura e recursos para atender melhor a população.
Além de existir essas áreas que foram descritas anteriormente dentro do conceito de cidades
inteligentes temos uma iniciativa voltada para indústrias, segundo (Bakici, Almirall, & Wareham,
2012) em um estudo de caso na cidade de Barcelona na Espanha foi definido uma subárea chamada
Smart Disctrict, que possui o objetivo de incentivar a colaboração entre as indústrias e o desenvolvimento urbano.
Porém, quando podemos dizer que uma cidade é inteligente? Conforme (Caragliu, Bo, & Nijkamp, 2009), uma cidade será inteligente a partir do momento que sua população aprender a adaptar
e a inovar. Elas precisam ser capazes de usar a tecnologia em seu benéfico e deixar a mão de obra do
trabalhador mais qualificada.
De acordo com (Sie, Hol., & Chia, 2011), existem duas maneiras de prover uma cidade inteligente: as cidades emergentes; e as cidades remodeladas. As cidades emergentes sãos as que têm
283
UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA
o foco na sustentabilidade, não havendo desperdícios. Já o conceito de cidades remodeladas é mais
aplicado a países desenvolvidos que focam a infraestrutura urbana por meio da utilização de sensores
e tecnologias inteligentes, visando aperfeiçoar o consumo de recursos naturais e melhorar a qualidade
de vida da população.
Levando em consideração o envolvimento da população dentro do conceito em estudo, existe a
importância da colaboração, que deve ser estimulada. Isso envolve permitir a participação ativa da população em todo o processo. Seja pela notificação de eventos ou correção/atualização de informações.
Conforme (Kirwan, 2011), com os problemas urbanos que estão ocorrendo atualmente, há a possibilidade de fazer com que a haja colaboração entre a sociedade para auxiliar na solução dos problemas
que estão ocorrendo e também abrir novos caminhos para o conhecimento.
Ainda sobre a importância da participação dos cidadãos, Naphade, Banavar, et al. (2011) relata
que em Dubuque, 50% dos custos associados a consertos de vazamentos de água em domicílios são
feitos por usuários, que os relatam e acompanham os reparos. Seu feedback perspicaz sobre o consumo de água aumentou a conservação em 10%. Da mesma forma, Seul está usando sua conectividade
com a internet em toda a cidade com objetivo de incentivar o uso do transporte público, fornecendo
informações on-line para os condutores sobre os descontos de seguro, custo reduzido de estacionamento e redução de impostos para aqueles que deixam seus carros em casa um dia útil por semana.
No desenvolvimento de sistemas dentro das cidades inteligentes Harrison e Donnelly (2011)
defendem que é importante envolver e se preocupar com as pessoas que se beneficiarão do novo serviço, focando nos aspectos relacionados à atratividade e o acesso, visando que a população desperte o
interesse em utilizar determinada ferramenta o serviço tecnológico a ser disponibilizado. Além disso,
Rotti e Torensend (2011) enfatizam que adotar uma visão de baixo para cima, uma visão partindo do
público alvo e onde o contexto são as pessoas, seria fundamental para o desenvolvimento de uma cidade inteligente.
Trabalhos Relacionados
Analisando as necessidades, neste trabalho, é utilizado o conceito SOA como base arquitetural, que segundo (Ali, 2012) é um conjunto flexível de princípios de projeto usados durante as fases
de desenvolvimento de sistemas. A implantação de uma arquitetura baseada em SOA irá fornecer um
conjunto integrado de serviços que podem ser usados dentro de áreas negócios que tem seus domínios
diferentes.
Já em relação à aplicação piloto, necessária para avaliar a arquitetura escolhida, temos como
base de inspiração o sistema Cambridge iReports6. Ele tem como objetivo notificar defeitos nas estradas, através de um dispositivo móvel, onde é possível reportar ao um setor responsável uma depressão
que você localizou na rodovia e que esta prejudicando o trânsito dos automóveis, por exemplo. Como
segundo trabalho relacionado, tem uma aplicação de origem Italiana chamda de Eureka!7, essa aplicação foi desenvolvida para ser apresentada no evento Apps4Italy8. A aplicação tem como objetivo apresentar dados da qualidade de vida em uma determinada posição geográfica. Trata-se de um aplicativo
gratuito e aberto para ser usados em dispositivos móveis, e utiliza o sistema operacional Android9.
284
Rodrigo Barcelos da Silva, Pablo Marcel Parada, Patrícia Kayser Vargas Mangan, Abraham Lincoln Rabelo de Sousa
Desenvolvimento/modelo
Esta seção apresenta uma descrição do problema, o cenário, a solução onde vai envolver a
arquitetura e o estudo de caso.
Solução
Criar uma aplicação piloto análoga ao Cambridge iReports, que tem o objetivo de reportar
defeitos nas estradas, entretanto a aplicação de notificação desde trabalho vai possibilitar ao frequentador da universidade reportar sugestões e defeitos nos recursos oferecidos pela instituição de ensino.
Desta forma, a comunidade acadêmica pode sugerir melhorias ou informar a falha de algum
recurso oferecido como um ar-condicionado com defeito. Com esse tipo de sistema pode ser visto as
necessidades dos frequentadores da universidade e possibilita melhorar o ambiente dentro de um contexto colaborativo.
Arquitetura
Em primeiro momento, foi questionado o que vamos precisar para criar uma arquitetura para
ser utilizada pelo sistema de notificação. Desta forma, foram levantados alguns questionamentos: a)
Como será gerenciada a informação fornecida pelo usuário? b) Será necessário disponibilizar para diferentes plataformas, como iOS10, Android? c) Quais os recursos podem ser utilizados? d) Aplicações
que não estão relacionadas à plataforma mobile utilizarão o recurso da arquitetura?
Para criar essa arquitetura é utilizado um estilo de arquitetura chamada SOA. Uma plataforma
deste tipo possui uma composição de diferentes tecnologias. Assim, podemos ter três tipos de serviços
dentro deste conceito, um serviço solicitante, um serviço provedor e um intermediador. A (Figura 3)
ilustra esses três conceitos onde: a) Serviço solicitante: é a entidade que basicamente exige algum
trabalho operacional realizado por outro serviço, onde é realizada uma busca através de listas de descrições dos serviços prestados pelo intermediador de serviço. Também é responsável pela ligação dos
serviços após a sua descoberta. b) Serviço provedor: é a entidade que tem acesso a outros serviços,
também é responsável pela criação de serviços e de suas publicações no corretor de serviços. c) Serviço intermediador: tem a informação sobre todos os serviços registrados dentro do ESB, os mesmos
responsáveis pelo redirecionamento de requisições para o solicitante do serviço correspondente e
provedor.
285
UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA
Figura 3. Uma visão dos serviços SOA
Fonte: Adaptado de (Ali, 2012)
No presente projeto foi direcionado o foco para um ESB que por sua vez é um middleware11,
i.e. um mediador entre software e outras aplicações e aplicações chaves. (Ali, 2012)
Serviço intermediador
Segundo o site da Red Hat12, o ESB nos possibilita a implementação de uma arquitetura orientada a serviços, como fornecedor desta plataforma temos um servidor de código aberto chamado jBoss
do Java EE, hoje pertencente a Red Hat. Essa arquitetura de software fornece serviços fundamentais
para arquiteturas complexas através de mecanismos de mensagens orientados a eventos e baseada em
padrões. (Ali, 2012)
Atualmente temos outras empresas que oferecem o serviço intermediador sendo duas delas,
a IBM com o WebShere ESB (IBM, 2012) e a Oracle com o OSB (ORACLE, 2012). No presente
trabalho é utilizada a disponibilização da Red Hat por ter uma versão Open Source13.
Com a utilização do Enterprise service bus conforme Ali e Red Hat (2012) temos os seguintes benefícios para
aplicações que utilizaram a arquitetura: a) fornecer conectividade de sistemas; b) Encaminhamento
ou roteamento inteligente. Isto pode ser encaminhamento conteúdo de base via uma mensagem de um
sistema para o outro com base no seu conteúdo; c) Segurança e confiabilidade; d) Monitoramento de
serviços de gestão e registros de logs; e) Conectividade com outros modelos de serviços.
Segundo Ali (2012), o objetivo principal deste sistema, é a interoperabilidade. Usado para integrar diferentes plataformas e linguagens, abaixo uma figura ilustrativa da estrutura típica de um ESB
em um ambiente SOA.
286
Rodrigo Barcelos da Silva, Pablo Marcel Parada, Patrícia Kayser Vargas Mangan, Abraham Lincoln Rabelo de Sousa
Tendo definido um serviço intermediador, que no presente projeto ele não possui a responsabilidade de realizar regras de negócio, pois como se trata de um intermediador, o seu papel é somente realizar o
intermédio entre plataformas. Com isso surge a necessidade de criar um serviço para realizar as regras de
negócio estabelecidas pelas funcionalidades que serão criadas, devido a isso foi analisada a possibilidade
de criar serviços web.
Figura 4. Uma visão sobre ESB
Fonte: Adaptado de (Ali, 2012)
Serviço web
Analisando a possibilidade de criar um ou mais serviços web, que segundo (Castillo, Bernier,
e. tal., 2011) temos duas abordagens principais REST e SOAP. Em sua pesquisa o autor comenta que
o ideal para quando temos baixa largura de banda e pouco recurso é usar a abordagem REST.
Temos também que segundo (DiMaggio, Dimaggio, e tal., 2011) o modelo SOAP também
é suportado pelo servidor de aplicação jBoss, logo se for necessário criar um serviço web com esse
modelo será suportado.
Envolvendo a utilização da tecnologia para dispositivos moveis, onde (Hamad, Saad, & Abed,
2010) relata que o melhor serviço web para ser utilizado por este tipo de dispositivo seria o RESTful,
que por sua vez são aplicações web construídas sobre a abordagem REST. Em sua pesquisa o autor
realizou testes usando as duas abordagens descritas, onde foi coletado o tamanho da mensagem e o
tempo de resposta, foi realizado operações de concatenação de strings e adicionado números do tipo
float em arrays. Abaixo duas tabelas ilustrando o resultado dos testes realizados, que com base nos
mesmos usaremos o modelo REST.
287
UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA
Tabela 1. Teste com tamanho da mensagem em serviços web REST e SOAP
Fonte: Adaptado de (Hamad, Saad, & Abed, 2010)
Tabela 2. Teste com tempo de execução em serviços web REST e SOAP
Fonte: Adaptado de (Hamad, Saad, & Abed, 2010)
Repositório de dados
No desenvolvendo da aplicação piloto temos a necessidade de criar um local para armazenar
os dados das movimentações realizadas no sistema, nesse caso foi estudada a possibilidade de usar o
servidor de banco de dados MySQL, que segundo (Site sobre Mysql, 2012) possui uma licença livre
e atende as necessidade da aplicação piloto. Em primeiro momento não existe a necessidade de trabalhar com um servidor de banco de dados mais robusto que o MySQL, pois não vai existir muitos
serviços solicitando transações para o banco de dados. Caso precise de troca ou adicionar algum outro servidor de repositório de dados o jBoss, servidor de aplicação, oferece a funcionalidade de criar
datasources14 para realizar as conexões. Desta forma em caso de uma troca é só alterar os parâmetros
de conexão, quando o serviço precisar utilizar o banco de dados vai utilizar o que está configurado no
datasource (Site sobre Jboss, 2012)
Considerações finais
Em relação á área cidades inteligentes, podemos dizer que possibilita muitos trabalhos e pesquisas dentro deste conceito e que há uma grande possibilidade destes trabalhos e pesquisas agregarem valor dentro das cidades, resolvendo problemas que antes não eram vistos ou não existiam.
Na construção da arquitetura foi utilizado um notebook Dell modelo D630, com 4Gb
288
Rodrigo Barcelos da Silva, Pablo Marcel Parada, Patrícia Kayser Vargas Mangan, Abraham Lincoln Rabelo de Sousa
de memória e um processador core 2 duo em um sistema operacional Ubuntu 12.10. Quando realizado
a inicialização dos servidores de aplicação foi possível notar que eles utilizam bastante os recursos de
hardware, caso a arquitetura for utilizada em ambiente real, por exemplo, em uma cidade seria de boa
utilidade usar clusters15 para ter um melhor desempenho.
Envolvendo a utilização do ESB, temos algumas empresas que já utilizam esse modelo de
serviço e foram considerados casos de sucesso, conforme (REDHAT, 2012) a Ampersand16 no México
utiliza o ESB oferecido pela Red Hat. Segundo (ORACLE, 2012) a Telenet17 da Bélgica ela utiliza
uma solução da Oracle o OSB e temos também a empresa Humana S.A18 do Equador que utiliza a
solução disponibilizada pela IBM o WebSphere ESB (IBM, 2012).
A arquitetura desenvolvida é escalável, desta forma é possível agregar outros serviços conforme a necessidade e abre a possibilidade de desenvolvimentos de trabalhos futuros. Com a utilização
do ESB podemos utilizar outros modelos de serviços além dos
que foram citados.
Levando em consideração a aplicação piloto, a mesma teve um bom funcionamento com arquitetura. Já relação da utilização da posição geográfica fornecida pelo dispositivo mobile, temos que
cada dispositivo vai ter a sua margem de erro na coleta da longitude e latitude, vale ressaltar que em
ambientes fechados não foi coletada a posição geográfica pelo GPS, o dispositivo acabou utilizando a
conexão 3G do celular. Considerado isso, possuir uma boa conexão do celular com a internet via 3G,
pode garantir uma comunicação estável e a posição pode ser mais precisa.
REFERENCIAS
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2012. ISBN ISBN: 9783848432271. Disponivel em: <http://books.google.com.br/books?id=uSq5tgAACAAJ>.
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Cisco http://www.cisco.com/web/strategy/smart_connected_communities.html
3
IBM http://www-03.ibm.com/innovation/us/thesmartercity/index_flash.html
4
Simens http://www.siemens.com/sustainable-city/sustainable-city.html
5
http://www.w3schools.com/webservices/ws_intro.asp
6
Cambridge iReports: Sistema utilizado a universidade de Cambridge. http://www.cambridgema.gov/iReport
7
Aplicação Eureka!: http://eurekatheapp.wordpress.com/progetto/
8
É uma competição que envolve cidades da União Europeia http://www.appsforitaly.org/en/
9
Sistema operacional utilizado em dispositivos móveis http://developer.android.com/guide/basics/what-is-android.html
10
iOS: Plataforma utilizada pela Apple. https://developer.apple.com/technologies/ios/
11
Middleware: É o neologismo criado para designar camadas de software que não constituem
diretamente aplicações, mas que facilitam o uso de ambientes ricos em tecnologia da informação. A camada de middleware concentra serviços como identificação, autenticação, autorização, diretórios, certificados digitais e outras ferramentas para segurança - http://www.rnp.br/noticias/2006/not-060926.
html
12
http://www.redhat.com/products/jbossenterprisemiddleware/application-platform
290
Rodrigo Barcelos da Silva, Pablo Marcel Parada, Patrícia Kayser Vargas Mangan, Abraham Lincoln Rabelo de Sousa
13
Open Source: Não possui fins lucrativos
14
Datasource: http://docs.oracle.com/javase/6/docs/api/javax/sql/DataSource.html
15
Cluster: http://technet.microsoft.com/en-us/library/cc785197(v=ws.10).aspx
16
Ampersand: http://www.ampersand.com/
17
Telenet: www.telenet.be
18
Humane S.A: www.humana.com.ec
* Rodrigo Barcelos da Silva
Bacharel em Ciência da Computação - (Unilasalle)
** Pablo Marcel Parada
Graduando em Ciência da Computação (Unilasalle)
*** Patrícia Kayser Vargas Mangan
Doutora em Computação pela UFRJ
**** Abraham Lincoln Rabelo de Sousa
Mestre em Ciência da Computação pela UFRGS
291
7. ENGENHARIA, PESQUISA ACADÊMICA E
EDUCAÇÃO AMBIENTAL
AVALIAÇÃO DO IMPACTO DA POLUIÇÃO SONORA SOBRE OS USUÁRIOS DE
TRANSPORTE COLETIVO NA BR 116 NO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS
Geraldo José Rodrigues Alves *
Saulo Padoin Chielle **
Introdução
O ruído afeta o bem-estar físico e mental das pessoas, sendo que, diariamente, milhares de
cidadãos são expostos a ele, assim como o habitante das grandes cidades vive imerso numa atmosfera de ruídos, mesmo durante o sono, com os quais parece estar acostumado, como, tráfego, buzinas, alarmes contra roubos, escapamentos, motores envenenados, algazarras, entre outros. (SOUZA,
ARINELSON, 2005).
A World Health Organization (WHO, 2003) recomenda que em áreas residenciais o nível de
ruído não ultrapasse o nível sonoro equivalente Leq 55 dB(A). Em adição, estipula que o nível sonoro
de até Leq 50 dB(A) pode perturbar, mas o organismo se adapta facilmente a ele. A partir de 55 dB(A)
pode haver a ocorrência de estresse leve, acompanhado de desconforto. O nível de Leq 70 dB(A) é
tido como o nível de desgaste do organismo, aumentando os riscos de infarto, derrame cerebral, infecções, hipertensão arterial e outras patologias. Ao nível sonoro equivalente de Leq 80 dB(A) ocorrem a
liberação de endorfinas, causando sensação de prazer momentâneo e níveis sonoros da ordem de Leq
100 dB(A) podem levar a danos e ou perda da acuidade auditiva.
No Brasil, há legislações e normas focadas a medições e exposição ao ruído referente a atividades ocupacionais, bem como avaliação de ruído em áreas habitadas, levando-se em consideração as
emissões referentes a estabelecimentos ou em habitações.
Com a presença cada vez maior de veículos automotores nas rodovias e estradas brasileiras,
há uma percepção do aumento dos níveis de ruído gerado nos grandes centros urbanos devido a movimentação de veículos.
Muitas cidades brasileiras possuem rodovias de grande trafego de veículos automotores que
cruzam áreas centrais de municípios. Um desses motivos é devido a falta de planejamento desses municípios que permitiu que as áreas urbanas fossem crescendo desordenadamente prejudicando tanto
a mobilidade urbana, quanto a qualidade de vida das pessoas que convivem com rodovias de grande
nas áreas centrais do município.
Na cidade de Canoas/RS esse fato é bem evidenciado, onde a BR 116 umas das principais
rodovias de acesso a Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, cruza a área central do
município havendo uma movimentação de pessoas e veículos movimentando-se pela própria cidade
bem como utilizando a rodovia para acesso a outros municípios.
Próximo à rodovia BR 116, no trecho localizado no município de Canoas/RS, há várias paradas
de ônibus, com apenas uma cobertura de proteção contra chuvas leves. Nestas paradas não há proteção
AVALIAÇÃO DO IMPACTO DA POLUIÇÃO SONORA SOBRE OS USUÁRIOS DE TRANSPORTE COLETIVO NA BR 116 NO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS
contras chuvas intensas, ventanias, frio, ruídos e vibrações. Dessa forma, este trabalho visa medir e
avaliar os impactos gerados pelo ruído gerado pelo fluxo de veículos automotores durante os horários
de pico. Este estudo visa ser um subsídio para a tomada de decisão de qual tipo de projeto de paradas
de ônibus deve ser utilizado próximo às rodovias, visando a melhoria da qualidade de vida dos usuários de transporte coletivo.
Ruído ambiental
Ruído é uma palavra derivada do latim rugitu que significa estrondo. Acusticamente é constituído por várias ondas sonoras com relação de amplitude e fase distribuídas anarquicamente, provocando uma sensação desagradável, diferente da música (ALMEIDA et al. 2000).
Segundo Hassal (1979), ruído é definido como som indesejável.
O ruído ambiental é aquele que se percebe ou que se origina em locais públicos, sendo um
ruído que causa efeitos coletivos e que interfere na qualidade ambiental de um lugar (COLLADOS,
1998).
O ouvido é o órgão coletor dos estímulos externos, transformando as vibrações sonoras em
impulsos sonoros para o cérebro. É, sem dúvida, a estrutura mecânica mais sensível do corpo humano,
pois detecta quantidades mínimas de energia. Para fins de estudo, o ouvido é dividido em três partes:
ouvido externo, ouvido médio e ouvido interno. O ouvido externo compõe-se do pavilhão auditivo
(orelha), do canal auditivo e do tímpano (FERNANDES, JOÃO CANDIDO, 2002).
Sabe-se que entre os gregos, em torno do ano 600 a.C., os Sybaristas proibiam trabalho em
metal que exigisse o uso do martelo e também a criação de galos dentro dos limites da cidade, pelo
ruído provocado. O som, em termos físicos, é a sensação devida às flutuações de pequena escala da
pressão do ar em torno da pressão atmosférica média local (SCHULTZ, 1982).
Na realidade, qualquer meio elástico pode propagar o som, mas a propagação no ar é a mais
importante no escopo do presente trabalho. Dependendo da natureza do som, essas flutuações podem
ou não seguir padrões repetitivos. Através delas, energia é transmitida pelo meio gasoso, líquido ou
sólido pelo qual o som se propaga, a partir da fonte sonora (HASSAL E ZAVERI, 1979).
Medição de Ruído Ambiental
Segundo Quadros (2004) para a medição de pressão sonora utiliza-se números muito grandes,
tornando os cálculos trabalhosos e indesejáveis. O ouvido humano não responde linearmente, mas
logaritmamente a uma dada excitação. Por este motivo decidiu-se expressar grandezas acústicas (e,
por conseguinte, grandezas vibratórias) como uma razão logarítmica de um valor medido em relação
a um valor de referência. Isto reduz os números a proporções mais manuseáveis e a unidade resultante
chamada Bell (em homenagem a Alexander Graham Bell) é definida como o logaritmo de base 10 da
razão de suas grandezas acústicas “potência, intensidade” ou duas grandezas representativas de uma
296
Geraldo José Rodrigues Alves, Saulo Padoin Chielle
vibração “deslocamento, velocidade, aceleração”. Esta unidade foi considerada ainda muito grande,
quando de sua aplicação prática, sendo que então finalmente adotou-se o decibel (1/10 * Bell) como
unidade medida.
Segundo Fernandes (2002) o dobro de um numero qualquer é o valor deste multiplicado por
dois (exemplo, 85 o dobro é 170). Na escala em decibel o dobro é a soma logarítmica de 3 dB. Então,
se em um decibelímetro eu obtiver 85 dB, seu dobro é 88 dB e não 170 dB em função da escala logarítmica.
Nível equivalente de pressão sonora, Leq, é um nível constante que equivale, em termos de
energia acústica, aos níveis variáveis do ruído, durante o período de medição, é definido um valor único, chamado nível equivalente de pressão sonora, Leq, que é o nível sonoro médio integrado durante
um intervalo de tempo. É dado em dB, e é expresso por:
Figura 1: Leq.
Fonte: Fernandes, 2002
Onde:
- T = (t2 – t1) = tempo total de medição,
- p(t) = pressão sonora instantânea,
- p0 = pressão de referência (2.10-5 N/m2).
Utiliza-se também o anexo da ABNT-NBR 10.151 que apresenta um método alternativo para
o cálculo do nível de pressão sonora equivalente, Leq, quando o medidor de nível de pressão sonora
não dispõe dessa função, como é este caso, portanto, o nível de pressão sonora equivalente, LAeq, em
dB(A), deve ser calculado pela expressão:
Figura 2 – LAeq.
Fonte: ABNT – NBR 10.151
O nível equivalente é representado então por um valor constante que durante o mesmo tempo T
resultaria na mesma energia acústica produzida pelos valores instantâneos variáveis de pressão sonora. Portanto, um nível equivalente Leq tem o mesmo potencial de lesão auditiva que um nível variável
considerado no mesmo intervalo de tempo. Os critérios para lesão permitem essa equivalência até
aproximadamente 115 dB(A) de nível máximo, a partir do qual podem ocorrer lesões com exposição
de curta duração. (QUADROS, 2004).
297
AVALIAÇÃO DO IMPACTO DA POLUIÇÃO SONORA SOBRE OS USUÁRIOS DE TRANSPORTE COLETIVO NA BR 116 NO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS
Transporte público
O serviço público de transporte coletivo teve início em 1661 com o francês Blase Pascal. O
transporte era feito em carruagens de oito lugares com tração animal, seguindo itinerário, horário e
preço estabelecido antecipadamente. (VICASA, 2012).
Foi no início do século XX que surgiu primeiro veículo automotor no mundo e foi fabricado
pelo alemão Karl Benz. Era um triciclo com motor de quatro tempo refrigerado a água. Após, o Sr.
Benz criou também o primeiro ônibus a gasolina, que começou a operar no ano de 1895. (VICASA,
2012).
No ano de 1995, a população brasileira era de 152 milhões de pessoas, e aproximadamente 120
milhões (79%) de pessoas, nesta época, moravam em áreas urbanas. A urbanização da população foi
contínua e no ano 2000 esta proporção passou dos 80% e no ano 2000 atingiu 90% em 2010. (VICASA, 2012).
O transporte de mercadorias por caminhões e de pessoas por ônibus dominaram o mercado
nacional feito por meio das rodovias em áreas rurais e urbanas. No âmbito nacional, estima-se que
96,2% dos passageiros-km são processados em rodovias, 1,81% em ferrovias e metrôs e o restante por
hidrovias e meios aéreos. Em relação às cargas, 63,7% das toneladas-km são transportadas em rodovias, 20,7% em ferrovias, 11,5% em hidrovias e o restante por gasodutos/oleodutos, ou meios aéreos.
(GEIPOT, 1997).
Consequentemente, o transporte rodoviário é responsável pela maior parte da energia consumida no transporte geral, sendo o óleo diesel o combustível principal. Em relação às questões institucionais, tanto as ferrovias quanto as rodovias federais estão sendo transferidas para os governos estaduais
ou estão sendo privatizadas. Grandes investimentos estão projetados para construir hidrovias, para
servir o Mercosul na região sul e os mercados Asiático e Europeu nas regiões norte/nordeste. (GEIPOT, 1997).
Nas áreas urbanas, o ônibus a diesel é a forma dominante de transporte. Estima-se que haja
em operação cerca de 95.000 ônibus, transportando 50 milhões de passageiros por dia. (ANFAVEA,
1997).
Em 1996, havia 726 composições, 195 carros e 61 locomotivas em operação. Nas cidades de
renda média mais alta, como no sudeste sul do país, o automóvel particular atende grande parte das
viagens motorizadas (50% delas, no caso da Região Metropolitana de São Paulo). (CMSP, 1997).
A indústria automotiva nacional é composta por várias empresas multinacionais, que produzem
atualmente 1,8 milhões de veículos por ano. Os automóveis correspondem a mais de 80% da produção. (ANFAVEA, 1997).
Sistema de transporte em Canoas
Segundo (VICASA, 2012) no início do século XX, mais precisamente no ano 1908 é foi disponibilizado no Rio de Janeiro o primeiro serviço regular de ônibus a gasolina no Brasil. E no ano de
298
Geraldo José Rodrigues Alves, Saulo Padoin Chielle
1918 foi criado o serviço de carros elétricos movidos a bateria, vindo dos EUA que operaram durante
10 anos. Após os “Bondes com tração animal e Bonde Elétrico” chegou em Porto Alegre o primeiro
ônibus, um Chevrolet Pavão comprado em 1926 por um empresário local, onde mais tarde fundaria o
que hoje conhecemos por “Central S/A” de São Leopoldo.
A história da SOCAL, Sociedade de Ônibus Canoense Ltda. Fundada em 15 de dezembro de 1947, começa tendo como objetivo realizar o transporte coletivo de passageiros entre Canoas e Porto Alegre, nas linhas intermunicipais e urbanas. Os veículos
utilizados para o transporte de passageiros eram importados, das marcas Chevrolet,
movidos a gasolina e os Volvos, Bussing à diesel com carrocerias de madeiras. A ideia
de apostar no transporte de passageiros foi fortalecida em 1965, quando foram adquiridas cotas de outras empresas de ônibus, tais como a Sociedade de Ônibus Canoense
Ltda., Sociedade de Ônibus Chácara Barreto Ltda., Sociedade Ônibus Rio Branco.
(VICASA, 2012, p. 1).
No anos de 1981, a empresa Vicasa inovou e incorporou outras empresas de ônibus conforme
demonstra a citação acima e esta incorporação resultou na Viação Canoense S/A – VICASA em 1965.
A empresa seguiu atuando no ramo de transportes públicos nos municípios de Cachoeirinha - Porto
Alegre, parte do município de Gravataí - Porto Alegre, Gravataí - Canoas e Cachoeirinha – Canoas.
“Ao longo dos anos, os serviços foram sendo aprimorados com a modernização da frota, investimentos em recursos humanos, procurando valorizar e aperfeiçoar o trabalho e as ações de 1.600 colaboradores que operam na frota, hoje com 400 ônibus”. (VICASA, 2012. p. 2).
Materiais e Métodos
Para realização do estudo utilizou-se os seguintes equipamentos para medições de ruídos:
a. Decibelimetro Instrutherm modelo DEC-470 número de série 479685, com data e número do
último certificado de calibração datado e numerado respectivamente em 06 de fevereiro de
2012 – 28780/12, homologado pelo Inmetro órgão certificador de aparelhos para esta finalidade; este equipamento possui as seguintes funções:
o Resposta Rápida (FAST) e Lenta (Slow);
o Função LEQ para o último minuto;
o Função PEAK HOLD: Congela o valor máximo encontrado (pico);
o Microfone de eletreto condensado de ½ polegadas;
o Faixa de frequência: 31,5 Hz a 8 kHZ.
b. GPS Garmin foi utilizado para georreferenciar as paradas de ônibus. O GPS tem a seguintes
características: eTrex Legend GPS de março de 2001 Número de serie 190-00205-02.
c. Régua de madeira de 1,20 metros conforme ABNT NBR 10151 foi utilizada com a finalidade de
posicionar o decelibelímetro e como forma de apoio no momento dos monitoramentos.
Os monitoramentos foram realizados nos dias 12, 13, 14, 15, 16, 19 e 20 de março de 2012,
durante 20 minutos (tempo médio de espera no município de Canoas/RS.
Como referênciade monitoramento foi observado a ABNT-NBR 10.151 e a Norma Regulamentadora - NR 15 sendo que os dados coletados seguem a utilização do critério da NHO - Norma
de Higiene Ocupacional, com os medidores dentro das condições de umidade, pressão e temperatura
299
AVALIAÇÃO DO IMPACTO DA POLUIÇÃO SONORA SOBRE OS USUÁRIOS DE TRANSPORTE COLETIVO NA BR 116 NO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS
especificadas pelos fabricantes
Resultados e Discussões
Por meio dos monitoramentos realizados constata-se que os valores ultrapassaram o limite
máximo de exposição utilizando como base a Norma Regulamentadora 15 – NR15 (determina limites
de ruído que um trabalhador poderá está exposto por dia), porém é uma referência, pois a norma é
adequada para trabalhadores em avaliação laboral.
Utilizando a ABNT-NBR 10.151 (norma que fixa níveis de ruído que são prejudiciais a saúde
e ao sossego público) verificamos que os limites também são extrapolados devido a NBR ser mais
restritiva que a NR 15.
Nas figuras a seguir pode se verificar os níveis de ruído por parada de ônibus considerando
limites de ruído da NBR 10151 (cor azul) e NR 15 (cor vermelha).
Gráfico 1 - Comparativo NBR X
NR parada 1
Gráfico 2 - Comparativo NBR X
NR parada 2
Fonte: Autoria própria, 2012.
Fonte: Autoria própria, 2012.
300
Geraldo José Rodrigues Alves, Saulo Padoin Chielle
Gráfico 3 – Comparativo NBR X
NR parada 3
Gráfico 4 – Comparativo NBR X
NR parada 4
Fonte: Autoria própria, 2012
Fonte: Autoria própria, 2012
Gráfico 5 – Comparativo NBR X
NR parada 5
Gráfico 6 – Comparativo NBR X
NR parada 6
Fonte: Autoria própria, 2012
Fonte: Autoria própria, 2012
A Norma Regulamentadora 15 é a referência de analise de limites de ruído que determinada a
quantidade de ruído a que um trabalhador poderá ficar exposto por dia, porém, para este estudo, é uma
referência, pois a mesma é adequada para trabalhadores em avaliação laboral.
Utilizando a ABNT-NBR 10.151 verificou-se que os limites também são extrapolados devido a
NBR ser mais restritiva que a NR 15. A NBR 10151 é o Amparo Legal correto, por tratar de conforto
acústico em áreas urbanas, porém na NBR 10.151 não faz citação de rodovias, portanto tivemos de
realizar um enquadramento para adequarmos o monitoramento.
301
AVALIAÇÃO DO IMPACTO DA POLUIÇÃO SONORA SOBRE OS USUÁRIOS DE TRANSPORTE COLETIVO NA BR 116 NO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS
As paradas da Rodoviária e do Centro Comercial (parada 2 e 5) respectivamente demonstraram
serem as que possuem os maiores valores de ruído onde em caso de priorização de ações deveriam ser
as primeiras a sofrerem alguma ação de atenuação dos ruídos.
A Lei municipal n°4328 do município de Canoas que trata da poluição sonora tem como base
as ABNT-NBR 10.151, portanto os limites também são ultrapassados conforme esta normativa.
Conclusões
O monitoramento diário de 20 minutos nas paradas da BR 116 em Canoas comprova que as
paradas de ônibus são locais insalubres conforme adequação legal.
Um estudo técnico na busca de soluções eficientes que protejam adequadamente a população
pode ser construído com atitude prevencionista e com conhecimento do problema estudado.
A posição das seis paradas de ônibus estudadas sugere que a solução viável tecnicamente e economicamente é virar as proteções que atualmente estão nas paradas, ou seja, invertendo as proteções
poderemos ter resultados quanto a atenuação dos ruídos sobre os usuários de ônibus.
Como no município de Canoas não existe programas de prevenção a dose de ruído, há somente
atitudes curativas, a população esta sujeita a desenvolver doenças relacionadas a dose de ruído e medidas simples podem minimizar esta exposição.
O estudo demonstra que para as concepções de projeto de paradas de ônibus deve ser considerado o fluxo de pessoas e veículos automotores, estabelecendo paradas com proteção adequada em
área de grande fluxo.
O tema é de suma importância para projetos de novas paradas, pois devemos primar pela prevenção a exposição ao ruído que pode ocasionar malefícios à população em formas de diversos tipos
de doenças assim como modificações posteriores podem ser mais onerosas.
REFERÊNCIAS
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sociedade brasileira de acústica, 18, 1998, Florianópolis. Anais. Florianópolis: SOBRAC, p. 169-177,
1998.
FERNANDES, João Candido. Apostila desenvolvida para as disciplinas: acústica e ruídos. (Graduação
302
Geraldo José Rodrigues Alves, Saulo Padoin Chielle
em Eng. Mec), Ruídos (Especialização em Engenharia Segurança do Trabalho), Acústica e Ruídos
(Curso de Aperfeiçoamento), Ruídos Urbanos (Curso de Extensão) Faculdade de Engenharia.
Unesp. Bauru Departamento de Engenharia Mecânica - Laboratório de Acústica e Vibrações – LAV,
setembro, 2002. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/7839807/AcUstica-e-RuIdos-Apostila1-Pate-Joao-Candido-Fernan. Acesso em 15 maio 2012.
GEIPOT/MT. Anuário Estatístico dos Transportes. Brasília: 1997.
GOELZER B., HANSEN C. H., SEHRNDT G. A. Occupational Exposure to Noise: Evaluation, Prevention and Control. Dortmundo: Federal Institute for Occupational Safety and Health, 2001.
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dezembro de 1998: Dispõe sobre ruídos urbanos. PUBLISHERS LTD, 1982.
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em Ensino de Ciências da Saúde e do Ambiente. Centro Universitário Plínio Leite, Rio Janeiro, 2005.
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8 maio de 2012.
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VICASA. História do transporte. Disponível em: http://www.vicasa.com.br/folder_ed03_03.asp. Acesso em maio de 2012.
* Graduado em Engenharia Ambiental pelo Centro Universitário La Salle – Unilasalle
** Graduado em Engenharia Ambiental pela Universidade Luterana do Brasil (2009). Experiência na
área de Engenharia Sanitária. Especialização em Gestão Empresarial pela Fundação Getulio Vargas,
Brasil (2010) Professor Universitário do Centro Universitário La Salle.
