GRAMSCI E A REPÚBLICA
Fernando Filgueiras
Doutorando em Ciência Política no IUPERJ
Mestre em Ciência Política pela UFMG
Professor de Sociologia Jurídica na Faculdade Metodista Granbery
Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa” da UFJF
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I
A tradição italiana de pensamento sempre foi cercada por uma preocupação com a
corrupção da ordem política e social. Desde a formação de Roma que o espírito da
corrupção da sociedade e da ordem política ronda as mentalidades, e faz de seus
intelectuais homens inquietos com a república e com a sua autodeterminação.
Quando da morte de César em 43 a.C., precipitou-se uma crise na república
romana, a qual resultou em lutas fratricidas pelo poder. A vitória de Augusto e a
implantação do regime imperial através da pax romana trariam de volta a segurança e a
tranqüilidade necessárias, mas a desejável liberdade enquanto fator de uma cidadania
ativa seria fundamentalmente deixada de lado. O império, para muitos autores da
tradição italiana, seria a corrupção da causa romana, a qual foi particularmente retratada
por Ovídio, em seu Metamorfoses, para o qual o apego à tradição, à glória na guerra ou
nos tribunais e a atividade política intensa deram lugar ao culto ao amor, ao pacifismo e
à apatia diante da res publicae. Ovídio retrata a Roma do mundanismo, em que as
vantagens privadas estão acima de qualquer construção do bem comum. O mundo das
paixões seria o mundo da decadência moral, dos homens apáticos e auto-interessados.
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As Metamorfoses de Ovídio é a teoria da corrupção em Roma, que mais tarde seria
significado da fragmentação social, da busca incessante pelas vantagens privadas e da
ausência de um centro político que possibilitasse a manutenção da liberdade, que
somente poderia ser conquistada através da própria ordem social.
É neste sentido de resgatar as bases da república romana que o espírito latino de
Maquiavel teoriza o modo segundo o qual a liberdade pode ser alcançada num mundo
fragmentado, marcado pelo mundanismo e pela apatia. Apenas a cidadania ativa e a
reconstrução de uma república, nos moldes da república romana, poderiam substituir os
efeitos maléficos do período imperial e reconstruir a esfera pública feita de homens de
virtú. O autor de O Príncipe trabalha a política de um ângulo em que ela é uma função
do homem sujeito da história, do homem livre do idealismo e que constrói sua realidade
através de seus atos e desejos. Esta concepção parte da idéia de homens de virtú, que
sabem como dominar a Fortuna1 e lidar com as contingências da política cotidiana. Na
História de Florença, Maquiavel mostra como a corrupção resultou na ameaça da
liberdade, já que os cidadãos de Florença foram perdendo, ao longo do tempo, sua virtú.
Maquiavel acusa tanto a população quanto a aristocracia pela corrupção da república
florentina. De um lado, porque a população promoveu a licenciosidade e a apatia. De
outro lado, porque os aristocratas promoveram a escravidão e passaram a legislar em
causa própria. E como resultado da corrupção, o povo latino encontrava-se fragmentado,
sem honra e sem república. A glória do povo latino apenas seria alcançada caso a
fragmentação desse lugar a uma república, como ressalta Maquiavel em seu “manifesto
político”.
Como herdeira de toda uma tradição latina “sem lugar”, já que a Itália se dividia
numa miríade de repúblicas as mais diversas, a obra de Gramsci guia-se pela
reconstrução do centro político das repúblicas italianas, dando termo à fragmentação e à
apatia do povo. Como crítico do Risorgimento, Gramsci ocupa-se de pensar os
elementos constituintes de uma verdadeira independência e unidade política na Itália,
nos idos da primeira metade do século XX. Sua intenção é refletir sobre a constituição
1
A Fortuna é uma referência a uma boa deusa da mitologia latina, filha de Júpiter, que tinha o poder de
dar todos os bens que os homens desejassem. Para conseguir suas benesses, os homens necessitam, de
acordo com Maquiavel, seduzir esta deusa e se mostrar vir, de inquestionável coragem e diligência para
alcançar seus presentes. Os homens, para atingir as benesses da Fortuna, necessitam possuir a virtú no
grau mais elevado, isto é, necessitam ser virtuosos e viris o suficiente para que tenham a capacidade de
ação no tempo, sabendo lidar com as contingências de seus atos, o que resulta na prosperidade. Conf.
