LEITURA E ESCRITA: SENTIDOS DE TEXTO NARRATIVO NA
SALA DE AULA
Leilane Gusmão ¹
Ariadne Donatti Chinarello ²
Soraya Maria Romano Pacífico ³
Lucília Maria Sousa Romão 4
Resumo: Este trabalho tem por objetivo refletir sobre os desafios da intervenção pedagógica no
processo de construção do texto narrativo pelo sujeito-escolar, aqui nomeado como aluno. A partir do
programa de estágio do curso de Pedagogia, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto, desenvolvemos um projeto de intervenção em Língua Portuguesa, numa segunda série, em uma
escola da rede estadual, tendo como horizonte provocar os sujeitos-escolares a produzirem textos
narrativos lidando com a pluralidade de sentidos.
Palavras-chave: leitura; escrita; sujeito; narrativa
Este trabalho tem por objetivo refletir sobre os desafios da intervenção pedagógica no
processo de construção do texto narrativo pelo sujeito-escolar, aqui nomeado como aluno. A
partir do programa de estágio do curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto/USP, desenvolvemos um projeto de intervenção em Língua
Portuguesa, em uma turma de segunda série, em uma escola da rede estadual de Ribeirão
Preto-SP, tendo como horizonte provocar os sujeitos-escolares a produzirem textos narrativos,
trabalhando com a polissemia. No que diz respeito à produção textual, estudos (SILVA;
PACÍFICO, 2007) apontam que o livro didático apresenta aos alunos roteiros de como
proceder, indicando o caminho a ser seguido para escrever, isto é, o livro didático apresenta
ao aluno um texto narrativo e limita-se a questioná-lo sobre quais são os personagens do
texto; onde se passa a ação ou qual é o tempo de duração do enredo. Ou, ainda, se a proposta
é de produção de um texto narrativo, temos um personagem dado; muitas vezes, o início da
história já está feito e cabe ao aluno dar continuidade à escrita de um outro, o que interdita o
sujeito-aluno à possibilidade de produzir seu próprio texto, situação em que ele poderia
escolher os elementos da narrativa e inseri-los numa sequência cronológica de sentido,
característica essencial da narrativa, de tal modo que lhe fosse interessante.
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Recorreremos à Análise do Discurso de ‘linha’ francesa (AD) para sustentar nosso artigo.
Segundo essa teoria, sujeito e sentidos se constroem junto com o texto; por isso, não se pode
controlar todos os sentidos possíveis de um texto. Todavia, ainda presenciamos práticas
pedagógicas permeadas por livros didáticos que direcionam, a partir das mesmas perguntas, aquilo
que tais materiais chamam de “compreensão” do texto, o que, para nós, não passa de uma leitura
parafrástica (ORLANDI, 1996a). Este fazer pedagógico deflagra graves consequências para o
processo de aprendizagem do aluno, já que este não consegue desenvolver habilidades de
questionamento, análise, criação e posicionamento diante dos textos que o cercam, dentro e fora da
escola.
Observamos que, muitas vezes, o sujeito-aluno escreve a partir de um tema previamente
definido por outro sujeito, seja ele o professor, o autor do livro didático ou da apostila. Desse modo,
não há envolvimento do sujeito-aluno com a atividade da escrita, ele o faz apenas para cumprir uma
obrigação escolar (CORACINI, 1999). A esse respeito, nossas pesquisas com crianças, nas séries
iniciais do Ensino Fundamental, apontam que elas entendem que “ler é copiar a lição da lousa”, ou
ainda pior, “ler é importante para não ficar burro”. Queremos enfatizar que, para a AD, a noção de
sujeito não é nem o sujeito gramatical, nem o sujeito psicológico, ou seja, coincidente consigo
mesmo (indivíduos empíricos). Para o analista do discurso, existem posições sujeito, isto é, o
indivíduo pode ocupar várias posições (ou lugares sociais, tais como: patrões, funcionários,
professores, alunos, juízes, etc) e, a partir delas é que vai produzir seu discurso.
Essas considerações iniciais sustentarão nossa reflexão sobre a relação do sujeito-aluno com
a linguagem na escola, mais especificamente enfocando a produção e interpretação de textos, e em
que medida tais atividades trabalhadas numa perspectiva discursiva promovem o ensino da leitura e
da escrita. Ao longo deste artigo, muitas referências serão feitas à escola; por isso é muito
importante antecipar que não nos referimos a todas as escolas, mas sim, contemplamos a escola
enquanto instituição na qual circula o discurso pedagógico autoritário (ORLANDI, 1996a),
conforme será discutido.
