Ângela Maria Diniz Costa
Trauma e repetição – um fragmento clínico
Há uma duplicidade inscrita na repetição: nela há perda de gozo, e ela também
comemora um gozo que nos indica que a memória inconsciente é também ligada a
um gozo que a repetição tenta encontrar. O trabalho aborda através de um
fragmento clínico essa dupla vertente da repetição presentificada ao longo do
percurso de uma análise, em sua articulação ao sintoma.
> Palavras-chave: Psicanálise, trauma, repetição, inconsciente
pulsional > revista de psicanálise >
ano XIX, n. 186, junho/2006
artigos > p. 10-14
There is a duplicity inscribed in repetition, since repetition implies not only loss of
jouissance, but also a celebration of it that tells us that unconscious memory is also
related to a jouissance which repetition strives to encounter. Through a clinical
fragment, the article approaches the twofold aspect of repetition that occurs during
a psychoanalytic process, in articulation with the symptom.
> Key words: Psychoanalysis, trauma, repetition, the unconscious
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Freud, em 1920, situa o real do trauma como
a repetição incessante do impossível de representar pela linguagem. O trauma encontra-se, assim, no limite do discurso, inscrito
numa dupla face topológica: por um lado, o discurso faz uma íntima referência a ele e, por
outro, não deixa de evitá-lo a cada passo.
Partindo dessa concepção freudiana do trauma em relação ao discurso, Lacan vai situar o lugar do trauma em seu ensino. Em
1964, ao tratar dos conceitos fundamentais
da psicanálise, ele aborda o conceito de repetição articulando-o ao de inconsciente. “A
constituição do campo do inconsciente se
garante pelo w iederkehr ” (Lacan, 1964,
p. 50). A função do retorno (wiederkehr) é
fundamental, pois o retorno repetitivo dos
significantes, a maneira que a rede de significantes se entrecruza, aponta para o fato de
que a lógica dessa linguagem que estrutura o
inconsciente pode ser estabelecida e formalizada: esta rede simbólica é constituída de
uma maneira tal que escapa ao acaso (ibid.,
p. 48), que há uma lei que estabelece a sintaxe dessa rede simbólica; bem como podemos depreender dessa formalização a
emergência de um impossível.
Assim podemos dizer que a repetição ligada
artigos
loca-se ao longo da existência do sujeito.
O sujeito repete de forma tão inexorável
quanto desconhecida a maneira pela qual
ele responde àquilo que se inscreve como
traumático.
Podemos depreender o conceito de inconsciente ligado a um saber que o sujeito não
sabe e que ao mesmo tempo constitui-se um
tratamento que o discurso do inconsciente
realiza do real traumático, à medida que o
“... inconsciente assegura a passagem do real
traumático do gozo para o simbólico” (Soler).
Mas o que repete para o sujeito, seguindo
as vias traçadas pelo discurso no qual ele
está preso, é sempre o mesmo obstáculo,
justamente o que se impõe como traumático, que retorna como hiato entre o significante e o real; é a repetição articulada ao
real como aquilo que volta sempre ao mesmo lugar para o sujeito.
Essa insistência do inconsciente em retornar, buscando escrever isso que se inscreve
como algo que escapa ao Princípio do Prazer, sugere que a repetição articulada ao
“Mais além do princípio do prazer” funda-se
em um retorno do gozo e, portanto, há no
inconsciente essa dimensão de gozo. É o
gozo que necessita de repetição.
A repetição baseia-se numa duplicidade:
nela há perda de gozo, e ela comemora um
resto de gozo indicando que a memória inconsciente é também ligada a um gozo inesquecível que a repetição tenta encontrar.
Uma inscrição clínica desta dupla vertente
da repetição presentifica-se ao longo do percurso de uma análise, através do sintoma,
que como sabemos constitui-se numa formação inconsciente que se distingue por seu
caráter de durabilidade, de permanência.