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença. São Paulo: Musa, 1995.
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do centro da vida política italiana no pós-unificação e elencar um conjunto de fatores
que seriam responsáveis pela “verdadeira” modernização italiana. Modernização esta
que, segundo Gramsci, seria representada por uma morfologia e uma semântica próprias
de uma eticidade caracterizada por uma cidadania ativa, por parte de uma classe
operária em formação, e pelo papel do Estado como fator de integração social,
econômica e política.
É neste sentido que, para a unificação das repúblicas italianas se tornar efetiva, é
fundamental fazer renascer o espírito da república romana. E é por isto que o crítico do
Risorgimento evoca Maquiavel, porque a unificação depende, necessariamente, de
acordo com Gramsci, da formação de uma vontade coletiva para um determinado fim
político. Gramsci, em termos, pouco se preocupa com a “estrutura”, sendo o autor
marxista que de fato fez uma teoria da “superestrutura” e como que os elementos da
ideologia são constituintes da unidade política e social.
Nos Cadernos do Cárcere de Gramsci2, O Príncipe de Maquiavel significa uma
ideologia política, uma criação concreta que congrega um povo fragmentado e disperso,
fazendo nele suscitar a vontade coletiva. O príncipe é o elemento que transforma as
paixões políticas em virtudes, dando uma forma concreta à vontade coletiva, a qual
possibilita uma verdadeira reconstrução das bases sólidas de uma esfera pública. Desta
forma, por se tratar de uma ideologia, o elemento mítico do príncipe como chefe
político e condotiere ideal do povo não significa uma doutrina de imediatismo objetivo,
mas um mito, nos termos de Sorel, que congrega formas de consenso ideológico que
possibilitam atingir o telos positivo, através do acordo das vontades associadas. O
Príncipe de Maquiavel é um “manifesto político” em nome da unificação social e
política.
Contudo, na modernidade, não é possível pensar, em sociedades complexas, o
mito soreliano se realizando através de uma pessoa real. Os homens são tão iguais em
sua consciência, que não é possível a um indivíduo concreto exercer a virtude necessária
para transformar sua ação em mito, assim como o fez César. De acordo com Gramsci,
apenas organizações voltadas para a formação da vontade coletiva podem efetuar o
mito. O príncipe moderno não é um indivíduo, mas o partido político, que germina a
vontade coletiva através de ações parciais e afirmadas historicamente, que tendem a se
2
Conf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
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tornar universais e totais, já que a vontade coletiva é a necessidade elevada à
consciência e convertida em práxis transformadora. Os partidos políticos modernos
exercem a ideologia e disseminam o mito, possibilitando aos homens sua unificação em
torno de uma concepção de bem.
O partido político é o moderno príncipe das sociedades complexas da
modernidade, organizadas institucionalmente em torno do princípio da divisão do
trabalho. É nas sociedades divididas funcionalmente, entretanto, que o moderno
príncipe não funda uma nova ordem política ou uma nova sociedade, mas restaura e
reorganiza a sociedade nos termos de sua base, não nos termos da fundação. O moderno
príncipe pauta-se por uma ação de reconstrução intelectual e moral, que se sobrepõe à
estrutura econômico-corporativa da modernidade através da constituição de uma nova
estrutura de trabalho.