De acordo com Pacífico (2002), para que o sujeito-autor realize um trabalho ativo na
construção de sentidos do texto, ele precisa assumir a função-leitor e não a fôrma-leitor como o
livro didático determina. O sujeito que assume a função-leitor duvida da transparência da linguagem
e, a partir daí, poderá atribuir outros sentidos para o texto e, consequentemente, produzir novos
outros textos, numa constante tessitura textual, marcada pelo dialogismo, pela polifonia, pela
criatividade e não produtividade (ORLANDI, 1996a). Deste modo, entende-se que o sujeito na
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posição de professor deve proporcionar aos seus alunos a leitura de diversos textos que tratem do
mesmo tema, mas que atribuem diferentes sentidos e possibilitam outras interpretações, construindo
aquilo que Pêcheux (1997) chama de arquivo, que será fundamental para o aluno poder ocupar a
posição discursiva de sujeito-autor.
Refletindo sobre a autoria, Orlandi (1996b) mostra que o autor é o responsável pela
organização e historicidade dos sentidos, bem como pela unidade do texto. Para que o aluno possa
ocupar o lugar de autor na construção de seu próprio texto, faz-se necessário que a escola instaure o
discurso polêmico (ORLANDI, 1996a), pois os alunos precisam estar em contato e em confronto
com os vários tipos de textos e com vários pontos de vista sobre os temas que aí circulam, visto que
a possibilidade de disputa do referente, desde as séries iniciais, a nosso ver, é que sustentará uma
produção textual baseada na polissemia e não na paráfrase, como vemos acontecer nas propostas de
leitura e escrita encontradas nos livros didáticos.
Diante do exposto, este projeto propõe aos alunos atividades de leitura e escrita em que a
polifonia circule, que os temas sejam disputados e os sentidos sejam construídos pelos sujeitosalunos, sem a imposição do que pode e deve ser dito. Para isso, é fundamental que os alunos
compreendam o processo de construção do texto narrativo, percebendo a presença de uma
sequência cronológica dos temas que sustentam a tessitura textual, que compreendam como se dá a
coesão e a coerência textuais, no texto narrativo, que não é a mesma do texto descritivo e do
dissertativo, os quais obedecem a uma outra sequência de enunciados, que não a cronológica.
Enfim, o professor tem de analisar muitos textos narrativos com os alunos, para depois solicitar a
produção textual, e não apenas apontar o personagem, o espaço, o tempo e a ação e considerar que
isso é suficiente para o entendimento do que caracteriza um texto narrativo.
O modo como são construídos os sentidos, o processo de amarração (ou não) da rede
significativa ao longo dos fatos, a teia de relações estabelecidas pelos personagens e pelas suas
representações, poucas vezes são explorados nas aulas de leitura e interpretação de textos, nem nas
atividades de produção textual. Isso promove alguns equívocos que temos diagnosticado em nossa
prática como pesquisadoras (ROMÃO; PACÍFICO, 2005), a saber, o efeito parafrástico e
repetitório das respostas dos alunos a copiarem fragmentos dos textos, a contenção dos discursos
polêmico e lúdico (ORLANDI, 1996a), o desinteresse pelos exercícios de leitura e pela ida à
biblioteca escolar (ROMÃO, 2008) e, por fim, a redução dos atos de linguagem a exercícios que
engaiolam a criatividade e o desejo por dizer de modo original, silenciam o sujeito tentando banir a
sua singularidade.
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Relato de uma trajetória em sala de aula: o trabalho com narrativas em discurso
O relato que se segue refere-se à experiência de estágio curricular em Língua Portuguesa de
duas alunas, Leilane Gusmão e Ariadne Donatti Chinarello, do curso de Pedagogia, da
FFCLRP/USP. As alunas construíram, sob a orientação da docente responsável pela disciplina
Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa, um projeto de intervenção em Língua Portuguesa
para ser desenvolvido junto aos alunos de uma segunda série, em uma escola da rede estadual de
Ribeirão Preto, São Paulo. Os pressupostos teóricos que sustentaram o projeto são da Análise do
Discurso.