Esta especificidade do sintoma sugere que,
para além de seu caráter simbólico, em sua
pulsional > revista de psicanálise >
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à insistência da cadeia significante nos diz
da repetição como “memória do inconsciente”, regida por uma lei que, por sua vez, diz
da lógica do significante.
No Seminário “A carta roubada”, (Lacan,
1955) encontro uma colocação de Lacan que
parece-me abrir a possibilidade de abordar a
outra vertente na qual se articula a repetição em seu entrelaçamento ao inconsciente: “... este formalismo ligado à cadeia
simbólica, cuja lei pode ser formulada (...) é
um exercício que inscreve o tipo de contorno, onde o que chamamos de caput
mortuum do significante assume seu aspecto causal” (ibid., p. 6). O que é recusado, o
que resta da cadeia significante, o caput
mortuum do significante, volta a passar pelo
interior, para se constituir como causa.
Essa passagem remete-nos à conceituação
do objeto a na dimensão de causa, bem como
é uma referência à pulsão. “O que Freud soletra das pulsões mostra o movimento circular do impulso que sai da borda erógena, para
a ela retornar como sendo seu alvo, depois
de ter feito o contorno de algo que chamo de
objeto a” (Lacan, 1964, p. 183). O objeto a
que “surge na função de causa é perfeitamente sensível nas formulações de Freud
naquilo que concerne à pulsão” (ibid., 1962).
A pulsão devolve-nos à conceituação do inconsciente como realidade sexual, bem como
é através do conceito de pulsão que a psicanálise formalizou os meios de produção de
gozo, que no Seminário XI é articulado à
montagem pulsional. Podemos então concluir que o inconsciente também se articula
ao gozo.
O discurso inconsciente evidencia como
o significante cava os caminhos pelos quais
o sujeito insiste em retornar, e dessa insistência extrai-se o modo como o trauma des-
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dimensão decifrável, ele indica uma dimensão real, ao ser situado como uma maneira
de gozo, atendendo a uma satisfação impossível de ser dita, e é por esse viés que a repetição pode ser estabelecida.
Desde as elaborações freudianas, o sintoma
em sua articulação ao fantasma constitui
uma resposta, uma maneira de tratar o trauma, e paradoxalmente o sintoma pode apresentar-se como uma manifestação
inconsciente traumática, tanto na demanda
quanto no percurso de uma análise.
Quando esse arranjo já encontrado pelo sujeito traz-lhe uma dimensão de sofrimento e
ele ignora as razões que o fazem sofrer, ele
pode formular uma demanda de análise,
momento no qual o sujeito atribui ao analista um saber, e essa suposição faz o sujeito
se reconhecer como portador de um saber
que o Outro pode permitir-lhe libertar.
O inconsciente “não é perder a memória, mas
sim não se lembrar do que sabe” (Lacan,
1967, p. 334). Mas também, no percurso de
uma análise, o sujeito tem muita dificuldade em abandonar, ou mesmo seguir um outro caminho diferente daquele do qual ele se
queixa. No que concerne ao sujeito, seu posicionamento diante de sua queixa já nos aponta que, se por um lado o sujeito se queixa,
é porque ele não se contenta com seu estado; mas, por outro lado, constatamos que o
sujeito se detém diante de uma possibilidade de mudança. Então devemos concluir que
ele prefere seu mal? Qual a direção ética possível ao psicanalista diante dessa escolha? Essas são questões que nos remetem para “o
que na vida pode preferir a morte” (ibid.,
1964, p. 174).
O analisante lamenta-se de algo que se repete e que o afeta, mas do que ele – por
mais que almeje isso – não consegue se livrar. O analisando surge, então, como aquele que parece não querer o que deseja, como
aquele que trabalha contra si mesmo. Assim,
o paradoxal dessa situação nos diz que algo
aí é satisfeito. Essa satisfação sustentada e
suportada no sintoma revela-nos que os
sintomas inscrevem um modo de gozo em
função de sua articulação ao fantasma.