303
PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E
PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS
Alexsandra Fachinello*
O patrimônio ambiental adquire no século XXI relevância social, uma vez que a compreensão
de meio ambiente associa natureza e ser humano. Sendo assim, o desafio consiste em promover a
conservação de áreas naturais com a participação da população local, compreendendo-a como parte
do espaço e da história destas áreas denominadas de patrimônio ambiental.
O conhecimento dos espaços ambientais representados por matas e outros ecossistemas presentes em áreas urbanas é imprescindível para a gestão dos mesmos e para o processo de tomada de
decisões. Menegat e Almeida (2004) enfatizam que quanto mais informações sobre o ambiente local
estejam disponíveis aos cidadãos em centros de saberes locais, situados em associações de moradores,
escolas, instituições públicas, etc., melhor.
Chauí (2003, p.47) propõe a distinção entre natureza e cultura e define a natureza como “realidade físico-química e biológica [...]. Em outros termos, a Natureza é a ordem e a conexão universal e
necessária entre as coisas, expressas em leis naturais”, ou seja, natureza excluiria a vontade e a intervenção humana. No entanto, a concepção que temos sobre o conceito de natureza também é cultural.
Meio ambiente, natureza e cultura são conceitos que se cruzam e trazem consigo, mesmo que
indiretamente, a relação entre o homem e o espaço em que vive. A partir desta perspectiva é compreendido o patrimônio ambiental: a natureza tomada como patrimônio nacional, portanto é fruto de uma
construção histórica e compreendida a partir das concepções ideológicas.
As comunidades que vivem em áreas passíveis de serem consideradas como patrimônio ambiental têm importante papel no processo de conservação.
Machado e Braga (2010, p.19) colocam que ao poder público, às instituições de ensino e às
organizações da sociedade civil cabe a responsabilidade de trabalhar a questão do patrimônio junto à
comunidade:
Cabe aos gestores públicos, às instituições de ensino e às organizações da sociedade
civil em cada cidade conceber programas e estratégias que estimulem a reflexão sobre
o sentido e a importância do patrimônio, abrindo caminho para que a comunidade
reconheça a preservação como uma aliada da promoção de melhores relações sociais,
melhores condições de vida e caminho para um desenvolvimento mais justo e equilibrado.
A difusão do conhecimento sobre a história do lugar, sobre sua importância social e ambiental
e a compreensão da legislação são fatores que viabilizam as iniciativas preservacionistas.
Conforme Leff (2005, p.126): “A questão ambiental emerge novos valores e novos princípios
que levam à reorganização social e da produção para a reapropriação da natureza e da cultura”. Para o
autor existe urgência de cidadania como novo projeto social.
PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS
A preservação do patrimônio ambiental contribui para construção da cidadania e para a formação da identidade, pois estabelece ligação entre passado e presente através do resgate da memória
social.
Em Canoas, a relação entre a comunidade e o meio ambiente é descrita por Mayer (2009), que
apresenta em seu livro “Memória Ambiental de Canoas”, uma descrição e análise de um questionário
aplicado entre moradores da cidade acerca da percepção dos habitantes sobre o meio ambiente. Entre
os resultados apresentados pelo autor, encontra-se a pequena atuação do poder público municipal, que
limita-se à promoção de eventos esporádicos, e à baixa consciência crítica da comunidade nos assuntos
relacionados ao meio ambiente. Segundo Mayer (op.cit., p.123), “todos concordam que é muito baixa
a consciência crítica e a participação da comunidade.” Neste item, o autor destaca o desconhecimento da população sobre a origem da água que abastece a cidade e o destino do esgoto coletado. Além
disso, o autor também questionou a visão dos habitantes sobre a atuação de entidades ambientalistas
e descreve que houve unanimidade entre os entrevistados que as Organizações Não-Governamentais
(ONGs) e entidades ambientalistas apresentam fraca atuação e com baixa presença na mídia.
O processo de urbanização de Canoas produziu áreas naturais fragmentadas e na grande maioria das vezes, cercadas por áreas impermeabilizadas.
O Plano Diretor Urbano e Ambiental de Canoas (PDUA), Lei n. 5.341/08, estabelece as áreas de
ocorrência de patrimônio natural da cidade, chamadas no documento de Zonas Especiais de Interesse
do Ambiente Natural.
O manejo das áreas naturais remanescentes deve pautar-se em uma descrição detalhada: apresentar localização, observar as características naturais como tipo de ecossistema, recursos hídricos,
identificação de espécies da flora e da fauna e destacar as espécies ameaçadas. Além disso, as características sociais, culturais e históricas também são importantes para o planejamento do manejo das
áreas naturais.
Estudos em ecologia e manejo dos recursos naturais são capazes de gerar diretrizes e propor
estratégias para a conservação (SIMIQUELI e FONTOURA, 2007).
Para fins de análise deste estudo foram selecionadas três áreas: os dois Parques Naturais, neste estudo identificados como Parque Natural 1 e Parque Natural 2 e um Parque Urbano, o Parque
Municipal Getúlio Vargas. A partir do levantamento realizado durante saídas a campo e a análise de
registros escritos e fotográficos, a seguir serão apresentadas uma descrição do estado de conservação
e recomendações de manejo para as áreas estudadas.
Parque Natural 1: a mata
O Parque Natural 1 possui uma área aproximada de 242.000 m2, localizado entre os bairros
Cinco Colônias e Mato Grande e apresenta os seguintes limites:ao norte a Rua das Araras, a leste a
Rua dos Pessegueiros e ao sul uma área verde particular, que no PDUA consta como Zona residencial.
A área caracteriza-se por uma mata nativa de aspecto exuberante e bem conservada, um
ambiente com poucos sinais de degradação.
306
Alexsandra Fachinello
Este Parque Natural encontra-se próximo a áreas residenciais, sendo sua mata cortada pelos
trilhos do trem de carga (Fig.1), que limita a divisa entre os bairros Cinco Colônias e Mato Grande.
Figura 1 - Trilhos do trem, Parque Natural, Canoas, RS
Foto: Sérgio Bordignon, setembro de 2011.
Os trilhos do trem servem de referência para os moradores, especialmente os do bairro Mato
Grande, uma vez que os mesmos cortam o bairro em mais de um local. De acordo com Penna (2003),
a população tem suas próprias noções para delimitar o bairro e os trilhos do trem aparecem nestas
descrições.
No Parque Natural 1, o acesso é livre e apresenta em uma de suas extremidades, na esquina da
Rua das Araras com a Rua dos Pessegueiros, no Bairro Cinco Colônias, um espaço com equipamentos
de lazer: cancha de bocha, brinquedos infantis e um gramado com traves para jogos de futebol.
O acesso ao local, por meio de transporte público, é feito por linha de ônibus. Para visitantes
que se deslocam com veículos próprios, a única opção de estacionamento é a via pública.
Apesar de abrigar um espaço de lazer, na área não existem banheiros públicos e acessibilidade
aos portadores de necessidades especiais, sendo de responsabilidade da Prefeitura Municipal de Canoas a manutenção desta área.
A sinalização é outro aspecto precário. Não existem placas indicando o local e nem placas informativas que indiquem se tratar de um Parque Natural. Portanto, as pessoas que circulam pelo local
não têm acesso a informações mínimas de identificação da área e de instruções e cuidados quanto ao
seu uso.
Esta mata apresenta uma grande biodiversidade. Entre as espécies nativas foram identificadas:
açoita-cavalo (Luehea divaricata Mart. & Zucc.), aroeira-braba (Lithraea brasiliensis March.), chalchal (Allophylus edulis (A. St.-Hil., Cambess. & A. Juss.) Radlk.), chá-de-bugre (Casearia sylvestris
307
PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS
Sw.), camboatá-branco (Matayba elaeagnoides Radlk.), camboatá-vermelho (Cupania vernalis Cambess.), corticeira-da-serra (Erythrina falcata Benth.), jerivá (Syagrus romanzoffiana (Cham.) Glassm.)
e a timbaúva (Enterolobium contortisiliquum (Vell.) Morong), árvore símbolo de Canoas.
A timbaúva é uma árvore usada para a construção de canoas. Esta característica tornou-a símbolo da cidade, pois de acordo com registros históricos uma das possibilidades para origem do nome
do município era a construção de canoas com a madeira extraída dos capões existentes na cidade.
Conforme Backes e Irgang (2002), a timbaúva apresenta troncos curtos e largos e pode atingir
até 40 metros de altura. É uma espécie pioneira de rápido crescimento em formações secundárias e
regenera-se naturalmente bem em capoeiras.
Um diferencial da área estudada é a presença de espécies da Floresta Ombrófila Densa1. Na
área são encontradas espécies nativas da Mata Atlântica como, por exemplo, o jerivá e a figueira-dafolha-miúda (Ficus cestrifolia Schott)2 (Fig.2).
Figura 2 - Jerivá na mata do Parque Natural 1, Canoas, RS
Foto: Alexsandra Fachinello, setembro de 2011.
Na figura 2, o jerivá desponta no centro e em primeiro plano aparece a figueira-da-folha-miúda. As espécies da Floresta Ombrófila Densa propagaram-se através da “Porta de Torres” até o limite
fitogeográfico austral próximo ao paralelo 30º (BRACK et al., 1998). Segundo os autores, os morros
graníticos do extremo nordeste do Escudo Uruguaio Sul-rio-grandense atuam como uma barreira climática para as espécies de origem tropical.
308
Alexsandra Fachinello
A presença das espécies da Mata Atlântica na composição florística da mata demonstra a diversidade ecológica e a importância da conservação deste ambiente.
Outra espécie importante encontrada no parque foi a Celosia grandifolia Moq., erva conhecida
popularmente pelo nome de bredo-do-mato (Fig.3).
Figura 3 - Celosia grandifolia, espécie ameaçada de extinção no RS,
presente no Parque natural 1, Canoas, RS
Foto: Alexsandra Fachinello, setembro de 2011.
Esta espécie encontra-se na lista das espécies da flora nativa ameaçadas de extinção no Estado
do Rio Grande do Sul na categoria “em perigo”, conforme a Decreto Estadual n. 42.099 publicada em
01/01/20033. Segundo Vasconcellos (1982), é uma espécie raríssima encontrada no interior de matas
pluviais muito úmidas da Depressão Central, Litoral e Encosta do Nordeste.
Conforme levantamento cartográfico, cedido por Lisandro Rezende Cazuza4, é possível observar a redução da área de mata nativa na região comparando-se os mapas de 1978 e 2011(Fig.4). A
mata foi divida em duas áreas: a área 1, denominada pelo autor de Mata Nativa, na porção norte dos
trilhos do trem onde o Departamento de Controle Ambiental de Canoas realizou um levantamento de
espécies nativas e a área 2, denominada de Mata Grande, na porção ao sul dos trilhos do trem, onde
situa-se a maior extensão da mata.
309
PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS
Figura 4 – Mapas de identificação da área do Parque Natural 1 nos anos de 1978 e 2011
Mata 1978
Fonte: Adaptada da foto aérea (11 – Fx 08-1:20-315) retirada em 1978: Fundação Estadual de Proteção
Ambiental Henrique Luiz Roessler- RS. Elaboração do mapa: Lisandro Rezende Cazuza.
Mata 2011
Fonte: Adaptação de imagem retirada do Google Earth 2011.
Elaboração do mapa: Lisandro Rezende Cazuza.
Apesar de se tratar de uma área verde urbana, identificada pelo PDUA como Parque Natural;
portanto, destinadas à conservação e preservação permanente, os sinais de degradação já são perceptíveis. Nas bordas da mata registra-se a presença de aterros, um de menor proporção da borda junto a
Rua das Araras (Fig.5) e outro maior na borda oposta no Bairro Mato Grande e descarte de lixo (Fig.6).
310
Alexsandra Fachinello
Figura 5 - Aterro na área do Parque Natural, junto a Rua das Araras, Canoas, RS
Foto: Alexsandra Fachinello, setembro de 2011.
Figura 6 - Descarte de lixo no Parque Natural 1, Canoas, RS
Foto: Alexsandra Fachinello, setembro de 2011.
Durante a visita ao Parque Natural, conversou-se informalmente com alguns moradores que
relataram estarem preocupados com a segurança e preservação da área. De acordo com uma moradora,
311
PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS
algumas pessoas frequentam a mata para beber, usar drogas e até mesmo para atos sexuais, o que está
despertando preocupação da vizinhança.
Ao caminhar pela mata, visualizam-se garrafas de bebidas descartadas, sacolas plásticas e embalagens de alimentos.
Esta moradora também relatou que há aproximadamente 20 anos, os moradores da redondeza
costumavam reunir a sombra da mata para tomar chimarrão e jogar bola.
Frente às atuais condições em que se encontra o Parque Natural1, faz-se necessário um planejamento urgente para este espaço urbano natural e imediata implantação, evitando que tal fragmento
de mata nativa venha a sofrer uma rápida e irreversível degradação. Tal planejamento deve buscar
compatibilizar a manutenção de sua integralidade ecológica e seu uso como um espaço sócio-cultural-educativo, equilibrando a conservação dos recursos naturais e o atendimento da comunidade através
de atividades de lazer e cultura.
Os Parques em áreas urbanas, como no presente caso, normalmente destinados a funcionarem
com áreas de recreação, podem e devem ser vistos como áreas privilegiadas da cidade se tiverem
sua função ecológica devidamente planejada. Há vários exemplos que comprovam isto, podendo ser
citado um próximo de Canoas e bastante recente: o Parque Germânia em Porto Alegre. Este Parque,
totalmente cercado, possui aproximadamente 14,5 hectares, sendo parte desta área destina ao público
– composta por quadras esportivas, playground e infraestrutura de lazer – e áreas isoladas, sem acesso
ao público, destinada à preservação da mata nativa.
Diante de suas características e fragilidades diagnosticadas, para esta área recomenda-se:
Todo o planejamento, com base nas recomendações que seguem, tenha a participação da comunidade, especialmente aquela que se encontra residindo no entorno do Parque.
•
Conferir identidade
O nome é um importante elemento de identidade, portanto para que a população da cidade o
identifique pelo nome e o reconheça como um local importante de Canoas, um local de conservação
da natureza. Para tanto, é importante que a comunidade participe na escolha de seu nome, se aproprie
deste espaço.
•
Cercamento da área; presença de seguranças e horários de acesso
O cercamento do Parque, a presença de segurança e horários de acesso se mostram como procedimentos desejáveis, inclusive já manifestados por alguns moradores locais. Tais procedimentos
garantiriam a segurança dos visitantes, o uso adequado de seus equipamentos e a manutenção e integridade da área e sua biodiversidade.
•
Tombamento do Parque como Patrimônio Natural de Canoas
O tombamento de áreas naturais visa preservar espaços, que entre outras características, apresentem relevância histórica, paisagística e científica. Portanto, o Parque Natural enquadra-se nesta
312
Alexsandra Fachinello
condição, pois como já descrito anteriormente, a área possui significativo valor ecológico pelas espécies encontradas no local e também importância histórica para Canoas, por ser um fragmento da
paisagem pretérita da cidade.
O instituto do tombamento foi criado em 1937 através do Decreto Lei 25/37, é um mecanismo
jurídico que estabelece, segundo Martins e Rocco (2009, p.26) “[...] limitação administrativa a bens
móveis e imóveis, em benefício do interesse público, devido ao seu valor cultural ou ambiental.” Dessa forma, o tombamento implica em restrições de uso a fim de garantir a proteção da área tombada.
•
Construção de um espaço (“Centro de Visitantes”) que abrigue a administração do Parque,
uma área de recepção, pequeno auditório e um Museu associado ao desenvolvimento de
atividades de educação ambiental e patrimonial
A promoção permanente de atividades de educação ambiental e patrimonial, como oficinas,
minicursos e exposições de fotografias, trabalhos científicos e escolares sobre o ambiente natural de
Canoas se justificam pela necessidade de desenvolver a consciência ecológica e a valorização das áreas naturais remanescentes da cidade junto à comunidade através do estímulo a práticas sustentáveis.
Além disso, o PDUA, no art. 58, dispõe sobre a Estratégia de Qualificação Ambiental como “ações
que visam a qualidade de vida através da proteção dos ecossistemas e do ambiente construído” e no
59 define objetivos específicos da Estratégia de Qualificação Ambiental, destacando as alíneas II e V
que abordam a valorização do Patrimônio Ambiental e a educação ambiental.
Numa análise preliminar, esse espaço poderia ser construído na borda do Parque no cruzamento da Rua das Araras e dos Pessegueiros, pois nesta parte do Parque, a mata já foi removida e já
existem construções de equipamentos de lazer.
Como instrumento importante para o Planejamento e efetiva implantação do Parque, se faz necessário propor um estudo que privilegie uma área de acesso ao público e uma área de acesso restrito
destinada à preservação da biodiversidade e desenvolvimento de pesquisa através de convênios com
Instituições de ensino superior, especialmente aquelas do município.
•
Zoneamento do Parque
A realização de estudo detalhado que indique o zoneamento do Parque Natural 1 delimitando
as áreas de Preservação Permanente da Biodiversidade e de Uso Sustentável. Este zoneamento é fundamental para a administração do Parque, uma vez que este deve ser um instrumento balizador das
definições das atividades a serem desenvolvidas e locais de ocorrência.
O zoneamento possibilitará a criação de infraestrutura para a realização de trilhas ecológicas
orientadas e autoexplicativas. Ao longo das trilhas, os visitantes poderão observar e conhecer características da flora e da fauna de Canoas, compreender e disseminar informações acerca da importância
do Parque para a cidade.
Parque Natural 2: o banhado
O Parque Natural 2 caracteriza-se por uma área de banhado de 400.000 m2 aproximadamente,
313
PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS
localizado no Bairro Mato Grande entre a zona de produção agrícola5 de Canoas e a zona residencial
do bairro. Seus limites são ao sul a Rua João Wobeto, ao norte uma área verde descrita no PDUA como
Zona de Interesse Institucional, a oeste a Estrada Dona Maria Isabel e a leste uma área residencial do
Bairro Mato Grande.
A exemplo Parque Natural 1, este também tem acesso sem restrições. Para visitar o local, as
alternativas são o ônibus e veículo próprio, com estacionamento apenas nas vias públicas.
A infraestrutura é muito precária. Não existem placas de sinalização indicando acessos e nem
mesmo, a informação que trata-se de um parque. Também não há construções, nem equipamentos de
lazer.
A paisagem do Parque é de uma grande várzea com predomínio de gramíneas e com maricazais
nas bordas, características típicas de banhados. No centro da área, destaca-se na paisagem, a presença
de um açude. A área do Parque é conhecida popularmente como “Barreirão”.
De acordo com Neinam (1989), os banhados são ambientes alagados, encontrados de norte a
sul do Rio Grande do Sul e são importantes, uma vez que são fornecedores de nitrogênio para a atmosfera. Outra característica destas áreas é a riqueza da biodiversidade, especialmente peixes e aves.
Os banhados desempenham funções importantes como controle de inundações, carga e descarga de água subterrânea, proteção contra erosão, filtro natural de substâncias poluidoras, retenção de
sedimentos e manutenção da diversidade biológica6.
No parque foram identificados espécies da flora e da fauna. Da flora, destacam-se os maricás,
corticeiras-do-banhado (Erythrina crista-galli L.) (Fig.7), gramíneas e juncos.
Figura 7 - Erythrina crista-galli, Parque Natural, Canoas, RS
Foto: Jairo Luís Candido, julho de 2011.
314
Alexsandra Fachinello
A Erythrina crista-galli, conhecida popularmente por corticeira-do-banhado é uma árvore retorcida, de flores róseo-vermelhas. É bastante característica em ambientes úmido, como banhados,
beira de rios e lagos (BACKES e IRGANG, 2002).
A corticeira-do-banhado é uma espécie protegida pelo Código Florestal Estadual, Lei n.
9.519/92, portanto imune ao corte.
Os maricás são abundantes na área do Parque. De acordo com Backes e Irgang (2002), os maricazais são muito comuns em terras baixas alagáveis e várzeas. Elas são pioneiras e podem ser usadas
para a recuperação de ambientes degradados, especialmente para a recuperação de áreas de antigos
arrozais.
Quanto à fauna, foram avistadas garças-brancas-pequenas (Egretta thula Molina), maçaricoda-cara-pelada e maçarico-da-cara-preta (Fig.8).
Figura 8 - Maçarico-da-cara-pelada (Phimosus infuscatus)
Parque Natural 2, Canoas, RS
Foto: Jairo Luís Candido, julho de 2011.
A descrição da paisagem e da biodiversidade também aparecem nos relatos dos moradores do
bairro Mato Grande transcritos por Penna (2003, p.39):
Outra brincadeira era proporcionada pelo “barreirão”, conforme explica Regina Shein
dos Santos: “Barreirão” é uma represa, como um açude. Existe ainda. [...] Ele secava,
tinha época que nem sempre tinha água. Até jogar futebol eles jogavam nessa área.
De vez em quando tinha água e quando isso acontecia, os guris tomavam banho e
pescavam.
Nesse relato, a autora traz à tona as lembranças dos moradores do barreirão como um espaço
de lazer. Penna (2003), também apresenta relatos de que na área ocorriam caçadas. Entre os animais
descritos aparecem marreca, marrecão e galinhola.
315
PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS
A forte pressão do crescimento urbano do bairro mudou os hábitos dos moradores e a paisagem local. O Parque Natural 2 também está sofrendo impactos, fruto destas mudanças. O avanço das
construções de residências populares e descarte de lixo são alguns dos problemas encontrados na área.
(Fig.9).
Figura 9 - Construções e lixo na vizinhança do Parque Natural 2, Canoas, RS
Foto: Jairo Luís Candido, julho de 2011.
Os próprios moradores observam as mudanças e os impactos ambientais presentes nesta área.
Penna (2003, p.39):
Ligada a essa lembrança é o relato de Dioclécio Bitencourt: “Naquela época pescava
uma barbaridade no banhado. Hoje está cheio de casas, pra lá do barreirão. É conhecido como banhado do Mato Grande. Quando dava uma chuvarada boa, a água ficava
mais de metro de altura. Tinha peixe que era uma barbaridade, mas depois, com esse
negócio dos venenos de granja, acabaram com tudo [...].
Durante a saída a campo também foi encontrado descarte de material eletroeletrônico nas dependências do Parque . Este lixo era composto principalmente por monitores de computadores, mas
também foram identificados pneus, lonas plásticas, garrafas plásticas e restos de móveis.
O Parque Natural 2, por ser área de banhado, é protegido pelo Código Florestal, Lei n. 4.771/65
e pela Resolução n. 303 de 2002 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) como Área de
Preservação Permanente (APP).
As áreas de APP, por imposição legal, são espaços de intocabilidade que devem ser conservadas para manter a biodiversidade, o fluxo gênico, bem como o bem estar do homem; portanto são
espaços territoriais especialmente protegidos. Conforme Silva (2010, p.233):
São áreas geográficas públicas ou privadas (porção do território nacional) dotadas
de atributos ambientais que requeiram sua sujeição, pela lei, a um regime jurídico de
316
Alexsandra Fachinello
interesse público que implique sua relativa imodificabilidade e sua utilização sustentada, tendo em vista a preservação e a proteção da integridade de amostras de toda a
diversidade de ecossistemas, a proteção ao processo evolutivo das espécies, a preservação e proteção dos recursos naturais.
No conceito acima é possível destacar dois aspectos: a preocupação com a sustentabilidade que
aparece na descrição “utilização sustentada” e a preocupação com a preservação da biodiversidade encontrada na proteção dos ecossistemas e dos processos evolutivos as espécies. No entanto, esse Parque
Natural de Canoas encontra-se em situação de vulnerabilidade, pois como descrito anteriormente já
apresenta sinais visíveis de degradação.
O Parque Natural 2, conhecido na cidade como Banhado do Mato Grande ou como Barreirão
localizado no bairro Mato Grande, constitui-se de uma área de banhado, portanto, pela legislação vigente é definida como Área de Preservação Permanente (APP). Dentro desse contexto, o manejo da
área deve ser mais restritivo. Para este Parque Natural de Canoas, recomenda-se:
•
Conferir identidade ao Parque.
Os mesmos motivos que justificam a importância de um nome para a área do Parque Natural 1,
se aplicam para este caso. É necessário que a população identifique a área, a reconheça e a valorize. O
fato da comunidade local a denominar popularmente por Barreirão, já demonstra que no bairro, o local
é reconhecido, mas para sua preservação é fundamental que a comunidade se identifique e reconheça
a importância deste Parque.
•
Cercamento do Parque
É de suma importância para conter o avanço do crescimento urbano sobre a área. O número de
casas e condomínios populares cresce de forma acelerada em seus arredores e a tendência e de continuar crescendo em função da construção da BR 448, a Rodovia do Parque, que passará muito próximo
do local. Além disso, o cercamento também auxiliaria na contenção dos descartes de lixo que estão
ocorrendo nos limites do Parque Natural 2, propiciando a restauração das condições ambientais, assim
como a manutenção da biodiversidade, representada pela fauna e flora características deste ambiente.
•
Construção de um Plano de Manejo detalhado
O plano de manejo é um instrumento que orienta a gestão de áreas naturais, especialmente as
Unidades de Conservação e define objetivos de manejo com vistas à conservação. Por ser o “Barreirão” uma área de banhado, um ecossistema muito importante para a cidade e ao mesmo tempo sob
forte pressão da ação antrópica, recomenda-se um plano de manejo a fim de garantir uso adequado da
área e a conservação de sua biodiversidade.
•
Incentivo ao desenvolvimento de pesquisas científicas
O desenvolvimento de novos conhecimentos é de suma importância para a conservação dos
espaços naturais e sua biodiversidade. O Parque Natural 2 é um local de grande diversidade biológica,
portanto com grande potencial para o desenvolvimento de pesquisas em diferentes áreas do conhecimento e, sendo assim, de produção de novos saberes e aporte de conhecimento para uma manutenção
adequada.
317
PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS
•
Atividades voltadas para a Educação Ambiental e Patrimonial;
As atividades de educação ambiental e patrimonial são promotoras de criticidade e de desenvolvimento de atitudes sustentáveis. Dentre as atividades, sugere-se visitações guiadas voltadas para
escolas e universidades com fins de conscientização da importância da preservação da área.
•
Criação de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral
Os banhados são ambientes importantes para o equilíbrio ecológico e a manutenção da biodiversidade e, além disso, como já referido, enquadram-se como APP. Portanto, necessitam de proteção
integral. Antes do estabelecimento de Uma Unidade de Conservação é importante que seja desenvolvido todo um estudo ambiental que fundamente tal encaminhamento.
A proposição de criação de uma UC nesta área está pautada no art. 63, inciso V, alínea b do
PDUA que determina dentro do Programa de Qualificação Natural “Criação de Unidades de Conservação: Parque Getúlio Vargas e Parque do Mato Grande”.
A área do “Barreirão” encontra-se fragilizada diante dos impactos antrópicos que vem sofrendo. Além disso, a área representa um remanescente no município de Canoas desse tipo de ecossistema
comum na paisagem pretérita e, ainda hoje, fundamental para o equilíbrio ecológico na cidade. Primack e Rodrigues (2001, p.239) afirmam que: “o manejo de áreas alagadiças é uma questão particularmente crítica.” Segundo os autores, a manutenção das áreas alagadiças é fundamental para a preservação de espécies de aves, peixes, anfíbios, plantas aquáticas entre outras, porém elas “disputam”
a água com outros projetos, como irrigação, por exemplo, o que pode afetar o nível e a qualidade se
suas águas.
•
Parque Municipal Getúlio Vargas
O Parque Municipal Getúlio Vargas, conhecido como Capão do Corvo, possui uma área de
aproximadamente 277.000 m2 localizado no Bairro Marechal Rondon entre as Ruas Dona Rafaela, ao
sul, e a Rua Irmão Francisco Bagatini, a oeste. Na divisa ao norte, encontra-se a área do Sesi e a leste
uma área verde.
O PDUA de Canoas o define como Zona Especial de Interesse do Ambiente Natural inserido na
classificação Parque Urbano, portanto é um espaço destinado ao lazer, ao esporte e à educação, mas
com fins ecológicos.
Dentre os Parques Urbanos da cidade, o Capão do Corvo encontra-se entre os mais frequentados pela população. Especialmente nos fins de semana, o número de pessoas que circulam no parque
e usufrui de sua infraestrutura é muito grande.
O Capão do Corvo tem acesso gratuito, sem nenhuma restrição aos visitantes. Existem linhas
de ônibus que passam em frente ao parque e aos visitantes que optam pelo veículo particular, existe
um pequeno estacionamento gratuito nas suas dependências.
318
Alexsandra Fachinello
No Capão do Corvo existe uma grande quantidade de instalações: rampas de acesso para portadores de necessidades especiais, sanitários, placas de sinalização e informativas.
Além disso, o parque dispõe de quadras esportivas, pista para caminhadas, brinquedos infantis, área com churrasqueiras e espaços para programas educativos como uma biblioteca e o relógio
biológico. Dentro do parque também encontram-se as instalações da Secretaria Municipal de Meio
Ambiente e o Zoológico Municipal.
As placas de sinalização e informações são pontos que merecem destaque. Há placas indicando
o acesso ao mesmo, na Avenida Getúlio Vargas (umas das principais vias da cidade) e na Rua Dona
Rafaela onde este se localiza. Dentro do parque, existem placas indicando os equipamentos (quadras,
pista, área de churrasqueiras, etc.) e também há placas informativas que alertam os visitantes sobre
cuidados necessários ao circularem pelo zoológico, atenção com a presença de animais silvestres e
com as condições de profundidade e qualidade da água do lago. O Parque é conhecido por ser um
espaço verde da cidade. A vegetação ocupa uma parte significativa da área. Durante a saída a campo
foram identificadas espécies nativas e exóticas.
Nas margens do lago que existe no interior do parque, a vegetação nativa (Fig.10) é composta
predominantemente por Maricás. No entanto, também é possível identificar espécies exóticas como
fórmio ou linho-da-nova-zelândia (Phormium tenax Forst.).
Figura 10 - Vegetação das margens do lago, Parque Getúlio Vargas, Canoas, RS.
Foto: Sérgio Bordignon, setembro de 2011.
Dentro do lago, a vegetação aquática que se destaca é a alface-d’água (Pistia stratioides L.),
macrófita flutuante livre que se multiplica e pode produzir eutrofização das águas.
Nas áreas mais afastadas do lago, a vegetação é de maior porte, árvores nativas como açoita319
PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS
cavalo, chal-chal, aroeira-vermelha (Schinus terebinthifolia Raddi) e capororoca (Myrsine guianensis
(Aubl.) Kuntze) são encontradas.
Com apoio da Prefeitura Municipal e outras instituições públicas e privadas, se desenvolveu na
cidade um programa de educação ambiental intitulado “Canoas que te quero verde”. Uma das ações
realizadas por este programa foi a identificação de várias árvores presentes no Capão do Corvo. Nas
árvores foram colocadas placas com o nome popular e científico das espécies e a família a qual pertence. O intuito da campanha era despertar a atenção da população para a importância da arborização
urbana.
Entre as árvores nativas se fazem presente espécies exóticas, com destaque para a presença de
eucalipto, árvore do gênero Eucalyptus , originária da Austrália e Indonésia.
Os eucaliptos foram introduzidos na área há muitos anos, provavelmente pelos quilombolas
que moravam na vizinhança, como já descrito anteriormente. Hoje, eles fazem parte da história e da
paisagem do Capão do Corvo.
O Parque Getúlio Vargas, apesar de sua infraestrutura não aproveita todas as suas potencialidades. Os visitantes que chegam ao Capão do Corvo têm várias opções de lazer e prática esportiva. No
entanto, a sua função educativa com fins ecológicos deixa a desejar. Um exemplo é o descaso com o
Relógio Biológico do Corpo Humano. A manutenção dos equipamentos deixa a desejar, perdendo em
muito dos casos a sua função.
O Relógio Biológico do Corpo Humano é um recanto do parque que possui um canteiro circular onde estão cultivadas plantas com fins medicinais. No centro do canteiro, há uma placa ilustrada
explicando como funciona o relógio biológico (Fig.19) e nos canteiros, pequenas plaquinhas informam o nome científico e popular da planta, uma ilustração e a indicação de para quais órgãos humanos
a planta tem função medicinal.
Figura 11 - Relógio Biológico do Corpo Humano localizado em área do
Parque Capão do Corvo, Canoas, RS
Foto: Alexsandra Fachinello, setembro de 2011.
320
Alexsandra Fachinello
No entanto, o Relógio Biológico apresenta sinais de ausência de cuidados. Ele está cheio de
folhas secas, as placas com as informações sobre as plantas estão fora de local, cravadas em canteiros
onde outras ervas estão plantadas. Neste caso, inclusive, acaba fornecendo informações equivocadas.
A importância do Parque para a cidade é destacada por Avancini e Aguilar (2009, p. 157):
O Capão do Corvo, hoje parte do Parque Getúlio Vargas, é um dos muitos capões
de mato que verdejam sobre as coxilhas canoenses, situadas entre três tributários do
Guaíba: o rio Caí, o Sinos e o Gravataí. É uma zona de muitos pântanos que se inundavam por ocasião das enchentes, e de arroios como o Araçá, o das Garças, o Arroio
Sapucaia e o Arroio da Brigadeira cujos nomes contam um pouco da história da ocupação desse espaço.
Além de ser um espaço hoje destinado ao lazer e à educação, o Capão do Corvo é também
importante local de conservação da natureza, um recanto que remete à história da cidade, à antiga
paisagem e às transformações vividas por ela.
O Parque Getúlio Vargas apresenta características bem distintas dos Parques Naturais 1 e 2.
Trata-se de um Parque Urbano, uma mancha verde rodeada de espaços construídos.
A infraestrutura disponível para lazer e esportes em ambiente altamente arborizado, com renascentes de mata nativa são as principais marcas do conhecido Capão do Corvo.
Outra característica importante do Parque é o grande fluxo de pessoas que o frequentam. Moradores de diferentes bairros da cidade usufruem de seus equipamentos e espaços.
Dessa forma, para o Parque Getúlio Vargas, recomenda-se:
•
Retirada da vegetação exótica aquática e das margens
O controle quanto à proliferação da vegetação aquática, retirando o excesso da mesma impedindo sua proliferação e consequente processo de eutrofização das águas do lago presente no interior
do Parque.
As macrófitas retiradas podem ser utilizadas como adubo natural no ajardinamento do próprio
Parque e praças da cidade.
•
Restauração e manutenção de espaços
O Relógio Biológico é um equipamento que deve ser restaurado e mantido em condições de
uso, caso contrário deve ser interditado ou retirado. Atividades envolvendo conhecimentos sobre plantas medicinais e hortas ecológicas são algumas das alternativas que poderiam ser trabalhadas neste
local.
•
Reformar do espaço ocupado pela Biblioteca João Palma da Silva dentro do Parque
O espaço ocupado pela Biblioteca Municipal dentro do Parque é subutilizado. Neste local
poderiam ocorrer oficinas de educação ambiental e patrimonial, exposições de fotos, de trabalhos
científicos e artísticos que envolvam Canoas.
321
PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS
•
Criação de roteiros/trilhas educativas
As trilhas podem ser tratadas como caminho de descoberta do Parque e da Cidade. Ao longo
destas trilhas poderiam ser dispostos painéis informativos sobre a história do Capão do Corvo e sua
paisagem. Identificar espécies da flora nativa presente no parque e a descrição de sua importância
ecológica.
•
Aproveitamento da grande circulação de pessoas no parque e criação de um espaço de
divulgação
O Capão do Corvo, como já referido, é um dos parques de maior circulação de pessoas da cidade. O poder público municipal poderia aproveitar deste fato e organizar um espaço de divulgação de
materiais informativos da cidade: Folders educativos e informativos sobre meio ambiente e cultura,
materiais de divulgação dos diferentes espaços da cidade como os parques naturais, praças, pontos de
cultura, museus e monumentos, também os eventos e cursos educativos poderiam encontrar no Parque
um local de difusão.
Enfim, um centro de informações de Canoas para canoenses e não canoenses que queiram desvendar os bens culturais da cidade.
As propostas recomendadas para as três áreas de ambientes naturais remanescentes de Canoas
visam o reconhecimento destas como patrimônio ambiental da cidade e a importância da conservação
através de ações articuladas com as áreas de educação patrimonial, meio ambiente, biodiversidade e
sustentabilidade.
Por fim, cabe destacar que a administração do patrimônio ambiental de uma forma que garanta
a conservação da biodiversidade e permita o uso sustentável dos ambientes naturais remanescentes
em áreas urbanas depende de princípios ecológicos, não apenas para solucionar ou prevenir problemas
ambientais, mas, principalmente, para instruir os pensamentos e as políticas públicas.