Primeiramente, as alunas iniciaram uma discussão com as crianças acerca do texto narrativo,
construindo uma narrativa sobre os encontros que teriam com a classe estagiada. Neste momento,
apresentaram a história seguindo a ordem cronológica dos fatos e, depois, buscaram provocar os
sujeitos-alunos para que pudessem socializar seus conhecimentos a respeito do texto narrativo. Para
tanto, utilizaram algumas narrativas curtas com o objetivo de enfatizar as principais características
deste tipo de texto. Após as contribuições da sala, as estagiárias sistematizaram, na lousa, tudo o
que foi dito durante a discussão.
Em seguida, propuseram aos alunos a leitura de outro texto narrativo; porém, nesta etapa, o
mesmo texto narrativo foi trabalhado três vezes e com três formas diferentes: primeiro, a partir de
uma narrativa curta; em seguida, a partir da mesma narrativa expandida e, por fim, com a narrativa
completa: isto possibilitou uma discussão a respeito das principais características do tipo de texto
que elas estavam estudando com a segunda série. Disseram às crianças que elas iriam conhecer a
história de duas meninas chamadas “Ana e Ana”. Entregaram-lhes uma narrativa curta, adaptada por
elas próprias, do texto Ana e Ana, de Célia Godoy. Fizeram a leitura com as crianças que logo
levantaram questões sobre o texto, dizendo que faltavam partes da história. E este era, justamente, o
objetivo dessa atividade, ou seja, fazer com que as crianças percebessem que a ausência de certos
elementos responsáveis pela coesão textual causa problemas na coerência, interferindo na
compreensão do que se lê; logo, na sequência cronológica do texto. Por isso, as estagiárias criaram
condições para que os sujeitos-alunos ficassem inquietos e curiosos com o que iria acontecer no
decorrer da narrativa, como seria o processo de produção dos sentidos. Por fim, realizaram a última
leitura do texto Ana e Ana, mas, desta vez, com a narrativa completa.
As estagiárias foram retomando as narrativas curta e expandida, o que auxiliava os alunos a
estabelecerem comparações entre os textos e, também, a tecerem comentários sobre a construção
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textual. Ao final da atividade, as crianças puderam compreender que a ausência de certos elementos
prejudica a organização dos textos. Portanto, a partir desta atividade os alunos aprenderam a
importância dos elementos que compõem a narrativa, como a existência de personagens, a ordem
cronológica dos acontecimentos, a presença dos conectivos interfrásticos que amarram as partes do
texto.
Essa postura metodológica, para nós, vem numa direção oposta ao que Orlandi (1996a)
considera ser o discurso pedagógico que, segundo a autora, com a qual concordamos, é do tipo
autoritário. Isso significa dizer que neste tipo de discurso a polissemia é contida, não há disputa do
referente; logo, o sentido único é imposto. Entendemos que, ao possibilitar aos alunos a
participação na construção dos sentidos sobre texto narrativo, por meio de vários gestos de leitura e
de interpretação, estamos instaurando o discurso polêmico, o tipo de discurso que, a nosso ver, deve
circular por trás dos muros escolares.
Após a conversa com os alunos a respeito dos elementos do texto narrativo e retomando os
aspectos já discutidos na aula anterior, as estagiárias deram continuidade à atividade de linguagem,
distribuindo “tirinhas” de textos não-verbais, ou seja, a narrativa seria estudada com base nos textos
visuais. Defendemos que toda manifestação de linguagem (verbal oral e escrita; visual; pictórica;
musical; fílmica) tem de ser explorada e estudada em sala de aula, pois os textos que circulam fora
da escola trabalham sempre com um sincretismo de linguagens. Assim, foi solicitado aos alunos que
montassem a sequência das figuras que compunham as narrativas curtas e, em seguida, eles
puderam pintá-las. Esta atividade contribuiu para que a criança compreendesse uma das
características da narrativa, que é, como estamos apontando, a ordem cronológica dos
acontecimentos. É preciso esclarecer que as estagiárias não pretendiam com esta atividade
direcionar o texto da criança; elas objetivaram reforçar a idéia de sequência cronológica e
apresentar uma outra possibilidade de narrar, em que pese o uso dos traços, das linhas, das formas,
ou seja, do imagético, pois consideramos que “o trabalho de interpretação de imagem vai pressupor
também a relação com a cultura, o social, o histórico e a formação social do sujeito” (SOUZA,
1998, p. 08).