O trabalho, que segundo Gramsci, continua sendo fator primordial das
necessidades materiais humanas e da organização funcional da sociedade moderna, o
qual se encontra dividido e seu lucro expropriado por uma burguesia “parasitária”. O
papel do moderno partido político é reconstruir as bases de acordo com as quais o
trabalho é efetuado na sociedade moderna. O partido político deve ser um “chefe”, que
saiba “o que quer e como obter o que quer”, modificando a estrutura do trabalho através
da associação das livres “paixões” dos homens, produzindo um largo alcance histórico
de mudança e transformando-se em categoria fundamental da filosofia da práxis,
transformando as aparências em fatos concretos das necessidades humanas. A paixão
como categoria, catalisada pelo partido político, transforma-se em impulso imediato
para a ação permanente e orgânica da vida econômica, superando-a e fazendo emergir
uma vontade coletiva que permita o verdadeiro renascer.
Para Gramsci, a política é a ação permanente, a gênese de organizações
permanentes que se identificam com a “estrutura” econômica e mudam seus alicerces.
Nestes termos que a burguesia trata de diferenciar funcionalmente a estrutura
econômica da superestrutura ideológica, formando um sistema de dominação que
centraliza o poder através de mecanismos coercivos e persuasivos do aparato estatal e
jurídico. Apenas o partido político pode romper com o sistema de dominação burguês,
porque ele transforma paixões desconexas em ideologia de restauração.
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A pretensão, ou a sintaxe da teoria de Gramsci é criar condições para que a
existência da divisão do poder entre governantes e governados não seja uma relação
necessária, mas que se estabeleça um consenso através da vontade coletiva condensada
mediante o partido político, cujo espírito é hoje o elemento mais adequado para elaborar
a capacidade de transformação, através da formação dos dirigentes e da capacidade de
direção. O partido político, entendido como o moderno príncipe, é o único elemento
capaz de fazer com que o espírito da modernidade3 se realize de modo efetivo.
Quando pensa em partido, no entanto, Gramsci não pensa em organizações
instrumentais e no mero sentido legal, que reforçam a dominação burguesa, mas no
partido orgânico, que atua como força diretriz em si, reunindo as frações da sociedade
em torno de um consenso universal. Gramsci identifica dois tipos de partidos que se
apresentam ao público e que fazem a abstração da ação política imediata. Um primeiro
tipo que é constituído por uma elite cultural, que dirige a sociedade sob o ponto de vista
da cultura e da ideologia em geral. E um segundo tipo mais recente, o partido da não
elite, das massas que podem ser manobradas por mitos messiânicos ou discursos morais.
Gramsci condena a visão segundo a qual a massa é manobrável, seja por uma elite
cultural, seja através de uma fidelidade genérica a um centro político. O autêntico
organismo das massas tem que assegurar a livre expressão dos anseios dos grupos
sociais de que sua linha de ação é constituída.
Desta forma, segundo Gramsci, a escrita da história de um partido é a escrita da
história geral de um país, porque o partido tem sua gênese na ideologia dominante ou
até mesmo da ausência desta ideologia. Por isso que um partido não pode prescindir dos
elementos básicos constituintes de sua ideologia, que são a força coesiva (fidelidade), a
liderança (inventividade) e o elemento médio (fator de ligação dos dois anteriores).
Por se tratar, portanto, de elementos ideológicos, há uma correlação, de acordo
com Gramsci, entre partidos e classes sociais, tornando o primeiro uma nomenclatura da
segunda. Já que um partido representa uma “parte” da sociedade, que pode ter uma
função progressiva ou regressiva, conforme cada uma lute pela hegemonia na sociedade
3
Ao falar de “espírito de partido”, notamos em Gramsci um certo elemento hegeliano de eticidade do
Estado como sujeito universal, capaz de mediar o singular e o plural nos termos da formação de uma
intersubjetividade não forçada da vontade coletiva. Contudo, é importante diferenciar duas variáveis
acessórias aduzidas por Gramsci de uma função progressiva ou regressiva do partido político. No caso da
eticidade do Estado burguês, segundo o autor, a mesma se realiza especialmente na vontade do
conformismo, própria da função regressiva do partido burguês hegemônico.
