1
THIAGO CHOHFI
A HIERARQUIA DAS NORMAS COLETIVAS DE TRABALHO
CAMPINAS – 2003
2
THIAGO CHOHFI
A HIERARQUIA DAS NORMAS COLETIVAS DE TRABALHO
Monografia apresentada para o curso
de Especialização em Direito e
Processo do Trabalho, como exigência
parcial para obtenção do título de
especialista, sob a orientação dos
professores Renan Severo Teixeira da
Cunha e Mestre Henrique Macedo Hinz,
do programa de Pós-Graduação da
Pontifícia Universidade Católica de
Campinas - PUCCAMP
CAMPINAS – 2003
3
À
Banca Examinadora
Monografia apresentada para o curso de Especialização em Direito Material e
Processual do Trabalho
Título: A hierarquia das normas coletivas de trabalho
Autor: Thiago Chohfi
Orientadores: Professor Renan Severo Teixeira da Cunha
Professor Mestre Henrique Macedo Hinz
Comissão Julgadora:
_____________________________
_____________________________
_____________________________
A Banca, após avaliar o candidato, considerou-o ___________, com a nota ____ .
4
DEDICATÓRIA
Dedico o presente trabalho aos meus irmãos Adriano e Marcelo, cada qual com suas
características próprias e marcantes, que lhes permitem navegar pelo mundo jurídico
com grande ousadia e sucesso, bem como ao Astor, pela paciência que sempre teve
com minhas indignações mundanas.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao ilustre Professor Renan Severo Teixeira da Cunha, pela sinceridade
atenção dada ao presente trabalho, bem como ao incentivo pela pesquisa e
dissertação acerca de um tema de profundas discussões, independente se oficial ou
oficiosamente.
Agradeço, ainda, ao Professor e Mestre Henrique Macedo Hinz, pela paciência com
o autor do presente trabalho.
5
RESUMO
Procuramos, neste trabalho, situar as normas coletivas de trabalho dentro
da hierarquia jurídica das normas, ditada pelo ilustre jurista Hans Kelsen, em suas
obras acerca da teoria pura do direito.
O objetivo principal é apontar a citada norma no mesmo escalão
hierárquico da Consolidação das Leis do Trabalho, logo abaixo da Constituição
Federal, que traz validade formal e material àquelas.
Após o desenvolvimento das lições dos juristas citados e do problema
principal proposto, foram colacionadas alguns julgados, que indicam claramente a
tendência do Poder Judiciário Brasileiro em considerar a hierarquia ora proposta.
Palavras-chave: Normas Coletivas de Trabalho. CLT. Constituição Federal de
1988. Hierarquia. Kelsen.
6
ABSTRACT
In this paper we try to place the collective labor norms within
the hierarchy of norms proposed by Hans Kelsen in his work
about the pure theory of law.
Our main objective is to place the aforementioned norm at the same hierarchical rank as the
Brazilian Labor Code. Right above it should come the Brazilian Federal Constitution, that gives the
collective labor norms formal and material validity.
After the discussion of the literature and of the proposed question, we have collected some
decisions that show a clear tendency of Brazilian courts to adopt the hierarchy that we propose in
this paper.
Keywords: colective Labor norms. Brazilian Labor Code. CLT. Brazilian Federal Constitution.
Constituição Federal de 1988. Hierarchy. Kelsen.
7
ABRIβ
In diese Arbeit haben wir versucht, die kolektive Arbeitsrechtnormen in die von Hans Kelsen in
seine Werke über die Reine Rechtstheorie gelehrte Rechtsnormenhierarchie einzusetzen.
Der Ziel ist, die obengenannte Normen so zu klassifizieren, dass sie in der gleichen Stuffe sich
befindet als die Brasilianische Arbeitsgesetzbuch (Consolidação das Leis do Trabalho), d.h., gleich
unter die Brasilianische Verfassung (Constituição Federal), die den kolektiven Arbeitsrechtsnormen
formell und materiell Gultigkeit bringt.
Nach der Diskussion der Literatur über das vorliegende Hauptthema, haben wir einige
Entscheidungen von Brasilianischen Gerichten gesammelt, den eine deutliche Tendenz zeigen, die
hier vorgeschlagene Hierarchie aufzunehmen.
Schlüsselwörter: Kolektiverechtsnormen, Brasilianisches Arbeitsgesetzbuch. CLT. Brasilianische
Verfassung. Constituição Federal de 1988. Hierarchie. Kelsen.