Notas
1-
Floresta Ombrófila Densa: caracterizada pela presença de árvores de grande e médio portes, além de
lianas (cipós) e epífitas em abundância. Estende-se pela costa litorânea desde o Nordeste até o extremo
Sul. Sua ocorrência está ligada ao clima tropical quente e úmido, sem período seco, com chuvas bem
distribuídas ao longo do ano (excepcionalmente 60 dias de umidade escassa) e temperatura médias
variando entre 22° C e 25° C. (CAMPANALI, e SCHAFFER, 2010, p.62).
2
- De acordo com Sobral et al. 2006, Ficus cestrifolia é nome atual para esta espécie anteriormente
denominada como F. organensis (Miq.) Miq.
3-
RIO GRANDE DO SUL. Decreto Estadual 42.099/2003. Disponível em:<http://www.fzb.rs.gov. br/
downloads/flora_ameacada.pdf> Acesso em: 01 nov. 2011.
4
- Estudante do curso de Geografia do Unilasalle que participa de pesquisa sobre o bairro Harmonia,
Canoas/RS.
322
Alexsandra Fachinello
5
- A Zona de Produção Agrícola de Canoas situa-se nas proximidades do Rio dos Sinos, numa área às
margens da Rodovia BR 448, chamada de Rodovia do Parque (em construção). Nessa área cultivamse, principalmente hortaliças e arroz.
6
- ZOOBOTANICA RS. Banhados: ecossistemas ameaçados. Disponível em: <http://www.fzb.rs.
gov.br/novidades/banhados.htm>. Acesso em: 10 nov. 2011.
7
- “Art. 33 - Fica proibido, em todo o território do Estado, o corte de: I - espécies nativas de figueiras
do gênero Ficus e de corticeiras do gênero Erythrina.” RIO GRANDE DO SUL. Lei n. 9.519/92. Código Florestal do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/ ambiente/
legislacao/id606.htm>. Acesso em: 15 nov. 2011.
8
- BRASIL. Lei n. 4771/65. Código Florestal Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ ccivil_03/leis/L4771.htm>. Acesso em: 01 jan. 2011
9
- O Código Florestal, Lei n. 4771/65 define o que são Áreas de Preservação Permanente, posteriormente a Resolução n. 303/2002 apresenta com detalhes suas definições e limites (Skorupa, 2003)
SKORUPA, Ladislau Araújo. Áreas de Preservação Permanente e Desenvolvimento Sustentável.
Disponível em: <http://www.agencia.cnptia.embrapa.br/Repositorio/Skorupa_areasID-GFiPs3p4lp.
pdf> Acesso em: 15 nov. 2011.
10
- O texto da Lei escreve Parque do Mato Grande, porém não explicita qual dos dois Parques Naturais é o referido, uma vez que ambos os Parques localizam no mesmo bairro. No entanto, o chamado
“Barreirão” está totalmente inserido no Bairro Mato Grande, enquanto que o outro Parque possui uma
parte de sua área neste bairro e outra porção no bairro vizinho.
11
- Eutrofização é um processo de degradação que ocorre em reservatórios de água naturais e artificiais
quando a presença excessiva de nutrientes que limitam a atividade biológica do ecossistema.
12
- O gênero Eucalyptus compreende grande número de espécies com características comuns, conhecidas como eucalipto. No Brasil o eucalipto foi introduzido no século XIX com objetivos de ornamentação e quebra-vento, devido o seu rápido crescimento. Nos dias de hoje, o eucalipto é cultivado, principalmente, para fins comerciais. PEREIRA, José Carlos Duarte et al. Características da madeira de
algumas espécies de eucalipto plantadas no Brasil. Disponível em: <http://www.cnpf.embrapa.br/
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ZOOBOTANICA RS. Banhados: ecossistemas ameaçados. Disponível em: <http://www.fzb.rs. gov.br/
novidades/banhados.htm>. Acesso em: 10 nov. 2011
* Licenciada em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Geografia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre em Memória Social e Bens Culturais pelo Centro Universitário La Salle/Canoas. Professora de Geografia do Ensino Médio do Colégio
Monteiro Lobato, Porto Alegre, RS.
325
A SUSTENTABILIDADE DE UM EMPREENDIMENTO SOLIDÁRIO:
DESAFIOS DO COOPERATIVISMO CONTEMPORÂNEO
Joel Luis Dumke *
Patrícia Abel Balestrin**
Nathália Stedile***
Para começo de conversa
Discorrer sobre um empreendimento de economia solidária que tem como trabalho a separação
de materiais da coleta seletiva da cidade de Canoas/RS apresenta-se como um desafio de vida, uma
vez que a pesquisa aqui apresentada não se resume a uma inserção no campo da reciclagem, mas antes se caracteriza como um acompanhamento do empreendimento social realizado durante o ano de
2011. A pesquisa-ação teve como propósito fazer uma aproximação com o grupo e analisar os modos
de organização coletiva do empreendimento enquanto espaço de trabalho, de geração de renda e de
transformação social.
A questão norteadora da pesquisa foi: como proporcionar melhoria nas condições de vida e de
trabalho em um empreendimento de economia solidária? Trata-se de uma pesquisa de ordem social
que ocorreu ao longo do ano de 2011 com o propósito de perceber quais os sentimentos dos empreendedores enquanto cooperados de um coletivo social de reciclagem no que diz respeito aos modos de
trabalho e de vida na cooperativa. Por se tratar de uma pesquisa participante, o artigo apresenta falas
dos trabalhadores da cooperativa acerca do seu dia a dia e analisa como se dá a sustentabilidade do
empreendimento social.
A pesquisa justifica-se pela necessidade de criação e implementação de tecnologias sociais que
visem à melhoria nas condições de vida de segmentos populacionais que foram historicamente excluídos. Para tanto, iniciou-se um processo dialógico com os/as integrantes da cooperativa definindo com
eles/as o espaço de atuação do Tecnosocial/Unilasalle. Foram realizadas visitas e assessorias técnicas,
ao longo de 2011, onde se buscou debater as demandas do grupo priorizando a participação popular
nas tomadas de decisão.
Acredita-se que os processos de construção democrática relacionados ao trabalho e à história
de vida dos/as cooperados/as partem do princípio da criação de novas relações e da necessidade de
assumir novas experiências individuais e coletivas como quem age no mundo, assume compromisso e
transforma a realidade. Aposta-se na força da experiência conforme Bondía (2002, p. 26) a define: “É
experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma
e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto a sua própria transformação.” Pretende-se, a seguir, mapear o campo de pesquisa e observar o objetivo social da cooperativa
no que diz respeito aos princípios do trabalho coletivo e da gestão democrática do grupo.
A SUSTENTABILIDADE DE UM EMPREENDIMENTO SOLIDÁRIO: DESAFIOS DO COOPERATIVISMO CONTEMPORÂNEO
Contextualizando o campo de pesquisa
A Coopermag – Cooperativa de Coleta Seletiva e Reciclagem União Faz a Força de Canoas – é
um dos empreendimentos vinculados ao Tecnosocial/Unilasalle cujo objetivo principal é o desenvolvimento de projetos e a difusão de tecnologias sociais. Uma de suas linhas de atuação é o trabalho
com esses grupos de economia solidária, através da Incubadora de Empreendimentos Solidários do
Tecnosocial/Unilasalle.
A Coopermag é uma cooperativa de reciclagem formada por empreendedores/as sociais do
bairro Mato Grande, da cidade de Canoas/RS. O grupo é formado por 23 pessoas, das quais 17 são
mulheres. A cooperativa participa do projeto Sujeitos em Ação: geração de renda e cidadania, desenvolvido pelo Tecnosocial/Unilasalle, apoiado pelo Centro de Assistência Social La Salle Niterói, pelo
Colégio La Salle/Canoas, pela Empresa Sinergia e Consultoria Junior e pela Incubadora de Empreendimentos Solidários do Tecnosocial/Unilasalle.
O trabalho da cooperativa está voltado à triagem e classificação de materiais da coleta seletiva,
da qual o grupo se aproximou em vista da construção de um projeto de sustentabilidade para a continuação dos trabalhos no galpão de reciclagem. Quando perguntada sobre o nascimento da cooperativa,
a coordenadora do empreendimento relata:
Pesquisador – A cooperativa nasceu quando?
Coordenadora – Não faz muito tempo. Nasceu em julho desse ano [2011]. A associação vai fazer 11 anos. Desde 2002 tem a associação.
Pesquisador – Me conta por que era associação e virou cooperativa?
Coordenadora – O contrato da prefeitura exigiu que fosse cooperativa.
A mudança de Associação para Cooperativa acontece no momento de instabilidade do grupo
que busca construir um projeto de vida mais sólido e consistente para o empreendimento – um projeto que resista aos terremotos contemporâneos do mundo do trabalho. A conquista de um contrato de
prestação de serviços de coleta seletiva com a prefeitura do município de Canoas mostrou-se como um
eixo estratégico para manter o galpão em funcionamento, no momento em que era possível a mudança
da denominação jurídica de associação para cooperativa.
Consolidado o empreendimento cooperativo, o projeto de sustentabilidade ganha corpo e se
apresenta como espaço de troca e construção de novos conhecimentos dentro e fora da cooperativa.
Uma mudança de valores e novas conquistas foram mostrando, aos poucos, que o trabalho no empreendimento estava progredindo no sentido do fortalecimento da renda dos cooperados, o que despertou
o interesse de uma das cooperadas que fala sobre o crescimento do grupo:
Antes, bem antes de eu entrar na cooperativa, eram partilhas iguais, assim como está
sendo agora, mas só dava R$ 100,00 por quinzena, daí eu não entrei. Depois começaram por produção, cada um ganhava o que fazia, daí a gente pesava. Daí se ganhava
um pouco melhor. Mas aí terminaram porque tava dando muita briga. [...]. Aí terminaram e começaram partilhas iguais de novo. Mas agora a gente ta ganhando melhor.
Atualmente, a renda per capita dos trabalhadores da Coopermag mantém-se estável, girando
entre duzentos e setenta e cinco reais e trezentos e cinquenta reais a quinzena, dependendo da quantidade de materiais vendidos durante o mês. O crescimento da renda se deve, também, ao fortaleci328
Joel Luis Dumke, Patrícia Abel Balestrin, Nathália Stedile
mento do grupo enquanto empreendimento de economia solidária. O contrato de prestação de serviços
ao município de Canoas tem significativa importância na produção de trabalho e geração de renda,
mas nada disso teria sido possível sem o compromisso dos associados em prestar o serviço enquanto
coletivo de trabalhadores reconhecidos como cooperativa de economia solidária. O envolvimento do
grupo e as amostras de suas ações aparecem na prática do dia a dia no galpão de reciclagem onde os
trabalhadores se “reconhecem” como empreendedores sociais e donos do empreendimento, suplantando as velhas relações entre patrões e empregados.
Princípios do cooperativismo: por uma prática reflexiva
A partir desta pesquisa, percebe-se que a Coopermag vem ganhando espaço na comunidade
onde está inserida, mostrando que o trabalho cooperativo popular solidário está crescendo como resposta aos mecanismos de desordem econômica. Perpassa nesse momento a ênfase na construção das
identidades individuais e coletivas que se constroem também nas relações do trabalho. Percebe-se
que os cooperados avançam na construção de suas relações de trabalho quando vêem que a economia
solidária também é espaço de construção de vida, como reforça a coordenadora do empreendimento
quando relata que a cooperativa enquanto espaço de geração de trabalho e renda oferece oportunidades aqueles que são excluídos pelo mercado capitalista e encontram na reciclagem uma alternativa
ao desemprego. Nas palavras de Veronese (2011) o projeto de trabalho do cooperativismo apresenta
uma importante ponte entre a esfera econômica e a esfera social, se apresentando como projeto viável
na medida em que se é convidado a pensar nas condições e nos meios de trabalho do capitalismo na
sociedade contemporânea.
Inclusive, na fala da coordenadora da Coopermag, é possível pensar em projeto de vida ligado ao modo cooperativo de trabalho. No empreendimento, todos se colocam como proprietários da
cooperativa e assim procuram ampliar a renda e, consequentemente, a qualidade de vida. No entanto,
segundo a coordenadora do empreendimento, isso depende da ajuda de todos por se tratar de um processo que deve ser pensado em conjunto e construído como projeto de futuro para o grupo.
Temos condições de melhorar muito. Se nos tivéssemos coisas adequadas como uma
esteira e uma prensa, porque nossa prensa está em estado precário não tendo como
prensar toda hora, porque ela para. Ela tá com problemas. Se tivéssemos uma prensa
e uma esteira melhor nós poderíamos produzir bem mais e aumentar a renda. Hoje
nós temos uma renda que dá pra sustentar a família porque a gente não ganha tão
pouco. Ganhamos R$ 500,00 até R$ 700,00 por mês. É um valor bom, mas a gente tem
condições de ganhar muito mais. Temos que pensar pra frente. Temos o objetivo de
crescer, mas não se quer crescer sozinha. Meu pensamento desde que eu entrei – eu
nunca pensei em estar no lugar que estou hoje – mas sempre pensei em ter um bom
salário pra mim e pras minhas colegas.
O empreendimento trabalha um projeto de sustentabilidade ligado ao mundo do trabalho enquanto espaço de economia solidária e melhoria de qualidade de vida do coletivo. Para isso, não deixa
de lado a vivência de sonhos e os espaços das relações humanas que podem ser percebidos na fala
acima quando a coordenadora afirma que seu objetivo não é crescer sozinha, mas construir uma boa
renda para ela e para suas colegas.
329
A SUSTENTABILIDADE DE UM EMPREENDIMENTO SOLIDÁRIO: DESAFIOS DO COOPERATIVISMO CONTEMPORÂNEO
Nessa direção, Santos (2005) escreve que o cooperativismo surgiu como alternativa perante as
ramadas exclusões provocadas pelo capitalismo tendo como princípios teóricos e vivenciais a associação econômica entre iguais. Dessa forma, entende-se que as práticas cooperativas contemporâneas
são tão antigas quanto o mecanismo capitalista industrial. O mesmo autor explica que “as primeiras
cooperativas sugiram por volta de 1826, na Inglaterra, como reação a pauperização provocada pela
conversão maciça de camponeses pequenos produtores em trabalhadores das fábricas pioneiras do
capitalismo industrial” (SANTOS, 2005, p. 33). Para tanto, foi em 1844, na Inglaterra, que surgiram
as primeiras cooperativas que hoje são compreendidas como modelo contemporâneo – as cooperativas
de consumidores de Rochdale – cujo objetivo foi a busca de alternativa aos baixos salários da época e
em oposição à miséria produzida pelas penosas condições de trabalho. Santos (2005, p. 33) acrescenta
que:
Desde as suas origens, no século XIX, o pensamento associativista e a prática cooperativa desenvolveram-se como alternativas tanto ao individualismo liberal quanto ao
socialismo centralizado. Como teoria social, o associativismo é baseado em dois postulados: por um lado, a defesa de uma economia de mercado baseada nos princípios
não capitalistas de cooperação e mutualidade e, por outro, a crítica ao Estado centralizado e a preferência por formas de organização políticas pluralistas e federalistas que
deram um papel central a sociedade civil.
Embora a raiz do cooperativismo esteja centrada nos princípios não capitalistas, frequentemente podem ser encontrados empreendimentos denominados de cooperativas que têm como princípios
objetivos econômicos, desconhecendo os valores e princípios do cooperativismo verdadeiro. O que
afinal é cooperação e cooperativismo? Não seria necessário retomar essas concepções em profundidade, uma vez que são facilmente distorcidas ou mesmo capturadas pela lógica capitalista?
Marx (1998, p. 378), adiantado em seu tempo, entendia por cooperação “a forma de trabalho
em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em
processos de produção diferentes, mas conexos”. Para Marx (1998), a força de trabalho social tem
sua origem na cooperação, pois quando se trabalha cooperativamente, desfaz-se o trabalhador em sua
individualidade, e se cria um novo homem e se desenvolve a capacidade de sua espécie, a de trabalhar
coletivamente.
Dessa forma, com base em Marx (1998), compreende-se o trabalho na Coopermag como um
movimento cooperativo, em que todos trabalham juntos, caracterizando um movimento autônomo,
no qual os sujeitos constroem a sua história, as pessoas são proprietárias de sua força de trabalho e a
vendem, não mais individualmente, mas de maneira coletiva e cooperativa.
A força de trabalho social dignifica o homem e o constrói como sujeito e agente histórico, dono
do negócio onde atua. No cooperativismo, não existe a divisão entre patrão e empregado. Todos são
coparticipantes de um empreendimento, de um coletivo: modelo de trabalho que pode ser encontrado
já no início da civilização humana, nos povos de caçadores os quais, coletivamente, se organizavam
para caçar.
Evidencia-se que muitas cooperativas alcançam seus objetivos econômicos, mas não se diferenciam das empresas por não conseguirem praticar a doutrina cooperativa. O primeiro passo, talvez,
seria compreender a raiz do cooperativismo e ultrapassar aspectos formais da constituição de uma
330
Joel Luis Dumke, Patrícia Abel Balestrin, Nathália Stedile
cooperativa. Para tanto, faz-se necessário que a razão do cooperativismo seja traduzida em ações,
valores e atitudes, todas construídas coletivamente entre os associados de maneira clara e concisa no
regimento e estatuto.
A raiz cooperativista propõe um agir coletivo, um trabalho conjunto com foco no mesmo objetivo pressupondo a formação do ser humano como um sujeito integral, consciente do exercício de
seus direitos e deveres, desenvolvendo também uma mentalidade mais coletiva, humana e solidária,
conforme a narra em seu artigo 4º a Lei nº 5764, de 16/12/1971.
Art. 4º As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos
associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:
I - adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços;
II - variabilidade do capital social representado por quotas-partes;
III - limitação do número de quotas-partes do capital para cada associado, facultado,
porém, o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais;
IV - inacessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à sociedade;
V - singularidade de voto, podendo as cooperativas centrais, federações e confederações de cooperativas, com exceção das que exerçam atividade de crédito, optar pelo
critério da proporcionalidade;
VI - quorum para o funcionamento e deliberação da Assembléia Geral baseado no
número de associados e não no capital;
VII - retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral;
VIII - indivisibilidade dos fundos de Reserva e de Assistência Técnica Educacional e
Social;
IX - neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social;
X - prestação de assistência aos associados, e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa;
XI - área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, controle,
operações e prestação de serviços.
De acordo com Santos (2005, p. 33-34), o cooperativismo inspira-se, enquanto prática econômica, nos princípios da autonomia, democracia participativa, igualdade, equidade e solidariedade.
Dessa forma, formam “um conjunto de sete princípios que tem guiado o funcionamento das cooperativas de todo o mundo desde que a sua versão inicial foi enunciada pelos primeiros cooperados
contemporâneos, os pioneiros de Rochdale”.
[...] o vínculo aberto e voluntário — as cooperativas estão sempre abertas a novos
membros —; o controle democrático por parte dos membros — as decisões fundamentais são tomadas pelos cooperados de acordo com o princípio “um membro, um
voto”, ou seja, independentemente das contribuições de capital feitas por cada membro ou a sua função na cooperativa —; a participação econômica dos membros — tanto como proprietários solidários da cooperativa quanto como participantes eventuais
nas decisões sobre a distribuição de proveitos —; a autonomia e a independência em
relação ao Estado e a outras organizações; o compromisso com a educação dos membros da cooperativa — para lhes facultar uma participação efetiva —; a cooperação
331
A SUSTENTABILIDADE DE UM EMPREENDIMENTO SOLIDÁRIO: DESAFIOS DO COOPERATIVISMO CONTEMPORÂNEO
entre cooperativas através de organizações locais, nacionais e mundiais; e a contribuição para o desenvolvimento da comunidade em que está localizada a cooperativa
(SANTOS, 2005, p. 34).
Os princípios de empreendimentos cooperativos enunciados por Santos (2005) foram elucidados em 1995, no Congresso em Manchester, quando a Aliança Cooperativa Internacional difundiu os
sete princípios que regem o funcionamento de qualquer cooperativa no mundo, assim apresentado:
Adesão voluntária e livre: significa que podem se associar às cooperativas todos aqueles que
tenham condições de usufruir de seus serviços e que queiram assumir as responsabilidades de um associado, sem discriminação de gênero, social, racial, política ou religiosa.
Controle democrático pelos membros: ou seja, todos os cooperados têm participação direta e
ativa na tomada de decisões. A cooperativa é administrada conforme a vontade dos associados, sendo
eles que definem as prioridades do empreendimento e elegem os diretores com igualdade de voto. As
decisões são tomadas em assembléia, órgão supremo da cooperativa.
Participação econômica dos associados: significa que todos os cooperados têm conhecimento, controle democrático e igual contribuição ao capital por meio de compra de quotas-partes, assim
como os cooperados podem usufruir de benefícios oferecidos pela cooperativa por meio do fundo de
reservas e de outras iniciativas aprovadas pelo corpo de cooperados.
Autonomia e independência: entende-se que a cooperativa é um espaço formado por pessoas
que se unem voluntariamente em torno de um objetivo comum, atender as suas necessidades em três
áreas: social, cultural e econômica. Para tanto, elas mesmas controlam o funcionamento do empreendimento e sua organização. Quando da captação de auxílios externos devem ser asseguradas a autonomia e o controle democrático dos empreendimentos por seus cooperados.
Educação, treinamento e informação: espaço que busca contribuir com base de conhecimentos com os quais possam se alimentar o corpo de cooperados e de funcionários da cooperativa, em
especial aos mais jovens.
Cooperação entre cooperativas: trabalho em conjunto e/ou a interação dos empreendimentos,
em redes locais, regionais, nacionais ou internacionais, fortalece a missão do movimento cooperativo
e busca fortalecer os empreendimentos e atender os cooperados de maneira mais efetiva.
Preocupação com a comunidade: os cooperados precisam criar e executar políticas de vigor
com o intuito de contribuir para o desenvolvimento sustentável de suas respectivas comunidades.
Os princípios cooperativos são percebidos na Coopermag como modos de vida e de relação
com o outro, nos quais aparecem valores fundamentais de cooperativismo com características de um
empreendimento coletivo que vai além dos quesitos legais, como é apresentado por Maia (2009, p.
67):
A Declaração de Identidade Cooperativa (ACI, 1998) destaca os seguintes valores fundamentais das cooperativas: a ajuda mútua, a responsabilidade, a democracia, a igualdade, a equidade e a solidariedade. Vê-se, portanto, a crença de seus membros nos valores éticos de honestidade, transparência, responsabilidade social e preocupação com os
outros. Assim, a autenticidade do empreendimento cooperativo vai além dos requisitos
332
Joel Luis Dumke, Patrícia Abel Balestrin, Nathália Stedile
legais. Requer o exercício do direito, da validação dos valores e princípios cooperativos no seu dia a dia.
Dentro dos princípios apresentados, cabe salientar que a Coopermag pode ser entendida como
um empreendimento que compreende o ser humano e o tem “no coletivo, como seu objetivo e, portanto, sua lógica não é guiada pelo lucro, mas pelo benefício que pode proporcionar aos seus cooperados. [...]. Tal princípio inclui a sustentabilidade ao preservar o meio ambiente, a natureza e o homem
do presente” (MAIA, 2009, p. 67-68).
O cooperativismo proposto e considerado, aqui, como autêntico é parte da economia solidária, pois os trabalhadores detêm igualitária e democraticamente a posse e
o controle do empreendimento entre outros requisitos. Eles vêem, na autogestão, a
tentativa e a possibilidade concreta de identificar seus problemas e limites para, coletivamente, enfrentarem os conflitos no interior das comunidades com a perspectiva
transformadora, somando esforços diante de barreiras externas. (MAIA, 2009, p. 102)
Cabe salientar que essas características da nova identidade da Coopermag são apresentadas a
partir dos novos modos de pensar a gestão e os diferentes meios de produção, por sua vez, ligados ao
espírito da economia solidária. Acredita-se que existem quatro razões para tal evento, todas ligadas ao
fator econômico, político e social.
A primeira razão apresenta-se como um novo olhar para os modos de trabalho construindo
espíritos e valores não capitalistas. De acordo com Santos (2005, p. 36), “o cooperativismo considera
que o mercado promove um dos seus valores centrais, a autonomia das iniciativas coletivas e os objetivos de descentralização e eficiência econômica que não são acolhidos pelos sistemas econômicos
centralizados”.
Face à comprovada inviabilidade e indesejabilidade das economias centralizadas, as
cooperativas surgem como alternativas de produção factíveis e plausíveis, a partir de
uma perspectiva progressista, porque estão organizadas de acordo com princípios e
estruturas não capitalistas e, ao mesmo tempo, operam em uma economia de mercado. (2005, p. 36)
Em segundo lugar, acredita-se que as cooperativas contemporâneas dispõem de potenciais
para responder com seriedade e competência aos desafios do mercado. Acredita-se nisso por duas razões: primeira, porque os empreendimentos dos trabalhadores-proprietários tendem a ser mais produtivos, pois os trabalhadores-donos dedicam seu tempo trabalhando sabendo que estão se beneficiando
diretamente com o crescimento do empreendimento. Segunda, porque se compreende com Bauman
(2007) que o mercado é fragmentado.
É nesse espaço que as cooperativas de trabalho se inscrevem, ou seja, um canal no qual as cooperativas encontram espaço e acolhem pessoas que adotam a ideia e os princípios de solidariedade.
É um espaço que está sempre em mudança, em transição – assim também se compreende as cooperativas – espaço flexível às alterações, mundo democrático de diálogo e de participação composta por
uma rede de cooperação social e econômica.
A terceira característica cooperativa é que todos são proprietários do empreendimento, o que
difunde as cooperativas em propriedades de economia social igualitária de direitos e deveres. Essa
característica, junto com todas as outras, vislumbra o desenvolvimento econômico e diminui a de333
A SUSTENTABILIDADE DE UM EMPREENDIMENTO SOLIDÁRIO: DESAFIOS DO COOPERATIVISMO CONTEMPORÂNEO
sigualdade social. E, como quarta característica, entende-se que, além dos benefícios econômicos,
os trabalhadores geram, também, um amplo espaço de democracia participativa dentro do âmbito
econômico e político.
Compartilha-se da ideia de Santos (2005) levando em consideração que as quatro características por ele apresentadas se mostram como eixo fundante para o que se pode chamar de empreendimentos contemporâneos. Longe da ideia de ser uma vista como uma gaiola de ferro, o trabalho cooperativo precisa ser visto e compreendido como novo/outro espaço onde as relações sociais de trabalho
são construídas, onde pessoas lutam contra a desordem do capitalismo e procuram construir relações
sociais de trabalho em uma sociedade flexível, onde as relações de vida e de trabalho se cruzam constantemente e constroem em conjunto diferentes modos líquidos de viver. (BAUMAN, 2003)
O cooperativismo contemporâneo torna-se um ponto de resistência em meio às insistentes
formas capitalísticas de viver e de se ver capturado por desejos e sonhos quase sempre impossíveis
de serem realizados. A experiência aqui relatada demonstra a possibilidade concreta de realização de
um sonho coletivo que passa pela vivência da solidariedade, do respeito, da autonomia. Nessa mesma
direção, Freire (2010, p. 59) argumenta que “O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um
imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros.” Dessa forma, é preciso constantemente se perguntar sobre a qualidade das relações estabelecidas nos empreendimentos
cooperativos e os desafios que se colocam para esses grupos que subvertem a lógica dominante no
mundo do trabalho.
Para finalizar, sem fechar
O artigo compreende o cooperativismo contemporâneo como processo educativo no qual os
trabalhadores se inserem em um contexto cujos modos de trabalho e de geração de renda superam os
modos capitalistas de produção e exploração de mão de obra. Compreendido dessa forma, o cooperativismo é um processo de formação humana no qual a dimensão educativa se faz dimensão transformadora por meio do movimento político que acontece nos espaços das relações coletivas.
O desafio que acompanha o processo de formação humana na Coopermag acontece por meio
das relações sociais, culturais e históricas. Dessa forma, este estudo compreende que o cotidiano cooperativista vivido na Coopermag se configura como espaço popular democrático construído na práxis
e no desafio diário de formar um coletivo com princípios democráticos e de consciência solidária.
Trata-se da configuração de um espaço que se constitui no desafio da formação de um coletivo sólido e
da geração de novas/outras formas de re/integração no campo da geração de trabalho e de renda, tendo
em vista a melhoria da qualidade de vida e a construção de projetos de futuro, além de processos de
novas/outras aprendizagens e de educação integral.
Quando se fala de cooperativismo e de cooperação, não se fala de um processo natural, mas
se acredita em algo que foge às mãos do capitalismo e dos diferentes modos de exploração de mão de
obra. O processo é educativo e se apóia nos pilares do cooperativismo e nos modos de viver economia
solidária em espaços capazes de criar alternativas de vida e modos de viver que fortalecem e re/criam
vínculos familiares e comunitários.
334
Joel Luis Dumke, Patrícia Abel Balestrin, Nathália Stedile
No entanto, acredita-se que a economia solidária ainda se encontra em estágio embrionário, de
modo que muitos não percebem o sentido vivo desse tipo de experiência. Mesmo assim, já dá sentido
à vida de inúmeras pessoas constituindo-se numa alternativa coletiva, às vezes necessária, de superar
a crise social e o desmantelamento do trabalho formal.
REFERÊNCIAS
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Zahar, 2003.
_____. Vida Líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. São Paulo, n. 19, p. 20-28, jan./abr. 2002.
BRASIL. Lei 5764, de 16 de Dezembro de 1971. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L5764.htm>. Acesso em: 10 jan. 2012.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 42ª reimpressão. São
Paulo: Paz e Terra, 2010.
MAIA, Denise Maria. A dimensão educativa da cooperativa popular. Tese (Doutorado em Educação).
2009. 197f. Faculdade de Educação da UFMG, 2009.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: Livro I. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 16 ed. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 1998.
SANTOS, Boaventura de [org.]. Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
VERONESE, Marília Veríssimo. Psicologia social e economia solidária. Aparecida, SP: Ideias & Letras,
2008.
* Joel Luis Dumke - Mestre em Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro
Universitário UNILASALLE. Professor e Coordenador de Projetos Sociais na
Cooperativa dos Educadores COOPSE, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.
** Patrícia Abel Balestrin - Professora do Curso de Psicologia da UNISINOS. Pesquisadora do GEERGE - Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero da UFRGS e professora colaboradora
do Núcleo de Educação, Avaliação e Produção Pedagógica em Saúde (EducaSaúde) da Faculdade de
Educação/UFRGS.
***
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A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Fernanda Piedade de Freitas*
Maria Luiza Steiner Fleck**
Introdução
O presente trabalho visa demonstrar que o é de grande pertinência abordar a leitura na educação de jovens e adultos como tema, uma vez que a competência leitora é fundamental a ser desenvolvida com alunos em geral, especialmente com os alunos de EJA, que já estão tentando recuperar
lacunas em sua formação.
Abordar a temática da leitura é acreditar que a prática do ato de ler é um exercício de cidadania
sendo perceptível que muitos alunos da EJA não têm o hábito de ler porque não são desafiados a isso
em sala de aula, nem contemplados nas bibliotecas. Estudaremos os tipos de leitura e a que se pretende
desenvolver nesse segmento específico, apoiadas em Paulo Freire e outros autors específicos da área
de língua e linguagem.
Momentos históricos da EJA
Ao tratarmos do assunto sobre a educação de jovens e adultos, nos remetemos às propostas de
Paulo Freire. Elas revolucionaram o conceito dessa modalidade de ensino. Em 1958, no Congresso
Nacional de Educação de Adultos, Paulo Freire apresentou as suas propostas e defendeu o relatório A
Educação de Adultos e as Populações Marginais. No relatório a proposta era que fosse incentivada a
colaboração, a participação, a preocupação e a responsabilidade social e política com a educação de
adultos.
Desde os tempos do Brasil colonial, a educação não era considerada, pelas classes dominantes, importante para povo. A possibilidade de proporcionar educação e aquisição de conhecimento às
pessoas que não tinham prestígio perante a sociedade não era uma ideia atraente ao topo da pirâmide
social. Nesse período, havia apenas uma parte hierárquica interessada em oferecer instrução: a Igreja.
Claro, com uma proposta que lhe era conveniente, a Igreja educava conforme a sua doutrina e, assim,
obtinha mais seguidores, mais fiéis. Durante o Império existiam escolas noturnas para a educação de
adultos.
Foi no período Republicano que começaram as manifestações públicas, como, por exemplo,
campanhas em prol da regulamentação desse ensino por meio do sistema de educação regular. Os políticos diziam-se preocupados com a educação, seus discursos não passavam de uma farsa, falavam e
prometiam muito, concretizavam pouco. Situação semelhante à que vivemos nos atuais dias.
Na década de trinta, o processo de industrialização e crescimento urbano exigiu um aumento
A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
da escolarização e, com isso, a ampliação do ensino para jovens e adultos. Em meados dos anos quarenta, surgiram diversas propostas políticas pedagógicas como o Fundo Nacional de Ensino Primário
(FNEP) e o INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira; tais propostas incentivaram e realizaram estudos sobre a educação de jovens e adultos. Ainda nos anos quarenta, apareceram as primeiras obras direcionadas para o ensino supletivo, uma modalidade educativa
que tem como objetivo suprir ciclos não concluídos pelas pessoas que não tiveram acesso ao ensino
durante a idade considerada adequada.
As obras foram lançadas pela CEAA – Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos e
apresentavam uma preocupação com a elaboração do material didático. Foram realizados dois eventos
fundamentais para a EJA: O 1º Congresso Nacional de Educação de Adultos, em 1947 e o Seminário
Interamericano de Educação de Adultos em 1949, ressaltando que o ensino supletivo teve como meta
minimizar a porcentagem nos índices da população analfabeta.
Durante a ditadura militar, numa tentativa de suavizar as tensões sociais, surgem as campanhas
A Cruzada ABC e o MOBRAL. Elas prosseguiram com o movimento de alfabetização de adultos.
A Cruzada ABC – Cruzada de Ação Básica Cristã, era composta por protestantes conservadores e seus líderes eram, em grande parte, missionários. A Cruzada contestava e combatia os movimentos de educação que utilizavam o método político-pedagógico, particularmente o “Sistema Paulo
Freire”, que foi adotado pelo governo Goulart, em 1963.
Com o golpe de 1964, a Cruzada ABC apresentava boa relação com o governo dos militares. Posta em prática, a Cruzada ABC tinha como base a missão dos seus protestantes: “Cruzada é
a palavra do dia no Brasil. Nós da Igreja Evangélica estamos engajados em grandes cruzadas para o
evangelismo, alfabetização e o desenvolvimento do homem de acordo como Deus deseja que seja.”
(IBIDEM)
Padres católicos e prefeituras eram os principais colaboradores da Cruzada. Para que os alunos
fossem assíduos; distribuíam, quinzenalmente, alimentos. Com o avanço na alfabetização em algumas
regiões, além do apoio dos protestantes, a Cruzada ABC ganhou apoio dos católicos.
O MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização deu continuação às campanhas de educação de jovens e adultos, mas sua proposta era totalmente diferente das anteriores.
A principal preocupação do MOBRAL foi ensinar seus alunos a ler e escrever, sem nenhum
outro foco para o exercício de cidadania aos homens. Para o MOBRAL, aprender a ler e escrever eram
suficientes para a formação do caráter humano e para obter-se melhores condições de vida, deixando
de lado outros valores que são essenciais para o desenvolvimento do ser humano ao longo da vida,
tanto no lado pessoal como para o profissional.
A proposta de ensino do MOBRAL atendeu à educação de acordo com os interesses políticos,
inclusive justificavam, ao povo, as atitudes tomadas no período da ditadura militar. A Pedagogia teve
um considerável crescimento e, assim, o assunto educação de jovens e adultos ganhou mais notoriedade. Mesmo assim, as exclusões sociais e culturais continuaram e até aumentaram. Há tempos o
governo realiza projetos na tentativa de alcançar uma educação inclusiva.
338
Fernanda Piedade de Freitas, Maria Luiza Steiner Fleck
No Art. 4, inciso VIII da LDB, é determinado como um direito e um dever do governo e da sociedade uma educação escolar regular para jovens e adultos. “oferta de educação escolar regular para
jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às disponibilidades, garantindo-se aos
que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola”. E, também, no Art. 37, a
EJA é considerada como uma modalidade de ensino indispensável. “A educação de jovens e adultos
será destinada aqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e
médio na idade própria”.
