2008/05/09
A AMEAÇA CINZENTA (II PARTE )[1]
José Vegar[2]
O encaixe das rodas dentadas como modelo de
investigação de segurança do terrorismo “Jihadista”
Limitadas pela realidade que expusemos, as entidades
portuguesas de investigação de segurança estão impedidas
de empregar com total eficácia, no combate ao terrorismo
Jihadista, o modelo de trabalho[3] em vigor na maioria dos
Estados Ocidentais, que é o de “detectar e perseguir os
sinais para conseguir encaixar todas as rodas dentadas do
mecanismo”[4].
Por outras palavras, a prática adoptada é a de investigar até
que uma roda dentada, o propósito de uma acção suspeita
de um muçulmano, encaixe na outra, o propósito da acção
anterior ou posterior do mesmo muçulmano, ou de outros
muçulmanos, também vigiados, ou que o passem a ser.
O modelo assenta no princípio de que qualquer
comportamento de um muçulmano, de origem étnica árabe
ou europeia, de nacionalidade ocidental ou não, que indicie
– que seja o sinal - a ligação a uma acção directa ou indirecta de terrorismo, em qualquer lado do
mundo, deve ser acompanhado.
Assim, o modelo de trabalho compreende a investigação de um conjunto de actos praticados por
indivíduos, em vários locais do mundo, com graus de visibilidade díspares, que num determinado
momento poderão estabelecer uma ou mais conexões, servindo o objectivo de contribuírem para a
execução de um acto terrorista.
Isto porque, consideram os investigadores, a partir da experiência adquirida, o planeamento directo
de um atentado é apenas uma componente da manifestação de actividade terrorista Jihadista. O
roubo ou falsificação de documentos de identificação também pode ser, se estes se destinarem a
terroristas que necessitam deles em Roma. Como a doutrinação feita numa mesquita clandestina
de Portimão[5] pode servir para recrutar marroquinos que irão executar um atentado em Bruxelas.
Como também a “clonagem” de um cartão de crédito no Porto[6] pode destinar –se ao financiamento
da compra de uma arma em Sevilha.
Os actos prioritários da investigação são os “crimes instrumentais”, isto é aqueles que servem
directamente alguns dos interesses operacionais dos terroristas: compra ilegal ou roubo de armas
e explosivos, roubo e falsificação de documentos de identificação, cartões de telemóvel e cartões de
crédito, imigração ilegal, tráfico de pessoas.
Depois, estão uma série de operações essenciais para a formação de uma célula ou a
concretização de um atentado, abrangendo a criação de locais de culto religioso de acesso
seleccionado, a difusão de propaganda ou ideais extremistas, o recrutamento de iniciados, o
financiamento das actividades e as comunicações, por internet ou por redes de comunicação de voz,
imagem e dados.
Em relação aos crimes instrumentais, o propósito máximo dos investigadores está não só em
detectar um acto do tipo referido – por exemplo, a aquisição de um número de passaportes
roubados ou falsos – , descobrindo que este indica a preparação atempada de um acto terrorista, e
não somente o desenvolvimento de uma actividade criminosa, como em identificar os agentes da
oferta, isto é os criminosos que possam fornecer meios essenciais aos elementos de uma célula
terrorista, em formação ou já definida.
Em relação às operações essenciais, o mais importante é sempre a pesquisa das fontes do
financiamento e dos canais da sua distribuição.
Deste modo, o esforço das autoridades concentra-se na monitorização do circuito do dinheiro que
financia o terrorismo islâmico, que se concretiza por vias bastante complexas.
Nesta matéria, o desvio programado de verbas de organizações de caridade islâmica, a criação de
empresas fictícias, e a canalização de quantias provenientes do crime, são as principais fontes. Os
canais de distribuição assentam em sistemas alternativos internacionais de envio de dinheiro,
legais ou não, na “invenção” de documentação proveniente de actividade comercial fictícia, no
sistema financeiro ocidental, e no uso de correios humanos. Os mecanismos usados são múltiplos,
e vão da sobre facturação comercial ao tradicional branqueamento, usando paraísos “off—shore”[7].
