Ciê ncia e Saberes: Tecnologias Convencionais e Agroecologia
Costa Neto, Canrobert1
Resumo:
Este artigo propõ e-se a discutir a relação entre paradigmas científicos, abordando as noçõ es
de disciplinaridade e interdisciplinaridade. Ao longo do trabalho, vamos abordar temas que
se referem tanto ao campo disciplinar do conhecimento científico, quanto à á rea de
conhecimento interdisciplinar, tais como as questõ es relativas à suposta neutralidade
científica e ao emprego da té cnica e dos saberes. Para contextualizar a discussão em torno
da ciência e seus modelos, exemplificaremos com o debate acerca da confrontação
paradigmá tica entre as tecnologias agrícolas convencionais, notadamente a biotecnologia
transgênica, e a agroecologia e as manifestaçõ es tecnológicas alternativas, levando em conta
as estruturas fundiá rias correspondentes.
CIÊ NCIA E PARADIGMAS
A noção de paradigma é normalmente utilizada para estabelecer uma diferenciação entre
dois momentos ou dois níveis do processo de conhecimento científico (Kuhn, 1989; Capra,
1982). Para um entendimento mínimo do que significa essa noção, pode-se conceituar o
paradigma enquanto um modelo de ciência que serve como referência para todo um fazer
científico durante uma determinada é poca ou um período de tempo demarcado. A partir de
um certo momento da história da ciência, o referido modelo predominante tende a se
esgotar em função de uma crise de confiabilidade nas bases estruturantes de seu
conhecimento. Então, o paradigma passa a ser substituído por outro modelo científico
predominante. També m pode ocorrer o fato de dois paradigmas disputarem o espaço de
hegemonia da construção do conhecimento, do fazer científico.
1
Professor Doutor do Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro.
O paradigma precedente pode passar a viver uma crise de credibilidade científica,
enquanto o modelo paradigmá tico emergente ainda não chega a ser aceito pela comunidade
científica internacional. Assim sendo, dois grandes paradigmas científicos podem conviver,
em disputa ou equilíbrio, durante largos períodos da história da ciência e das sociedades.
O PARADIGMA CIENTÍFICO “TRADICIONAL” DISCIPLINAR
É o que hoje ocorre com o paradigma científico “tradicional”, aquele que já foi
construído há vá rios sé culos e que vem se preservando ao longo do tempo e com o “novo”
paradigma oriundo das transformaçõ es que vem atravessando o processo histórico de
conhecimento científico das sociedades e da natureza. O grande modelo “tradicional” de
ciência revela algumas características que o tem feito constituir-se em paradigma. Uma
destas características seria a noção de uma ciência neutra. Outra característica seria a de que
toda ciência, alé m de neutra, pressupõ e a construção de um saber superior em relação a tudo
que não corresponde a este modelo de ciência e a tudo que não é conhecimento formalizado
e estruturado.
Em síntese, o paradigma científico “tradicional”, alé m de pretender uma ciência de
cará ter neutro, inclusive socialmente neutro, é pensado em termos de produção do saber
superior da ciência em relação a todo tipo de conhecimento que não passa pela
formalização científica. Seria como se, pelo paradigma científico “tradicional”, o
conhecimento tivesse que ser basicamente o conhecimento té cnico-científico-acadêmico.
Nestes casos, as grades curriculares das universidades seriam pensadas em termos de
proporcionar o má ximo de informaçõ es té cnicas possíveis para aplicaçõ es prá ticas. Isso é
coerente com o princípio da neutralidade, porque se a ciência for neutra, neutra no sentido
de servir a toda a sociedade, indiscriminadamente - servir a classe dominante, aos
trabalhadores, aos setores socialmente excluídos, aos camponeses, enfim, se essa ciência
transmitir um conhecimento neutro, então esse conhecimento pode ser utilizado, via
mercado, pelas empresas, acriticamente, sem nenhum tipo de constrangimento é tico.
Pensar assim é també m fazer um raciocínio que pode ser considerado disciplinar.