Em 15 de dezembro de 1967, a Lei 5.379, que instituiu o MOBRAL, referia-se à “educação
continuada de adolescentes e adultos”. E foi por meio do MOBRAL que foram criados e implantados
alguns programas de educação, como o Plano de Educação Continuada para Adolescentes e Adultos,
o Programa de Educação Integrada, o Programa Cultural e o Programa de Profissionalização.
O MOBRAL, extinto em 1985, foi substituído pela Fundação EDUCAR. A educação de jovens
e adultos teve as suas atividades expandidas e, em 1988, o ensino fundamental tornou-se obrigatório
e gratuito, garantido por constituição.
A Fundação EDUCAR foi extinta pelo governo do presidente da época (1990), Fernando
Collor de Mello.
Para obtermos uma EJA de qualidade é necessário um conhecimento prévio dos alunos, bem
como o envolvimento deles com as famílias e a sociedade que os circunda. Vale lembrar que a educação é um compromisso de todos e a qualidade do ensino não depende apenas do professor; não
podemos colocá-lo como mero transmissor de conhecimento, como também não podemos classificar
o aluno como mero aprendiz. Para alcançarmos a qualidade e a eficácia na educação, professor e aluno
devem realizar trocas diárias onde ambos ensinam e aprendem juntos. É o que conhecemos como a
construção do conhecimento.
Um fator que tornaria a EJA mais atraente seria a possibilidade de integrar a educação de jovens e adultos com o ensino profissionalizante. Os alunos, além de formados, sairiam qualificados,
com uma profissão, tornando-os mais preparados para o mercado de trabalho. Isto ampliaria a visão e
a perspectiva de um mundo novo e mais amplo para o educando.
Em busca da qualidade para a EJA, o governo cria metas e normas, mas não estabelece uma política eficiente de incentivos financeiros para melhorar a qualidade na educação. Necessidades básicas
não são atingidas, como, por exemplo, condições físicas no ambiente da sala de aula, materiais didáticos adequados, acesso dos alunos às tecnologias, às bibliotecas e à cultura. A qualidade e a eficácia na
EJA não podem ser vistas para fins estatísticos, mas para o desenvolvimento e exercício da cidadania,
preparando os alunos para a vida e tornando-os pessoas capacitadas. O acesso ao mundo letrado é um
percurso a ser desbravado e descoberto.
Uma educação para jovens e adultos necessita ser multicultural, pois integra o conhecimento
com as diversas culturas. Por esse motivo, é essencial que o educador conheça o meio em que está
inserido o seu educando. Ao conhecer a realidade dos seus alunos, o professor tem mais propriedade
para pensar e repensar os conteúdos e qual a melhor forma de planejar as suas aulas, sendo possível
atender à qualidade que desejamos alcançar na educação de jovens e adultos.
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A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Cabe, também, ao professor unir a teoria à prática, expandindo as possibilidades e ampliando a
visão de mundo dos alunos, fazendo com que isso desperte o interesse deles e motive-os, estimulando
a autoestima dos jovens e adultos. Assim, os próprios alunos percebem o quão capazes são de aprender, de adquirir o conhecimento e aplicá-lo em suas vidas.
A EJA tem contribuído, também, para o aumento da produtividade brasileira. Aos poucos,
podemos reverter o quadro atual que não coloca o Brasil na lista dos países desenvolvidos. É preciso
que todos estejam conscientes e atentos, cada vez mais, sobre a necessidade no desenvolvimento e
crescimento intelectual dos jovens e adultos para que possamos produzir mais e participar da acirrada
disputa internacional do setor econômico.
Devemos ver a educação de jovens e adultos como um exercício de cidadania, como um pré-requisito básico para a inserção, de quem não teve oportunidade de estudo, na sociedade. É a prova
do desenvolvimento democrático, da igualdade entre os sexos e é fator fundamental para a constituição de um mundo onde a violência dá lugar ao diálogo e à paz. A EJA é o método que serve de base
para que os educadores entendam e vençam as barreiras que dificultam o aprender a pensar dos seus
educandos.
O ensino pode ser promovido por meio de exemplos do cotidiano dos alunos, para que se identifiquem e tenham mais facilidade em compreender o conteúdo e até em discernir atos de cidadania.
Após serem apresentadas situações ocorridas, notícias, manchetes de jornal, problemas, pode-se um
debate em sala de aula, em que a possível solução é encontrada pelos alunos após a troca de ideias e
opiniões.
O educador deve auxiliar nos debates e, em todas as aulas, os alunos devem realizar uma atividade avaliativa, já que na EJA não existem testes nem provas. Além de ajudar nos debates, o educador
pode estimular os alunos a pensarem e a refletirem. Nas conversas e nos trabalhos em grupo, os alunos devem ser incentivados a trocar conhecimentos, compartilhar experiências e, assim, exercerem a
solidariedade ao se depararem com problemas vividos semelhantes aos seus. Muitas vezes os alunos
encontram uma forma de “consolo” e esperança na sala de aula.
Acreditamos que abordar questões sociais é a melhor maneira de fazer com que os alunos se
envolvam, participem, tenham mais interesse, vontade de participar e cada vez mais exerçam o seu
papel de cidadão.
O professor da Educação de Jovens e Adultos é uma peça fundamental para o retorno e permanência dos alunos à modalidade de ensino EJA. Ele deve ter competências para identificar o perfil e
verificar qual é o potencial de cada aluno e analisar a turma como um todo.
Normalmente, os alunos enxergam seu professor como um exemplo a ser seguido e como uma
inspiração para irem em frente e superarem os obstáculos como a própria vergonha, a insegurança, o
preconceito, a discriminação por serem alunos da EJA e muitas outras questões que presenciam em
suas casa e que enfrentam na rua.
Os professores da EJA têm o compromisso de acreditar na capacidade de seus alunos, enfim, de
acreditar no ser humano. A qualidade na Educação de jovens e Adultos está relacionada, diretamente,
340
Fernanda Piedade de Freitas, Maria Luiza Steiner Fleck
com a preparação e a capacitação dos professores que atuam nesse segmento de ensino.
Ao nos perguntarmos em qual modalidade de ensino a EJA está inserida, não podemos prender
o foco somente nisso, mas, também, sobre qual o lugar da EJA no painel da educação e qual o perfil
dos seus alunos. Por onde começar? Essa pergunta é a chave para descobrirmos quem é, de fato, este
público de jovens e adultos.
Um perfil de alunos que não podemos esquecer e, que será tratado no texto, são os alunos trabalhadores. Eles vivenciam as mais diversas situações no seu dia a dia e, ao chegarem à aula, muitas
vezes tiveram um dia saturado, pesado e corrido. Por esse fato, necessitamos centralizar toda a nossa
atenção e paciência no trabalho com eles, fazendo com que fatores externos não possam atrapalhar ou
dificultar o ensino, como, por exemplo, problemas pessoais, desestruturações emocionais, drogas ou
dificuldades financeiras. Tudo o que possa interferir deve ficar fora da sala de aula para que no ambiente, durante a aula, os alunos trabalhadores sejam priorizados e, assim, possam ter a sensação de
que são privilegiados por estarem presentes, como sujeitos atuantes no mundo dos estudos.
Precisamos descobrir o que a escola significa para esses alunos e também para os alunos mais
velhos que retornam à escola, depois de alguns anos e, que, sofreram experiências que os fizeram desistir dos estudos, por vontade própria ou não, ou até simplesmente fatores que possam ter provocado
sentimentos e a infeliz realidade de exclusão social.
Os jovens e adultos que voltam a estudar, fora da sua época, retornam e buscam a educação
com a esperança de obter um futuro melhor com possibilidades de crescimento pessoal e profissional.
O trabalho é o fator predominante, na vida dos alunos trabalhadores, como o responsável pela evasão
escolar e também pelo retorno à sala de aula.
Para muitos alunos trabalhadores, voltar à escola é elevar a sua autoestima, é a retomada de
um sonho interrompido e a esperança de uma vida melhor. Esses alunos procuram fazer parte de uma
sociedade que está cada vez mais exigente.
A leitura
A leitura é extremamente importante para que o homem se insira na sociedade e para que obtenha o conhecimento de mundo que o ato de ler pode proporcionar. Deveríamos ver a leitura como um
hábito na vida de todas as pessoas, um hábito constante. Ela abrange diversos aspectos para que seja
realizada com a devida eficácia que desejamos alcançar.
Ler é muito mais do que uma decodificação de letras, pois ao ler interagimos com o texto, nos
envolvemos ao ponto de relacionarmos o texto com o nosso conhecimento, relacionamos o que o autor
escreve com o nosso cotidiano e também reconhecemos aspectos que estão inseridos no contexto das
nossas vidas.
Ao ler um livro, realizamos diversas releituras e, às vezes, sem que percebamos, reescrevemos
o que acabamos de ler ao nosso modo, como seres atuantes e chegamos a comparar as ideias do autor
com as nossas ideias, e com os acontecimentos que nos cercam. Passamos a ter opinião e propriedade
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A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
para falar sobre diferentes assuntos e isso faz com que tenhamos um momento de leitura prazeroso
e repleto de dinamismo. Construímos percepções cognitivas que exigem um processo de atuação no
qual estão ligadas, diretamente, as nossas relações sociais e afetivas.
Com a leitura desenvolvemos nossa capacidade intelectual, ampliamos os nossos conhecimentos sobre os mais variados assuntos, progredimos e nos tornamos mais capacitados para termos uma
postura crítica diante do novo mundo que se abre aos nossos olhos, nos encanta e nos deixa maravilhados. Com a prática da leitura enriquecemos o nosso vocabulário, o ato de ler pode ser considerado
como uma das atividades que mais agregam valor e bagagem cultural para a nossa vida. Por meio dela
conhecemos culturas diferentes, países, lugares jamais vistos, pensamentos, fatos históricos, vivemos
romances, descobrimos novas ideias entre outras coisas que passam a fazer parte da nossa vida durante esse mágico momento de interação.
As primeiras concepções de leitura limitavam-se à capacidade de decodificação do texto, onde
a única habilidade necessária era a decodificar as palavras, depois as frases e os parágrafos. O texto
era entendido como uma estrutura com vida própria, não passava de um pretexto para que a gramática
fosse ensinada aos alunos. O sentido do texto era dependente da sua forma e só era diferenciado pelo
sentido conotativo ou denotativo, literal ou metafórico e em subjetivo e objetivo, dessa maneira o
aluno leitor sofria exclusão, cabendo-lhe atuar como ser passivo no ato de ler.
Como consequência, esse modelo de leitura não foi suficiente para diversos fenômenos, dentro
do processo de compreensão textual, fossem explicados, como a interpretação do uso de metáforas, a
ligação ideológica do texto com algumas lacunas de coesão e a possibilidade de diversas interpretações possíveis para um único texto.
Para que consigamos desenvolver o hábito de ler em nossos alunos de uma maneira efetiva,
é necessário que conheçamos as características de cada leitor, elas possuem destaque na prática da
leitura. Por este motivo, é de suma importância conhecermos o perfil do nosso aluno leitor com quem
trabalharemos na formação do hábito de ler.
O ato de ler é mais presente no nosso cotidiano, mais do que podemos imaginar. Exercemos
essa competência em simples tarefas do nosso dia a dia, como por exemplo, ao ler a bula de um remédio, a receita de um bolo ou um cartão de aniversário. A leitura faz com que exerçamos nosso papel
ativo como cidadãos atualizados e instruídos, inseridos no meio social, compondo a nossa sociedade.
Vale lembrar que as pessoas que possuem o hábito de ler são as que têm menor dificuldade para
escrever e também são as que escrevem melhor, apresentando um vocabulário mais amplo e conseguindo interpretar o que leem com clareza, transmitindo a mensagem com facilidade ao escolher o uso
das palavras. Tudo o que aprendemos e assimilamos durante a leitura torna-se parte de nós, é um bem
precioso que ninguém poderá tirar ao longo de nossas vidas.
O hábito da leitura deve ser iniciado desde cedo, quando apenas conseguimos realizar a leitura
de figuras e de objetos ao nosso redor. É fundamental que sejamos cercados de livros em casa e essa
atitude deve partir de nossos pais ou responsáveis. Eles são os nossos primeiros incentivadores no
mundo da leitura, em fazer com que busquemos nas atitudes e costumes deles a inspiração necessária
para que o ato de ler seja despertado em nós. “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí
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Fernanda Piedade de Freitas, Maria Luiza Steiner Fleck
que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”. (FREIRE, 2001,
p.11).
Ao refletirmos sobre o livro do autor “A Importância do Ato de Ler”, compreendemos que a
leitura acontece, primeiramente, num processo de internalização do exterior, no momento em que realizamos a leitura do mundo ao nosso redor e depois realizamos a leitura da palavra. A ideia de Paulo
Freire é a de que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. “É preciso que quem sabe, saiba
sobre tudo que ninguém sabe tudo e que ninguém tudo ignora” (FREIRE, 2006, p. 38).
A leitura não significa decorar e não está mecanicamente ligada ao ato de memorizar textos,
tampouco significa devorar livros. O segredo está no ler de forma que nos faça pensar e reconhecer
seu conteúdo dentro da realidade em que vivemos. O ato de ler deve acontecer de forma engajada,
entrando no texto, compreendendo e, aos poucos, criamos o hábito da leitura e conseguimos, por meio
de nossa prática, escrever um texto, reescrevê-lo e até transformá-lo em outras produções tão interessantes quanto às obras que lemos.
O incentivo à leitura acontece quando um pai, ao ler o jornal, pega seu filho no colo e continua
a leitura de maneira acolhedora com a criança, fazendo com que ela sinta esse momento como familiar
e o repita mais vezes. Uma criança diante de tantas letras fica encantada e seus olhos enchem de brilho.
A família tem um papel fundamental na formação do hábito da leitura. O hábito de ler também é estimulado quando os pais ou próximos contam histórias para seus filhos, com essa atitude os
pais realizam o contato e aproximação dos filhos com o maravilhoso mundo dos livros. Sandroni e
Machado afirmam que “o hábito da leitura deve começar cedo, sendo sugerida em casa, na família
e principalmente pelos pais, que são os seus primeiros incentivadores” (SANDRONI; MACHADO,
1986, p. 12).
A escola tem o papel fundamental, depois da família, na continuação e estímulo do hábito de
ler. Na escola, todos devem ter acesso à biblioteca, à leitura dos livros; é direito assegurado pela lei
12.244 que todos devem ter contato direto e contínuo com os diversos tipos de leitura e toda escola
deve ter um espaço adequado e um bibliotecário atuando em cada uma delas.
Quando isso não acontece, os alunos estão sendo privados dos seus direitos como cidadãos,
sofrendo desigualdade social, sentem-se sem prestígio por não terem as habilidades necessárias de
leitura e de escrita e, também, pelo desempenho não atingido, consequência que a falta de leitura causa. Lembrando que um hábito só é hábito quando é praticado constantemente, com certa frequência.
Quando deixamos de praticar a leitura, ela deixa de se tornar um hábito. E também não podemos nos
esquecer das pessoas que nem sequer foram iniciadas ou incentivadas à leitura, pois o hábito de ler não
pode acontecer sem que o ato em si nunca tenha sido praticado anteriormente.
Ler é pensar, refletir, concordar e discordar, reler, imaginar, viver e criar. O aluno que não
vem de casa estimulado à leitura, tem mais dificuldade durante os estudos. Normalmente, esses alunos foram aqueles que a família não se importava com o exercício da prática do ato de ler. Quem lê,
aprende muito mais e de um modo melhor. Quando a leitura não é trabalhada, ela torna-se um trabalho
cansativo.
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A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Cabe aos professores ensinar seus alunos que é preciso ler para aprender e para crescer na vida,
tanto profissionalmente como pessoalmente. Os alunos precisam adquirir o hábito de ler, realizá-lo
e gostar de realizar para que, assim, tomem gosto pela leitura e venham a repetir mais vezes, pois a
partir disto a leitura significará para eles uma proposta interessante e uma conquista independente.
Dessa maneira, auxiliaremos os alunos a serem capazes de desenvolver a sua opinião própria. Além
de aprenderam mais, terão compreensão das inúmeras possibilidades que a leitura proporciona, das
viagens que, por meio dela, realizamos e mais entendimento sobre o mundo da imaginação, da literatura, de tudo que é possível no ato de ler. Conforme Foucambert: “[...] no dia a dia da sala de aula, o
professor poderá mostrar que ler é uma das chaves para entrar em outros mundos: reais ou imaginários, possíveis ou impossíveis” (FOUCAMBERT, 1994, p.27).
Um dos principais objetivos dos professores e da escola em si é propiciar a formação de leitores que sejam aptos e capazes de pensar e formular questionamentos a cerca do que está lendo como
de outros assuntos. A leitura tem como consequência a ampliação da comunicação, da expressão e da
vontade de seguir lendo e aprendendo.
Mais importante do que saber ler é saber identificar o que se lê e compreender também. Entender o que o autor quis dizer, qual a mensagem que o livro nos transmitiu, o que essa leitura significou
para nós, o que aprendemos e o que encontramos de semelhante e diferente relacionando o livro com
a nossa história, com a realidade vivida por cada um de nós. Existem diversos tipos de leitura e é importante que saibamos tirar proveito das características que cada uma tem a nos oferecer.
A leitura silenciosa é o tipo de leitura que os nossos alunos realizam no dia a dia, ao lerem jornais, gibis e revistas. Ela é exercida em silêncio e é uma leitura mais breve do que os outros tipos. A
leitura oral é o oposto da silenciosa por ser mais vagarosa e mais difícil pelo fato de nos preocuparmos
em ler corretamente. Alguns alunos exercem uma boa leitura silenciosa e se retraem na leitura oral por
estarem sujeitos a ler algo de forma errada diante dos colegas.
Na leitura informativa o aluno busca informações sobre determinados assuntos. Ela é importante por guiar e instruir o aluno durante o ato de ler. Quando realizamos uma leitura com o objetivo de
encontrarmos descontração e obtermos satisfação e prazer no ato de ler, estamos realizando a leitura
recreativa.
A leitura analítica tem um nível mais alto de dificuldade, pois nos exige pensamento e reflexão
sobre as ideias do autor, sobre a transmissão da mensagem do livro e refletir, de maneira crítica, avaliando as palavras e frases do autor e a nossa opinião sobre elas.
Todo professor deve ter conhecimento/noção sobre cada uma dessas leituras para fazer com
que seus alunos consigam obter o desenvolvimento esperado sobre a compreensão das leituras que
venham a realizar. O interessante é trabalhar todos os tipos de leitura com os alunos, fazendo-os identificar a leitura no dia a dia deles e a despertar o interesse pelos outros tipos de leitura. O ato de ler deve
ser um momento rico, pois é uma das maiores formas de instrução do homem.
Ao pesquisar sobre leitura, encontramos muitos trabalhos, artigos, publicações e livros voltados
para a educação de crianças; raros foram os que abordavam a leitura voltada para a educação de jovens
e adultos, nível em que a maior parte dos alunos é constituído de pessoas mais velhas, normalmente,
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Fernanda Piedade de Freitas, Maria Luiza Steiner Fleck
trabalhadores com uma extensa jornada de trabalho. E esse é o público que tomamos como foco no
trabalho e nas sugestões de práticas em sala de aula que serão apresentadas no próximo capítulo.
Claro, existe um novo perfil de alunos na EJA, um perfil mais jovem. Os alunos mais jovens
que procuram o ensino por meio da educação de jovens e adultos são os que abandonaram a escola
regular há algum tempo e são incentivados (ou obrigados) a buscarem o estudo por terem conseguido
um emprego que lhes exige a formação completa.
Os alunos da educação de jovens e adultos precisam interagir com o meio em que vivem e não
serem considerados apenas como pessoas que não possuem conhecimento. Observando a maior parte
dos alunos da EJA, notamos que essas pessoas realizam a sua leitura de mundo conforme podem e de
acordo com a sua interação no meio social. Esse perfil de aluno não foi estimulado à leitura durante
o período em que deveria ter acontecido. Então, partindo disso, podemos pressupor que trabalhar a
leitura com a educação de jovens e adultos é um trabalho que requer muita dedicação, paciência, disposição e amor pelo que faz lidar com o ser humano é sempre um aprendizado.
Como professores, não podemos exigir excelentes interpretações e um grande desenvolvimento e assimilação de conteúdo de pessoas que, talvez, nem saibam o que essas atividades significam.
“É preciso recuperar em nossas vidas (aqueles que perderam, ou nunca tiveram) a leitura como uma
atividade de múltiplas funções [...]” (FOUCAMBERT, 1994, p. 28).
A leitura não é somente realizada com o que está escrito; efetuamos também diversos tipos de
leitura. Toda imagem é texto também; ao ver uma imagem interpretamos e conseguimos ter percepções sobre sentimentos, aparências e sensações. O mesmo acontece com uma pintura, uma escultura,
um olhar, um gesto, um movimento e até mesmo com placas e/ou símbolos de trânsito. A leitura acontece antes de aprendermos a ler e muitas pessoas não se dão conta disso.
Para transmitirmos aos alunos a importância do ato de ler, é preciso que nós professores tenhamos o gosto e o hábito da leitura. É necessário estarmos seriamente comprometidos com o nosso
trabalho, cumprindo o nosso papel como profissionais organizados, com planos de aula bem elaborados e caminhar com os nossos alunos até a descoberta dos incontáveis mundos que existem dentro da
leitura.
Para que isso aconteça, o ato de ler deve e merece ganhar a ênfase necessária na EJA, é essencial o acesso à biblioteca, aos livros e, assim, conduziremos os alunos à compreensão da importância
que a leitura tem na vida de todos nós e as transformações que vivemos durante o seu exercício. É
inadmissível que alunos da EJA do turno da noite, por exemplo, não tenham acesso à leitura na escola
por não haver nenhuma bibliotecária disponível para atendê-los na biblioteca. Os alunos sentem-se
excluídos pelo fato da escola não se preocupar em montar uma escala para que, ao menos, eles tenham
acesso aos livros uma vez na semana.
Muitos alunos não têm o hábito de ler por não terem acesso ao mundo dos livros, por não terem
condições financeiras de comprar o livro e, na escola, onde isso deveria ocorrer, não acontece. Do que
adianta incentivar o hábito da leitura se os alunos não puderem ter acesso aos livros? O ato de ler deles
se restringirá a um tipo de leitura e não irão desenvolver a capacidade de ler sobre diferentes assuntos
e gêneros textuais, a leitura será mecânica e os alunos terão uma enorme dificuldade quando se depara345
A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
rem com um tipo de leitura diferente da que estão acostumados a ler, muitos acharão o assunto chato,
a leitura difícil e muito demorada. É preciso fazer valer os direitos dos alunos sobre o acesso à leitura.
No desenvolvimento da leitura, o professor é a peça chave para que o exercício dessa atividade
seja realizado com êxito. Precisamos quebrar o paradigma de que o ato de ler é um processo mecânico,
mas um processo que envolve o contexto da história de vida que os alunos tiveram e têm e, que, está
relacionado ao modo como eles interagiram com seus próximos e com o mundo ao seu redor.
Ao realizarmos a prática da leitura em sala de aula, devemos, então, considerar os conhecimentos prévios dos nossos alunos para que possamos compreendê-los em aspectos fundamentais, como,
por exemplo, fatores emocionais e estrutura familiar. Assim pensaremos sobre como realizar o nosso
trabalho da melhor maneira possível.
O leitor assimila e formula a palavra escrita mediante as descobertas que realiza ao longo de
sua vida. Ele conseguirá relacionar as palavras com as experiências vividas e, assim, conseguirá obter
melhor compreensão sobre elas e de um modo mais fácil, isso facilitará o seu convívio em sociedade
e ele terá mais êxito em suas relações sociais.
Conclusão
Com a realização deste estudo, podemos concluir que a leitura é uma necessidade básica para o
amadurecimento e desenvolvimento de todas as pessoas. Por meio dela conhecemos um novo mundo
e reconhecemos aspectos fundamentais que caracterizam o ato de ler.
Este estudo foi motivado a partir de um conjunto de dificuldades observadas quando da reaÉ fato que
lização das práticas de leitura na modalidade Educação de Jovens e Adultos – EJA.
a leitura tem o papel fundamental de acrescentar conhecimentos e, assim, fazer com que as pessoas
cresçam e interajam com o meio social em que vivem. Quem lê, além de se expressar melhor, também
é mais bem entendido pelo outro, tem o seu vocabulário reestruturado. É quase que uma relação de
causa e consequência estabelecida entre o ato de ler e saber.
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Fernanda Piedade de Freitas*
Maria Luiza Steiner Fleck**
347
UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE
Angela Torma Pietro *
Maria Angela Mattar Yunes **
Introdução
A violência sexual é uma modalidade de violência que pode deixar marcas profundas no desenvolvimento da criança e do (a) adolescente vitimizado (a). É um problema social que envolve uma
complexidade teórica e metodológica, tanto do ponto de vista cientifico quanto legal (AZEVEDO &
GUERRA, 1995a e 1995b; COHEN, 1993; GUERRA, 1998; GROSMAN & MESTERMAN, 1998);
também por tratar-se de um aspecto que ainda permanece oculto no seio familiar (AZEVEDO &
GUERRA, 1989, 1995a e 1995b; FALEIROS, 2005; COHEN, 1993; GUERRA, 1998). Neste sentido, o profissional necessita refletir sobre as suas causas e inter-relações dentro de uma perspectiva
sistêmica de múltiplos contextos. Assim, estudar o contexto sócio-ecológico-ambiental das “portas
de entrada” desta modalidade de violência é questão primordial para entender a origem e as causas
desse fenômeno. Além disso, se faz necessário refletir sobre o caminho após a denúncia que pode ser
tão ou mais árduo que o precedente a ela. Primeiramente, ressalta-se a necessidade de conhecimento
do fenômeno pelos profissionais envolvidos nas ações direcionadas aos casos de abuso, com foco no
atendimento à vítima, buscando também um atendimento interdisciplinar para que o número de danos
e traumas não sejam maximizados. Aos profissionais envolvidos será preciso abarcar conhecimentos
que vão além de sua formação, indo de encontro à realidade da problemática que esse irá enfrentar.
Assim, o presente trabalho tem como objetivo mapear as instituições e o trabalho dos profissionais que atendem a criança, adolescente, as famílias vítimas de abuso sexual, e dos profissionais
responsáveis pelo processo legal de culpabilização do abusador, buscando compreender o atendimento em rede no municio do Rio Grande. Foi idealizado com base teórica na bioecologia de desenvolvimento humano de Urie Bronfenbrenner (1979-1996) e corresponde à linha de pesquisa de educação
não formal e informal do Programa de Pós Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande – FURG (Rio Grande-RS).
As instituições ligadas à questão do abuso sexual contra crianças e adolescentes
Após a denúncia e/ou notificação de um caso de abuso sexual se faz necessária uma intervenção legal e de proteção à criança e ao adolescente, fazendo com que esta transite por inúmeros microssistemas pertencentes a rede de atendimento. Na maioria delas a criança e/ou adolescente é obrigado
a relatar a situação que vivenciou fazendo com que a mesma reviva a violência, o que pode levar a
uma “revitimização da vítima” na tentativa de se punir o abusador. Nesse sentido, uma visão sistêmica
desta modalidade de violência permite um trabalho em rede, onde todos os profissionais envolvidos
UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE
tenham como objetivo a proteção integral a vítima através de um trabalho dialógico e compromissado.
O que mais preocupa nos casos de abuso sexual é que em geral as vítimas convivem muito frequentemente com as situações de risco. A situação de risco neste caso é compreendida pelo conjunto
de eventos negativos presentes na vida da pessoa em desenvolvimento que aumentam a probabilidade
de apresentar problemas físicos, sociais e emocionais (YUNES; SZYMANSKI, 2005; YUNES; MIRANDA; CUELLO, 2004). No caso da violência intrafamiliar, as pessoas não precisam sair de casa
elas presenciam diariamente, em seu ambiente familiar, os atos violentos e hostis que, certamente,
agem contra a sua natureza e têm influência deletéria em seu desenvolvimento (KOLLER; DI
ANTONI, 2004, p. 294).
Estratégias de proteção ao abuso sexual
Para contrapor-se aos mecanismos de risco que esta grave questão suscita, é preciso gerar
fatores de proteção que transformem esta situação. Se a família é responsável por expor a criança à
violência, cabe aos demais microssistemas que formam a rede de atendimento social, por exemplo, a
escola, atuar de forma protetiva para impedir que o abuso perdure.
Neste entendimento a abordagem bioecológica apresenta o suporte teórico e metodológico
através dos pressupostos conceituais do modelo Bioecológico de desenvolvimento humano (BRONFENBRENNER, 1979-1996; BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998). A abordagem ecológica de
Urie Bronfenbrener (1979-1996) tem sido uma referência para a compreensão das complexidades do
tema abuso sexual, pois não privilegia apenas as propriedades dos contextos, mas estuda os processos
proximais, as interações das pessoas em desenvolvimento em seus ambientes (BRONFENBRENNER,
1979-1996; YUNES; MIRANDA; CUELLO, 2004). Foi a atualização do modelo ecológico em bioecológico (BRONFENBRENNER, 1996; BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998) que trouxe para
discussão as características das pessoas e os processos proximais primários, definidos como interações
dinâmicas progressivamente mais complexas entre organismos e contextos. Portanto, a compreensão
sistêmica das questões desenvolvimentais se dão a partir de 4 (quatro) dimensões inter-relacionadas: a
pessoa, os processos, o tempo e o contexto (BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998).
Focar a pessoa significa estudar o conjunto de aspectos de personalidade do indivíduo, a sua
capacidade de explorar o ambiente, estruturando e reestruturando-o (KOLLER, 1998). Neste trabalho,
as pessoas são: as crianças e adolescentes vítimizados que precisam ser protegidos e os abusadores, os
familiares, os profissionais e demais implicados de vários sistemas que também precisam ser cuidados e ainda os pesquisadores. Os processos referem-se aos motores do desenvolvimento humano, os
vínculos entre os contextos e as pessoas, os processos de interações, suas atividades diárias e papéis
experimentados. O tempo refere-se ao cotidiano das pessoas, suas histórias de vida, suas experiências
e o momento histórico pesquisado. O contexto, no qual vive a criança vítima de abuso sexual (e
qualquer outra criança) compreende uma variedade de espaços, desde a família, escola, vizinhança
até a mais ampla conjuntura social. Estes ambientes são concebidos por Bronfenbrenner (1979-1996)
como uma série de estruturas encaixadas uma dentro das outras da seguinte forma: microssistema,
mesossistema, exossistema e macrossistema. Um microssistema é definido como “um padrão de atividades, papéis e relações interpessoais experenciados pela pessoa em desenvolvimento num dado
350
Angela Torma Pietro, Maria Angela Mattar Yunes
ambiente com características físicas e materiais específicas” (BRONFENBRENNER, 1996, p.18).
Portanto, refere-se ao ambiente que o indivíduo estabelece relações face-a-face assumindo papéis e
interagindo pessoalmente. A família, a escola e a instituição são exemplos de microssistemas. O mesossistema refere-se ao conjunto de relações entre dois ou mais microssistemas nos quais a pessoa em
desenvolvimento participa de maneira ativa (as relações família-escola, por exemplo). O exossistema
compreende aquelas estruturas sociais formais e informais que, mesmo que não contenham a pessoa
em desenvolvimento, influenciam e delimitam o que acontece no ambiente mais próximo (a família
extensa, as condições e as experiências de trabalho dos adultos e da família, as amizades, a vizinhança). E por último, o macrossistema é o sistema mais distante do indivíduo, e inclui os valores culturais,
as crenças, as situações e acontecimentos históricos que definem a comunidade onde os outros três
sistemas estão inseridos e que podem afetá-los (estereótipos e preconceitos de determinadas sociedades, períodos de grave situação econômica dos países, a globalização).
Metodologia
Para este estudo foram organizadas diferentes estratégias de pesquisa, tendo em vista o número
de participantes envolvidos. Desta forma, optou-se por realizar uma pesquisa quanti-qualitativa, sendo
estas imprescindíveis para a compreensão do fenômeno a ser estudado.
A inserção ecológica (Cecconello & Koller, 2003) foi usada em todas as fases de coleta de
dados, tanto nas instituições como em qualquer outro contexto pesquisado: os pesquisadores usaram
o diário de campo, visitas sistemáticas e permanência com observações por tempo planejado e em
turnos alternados nos contextos pesquisados. A metodologia da inserção ecológica propõe um olhar
cuidadoso, dirigido para as pessoas, para os processos, para os contextos em questão e o tempo, a partir das concepções teóricas da abordagem bioecológica de Bronfenbrenner (1979/1996, 2005).
Aplicação dos Instrumentos: a) Aplicação de Questionário estruturado visa traçar o perfil das
instituições que serão pesquisadas. Este instrumento foi criado com o objetivo de buscar os dados gerais da instituição e do serviço que a mesma desenvolve. Para o emprego do instrumento foi construída
uma lista preliminar das instituições que atendem a criança e/ou adolescente, famílias e abusadores
no município; b) Coleta de dados históricos e sociais das instituições. Com o intuito de fazer um resgate histórico e social das instituições estudadas será feita através de uma pesquisa de campo. Serão
pesquisadas atas de fundação, relatórios, jornais locais e históricos disponibilizados pelas instituições.
Considerando que todos estes documentos tem fácil acesso ao público não apresentará qualquer dificuldade para a obtenção dos dados; c) aplicação de Questionário semi-estruturado que busca fazer
um diagnóstico sócio-ecológico ambiental do atendimento à criança e ao adolescente, vítima de abuso
sexual, das famílias e do abusador. Este instrumento busca delinear todos os passos executados pela
instituição durante o atendimento, bem como a compreensão destes profissionais acerca do tema. A
partir da análise deste instrumento será possível perceber quais são as interlocuções existentes entre
as instituições e como se dá o fluxo do atendimento. E principalmente, será possível avaliar as dificuldades e problemas existentes que podem causar ou potencializar a revitimização da vítima. Foram
elaborados dois modelos: Modelo A - foi aplicado no contexto escolar com o diretor, com o coordenador pedagógico e com um professor; Modelo B – foi aplicado aos profissionais, somente nos postos
351
UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE
de saúde e hospitais com mais de um representante do local por ex.: atendente, enfermeiro e médico
pediatra. Nas demais foi aplicado com o diretor ou coordenador da instituição.
Com a análise dos dados obtidos através da aplicação dos instrumentos acima, foi possível
construir um Programa de Intervenção Psicoeducacional junto aos profissionais com vistas a construir
estratégias de prevenção nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes com vistas a facilitar a formação de uma rede de atendimento eficaz e protetiva que tenha como prioridade a criança
e o adolescente vitimizado.
O trabalho de pesquisa foi desenvolvido com os profissionais que atuam junto à rede intersetorial da cidade de Rio Grande, RS, tendo por base os locais pelos quais se sabe que são enviadas a criança, a família e o abusador por ocasião de uma denúncia ou notificação. São eles: Conselho Tutelar,
Delegacia de Polícia, Juizado da Infância e da Juventude, Vara Criminal, Promotoria da Infância e da
Juventude, Promotoria Criminal, CREAS, Escola e a família das vítimas. Um levantamento preliminar mostrou que estas somam 194 instituições envolvidas: 11 (onze) instituições do setor de cidadania
e assistência social; 8 (oito) organizações não governamentais, 9 (nove) Postos da Polícia Civil, 11
(onze) instituições governamentais, 31 (trinta e um) Postos de Saúde; 53 (cinqüenta e quatro) escolas
municipais urbanas e rurais; 18 (dezoito) escolas de educação infantil; 31 (trinta e um) escolas estaduais e 22 (vinte e duas) escolas particulares. Participarão da coleta de dados: duas bolsistas CNPq,
13 bolsistas permanências da FURG e 1 doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental da FURG.
Considerando os objetivos do estudo e o atendimento das instituições envolvidas foram convidados para responder o questionário três profissionais de cada uma das instituições pertencentes a
rede de atendimento, destas participaram de forma efetiva 422 profissionais. Como critérios de inclusão dos participantes da pesquisa optou-se pela antiguidade e pelo desejo em participar da pesquisa.
Como critérios de exclusão considerou-se todos que não estão de acordo com os critérios de inclusão
apresentados, bem como a indisponibilidade em participar do estudo.