No campo das comunicações, é convicção assente de que o ciberespaço é um terreno de eleição
para os terroristas, dado a confidencialidade, alcance e rapidez que garante aos contactos, feitos
com múltiplas intenções.
Uma linha de trabalho que tem sido desenvolvida com grande intensidade é a da descoberta e
vigilância de “sites” “blogues” e “chats”, já que os serviços chegaram à conclusão de que, por um
lado, estes têm sido fundamentais na divulgação dos ideais da “jihad” e na captação de novos fiéis,
e que, por outro lado, são criados, ou geridos, por elementos importantes da comunidade radical,
por vezes conhecidos apenas de um pequeno grupo de iniciados ou com um perfil discreto[8].
A difusão de ideais e o recrutamento de militantes é a última zona prioritária dos serviços. Neste
universo, as autoridades seguem com especial atenção as mesquitas ou locais de culto informais
de dimensão reduzida, e todos os actos que possam indicar uma adopção de um ideário radical, ou
a exibição de atitudes extremistas por parte de um muçulmano. O facto de os atentados de Madrid e
Londres, bem como do abortado em Londres, em Agosto de 2006, terem sido protagonizados por
elementos da comunidade muçulmana residente no Ocidente, faz com que esta componente da
investigação receba cada vez mais preponderância.
O modelo de pesquisa e análise do terrorismo jihadista incide sobre três tipos de alvos.
O primeiro é formado por muçulmanos nascidos ou residentes no Ocidente, mas que, por vários
motivos, que vão da prática de crimes a vazios existencialistas, não se sentem integrados nas
respectivas sociedades.
O segundo é composto por muçulmanos “volantes”, normalmente imigrantes ilegais oriundos de
países do Médio – Oriente, do Magrebe e da Ásia. Segundo os dados coligidos pelos vários serviços
ocidentais, uma célula terrorista pode surgir do nada em qualquer país, levantada por elementos
que emigram de um momento para o outro, totalmente desconhecidos, consequentemente, não
referenciados, ou por outros sem um passado de acção terrorista, e que, habitualmente,
permanecem num “submundo” situado entre o trabalho precário, a ilegalidade e a criminalidade.
Estes muçulmanos podem desencadear uma acção por iniciativa própria, ou podem ser
contactados por um terrorista residente em outro país, que considera que eles estão no sítio certo,
no momento certo.
O terceiro tipo de alvos integra os adormecidos[9], os “sleepers” inventados pelo KGB. São
elementos perfeitamente integrados nas comunidades onde residem, por vezes há décadas, cultos,
muitos são quadros superiores, extremamente discretos, por vezes nem frequentam mesquitas ou
locais de encontro da comunidade, e que não manifestam qualquer sinal de intolerância ou de
advogarem os princípios da “Jihad”. No entanto, referem insistentemente os relatórios, um dia
recebem uma indicação, e fornecem todo o apoio ou organizam eles mesmo um atentado. Quando,
retrospectivamente, os serviços investigam o passado destes homens, descobrem sempre um sinal
que é óbvio. Ou tiveram um familiar que cometeu um atentado suicida, ou frequentaram uma escola
fundamentalista, ou tiveram um pequeno deslize.
Por último, o que funciona, cada vez mais, pela primeira vez na história das entidades de segurança,
é a cooperação intensa, efectiva e permanente. Portugal, por exemplo, tem beneficiado
consideravelmente das informações dos seus pares, especialmente dos existentes nos países
norte-africanos. Também a União Europeia, através da Europol, tem já a máquina bem oleada e
alimentada, fazendo o recorte e análise da informação que recebe dos países membros, e enviandoa depois sem restrições para os destinatários a que esta interessa, Portugal incluído.
A dimensão visível da ameaça em Portugal
A frente portuguesa da “guerra longa”[10]contra o terrorismo jihadista foi activada em resposta à
acção de Eddin Barakata Yarkas, também conhecido por Abou Dahda, espanhol de origem síria,
vigiado pelas autoridades do seu país, devido à suspeição de que pertencia a organizações
“jihadistas”.
Logo após o atentado do 11 de Setembro de 2001, os EUA, numa atitude inédita, começaram a
libertar muita da informação disponível sobre organizações jihadistas, especialmente sobre a Al
Qaeda.