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civil, seu significado é a capacidade com que consegue estabelecer um consenso em
torno dos valores morais e culturais através da persuasão constante.
A eticidade do Estado se realiza através de um consenso dos governados,
consenso este que está organizado pelo partido hegemônico e que é reforçado pela
função “educativa” do partido. Contudo, o Estado burguês, nos termos de Gramsci, é a
“hegemonia couraçada de coerção”, a qual ocorre através do direito e da identificação
do Estado com o governo. O Estado burguês coaduna o elemento político e econômico
através do corporativismo moderno, que realiza a dominação existente e impõe,
mediante coerção, uma consciência externa à consciência do operariado.
Desta forma, o papel do partido junto às massas significa a realização plena da
eticidade através da identificação do momento histórico para a realização da revolução,
durante a crise de hegemonia do partido dirigente. Crise esta que ocorre quando a classe
dirigente falhou em sua empresa política, seja através do fim da dominação cultural,
seja pela passagem da passividade para uma certa atividade por parte das massas, no
sentido de reivindicações, em seu conjunto desorgânicas, que constituem uma
revolução. A crise de hegemonia, no sentido estabelecido por Gramsci, ocorre quando o
partido já não é mais reconhecido como expressão de sua classe.
São nos momentos de crise de hegemonia que, normalmente, surge o cesarismo
como equilíbrio instável e pessoal das forças sociais em confronto aberto, em que a
continuação da luta resultaria na destruição recíproca das forças. O equilíbrio surge ou
retificando o Estado atual ou transformando-o no sentido de mudança de uma fase
histórica introduzida com inovações que representem esta transformação. No segundo
caso, o cesarismo pode conduzir a uma revolução passiva, que nos termos de Gramsci,
significa a mudança histórica sem o desaparecimento das formações sociais tradicionais,
na medida em que as forças produtivas que nelas se desenvolveram permanecem no
lugar ulterior do desenvolvimento progressivo. A revolução passiva é a transformação
sem a mudança no conteúdo material da vida, retificando velhas práticas de dominação,
mesmo que tenha havido uma mudança na forma estatal e jurídica.
Mas se a sociedade de massas é sujeita a todo tipo de cesarismo, como fazer com
que a transformação histórica seja de fato efetiva?
6
II
A idéia de risorgimento vem do verbo risorgere, que significa ressuscitar,
renascer. O Risorgimento foi um conjunto de movimentos liberais e nacionais italianos
que ocorreram no século XIX, conduzindo a Itália à independência nacional pelas
guerras do Piemonte contra a Áustria e à sua posterior unificação, que se efetuou em 20
de setembro de 1870. Os referidos movimentos liberais se dividiam em dois: os
Moderados, liderados por Cavour, e o Partido de Ação, liderado por Mazzini e
Garibaldi. A unificação, na ótica dos dois movimentos, lançaria a Itália para a
modernidade e devolveria seu poder histórico, herdeiro de Roma. O problema, segundo
Gramsci, é o processo mediante o qual o Risorgimento foi conduzido pela direção dos
dois principais partidos, bem como o pós-unificação e as lutas internas do movimento
burguês com o intuito de concentrar o poder.
O fato, segundo o crítico do Risorgimento, é que o exame do renascimento do
Estado italiano deve ser realizado pelo critério metodológico da análise do “domínio” e
da “direção intelectual e moral” do grupo social que quer se tornar hegemônico.
Nenhuma transformação histórica ocorre sem que lideranças consigam formar
consensos (mesmo que mínimos) em torno de sua causa.