Essas incidências clínicas, tanto no início
quanto no percurso de uma análise, não nos
dizem das emergências traumáticas do inconsciente?
M. chega à análise por querer se livrar de algo
que lhe é atormentador – tem com freqüência uma sensação de desfalecimento que
experimenta de formas variadas: às vezes
desmaia – “onde tudo se apaga”; e com freqüência tem um apagamento das “idéias ao
tentar dizer” algo – apresenta uma gagueira.
Estas versões sintomáticas significam para
esse sujeito que ele está fraudando um lugar que não é o seu.
Embora hoje tenha uma vida que poderia dizer “ser de êxito” – é bem conceituada profissionalmente, tem uma boa relação afetiva
com o marido e com os filhos –, é como se não
pudesse e não soubesse usufruir desse êxito.
Através de “ataques de agressividade” no
âmbito familiar e afetivo, e de suas inibições
em relação ao trabalho, “desconstrói” o que aprecia ter construído, reafirmando que o lugar
que lhe cabe é o “da menina coitada que sem
pai e com uma mãe louca vai dar em nada”.
A loucura da mãe é referida como uma mulher em excesso: desde a maneira de se vestir e de se maquiar, até a desmesura com a
bebida e as baixarias com seus amantes.
Essa “mulher em excesso” é associada ao
fato de ter-lhe sido muito pesado e exigente o esforço para “ser pai e mãe”.
artigos
mático, repetido em diversas vicissitudes de
sua existência: não podendo estar num lugar outro que não o de “ser nada”, pois é
“estragada” desde a origem: “É filha de um pai
transgressor”. Seu pai, quando ainda era solteiro, cometeu um crime – assassinou uma
pessoa – e, anos depois, quando M. tinha
cinco anos, foi assassinado por vingança a
esse crime cometido por ele, quando estava
em cumprimento de liberdade condicional.
É ao redor deste acontecimento traumático
que M. detém-se, fazendo perdurar seus
efeitos, numa repetição da estratégia de
existência – quem já nasceu com essa marca só pode ter um destino de fracasso, logo
não sabe lidar com aquilo que a vida lhe
aponta numa direção diferente daquela para
a qual está destinada.
É possível reescrever esta história sem que
a inscrição dessa origem que não cessa de se
inscrever possa pelo menos permanecer
“adormecida”? “Tive um passado. Estivesse
ainda adormecido. Mas eu preciso de vida”. Esses versos são entregues ao analista numa sessão, em que o sujeito diz que “não dá para ficar
voltando mais...”, é preciso que algo se perca.
Neste ponto o analista intervém, dizendo:
“alguma coisa se perdeu mesmo”. A intervenção visa este ponto de gozo do sintoma,
que se articula ao fantasma e que através
da repetição manifesta-se na neurose de
destino, na qual a escolha do sujeito está
implicada, sem que ele o saiba.
M. tinha cinco anos, quando foi acordada
com o barulho de muitas vozes, e escutou
alguém dizer que o pai havia sido assassinado ali próximo à casa onde residiam.
Do velório do pai, tem uma lembrança inesquecível: do “pai morto com a cabeça enfaixada”. A lembrança do pai morto trouxe-lhe
uma questão referida à frase materna, de
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M. já se colocou “também em excessos” por
um longo tempo em sua vida: teve uma vida
sexual bastante desregrada e fez um uso
abusivo de drogas “pesadas”.
Também já respondeu “à falta do pai”, como
aquele que poderia estabelecer um princípio
organizador, em uma cumplicidade com a
mãe pelos excessos e, atualmente, colocase em subtração, como menos.
Esse tempo que nomeia como de “excessos”
foi interrompido bruscamente em função de
sua mãe ter sido acometida por um acidente vascular cerebral, o que engendra na filha um sentimento de culpabilidade por ter
desejado sua morte.
Faz-se interessante notar que este acontecimento – a doença da mãe – só adquire
uma importância decisiva para M. quando
esta elaboração vai se estabelecendo no
transcurso de sua análise, à medida que ela,
em suas elaborações, sente-se concernida
neste encontro contingencial, como algo
que lhe produziu efeitos que, até então, ela
mesma não sabia.