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SUMÁRIO
1.0) Introdução......................................................................................................09
2.0) Estrutura lógica do ordenamento jurídico..................................................12
a) A norma Jurídica..............................................................................................12
b) O princípio da dinâmica jurídica.....................................................................13
c) A norma fundamental.......................................................................................15
d) O princípio estático..........................................................................................17
e) Hierarquização das normas jurídicas.............................................................21
f) A unidade lógica da ordem jurídica (conflito de normas).............................23
3.0) O ordenamento Jurídico Brasileiro na esfera trabalhista..........................30
a) introdução ao tópico 3.0..................................................................................30
b) A hierarquia das normas trabalhistas............................................................31
c) Vigência no tempo............................................................................................36
d) conseqüências práticas da hierarquização acima exposta.........................37
e) Limitações das normas coletivas de trabalho...............................................38
4.0) Casos interessantes e jurisprudenciais......................................................43
5.0) Conclusão......................................................................................................48
6.0) Bibliografia.....................................................................................................50
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1.0) INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objeto o estudo da hierarquia das normas
coletivas de trabalho em face das demais normas trabalhistas e a própria
Constituição Federal, utilizando-se como base os ensinamentos de Hans Kelsen,
ditados principalmente em seu livro sobre a Teoria Pura do Direito e Teoria Geral
das Normas Jurídicas.
As normas coletivas, pois, serão confrontadas com a Consolidação das
Leis do Trabalho, que é a principal fonte normativa trabalhista após a Carta Magna.
Como poderá ser constatado, ambas as normas acima citadas podem ser apontadas
no mesmo escalão em nosso sistema escalonado de normas jurídicas, estando
limitadas somente pelas regras ditadas pela Constituição Federal – que, no caso, é a
norma que fundamenta a validade, tanto da CLT como das normas coletivas de
trabalho.
O princípio dinâmico do sistema normativo dita, pois, a limitação do
conteúdo e a validade lógica das normas imediatamente inferiores à Norma
Fundamental.
Os requisitos de hierarquização, a norma fundamental, o próprio
fundamento lógico das normas estudadas, bem como as limitações impostas
demonstrarão, ao final, a enorme capacidade de flexibilização do direito do trabalho,
dispensando a criação de quaisquer outras letras de lei com o mesmo objetivo, que,
10
certamente, cairão na ineficácia e serão rapidamente ultrapassadas pela dinâmica e
constante evolução das relações do mercado do trabalho.
É preciso lembrar que, ao contrário do que os juristas da área trabalhista mais conservadores - podem dizer, de forma crítica e totalmente contrária à
equiparação hierárquica ora pretendida, que tal reconhecimento na pirâmide
sistemática de kelsen produz efeitos de grande valia ao direito laboral, uma vez que
permite às partes se auto-organizarem, da melhor forma possível, em benefício
próprio, e de forma específica, respeitando as diferenças inerentes e específicas de
cada classe de trabalhadores, e sempre nos limites da sua norma imediatamente
superior.
É preciso, por outro lado, que nos concentremos em uma visão um pouco
mais fria deste ponto no direito laboral, excluindo do tema as discussões acerca da
vida sindical moderna, da forma de pactuação que atualmente vem ocorrendo,
centrando o ponto na teoria pura do direito e da norma jurídica dentro do nosso
sistema normativo, bem como nos princípios que regem o direito laboral. Não se
pode aniquilar uma possibilidade constatada em nosso ordenamento em face de
uma possível e eventual proteção ao direito dos trabalhadores, via engessamento
das normas trabalhistas já existentes e estreitamento das possibilidades de
negociação coletiva. É preciso aceitar, como se verá fundamentado adiante, que as
negociações coletivas possuem a capacidade de substituir de forma temporária às
normas postas pela CLT, no prazo de sua vigência, e sempre nos limites impostos
pela Norma Maior em nosso ordenamento – a Constituição Federal.
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2.0) ESTRUTURA LÓGICA DO ORDENAMENTO JURÍDICO
a) A norma jurídica
Norma! O que é norma jurídica? Esta é a primeira questão que deve ser
respondida ao se estudar a estrutura lógica de qualquer ordenamento. O 1Direito
Brasileiro possui um ordenamento próprio e único, formado por um complexo de
normas jurídicas, hierarquicamente dispostas de forma vertical. Estas normas são,
na maioria dos casos, mandamentos, ordens ou prescrições.