No caso italiano, a causa do Risorgimento divide-se entre dois partidos, cada um
exercendo os dois elementos centrais da mudança histórica, mas representando apenas
um movimento. O Partido de Ação conseguia exercer o domínio sobre a classe burguesa
em ascensão na Itália, bem como coadunar alguns elementos populares em torno da
causa da unificação. Contudo, faltava ao Partido de Ação o elemento dirigente da
política, capaz de resolver os conflitos internos do movimento, bem como pregar os
valores da mudança, que eram largamente encontrados junto aos Moderados. Se o
Partido de Ação exercia algum domínio, os Moderados exerciam a liderança intelectual
e política e, de fato, se tornavam vanguarda real, orgânica, das classes altas. Os
Moderados eram intelectuais e organizadores políticos. Eram formados pelos grandes
agricultores, empresários comerciais e industriais, que condensavam organicamente a
massa dos intelectuais em torno do movimento de unificação. De outro lado, o Partido
de Ação não tinha um programa de governo, era apenas, de acordo com Gramsci, um
organismo de agitação e propaganda, capaz de gerar o domínio sobre a massa através da
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força da eloqüência do discurso e da capacidade de agregar elementos populares à causa
da unificação.
É neste sentido que o Risorgimento pode ser entendido como um único
movimento liberal, apesar de ter dois partidos. Enquanto o Partido de Ação exercia o
domínio, os Moderados exerciam a direção do movimento burguês. Além disso, a
relação entre o Partido de Ação e os Moderados explica certas conseqüências do
Risorgimento, como a ausência da reforma agrária no conteúdo programático do
movimento, bem como a ausência de reivindicações das massas populares e
camponesas. O Risorgimento foi um movimento político burguês, cujo horizonte era
lançar a Itália à modernidade sobre a tutela dos Moderados. O Partido de Ação estava
subordinado aos Moderados, mesmo que de modo irregular, porque não contava com o
elemento intelectual que fosse capaz de dirigir a política.
A dificuldade para o Risorgimento era agregar os diferentes interesses das
diversas repúblicas italianas. Enquanto ao Norte interessava a independência em relação
à Áustria e o impulso à modernização, ao Sul interessava o fim do poderio dos
Bourbons e a manutenção de um certo status quo, já que a modernização não
interessava a uma região caracteristicamente agrícola e latifundiária. Além da diferença
Norte e Sul, dificultava o projeto da unificação e independência o poderio do papado e
as lutas internas entre as repúblicas, como, por exemplo, a corrente de Guerrazzi e
Montanelli contra a anexação da Toscana ao Piemonte, bem como o ultimato dos
latifundiários da Sicília para a reconstituição do ducado de Milão. Diversos eram os
interesses e maior era a necessidade de uma direção política, de acordo com Gramsci,
que desse conta de liderar intelectualmente o projeto do Risorgimento. A formação do
bloco nacional em 1848 sob a hegemonia dos Moderados foi o fator de formação da
direção política que tornou possível a pregação da unidade realizada pelo Partido de
Ação. O fundamental é que não havia nenhum elemento jacobino em nenhum dos dois
partidos, pois a luta era travada no âmbito internacional contra a Áustria e não interno,
que não contava com uma burguesia forte e não havia um momento histórico propício à
formação da classe revolucionária.
Da agregação das forças políticas italianas sob a tutela dos Moderados e a ação
política do Partido de Ação, resultou um consenso intelectual de que a independência e
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a unificação das repúblicas italianas poderia resultar na manutenção do status quo, e não
refletir em uma mudança estrutural que colidisse com os interesses arraigados em jogo.
O Risorgimento foi uma revolução sem a mudança estrutural da dominação da
burguesia. A mudança política foi realizada sem nenhuma mudança substantiva no
modo de produção, mantendo intacta a velha formação econômico-latifundiária no Sul e
econômico-industrial no Norte, sujeitas a todo tipo de corrupção. Gramsci relata que o
Sul continuava reduzido a um mercado semicolonial e era mantido disciplinado através
de medidas de repressão com os massacres periódicos de camponeses, paternalismo,
favorecimento pessoal ao grupo de intelectuais dirigentes (entre eles Croce e Fortunato)
através de empregos na administração pública, licenças de saques, privilégios
judiciários e burocráticos. De outro lado, o Norte defendia formas de protecionismo que
favorecesse os industriais em detrimento dos operários, reforçasse a economia no
sentido de manutenção da hegemonia e criasse uma forma corporativa de
relacionamento do Estado com a sociedade, modernizando o capitalismo do Norte.