Essa é uma outra característica fundamental da ciência “tradicional”. Ela é uma ciência
disciplinar. Por que? Porque també m se constitui a partir de formalizaçõ es teóricas
conceituais. As noçõ es de espaço e tempo, de causa e efeito, de princípios e de continuidade
possuem uma constituição, limites, “amarraçõ es” em torno de determinadas á reas do
conhecimento nas ciências naturais e nas ciências té cnicas (Moreira, 1994). Estes modelos
científicos possuem um corpo, uma formação disciplinar, muito desenvolvidos e têm uma
aplicação deste desenvolvimento constituída ao longo do tempo.
Supor uma ciência disciplinar “tradicional”, com base em conhecimento que pode
ser transmitido de forma neutra, que chega à sociedade e que pode abranger todas as
camadas sociais indiscriminadamente, significa conceber o conhecimento té cnico a partir da
noção de que a ciência constitui-se em um saber superior. Superior em relação a tudo que
não é preparado, que não é transmitido disciplinarmente pelas diversas á reas do
conhecimento científico.
Em resumo, esse é o perfil do paradigma científico “tradicional”, pelo qual
geralmente nos habituamos a tratar a noção da ciência, a ver a ciência de uma determinada
maneira a ciência disciplinar “tradicional” com as características mencionadas.
O PARADIGMA INTERDISCIPLINAR
Tratemos de analisar agora o outro paradigma. Nos referimos ao paradigma que vem
disputando espaço no campo do conhecimento e que representa, grosso modo, o oposto do
corolá rio constitutivo da ciência “tradicional”, pois introduz, como veremos, alguns
elementos diferenciados no cená rio da discussão científica contemporâ nea. O principal
elemento de diferenciação entre os paradigmas em questão é a introdução da noção de não
disciplinaridade ou de supradisciplinaridade ou ainda, como podemos verificar em textos
relacionados ao tema, a chamada inter(trans)disciplinaridade (Morin, 1999; Brüseke, 1998)
A interdisciplinaridade seria, em termos bem gerais, uma abordagem científica que
leva em conta aspectos não apenas disciplinares. Por exemplo, um currículo acadêmico que
corresponda à interdisciplinaridade deve englobar á reas do conhecimento não estritamente
relacionadas a aspectos té cnico-científicos, mas que remetam a questionamentos e críticas
quanto a própria tecnificação científica do conhecimento, a partir do campo histórico-social.
A interdisciplinaridade teria o cará ter de redimensionar o objeto da disciplina
científica a partir de enfoques multifacetá rios. Assim, a té cnica permaneceria sendo parte
integrante da reflexão científica, mas estaria contrabalançada pela formação sócio-culturalhistórica que conduziria, dentre outras conseqüências, a um resultado em particular: o
rompimento com a noção de um saber superior dissociado dos valores culturais e da própria
influência do senso comum.
A noção de interdisciplinaridade admite que o saber produzido fora dos câ nones
científicos “tradicionais” é um saber para alé m da té cnica. O conteúdo interdisciplinar
tenderia a proporcionar, portanto, uma possibilidade de flexibilização da idé ia de saber
superior, admitindo que o saber socialmente praticado, ainda que contingenciado por
intervençõ es té cnicas, em nível de produção científica, corresponde a formas efetivas de
conhecimento.
Neste sentido, o público alvo do profissional cientista pesquisador, na perspectiva
do “novo” paradigma interdisciplinar, teria muito a oferecer ao conhecimento científico no
que diz respeito a uma extrapolação do conhecimento té cnico. Então essa abertura no
sentido de interaçõ es entre os campos profissionais, com reflexos até mesmo nos mercados
de trabalho, é que faz do paradigma interdisciplinar algo que se caracteriza por
diferenciaçõ es em relação à abordagem disciplinar clá ssica “tradicional”. Assim sendo, a
noção de saber superior pode ficar diluída a partir de uma prá tica de pesquisa que ponha em
contato o cientista e seu público alvo.