Yarkas estava referenciado como o contacto de topo da organização em Espanha. Os serviços de
informações espanhóis juntaram esta informação à que tinha sido armazenada em anos anteriores,
e apertaram a malha de vigilância. Logo em Novembro de 2001, Yarkas foi preso, juntamente com
outros seis muçulmanos, também acusados de cooperarem com a rede global inspirada por Bin
Laden.
Pouco tempo depois, foi a vez de os espanhóis começarem a soltar informação. Uma das fontes
primordiais de recolha de dados tinha sido as chamadas telefónicas de Yarkas, registadas nos
seus vários cartões de telemóvel, e uma preciosa agenda de contactos, que foi recuperada intacta. A
partir dos registos telefónicos e da lista de números da agenda, foi possível reconstituir o
organigrama, ou parte dele, da célula, ou células, a operar em Espanha, no Sul da Europa e no Norte
de África.
A fatia de informação libertada para Portugal, entregue ao SIS e à DCCB foi ao mesmo tempo
tranquilizante e preocupante. Yarkas nunca tinha falado para Portugal. Mas tinha em sua posse
vários números de telemóvel de norte-africanos fixados em Portugal, especialmente marroquinos e
argelinos, quase todos eles residentes na grande Lisboa[11].
A partir desta informação, a que juntaram alguma existente, os investigadores do SIS, do SEF e da
DCCB iniciaram, separadamente, os primeiros trabalhos no terreno.
Em 2002, foram aprofundadas as investigações, que ainda hoje prosseguem, sobre as redes de
magrebinos, egípcios e paquistaneses que vivem ilegalmente em Portugal. A visibilidade pública
deste trabalho investigativo foi a detenção, em Março de 2003, numa operação conjunta entre o SIS e
o SEF, realizada em Lisboa[12] e na Quarteira[13] de parte de uma rede de argelinos, constituída por
13 indivíduos, que se dedicava, entre outras actividades criminosas, à falsificação e utilização de
documentos falsos, especialmente passaportes, bilhetes de identidade e cartões de crédito, e da
qual, alguns dos membros, nomeadamente os que davam pelos nomes de Oulhaj e Sassi, tinham
já um longo passado de ligação a grupos jihadistas em toda a Europa, e estavam referenciados
pelas autoridades inglesas e alemãs[14].
Do trabalho de investigação sobre parte da rede identificada pelo SIS e SEF, prosseguido
criminalmente pela DCCB, resultou a detenção, mais tarde, e depois a condenação, em 2004, do
cidadão argelino Sofiane Laib, de 25 anos, a três anos e meio de prisão, por falsificação e utilização
de documentos falsos.
Não foi provada qualquer das acusações de terrorismo. No entanto, o que mostram claramente os
ficheiros deste processo elaborados pelo SIS e pela DCCB, alimentados também por informações
resultantes da colaboração das autoridades inglesa e alemã, é que Laib tinha residido em
Hamburgo entre 1998 e 2001, tendo privado com Atta e outros magrebinos envolvidos na preparação
e execução do atentado de 11 de Setembro de 2001[15].
Laib e Atta viveram juntos em Hamburgo, num apartamento arrendado por Atta, entre 1998 e 2000,
onde durante esse período habitaram mais 29 muçulmanos. Aliás, os ficheiros indicam que Laib
conhecia e tinha uma relação próxima com um dos muçulmanos que privou intimamente com Atta, o
tunisino Ben Yamin Issak. Nos anos seguintes, Laib e Issak mantiveram a relação, inclusivamente
em Lisboa, onde o tunisino residiu em várias alturas[16].
Em Janeiro de 2003, Issak, tendo consigo um documento de identidade português falso, foi preso na
casa de outro argelino, em Londres, juntamente com mais 25 muçulmanos, em outros pontos do
Reino Unido, acusados de conspiração terrorista. Mais tarde, durante os interrogatórios, o próprio
Issak confirmou que, depois de Hamburgo, tinha voltado a ter contactos com Laib, em vários países
europeus. Aos ingleses, Issak confessou ter mantido uma relação com Mohameed Atta.