Para análise dos dados qualitativos obtidos foram utilizados os princípios da grounded-theory
(Glaser & Strauss, 1967, Strauss & Corbin, 1990). A grounded-theory foi cogitada, neste caso, por
oferecer condições de descoberta de uma teoria a partir dos dados coletados (Yunes, 2001a; Yunes &
Szymanski, 2005). O pesquisador que faz uso da grounded-theory tem possibilidade de organizar uma
grande quantidade de dados qualitativos, neste caso obtidos a partir dos relatos, em códigos, subcategorias e categorias. O rigor dos procedimentos desta forma de análise possibilita uma certa “descontaminação” das idéias teóricas e hipóteses previamente elaboradas para a realização do seu estudo. É
uma abordagem particularmente válida para campos de pesquisa pouco conhecidos. O software NVIVO foi utilizado para organizar e implementar a qualidade das análises quantitativas e qualitativas.
Resultados
Os 422 profissionais foram classificados nas seguintes áreas de atuação: Educação (256), garantia dos direitos (11), assistência social (18), saúde (96), jurídica (3) e segurança Pública (26), Entidades de Acolhimento Institucional (12).
352
Angela Torma Pietro, Maria Angela Mattar Yunes
O estudo preliminar sobre o atendimento à criança e/ou adolescente vitimizado, da família e
dos agentes responsáveis pelo processo legal de culpabilização do abusador realizado no município
de Rio Grande indicou a existência de serviços que atuam de forma multidisciplinar, mas com pouca
ou nenhuma interlocução.
Os primeiros contatos já apontaram para a dificuldade dos profissionais em compreender esta
modalidade de violência, bem como entender a necessidade e o funcionamento de uma rede de proteção para a criança e/ou adolescente vitimizado. Alguns segmentos sequer conhecem as instituições
que atendem as vitimas e muito menos a sua responsabilidade enquanto educador social diante de uma
situação de violência, seja: física, psicológica, negligência ou sexual.
O trabalho em rede, principalmente aquele que visa proteção deve ter um caráter inter/transdisciplinar. Sabe-se que este último, só se dá num plano ideal, mas é possível se tivermos como meta
buscarmos medidas protetivas eficazes. O trabalho multidisciplinar – fragmentado expõe a criança e/
ou adolescente vitimizado a situações de risco podendo levar a grave situação de revitimização.
Não podemos deixar de pensar num trabalho a médio e a longo prazo com toda a família, tendo
em vista a complexidade desta modalidade de violência. Não é recomendável agir de forma imediatista, e a busca da garantia dos direitos fundamentais da criança e/ou adolescente, dentre eles o direito a
convivência familiar e comunitária é prioritária principalmente em casos onde as relações familiares
apresentarem condições de reorganização. Não podemos ainda, deixar de avaliar as condições da
própria família extensa como forma de proteção evitando a todo custo a retirada abrupta da criança
e/ou adolescente vitimizado e a ida para um abrigo. Estas seriam medidas de proteção seguramente
adequadas em muitos casos.
Uma rede de proteção só pode ser pensada a partir da articulação e do diálogo sistemático entre
os diversos profissionais que atuam nestas situações, bem como com o conhecimento profundo do
fenômeno. É preciso ter em mente que tanto a criança e/ou adolescente vitimizado merecem mais que
aplicações de protocolos de atendimento, mas merecem um atendimento acolhedor, digno e protetivo.
Para isso, o profissional necessita conhecer seu papel, atuar eticamente, sem negligenciar etapas.
Conhecer todos os serviços disponíveis, poder contar com o apoio de outros profissionais,
maior capacitação sobre o tema são medidas necessárias para a criação de uma rede de proteção.
Buscar preservar a criança e/ou adolescente vitimizado a todo custo e um acompanhamento dos casos
são essenciais para compreender as diversas manifestações desta modalidade de violência. Os profissionais de todas as áreas: saúde, educação e legal são importantes e só um trabalho que tenha como
foco a proteção a criança e o adolescente, de forma dialógica e articulada é capaz de formar uma rede
de proteção.
Cumpre ressaltar, a carência de estudos científicos sobre a formação de uma rede de proteção,
pois os estudos sobre atuações multidisciplinares e preocupações com melhorias nos atendimentos,
não apresentam uma visão ecológica e sistêmica do fenômeno. Tal constatação advem de atuações
práticas, empíricas do nosso grupo de pesquisa a qual pretendemos trazer para o campo da ciência.
353
UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE
Considerações finais
No processo de mapeamento foi possível perceber a falta de interlocução entre as instituições
envolvidas, o que denota a importância de uma visão ecológica que promova a proteção à vítima. Percebe-se que o caminho após a denúncia pode ser tanto quanto ou mais árduo que o precedente a ela.
Por este motivo, o conhecimento do tema pelos profissionais envolvidos e a precocidade e prioridade
no atendimento à vítima, são questões primordiais para que o número de danos e de traumas não seja
ainda maior. O que se vê, na maioria dos casos, é uma preocupação em provar os “verdadeiros culpados”, o que faz com que tal prioridade exponha ainda mais a criança ou o adolescente a condições
de risco. Algumas vezes, os riscos vividos no ambiente familiar se repetem na situação pós-denuncia
e seus encaminhamentos. Tendo em vista que uma vez realizada a denúncia e iniciado o inquérito,
quem deve proteger a criança e o adolescente é a Sociedade/Estado. Assim, os desdobramentos dos
atendimentos devem ser realizados de forma realmente efetiva, com a absoluta garantia dos direitos
fundamentais das pessoas implicadas. De todas as considerações apresentadas neste texto, fica transparente a necessidade de preparo, formação, capacitação e empoderamento de uma rede intersetorial
que fale a mesma “linguagem”, e que tenha claro os seus objetivos comuns de proteção e de desenvolvimento das pessoas envolvidas em casos de abuso sexual. O funcionamento e o atendimento tecido
por uma rede de profissionais habilitados é a solução mais exequível e justa para prevenir que crianças
e adolescentes sejam revitimizados e banidos de seus direitos de amar, brincar e aprender em todo e
qualquer contexto.
A proposta apresentada está longe de ser a solução final para este problema social de tamanha
abrangência e complexidade. Entretanto, é uma alternativa para promover mudanças, ou pelo menos
desestabilizar estruturas enraizadas que muitas vezes não se dão conta da abrangência das suas atuações no desenvolvimento da criança e/ou adolescente vitimizado. As instituições envolvidas não
podem mais furtar-se às suas responsabilidades sociais de propiciar proteção não apenas às crianças
e adolescentes, mas também às famílias e ao próprio abusador. Só assim, será possível buscar estratégias de prevenção tendo a formação de uma rede como apoio afetivo e social e preparada para interagir
com seu público de maneira humana e respeitosa.
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355
UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE
*Historiadora, Advogada, Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação Ambiental da
Universidade Federal do Rio Grande. Membro do Centro de Referência e Apoio a família (CRAF/
FURG), colaboradora do Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas em Situação de Rua (CEP-Rua) e do Núcleo de Estudos e Atenção às Famílias (NEAF) da FURG. Presidente da Corregedoria do
Conselho Tutelar do município de Rio Grande.
**Psicóloga. Doutora em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande, Professora no Mestrado em Educação do Unilasalle, docente Colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental da FURG e docente colaboradora no curso de Especialização em Saúde Comunitária na
UFRGS.
356
CAAPÃO DAS CANOAS, CANOAS, RS: ESPÉCIES DA FLORA AMEAÇADAS
DE EXTINÇÃO.
Sérgio Augusto de Loreto Bordignon *
Inga Ludmila Veitenheimer-Mendes **
Felipe Marcon Pezda ***
Introdução
O Caapão das Canoas, remanescente de vegetação nativa do atual município de Canoas, encontra-se mantido junto ao Campus do Centro Universitário La Salle - UNILASALLE, desde a chegada e instalação dos irmãos Lassalistas no Rio Grande do Sul, em Canoas, no início do século XX.
Tal remanescente, denominado pela comunidade acadêmica de Túnel verde, foi designado em 1999,
pelo Irmão Alberto Knob, como “uma relíquia do Caapão das Canoas”.
Knob, em 1999, apresenta uma listagem da composição florística presente no Caapão das Canoas, que corresponde a uma área de mais ou menos meio hectare e apresenta a forma aproximada de
um quadrado.
Com o objetivo de preservar e promover a divulgação do patrimônio ambiental, representada
pelo Caapão das Canoas, busca-se reavaliar a atual situação deste resquício de mata urbana, tomando
por base o levantamento realizado por Knob (1999). O trabalho de reavaliação abrange o período de
abril de 2010 a julho de 2012, quando se procedeu ao levantamento da flora vascular - dos diferentes
extratos (arbóreo, arbustivo e herbáceo) além das plantas trepadeiras e epífitas - através do Método do
Caminhamento conforme Filgueiras et. al., (2004) e que consiste em percorrer a área anotando todas
a espécies encontradas.
Como resultado parcial do levantamento registra-se espécies da flora ameaçadas de extinção
presentes no Caapão das Canoas, conforme a lista das espécies da flora ameaçadas – RS (Decreto Estadual nº 42.099, de 31/12/2002).
Para efeito do Decreto 42.099 de 31/12/2002, consideram-se as seguintes categorias de ameaças:
1. provavelmente extinto (PE): um táxon é considerado provavelmente extinto quando, após
exaustivos levantamentos, em habitats conhecidos e potenciais ao longo de sua área original de ocorrência, não é encontrado nenhum indivíduo;
2. criticamente em perigo (CR): um táxon está criticamente em perigo quando corre um risco
extremamente alto de extinção em um futuro imediato;
CAAPÃO DAS CANOAS, CANOAS, RS: ESPÉCIES DA FLORA AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO
3. em perigo (EN): um táxon está em perigo quando não está criticamente em perigo, mas corre
um risco muito alto de extinção em futuro próximo;
4. vulnerável (VU): um táxon é considerado vulnerável quando não está criticamente em perigo , mas corre um grande risco de extinção em médio prazo.
Espécies da flora ameaçadas presentes no Caapão das Canoas
Até o momento foram registradas na área do Caapão das Canoas (Figura 1): 177 espécies da
flora, das quais 134 são nativas (autóctones da Floresta Estacional Semidecidual), 44 introduzidas de
forma intencional (plantadas) ou espontânea (dispersão por animais ou vento), destas 11 são nativas da
Flora Brasileira e que ocorrem originalmente em outras formações florestais do Rio Grande do Sul ou
de outros Estados do Brasil e 33 são espécies exóticas (originárias de outros países e/ou continentes).
Figura 1 - “Caapão das Canoas”, Unilasalle, Canoas,
Rio Grande do Sul. (Foto: Sérgio Bordignon)
Dentre estes resultados, merece destaque o registro das seguintes espécies relacionadas na lista
da flora ameaçada de extinção no Rio Grande do Sul (Decreto Estadual nº 42.099, de 31/12/2002):
AMARANTHACEAE
Celosia grandifolia Moq. (EN)
Esta espécie herbácea, conhecida popularmente como bredo-do-mato, registrada por Knob
(1999), não foi encontrada, até o momento, no atual levantamento florístico. Trata-se e espécie nativa,
porém não endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Mata Atlântica (SENNA, 2012).
Cabe destacar que no Rio Grande do Sul esta espécie ocorre na Depressão Central, Litoral e
Encosta do Nordeste no interior de matas pluviais muito úmidas, sendo raríssima (VASCONCELLOS,
1982).
358
Sérgio Augusto de Loreto Bordignon, Inga Ludmila Veitenheimer-Mendes, Felipe Marcon Pezda
Gomphrena vaga Mart. (VU) – Figura 2
Trata-se de trepadeira, registrada durante o presente levantamento, não tendo sido inventariada
por Knob (1999). Espécie nativa, porém não endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico
a Amazônia, a Caatinga, o Cerrado e a Mata Atlântica (SENNA, 2012). No Rio Grande do Sul G. vaga
ocorre em quase todas as regiões do Estado, exceto no Alto Uruguai, Campanha, Encosta do Sudeste
e Serra do Sudeste (MARCHIORETTO et. al., 2008), habitando bordas de mato, clareiras e matos
abertos, sendo pouco frequente (VASCONCELLOS, 1982).
Figura 2 – Gomphrena vaga Mart. A) hábito, B) face inferior de uma folha e inflorescências.
(Fotos: Sérgio Bordignon)
BROMELIACEAE
Tillandsia geminiflora Brogniart (VU) – Figura 3
Epífita, conhecida popularmente como cravo-do-mato, gravatazinho ou bromélia, registrada
por Knob (1999), teve seu registro confirmado no atual inventário. Trata-se de espécie nativa, porém
não endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Caatinga, o Cerrado e a Mata Atlântica
(FORZZA et. al., 2012).
Figura 3 – Tillandsia geminiflora Brogniart. A) hábito, B) detalhe das flores.
(Fotos: Sérgio Bordignon)
359
CAAPÃO DAS CANOAS, CANOAS, RS: ESPÉCIES DA FLORA AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO
Tillandsia usneoides (L.) L. (VU) – Figura 4
Epífita conhecida popularmente como barba-de-pau, barba-de-velho ou camambaia, registrada
por Knob (1999), teve seu registro confirmado no atual inventário. Trata-se de espécie nativa, porém
não endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Caatinga, o Cerrado e a Mata Atlântica
(FORZZA et al., 2012).
Figura 4 – Tillandsia usneoides (L.) L. (Fotos: Sérgio Bordignon)
Vriesea gigantea Gaudich (VU) – Figura 5
Epífita conhecida vulgarmente como gravatá ou bromélia, não foi registrada por Knob
(1999). Outra espécie do gênero, V. friburguenseis Mez, mencionada pelo referido autor, não foi encontrada no atual inventário. Vriesea gigantea é espécie nativa, endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Mata Atlântica (FORZZA et al., 2012).
Figura 5 - Vriesea gigantea Gaudich. (Foto: Sérgio Bordignon.)
360
Sérgio Augusto de Loreto Bordignon, Inga Ludmila Veitenheimer-Mendes, Felipe Marcon Pezda
CELASTRACEAE
Maytenus glaucescens Reissek (VU) – Figura 6
Espécie arbórea, conhecida popularmente como coração-de-bugre, não foi registrada por Knob
(1999). Outra espécie de Maytenus, M. cassiniformis Reissek, mencionada por Knob (1999), também
conhecida pelo mesmo nome popular, não foi encontrada no atual inventário. Foram encontrados
12 exemplares de M. glaucescens com mais de 1,5m de altura sendo que apenas um exemplar, uma
árvore com porte de aproximadamente 15m de altura, já foi encontrado com frutos maduros no mês
de novembro. Trata-se de espécie nativa, porém não endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Mata Atlântica (LOMBARDI et al., 2012). No Rio Grande do Sul cresce na floresta do Alto
Uruguai e na Depressão Central (SOBRAL et al., 2006).
Figura 6 - Maytenus glaucescens Reissek. A) hábito B) ramo vegetativo C) frutos e sementes.
(Fotos: Sérgio Bordignon).
ORCHIDACEAE
Cattleya intermedia Graham (VU) – Figura 7
Epífita conhecida popularmente como orquídea-catléia, registrada por Knob (1999) e confirmada presença também neste inventário. Espécie nativa, endêmica do Brasil, tendo como domínio
fitogeográfico a: Mata Atlântica (BARROS et al., 2012).
No Rio Grande do Sul ocorre nas regiões: Depressão Central, Encosta do Sudeste, Encosta
Inferior do Nordeste e Litoral; habitando principalmente matas paludosas do bioma Mata Atlântica,
em altitudes moderadas a baixas (BUZATTO et al., 2010).
361
CAAPÃO DAS CANOAS, CANOAS, RS: ESPÉCIES DA FLORA AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO
Figura 7 - Cattleya intermedia Graham. (Foto: Sérgio Bordignon)
Cattleya tigrina A. Rich.(VU) – Figura 8
Epífita conhecida apenas como orquídea, não tendo sido registrada por Knob (1999). Espécie
nativa, endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Mata Atlântica (BARROS et al.,
2012).
No Rio Grande do Sul é encontrada na Depressão Central, Encosta Inferior do Nordeste e Litoral; habitando altitudes moderadas (BUZATTO et al., 2010).
Figura 8- Cattleya tigrina A.Rich. (Foto:Sérgio Bordignon)
SIMAROUBACEAE
Picrasma crenata (Vellozo) Engler (VU) – Figura 9
Árvore denominada popularmente como pau-amargo, quina ou quineira, registrada por Knob
(1999) e no atual inventário através de um único exemplar. Espécie nativa, porém não é endêmica do
Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Mata Atlântica (PIRANI & THOMAS, 2012)
362
Sérgio Augusto de Loreto Bordignon, Inga Ludmila Veitenheimer-Mendes, Felipe Marcon Pezda
No Rio Grande do Sul ocorre na floresta do Alto Uruguai e na Depressão Central (SOBRAL
et al., 2006).
Figura 9 - Picrasma crenata (Vellozo) Engler. A) ramo florífero B) detalhe das flores.
(Fotos: Sérgio Bordignon)
Considerações finais
Knob (1999) considera C. grandifolia, T. geminiflora, T. usneoides, C. intermedia e P. crenata,
como sendo espécies originais da composição florística da vegetação primitiva do atual município
de Canoas. Sendo que atualmente não mais há registros de C. grandifolia para a área do Caapão das
Canoas, relacionada para o Rio Grande do Sul como espécie EN e considerada como raríssima por
Vasconcellos (1982). Recentemente essa espécie foi encontrada em um fragmento de Floresta Estacional Semidecidual, situada entre os bairros Cinco Colônias e Mato Grande, área que consta no Plano
Diretor Urbano e Ambiental de Canoas (PDUA) como Parque Natural (FACHINELLO, 2011).
O papel das listas de espécies ameaçadas quer em nível internacional, nacional e local - como
no presente caso – é o de levar este conhecimento e alertar aos tomadores de decisão e o público em
geral sobre a necessidade de evitar a crescente destruição dos habitats e consequente dilapidação do
patrimônio genético. A preservação e o correto manejo de áreas verdes nativas é um dever de Estado e
do próprio cidadão e, de modo muito especial, quando nestas áreas encontram-se espécies ameaçadas,
é fundamental que sejam identificadas e levadas ao conhecimento da comunidade onde se encontram
inseridas – só se preserva e se valoriza quando se conhece.
REFERÊNCIAS
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BUZATTO, C.R.; FERREIRA, P.P.A.; WELKER, C.A.D.; SEGER, G.D. dos S.; HERTZOG, A.; SINGER,
R.B. 2010. O gênero Cattleya Lindl. (Orchidaceae: Laeliinae) no Rio Grande do Sul, Brasil. In: Flora
Ilustrada do Rio Grande do Sul. Revista Brasileira de Biociencias, Porto Alegre, v. 8, n. 4, p. 388-398.
363
CAAPÃO DAS CANOAS, CANOAS, RS: ESPÉCIES DA FLORA AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO
FACHINELLO, A. 2011. O patrimônio ambiental em Canoas, Rio Grande do Sul: avaliação da conservação e recomendações de uso de áreas naturais remanescentes. 2011. 117f. Dissertação (Mestrado em
Memória Social e Bens Culturais) – Unilasalle, Canoas, 2011.
FILGUEIRAS, T.S.; NOGUEIRA, P.E.; BROCHADO, A.L. & GUALA II, G.F. 1994. Caminhamento –
Um Método Expedito para Levantamentos Florísticos Qualitativos. In: Cadernos de Geociências, IBGE.
FORZZA, R.C., COSTA, A., SIQUEIRA FILHO, J.A., MARTINELLIi, G., MONTEIRO, R.F., SANTOSSILVA, F., SARAIVA, D. P., PAIXÃO-SOUZA, B. 2012. Bromeliaceae in Lista de Espécies da Flora do
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Botânico do Rio de Janeiro. (http://floradobrasil.jbrj.gov.br/2012/FB001301). Consultado em agosto de
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SENNA, L. 2012. Celosia in Lista de Espécies da Flora do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
(http://floradobrasil.jbrj.gov.br/2012/FB004307;FB004317).Consultado em agosto de 2012.
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Flora arbórea e arborescente do Rio Grande do Sul, Brasil. São Carlos: RiMa .
VASCONCELLOS, J.M.O. 1982. Estudo taxonômico sobre Amaranthaceae no Rio Grande do Sul, Brasil.
Dissertação (Mestrado em Botânica). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 277p.
* Biólogo, Doutor em Ciências Farmacêuticas; professor e orientador no Programa de Mestrado em
Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração e na graduação em Ciências Biológicas do Centro
Universitário La Salle.
** Bióloga e Museóloga, Doutora em Ciências; Vice-Presidente do Conselho Regional de Museologia
3ª Região; professora aposentada pela UFRGS.
*** Biólogo, Graduado em Ciências Biológicas-bacharelado (Unilasalle).
364
UM primeiro olhar À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE
SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS
Cristiane Paim da Cunha *
Rubens Müller Kautzmann **
Introdução
O presente trabalho pretende apresentar a situação de segurança e saúde do trabalho encontrada
na atividade de serrarias no município gaúcho de Cerro Grande do Sul, realizado por equipe da FUNDACENTRO e trabalhado como pesquisa de mestrado por Da Cunha (2011).
A Atividade de Serraria e a SST
A atividade de serraria no município gaúcho de Cerro Grande do Sul, possivelmente não é
diferente de outras tantas atividades de alto risco disseminadas pelo Brasil, operadas por micro e pequenos empresários, caracterizadas pela pouca formação no ramo e alta informalidade nas relações
comerciais e de trabalho. As serrarias estudadas estão inseridas na cadeia produtiva da silvicultura do
eucalipto, na etapa de beneficiadoras das toras não aproveitadas para o beneficiamento industrial e,
portanto, assumindo função importante na gestão de rejeitos ou inservíveis deste segmento.
De acordo com a Norma Regulamentadora nº 9 (NR 9), as serrarias estudadas enquadram-se no
grau de risco 3, Classificação de Risco que tem no grau 4 o maior nível de risco. Este grau compreende
as tipologias de riscos físicos, químicos biológicos, ergométricos e de acidentes. A atividade do desdobre de toras em tábuas tem como principais riscos aqueles que envolvem a operação de serragem feito
no equipamento de serra fita ou circulares, classificadas como simples, duplas ou múltiplas (YUBA,
2001).
Para a avaliação dos riscos a Segurança e Saúde do Trabalhador (SST) de qualquer empresa
ou segmento empresarial se deve considerar o contexto social e cultural em que está inserida. Para
Carvalho (2006) as pequenas empresas, fundamentalmente as empresas familiares, são influenciadas
por valores culturais brasileiros, como o forte respeito pela autoridade, relacionado à estrutura patriarcal da família, e o personalismo, relacionado a uma sociedade rural extremamente coletivista. Estes
valores são ainda mais realçados quando se observa a tendência brasileira à informalidade, pacifismo
e cordialidade. Assim, as pequenas empresas criadas por empreendedores sem grande formação profissional sugerem uma gestão paternalista, informal, com aversão aos riscos de captação de recursos
financeiros e preferência a um crescimento lento. Lodi apud Machado (2006) acrescenta que as pequenas empresas evitam qualquer tipo de formalidade, rigidez e profissionalismo, utilizando muito mais a
lealdade pessoal e o comprometimento através de laços afetivos, ao que, se acrescenta as relações de
submissão do empregado e de dominação do empregador.
UM primeiro olhar À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS
Contexto de Estudo
A atuação da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE - RS) na região em
2008 resultou, inicialmente, na interdição de 8 empresas e posteriormente, com acompanhamento da
FUNDACENTRO, as 28 serrarias que operavam nos municípios de Cerro Grande do Sul receberam
notificação coletiva.
A partir da Notificação Coletiva, coube a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e
Medicina do Trabalho – FUNDACENTRO, empreender ações visando a melhora das condições de
SST e com isto o desenvolvimento sustentável, do segmento de serraria na região. A FUNDACENTRO é entidade vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego com a missão de produzir e difundir
conhecimentos que contribuam para a promoção da segurança e saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras.
As ações realizadas no período de 2009 a 2011 compreenderam: reuniões com empresários e
trabalhadores, palestras de esclarecimento e instrução sobre SST e visitas de orientação e avaliação
técnica, quando se aplicou instrumentos de análise e questionários visando através do seu diagnóstico
e avaliação da situação e percepção das condições de SST fundamentar ações e atuações no sentido de
qualificar e promover o desenvolvimento do segmento, seus gestores e trabalhadores.
O trabalho apresenta a situação do aspecto de segurança e saúde do trabalhador no contexto de
um segmento econômico, de importância regional, que serve a um propósito e etapa da cadeia produtiva da madeira para a construção civil.
Neste contexto, conhecer o cenário cultural e social do empreendimento fará compreender
melhor os resultados da avaliação de risco em seu três níveis básicos: identificar os perigos; estimar o
risco de cada perigo (a probabilidade e a gravidade do dano) e decidir se o risco é tolerável (referência
xx).
A necessidade deste “primeiro olhar” busca permitir que a avaliação dos riscos da atividade
seja conduzida a uma abordagem participativa, oportunizando o envolvimento administradores e trabalhadores no processo de avaliação em SST.
O trabalho apresenta o diagnóstico do ambiente laboral que acompanhou a avaliação da segurança e saúde do trabalho (SST) na atividade de serraria no Município de Cerro Grande do Sul, no
Estado do Rio Grande do Sul.
Metodologia
A intenção do trabalho em avaliar a saúde e segurança do trabalhador nas serrarias de Cerro
Grande do Sul, buscou realizá-la a partir de um enfoque sistêmico, conhecendo a situação deste segmento dentro de sua cadeia produtiva e do ambiente onde se localiza, para melhor compreender os
aspectos da SST e sua capacidade de adoção de medidas de gestão a esta atividade.
Peres (2005), citando Wiedmann, mostra que o ponto de partida de qualquer estudo de percepção de riscos é o quanto difere a interpretação de uma pessoa “leiga” – entendida aqui como aquela
366
Cristiane Paim da Cunha, Rubens Müller Kautzmann
que não adquiriu conhecimentos específicos sobre o objeto em questão, ao longo se sua trajetória de
vida – para um determinado perigo, da interpretação do mesmo por parte de um perito.
O levantamento e ações realizadas na região de estudo foram de cinco visitas no período de
2009 a 2011, compreendendo atividades educativas e de orientação direta às empresas, inspeções
técnicas e aplicação de questionários de avaliação da SST e percepção de riscos, realizadas pela FUNDACENTRO. De um universo de 28 serrarias localizadas no município de Cerro Grande do Sul, 5
foram escolhidas como representativas deste segmento segundo entendimento consensual da equipe
da FUNDACENTRO, além dos aspectos de logística e oportunidade de encontrar a serraria operando
no momento da vistoria.
Em dois momentos, janeiro de 2009 e janeiro de 2011, através de questionários, foram avaliados os seguintes parâmetros de SST: regularização de funcionários, aproveitamento/destinação de
resíduos, proteção contra incêndio, EPI (equipamento de proteção individual), EPC (equipamento de
proteção coletiva), instalações ordem e limpeza, sinalização, áreas de vivência, condições do maquinário e manutenção preventiva.
Discussão dos resultados
Segmento Econômico
Entre as 5 serrarias pesquisadas a empresa mais jovem tinha 7 anos enquanto as outras quatro
empresas amostradas (80%) estão no mercado há mais de 10 anos, o que confere a característica de
empresas estáveis no seu segmento segundo Betim (2007) apud Silva, 2007, que considera a mortalidade maior de empresas se dá até 5 anos. Relatos de proprietários referem a troca da atividade de
olaria para a serraria, em função de dificuldades de atendimento à legislação vigente, logística para
escoamento da produção bastante precária e baixo preço de mercado. O segmento da cadeia da produção de tabuas na Região de Cerro Grande do Sul esta apresentado na Figura 1.
Figura 1 – Fluxograma da geração de tabuas a partir de madeira redirecionada pela indústria.
(Arte: Priscila Suzuki, 2011)
367
UM primeiro olhar À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS
O produto (tábuas) é de acabamento grosseiro, destinado a empresas de construção civil, localizadas no litoral norte do estado e para empresas localizadas no entorno do município. Duas empresas
fornecem também matéria-prima para a confecção de embalagens tipo pallets.
A matéria-prima utilizada é composta preferencialmente de madeira de eucalipto, proveniente
do excedente de uma grande indústria produtora de celulose localizada em um município nas proximidades e de matas da região. As toras recebem um primeiro beneficiamento de descasque ou desgalhamento na origem, o que facilita a manipulação das mesmas nas serrarias.
O parâmetro econômico observado na pesquisa foi a relação de vínculo de emprego. Em 2009
a relação encontrada era precária e algo informal. Este aspecto se reflete também na ausência da presença de registros de inspeção do trabalho e de treinamentos externos ao trabalhador.
Todos os trabalhadores ao serem questionados, relataram ter aprendido a profissão dentro da
própria serraria, iniciando na atividade como ajudantes. Os empresários argumentaram que não oferecem cursos sobre SST aos seus funcionários, por estes terem altos custos ou por não terem conhecimento de órgãos que ministrem cursos voltados ao seu segmento. Todavia, demonstraram interesse
em oferecê-los, se os cursos fossem gratuitos e não interferissem no horário normal de expediente,
sugerindo que os mesmos fossem realizados durante os finais de semana.
Em 2011 a situação da relação do trabalho evoluiu com a regularização dos contratos de trabalho e observação dos direitos do trabalhador.
O ambiente de Segurança do Trabalho
A primeira etapa das operações nas serrarias é o recebimento e descarregada (Figura 2). Em
duas das cinco serrarias estudadas, esta operação é realizada com auxílio de equipamento (guindaste).
Nota-se, no entanto, que ainda ocorre o rolamento das torras de madeira realizadas manualmente,
exigindo um grande esforço físico dos trabalhadores, podendo acarretar doenças do sistema ósseo e
muscular e, em casos extremos levar à invalidez dos mesmos, além dos riscos de acidentes.
Os trabalhadores também não dispunham de equipamentos de proteção individual adequados,
como luvas, aventais, óculos, protetores auditivos e calçados, ficando sujeitos à ocorrência de acidentes, como esmagamentos, cortes e ataque de animais peçonhentos, bastante comuns nestes ambientes.
368
Cristiane Paim da Cunha, Rubens Müller Kautzmann
Figura 2 – Recebimento e descarga das toras de madeira em serraria em Cerro Grande do Sul.
O passo seguinte é preparar as toras para serem serradas. Muitas vezes, nesta etapa, é necessário o auxílio de moto-serra, com o propósito de deixar as toras mais uniformes para serem serradas,
retirando das mesmas, galhos e folhas remanescentes ou nós aparentes possibilitando um maior rendimento na operação de serra e também prolongando a vida útil da própria serra-fita. A serra fita, onde
ocorre a operação de desdobro das toras, ou seja a produção de tábuas, é o principal equipamento da
serraria (Figura 3).
Figura 3 – A foto mostra a etapa de serragem e serra fita e as condições de exposição da serra e atmosfera
com poeria em serraria em Cerro Grande do Sul.
369
UM primeiro olhar À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS
Nota-se na Figura 3 a ausência de proteção na serra-fita. Além de ser necessária a instalação de
um equipamento de proteção coletiva de enclausuramento da serra-fita, é de fundamental importância
a utilização de equipamentos de proteção individual, pois a lâmina possui pontas cortantes nos dentes,
o que pode gerar faíscas que podem causar danos irreversíveis à visão do operador. Sem a proteção
e enclausuramento ocorre também a maior emissão de particulados e poeira e adicionando o risco à
saúde dos operários.
Nesta etapa do processo é gerada a maior quantidade de resíduos. A estimativa feita indicou
que 60% do material serrado é descartado na forma de costaneiras ou serragem. Nenhum tipo de reaproveitamento ou reciclagem é realizado.
As tábuas serradas são colocadas manualmente em pilhas depositadas no pátio, de onde seguem para o consumidor final.
A segurança nas operações foi avaliada através dos parâmetros de proteção contra incêndio,
EPI (equipamento de proteção individual), EPC (equipamento de proteção coletiva), condições do
maquinário e manutenção preventiva. Em 2009 todas as serrarias apresentaram para estes quesitos
pontuações de inexistente a ruim. Já em 2011 houve uma melhora com destaque ao fornecimento de
EPIs e introdução de EPCs.
Condições de saúde e higiene
A Figura 4 mostra a área física e as edificações, compostas por galpões de madeira, com aproximadamente 250 m², com telhado de telhas de argila ou cimento amianto, com as laterais abertas,
piso de terra sem revestimento e pé direito com aproximadamente 3 metros de altura.
Figura 4 – Panorama das estruturas e galpões de serragem em serraria em Cerro Grande do Sul.
370
Cristiane Paim da Cunha, Rubens Müller Kautzmann
O ambiente de trabalho aberto recebe a ventilação e iluminação natural, este último auxiliado
com lâmpadas fluorescentes e incandescentes
Apesar da Portaria 3.214, do Ministério do Trabalho, através da Norma Regulamentadora - NR
24 estabelecer que as instalações sanitárias devem ser submetidas ao processo permanente de higienização, para que sejam mantidas limpas e desprovidas de quaisquer odores durante toda a jornada de
trabalho, nas serrarias visitadas as condições sanitárias/higiênicas são bastante precárias. Em 80% das
serrarias haviam banheiros para seus trabalhadores. Uma serraria não dispunha de instalações sanitárias para uso dos funcionários. Nas que tinham sanitários, 75% das serrarias não atendia às recomendações previstas em norma, como mostra a Figura 5.
Figura 5 – A foto mostra a condição de instalações e higiene de sanitário de serraria em
Cerro Grande do Sul.
Os sanitários dispunham de lavatórios, porém não eram fornecidas toalhas para a secagem das
mãos. Mesmo assim, os trabalhadores consideram as condições sanitárias adequadas, constatando-se
a falta de noções sobre higiene por parte de trabalhadores e empresários.
A falta de limpeza e organização verificadas nos estabelecimentos acompanhados, somadas à
carência e precariedade das instalações sanitárias, favorecem o aparecimento de cobras, escorpiões,
aranhas, dentre outros, nos locais de trabalho. A presença destes animais é uma ameaça à saúde dos
trabalhadores, uma vez que estes são peçonhentos e podem ser vetores de outras doenças.
A condição de saúde e higiene, apesar de estar ligada também ao uso de EPIs e EPCs obteve
a avaliação através dos parâmetros de instalações ordem e limpeza, sinalização e áreas de vivência.
Em 2009 a avaliação média destes quesitos foi de regular a inexistente. Na média esta condição evoluiu em 2011 porém em função das melhorias introduzidas por duas das cinco serrarias. Estas duas
371
UM primeiro olhar À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS
empresas atingiram avaliações de muito bom a bom, enquanto as demais não promoveram melhorias.
Como exemplo a Figura 6 mostra a nova condição de sanitário da mesma empresa retratada na
Figura 5.
Figura 5 – Nova situação das instalações sanitárias em serraria em Cerro Grande do Sul.
Condições de Risco na SST
Quanto ao aspecto ergonômico nas serrarias estudadas verificou-se que muitas tarefas são realizadas através de operações manuais, em sua maioria, tarefas de empilhamento e de transferência de
local de objetos pesados. O tamanho e forma das toras, tábuas e equipamentos utilizados nas serrarias,
dificultam essa operação. Sendo assim, as tarefas que submetem o trabalhador a esforços repetitivos
ou carregamento de peso, com excesso de exigência muscular, podem, com o tempo, desenvolver no
trabalhador problemas de coluna e doenças devido a estes esforços.
O principal risco físico é o ruído, embora não tenham sido realizadas avaliações quantitativas
de exposição ao ruído. Os questionários mostraram que o trabalhador tem a percepção do risco a saúde
devido ao ruido.
Nos trabalhos de carregamento e estocagem a exposição ao calor com frequência é um risco
a saúde. Além do estresse psicológico, devido ao desconforto provocado pelo calor, podem ocorrer
também problemas fisiológicos como a desidratação, câimbras de calor, exaustão e choque térmico
que podem levar a morte.
Embora o tamanho das partículas emanadas do processo produtivo nas serrarias estudadas seja
considerado grande, e não apresentando risco de comprometimento pulmonar, pode causar danos aos
372
Cristiane Paim da Cunha, Rubens Müller Kautzmann
órgãos externos do corpo. A ventilação ou exaustão adequados e o uso pelos funcionários dos equipamentos de proteção individual protegem contra este risco. Substâncias químicas tóxicas provenientes
do pó da madeira, uma vez em suspensão no ar, podem também facilmente penetrar no organismo pela
respiração, vencendo as barreiras naturais das vias respiratórias e chegando a atingir as partes mais
profundas do pulmão.