Uma abordagem não estritamente té cnica implica levar em consideração a que tipo
de público o pesquisador cientista se dirige. Se é um público alvo mais localizado no setor
de renda maior ou é um público colocado, por exemplo, em á reas socialmente perifé ricas.
Dependendo do tipo de público alvo é possível estabelecer um referencial té cnico-científico
diferenciado. Exemplificando, para que se possa reconhecer alé m da condição sócioeconômica de uma determinada comunidade pesquisada seria necessá rio també m montar
um quadro teórico, um referencial da formação histórico-social, sócio-cultural do segmento
em questão.
A partir destes referenciais teóricos, seria possível interagir com o público visando
construir as bases de conhecimento pretendidas. O referido trajeto metodológico é o mais
apropriado ao paradigma interdisciplinar. Do ponto de vista do paradigma “tradicional”
disciplinar, os objetivos seriam té cnicos e a interação sócio-histórico-cultural de cará ter
crítico poderia ser metodologicamente dispensada.
BIOTECNOLOGIA
TRANSGÊ NICA
E
AGROECOLOGIA:
CONFLITO
PARADIGMÁTICO NA AGRICULTURA
Conduzindo a questão para um campo de exemplificação mais concreta, podemos
mencionar a disputa paradigmá tica ora em curso na agricultura, em geral, e nas chamadas
ciências agrá rias, em particular. Trata-se do embate entre biotecnologia e agroecologia. A
indústria biotecnológica vem promovendo recentemente as modalidades de sementes
transgênicas (The Ecologist, 1998) que influenciam no incremento da produtividade
agrícola.
Por tudo que discutimos até aqui neste artigo, podemos afirmar que a biotecnologia
transgênica baseia-se na concepção de um conhecimento té cnico e neutro, científica e
socialmente, situando-se nos limites do paradigma científico “tradicional” disciplinar. Mas
porque aceitar que a biotecnologia transgênica assume características de tecnicidade e
neutralidade? Os “transgênicos” possibilitam uma maior produtividade agrícola, mas essa
produção não é qualitativa. O que é produzido a mais não se destina a minimizar ou
eliminar o problema da fome no mundo. Vai permitir acumulação e lucro para os setores
privados que tratam de utilizar o conhecimento biológico transgênico na produção agrícola
no mundo inteiro. Isso poderia ser considerado um fato absolutamente normal sob o ponto
de vista disciplinar, científico, da neutralidade, do saber superior, do conhecimento té cnicocientífico transmitido de uma forma socialmente acrítica.
Poré m, da perspectiva do paradigma agroecológico, que abarca as tecnologias
alternativas na agricultura entre elas as té cnicas da agricultura orgâ nica com base na
diversidade da produção agrícola e desenvolvidas em pequena escala de produção, a opção
pela monocultura agrícola, em larga escala de produção e com base na biotecnologia
transgênica, é refutada. E é negada a partir de uma crítica científico-biológica que se dirige
ao espírito de neutralidade da ciência. Isto é , de como é possível desenvolver uma
tecnologia e não controlar os resultados da mesma.
No caso da biotecnologia transgênica, ela pode estar gerando problemas futuros para
quem vier a se alimentar de tais produtos, como a soja transgênica. Por outro lado, as
tecnologias “alternativas”, dentre elas as chamadas “orgâ nicas”, que não incorporam
transgênicos ou agrotóxicos, visam a obtenção de uma produção mais sadia. Alé m disso, e
ao contrá rio do que se divulga com freqüência, as tecnologias alternativas també m estão
voltadas para a ampliação da produtividade.
O núcleo, por excelência, da produção tecnológica alternativa é a agricultura
familiar. No Brasil, mais especificamente, esta tecnologia está sendo introduzida não
somente em á reas de cultivo de agricultura familiar em geral, mas especificamente em
assentamentos rurais (Costa Neto, 1999). Percebe-se, dessa forma, tratar-se de um tipo de
produção que tende a incorporar a dimensão histórico-social e a considerar os valores
culturais e de senso comum inerentes aos agricultores familiares.