Este acontecimento requeria uma significação de um encontro com a castração materna e com a falta do outro, pois a mãe que era
“pai e mãe”, agora doente, não garantia
(mesmo que de maneira precária) que a ausência paterna pudesse ser de alguma maneira recoberta.
Assim, os sintomas de M. apontam a maneira como ela interpreta esta falta no Outro,
tomando-a como castração sobre si.
A função dos seus sintomas desloca-se para
uma outra vertente que tem valor de memória do pai, quando é articulada a um acontecimento traumático bastante precoce em
sua vida, e que surge num tempo posterior
em sua análise. Este acontecimento traumático estabelece uma correlação a algo fantas-
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que se exige muito esforço para ser pai e
mãe. “Como pode alguém estar no lugar de
um morto, um falecido?”
Questão endereçada ao Outro e que retorna
desdobrando para este sujeito que seus sintomas não somente têm valor de memória
do pai como também apontam o valor de
gozo articulado à sua posição fantasmática
– ser estragada, pobre coitada que daria em
nada na vida, que é referida à frase ouvida
a respeito da morte do pai: “Esmagaram sua
cabeça numa pedra, porque só com um tiro
ele não morreria”.
O movimento atual da análise de M. é marcado por elaborações de como sua posição
subjetiva, ao longo dos avatares de sua existência, é dedicada a repetir os efeitos de um
trauma, de uma maneira até então desconhecida. Ao longo dessas elaborações, M.
tem um sonho que nos aponta como o trabalho analítico, ao possibilitar ao sujeito
reencontrar e elaborar as circunstâncias nas
quais há busca do gozo como repetição, revela-lhe que essa mesma repetição produz
algo que é defeito, fracasso.
Trata-se de um sonho “vivo e alegre”. Estava grávida e sentia o movimento do bebê em
seu corpo. Surge uma mulher que lhe pede
um termômetro. Ao passar o termômetro a
essa mulher, ele cai e estatela, fazendo barulho. Numa passagem seguinte, aparece seu
marido, e lhe vem uma questão: como pode
estar grávida se ele é vasectomizado?
A primeira associação que M. faz refere-se
ao tempo de sua adolescência, qualificado
como “aquele tempo de excessos”, quando
ela fez dois abortos e que num deles quase
morreu por causa de um processo hemorrágico. Trata-se do caminho que percorria
como já tendo sido “destinada”, em função
das marcas de sua história.
Este termômetro foi quebrado, agora o barulho não é só referente ao que ouviu sobre a
morte do pai... Agora se trata de querer fazer diferente apesar desta história. Por muito tempo, posicionou-se como devedora do
marido, como tendo sido salva por ele. Sempre coloca o termômetro do lado do Outro:
hora em sua origem, hora no marido, pois
esse encontro, o casamento, de fato mudou
o percurso de sua vida.
Ele aparece vasectomizado... A falta é demarcada no campo do Outro. Esta constatação possibilita a M. avançar na elaboração
de que, ao colocar o termômetro no lado Outro, ela é uma desfalecida. “E minha presença não conta?” – ela pergunta, pergunta-se.
Referências
FREUD, Sigmund. (1915). As pulsões e suas vicissitudes. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio
de Janeiro: Imago, 1972-1976. v. XIV.
_____ (1920). Mais além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972-1976. v. XVIII.
LACAN, Jacques (1955). O seminário sobre “A carta roubada, 1998.
Lacan, Jacques (1962). O seminário. Livro X. A
angústia. Lição de 12/6/63, inédito, 1963.
_____ (1964). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
_____ (1967). O engano do sujeito suposto
saber, 2003.
SOLER, Colette. Discurso e trauma. Retorno do
Exílio. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2004.
Artigo recebido em novembro de 2005
Aprovado para publicação em abril de 2006
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