Laib, por sua vez, nos dias anteriores à sua detenção em Lisboa, tinha feito telefonemas para o
Reino Unido, para França, para Hamburgo e para o Líbano. As investigações encetadas pelas
entidades portuguesas em 2002 sobre as redes de norte-africanos, a que se acrescentam as de
egípcios e paquistaneses, com presença regular em Portugal mantém-se, dado que são os
membros destas os principais suspeitos dos crimes instrumentais conexos do terrorismo jihadista,
e dos relacionados com o crime organizado.
O SIS arriscou mesmo em escrever recentemente[17] que “as redes jihadistas transnacionais
representam hoje para Portugal uma ameaça real. No nosso país foi detectada a presença de
indivíduos (…), suspeitos de integrarem células terroristas noutros países europeus e de estarem
envolvidos em recrutamento e preparação de atentados”. O SIS garante ainda que “continua também
a verificar-se a possibilidade de actividades de apoio logísticoaindivíduos suspeitos de estarem
envolvidos em actividades terroristas e que sedeslocaram ao nosso país em busca de documentos
falsos, de financiamento e de recuotemporário.Uma parte significativa dos indivíduos suspeitos de
envolvimento no apoio logísticodedica-se simultaneamente a actividades criminosas, tais como
tráfico de estupefacientes, roubo e furto de documentos, cartões de crédito e telemóveis, bem como
auxílio à imigração ilegal”.
Para as entidades de segurança, um dos crimes mais preocupantes parece ser o da imigração
ilegal, dado que as redes – formadas por argelinos, marroquinos, egípcios e paquistaneses controlam um número impossível de calcular de cidadãos a trabalhar ilegalmente no nosso país,
que se dedicam, precisamente, ao tráfico de droga, e à falsificação de cartões de crédito e telemóvel
e documentos de identidade.
Em 2005, o SEF abriu 307 processos de investigação de redes de imigração ilegal e de falsificação
de documentos, mais 19 por cento que em 2004. No entanto, no caso específico de Portugal, o
fenómeno criminal mais grave é o do roubo e falsificação de documentos de identidade. Em
Portugal, em 2005, foram detectados pelo SEF 1070 passaportes falsos ou roubados.
Mas, no submundo global dos documentos falsos, Portugal tem uma especial vulnerabilidade: O
cartãozinho plastificado castanho, ou seja o famoso bilhete de identidade português[18]. O típico BI
português tem cativado os falsificadores de todo o mundo porque sendo tecnologicamente obsoleto,
é ainda uma folha de papel plastificada que não utiliza recursos tecnológicos já acessíveis, como a
biometria, é de fácil, para especialistas, manipulação e reprodução. Várias iniciativas
governamentais para tornar o cartão mais “contemporâneo”, introduzindo as tecnologias de
segurança empregues em alguns cartões de crédito, por exemplo, têm esbarrado em limitações
financeiras estatais, e na controvérsia em torno da protecção de dados pessoais informatizados.
Prevê – se, no entanto, que em 2008 os portugueses sejam obrigados a ter um novo BI, mais
adequado à época em que vivemos.
Até lá, o Estado português vai ter de continuar a sofrer a pressão permanente dos seus pares
ocidentais, nada satisfeitos com a manutenção do anacronismo documental consagrado no nosso
país. É que o BI transporta em si uma combinação explosiva: é de fácil contrafacção e é um
documento de um Estado da União Europeia. Com tais qualidades, a procura, a nível mundial, é
imensa.
Várias redes têm sido detectadas um pouco por todo o mundo, e todos os dias aparecem cidadãos
naturais dos mais inimagináveis países a brandir, nas fronteiras, o cartãozinho castanho. Em Maio
de 2006, foi detectada mais uma rede de dimensão considerável a operar com BI portugueses,
desta vez em território espanhol. A rede, cujo núcleo central era constituído por dezasseis pessoas,
operava em Madrid, Barcelona, Saragoça, Sevilha e Granada, e tinha posto em circulação centenas
de bilhetes de identidade contrafeitos. Os principais clientes eram norte - africanos e sulamericanos, que aceitaram pagar entre 500 a 1000 euros por um cartão, um preço considerado
aceitável neste mercado negro. Em Fevereiro deste ano, foi detectada uma outra, também em
Espanha, mais especificamente em Oviedo, formada por sete elementos.