Também podem
assumir o caráter, como ensina 2Kelsen, “de conferir poderes, permitir, derrogar suas
funções de normas”.
As normas, portanto, prescrevem algo que deve ser ou acontecer. São
consideradas, pois, proposições de “dever-ser”, prescrições de um comportamento
que se entende como devido. Este comportamento, por sua vez, representa uma
conduta humana definida, um sentido de querer – de um ato de vontade. Logo, a
norma jurídica é o resultado de uma conduta humana querida por alguém, uma
1
Norberto Bobbio afirma em seu trabalho, Teoria do Ordenamento Jurídico, à página 19, que “esse contexto de
normas costuma ser chamado de ‘ordenamento’. E será bom observarmos, desde já, que a palavra ‘direito’,
entre seus vários sentidos, tem também o de ‘ordenamento jurídico’, por exemplo, nas expressões ‘Direito
Romano’, ‘Direito Italiano’,[‘Direito Brasileiro’], etc.”
2
Hans Kelsen, Teoria Geral da Norma, p. 01.
12
representação de um ato de vontade querido.
Nesse sentido, é imperioso que a norma jurídica tenha validade para que
esta conquiste seu espaço na estrutura jurídica. Validade, pois, pode ser tido, neste
caso, como a existência da norma jurídica, seu nascimento. O nascimento se dá
pela criação da norma através de um preceito lógico formal ditado por outra norma
jurídica, que por sua vez também foi criada através das determinações emitidas por
outra determinada norma, de caráter superior, e assim por diante. Além do respeito
à forma prescrita, para que haja validade deve existir uma correspondência de
conteúdos, quando a norma superior assim determina sua limitação.
Estando
presente, pois, os dois requisitos, a norma será válida, passará a existir no mundo
jurídico.
Essa forma de criação, por sua vez, é originada do que se chama de
princípio dinâmico do sistema jurídico. O princípio dinâmico, pois, regula a validade
da norma jurídica. É este que diz se uma norma existe ou não no mundo jurídico.
b) O princípio da dinâmica jurídica
A natureza do fundamento de validade da norma jurídica pode ser dividida
em dois princípios, que formam sistemas de normas completamente diferentes – o
dinâmico e o estático.
No princípio dinâmico, uma norma inferior é considerada como válida não
pelo seu conteúdo em si, mas tão somente pela capacidade de que a norma
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imediatamente superior tem de fomentar a produção de outra determinada norma,
que será havida como inferior. Aquela somente fornece o fundamento de validade, e
não o conteúdo de validade das normas sobre ela fundadas.
Este é o princípio dinâmico, que é bem diferente do estático, como se
verá mais adiante. O princípio estático é simplesmente uma forma de controle das
normas via os seus próprios conteúdos, sem se falar em normas hierarquicamente
superiores ou inferiores. Existem, em sob tal princípio, normas gerais e outras mais
específicas, que determinam o “dever ser” de forma ampla e restrita, conforme o
caso.
Podemos citar, utilizando os exemplos do próprio Kelsen, por mais
didáticos, um pai que ordena ao filho que vá à escola. Se o filho pergunta por qual
razão ele deve ir à escola, o pai logo lhe responde que por obediência às ordens do
pai. Daí vem uma nova pergunta: por que o filho deve obedecer às ordens do pai?
O que leva a seguinte resposta, que alcança uma norma imediatamente superior,
que a valida – “porque devemos obedecer às normas de Deus, que determinou
obediência às ordens do pai”. Esta última, por estar no cume da linha vertical de
normas do sistema apontado, pode ser denominada de norma fundamental.
A primeira ordem do pai tem como norma pressuposta a ordem de
obediência às ordens do pai, que por sua vez tem como norma pressuposta a ordem
de obedecermos às determinações de Deus. Esta, por sua vez, está figurando como
uma norma que produz validade à norma que está no fim da pirâmide hierárquica, e
não possui validade lógica em nenhuma outra norma. Não se pergunta sobre sua
14
validade, apenas a pressupõe. Assim ensina 3Kelsen:
O tipo dinâmico é caracterizado pelo facto de a norma fundamental
pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um facto produtor
de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que
significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as
normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma
fundamental. (...). Se o filho pergunta por que devemos obedecer às
ordens de Deus, quer dizer, se ele pôr em questão tal norma, a resposta é
que não podemos sequer pôr em questão tal norma, quer dizer, que não
podemos procurar o fundamento de sua validade, que apenas a podemos
pressupor.