Dessa forma, destacamos que a mesma imagem pode possibilitar a emergência de diferentes
gestos de leitura, pois, como sabemos, os sujeitos ocupam posições heterogêneas e, também desta
forma, são distribuídos os saberes e poderes na sociedade. Então, considerando a pluralidade dos
sentidos e dos sujeitos, ressaltamos que uma mesma imagem pode ser significada de modo
diferente. “A questão da imagem encontra assim a análise de discurso por um outro viés: não mais
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da imagem legível na transparência, porque um discurso a atravessa e a constitui” (ORLANDI,
1999, p. 65). Sustentamos a posição de que a escola deve garantir o acesso ao verbal e ao nãoverbal, provocando os sujeitos-escolares ao contato com diferentes materialidades e, assim, a
diferentes modos de produção e inscrição de sentidos, mesmo porque, nas séries iniciais, muitas
crianças ainda não dominam a escrita, mas já sabem, há tempos, produzir textos.
Diante de tais considerações, vejamos algumas produções visuais, lembrando que, para nós,
texto deve ser concebido em sentido amplo; por isso, podem ser construídos a partir de diversas
materialidades simbólicas, a saber, pintura, linguagem oral, escrita, dança, uma poesia, uma
aquarela, ou seja, toda materialidade que produza sentido e seja passível de interpretação.
Como podemos notar, a criança produziu uma sequência cronológica por meio dos
quadrinhos; de acordo com a teoria discursiva, não estamos procurando o sentido para o texto, uma
vez que ele não é único, nem predeterminado. Podemos, sim, analisar algumas possibilidades de
interpretação, que dizem respeito ao lugar ocupado pelo sujeito para falar sobre ser menina, as cores
preferidas das meninas (o vestido rosa); os cabelos lisos e compridos, sentidos tão valorizados pela
mídia e que acabam funcionando como dominantes no imaginário feminino; o encontro de duas
meninas, talvez a disputa pela bola, bexiga e, depois, uma briga que terminou com a queda de uma
delas. Temos, aqui, as meninas representando as crianças; a bola representando um brinquedo muito
presente no universo infantil e, depois disso, a briga, resultado da disputa pelo brinquedo. Essa é
apenas uma das múltiplas possibilidades de interpretação para este texto visual.
No texto abaixo, temos outros sentidos muito presentes no universo infantil, isto é, a
travessura, o subir em árvores, os tombos infantis, as quebraduras, o hospital. O sujeito obedeceu,
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coerentemente, à sequência cronológica dos fatos narrados, pois primeiro o menino subiu na árvore,
depois levou um tombo, foi parar no hospital, observando que ficou no apartamento 209 e saiu de lá
curado, pronto para novas brincadeiras, o que é sugerido pela presença do carrinho, à sua espera.
A partir disso, as estagiárias fizeram, então, uma discussão acerca da atividade realizada,
conversando sobre a “tirinha” produzida: o que aconteceu? Como aconteceu? Os fatos aconteceram
ao mesmo tempo ou primeiro aconteceu isso, depois aquilo? Pediram, por fim, para que as crianças
construíssem sua própria história não-verbal, apenas com desenhos. A importância do discurso da
oralidade aqui é destacada, pois segundo as teorias que defendem o modelo ideológico do
letramento (STREET, 1989), sabemos que há uma interdependência entre oralidade e escrita; tais
teorias questionam a supremacia desta em relação àquela; além disso, podemos investigar a autoria
tanto em textos orais, quanto em textos escritos (TFOUNI, 1995; 2001), o que passa a conferir à
oralidade um lugar privilegiado nos estudos da linguagem.
Somente após a realização dessas duas atividades, as estagiárias sistematizaram informações
sobre a estrutura do texto narrativo, suas características, as regras de composição de uma história e
o quanto elas podem ser deslocadas do escrito para o não-verbal e vice-versa. Em seguida,
utilizaram a linguagem fílmica para mostrar aos alunos uma história que envolve outra percepção da
relação da criança com o livro e a leitura. O filme selecionado foi Pagemaster: o mestre da
fantasia. Foi feita uma discussão a partir de algumas questões, como: “Qual o problema que existe
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no filme? Existe um problema ou vários no decorrer do filme? Existem personagens? Como eles
são? Existe ordem dos acontecimentos? Vocês costumam ir à biblioteca? Vocês conhecem
diferentes bibliotecas? O menino do filme gosta de ler? E vocês?”.