Uma terceira estratégia das redes de norte-africanos e paquistaneses detectada é a dos
“casamentos brancos”, em que cidadãs portuguesas, mediante determinada quantia, acedem a
casar com estrangeiros ilegais, que assim passam a ter direito à nacionalidade portuguesa.
O trabalho de pesquisa feito pelos investigadores prova que os casamentos são o passo final de
uma estratégia por parte de, pelo menos, dois tipos distintos de organizações. Um é formado por
pequenos grupos de imigrantes muçulmanos – especialmente argelinos e paquistaneses – que
procuram, nas cidades, prostitutas, toxicodependentes e raparigas em má situação financeira para a
celebração do acto. A segunda é constituída por criminosos do meio da droga, com conhecimentos
vastos de raparigas com perfil para o negócio, de toxicodependentes a jovens africanas sem
recursos financeiros, que ficam com uma margem do pagamento para si, actualmente fixado entre
1500 a 3000 euros.
Por outro lado, as raparigas mais cooperantes, aproveitando o seu estatuto comunitário, não se
limitam a casar em Portugal, indo por vezes realizar a cerimónia a Espanha ou ao Reino Unido, entre
outros países. Os investigadores do SEF identificaram vários dos envolvidos no negócio, e
passaram a vigiá-los na medida do possível. Realizaram também uma acção preventiva nos
cartórios e junto de algumas das mulheres envolvidas. Um dos investigadores diz hoje que “um das
consequências mais graves dessa investigação, e de outras que se seguiram, é que os imigrantes
e os intermediários passaram a exercer pressão, e muitas vezes violência, sobre as mulheres que
se recusam a assinar os papéis”[19]. O recurso ao casamento branco, que continua activo em
Portugal, é um dos fenómenos que o SIS, o SEF e a PJ actualmente seguem mais de perto.
Outra linha de trabalho, especialmente intensa, é a do financiamento do terrorismo. Logo em 2004, a
DCCB investigou uma série de transferências bancárias de Lisboa para Madrid, realizadas em 2003,
que podem ter servido para um financiamento parcial do atentado de 11 de Março.
O serviço de espionagem portuguesa alerta que, em 2005 e 2006, “foram também detectados novos
indícios de actividades de financiamento para organizações radicais e grupos extremistas a actuar
fora de território nacional, designadamente na região indo-paquistanesa”[20], especialmente
relacionadas com “o encaminhamento de verbas obtidas de modo criminoso, e desvio de receitas
de organizações de caridade[21]”.
Em Outubro de 2004, uma informação libertada pelas autoridades espanholas de que uma célula
terrorista jihadista pretendia adquirir explosivos na zona de Bragança[22], para serem utilizados num
atentado contra a Audiência Nacional de Madrid, levou os investigadores portugueses a
confrontarem-se com uma realidade extremamente grave: a venda ilegal de explosivos.
O comércio nacional de explosivos, devido ao número elevado de clientes, especialmente nos
sectores da construção civil e pedreiras, é bastante dinâmico e pouco controlado. A fuga aos
impostos, e, consideram os investigadores, o desleixo com que as autoridades passam
autorizações de armazenamento e comercialização, fazem com que seja fácil adquirir e vender
material deste tipo. Em Março de 2005, a PJ montou uma operação, no Norte do país, entre
Bragança e Viseu, em quatro paióis de uma das maiores empresas do sector, a “Moura, Silva e
Filhos”, apreendendo 785 quilos de explosivos, sem qualquer registo nos sistemas da empresa,
dos quais 70 quilos de Goma 2 Ecco, utilizados frequentemente por terroristas. A operação, diz um
elemento da PJ “foi acima de tudo um sinal para os comerciantes de explosivos de que os tempos
de impunidade acabaram”.
No entanto, não parece ter surtido grande efeito. Em Fevereiro de 2006, novamente no Norte, em
Valpaços, a PJ realizou outra operação, da qual resultou a apreensão de 260 quilos de explosivos
ilegais, do tipo gelamonite 33, perfeitamente adaptável a atentados, e a prisão de três indivíduos. O
comércio ilegal, face às informações existente, diminuiu, mas não foi extinto.