Os riscos de acidentes são representados pela exposição a perigos existentes em instalações,
máquinas e equipamentos. Nos locais visitados, estes ficaram evidentes no arranjo físico inadequado,
máquinas e equipamentos sem proteção e sem manutenção, ferramentas manuais defeituosas, iluminação e instalações elétricas inadequadas, riscos de incêndios e explosões e contato com animais
peçonhentos.
Nas serrarias visitadas, o arranjo físico inadequado foi rapidamente identificado pela dificuldade da passagem (fluxo) de materiais e pessoas, proximidade de máquinas e equipamentos e acúmulo
de materiais desnecessários à atividade pelo caminho.
Foram verificados nos estabelecimentos visitados, a falta de instalações elétricas adequadas,
não sendo observado o cumprimento de normas de segurança (NR 10) para este item, como por
exemplo, falta de aterramento de equipamentos e ferramentas elétricas. Os acidentes com eletricidade
podem ser provocados por contato direto (tocar a fiação elétrica) e indireto (contato com superfícies
energizadas) provocando choque elétrico, queimaduras, incêndio e até a morte, situação esta que já
aconteceu na região em uma serraria que não faz parte das selecionadas para este estudo.
A pesquisa avaliou também a percepção de empresários e trabalhadores ao risco em SST. No
entendimento dos empresários o trabalho é seguro, já os trabalhadores tiveram opiniões conflitantes,
o que demonstra a baixa conscientização sobre a questão.
A percepção conflitante foi demonstrada quando estes reconhecem alguns riscos, especialmente o ruído e a falta de segurança das instalações elétricas. Outro aspecto importante é a condicionante
cultural a percepção de riscos, que fica explicitada ao observar as informações fornecidas sobre acidentes de trabalho. Um empresário e um trabalhador relataram a ocorrência de cortes e ou arranhões
e, no entanto, sequer consideram a ocorrência destes como acidentes. Neste caso, identifica-se uma
distorção do entendimento do conceito de acidente do trabalho, já que pequenos acidentes, não são
percebidos como indicativos de condições inseguras que contêm a probabilidade de gerarem acidentes
graves.
Em relação ao meio ambiente, tanto os empresários como trabalhadores foram categóricos em
afirmar que suas atividades não possuem impacto significativo. Nenhum dos entrevistados reportou
queixas oriundas da comunidade relacionadas às atividades desenvolvidas pelas empresas. O parâmetro de aproveitamento de resíduos foi avaliado. Em 2009 duas empresas já aproveitavam os resíduos
como lenha. Em 2011 este parâmetro foi atendido por quatro serrarias.
Considerações
A análise do segmento de serrarias em Cerro Grande do Sul através das suas características de
SST permite avaliar a sustentabilidade desta atividade empresarial.
373
UM primeiro olhar À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS
A existência de 28 serrarias em um pequeno município, como é o caso, por si só revela a importância de maior atenção a este segmento econômico.
O conhecimento revelado mostra ser uma atividade apêndice na cadeia produtiva, predisposição a informalidade nas relações de trabalho, e possivelmente comercial e baixo nível técnico e de
formação.
A Notificação Coletiva recebida do órgão de fiscalização do trabalho e a presença da FUNDACENTRO tiveram efeito positivo na adoção de medidas de regularização da relação de emprego e
aspectos de segurança e saúde do trabalho. Acredita-se que esta mudança de postura imprime também
uma melhora na gestão e sustentabilidade do empreendimento.
A pesquisa mostra ainda a necessidade de conhecer a percepção do risco do trabalhador e empresário, como condição básica as ações de educação, no sentido de conscientizar e alterar paradigmas
da cultura local sobre os riscos e alertas de SST.
REFERÊNCIAS
ABRAF. Anuário Estatístico da ABRAF 2010: ano base 2009. Brasília, 2010
Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul – FEE-RS
DA CUNHA, C. P. Avaliação da Segurança e Saúde do Trabalho (SST) na Atividade de Serraria no
Município de Cerro Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Avaliação de Impactos Ambientais em
Mineração), Centro Universitário La Salle, Unilsalle, Canoas, 2011.
CARVALHO, C. E.; MACHADO, D. D. P. N. Traços culturais de pequenas empresas do setor madeireiro. Revista Gestão e Regionalidade, nº 65, set-dez: 2006.
PERES, F. ROZEMBERG, B.; DE LUCCA, S.R. Percepção de riscos no trabalho rural em uma região
agrícola do Estado do Rio de Janeiro. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(6):1836-1844, nov-dez,
2005.
YUBA, A. N. Cadeia produtiva de madeira serrada de eucalipto para produção sustentável de habitações.
Dissertação (Mestrado em Engenharia), Escola de Engenharia, Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil, UFRGS. Porto Alegre, 2001
* Msc. Engenheira de Segurança.
Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho. FUNDACENTRO/CERS
** Prof. Doutor, Engenheiro de Minas. PPG Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração
374
O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE
NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL: SUBSÍDIOS PARA AÇÕES DE
EDUCAÇÃO AMBIENTAL
Carlos Gilberto kisiolar Machado *
Rubens Muller Kautzmann **
Luciano Scarello Azeredo ***
Introdução
A abordagem da gestão mineral sobre distritos mineiros não é nova. O Departamento Nacional
da Produção Mineral (DNPM) tem trabalhado nesta perspectiva, em todo Brasil. Na década de 1990,
o DNPM patrocinou o Programa Nacional de Estudos de Distritos Mineiros, com o objetivo de fomentar e subsidiar ações de governo e da iniciativa privada na exploração e produção de bens minerais e
águas subterrâneas.
No Rio Grande do Sul, Santos et al, (1998), delimitaram 15 distritos mineros, segundo a tipologia de jazimento e o perfil das atividades de mineração, ou seja: quais os tipos de bens minerais existentes e se estes encontram-se em fase de pesquisa do jazimentos e/ou em produção dos bens minerais.
A atividade de mineração está na base de inúmeras cadeias produtivas, as quais operam dentro
do modelo de desenvolvimento econômico atual, que segundo DIAS (2006) visa unicamente o lucro
dentro da lógica de produção-consumo sempre crescente. Neste momento se faz necessário encontrar e adotar processos educativos que rompam com o atual modelo de desenvolvimento econômico
(MDE). Tratar a Educação Ambiental (EA) a partir de princípios somente éticos, somente educativos,
somente científicos, é dar continuidade ao que existe (ALMEIDA; KAUTZMANN, 2012).
Para DIAS (2006) a Educação Ambiental (EA) envolve a relação sistêmica entre seus objetivos
e a realidade social, econômica, política, cultural, ecológica e de ciência e tecnologia, onde se dará a
atividade de EA. Segundo o mesmo autor, entende-se a necessidade primeira da compreensão da realidade do sistema onde a ação de EA será promovida, que no presente estudo, é a atividade de extração
de pedra de talhe no Distrito Mineiro de Nova Prata.
Portanto, este trabalho objetiva ter uma visão do segmento de mineração e do contexto do
Distrito Mineiro de Nova Prata a partir de dados obtidos nas informações do Relatório Anual de Lavra
(RAL) de 2010, que possam nortear o planejamento de ações de Educação Ambiental para este sistema produtivo e ambiental.
Metodologia
Para conhecer o segmento estudado, duas abordagem foram realizadas. A primeira consistiu
O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL
em reunir informações de trabalhos que integram conhecimentos de geologia, mineração e meio ambiente que permitam contextualizar a atividade de produção de pedra de talhe.
A segunda abordagem visou realizar uma análise estatística do segmento produtivo desta pedra, afim de analisar uma informações sobre impactos ambientais causados pela sua exploração, e
quais medidas são aplicadas para minimizar estes impactos, através de uma amostra aleatória de um
banco de dados fornecidos pelas empresas mineradoras, disponíveis no DNPM contidos no Relatório
Anual de Lavra de 2010. Todas as informações foram coletadas por técnicos do DNPM e tratadas
neste trabalho sem a identificação da pessoa jurídica.
O RAL compreende as informações prestadas pelos mineradores referentes a atividade de extração mineral, tais como: produtividade, custos, preços de vendas, licenças para exploração, tipos de
impactos ambientais causados e medidas aplicadas.
O setor mineiro da região de Nova Prata (RS) aos poucos foi se organizando través do
Sindicato da Indústria de Extração de Pedreiras de Nova Prata – SIEPNP, que, em 2010, reuniu neste
Distrito Mineiro aproximadamente 300 mineradoras cadastradas.
A quantidade de 36 mineradoras pesquisadas foi definida pela equação (1). Considerando-se
o tamanho da população em 300 empresas, média proporcional de 15% das observações que não
aplicam nenhum tipo de medida para minimizar os impacto ambientais, com erro estimado para
esta média em 10% , e um limite de confiança de 90% (probabilidade esperada para média proporcional da população).
Equação (1) : Número de elementos da Amostra.
(Martins,Gilberto de Andrade, 2008).
Através desta amostra, os dados brutos coletados são organizados em tabelas e gráficos para
376
Carlos Gilberto kisiolar Machado, Rubens Muller Kautzmann, Luciano Scarello Azeredo
melhor visualização e compreensão do comportamento das variáveis observadas. Destes serão calculadas, medidas estatísticas de proporção referentes aos impactos ambientais e suas medidas, inseridas
na planilha Excel, para análise e conclusões dos dados.
Levantamento da região
O Distrito Mineiro de Nova Prata – RS
A região em estudo está compreendida pelos distritos de Nova Prata, Nova Bassano e Serafina
Correia e foi classificada como Distrito Mineiro de Nova Prata (Santos et al., 1998). Este distrito engloba os municípios de Vila Flores, Paraí, Casca e Protásio Álves, como principais, reunindo em sua
maioria, microempresas. A Figura 1 apresenta a carta do município de Nova Prata onde está colorida
a zona potencial para a extração de lajes de basalto, já excluídas as zonas de APPs: dos cursos de água
e nascentes, topos de morros e inclinações acima de 45%, conforme o ex-código florestal (Portela,
1998 ; Araújo, 2009).
Figura 1. Mapa do Zoneamento da extração de basalto no Distrito Mineiro de Nova Prata – RS.
A mineração da pedra de talhe ocorre em estratos tabulares ou lajes (diaclases horizontais) nos
derrames de rochas vulcânicas, de composição ácida, descritas como riolitos e riodacitos, facilmente
extraídos e talhados em uma diversidade de produtos para a construção civil, conforme figuras 2 , 3
e 4.
A figura 2, mostra o perfil da lavra de basalto de onde extraí-se a pedra de Talhe (Toscan,Kautzmann,2005)
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O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL
Figura 2: Perfil da Lavra de Basalto
Figura 3 : Lavra das estruturas do tipo disjunções tabulares horizontais, na forma de lajes de “basalto”
de granulação fina e cor cinza claro (Basalto Carijó).
A figura 4, mostra o produto final da pedra de talhe aplicada em várias atividades da Construção Civil.- Unilasalle (Gilberto Kisiolar-2012)
Figura 4: Piso e estrutura decorativa em pedra de talhe.
Fonte (autoria própria)
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Carlos Gilberto kisiolar Machado, Rubens Muller Kautzmann, Luciano Scarello Azeredo
Esta rocha designada genericamente como basalto é minerada desde a década 1940 (DILDA
apud KAUTZMANN, 2009), como alternativa de trabalho aos agricultores nos períodos de entre
safras. A atividade de mineração tomou impulso na década de 1980, quando empresas, de micro e
pequeno porte, foram criadas e os primeiros títulos de mineração obtidos para atender a demanda por
um produto barato e de alta resistência. Ao final desta década, os locais de mineração já eram conhecidos, através do cadastramento e regularização realizados pelo DNPM/1ºDS, e comercializados no
Estado do RS.
Nesta época, estruturou-se o atual Sindicato da Indústria da extração de Pedreiras de Nova
Prata – SIEPNP, o qual reúne atualmente 262 empresas de mineração.
Discussão das informações do RAL-2010
A amostra de estudo reúnem os RALs de 36 mineradoras em 12 municípios, escolhidas por
amostragem aleatória, no Distrito Mineiro de Nova Prata, e estão apresentados na Tabela 1.
Tabela 1 - Base amostral de RALs consultados do Distrito Mineiro de Nova Prata.
MUNICÍPIOS
Casca
Guabijú
Ipê
Marau
Nova Bassano
Nova Prata
Paraí
Protásio Alves
São Domingos do Sul
Serafina Corrêa
Veranópolis
Vila Flores
TOTAL
Nº MINERADORAS
2
1
1
1
1
12
5
2
5
2
2
2
36
A pesquisa apresenta aspectos pertinentes a Educação Ambiental envolvendo a extração de
basalto para pedra de talhe no Distrito Mineiro de Nova Prata analisando informações contidas nos
RALs, tais como: registro dos tipos de impactos ambientais e investimentos realizados em meio ambiente.
A percepção dos mineradores aos impactos ambientais causados pela extração da pedra de
talhe é apresentado na Tabela 2 e visualizado na Figura 5. Os registros contemplam 91 observações.
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O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL
Tabela 2 - Percepção pelos mineradores dos impactos ambientais causados pela extração de pedra de talhe no
Distrito Mineiro de Nova Prata – RS
Impactos Ambientais
Visual
Erosão
Sucatas
Deslizamento
Ruído
Ar
TOTAL
Nº de Empresas
36
22
12
7
10
4
91
% Impactos
40%
24%
13%
8%
11%
4%
100%
Ao todo foram seis (6) os impactos ambientais destacados pelos mineradores. Destes o impacto
Visual foi o mais citado, impacto que significa o desconforto humano ao ver a pedreira.
Na figura 5, observa-se que os impactos ambientais de maior expressão lembrados foram o
Visual (com 40%) e de Erosão (somando 24% das observações). Em contrapartida tem-se pouca expressão sobre os impactos de deslizamento, ruído e poluição do ar, impactos que envolvem riscos e
dano à saúde e segurança do trabalhador.
Figura 5. – Percepção de impactos ambientais informado nos RALs (DNPM,2011) pelos mineradores
de Pedra de Talhe no Distrito Minero de Nova Prata – RS
Para minimizar os efeitos dos impactos causados pelos mineradores, na extração da pedra
de talhe, as empresas informam em quais impactos ambientais serão realizados os investimentos. A
Tabela 3 e a Figura 6 registram as medidas tomadas para mitigar os impactos ambientais, na mesma
amostra de 36 mineradoras, atingindo um total de 56 observações.
Pode-se observar que as medidas aplicadas para minimizar os impactos ambientais foram exatamente naquelas em que eles demonstraram a maior percepção, na recuperação da vegetação das
áreas degradadas e na contensão da erosão através de taludes estruturados com pedras, argila ou
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Carlos Gilberto kisiolar Machado, Rubens Muller Kautzmann, Luciano Scarello Azeredo
vegetação. Entretanto 16% das observações não apresentaram nenhuma medida aplicada para minimizar os impactos ambientais causados pela sua exploração e comercialização da pedra.
Tabela 3 - Medidas adotadas para minimizar os impactos ambientais causados pela extração de pedra
de talhe no Distrito Mineiro de Nova Prata-RS
Medidas
Vegetação
Contensão da Erosão
Redução dos ruídos
Redução da poluição do Ar
Controle das Sucatas
Contensão Deslizamentos
Nenhuma medida adotada
TOTAL
Observações
16
14
9
5
2
1
9
56
% Medidas
29%
25%
16%
9%
4%
2%
16%
100%
Na tabela 4 e na figura 7, registram-se o número de empresas que investiram ou não, financeiramente em Medidas para recuperação da área explorada pela mineração.
Tabela 4. Investimentos aplicados em medidas aos impactos ambientais
INVESTIMENTOS AOS IMPACTOS AMBIENTAIS
Investimentos
Nenhum Investimento
Totais
Nº Empresas
27
9
36
% Empresas
75%
25%
100%
Os dados coletados são de informações não confirmadas sobre a efetividade das medidas para
minimização dos impactos ambientais gerados pelas mineradoras.
381
O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL
Observa-se que 75% das empresas pesquisadas realizaram investimentos em medidas para
minimizar os efeitos da exploração da pedra, como a recuperação da vegetação, contensão da erosão,
redução dos ruídos e poluição do ar, controle das sucatas e deslizamentos, sendo eles de pequena ou
grande expressão.
Considerações finais
Pela percepção dos mineradores, constatamos que, 75% das empresas mineradoras levantadas
nesta amostra aplicaram investimentos em máquinas, equipamentos ou técnicas para minimizar os
impactos ambientais.
Observou-se também que grande parte das medidas adotadas foram em recuperação da vegetação das áreas desmatadas ou degradadas, no controle da erosão, através de taludes estruturados com
pedras, argila e vegetação.
Mas sobre os impactos apresentados como poluição do ar, ruídos, deslizamentos, que são prejudiciais à saúde e trazem riscos ao trabalhador, pouco foi informado.
Chega-se a conclusão que há a necessidade de realizar um trabalho de inserção em Educação
Ambiental nas mineradoras existentes no Distrito Mineiro de Nova Prata-RS de conscientização e
gestão desta atividade.
REFERÊNCIAS
Araújo, A. B. B.; Hasenack, H.; Rotert, A.; Kautzmann, R. M. Mapeamento de Potencialidade Ambiental da Extrão de Basalto em Nova Prata – RS. In: VII Simpósio Internacional de Qualidade Ambiental.
ABES-RS, Porto Alegre, 2010. (CD ROM)
382
Carlos Gilberto kisiolar Machado, Rubens Muller Kautzmann, Luciano Scarello Azeredo
DNPM – Departamento Nacional de Produção Mineral: Cadastro Mineiro. Disponível em www.
dnpm.gov.br/. Acessado em abril de 2012.
Santos, E.L., Maciel, L.A.C., Filho, J.A.Z. Distritos Mineiros do Estado do Rio Grande do Sul, Distrito
Mineiro de Nova Prata, 1o Distrito – DNPM, p. 13-14, Porto Alegre, 1998.
Dias, Genebaldo Freire. Educação ambiental: princípios e práticas. São Paulo: Gaia, 2006.
Martins, Gilberto de Andrade, Estatística Geral e Aplicada – Editora Atlas-2008
Kautzmann, R.M., Sabedot, S., Bastos, A.B.; Flores, S.S. Análise Diagnóstica da Extração de Basalto em
Nova Prata – RS: Metodologia Informatizada para o Levantamento de Aspectos Ambientais. Anais da
III Semana Científica do Unilasalle, CD ROM, 2007.
Kautzmann, R.M. Toscan, L., Sabedot, S. O rejeito da mineração de basalto no nordeste do Estado do Rio
Grande do Sul: diagnóstico do problema. REM – Revista Escola de Minas, v. 60, n. 4, p.657-662, 2007.
Alegre, 1998.
PORTELA, L. C. Mapa Geológico Simplificado, Projeto Basalto Ornamental, DNPM, Porto Alegre,
1989.
Toscan, L., Rejeitos de Basalto: Uma primeira abordagem. Estudo de Caso: Extração de Basalto no
Município de Nova Prata – RS. Dissertação de Mestrado, Universidade Luterana do Brasil – ULBRA,
Canoas, 2005.
Toscan, L., Kautzmann, R.M., Diagnóstico da Mineração de Basalto e seu Rejeito, no Município de Nova
Prata RS; 1. Estudo Setorial. Congresso Internacional em Planejamento e Gestão Ambiental, Brasília,
2005.
* Carlos Gilberto Kisiolar Machado - Mestrando em Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração
** Rubens Muller Kautzmann - Prof. Doutor, Engenheiro de Minas. PPG Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração
*** Luciano Scarello Azeredo -
383
8. PRODUÇÃO E USO DA MEMÓRIA
GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO
EM QUEDA
Glauce Stumpf*
Este artigo é uma parte do trabalho de conclusão de curso de História Licenciatura1 no qual foram analisadas as representações da imprensa brasileira sobre o governo militar argentino. Para tanto
foram selecionadas matérias jornalísticas publicadas acerca da administração da Junta Militar – Marinha, Exército e Aeronáutica – que governou a Argentina (1976-1983) durante o ano de 1982, ou seja,
no ano em que iniciou a transição política na Argentina, de ditadura militar para democracia – uma vez
que as eleições ocorreram em 1983.
Teoria e Metodologia
Para poder trabalhar com os jornais é necessário acercar-se de diversos fatores imprescindíveis. De acordo com a historiadora Capelato (1988, p.15), a grande imprensa possui interesses que
vão muito além de informar seus leitores. Possui interesses políticos e, por ser uma empresa, visa o
lucro. Para alcançá-lo, cada jornal identifica o seu público para que possa atraí-lo ao seu produto e
faz investimentos que possibilitem melhorar a qualidade e aumentar o número de exemplares. Além
disso, constitui uma rede especializada em informação, com profissionais preparados e um aparato
tecnológico muito desenvolvido.
Porém, o lucro não é o único objetivo. A imprensa possui uma voz política atuante, que, por
mais que tente manter-se neutra, constrói imagens (tanto positivas como negativas, dependendo de
seus interesses) sobre determinados fatos. Essas imagens tendem a levar o leitor a tomar posição sobre
assuntos que a empresa acredita serem relevantes e que estão imbuídos de objetivos políticos.
Reforçando essa percepção, Berger (2003) pode nos auxiliar: “a posição negada em nome do
princípio liberal do jornalismo – a imparcialidade – é que confirma a que veio a imprensa. É consenso
sabê-la arauto da perspectiva histórica da burguesia e, assim, sustentação do capitalismo” (p.41). Ou
seja, mesmo quando a imprensa procura manter-se neutra, ela se posiciona. Mesmo ao tentar se isentar, mostrando os dois lados de uma revolta ou manifestação, por exemplo, ela manifesta sua posição.
Pode ser por meio dos detalhes técnicos do jornalismo, ou por meio do uso de termos no discurso.
A forma do texto pode falar por si só, e o jornal utiliza muito este recurso. A preocupação com a
estética é muito valorizada nos periódicos, para destacar reportagens as quais desejam dar ênfase. Mas,
o conteúdo também se destaca, trazendo as vozes do jornal. Essa união entre o conteúdo (a construção
de um vocabulário jornalístico, sua procura por objetividade), com a estética do jornal (os enunciados
selecionados, todos os detalhes técnicos) constrói representações do real pela empresa jornalística que
conduz o leitor, fazendo “parte de um grande campo de luta política” (BIAGI, 2001, p.19).
GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO EM QUEDA
Essa pesquisa está embasada no conceito de representações, que é bastante complexo, estando,
até hoje, em debate entre os historiadores. Conforme Chartier (1990) as representações “traduzem as
suas posições e interesses objectivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade
tal como pensam que ela é, ou como gostaria que fosse” (p.19). Sob essa perspectiva, as relações
sociais estão envolvidas pelas representações que temos da realidade e são elas que forjam, muitas
vezes, os acontecimentos.
Partindo desse embasamento teórico e metodológico, a escolha do periódico foi baseada na importância do jornal Zero Hora2, que a partir da década de 1980, é o jornal mais lido do Rio Grande do
Sul (BERGER, 2003, p. 59), e, por entender que as matérias publicadas nos diversos órgãos da grande
imprensa são muito semelhantes, pois, na época estudada, eram compradas de agências de notícias
nacionais e internacionais que as vendiam a muitos periódicos, optamos apenas por um jornal.
A Argentina
A Argentina passou por muitas ditaduras na segunda metade do século XX. A última ditadura
militar (1976-1983) vivida pelos argentinos deixou marcas fortes na população, tanto em relação à
violência utilizada pelo governo despótico quanto à má administração, responsável pelo caos político
e econômico que o país enfrentou no fim de 1983. Foram oito anos que afundaram a Argentina em uma
crise econômica e social grave.
O governo militar perdeu a credibilidade com a derrota da Guerra das Malvinas, porém não
abandou a cena política de forma simples. Passou por uma fase de divergências internas até as eleições
de 1983.
No Brasil
Dois fatos aproximam os governos do Brasil e da Argentina: ambos viviam sob governos de
ditaduras militares, pelo menos em parte da década de 1970 e vivenciaram, na década de 1980, o retorno à democracia. Porém, diferentemente da Argentina, a transição à democracia brasileira (em 31
de março de 1964, o Brasil teve o golpe militar, ficando no poder por mais de 20 anos) foi longa, tendo
passado por várias etapas. De maneira geral, considera-se que ocorreu entre os anos de 1974 e 1985,
período que corresponde ao último governo militar, presídio pelo general João Baptista Figueiredo. O
objetivo desse último governo foi dar “a continuidade e a conclusão do processo de redemocratização,
encerrando o ciclo militar” (VIZENTINI, 2005, p. 62).
As matérias
As matérias jornalísticas relativas ao governo da Junta Militar no ano de 1982 retrataram, em
sua grande maioria, o caos administrativo e a falta de coesão interna do mesmo. A ausência de unidade no grupo militar foi-nos apresentada em várias matérias, algumas até contraditórias entre si. As
publicadas entre o início do mês de agosto até o final do ano de 1982 divulgavam a divergência entre
388
Glauce Stumpf
os membros da Junta Militar em relação ao retorno à democracia. Algumas matérias falavam sobre
a vontade do governo de ficar no poder, já outras, que o exército estaria comprometido em realizar
as eleições em 1984 e deixar a política. A cada dia, uma nova posição era trazida, demonstrando esta
confusão que se introduzira no governo argentino.
Se analisarmos apenas algumas manchetes do início do mês de agosto, verificaremos o conflito existente no interior da Junta, aspecto que o jornal fazia questão de mostrar ao leitor: “Argentina:
Dozo exige partido dos militares” (ZH, “Mundo”3, 04/08/1982, p. 16), “Divergências sérias no comando militar” (ZH, “mundo”, 05/08/1982, p. 19), “Exército e Marinha negam golpe” (ZH, “mundo”,
07/08/1982, p.16), “Dozo fala. E aumenta a tensão na Argentina” (ZH, “Mundo”, 10/08/1982, p.16).
Interessante ressaltar estes quatro títulos que foram publicados em um intervalo de seis dias apenas. A
quantidade de matérias publicadas no periódico foi grande, praticamente diária, neste mês.
Ao analisar duas dessas matérias com mais acuidade, teremos ainda mais evidente o conflito
interno que a Junta vivenciava. Na primeira notícia4, do dia 04 de agosto, fomos informados de que
os militares não haviam desistido por completo de se manterem no poder. Mesmo que, já definida a
transição rápida para a democracia, desejaram formar um partido político e eleger-se, como exposto
na fala de Lami Dozo (Comandante em Chefe da Força Aérea): “‘é conveniente despojar-se de toda
hipocrisia e confessar que queremos e buscamos (os militares) a continuidade do processo para mais
além das próximas eleições’”.
Porém, após esclarecer o título da matéria, o jornal trouxe testemunhos contrários a este desejo.
Ao colocar estas falas, conduz o leitor a concluir que não há espaço para uma vitória nas eleições de
algum tipo de partido composto por militares. A fala de um dirigente centralista pode nos servir de
exemplo:
[...] o dirigente centralista Pablo Gonçalves Borgez, disse que “é quase incrível que a
esta altura dos acontecimentos, e depois de seis anos inqualificáveis de Governo militar, ainda se pretenda que tamanho processo de catástrofe se prolongue no tempo.
Os militares estão empenhados em terminar com a República”, acrescentou. (grifos
nossos).
As palavras de Pablo Gonçalves Borgez foram inseridas no contexto da notícia, expressando
o que parecia ser a voz da população argentina, uma voz ressoante e uníssona, que demonstrava a
consciência democrática argentina ao não aceitar mais o governo dos militares e que caracterizava a
ditadura militar de “seis anos inqualificáveis” de um “processo de catástrofe”.
Já, a manchete do dia 07 de agosto de 1982, sob o título: “Exército e Marinha da Argentina negam golpe”, contradiz a afirmação de Lami Dozo, quando informa que membros das Forças Armadas
desejavam retirar-se do poder: “[...] o general Nicolaides(Comandante em Chefe das Forças Armadas)
qualificou os boatos de um iminente golpe de estado como ‘uma barbaridade’ e afirmou que as Forças
Armadas não mudarão ‘uma posição já estabelecida claramente’ – a de retornar o governo aos civis”
(ZH, “Mundo”, 07/08/1982, p.16). Na ocasião, as falas dos militares foram agressivas contra o pronunciamento de Lami Dozo (publicado na notícia do dia 04/08/1982), de tal maneira que “o porta-voz
da Marinha qualificou de ‘extemporâneas e inconvenientes’ as declarações do brigadeiro (Dozo) [...]”.
Apesar das declarações do general Nicolaides, a possibilidade um golpe militar permaneceu
389
GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO EM QUEDA
sendo explorada nas matérias jornalísticas do ZH como forma de enfatizar o caos interno da Junta,
intensificando, assim, a construção de uma imagem negativa em relação ao governo militar.
Muitas matérias publicadas pelo jornal ZH reproduziam trechos ou informações publicados em
jornais argentinos. Com isso, buscavam demonstrar como o país se percebia diante desses conflitos
das facções da Junta militar.
Em 16 de agosto de 1982, a manchete: “Jornal denuncia ameaça de golpe na Argentina” (ZH,
“Mundo”, p. 16) serve-nos de exemplo. O jornal argentino referido foi o La Prensa, qualificado pelo
periódico como “conservador”. A notícia comentou que o jornal argentino publicara uma matéria sobre a possibilidade de um golpe militar. Expôs a repercussão do assunto no país:
Enquanto isso, os rumores de um golpe mais ou menos palaciano e mais ou menos
eminente não deixaram de circular nos maios políticos e nas redações dos jornais,
como conseqüência de aparentes divergências entre as três forças armadas, depois da
promessa do regime militar de convocar as eleições em 1984.
Finalizando a notícia, foi resumido o contexto vivenciado pelos argentinos no período, representado como bastante negativo. Para isso, fez uso dos termos “conspirações”, “ataque”, “incerteza”,
“ebulição”, “brutal” e “desequilíbrio”, como veremos no excerto abaixo:
Neste clima de conspirações e desmentidos, a cúpula do governo suporta o ataque dos
partidos políticos, a incerteza sobre os resultados das medidas de uma economia impulsionada pelo dirigismo, as pressões do exterior para acelerar a democratização, a
ebulição sindical e os movimentos de protestos pelo brutal desequilíbrio entre preços
e salários (grifos nossos) (ZH, “Mundo”, 16/08/1982, p. 16).
Outro aspecto que pudemos verificar neste trecho foi que a exigência do retorno à democracia
não se limitava ao desejo da população argentina, mas existiam, também, “pressões do exterior” que
impulsionavam o país a estabelecer um regime democrático.
Os EUA estimularam o retorno à democracia nos países latino-americanos. O governo Reagan,
apesar de não reforçar diretamente essa política, também se interessava em por fim ao desgaste de
apoiar governos impopulares e que resistiam à adoção dos preceitos do neo-liberalismo na economia
(VIZENTINI, 2000).
O jornal expôs diferentes visões acerca da Junta Militar nas diversas matérias recolhidas. Entretanto, demonstrou sua posição, ao dar mais destaque a algumas delas. A notícia do dia 24 de agosto de
1982, sob a manchete: “Três inseguras opções que sobram para o futuro” (ZH, “Mundo”, 24/08/1982,
p. 17) serve de exemplo. No parágrafo inicial, percebemos a falta de coesão do governo militar:
Na Argentina “há vários golpes de estado em marcha”, afirmou o ministro da Economia, Jose Dagnino Pastore, enquanto que seu colega do Interior, Llamil Reston, assegurava que o Governo militar é forte e não cairá “com um sopro”, segundo declarações
conhecidas ontem em Buenos Aires.
No trecho acima, cada ministro demonstrou uma posição diferente frente ao Governo militar.
Mas, o jornal, no restante da matéria, aprofundou apenas o discurso que o ministro da Economia
390
Glauce Stumpf
realizou para os dirigentes da União Industrial Argentina (UIA). Para ele, restavam “três opções à Argentina”. A primeira era recorrer a “um novo golpe militar, que se sabe como e onde começa, mas não
se sabe como e onde termina”. A segunda era a eleição a qualquer custo, independente de problemas
econômicos e sociais.
“A terceira opção, que é válida para mim” – acrescentou o ministro, segundo os empresários – “é que todos os setores façam um trabalho de conscientização para que a
saída eleitoral seja alcançada com uma Nação mais ou menos sólida. Para o próximo
Governo deve-se deixar uma República estável, com o funcionamento de todas as
instituições”, acrescentou.
Em meio a tanta instabilidade do governo militar, uma notícia publicada em 04 de setembro
de 1982 informou a existência de uma reconciliação entre as Forças aérea e exército, sob o título:
“Recomposição da junta na Argentina” (ZH, “Mundo”, 04/09/1982, p. 19). Como as três Forças militares que compunham a Junta estavam em constante atrito, essa notícia narrou sucintamente o que,
a princípio, poderíamos tomar como algo positivo. Porém, após comentar o fato, surge outro assunto
que é colocado sob estas palavras: “Enquanto isso, o país continua a atravessar uma das piores crises econômicas de sua história, que provoca tensas reações sociais”. Ao usar a expressão “enquanto
isso” o jornal levava o leitor a pensar que não adiantaria uma relativa melhora no entendimento entre
as forças armadas, pois a crise era crônica, a realidade argentina precisaria de uma efetiva melhora.
Segundo a notícia, a Junta estava resolvendo problemas internos, “enquanto” o país estava imerso em
um contexto de crise econômica e social sem soluções aparentes.
De um modo geral, foi por meio da inserção de falas/discursos de personagens da oposição nas
matérias publicadas que o jornal criticou a postura do presidente e de toda a Junta Militar.
Os personagens da ditadura foram apresentados como vilões, sendo acusados e tratados com
repúdio.
Poderemos compreender melhor quando analisamos as imagens contidas nas matérias jornalísticas. Foram poucas as matérias analisadas com ilustrações, sempre que apareciam eram em preto e
branco e, geralmente, em tamanhos pequenos – em relação ao conteúdo escrito.
391
GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO EM QUEDA
Figura 1 - Galtiéri, feliz com o que fez nas Malvinas. Zero Hora, Porto Alegre, 16/09/1982.
Mundo, p. 16.
Geralmente, eram fotos de rostos de militares, com feições sérias, até mesmo uma em que
aparece o ex-presidente Galtiéri sorridente (figura 1), o seu semblante é sombrio. Todos os militares
que apareceram nas fotografias estão uniformizados e em posição ereta, sempre denotando extrema
seriedade.
Figura 2 – Argentina: Dozo exige partido dos militares. Zero Hora, Porto Alegre, 04/08/1982.
Mundo, p. 16.
392
Glauce Stumpf
A figura número 2 mostra o busto de Lami Dozo, Comandante em Chefe da Força Aérea. Seus
olhos são pretos, a foto ficou muito escura, deixando seus traços confusos. A fotografia do jornal na
década de 1980 ainda não possuía os requintes conhecidos hoje, mas era possível fazer fotos com uma
qualidade superior a que utilizaram para ilustrar essa matéria. As figuras 3 e 4 já possuem uma melhor
qualidade, mas ainda focam apenas na parte superior do militar.
Figura 3 – Volta À democracia é uma conquista dos militares? Zero Hora, Porto Alegre, 11/08/1982.
Mundo, p. 16.
Figura 4 - Bignone anuncia normas para organização dos partidos. Zero Hora, Porto Alegre, 27/08/1982.
Mundo, p. 16.
393
GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO EM QUEDA
Na figura 5, onde dois homens conversam, sendo que um deles era Martinez de Hoz (Ministro
da Economia de 1976 até 1981), o padrão segue o mesmo. A foto captou a imagem da cintura para
cima de ambos, com semblantes preocupados.
Figura 5 - MARTINEZ, Oscar. Um confronto que traz escândalos à rua todos os dias. Zero Hora,
Porto Alegre, 03/10/1982. Mundo, p. 24.
Podemos inferir que as imagens reforçaram a imagem negativa construída pelo jornal em relação à Junta Militar argentina.
Conclusão
Durante o ano de 1982, após a Guerra das Malvinas, a Junta Militar argentina não conseguiu
manter-se estabelecida no poder, sendo assim ocorreu a passagem para a devolução do poder para o
povo, ou seja, o retorno à democracia na Argentina. No Brasil, o mesmo ocorria, porém, de maneira
muito mais gradual, ou seja, no mesmo ano o Brasil “vendia” a imagem de país democrático, pois já
havia a abertura democrática no país.