E assim foram postos em jogo comentários gerais dos alunos sobre o filme; eles puderam
expor seus pontos de vista acerca dos sentidos que circularam neste texto. Foi possível fazer
conexões entre a linguagem fílmica com aquilo que havia sido aprendido sobre texto narrativo nas
modalidades verbal e não-verbal. Novamente, as estagiárias sistematizaram na lousa as informações
trazidas pelos alunos a respeito do texto narrativo. Após esta etapa, mostraram-lhes outros textos
narrativos que não por acaso versavam sobre o mesmo tema: a relação da criança com o livro e a
leitura. Foram contadas duas histórias: Com prazer e alegria, de Ana Maria Machado e Histórias
de um livro aberto, de J. L. Diego.
As estagiárias procederam, então, nas aulas seguintes, voltando às narrativas e propondo que
as crianças retomassem seus textos, relendo-os e até reescrevendo-os se necessário, compondo um
processo de revisão que ajuda o aluno a compreender certos aspectos que lhe passaram
despercebidos e, assim, a voltar à sua própria escrita, retroagir sobre o que ficou disperso (TFOUNI,
2001), amarrar com mais propriedade o seu dizer. Discordamos da metodologia docente de sugerir
ao aluno “escrever rapidamente” um texto em sala e entregá-lo ao professor; julgamos necessário
que o sujeito-autor volte ao seu escrito, retorne a suas palavras, releia o seu próprio texto,
observando as marcas lingüísticas, debruçando-se sobre os pontos de fuga dos sentidos e
entendendo-se com o seu próprio dizer. Esta atividade é suporte ao professor também para que ele
identifique, a partir dos textos dos alunos e dos retornos a eles, o quanto estes ainda não
compreenderam acerca daquilo que está sendo estudado, o quanto não puderam perceber de deriva
em sua própria voz.
Após a revisão dos textos, as crianças foram orientadas para produzir um livreto composto
de suas narrativas. Para isso, as estagiárias organizaram as crianças em duplas; em seguida,
propuseram-lhes que elaborassem um texto narrativo (em duplas), cujo tema era livro e leitura, tema
trabalhado, até então, em sala de aula. Ressaltamos que os alunos deveriam escrever sem a
preocupação de repetir um sentido já estruturado pelo outro, no caso, pelos autores lidos,
instigando-os a ocuparem o lugar de autor de seu próprio texto, controlando os pontos de fuga dos
sentidos, historicizando o dizer. Foi-lhes explicado que, para escrever um texto em dupla, é preciso
conversar com o amigo, discutir as idéias de ambos e chegar a um consenso sobre o que seria
escrito, prática que reclama trabalhar o caráter dialógico da linguagem (BAKHTIN, 1979). Esta
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dinâmica permeou a atividade da maioria das crianças, exceto de algumas duplas que fizeram uma
divisão de trabalho por conta própria.
Grande parte das crianças seguia a atividade discutindo, escrevendo, apagando, escrevendo
de novo... As estagiárias tentaram não interferir, mas em alguns momentos surgiam dúvidas sobre
como escrever certas palavras e, nesse caso, havia uma intervenção mais direcionada. Porém, o foco
desta atividade não eram as questões gramaticais, mas sim, o texto narrativo. Esta atividade foi
finalizada com as ilustrações das crianças para suas próprias histórias. As produções textuais
mostraram que os alunos compreenderam o funcionamento do texto narrativo, bem como a proposta
de intervenção que fora realizada, pois, nos textos, os alunos não repetiram os sentidos lidos em
classe, e sim, criaram e recriaram novos textos.
As estagiárias aproveitaram o momento para conversar sobre como os livros são feitos
(páginas e capa), o que são as editoras, os ilustradores, como eram os livros na antiguidade, quem
podia ler e escrever nessa época da história, como se constrói um título, a importância do título para
a construção do sentido do texto e, principalmente, assinalaram que os sujeitos-alunos seriam
autores de seus próprios textos, o que lhes causou tamanha admiração, encanto e espanto, uma vez
que, para eles e, acreditamos para muitos professores, também, o lugar de autor está reservado só
para os autores consagrados da literatura, aqueles que lemos e nunca os conheceremos, ou seja, um
lugar que só é conhecido pela imaginação.