O paradigma agroecológico representa, portanto, a linha de um posicionamento
sócio-ambiental. A agroecologia é tecnológica, mas també m é alternativa. Alternativa a
que? É alternativa à produção agrícola em grande escala e ao modelo “tradicional”
disciplinar.
Por outro lado, é facilmente constatá vel que o paradigma interdisciplinar
agroecológico ainda não encontra muito espaço nos currículos universitá rios, seja em
graduação ou pós graduação, pelo menos nas universidades brasileiras. Isto ocorre em
grande medida porque os campos disciplinares que tratam da questão tecnológica na
agricultura, basicamente algumas á reas té cnicas da agronomia e da biologia, estão
fortemente estruturados, na maioria dos currículos dos cursos, em torno dos padrõ es
disciplinares do paradigma tradicional.
Tanto a agroecologia, como campo de investigação teórico-científica, como as
tecnologias alternativas, enquanto prá ticas agrícolas localizadas, não vêm conseguindo se
impor nessa disputa paradigmá tica. É importante destacar que as disciplinas científicas e as
respectivas pesquisas laboratoriais em universidades e empresas, em torno da agronomia e
da biologia, que tratam dos transgênicos, ainda não conseguiram demonstrar se a
biotecnologia transgênica causa ou não causa danos à saúde humana e ao ambiente ou se
podem ocorrer efeitos colaterais, prejudiciais ao homem, a partir da ingestão de produtos de
origem transgênica. Nada disso, poré m, impede que a soja transgênica seja produzida e
comercializada livremente em muitas partes do mundo. Portanto, em relação aos
transgênicos, até mesmo do ponto de vista té cnico-disciplinar, continua existindo um vazio
de conhecimento em torno do tema.
CONCLUSÃO
No caso dos paradigmas científicos em questão, ambos procuram justificar sua
validade na disputa atual. Talvez a principal diferença na forma da justificativa da
cientificidade de cada argumentação resida no fato de que o paradigma biotecnológico, pelo
menos no que se refere aos transgênicos, baseia todo seu arcabouço explicativo numa
argumentação té cnica. Por outro lado, o paradigma agroecológico busca afirmar-se para
alé m da té cnica, recorrendo a elementos sócio-histórico-culturais que embasem suas
argumentaçõ es científicas.
De qualquer forma o que pretendemos, neste artigo, é acima de tudo destacar que as
contendas paradigmá ticas contemporâ neas revelam questionamentos, no interior de
processos de geração de conhecimento científico, que colocam em cheque a suposta
superioridade de um determinado tipo de saber em função de seu aspecto essencialmente
té cnico. A crítica social humanística da té cnica vem, portanto, se constituindo, no interior
de diversos campos consagradamente científicos, na mais nítida forma de identificação das
disputas paradigmá ticas atualmente em curso.
BIBLIOGRAFIA
Brüseke, Franz. A crítica da té cnica moderna. Revista Estudos Sociedade e Agricultura, n.
10, Abril, 1998, p. 5-55.
Capra, Fritjof. O ponto de mutaç ão São Paulo, Cultrix, 1982.
Costa Neto, Canrobert. Agricultura sustentá vel, tecnologias e sociedade. IN: Carvalho
Costa, L.F. e outros (org.) Mundo Rural e Tempo Presente Rio de Janeiro, Mauad, 1999.
p. 299-321
Kuhn, Thomas. A estrutura das revoluç ões científicas São Paulo, Perspectiva, 1989.
Moreira, Roberto José . Sociedade e universidade: cinco teses equivocadas. Revista Estudos
Sociedade e Agricultura, n.3, Novembro 1994. p.124-134.
Morin, Edgar. Ciência com Consciência Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999
The Ecologist, vol 28, n.5, Setembro/Outubro, 1998.
Download

Ciê ncia e Saberes: Tecnologias Convencionais e