O fato, segundo Gramsci, que a Itália tornou-se independente e unificada, mas
não mudou substantivamente seu modo de produção em função de problemas na direção
do movimento. Não havia na Itália, naquele momento, um partido revolucionário, um
príncipe moderno, que, na visão de Gramsci, seria o centro de uma ampla rede de
instituições sociais e políticas que comporia a sociedade civil e superaria os resíduos
corporativos (que o pensador italiano define como "egoístico-passionais") da classe
operária e contribuísse para a formação de uma vontade coletiva nacional-popular.
Enquanto organismo de mediação e de síntese, o partido deve assumir iniciativas
políticas que englobem a totalidade dos estratos sociais e vigorem sobre a
universalidade diferenciada do conjunto das relações sociais, o que não ocorreu na Itália
do Risorgimento, devido à manutenção do status quo e o reforço da dominação
burguesa.
O Risorgimento foi uma revolução passiva uma vez que as formações sociais
tradicionais não desapareceram e as forças produtivas permaneceram na mesma posição
original. A explicação seria a fraqueza do elemento dirigente do movimento liberal, que,
nos termos de Gramsci, não soube guiar o povo através da paixão, não criou uma classe
dirigente difusa e enérgica, não inseriu o povo no quadro estatal, manteve a mesquinha
vida política, o grupo dirigente manteve-se cético e covarde e, principalmente, a posição
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internacional do novo Estado era periclitante, já que não dispunha de autonomia porque
era minado no centro pelo papado e pela passividade das massas. O Risorgimento
disseminou uma consciência egoísta junto às massas, uma forma racional de justificar a
ação humana, que favoreceria a formação burguesa do novo Estado e impediria, por
outro lado, a posterior formação da vanguarda da classe operária e a disseminação de
uma vontade coletiva diferenciada, pautada por um outro momento histórico e que
lançasse bases sólidas de transformação.
O Risorgimento foi uma revolução passiva, em que as massas apenas assistiram
hipnotizadas um movimento histórico cuja deficiência seria o elemento dirigente. Como
massa de manobra dos liberais, faltava a eles um elemento primordial para a reforma
intelectual e moral da Itália, que congregasse a formação da vontade coletiva e desse
sustentação a mudanças históricas de fato. Como não havia uma direção política
eficiente, nos termos da formação de uma vontade nacional-popular, forma-se uma
hegemonia fraca, que mais tarde se viu derrotada pelo cesarismo de Mussolini, que
equilibrou pessoalmente as forças sociais em conflito latente desde a unificação. O fato
é que a mudança fazia os grupos sociais permanecerem no mesmo lugar; os industriais
do Norte dominando a população urbana e os latifundiários do Sul cometendo todo tipo
de barbárie contra os camponeses.
A Itália estaria condenada à corrupção se não insurgisse um novo partido, que
regulasse os elementos para a constituição de uma hegemonia com base em uma
reforma moral e intelectual, vinculada às bases operárias. Elemento regulador esse que
não centralizasse os fatores da mudança na burocracia do partido, tornando-o órgão de
“polícia”, mas elemento de mudança concreta, com base numa eticidade renovada que
contagiasse a massa e dirigisse a Itália rumo a uma transformação concreta das forças
produtivas e das bases materiais da produção. A Itália poderia criar condições para que
a existência da divisão do poder entre governantes e governados não seja uma relação
necessária. O consenso através da vontade coletiva, condensado mediante o partido
político revolucionário, poderia elaborar a capacidade de transformação, através da
formação dos dirigentes e da capacidade de direção. O partido político, entendido como
o moderno príncipe, é o único elemento capaz de fazer com que o espírito da
modernidade se realizasse de modo efetivo, e recuperasse a grandeza romana deveras
perdida com a corrupção histórica.