Portanto, uma norma é colocada em um sistema de normas através do
princípio dinâmico, que lhe acaba por atribuir uma tal hierarquia, numa linha lógica
de pensamento, com início em uma norma fundamental, da qual as demais têm um
também um início, seja este imediato ou remoto. Abaixo desta norma, formamos
nossa cadeia de proposições, cujo fundamento de validade pode ser localizado na
norma que a pressupõe, que determina a forma de sua criação e o seu conteúdo,
eventualmente, e assim por diante.
c) A norma fundamental
A norma fundamental, como já narrado, é a norma que se situa no topo
da hierarquia das leis. Consideramos nosso sistema como uma pirâmide, na qual
existem várias normas jurídicas. Na base, existem aquelas que se validam pelas
normas imediatamente superiores, e assim por diante, até alcançarmos a norma
fundamental, que é a norma que traz validade à Constituição Federal, que se situa
no cume. Esta, como dito, tem que ser válida, e para tanto, deve haver alguma
explicação ou validação lógica para sua existência – que é a norma fundamental.
3
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 270.
15
Temos dois caminhos a seguir, partindo da premissa acima:
uma, a
validade da norma constituinte pelo sentido do conteúdo da norma fundamental, e
duas – sua validade pelo aspecto lógico formal e limitação negativa de conteúdo.
Seguindo a mesma linha de exemplo já usada, extraída do próprio Kelsen, se o filho
pergunta a razão pela qual devemos obedecer às ordens de Deus, respondemos
que não se faz esta pergunta, pois, acreditando em Deus, pressupõe-se que
devemos obediência. Ora, mas e para quem não acredita em Deus? E se o filho
não acredita em Deus? Então, teoricamente, ele tem o direito de não cumprir as
ordens de Deus, e, conseqüentemente, as ordens de seu pai, uma vez que a norma
que se situa no cume da hierarquia legal sequer é válida – não é existente para tal
pessoal – o que criaria um caos social. Logo, tendo-se em vista a enorme variedade
de conteúdo que existe no mundo jurídico-social, não há a mínima condição de se
apontar a validade de uma norma fundamental em princípios ou regras de moral,
uma vez que estas são consideradas como conteúdos queridos – desejados. Não
se pergunta se a Constituição é justa ou injusta, ela simplesmente é, e é porque nós
aceitamos que ela seja assim, nós a pressupomos.
É uma aceitação tácita de que aquelas pessoas que se reuniram, seja em
1988 ou na primeira Constituição formalmente criada em nosso ordenamento,
quando se formou um poder constituinte originário, que ultrapassou as barreiras do
tempo, e fez nascer a Constituição ora em vigor, possuem poder legitimado pelo
povo para confeccionar leis que devem se situar no cume do nosso sistema jurídico,
das quais as demais normas poderão ser criadas.
forma clara essa situação:
4
Norberto Bobbio explica de
16
O fato de essa norma não ser expressa não significa que não exista: a ela
nos referimos como o fundamento subtendido da legitimidade de todo o
sistema. Quando apelamos à Constituição parta requerer sua aplicação,
algumas vezes nos perguntamos o que significa juridicamente essa nossa
apelação? Significa que consideramos legítima a Constituição porque foi
legitimamente estabelecida. Se depois nos perguntamos o que significa o
ter sido legitimamente estabelecida, ou remontarmos ao decreto do governo
provisório que se instalou na Itália em 25 de junho de 1944, e que atribuía a
uma futura assembléia constituinte a tarefa de deliberar uma nova
Constituição do Estado italiano, ou então aceitarmos as teses da ruptura
entre o velho e o novo ordenamento, não poderemos fazer outra coisa
senão pressupor uma norma que impõe obediência àquilo que o poder
constituinte estabelecer; essa norma fundamental, mesmo não-expressa, é
o pressuposto da nossa obediência às leis que derivam da Constituição, e à
própria Constituição.
A norma fundamental, pois, não pode ser querida, mas tão somente
pensada, sendo, ainda, irredutível, a fim de se evitar uma derivação ao infinito.