A informação das entidades de segurança portuguesas assegura que a actividade das redes até
agora referida é apenas uma reduzida parte da hipotética presença terrorista jihadista em território
nacional, tendo sido detectados vários outros sinais preocupantes[23].
Em Maio de 2004, nas vésperas do campeonato europeu de futebol, foram expulsos de Portugal
onze magrebinos, dos quais alguns são suspeitos de ligações à célula responsável pela morte do
realizador holandês Theo Van Gogh, em 2003, em Amesterdão. Efectivamente, o marroquino
Noureddine estava nesse grupo, e foi, depois do atentado que vitimou mortalmente Van Gogh, preso
pela polícia holandesa. Em Amesterdão, antes do atentado, Noureddine partilhava um apartamento
com o principal acusado pelo homicídio de Van Gogh, Mohamed Bouyeri.
Aliás, na Primavera de 2004, foram investigados em Portugal nove casos relacionados com
possíveis ligações de muçulmanos a redes terroristas. Já em Maio de 2005, o Estado português
extraditou para a Bélgica o bielorrusso Serguei Malischev, nascido em 1975, e suposto perito em
armas químicas, suspeito de pertencer ao movimento jihadista. Malischev esteve preso dois meses
em Portugal, por ter desrespeitado uma ordem de expulsão do país, decretada após a sua detecção
no Algarve, onde circulava sem documentos. Foi extraditado para a Bélgica, porque o Estado belga
tinha emitido um mandato de captura internacional em seu nome. No nosso país, Malischev,
interrogado, não revelou qualquer ligação ao terrorismo, nem foi, aparentemente, possível descobrir
qualquer actividade suspeita da sua parte.
Mas em Dezembro de 2005, Malischev foi preso em Espanha, perto de Palma de Maiorca, acusado
de pertencer a uma célula “jihadista” liderada por um iraquiano, Abu Sufian.
Outra informação reservada, produzida pelo SIS e pela DCCB, dá conta de um derradeiro fenómeno
preocupante, o da criação de mesquitas clandestinas, frequentadas pelos muçulmanos volantes na
Europa, que formaram a última vaga de migração, iniciada nos anos 90, constituída por homens e
mulheres oriundos do Paquistão, Egipto, Norte de África e Bangladesh, sem qualquer ligação a
Portugal, disseminados em todo o território, embora predominantemente na periferia das grandes
cidades, e sem ligações à comunidade central.
Elementos destas comunidades desenvolvem esforços para a criação de mesquitas clandestinas,
muitas vezes em quartos de pensões, onde vão os imigrantes ilegais, os explorados
profissionalmente, os alvos de racismo, e os desprezados dentro da própria comunidade. Numa
palavra, os desenquadrados, que são os mais sensíveis ao recrutamento jihadista. Um relatório
refere o facto de, recentemente, terem sido detectadas mesquitas deste tipo no Algarve, em Odivelas
e na Margem Sul de Lisboa[24].
Em relação à comunidade islâmica portuguesa, que pode constituir uma outra linha de hipotética
ameaça, principalmente através de elementos desta que professem ideais extremistas, os dados
obtidos são até ao momento mais tranquilizantes.
Com pouco mais de 30 mil membros - muito menos que os milhões residentes em França, Reino
Unido e Alemanha -, na sua maioria sunitas, espalhados maioritariamente pela grande Lisboa, e
com locais de culto conhecidos, os muçulmanos portugueses, cuja primeira geração tem origem em
Moçambique, e a segunda nasceu no nosso país, nunca mostraram grande apego ou simpatia
pelas ideias extremistas.
Um parágrafo de um texto escrito por um antigo director SIS, José António Teles Pereira, faz a
síntese pública possível da dimensão da ameaça jihadista em território nacional: “O nosso país
situa –se numa espécie de “zona cinzenta”, da qual o máximo que se pode dizer é que não está tão
“próximo” do problema que a ocorrência de atentados se situe a nível da grande probabilidade, mas
que também não está tão “longe” em termos de essa possibilidade ser considerada
negligenciável”[25].