10
III
Teorias são constituídas com base em uma visão de futuro, justificando
racionalmente determinados valores, que podem ser formados historicamente em uma
tradição de pensamento. No caso da teoria de Gramsci, a herança latina é marcante e
não é por acaso que ele evoca Maquiavel para pensar uma eticidade transformadora, que
fosse capaz de recuperar a grandeza do povo italiano. E também não é por acaso que
Gramsci dá tanta atenção para o elemento dirigente da política, acreditando que o
príncipe pode ser capaz de institucionalizar os interesses incompatíveis da esfera
pública e garantir a liberdade. O “momento maquiaveliano” de Gramsci se explica pela
incerteza e descontentamento com as mudanças em tela na sua Itália4.
No século em que as mudanças de cunho econômico, no sentido do
estabelecimento de um capitalismo e a formação de classes com base na existência
material, já se tornavam presentes na Itália, era fundamental realizar a mudança com
base numa reforma intelectual e moral, que nutrisse a vita activa no lugar da vita
contemplativa. Nutrir uma vontade coletiva que fosse capaz de transformar as pequenas
repúblicas fragmentadas em uma comunidade histórica particular, que criasse a história
no sentido da busca pela liberdade através da ação política constante. Ao contrário do
Risorgimento, em que a passividade da massa e as deficiências na direção minaram a
autonomia do Estado italiano, que mais tarde ficou sujeito ao equilíbrio instável do
Facismo.
Gramsci, obviamente, não é um republicano, mas não consegue prescindir da
tradição formada em sua cultura, de realizar uma ordem social integrada na Itália
através do domínio político como uma esfera de proeminência legítima. O ponto, é que
Gramsci destoa do marxismo vigente na Europa, expondo um contraste dramático com
Marx ao celebrar e afirmar as tradições italianas, herdeiras do republicanismo. A
semântica dominante na obra de Gramsci é o entendimento do homem moderno como
4
Fazemos uma analogia arbitrária de um momento maquiaveliano na teoria de Gramsci, do mesmo modo
como descreve Abensour para o caso de Marx. Gramsci pretende em sua teoria política pensar a
transformação da Itália no sentido da (1) da reativação da vita activa, (2) do vivere civile e da exigência
de uma historicidade particular e, (3) da inscrição no tempo entendida como forma criadora potencial de
história, manifestada enquanto comunidade histórica específica. Para mais detalhes, ver: ABENSOUR,
Miguel, A Democracia Contra o Estado, Marx e o Momento Maquiaveliano, Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 1998.
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subordinado às forças produtivas, em função da autonomia do econômico em relação ao
Estado. Porém, a revolução e a mudança moral apenas ocorrerão através da política e da
reforma intelectual, já que a “americanização” moderna implica numa forma de
racionalismo nunca antes vista, capaz de sedimentar uma estrutura social
individualizada, no sentido do egoísmo, e controladora, capaz de reprimir os indivíduos
no sentido da ideologia estatal. As formas econômicas racionais criadas no capitalismo
do início do século XX reprimem a animalidade natural do homem, desenvolvendo no
operário “atitudes maquinais e automáticas”, desvinculadas da participação ativa da
inteligência.
A teoria de Gramsci dirige-se para um futuro em que os operários podem
encontrar sua verdadeira liberdade, não aquela no sentido liberal, mas no sentido da
autonomia política, da liberdade política através da formação de uma vontade coletiva,
que tornasse o indivíduo livre através da própria ordem social. Não através do
mundanismo e da apatia diante do público, mas mediante o apego à glória na guerra
contra o capitalismo e a atividade política intensa, capaz de formar um consenso
mediante o qual a emancipação de fato pode ser alcançada através da autodeterminação
da massa através do partido político.
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