Imagine se a Norma Fundamental fosse querida e não simplesmente pensada:
teríamos, então, uma outra norma, em escalão superior, que traria sua validade, e
assim por diante. Portanto, esta é o final, ou até o começo, da linha hierárquica
posta à prova, até sua norma fundamental, que não pode ser colocada em questão,
pois não é uma norma posta, mas tão somente pressuposta.
d) O princípio estático
Conforme já narrado, quando se está diante de um sistema de normas,
podemos questionar como esse sistema, que é único, se sustenta em face da
pluralidade de normas nela existente. O que fundamente a validade de uma norma,
afinal? E já respondemos acima que a validade das normas pode ser fundamentada
segundo dois princípios, um dinâmico e outro estático, sendo este último inaplicável,
conforme se verá mais adiante. O princípio estático pressupõe que uma conduta
4
Norberto Bobbio, op. cit., p. 60.
17
descrita na ordem legal deve ser válida pelo próprio conteúdo nela contido, ou seja,
a validade do conteúdo de uma determinada ordem mais específica é limitada ao
conteúdo de outra norma mais geral. Por exemplo, podemos citar uma determinada
norma geral: “não devemos mentir”. Dessa norma, podemos retirar outras mais
específicas, como “não enganar” ou “não fraudar”. Não há uma ligação lógica entre
as proposições apresentadas, apenas um “cordão umbilical” ditado pelo seu
conteúdo, que não pode contrariar outra norma, cujo conteúdo é mais amplo –
praticamente alcançado o estado de princípio. Uma norma como “devemos amar
uns aos outros”, não suportaria uma norma mais específica como “devemos odiar
nosso inimigo”. Uma não se torna fundamento de validade para outra. Agora, se
disséssemos “devemos amar nossos pais”, essa sim tem um respaldo de conteúdo
naquela norma mais geral.
Portanto, tais normas são válidas pelo próprio conteúdo que elas pregam,
uma vez que estes são colocados à prova diante da norma mais ampla –
imediatamente superior. 5Kelsen explica tal sistema da seguinte forma:
Segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir dois
tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um tipo dinâmico.
As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer, a conduta dos
indivíduos por ela determinada, é considerada devida (devendo ser) por
força do seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma
norma cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que
formam o ordenamento, como o particular ao geral.
Portanto, como todas as demais normas de um ordenamento deste tipo já
estão contidas nas determinações da norma superior, estas empregam àquelas o
fundamento e o conteúdo de validade. Ou seja, tanto a forma quanto o conteúdo
das normas inferiores são deduzidos da norma fundamental que as pressupõe. Este
18
é o princípio estático da norma jurídica – discute-se, nesse sistema, não a validade
lógica da norma e correspondência de conteúdo, de forma simultânea, mas sim e
somente a especificação de um determinado “dever ser” mais restrito que o sentido
do conteúdo de outra norma, imediatamente evidente ao sujeito atingido pelas
referidas determinações legais.
No entanto, segundo o próprio doutrinador acima, este princípio se mostra
insustentável, uma vez que uma norma apenas pode ser considerada como
fundamento de validade de outra quando seu conteúdo seja imediatamente evidente
– que é dado na razão.
A razão, por sua vez, é relativa, uma vez que cada pessoa tem a sua
própria idéia, o seus próprios sentimentos. Então, como se poderia aceitar uma
razão que fosse válida para todos os homens ao mesmo tempo? Não há como se
considerar, pois, uma norma imediatamente evidente, pois nem todos pensam ou
possuem os mesmos princípios e conceitos da mesma forma. Logo, não existe uma
norma fundamental que possua conteúdo, senão esta não seria fundamental, sob
pena de não alcançarmos nunca o fim da linha de validação da norma jurídica, que
seria, então, eterna, ao infinito.
6
Kelsen explica tal impossibilidade da seguinte
forma:
O conceito de uma norma imediatamente evidente pressupõe o conceito de
uma razão prática, quer dizer, de uma razão legisladora; e este conceito é –
como se mostrará – insustentável, pis a função da razão é conhecer e não
querer, e o estabelecimento de normas é um acto de vontade. Por isso, não
pode haver qualquer norma imediatamente evidente.
5
6
Hans kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 269-270.
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 270-271.
19
Portanto, diante da constatação lógica de que o princípio
estático das normas não prevalece, nos resta o princípio dinâmico, como princípio
que fornece o escopo de validade num sistema de normas logicamente
fundamentadas umas nas outras.