Defendemos (PACÍFICO, 2002), em concordância com Tfouni (1995; 2001); Pfeiffer (1996);
Gallo (1992), que a escola deve permitir ao aluno a assunção da autoria, que ele tem de sair da
posição discursiva de copista, de escrevente e passar a ocupar a posição discursiva de autor, a partir
da qual ele duvidará da transparência da linguagem, da ilusão de sentido único e realizará gestos de
interpretação e de escrita considerando a relação da linguagem com a exterioridade, com a história e
com a memória (PÊCHEUX, 1999). Sobre isso, entendemos que há sempre um já-dito anterior e
exterior ao dizer que sustenta a possibilidade da leitura e da escrita, enfim, do discurso do sujeito,
visto que o sujeito não é a origem das palavras, tampouco promove a inauguração da linguagem a
cada momento em que enuncia. Nessa direção do estofo conceitual da teoria discursiva, as palavras
são atravessadas por sentidos que já circularam em outros contextos sociais, são sustentadas pelo
que delas já foi dito e legitimado como sentido dominante ou marginal. E tudo isso é fundamental
para observarmos a constituição histórica dos sentidos e dos sujeitos, sujeitos estes que colocam em
curso dizeres que, ora repetem e reafirmam, ora contestam outros dizeres, que calam sentidos, que
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discursivizam outras tantas maneiras de dizer aqueles sentidos já-ditos, nessa eterna narrativa que é
a voz do sujeito, a linguagem, enfim, a vida.
Contribuições fundamentais sobre o estudo da autoria trazem os trabalhos de Tfouni (1995;
2001) e Gallo (1992), mostrando que não é condição necessária ter domínio do discurso da escrita
para instalar a autoria nos textos, mas que há a necessidade de o sujeito estar implicado no seu
texto, de se constituir como responsável pelo seu dizer, criando um novo dizer a partir do já-dito, ou
seja, assumir a função-autor além da de escritor (passar da paráfrase para a polissemia). Com base
nessas considerações, analisaremos as produções escritas, observando se os alunos ocuparam, ou
não, a posição discursiva de autor.
Como podemos observar neste texto, a criança marca a importância do livro para a Magali.
Podemos interpretar que o trabalho com os vários tipos de textos que abordavam o tema livro e
leitura ecoou e reverbera na produção infantil, de um modo coeso e coerente, características
fundamentais para que o princípio de autoria se instale. A paixão pela biblioteca, tratada no filme,
também aparece, não como repetição, mas numa outra situação, com outros personagens que se
articulam entre história em quadrinhos e contos de fada, os quais devem ser significantes para o
sujeito-autor, que não repete as histórias em quadrinhos de Magali, tampouco reconta os contos de
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fadas citados em seu texto. Ao contrário, constrói, a partir do já-lá (interdiscurso) um intradiscurso e
historiciza o fio discursivo que está tecendo. De acordo com Orlandi (1996b, p. 69):
a função-autor se realiza toda vez que o produtor da linguagem se representa na
origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não-contradição
e fim. (...) A nosso ver, a função-autor é tocada de modo particular pela história: o
autor consegue formular, no interior do formulável, e se constituir, com seu
enunciado, numa história de formulações. O que significa que, embora ele se
constitua pela repetição, esta é parte da história e não mero exercício mnemônico.
Podemos dizer também que, além de escrever sobre o tema proposto, o sujeito produz um
texto narrativo, tipo de texto trabalhado durante a intervenção, e elege, para sua produção, um tipo
específico de narrativa, um conto de fadas, começando com “era uma vez”. Apesar de não usar o
final previsível nos contos tradicionais “foram felizes para sempre”, deixa implícita essa felicidade,
uma vez que a menina “nunca se esquesseu o caminho da biblioteca”, sentido que nos faz lembrar
da personagem de Clarice Lispector, no conto Felicidade Clandestina, que compara o livro a um
amante, a uma felicidade jamais experimentada.
Para nós, os sujeitos que produziram esse texto assumiram a autoria, pois mobilizaram
sentidos que foram trabalhados em aula e, possivelmente, outros tantos aos quais os sujeitos têm
acesso por meio da memória discursiva e a partir disso, produziram um texto criando o efeito de
sentido de unidade, com começo, meio e fim amarrados e coerentes com a proposta de produção de
um texto narrativo.