[1] Título completo: “A Ameaça Cinzenta – Deficiências do Sistema de Investigação de Segurança
Nacional Português e Presença do Terrorismo Jihadista”. A versão original deste artigo foi concluída
em Março de 2007 e publicada na revista científica Studies in Conflict and Terrorism em Maio de
2008. As alterações legislativas no sistema de segurança português entretanto aprovadas não estão
contempladas na redacção desta versão original.
[2][email protected] Investigador CIES - ISCTE
[3] Os dados revelados nesta e na próxima secções do artigo foram obtidos a partir de recolhas
periódicas de informação efectuadas pelo autor junto de funcionários superiores do SIS, da PJ, do
SEF e da hierarquia executiva do aparelho de segurança interna português, entre 1998 e 2006. Por
questões metodológicas, decidimos assinalar, mas apenas através de um número, os autores das
informações mais específicas, preservando assim o seu anonimato.
[4] Entrevista do autor a inspector – coordenador da PJ. Lisboa, Novembro de 2005 (Funcionário PJ –
1).
[5] Cidade do Sul litoral de Portugal
[6] Cidade do Norte de Portugal, capital do distrito do Porto.
[7] O FATF-GAFI disponibiliza informação detalhada sobre estes processos, em http://www.fatfgafi.org/ .
[8] Hoffman, Bruce, “Inside Terrorism”, (Colúmbia, 2006), 197-229.
[9] Entrevista do autor a inspector – coordenador da PJ. Lisboa, Novembro de 2005 (F - PJ-1).
[10] Na doutrina mais recente sobre o terrorismo jihadista, e o tipo de conflito que originou com os
principais Estados do Ocidente, é perceptível a evolução de terminologia de “guerra global” ou
“guerra contra o terror” para “guerra longa”.
[11] Entrevista do autor a funcionário superior do SIS. Lisboa, Março de 2004 (F SIS – 1).
[12] Capital de Portugal
[13] Cidade do distrito do Algarve, com forte densidade habitacional, e grande actividade turística.
[14] Entrevista do autor a inspector – coordenador da PJ. Lisboa, Março de 2004 (F PJ-2).
[15] A actividade da célula de Hamburgo está documentada em várias obras abertas. No entanto,
pela minúcia da pesquisa, é obrigatória a consulta de “The 9/11 Comission Report”, Norton, p 160169.
[16] Entrevista do autor a funcionário superior do SIS. Lisboa, Março de 2004 (F-SIS 1).
[17] Relatório de Segurança Interna 2005, capítulo SIS, Ministério da Administração Interna. O
Relatório de Segurança Interna é o documento produzido anualmente pelo Estado português sobre a
actividade criminosa e terrorista no território nacional.
[18] Todos os cidadãos portugueses são obrigados a ter um documento de identificação, o Bilhete
de Identidade, onde constam os dados pessoais e a fotografia.
[19] Entrevista do autor a funcionário superior do SEF. Lisboa, Dezembro de 2005.
[20] Relatório de Segurança Interna, 2005, capítulo SIS, Ministério da Administração Interna.
[21] Entrevista do autor a funcionário superior do SIS. Lisboa, Março de 2006 (F-SIS – 2).
[22] Cidade do Norte de Portugal, junto a Espanha.
[23] Entrevista do autor a funcionário superior da PJ. Lisboa, Janeiro de 2006 (F-PJ 3).
[24] Entrevista do autor a funcionário superior da PJ. Lisboa, Janeiro de 2006 (F-PJ 3). O Algarve é o
distrito mais a Sul de Portugal. Odivelas e Margem Sul são zonas de grande densidade habitacional
na periferia de Lisboa
[25] Pereira, José António Teles. Artigo de opinião (revista “Atlântico”, Lisboa, 29 de Setembro de
2005) p. 38-43.
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O TERRORISMO SUICIDA F EMININO: O
CASO DOS
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PESSOAL[1]
ESTRATÉGICA NA GESTÃO DA ACTIVIDADE OPERACIONAL: A
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Marcelo Rech[1]
2007/08/23
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DIFÍCEIS
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LONDRES : SERVIÇOS SECRETOS
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E AS
Francisco Gomes[1]
2007/06/15
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ALERTA[1]
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2007/02/24
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2007/01/15
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2006/11/23
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QUE NOS VIENEN
Miguel Fernández y Fernández [1]
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