Sendo assim, a imprensa fazia a sua parte de voz do país, e o jornal Zero Hora cumpria sua
tarefa. Tudo o que remetia a ditadura militar era associado a algo negativo e, por mais que mostrassem
notícias amenas ou até com possibilidades de melhora, havia alguma referência às brutalidades e à
violência da mesma. A ditadura não era mais tolerável.
O jornal ZH se posicionou, às vezes de forma bem explícita, contrário ao governo militar e a
favor do retorno à democracia. Vemos, portanto, que a questão militar foi construída de forma negativa, trabalhando-a como a antítese da democracia. Um regime que não deveria mais perdurar e foi
enfatizado a sua construção por meio de matérias que priorizaram os fatos polêmicos, como as facções
existentes na Junta durante o governo militar, ressaltando a realidade conturbada que a Argentina vivenciava nesses anos.
394
Glauce Stumpf
REFERÊNCIAS
Fontes primárias
Argentina: Dozo exige partido dos militares. Zero Hora, Porto Alegre, 04/08/1982. Mundo, p. 16.
Bignone anuncia normas para organização dos partidos. Zero Hora, Porto Alegre, 27/08/1982. Mundo, p. 16.
Divergências sérias no comando militar. Zero Hora, Porto Alegre, 05/08/1982. Mundo, p. 19.
Dozo fala. E aumenta a tensão na Argentina. Zero Hora, Porto Alegre, 10/08/1982. Mundo, p. 16.
Exército e Marinha da Argentina negam golpe. Zero Hora, Porto Alegre, 07/08/1982. Mundo, p. 16.
Galtiéri, feliz com o que fez nas Malvinas. Zero Hora, Porto Alegre, 16/09/1982. Mundo, p. 16.
Jornal denuncia ameaça de golpe na Argentina. Zero Hora, Porto Alegre, 16/08/1982. Mundo, p. 16.
MARTINEZ, Oscar. Um confronto que traz escândalos à rua todos os dias. Zero Hora, Porto Alegre,
03/10/1982. Mundo, p. 24.
Recomposição da junta na Argentina. Zero Hora, Porto Alegre, 04/09/1982. Mundo, p. 19.
Três inseguras opções que sobram para o futuro. Zero Hora, Porto Alegre, 24/08/1982. Mundo, p. 17.
Volta À democracia é uma conquista dos militares? Zero Hora, Porto Alegre, 11/08/1982. Mundo, p.
16.
Bibliografia
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BELTRÃO, Luiz. Jornalismo Opinativo. Porto Alegre: Editora Sulina. 1980
BERGER, Christa. Campos em confronto: a terra e o texto. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.
BIAGI, Orivaldo Leme. O imaginário e as Guerras da Imprensa. Estudo das coberturas realizadas pela
imprensa brasileira da Guerra da Coréia (1950-1953) e da Guerra do Vietnã na sua chamada fase americana. Campinas, 2001. Disponível em: HTTP://www1.capes.gov.br/teses/pt/1996_mest_unicamp_
Orivaldo_Leme_Biagi.pdf Acesso em: 20 de set. 2009.
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando J. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (18502002). São Paulo: Ed. 34, 2004.
MELO, José Marques de. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
ROMERO, Luis Alberto. História contemporânea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2006.
VIZENTINI, Paulo Fagundes. História do século XX. 2ª Ed. Porto Alegre: Novo Século, 2000.
VIZENTINI, Paulo Fagundes. Relações internacionais do Brasil: De Vargas a Lula. 2 Ed. Sãos Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2005.
395
GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO EM QUEDA
(Endnotes)
1
Como requisito básico para o término da graduação em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos –
realizei um trabalho de conclusão que analisava as representações sobre a redemocratização argentina e a consolidação do
primeiro governo democraticamente eleito no jornal Zero Hora, abrangendo cinco anos do periódico. Intitulado “Representações sobre a redemocratização argentina e o governo de Alfonsín no jornal Zero Hora (1982-1989)” apresentado em
novembro de 2009, orientado pela professora Heloísa Joichms Reichel.
O jornal teve origem no jornal Última Hora, fechado pela censura em 1964. Em 4 de maio de 1964,
os novos administradores modificaram a linha editorial e o nome do periódico para Zero Hora. Sua
trajetória é marcada por um alinhamento com a política no poder, principalmente pelo fato de que
a sua criação coincidiu com a instalação da ditadura militar no Brasil, que intensificou a repressão à
imprensa.
2
As matérias jornalísticas do caderno mundo, de 1982 a 1984, não especificavam individualmente, por
matéria, qual agência a havia fornecido. Tanto que, bem acima do caderno, juntamente com o nome
“Mundo”, estava escrito: “Serviços das agencias UPI, AP e AFP, radiofotos UPI”. Posteriormente, a partir do final de 1984, é que o jornal especificou a fonte de cada matéria, colocando, no fim de cada uma,
a agência, ou em raras ocasiões o jornalista/correspondente, que havia escrito a matéria. As matérias
eram compradas das agências internacionais: UPI – United Press Internacional, agência norteamericana; AP – Associed Press, norteamericna e AFP – Agence France Presse, francesa.
3
Definimos notícia de acordo com o conceito de Melo (1985). Para o autor, notícia é o “relato integral
de um fato que já eclodiu no organismo social” (p. 49). Faz parte do jornalismo informativo, descrevendo o fato sucintamente.
4
* Graduada em História Licenciatura pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos – cursando especialização em História do Rio Grande do Sul pela mesma universidade. Trabalha atualmente
como professora de séries iniciais na E.M.E.B. Alberto Santos Dumont.
396
O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA
DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA ARTÍSTICO-CULTURAL
Ana Ligia Trindade *
Patricia Kayser Vargas Mangan **
Nádia Maria Weber Santos ***
INTRODUÇÃO
Preservar é um dos conceitos relacionados à memória, e remete à idéia de proteção, cuidado,
respeito. Preservar não é apenas guardar algo, mas também fazer levantamentos, cadastramentos,
inventários, registros, etc. A preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural é necessária,
pois esse patrimônio é o testemunho vivo da herança cultural de gerações passadas que exerce papel
fundamental no momento presente e se projeta para o futuro, transmitindo às gerações por vir as referências de um tempo e de um espaço singulares, que jamais serão revividos, mas revisitados, criando
a consciência da inter comunicabilidade da história. Compreendendo a memória social, artística e
cultural é que se pode perceber e controlar o processo de evolução a que está inevitavelmente exposto
o saber e o saber fazer de um povo.
Quando se preserva legalmente e na prática o patrimônio cultural, conserva-se a memória do
que fomos e do que somos: a identidade da nação. Patrimônio, etimologicamente, significa “herança
paterna”- na verdade, a riqueza comum que nós herdamos como cidadãos, e que se vai transmitindo
de geração a geração (FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE PERNAMBUCO, 2011).
As artes cênicas, como patrimônio intangível, a imaterialidade é relativa, pois para existir
uma prática, esta se materializa de diversas formas. O que permite também realizar formas diversas
de registro material (documental, sonoro, visual, audiovisual, narrativo). E pelo aspecto transitório e
mutante, pode-se registrar, ao longo dos tempos, rupturas e permanências (FONSECA, 2003).
Meneses aborda também o papel da tecnologia na informatização da vida e multiplicação dos
registros eletrônicos diante dos quais se transformam as relações mnemônicas para “um progressivo
processo de externalização da memória” (MENESES, 1999, p. 15). Sugere a inserção de novas possibilidades e campos de investigação, aproveitando o acesso às novas tecnologias ao favorecer pesquisas relacionadas a práticas sociais de memória: “quando se muda a ênfase da forma ou conteúdo físico
para a ‘operação’.” (MENESES, 1999, p. 23). Pelas ferramentas diversas de registro, como indica o
autor, pode-se abrir assim espaço para pesquisas do corpo, da performance ou da narrativa oral.
Vale neste momento lembrar a característica forte e importante das artes cênicas: a tradição
oral.
O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA ARTÍSTICO-CULTURAL
Arte e Memória
Na comunidade que trabalha com arte contemporânea, é quase unânime a idéia de que a arte
trata, antes de qualquer outra coisa, de si mesma. Raramente pensamos nas conseqüências disso para
o conceito e a prática de uma herança cultural. Se a arte trata da arte, a obra de arte fala, ao mesmo
tempo, de toda a história cultural, de toda a sua genealogia, e também, da maneira como se insere nesta
história cultural. Isso pode parecer simples se pensamos em termos de um quadro, uma edificação,
um livro, uma sinfonia, um filme. Torna-se problema quando chegamos a um espetáculo cênico, uma
execução musical, uma recitação, uma performance coreográfica (AVELLAR, 2007).
Qual seria a diferença na relação entre essas duas categorias de obras e a herança cultural?
Segundo Avellar (2007), em relação à primeira, fica evidente que as próprias obras iluminam qualquer registro sobre elas. A construção teórica sobre um determinado quadro e seu pintor, o estudo de
um movimento cinematográfico, ou a história da dramaturgia ocidental, giram em torno de objetos
concretos e contemporâneos: o próprio quadro, a cópia do filme, o conjunto de peças de teatro. Em
relação à segunda categoria, conforme Avellar, como temos obras que desaparecem no próprio ato
de sua criação, podemos contar apenas com seu registro em outro meio, e com a memória dos que as
presenciaram.
Desta forma a dança como arte cênica é efêmera, isto é, no momento em que ela se realiza ela
também se desfaz, só ficando presente na memória de quem teve a oportunidade de presenciá-la, portanto sua preservação depende da memória oral.
A História Oral, por sua vez, caracteriza-se como metodologia interdisciplinar de pesquisa
basicamente apoiada na Memória (TARGINO, 2008). E a Memória “é sempre uma reconstrução,
evocando um passado visto pela perspectiva do presente e marcado pelo social, presente a questão
da memória individual e da memória coletiva” (HALBWACHS, 1990), justamente porque, “a testemunha reconstrói o passado à sua maneira e em função do presente ao relatar a sua percepção do que
vivenciou no passado” (THOMPSON, 1992). Esse processo possibilita resgatar repensar e reconstruir
o passado sob um olhar atualizado, cuja peculiaridade “decorre de toda uma postura com relação à
história e às configurações sócio-culturais, que privilegia a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu” (ALBERTI, 2004, p. 23).
Vale salientar, também, que a história oral não se limita à possibilidade de apenas comparar
ou desmentir idéias e acontecimentos estabelecidos. Trata-se, sobretudo, do registro de como uma
pessoa analisa sua experiência, o que seleciona e como ordena as ênfases, as pausas (silêncios) e os
esquecimentos, informações que poderão transformar-se em elementos de análise (TARGINO, 2008).
Memória Social no Ciberespaço
O conceito de memória social, segundo Gondar (2005):
(...) não pode ser formulado em moldes clássicos, sob uma forma simples, imóvel,
unívoca. Pensamos, ao contrário, que se trata de um conceito complexo, inacabado,
em permanente processo de construção.
398
Ana Ligia Trindade, Patricia Kayser Vargas Mangan, Nádia Maria Weber Santos
Nesse sentido, cabe a delimitação por “quadros sociais da memória”, noção formulada pelo
sociólogo francês Maurice Halbwachs, que pensava a memória como um fenômeno construído coletivamente e sujeito a transformações constantes. Para Halbwachs (1990), um pioneiro na análise dos
aspectos sociais da memória,
(...) a memória coletiva é aquela que envolve as memórias individuais, mas não se
confunde com elas, permanece apoiada em uma história vivida por indivíduos no
grupo ou nos grupos sociais a que pertence.
As memórias individuais ao penetrarem nas memórias coletivas, sofrem mudanças, porque são
recolocadas em um conjunto mais amplo. Dessa forma, a memória coletiva, para sobreviver, deveria
ser reconstruída em um fundamento comum e concordando permanentemente com a memória dos
demais indivíduos, com apoio nos pontos de contato entre uma e as outras. O afastamento ou a discordância entre esses pontos comuns originam, por sua vez, o esquecimento. Em resumo, significa dizer
que a memória coletiva é uma corrente do pensamento contínuo que reteria do passado somente aquilo
que permanecesse vivo na consciência do grupo (TARGINO, 2008). Le Goff (1996, p. 426), por sua
vez, ao considerar que a memória coletiva é constituída por lembranças e esquecimentos, admite estar
a mesma, a mercê de manipulações exercidas por diferentes classes e grupos, sempre em disputas pela
dominação do que deve ser lembrado e esquecido. Então, passa a Memória a revestir-se como objeto
e instrumento de poder a ser conquistado e, portanto objeto e instrumento também de disputas, entre
os diferentes grupos ou classes. Nesse sentido, Pollak (1989) afirma que o processo de construção da
memória coletiva seria uma forma de manutenção da coesão de grupos e instituições e, também que
isto só vem a reforçar sentimentos de pertença e fronteiras sociais entre distintos grupos, dentro da
sociedade, reforçando por sua vez, a presença de memórias transmitidas de maneira informal.
(...) a memória gira em torno de um dado básico do fenômeno humano, a mudança.
Se não houver memória, a mudança será sempre fator de alienação e desagregação,
pois inexistiria uma plataforma de referência e cada ato seria uma reação mecânica,
uma resposta nova e solitária a cada momento, um mergulho do passado esvaziado
para o vazio do futuro. É a memória que funciona como instrumento (...) de identidade, conservação e desenvolvimento que torna legível os acontecimentos. (MENESES,
1984, p. 34)
A questão da memória social vem emergindo como muito importante na cibercultura, com a
multiplicação de projetos sobre memórias locais, museus virtuais e mídias locativas. Hoje, através de
buscas na web, pode-se encontrar um grande número de sites que mostram as mais diversas formas
com que a história e a memória social se partilham. Nesses ambientes digitais memoriais estão se organizando. E neles a sociedade se coloca diante de um novo modelo, o das possibilidades de também
ajudar na criação de informações de memória. Esse processo mostra a possibilidade do compartilhamento de dados histórico-pessoais e histórico-coletivos que valorizam a memória social, aquela que
muda em cada período o espírito do tempo que a molda (OLIVEIRA, 2009).
A proposição de um estudo envolvendo o conceito de cibercultura, obrigatoriamente deve passar por uma reflexão inicial sobre o que é a cultura. Assim, não há uma única definição correta para
definir o termo já que “a compreensão exata do conceito de cultura significa a compreensão da própria
natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana” (LARAIA, 1986, p. 63). Cabe também ressaltar ainda o seguinte trecho transcrito de Laraia (1986, p.60), que trata da adaptabilidade da
cultura:
399
O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA ARTÍSTICO-CULTURAL
A tecnologia, a economia de subsistência e os elementos da organização social diretamente ligada à produção constituem o domínio mais adaptativo da cultura. É neste
domínio que usualmente começam as mudanças adaptativas que depois se ramificam.
Neste contexto, cabe ressaltar que “as tecnologias são produtos da ação humana, historicamente construídos, expressando relações sociais das quais dependem, mas que também são influenciadas
por eles.” (OLIVEIRA, 2001, p. 101) O termo cibercultura é relativamente novo, o conceito remonta
à introdução e popularização de tecnologias computacionais de informação e comunicação, em particular da Internet e da Web que dão origem ao chamado ciberespaço.
Um aspecto importante da cibercultura é que as interações no ciberespaço vêm evoluindo e
convergindo para ferramentas que permitem organizar redes sociais na internet. As redes sociais se
organizam no espaço virtual, fazendo das características de des-terroritorialização (LEMOS, 2008) e
des-temporalização da informação cibernética (WEISSBERG, 2004) causa e consequência do processo de padronização e esvaziamento conceitual do saber na cibercultura. Não há uma cultura “geral e
original”, mas diversidades e biodiversidades culturais, reais e atuais.
Dos historiadores que buscaram ferramentas numa informática puramente binária, à ascensão
de uma cibercultura que, além de democratizar a informação sobre a própria história, possibilita aos
cidadãos tecerem redes que alimentam a construção de plataformas virtuais que “guardam” e compartilham memórias sociais. Quando falamos em tecnologia, devemos pensar no ciberespaço como
um caminho fundamental para isso hoje, desde que possa ser democratizado o seu uso. Os meios se
somam. A preservação de sons, imagens e textos permite que essa relação seja mais rica, mais compartilhada. Desde que quem produz a informação possa se reconhecer no que está lá, de alguma maneira.
Isso permite a criação de vínculos. As tecnologias permitem que a sociedade consiga se perceber ao
ver sua história retratada. Quanto mais as pessoas tiverem suas experiências partilhadas, mais se garante a preservação da memória histórica (OLIVEIRA, 2009).
A passagem acelerada do patrimônio cultural para o território do ciberespaço, com a criação
dos museus virtuais, das bibliotecas digitais e dos documentos eletrônicos (de arquivo) implicou a
mudança das mídias tradicionais para mídias digitais, o que resultou numa convergência que passa a
ser a do objeto informacional (DODEBEI, 2011).
As Tecnologias e as Intervenções Urbanas
Segundo Lemos (2004), a cada época da história da humanidade corresponde uma cultura técnica particular, e pode-se perceber que a forma técnica da cultura contemporânea é produto de uma sinergia entre o tecnológico e o social. A percepção das mudanças tanto globais quanto locais são muito
importantes e passam pela compreensão do conceito de cibercultura (LÉVY, 2000) (LEMOS, 2004)
(RÜDIGER, 2007). O termo cibercultura é relativamente novo, o conceito remonta à introdução e
popularização de tecnologias computacionais de informação e comunicação, em particular da Internet
e da Web que dão origem ao chamado ciberespaço. Lévy (2000, p.123) sustenta a tese que “a emergência do ciberespaço é fruto de um verdadeiro movimento social, com seu grupo líder (a juventude
metropolitana escolarizada), suas palavras de ordem (interconexão, criação de comunidades virtuais,
inteligência coletiva) e suas aspirações coerentes.”
400
Ana Ligia Trindade, Patricia Kayser Vargas Mangan, Nádia Maria Weber Santos
Um aspecto importante da cibercultura é que as interações no ciberespaço vêm evoluindo e
convergindo para ferramentas que permitem organizar redes sociais na internet. As redes sociais se
organizam no espaço virtual, fazendo das características de des-territorialização (LEMOS, 2008) e
des-temporalização da informação cibernética (WEISSBERG, 2004) causa e consequência do processo de padronização e esvaziamento conceitual do saber na cibercultura. Não há uma cultura “geral e
original”, mas diversidades e biodiversidades culturais, reais e atuais.
Dois fenômenos observados na sociedade contemporânea, no contexto de cibercultura e que
estão inter-relacionados, são a popularização das Redes Sociais na Internet e os fenômenos de mobilização urbanos instantâneos denominados flashmobs. Como objetos de estudo mostram-se fontes ricas
em informações e com potenciais de transformação social.
Assistimos assim, na era da cibercultura, o experimento de novas formas de interação que,
particularmente no episódio das flashmobs, se apropriam de iniciativas artísticas com a finalidade de
ocupar um espaço físico urbano.
As tecnologias móveis, também chamadas nômades, estão cada vez mais presentes no cotidiano do homem contemporâneo, e, ao passo de sua popularização, pensar as implicações dessa mobilidade torna-se necessário.
Lemos (2004) acredita que novas práticas do espaço urbano surgem na interface entre mobilidade, espaço físico e ciberespaço. Para Souza, Torres e Jambeiro (2005), uma das características do
espaço urbano contemporâneo é a velocidade de circulação. O aumento dessa velocidade transformou
os espaços urbanos - antes locais de interações sociais - em lugares de processos, ou não-lugares
(AUGÉ, 1994), onde as interações sociais cedem espaço ao fluxo contínuo de pessoas.
Atualmente, as tecnologias nômades de comunicação trazem as relações sociais para os espaços
físicos. Os encontros não precisam mais acontecer em hora e locais pré determinados, eles ocorrem
nos lugares de fluxo, nos espaços de deslocamento e o celular serve como um localizador, conectando
as pessoas virtual e fisicamente. Ocorre a reinvenção dos espaços urbanos como ambientes multiusuários e, as cidades, que já haviam se transformado em lugares de processos, agora se apresentam como
espaços híbridos. (SILVA, 2004, p.165)
Uma das conseqüências sócio-culturais da emergência da cultura móvel é a atual transição do
espaço virtual para o espaço híbrido. Silva (2004) define espaço híbrido como sendo a mistura ou desaparecimento das bordas entre espaços físicos e virtuais. Essa mistura acontece através de interações
feitas por meio de mídias móveis nos espaços físicos, sendo, portanto, a influência da virtualidade no
mundo físico e a fisicalidade influenciando o mundo virtual. Segundo Silva (2004), os espaços híbridos são nômades, gerados pela mobilidade contínua dos sujeitos, usuários de tecnologias móveis de
comunicação, conectados à Internet e a outros usuários.
Pampanelli (2004) afirma que o nomadismo telemático se originou através da massificação do
uso do telefone celular e de movimentos sociais como os Flash Mobs e Smart Mobs - mobilizações
relâmpagos cuja principal característica é a reunião de pessoas em espaços físicos determinados em
prol de causas semelhantes. Para Pampanelli, os primeiros são destinados ao entretenimento, já os
segundos, são de cunho político-social.
401
O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA ARTÍSTICO-CULTURAL
Entretanto vamos encontrar autores que discordam de Pampanelli, afirmando que os Flashmobs são efetivamente uma ferramenta de intervenção urbana pública que também são utilizados
para promoção de ações culturais, responsabilidade social, mobilização pública, de conscientização
política e social a cerca de temas de preservação ambiental, ações contra racismo, inclusão social,
preservação cultural e/ou patrimonial e de aproximação das artes do grande público, democratização
do acesso de diferentes camadas da população à produção artística.
Flashmob: ferramenta de intervenção urbana
Uma das ferramentas da intervenção urbana é a chamada flashmob que na tradução literal para
o português significa “multidão espontânea”. “Flashmob” é a abreviação de “flash mobilization”, que
significa mobilização rápida, relâmpago. Trata-se de uma aglomeração instantânea de pessoas em um
local público para realizar uma ação previamente organizada. Para efeitos de impacto, a dispersão
geralmente é feita com a mesma instantaneidade (MOLON et. al., 2010).
O uso do termo flashmob data de aproximadamente 1800, porém não da maneira como o conhecemos hoje. O termo foi usado para descrever um grupo de prisioneiras da Tasmânia baseado no
termo flash language para o jargão que estas prisioneiras utilizavam.
A revolta de 300 delas (por volta de 1844) culminou numa rebelião na qual, de repente, viraram de costas para o reverendo local, governador e primeira dama, levantaram as roupas, mostrando
as partes íntimas simultaneamente, fazendo um barulho muito alto com as mãos. Ainda nesta época
o termo australiano flashmob foi usado para designar um segmento da sociedade, e não um evento,
não demonstrando nenhuma outra similaridade com o termo moderno ou os eventos descritos por ele.
Hoje os flashmobs são ações pontuais, efêmeras e informais. Estas ações mesclam dois espaços
distintos entre si, o espaço virtual e o espaço urbano. Todo flashmob inicia por um processo de comunicação em massa, onde um líder convida os interessados a se juntarem sempre em grupo, em um
determinado local do espaço urbano e em prol de um só objetivo. Caracteriza-se por uma performance
em grupo, com movimentos pré-coreografados, e depois do tempo previamente estabelecido, todos se
dissipam ao sinal do líder. Todas as ações seguem um plano, ou melhor, um roteiro com etapas a serem
concretizadas por todos (RIOFM, 2008).
O primeiro flashmob (com seu conceito atual) que se tem notícia aconteceu em 2003, cerca de
100 pessoas entraram repentinamente em uma loja em Manhattan e ficaram em volta de um tapete
específico. Outra manifestação dessas aconteceu na Central Station, importante estação ferroviária de
NY. Uma multidão se aglomerou, aplaudiram por 15 segundos e repentinamente sumiram tão rapidamente quanto entraram.
Os flashmobs têm a característica (pelo menos numa fase história inicial) de ter um tempo de
duração curto. Os eventos costumam durar o suficiente para que haja ali no espaço urbano uma mudança, uma quebra, a interrupção da rotina. A necessidade do encontro presencial faz com que uma
multidão se reúne e realize apenas algumas ações “aparentemente” banais, lúdicas, instantâneas e
muitas vezes até engraçadas durante aqueles poucos minutos e, na sequência, se dispersa no espaço da
402
Ana Ligia Trindade, Patricia Kayser Vargas Mangan, Nádia Maria Weber Santos
cidade, mais ou menos como se nada tivesse acontecido, e “aparentemente” sem um objetivo direto
(SOUZA, 2010). São performances que não estão atreladas às cerimônias comuns do dia-a-dia, mas
sim a “eventos inesperados que nos obrigam a uma mudança de comportamento e de reavaliação de
padrões prévios com vistas a enfrentar circunstâncias imprevistas e insólitas” (GLUSBERG, 2005
apud SOUZA, 2010. Por ter como característica forte o efêmero, o informal e a rapidez na execução,
muitas vezes o objetivo original da ação fica disperso. Comemorações de datas específicas, inauguração de espaços culturais, conscientização político-social de temas de proteção ambiental, patrimonial,
ou de animais, ações contra racismos, reivindicações, protestos, divulgação e democratização da arte
e, até mesmo, de marketing e comércio, podem ser objetivos destas ações de intervenção urbana.
Rheingold, um dos primeiros a defender que o mundo virtual teria impacto imediato no mundo
real, considerado a fonte inspiradora dessas iniciativas, nos diz que:
Flashmobs são meios de entretenimento organizados por si mesmo. Como milhões
de pessoas que jogam games on-line, flash-mobbers estão criando ativamente sua própria diversão de maneira criativa ao invés de apenas comprar uma ficha, ficar na fila,
e passivamente experimentar o “entretenimento enlatado” que lhes é vendido. Mais
importante: eles estão aprendendo como usar a Internet e a comunicação móvel para
organizar ações coletivas (RHEINGOLD, 2003).
Sudbrack e Borges (2008) comentam que o método de intervenção nas redes sociais permite a
construção de estratégias importantes para tratar do impacto que o flashmob causa nos diversos atores sociais que dele participam e dos que nele o observam. Para os referidos autores, nessas redes é
possível inventar suas formas e rituais próprios de encontro, estabelecendo uma identidade comum,
na medida em que os encontros virtuais se tornam frequentes e rotineiros, construindo-se, com isso,
vínculos criadores de um sistema de crenças e de regras capaz de despertar para as iniciativas individuais e novas formas de organização. Neste ponto, as trocas de experiências, conhecimentos e ações
conjuntas e/ou coletivas e integradas na busca de soluções enriquecem a memória de uma rede social
através da divulgação do flashmob. Os flashmobs assumem o papel de criar novos tipos de interação e
ocupação dos espaços urbanos, através do uso de mídias tecnológicas que permitem novas formas de
comunicação e informação. Em comum, todos esses exemplos incluem um grupo de pessoas reunidas
em um local público, que são previamente informadas sobre a ação nas redes sociais na Internet.
Segundo Pampanelli (2004) esses eventos servem como um interessante exemplo para a avaliação dos impactos sócio-culturais e das utilizações sociais das tecnologias móveis.
O caráter portátil do novo meio e seu uso social fez com que o homem inventasse diferentes formas de interação de se “estar junto” na contemporaneidade. O surgimento
de fenômenos como o Flashmob vem demonstrar o impacto que uma determinada
tecnologia pode causar na sociedade. Certamente, o telefone celular foi decisivo para
a constituição desta nova conjuntura em que explodem ativismos políticos e Flashmobs. Estes episódios que eclodem no mundo físico demonstram que a materialidade
do telefone móvel altera nosso comportamento social, cria novos sentidos e novas
formas de nos organizarmos na sociedade. (PAMPANELLI, 2004, p. 8-9)
A necessidade de uma diferente compreensão do espaço (que a “tradicional”) também se torna evidente quando nos vinculamos às reflexões de Massey (1984) sobre os lugares em termos de
redes, movimentos e interação. Castells (1998) descreve o espaço neste contexto como sendo, cada
vez mais, expresso através de “fluxos”, ao invés de “lugar” físico. Um fenômeno importante pode ser
403
O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA ARTÍSTICO-CULTURAL
identificado aqui, como Pachenkov e Voronkova enunciam em sua observação sobre a estetização e a
mobilidade no contexto do espaço público urbano:
Provavelmente, os encontros de numerosos cidadãos para discussão de interesses
públicos nas praças da cidade especialmente projetadas para este fim estão ultrapassados? Provavelmente flashmob ou performances momentâneas poderiam ser consideradas formas espaciais mais convenientes dos encontros públicos nas cidades contemporâneas? Apenas porque podem ocorrer em qualquer local da cidade, porque
são mais móveis e flexíveis - isso não os faz menos públicos (PACHENKOV; VORONKOVA, 2010, p.2).
Práticas contemporâneas de agregação social estão usando as tecnologias móveis para ações
que reúnem muitas pessoas, as vezes multidões, que realizam um ato em conjunto e rapidamente se
dispersam. Essas práticas podem ter finalidades artísticas, como uma performance, ou ter um objetivo
mais engajado, de cunho político-ativista. Esse conjunto de práticas trata-se simplesmente do uso de
tecnologias móveis para formar multidões ou massas com objetivo de ação no espaço público das
cidades (CARMO, 2007).
Arte e Tecnologia: o fenômeno flashmob dance
Diante das transformações que a cultura móvel vem trazendo para a sociedade, cabe ressaltar
que essas mudanças influenciam nas manifestações culturais, tanto de entretenimento quanto artísticas. Essa influência transforma a maneira de criar, de receber e de interagir com produtos artísticos
contemporâneos, especialmente desenvolvidos sob um ponto de vista estético baseado na personificação e no movimento dos sujeitos. Ao mesmo tempo em que é instaurada a cultura da mobilidade, o
homem concebe uma nova maneira de fazer e entender sua cultura através dos jogos e da arte (CARMO, 2007).
A profusão de mídias e a sua onipresença na vida social e individual dos sujeitos não deixam
escapar de suas influências nenhum campo de produção de linguagem, menos ainda a arte, pois,
segundo Barros e Santaella (2002), os artistas são sempre os primeiros a se apropriarem dos meios
técnicos, colocando-os a serviço de sua criatividade e explorando novas formas de sensibilidade e
percepção.
O fenômeno aplicado á arte da dança - flashmob dance - é a aglomeração de pessoas que se
encontram em local público para realizar uma coreografia previamente combinada em redes sociais.
Para as artes cênicas, eventos semelhantes não são novidades. Sempre foi comum encontrarmos uma
performance cênica qualquer em meio à um passeio no parque, ruas, centros urbanos, etc. A mescla
entre as artes e a internet, através de redes sociais, é que certamente é a novidade. E a dança se apropriou do contexto dos flashmobs para as ações denominadas flashmob dance.
Memória Virtual das Intervenções Urbanas de Arte
As ações intervencionistas são voláteis, rápidas, não duradouras e efêmeras. Isto torna difícil
coletar informações e material das ruas onde acontecem estas intervenções. Por outro lado, na internet,
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Ana Ligia Trindade, Patricia Kayser Vargas Mangan, Nádia Maria Weber Santos
neste espaço virtual, os grupos intervencionistas encontram um local propício para guardar as imagens
e idéias ocorridas em suas ações no espaço urbano, é uma fuga da efemeridade. Ali, eles alcançam um
público maior e ganham, muitas vezes, até adeptos em outras cidades (MAZETTI, 2006).
Em relação à memória digital virtual, podemos trabalhar um aspecto bastante contemporâneo
da discussão sobre memória. As tecnologias digitais têm transformado a maneira de lembrar. Essa
nova maneira não substitui a forma convencional e natural de relembrar o passado, apenas acrescenta
a essa “memória natural” as ferramentas tecnológicas, que se pode considerar como “memória artificial” (BERWANGER, 2010), as quais contribuem para a ampliação da capacidade de lembrança.
Quanto à utilização dessas ferramentas tecnológicas, pode acontecer tanto no âmbito individual como
no âmbito coletivo. Essas memórias auxiliares (DODEBEI; GOUVEIA, 2008) funcionariam como
compensação a essa dinâmica da memória individual que não pode abrir mão do esquecimento. De
uma memória apenas individual, passamos a nos valer de uma memória coletiva enriquecida com
pontos de vista diversos sobre um mesmo fato social (LISBOA, 2011).
Ribeiro (2004) menciona que “a presença das novas tecnologias da informação não implica
num mundo inteiramente novo”. O que se tem agora é a possibilidade de aproximar a sociedade em
tempo real, e de conseguir visitar o passado através das informações condensadas no universo cibernético, com o mais fácil acesso já visto.
Com o advento da Internet e da Web, as memórias documentárias passaram a estar disponíveis
em ambiente virtual, compartilhando e socializando o conhecimento na rede mundial de computadores, denominado pelo filósofo francês Pierre Lévy como ciberespaço. Lévy (2000) considera que o
ciberespaço é o “principal canal de comunicação e suporte da memória da humanidade” quando todas
as informações estivessem digitalizadas e acessíveis através das redes de comunicação. A Internet está
transformando a vida social dos indivíduos, pois cada pessoa pode se tornar produtor e emissor de
informações novas, podendo reorganizá-las de acordo com seu interesse e vontade. E a “informação
certamente se encontra fisicamente situada em algum lugar, em determinado suporte, mas ela também
está virtualmente presente em cada ponto da rede onde seja pedida”. (LÉVY, 2000, p. 48).
Essas informações se renovam virtualmente, incluindo as pessoas que integram esse mundo
virtual. Assim, o ciberespaço representa uma nova forma de comunicação e de preservação da memória, multiplicador de informações na atual sociedade tecnológica (BLANK, 2011).
O mundo virtual, com o uso de novos dispositivos de informática, permite criar novas formas
de disseminação e preservação do conhecimento já consolidado. Dessa forma, não é um mundo distinto e desconectado da realidade atual. Para Pimenta (2001), quando uma informação é difundida virtualmente, ela se “desterritorializa”, pois o “hipertexto exige um suporte físico, mas não possui de fato
um lugar.” Essa informação encontra-se disponível para acesso coletivo ou individual da sociedade no
mundo virtual, em qualquer parte do território mundial.
O mesmo entendimento é apresentado pelos autores Monteiro, Carelli e Pickler (2008, p. 120),
para os quais o ciberespaço “é uma nova forma e/ou função de representação, organização do conhecimento e memória.” Como “espaço de produção [...] ele permite que todos possam ser autores/produtores, em razão da plasticidade virtual, que desterritorializa os signos, o tempo todo e ao mesmo tempo.”
405
O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA ARTÍSTICO-CULTURAL
Assim, as práticas de intervenção urbana de arte que são, por natureza, efêmeras, encontram na
internet um local propício para guardar as imagens e idéias ocorridas em suas ações no espaço urbano,
fugindo da efemeridade, divulgando a um público mais amplo e construindo sua memória virtual.
A diversidade das manifestações de grupos de intervenção urbana no espaço virtual demonstra
a amplitude de interesses e objetivos destes grupos engajados nestas ações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Já consideradas ferramenta de intervenção urbana, as flashmobs criam tipos inéditos de interação e ocupação dos espaços urbanos, através do auxílio de mídias digitais e tecnológicas que permitem
novas formas de comunicação e informação. O flashmob é um movimento que se cria no ciberespaço,
se materializa em um contato pessoal e ao se dissipar acaba retornando ao ciberespaço principalmente
a partir de registros em blogs, twitters e vídeos. Em outras palavras, um flashmob surge pela organização virtual na forma de interação em rede social na Internet e se perpetua também no virtual, mas só
tem sua razão de ser pela sua ação/intervenção no plano físico/presencial. Constituído habitualmente
deste formato de organização virtual, performance presencial e registro virtual, as ações de flashmob
tem caminhado rapidamente para se tornarem uma valiosa ferramenta de memória virtual da arte.
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Ana Ligia Trindade* – Graduação em Biblioteconomia e Documentação pela UFRGS, Especialização
em Dança pela PUCRS e Mestre em Memória Social e Bens Culturais pelo UniLaSalle. Bibliotecária
responsável pelo Setor de Recursos Online de Informação da Biblioteca Martinho Lutero da ULBRA
e Diretora Artística, coreógrafa, bailarina e professora de ballet do Espaço Cultural ArtMobile e ArtMobile Dance Cia.