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O título do texto já sugere ao leitor uma nova possibilidade de leitura, porque não é uma
nomeação dos contos tradicionais. Os autores, como no texto analisado anteriormente, não recorrem
à repetição, mas sim, constroem o intradiscurso a partir do diálogo com o personagem de Bob
Esponja e os sentidos que foram tecidos, durante a intervenção das estagiárias, sobre os livros. O
“tapa”, que faz parte das brigas infantis, que é criticado pelos adultos, pais e professores, e o livro,
tão valorizado durante a intervenção, aparecem como condensadores dos sentidos que serão
expandidos no texto.
Porém, os sujeitos-alunos ainda estão na fase inicial da aquisição da escrita; logo, não
apresentam um longo desenvolvimento para as ações dos personagens, o que não nos impede de
percebermos a progressão textual e a sequência cronológica, próprias do texto narrativo. Além
disso, o texto apresenta marcas próprias da linguagem escrita, como o uso do travessão indicando a
fala dos personagens, confirmando a concepção de muitos teóricos do letramento, dentre eles
Tfouni (1995; 2001), Kleiman (1995), Rojo (2001), defendem que o sujeito pode ter um
conhecimento sobre a escrita mesmo antes de aprender escrever.
Observamos que, para os autores deste texto, o livro pode ser compreendido como algo que
tem o poder de educar, de instruir, de promover a paz, sentidos que foram privilegiados e
materializados no texto. Com relação à estrutura textual, temos um texto que começa com “era uma
vez” e acaba com um “fim”, o que é encontrado nos contos de fadas, ou seja, mais um indício de
que os autores infantis têm conhecimento sobre a linguagem escrita, mesmo sem terem produzido
um texto longo, com parágrafos bem-definidos e desenvolvidos. O importante, para nós, não são os
desvios da chamada língua culta ou padrão, tampouco o número de linhas; o que valorizamos é a
escrita historicizada, nova e única nessa produção; os sujeitos não copiaram outro texto, mas sim,
produziram um novo. A proposta de produção de uma narrativa foi compreendida, temos um texto
narrativo e a assunção da autoria por parte dos sujeitos.
Considerações finais
Defendemos, com base em nossa experiência escolar, tanto na posição de alunas, quanto na
posição de docentes, que o uso da língua culta e o desenvolvimento do texto oral ou escrito estão
atrelados à leitura, pois quanto mais os alunos estiverem em contato com a leitura, a interpretação e
a produção de textos, com as mais variadas materialidades simbólicas, mais próximos eles estarão
de construírem textos interessantes, coesos, coerentes, uma vez que o acesso ao arquivo, como
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vimos, e o trabalho com o discurso polêmico, em sala de aula, são os alicerces de toda relação do
sujeito com a leitura e a escrita, que ultrapassam, e muito, a reduzida atividade escolar baseada em
preenchimento de lacuna, de cópia, de famílias silábicas descontextualizadas, em outras palavras,
ultrapassam a visão de uma língua que só tem vida dentro das cartilhas e livros didáticos.
No caso apresentado, se as estagiárias, em apenas quinze horas de intervenção,
possibilitaram aos sujeitos-alunos condições para que produzissem seus textos, os quais deram
corpo a um livro da segunda série, fica certo, para nós, que uma prática pedagógica que tenha como
fundamentação os conceitos de autor, leitor, arquivo, memória, e reconheça que sujeitos e sentidos
constroem-se junto com o texto, formará leitores e autores autorizados a usarem a linguagem,
dentro e fora da escola.
READING AND WRITING:
SENSES OF NARRATIVE TEXT IN THE CLASS ROOM
Abstract: That work has for objective to contemplate on the challenges of the pedagogic intervention in the
process of construction of the narrative text for the subject-school, here nominated as student. Starting from
the program of apprenticeship of the course of Pedagogy, of University of Philosophy, Sciences and Letters
of Ribeirão Preto, we developed an intervention project in Portuguese Language in a second series in a
school of the state net tends as horizon to provoke the subject-school ones produce her/it narrative texts
working with the plurality of senses.
Key words: reading; write; subject; narrative
Notas:
¹ Aluna do Curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (FFCLRP/USP).
² Aluna do Curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (FFCLRP/USP).
³ Profa. Dra. da Graduação em Pedagogia e da Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP).
4 Profa. Dra. da Graduação em Ciências da Informação e da Documentação e da Pós-Graduação em Psicologia da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). Professora
colaboradora da Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Bolsista CNPQ.
Educação em Destaque
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