Patricia Kayser Vargas Mangan** - Graduação em Ciências da Computação pela UFRGS, Mestra em
Ciências da Computação pela UFRGS, Doutora em Engenharia de Sistemas e Computação pela COPPE/Sistema de Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Centro Universitário La Salle
na graduação, especialização e pós-graduação stricto sensu. Professora orientadora do Curso de Mestrado Profissional em Memória Social e Bens Culturais, pertencendo a linha de Linguagens e Cultura
do UniLaSalle.
Nádia Maria Weber Santos ***- Graduação em Medicina pela PUCRS e em Enfermagem pela
UFRGS, Mestra em História pela UFRGS e Doutora em História pela UFRGS (2005). Possui Título de
Especialista em Psiquiatria pela ABP. Atualmente professora do Mestrado em Memória Social e Bens
Culturais do UniLaSalle.
409
“BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE
Vanessi Reis*
Os estúdios fotográficos de Porto Alegre
A produção fotográfica em Porto Alegre perpassa séculos. Conforme Possamai1, a fotografia
mantinha lugar assegurado na Cidade desde a segunda metade do século XIX. A maioria dos retratistas estrangeiros que viajavam pelo interior do Rio Grande do Sul tirando fotografias não deixava de
passar antes por Porto Alegre2. Um dos primeiros a se estabelecer na cidade, como fotógrafo profissional, teria sido o italiano Luiz Terragno3.
No final do século XIX, poderiam ser identificados aproximadamente vinte fotógrafos, entre os quais se destacavam cinco estúdios fotográficos, cujos proprietários eram
o espanhol João Antonio Iglesias, os italianos Irmãos Ferrari, o italiano Virgílio Calegari, o alemão Otto Schönwald e Innocencio Barbeitos4.
Otto Schönwald nasceu na Prússia, e veio ao Brasil em 1888 instalando-se como fotógrafo na
cidade de São Leopoldo. Posteriormente veio a Porto Alegre onde se estabeleceu com atelier “Photographia Otto” na Rua Ramiro Barcelos esquina com Rua Vasco da Gama. Otto faleceu em 15.10.1941
nesta capital.
Dele é a imagem panorâmica da sequência, composta de nove fotografias, no ano de 1900. As
imagens que compõe o panorama foram doadas à UFRGS por sua família, e hoje formam parte da
coleção “Porto Alegre à vol d´Oiseau“5, sobre o Bom Fim, do Acervo do Museu da Universidade.
A datação das fotos é estimada, pela já existência do prédio da Escola de Engenharia neste
período.
Conforme equipe do Museu, a coleção foi analisada no Projeto “Memorial: Porto Alegre e a
“BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE
Universidade” (1990), coordenado pela professora Sandra Pesavento, que dizia: “acredita-se que, para
obter as fotos, ele deva ter feito um giro aproximado de quase 360º sobre si mesmo (...)”.
Esta tentativa de foto tipo panorâmica, que faz referência aos Dioramas, por falta de recursos
técnicos à época de sua execução, foi executada numa época em que não havia máquinas teleobjetivas
e, portanto, a construção de uma foto abrangente só era possível com uma sequência de fotos com
sobreposição dos limites dos recortes laterais. Era obtida com uma sequência sobreposta de fotos que,
acopladas uma à outra, constituiriam o que se denominou “Porto Alegre à vol d´Oiseau”.
Estas imagens teriam sido captadas do “alto” de uma colina na Rua da Independência (Av. Independência), antigo caminho que levava até o bairro Moinhos de Vento. Nesta sequência, é possível
ver da Avenida Independência até a beira do Guaíba e do Centro até os Campos do Bom Fim (Bairro
Bom Fim e Redenção).
Conforme narração da equipe do Museu, a professora e pesquisadora Sandra Pesavento supunha, no projeto, que as fotos teriam sido feitas com a função de registrar um momento de grandes
modificações na cidade, o final do século XIX, quando os processos de modernização urbana, higienização, estetização, moralização e branqueamento da cidade estavam em curso. Baseada nas reformas
urbanas galopantes pelos territórios coloniais, em busca de um reconhecimento, modernidade e progresso, desejáveis neste tempo, a professora concluiu que estas imagens viriam a suprir o desejo de
visibilidade e imortalidade deste momento.
Entretanto, conforme informação obtida com a família do fotógrafo, ele simplesmente intentava registrar a imagem (vista) tida do atelier do fotógrafo, pela janela de seu estúdio.
Da questão controversa, sustenta-se que o desejo deste registro intente, no mínimo, resguardar,
em seu instante infinito, o registro de uma realidade que em breve seria alterada pelas novas, grandes
e muitas reformas previstas com o avanço da urbanização. E o registro da área baixia e excluída do
bairro Bom Fim, da Várzea e do bairro Cidade Baixa (registrado ao fundo), teria sido feita pelo alto,
no ponto de maior cota em que se podia registrar seu conjunto.
Também com a intenção de registro de uma etapa temporal de desenvolvimento da cidade,
aparece o trabalho feito pelos estúdios dos Irmãos Ferrari e de Virgílio Calegari.
Eram italianos e radicaram-se em Porto Alegre, no final do século XIX, onde passaram
a dedicar-se ao ofício da fotografia. Esses estúdios fotográficos acabaram competindo
412
Vanessi Reis
entre si, não apenas por terem sua localização no centro da cidade, mas também pela
qualidade esmerada de seus trabalhos6.
O estúdio dos Ferrari foi fundado em 1871, levando muitos anos para firmar-se entre os porto-alegrenses. Raphael Ferrari, proprietário do estúdio, ao se aposentar, foi sucedido no ofício pelos seus
filhos Carlos e Jacintho, criando o estúdio Ferrari & Irmão. Tornaram-se bastante conhecidos quando,
em 1889, lançaram uma coleção de vistas de Porto Alegre e arredores sobre cartão, em tamanho aproximado de 24 cm x 30 cm. A coleção de vistas dos Irmãos Ferrari ganhou grande aceitação entre o
público, tornando o talento de seus autores de tal forma reconhecido que, em 1892, o Governo Federal
lhes encomendou fotografias urbanas para a Exposição Colombiana. Os Ferrari também trabalhavam
com outros temas. No entanto, muito da ascensão dos irmãos deveu-se à realização e à ampla comercialização de suas vistas urbanas, que não apenas difundiram sua arte, mas também a Porto Alegre
fin-de-siècle.
As imagens apresentadas são formadas por sequências de três fotos, obtidas com bastante distância da área central, registradas a partir de uma das ilhas que formam o conjunto que defronta POA
pelo Delta do Jacuí. Mediante ampliação, é possível obter informações tanto da área central e urbana
da cidade, quando da região sul – área rural e menos povoada, que caracterizava a Cidade Baixa. Além
desta, os irmãos Ferrari também produziram um conjunto de vistas da região sobre solo continental,
com fotografias mais detalhadas, também obtidas para este mesmo álbum.
Virgílio Calegari aprendera seu métier no final do século XIX com outro fotógrafo radicado
na cidade, o espanhol João Antonio Iglesias. Quando os Ferrari eram já bastante conhecidos por suas
vistas urbanas, Calegari montava seu primeiro atelier, em 1893, localizado na Rua do Arroio, de onde
se transferiu, após três anos, para a Rua dos Andradas. Calegari destacou-se como o fotógrafo das
autoridades locais, realizando o retrato de figuras políticas proeminentes da sociedade porto-alegrense. Apesar de ter sido reconhecido como exímio retratista, Virgílio Calegari também realizou muitas
vistas de Porto Alegre, vindo, inclusive, a reunir algumas delas em um álbum fotográfico, publicado
no início do século XX.
413
“BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE
No conjunto Panorâmico de fotos de Calegari, a zona sul não é totalmente apresentada na imagem, sofrendo um recorte à parte da ponta mais próxima à cadeira. A margem sul, é omitida, e a cidade
apresenta-se de maneira mais próxima, com identificação da unidade nas edificações que recobriam o
território citadino.
No caso álbuns produzidos pelos dois últimos ateliers descritos, suas execuções intentavam
transpor para a representação visual os aspectos urbanos que também obedeciam a um ideal de progresso almejado pelas elites e pelos republicanos no poder.
Divulgação ou propaganda política, dos feitos de cada período, para demonstração dos avanços
obtidos durante as administrações, eram os primeiros registros da Cidade Baixa existentes em fotografia.
A “Baixa Cidade”
Porto Alegre consolidou-se uma cidade com características físicas singulares. Iniciou seu povoamento na parte peninsular de uma extensa costa que margeia o Rio Guaíba, projetando-se na península no sentido leste - oeste, sobre o grande espigão que conforma o sítio.
Este fator físico foi determinante na ocupação como uma grande barreira a ser transposta
para o desenvolvimento urbano local. Ele isolava os lados da península (norte e sul), dificultando o
deslocamento e a comunicação entre estas duas faces de suas encostas, porém, protegia o litoral norte
dos ventos fortes que vinham do sul. Assim, acabou por configurar um porto natural naquela face. As
embarcações que vinham do sul contornavam a costa para atracar seus navios em margem de maior
profundidade e mais protegida dos ventos.
O viajante Saint Hilaire, em sua passagem por Porto Alegre em 1820/1821, já deixara seus
registros sobre a diferenciação da colina como aspecto claramente “antagônico” na cidade.
Divisa-se então a cidade e segue-se pelo alto de uma colina, que tem a forma de um
istmo, na direção de um lago (Lagoa dos Patos), sobre o qual está situada a cidade.
À esquerda da colina, aquém da cidade, existe um vale largo e pouco profundo, coberto de pastos baixos idênticos aos demais dos arredores desta localidade.
À direita da colina, entre ela e o lago, estendem-se terrenos baixos, semeados de casas de campo e de plantações de mandioca e cana-de-açúcar. 7
Pela proteção do frio e forte vento vindo do sul, os açorianos, que iniciaram o povoamento da
cidade, instalaram-se nesta área, próximos à água, para facilitar-lhes o acesso e o abastecimento às
moradias pela proximidade ao porto - área de embarque e desembarque de mercadorias, explorando a
oferta de serviços e a alta socialização local.
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Vanessi Reis
Ao sul do espigão, a área, por questões geográficas, tinha terrenos de baixa cota e alagadiços:
tanto pela proximidade com o riacho quanto pela proximidade do rio, que, por várias vezes, deixou a
área submersa. Esta zona, por suas características especiais, acabou por se desenvolver tardiamente,
conforme pode ser lido em comentário de cronista:
Até meados do século passado, era conhecida como Cidade Baixa, nesta capital, aquela
região ao sul da colina da Matriz, e abrangia toda essa zona entre as proximidades
do Gasômetro, a Rua do Arvoredo, as propriedades da Baronesa do Gravataí – o seu
famoso arraial – e ia até a Olaria, na margem do Riachinho, limitando-se, em seu
extremo, lá na lomba da Independência, invocada também como Praça do Portão.
Era uma vasta região, onde havia a outra parte da cidade, lá no alto polvilhada de
residências e já recortada de ruas e becos, que o oficialismo consagrara como zona
urbana da cidade.
E não faz muito tempo, pois quem tiver a oportunidade de contemplar uma fotografia
ainda de 1870, dessa região da nossa pacata cidadezinha, verá não só o que acima
afirmo, mas uma profunda identidade com a designação de Cidade Baixa, para esse
recanto de Porto Alegre, timidamente povoado nestes últimos cem anos – era a zona
do Riacho!8
As Posturas Policiais9 aprovadas pelo Conselho Geral da Província, em 10 de fevereiro de
1831, estabelecia, em seu primeiro capítulo, a determinação dos “novos limites urbanos” que incluíam
a região do Centro da Cidade (zona urbana) e a área referente à “Baixa Cidade”. O “Centro Urbano”,
na época, correspondia à área limitada pelas Ruas Bento Martins, Duque de Caxias e Marechal Floriano, e também era definida nesta lei. A área fora deste limite era considerada rural e, apesar de ser
considerada incluída no limite oficial da Cidade, no seu imaginário era tratada como área “fora da
Cidade”, ou pior: o Centro Urbano era considerado “Cidade” e o cinturão externo a ele, que o circundava, não fazia parte dela.
Esta parte excluída era a Cidade “baixa” ou “Baixa Cidade”:
Limita-se esta cidade de Porto Alegre, pela rua travessa, que vai do Caminho Novo (atual
Voluntários da Pátria) aos primeiros moinhos de vento que são hoje pertencentes a Antônio
Martins Barbosa até o meio da largura da estrada imediata (atual Avenida Independência) e
desta, em linha reta, até a embocadura da Rua da Olaria (atual Lima e Silva) pela frente da chácara do Sargento-Mor João Luiz Teixeira, e da mesma embocadura em linha reta até o riacho,
segundo por ele até a sua embocadura. 10
A partir da metade do século XIX, a Cidade começa a sofrer novas transformações. Em 1893
estes limites são atualizados, para controlar o desenvolvimento social e este foi um dos elementos que
legitimou as intenções e sentimentos da época: toda a pobreza e sujeira da Cidade deveriam ser despachadas à face sul, sendo que imundícies deveriam ser atiradas às margens do rio na desembocadura
do riacho. Para esta mesma área foram transferidas as lavadeiras da escadaria da alfândega (que ali
“quaravam” as roupas) visto que não seria de “bom tom” expor as intimidades à entrada da cidade
(no porto). Além disso, o matadouro também deveria manter-se em área afastada do núcleo urbano a
liberar seus detritos. Também há considerações em relações aos “cubos”, que deveriam ser atirados à
água, longe da área do porto e “cartão de visitas” da cidade.
A Cidade em “alta”
No período entre 1870 e 1890, a política passa por uma efervescência com o enfrentamento
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“BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE
entre republicanos e os partidos do Império11. Júlio de Castilhos assumiria com uma nova visão de
cidade, vida e sociedade, imprimindo nova paisagem urbana e visualidade da capital. A nova Cidade
necessitaria de divulgação dos seus feitos, de seu crescimento e também de um registro de seu estado
atual. Nesta época, é contratado Virgílio Calegari para confeccionar um conjunto de vistas urbanas da
Cidade, que mostrava seu desenvolvimento até o início do século XX.
A Cidade começa a crescer e se desenvolver. Conforme Célia Ferraz, em estudos de evolução
urbana, desde a fundação da Cidade até 1914, ela teria crescido o equivalente a dez vezes o seu povoamento inicial, área equivalente a atualmente considerada como seu centro Histórico12.
De 1890 a 1924, a urbe se desenvolve. Surgem as indústrias, e as chaminés invadem a paisagem urbana. Ao longo da estrada de ferro, o bairro Navegantes se consolida como bairro fabril, exigindo providências de trato urbanístico específico, que exigiriam estratégias de zoneamento urbano
sugeridos no plano de 1914, mas que só seriam, efetivamente, implantadas em sua revisão, no Plano
de 1954, com a criação de uma zona oficialmente industrial – muito baseada nos Modelos do Pré-Urbanismo Progressista, que defendia que cada função da cidade deveria ocupar uma área especializada
da mesma, de Robert Owen e Victor Considérant.13
A cidade faz uso de seu espaço urbano. O que era, até então considerado como seu limite urbano, estava restrito à área delimitada pelas determinações das Posturas Policiais, como já descrito
anteriormente.
Ao ar livre, as famílias se divertiam, durante o dia. Surgiam as primeiras cafeterias e cafés, com
os quais a sociedade dividiria seus momentos de lazer e confraternização em família.
Já na parte mais “sombria” das práticas sociais e urbanas, destacava-se a frequência, masculina, em boates, bailes, tavernas e lupanares. Na Cidade Baixa havia grande quantidade de lugares, e
aos quais estudos apontam preocupação social e ações policiais de controle à violência. Segue fato
narrado sobre o local.
Ontem, às 8hs da noite, houve grande desordem na Rua da Margem, em uns casebres,
entre as ruas da Figueira e Avahy. Foi o caso que Carlota, Maria Chica, Maria de Norberto e Lucia, todas de má vida, moradoras do Beco do Céu foram em companhia de
dois praças à casa da Rua do Vintém, nº 6, agredir à Felipa Maria Luiza, que recebeu
um golpe de navalha.14
A Cidade Baixa fotografada pelo “alto” nos Álbuns de Vistas da Cidade.
A Cidade tinha uma expectativa de Modernidade e de imagem sobre si mesma de muita prosperidade. O sonho da República e os reflexos de seus novos e nobres ideais deveriam estar refletidos
numa Cidade Saneada, Moderna e Bela.
Não à toa, após assumir a governança da Cidade, Júlio de Castilhos inicia uma nova administração com grandes mudanças. Grandes obras que trazem a imponência do positivismo somada aos
ares de desenvolvimento.
O desejo de fazer-se atualizada pode ser refletido nas imagens capturadas pelos Irmãos Ferrari,
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Vanessi Reis
no álbum de fotos que contemplava várias áreas da cidade, demonstrando suas diferentes belezas e
peculiaridades.
A cidade “alta”, da elite e bem frequentada, geralmente era fotografada por baixo, de maneira
a ampliar, verticalizar, monumentalizar e valorizar edificações, espaços urbanos e detalhes de intervenção urbana, que agregavam qualificação aos espaços públicos, aptos a receber a “alta” sociedade,
que ansiava pelos espaços de vivência, convivência e exposição, onde ver e ser visto fazia parte das
práticas sociais, visando futuros casamentos ou mesmo a exposição em revistas de variedades. Este
tipo de configuração, recorte e fotográfico eram amplamente utilizados nos álbuns fotográficos, comemorativos da Cidade e que promoviam as ações urbanas e arquitetônicas ocorridas nela, como trata
Charles Monteiro em análise sobre a história da Cidade através das imagens.15
Já à cidade “baixa”, restavam os menos favorecidos, econômica e socialmente. Esta começava
a aparecer em registros do que passava a ser entendido e reconhecido como Cidade. Até então, sequer
pertencia a seu limite urbano, e agora aparecia em álbuns fotográficos comemorativos sobre a evolução de Porto Alegre.
Em relação às fotos já apresentadas, se verifica que na foto de Otto Schönwald, a área total
que configurava o espaço então conhecido como “Baixa Cidade”, e que abrangia regiões hoje pertencentes a uma parte do bairro Bom Fim, ao Parque Farroupilha e ao atual bairro Cidade Baixa, estava
totalmente contemplada, valorizando esta área, como já descrito, por resguardar, no instantâneo da
fotografa, a sua imagem anterior à esperada e futura urbanização prestes a avançar sobre aquele território. E também, para valorizar aquele espaço que, até então havia sido desprezado, e que naquele
momento demonstrava grande potencial para o avanço da urbanização e do social sobre áreas ociosas
da cidade. A área pertencente ao Bairro Cidade Baixa é representada de maneira desprivilegiada, ao
ser acumulado, pelo recorte fotográfico, a uma concentração de casario ao fundo do enquadramento.
Já nas fotos dos Irmãos Ferrari e de Virgílio Calegari, a área da “Baixa Cidade” era reapresentada somente em parte, e por um enquadramento que não a privilegiava, pois enfocava as partes
centrais da urbe com seu casario, apresentando à direita da fotografia, em perspectiva acumulada,
toda a elipse que configurava a orla sul num pequeno trecho de praia após a Ponta da Cadeira e Usina
Termoelétrica à Volta do Gasômetro.
Entretanto, da série produzida desta região pelos Irmãos Ferrari (a seguir) é possível verificar
um levantamento e registro mais detalhado e privilegiado da área. As imagens são registradas do
alto, porém de uma distância em que se permite ver o “grão” da malha urbana: o lote e seu casario,
assim como identificar a morfologia que configurava a área, e reconhecer a tipologia arquitetônica,
em alvenaria de tijolos com cobertura de telhas de barro (sendo os tijolos e telhas obtidos, em grande
parte, das olarias locais – pelo baixo custo e pela facilidade de deslocamento, além destas serem contemporâneas à substituição dos antigos casarios de madeira pelas primeiras edificações em alvenaria,
conforme Franco16 ).
Também permitem ver o já grande adensamento edilício, e, portanto, populacional, mostrando
o avanço da Cidade pelos campos antes reconhecidos como área rural da cidade, que se estendia em
direção ao interior do continente, orientado pelos caminhos que uniam os centros aos arraiais e centros
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“BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE
urbanos mais próximos.
As imagens registram e apresentam a área “baixa” da Cidade. Baixa em relação à cota geográfica, enfatizada pelo recorte fotográfico das imagens produzidas. O olhar acima do nível das edificações, das ruas, das quadras, dos quarteirões e do bairro, demonstra uma visão abrangente e indiferenciada, que unia toda esta região baixa e que enfatizava sua característica “baixa” enquanto referente
a vários adjetivos, que geralmente denegriam a imagem local, embasados na fama e imagem mental
construída socialmente sobre o local, de uma maneira muito sutil, perceptível, por comparação em
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Vanessi Reis
relação às demais fotografias do álbum, referentes à área da “alta” Cidade, na qual esta é representada
com fotografias ao nível do observador, ou abaixo deste, para enfatizar, valorizar e ampliar (monumentalizar) os objetos retratados.
Considerações Finais
A própria fotografia, resultado de um processo físico-químico é fruto da industrialização, que
naquele momento era necessária e desejável. E podia reproduzir, para comunicação, divulgação,
“comprovação” das modernidades enfrentadas pela cidade em seu novo momento.
Sua demanda, enquanto retrato, registro de estado e de identificação, é recurso imprescindível
para a perpetuação dos fatos alcançados. Ela retém a memória, gravada em seu instante com raios de
luz sobre papel e produtos químicos.
Por poder ser interpretada em si, a foto exige que sejam feitas indagações.
Os motivos que me motivaram a escrever este artigo foram, ao selecionar uma série de fotos
dos fotógrafos em questão sobre a Porto Alegre do final do século XIX, era a de verificar a recorrência
no recorte e determinação dos fotográficos, de enquadramentos da Cidade Baixa sob um ângulo bastante superior ao seu nível geográfico.
Nesse sentido, ao observar as imagens pertencentes ao álbum, a recorrência de elementos das
fotografias referentes ao seu recorte fotográfico, chama a atenção por fortalecer uma imagem que demarca claramente questões (mensagens) que são enviadas ao seu fruidor, e que são referentes a valores
e questões sociais e econômicas, não constantes diretamente no tema nem nos objetos das fotos.
Conforme as categorias de Ulpiano de Menezes17, o “visual” da foto determina o lugar da fotografia. A imagem icônica da Cidade Baixa enquanto um lugar desocupado, de casas pequenas, de
acentuada enseada da orla sobre o continente, elíptica, com uma praia ao sul da costa, mantém a imagem do “visível” de uma área da cidade desprestigiada, por suas condições físicas: a baixa cota, com
as inundações frequentes, tanto do rio quanto do Riachinho que a cortava, a quantidade de mosquitos
narrada em periódicos, a umidade deste terreno argiloso (onde se instalaram as olarias da cidade),
mais os frios e fortes ventos vindos do sul castigavam a encosta e a planície ao sul do espigão de granito que consolidaria a Rua Duque de Caxias.
A visão dos fotógrafos, em alinhamento perfeito à desejada visão da encomenda por órgãos
públicos ou por políticos – homens públicos e de projeção - para a divulgação desta imagem da cidade atendia a necessidade de fortalecer o centro urbano, consolidado, como verdadeiro espaço social,
“autorizado” por um discurso subliminar à imagem.
Procurando não ignorar a possibilidade de outra leitura, aponto para a imagem da Paisagem
enquanto “Patrimônio”, um espaço verde, belo, que, enquadrado em moldura elegante, daria o status
de abastada à família que o apresentasse como “posse”.
A Cidade Baixa era apresentada como um grande campo a ser descoberto pela Modernidade e
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“BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE
o desbravamento de suas terras pouco propícias para a instalação de sociedade mais refinada, demonstraria o poder do Estado enquanto potência de avanço sobre terras inóspitas e que poderia proporcionar, a uma nova classe econômica que se formava – a dos trabalhadores industriais – a competência
de proporcionar-lhe moradia a custos possíveis de serem alcançados.
E as imagens encomendadas ou não, para este fim, acabaram por reforçar esta ideia, a partir dos
conceitos e dos fotográficos utilizados pelos fotógrafos em suas apreensões.
REFERÊNCIAS
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PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Memória Porto Alegre: espaços e vivências. – 2º Ed. – Porto Alegre:
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PESAVENTO, Sandra Jatahy (coord.). O espetáculo da rua. 2º ed. Porto Alegre: Ed. Universidade /
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apud MACEDO, Francisco Riopardense de. Porto Alegre: história e vida da cidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1973. p.73.
SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre: crônicas de minha cidade. 2. ed. Caxias do Sul: Universidade de
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1998. p. 23-35. SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São
Paulo, Ed. Universidade de São Paulo, 1974.
420
Vanessi Reis
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br/edipucrs/fotografia.pdf
(Endnotes)
1
POSSAMAI, Zita Rosane. O circuito social da fotografia em Porto Alegre (1922 e 1935). n.
mus. paul. vol.14 no.1 São Paulo Jan./June 2006.
2
ALVES, 1998 apud POSSAMAI, Zita Rosane. O circuito social da fotografia em Porto Alegre
(1922 e 1935). n. mus. paul. vol.14 no.1 São Paulo Jan./June 2006.
3
DAMASCENO, 1974 ; KOSSOY, 2002a apud POSSAMAI, 2006.
4
SANTOS, 1998 apud POSSAMAI, 2006.
5
Tradução: “Porto Alegre em linha reta”.
6
DAMASCENO, 1971 apud POSSAMAI, 2006.
7
SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. Belo Horizonte, Ed.
Itatiaia; São Paulo, Ed. Universidade de São Paulo, 1974.
8
SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre: crônicas de minha cidade. 2. ed. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1979. p.207.
9
As “Posturas Policiais” eram um código que orientava o saneamento, controlava a abertura
e fechamento de comércio e estipulava os locais e a intensidade para o castigo dos escravos, dentre
outras determinações.
10
PORTO ALEGRE. Câmara Municipal. Posturas Policiais. Porto Alegre, Tip. Do Comércio,
1847. p.1. apud MACEDO, Francisco Riopardense de. Porto Alegre: história e vida da cidade. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 1973. p.73.
11
PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Memória Porto Alegre: espaços e vivências. – 2º Ed. –
Porto alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 1991. p.55
12
PESAVENTO, Sandra Jatahy (coord). O espetáculo da rua. 2º ed. Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 1996. p. 60
13
CHOAY, Françoise. O Urbanismo. São Paulo: ed. Perspectiva, 2003. P. 64 e 80.
14
Gazeta da Tarde, Porto Alegre, 22/5/1895, nº 47, p. 2 apud PESAVENTO, Sandra Jatahy (org).
Memória Porto Alegre: espaços e vivências. – 2º Ed. – Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS,
1991, p.66.
421
“BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE
15
Monteiro, Charles. Construindo a história da cidade através de imagens. In: PESAVENTO,
Sandra j.; ROSSINI, Miriam.; SANTOS, Nádia M. W. Narrativas, Imagens e Práticas Sociais. Percursos em História Cultural: Pesquisas Recentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 9-49.
16
FRANCO, Sérgio da Costa. Gente e espaços de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000. 155 p.
17
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra. Rumo a uma história visual. In: Martins, J. S.; ECKERT, C.,
NOVAES, S.C. (orgs.). O imaginário e o poético nas Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2005,
p.35.
* Mestranda Programa de Pós-Graduação em História – PUCRS
422
MODERNIDADE DE REVISTA E REPRESENTAÇÃO DO INDIVÍDUO NA
REVISTA CARETA
Cláudio de Sá Machado Júnior *
Abordar o tema da modernidade é uma tarefa árdua e inconclusiva. A própria definição do
termo, que se diferencia de modernismo e modernização, abarca um saber filosófico mais que centenário, no qual muitos intelectuais debruçaram-se com competência disseminando ideias e fazendo
escolas. Neste sentido, um estudo sobre o tema da modernidade sugere, como uma ação coerente, um
recorte de pesquisa específico. A opção para o presente trabalho foi a de buscar aspectos referentes
à modernidade carioca através de elementos constitutivos do conteúdo da revista semanal Careta,
especificamente aqueles publicados nos três primeiros meses do ano de 1920 (edições 602 a 614).
Antecede, portanto, em praticamente dois anos, o marco construído pelos intelectuais modernistas,
buscando indícios de que o espírito da modernidade brasileira foi concebido em um período anterior.
Não é a intenção abordar os primórdios da modernidade no Brasil, mas sim apontar para momentos
específicos, a partir de período pré-determinado, em que ela foi alimentada, vinculada e absorvida pela
sociedade através da imprensa periódica.
Compreende-se a revista Careta como um dos possíveis e variados meios para se chegar à
formação de um dito pensamento moderno brasileiro, com raízes bem cariocas, e seu espírito cosmopolita. Os conteúdos da revista abrangem uma diversidade de textos, fotografias, propagandas
e caricaturas, e refletem a influência de ideais modernos de comportamento e consumo de parte da
sociedade naquele momento. Portanto, com fins de organizar o presente conteúdo escrito, serão abordadas questões referentes ao protagonismo da revista Careta como instrumento de disseminação destes costumes modernos, seus conteúdos de forma sumária e a constituição de uma cultura material
representativa de elementos modernos simbólicos, além do crescimento de um caráter individualista
dos sujeitos sociais.
Imprensa periódica protagonista
Segundo Renato Ortiz (1989, p. 28), as estatísticas da década de 1920 registram um índice que
alcança a marca de 75% a respeito da população brasileira considerada analfabeta. Neste período,
apesar da existência desta significativa parcela de iletrados na sociedade, as publicações ilustradas se
multiplicaram e ganharam, gradativamente, importante espaço para a constituição de uma cultura moderna essencialmente urbana. Nelas, as camadas privilegiadas encontraram espaços para orientação
crítica e auto-representação de imagens e ideias que correspondessem aos seus anseios. Antes de tudo,
as revistas também se constituíram como empresas mercantis, cujo principal meio de sobrevivência
provinha dos lucros obtidos com a publicidade e com a venda de seu produto final impresso.
As transformações tecnológicas ocorridas nos meios de comunicação, aponta Mônica Pimenta
MODERNIDADE DE REVISTA E REPRESENTAÇÃO DO INDIVÍDUO NA REVISTA CARETA
Velloso (1996, p. 23), abarcaram um processo maior que caracterizou o fenômeno amplo da modernidade brasileira. Os indivíduos que usufruíam destes bens, ou mesmo aqueles atingidos indiretamente,
tiveram que se adaptar aos novos modos de vida urbana que se implementavam nas metrópoles, com
rapidez vertiginosa. Logo, novos comportamentos e até mesmo novas linguagens surgiram em meio
ao forte processo imigratório, ao corrente influxo de capital e à alocação territorial por parte de uma
parcela social composta por um número significativo de ex-escravos e seus descendentes. As imagens
análogas do Rio de Janeiro moderno contrastavam com a ocupação das regiões centrais da cidade por
uma elite, com a permissão do termo, que se desejava europeizada, em contraponto a uma maioria
pobre, que habitava afastada, em regiões periféricas.
A comunicação propiciada pelas revistas ilustradas demonstrava uma realidade à parte, um
fragmento do todo social. Sua potencialidade sobrepôs às demais situações existentes, erigindo-se
como um dos instrumentos principais de circulação de imagens, textos e ideias representativas de uma
simbologia moderna. Em geral, os processos de comunicação, segundo Adriano Duarte Rodrigues
(1990, p. 26), são ritos que atravessam uma experiência da sociedade, seja ela individual ou coletiva.
Estes processos estariam ainda relacionados à visibilidade e à teatralidade da vida pública, além de
estarem imbricados num jogo de reconhecimento mútuo.
O cotidiano dos indivíduos nos centros urbanos – e neste caso específico, no Rio de Janeiro
– passou por transformações desde o momento em que encontrou os primeiros obstáculos proporcionados pela modernização da cidade: adaptaram-se gestos, condutas, mentalidades, modos de comer,
modos de vestir e usos dos automóveis, como alguns exemplos. E as revistas, de certa forma, acompanham estas transformações, tanto transpondo para dentro de suas páginas imagens como informando
sobre os últimos costumes àqueles que ainda não vivenciaram tal experiência. Como foi possível
constatar em outro estudo (MACHADO JÚNIOR, 2006b), percebe-se que, no caso da Careta, muitas
vezes os consumidores das revistas foram aqueles cujas imagens se constituíram em uma das temáticas visuais do periódico.
A publicidade, o media e a moda são terrenos em que se aperfeiçoa a nova lógica significante para, daí, extravasar ao domínio político, econômico, religioso e escolar. O
que destes campos sociais modernos se retira é uma pura forma discursiva cortada de
qualquer referencialidade concreta. (RODRIGUES, 1990, p. 61)
Mas falamos de uma modernidade que parte da realidade para as revistas ilustradas ou das revistas ilustradas para a realidade? Distante de uma visão dicotômica e simplória, pode-se apontar para
as duas proposições como possibilidades factíveis a partir da modernidade difundida pela imprensa
carioca, especialmente no que toca as revistas ilustradas. Tanto os sujeitos puderam reproduzir os
elementos veiculados às páginas da Careta, quanto os fotógrafos, caricaturistas e cronistas puderam
apreender fragmentos representativos que identificaram modelos comportamentais seguidos por sua
sociedade. No caso das imagens fotográficas, quando cruzadas com as demais realidades marginalizadas da época, percebe-se nitidamente o interesse pela escolha da circulação de representações de
espaços e pessoas específicas, em detrimento de outras.
Conforme o questionamento de Aracy Amaral (1994, p. 89), não seria este avesso da modernidade também um elemento constitutivo da mesma? De uma maneira geral, a realidade proposta por
revistas da época, como a Careta, não tinha como interesse degradar a imagem de uma cidade civiliza424
Cláudio de Sá Machado Júnior
da, mas, mesmo assim, não impediu que se fossem assumidas posturas críticas com relação aos novos
emblemas da modernidade. As crônicas de Lima Barreto, por exemplo, encontradas frequentemente
nas edições de 1920, atestam tal afirmação. Ou no caso das caricaturas de natureza satírica e críticosocial, com destaque para a produção de J. Carlos, buscava-se através do humor a reflexão e o alívio
das tensões sociais. Entre a fantasia da realidade e o real propriamente dito, a revista Careta afirmouse como um importante veículo de circulação não somente de imagens, mas também de ideias. Seu
longo período de existência, tendo a primeira edição lançada em 1908 e a última em 1960, atesta de
certa forma esta representatividade.
Do período que interessa ao presente artigo, os três primeiros meses de 1920, é possível encontrar algumas referências sobre a questão de como poderia se pensar a modernidade em relação ao seu
tempo. Myrian Sepúlveda dos Santos (2000, p. 87) destaca que a questão do tempo, inserido em um
processo de dinamização urbana e de transformações no campo tecnológico, conforme ocorreu com
o campo das comunicações, refere-se a uma das características do pensamento moderno. A perspectiva de um devir prestigioso, que sempre está por chegar, permeia o editorial da revista, denominado
Looping the Loop. Em 3 de janeiro de 1920, sem referência a autoria, mas indicialmente atribuía ao
seu diretor Jorge Schmidt, saudava-se a chegada do novo ano, afirmando-se que “nenhum país há no
mundo que ofereça maiores perspectivas de um futuro radiante do que o nosso” (CARETA, 3/1/1920),
admitindo também que “sem ilusão, no entanto, ninguém vence” (Ibid.).
Seria preciso, portanto, acreditar nos sonhos, na utopia, para alcançar os objetivos maiores da
sociedade, uma vez que a realidade apresentava-se, segundo a percepção destes, como propícia ao desenvolvimento da nação. Vale lembrar, segundo os argumentos defendidos por Daniel Pécaut (1990),
que a década de 1920 caracterizou-se como um período de busca da afirmação dos intelectuais como
atores sociais, sendo seus argumentos inter-relacionados com os interesses do Estado, perpassando
uma lógica de discurso nacionalista. Assim, é possível verificar um comportamento por vezes ambíguo da revista Careta em relação ao Estado, ora postando-se de forma crítica, ora engendrando uma
imagem construída em prol deste, conforme pode ser constatado através da análise da revista (MACHADO JÚNIOR, 2006a). Seja como for, o papel protagonista da revista Careta como instrumento
de divulgação de ideais modernos é, de certa forma, inegável.
Modernidade carioca e cultura material
Podemos considerar que a cultura de consumo e a modernidade carioca 
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