Devemos obedecer às normas de Deus, que diz que devemos
obedecer à regras do pai, que por sua vez diz que devemos ir à escola para estudar.
A primeira relação havida é simplesmente lógica: devemos obedecer à Deus porque
assim acreditamos e pressupomos, aceitando, portanto, às proposições emanadas
do pai. A segunda relação é válida porque as ordens do pai trazem fundamento à
ordem de ir à escola para estudar. Mas, se houver uma norma abaixo, que diz que o
filho pode ir à escola para namorar, esta será ineficaz. O conteúdo geral posto pela
norma ditada pelo pai não corresponde ao específico, ditado pela norma
imediatamente inferior.
Logo, o princípio estático não traz um fundamento, em
princípio, de validade formal para a norma jurídica. Mas tão somente uma validade
de conteúdos. Já o princípio dinâmico tem como requisito de validade a obediência
à forma de criação e, eventualmente, ao conteúdo determinado pela norma superior.
Um exemplo dessa regra, já que a presente monografia trata
do direito laboral, pode ser descrito da seguinte forma: a Constituição Federal de
1988 prevê, em seu artigo 7o, no capítulo dos Direitos Sociais, 7que todo trabalhador
7
o
“CF/88 - Art. 7. São direitos dos trabalhadores urbanos ou rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social: I – (...); IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas
necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário,
higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo
vedada sua vinculação para qualquer fim; (...).”
20
terá direito ao salário mínimo, ou seja, ninguém poderá perceber menos que àquele
limite legalmente imposto. Assim, uma norma que se considere válida, criada pelas
regras ditadas pela própria Carta Magna, se estipular um salário mínimo inferior ao
piso legal, não corresponderá ao conteúdo ditado pela Lei Maior, devendo ser
considerada, pois, inválida, por não haver correspondência específica nesse ponto.
No mesmo sentido, e como será mais minuciosamente discutido abaixo, uma norma
coletiva pode seguir a forma de criação prescrita na Constituição Federal, mas não
poderá ter como objeto qualquer lei processual, uma vez que há limitação negativa
de conteúdo em sua norma superior, que veda tal ato.
Neste caso, sequer a
validade seria alcançada, por falta de correspondência quanto ao conteúdo.
e) Hierarquização das normas jurídicas
Conforme já relatado, segundo o princípio dinâmico do sistema
de normas, no qual há imposição de uma de uma norma logicamente pressuposta
para validação de uma norma imediatamente inferior, que valida as demais normas,
existe uma única maneira de se apontar o escalão das normas jurídicas em um
sistema hierárquico de leis, qual seja, a sua disposição pela norma que dita sua
produção / seu nascimento – ou seja, a hierarquização de um sistema pode ser
calculada através da norma que torna válida cada norma jurídica imediatamente
inferior.
Pela
norma
apontada
no
alto
da
hierarquia
de
um
ordenamento, que segue logo após a norma fundamental, pode-se verificar as
normas hierarquicamente inferiores, calculando-se, assim, qual o grau de
21
escalonamento da norma jurídica em face de um sistema único de normas. Logo,
sempre restará uma pergunta básica para saber se uma norma é superior ou inferior
à outra: qual a norma que lhe confere validade?
Seguindo os mesmos exemplos anteriores: duas normas, uma
originada pelo pai, e outra pelo irmão mais velho, as duas direcionadas ao filho
pequeno, iniciam sua vigência em um ordenamento. A primeira, do pai ao filho
menor – “respeite seu irmão mais velho”. A segunda, originada do irmão mais velho
diz – “vá estudar”.
Como se pode notar, existe uma norma fundamental, cujo
questionamento (conforme já visto anteriormente) é sequer imaginado – “obedeça às
ordens do pai”. Esta é uma norma pensada, que confere validade àquela norma.
Esta última, por sua vez, confere validade à ordem do filho maior, direcionada ao
filho pequeno.
Essas normas, pois, formam um sistema único e escalonado,
formado por proposições que se tornam válidas mutuamente.
Observem o que 8Kelsen dita em seu livro sobre o tema:
Para todas as hipóteses, um ordenamento da Moral ou do Direito positivo
não representa um sistema de normas de igual ordem, senão de sobre-esob normas, isto significa uma estrutura de normas, cujo escalão superior é
a Constituição fundamentada pela pressuposta norma fundamental e cujo
escalão inferior são as normas individuais que fixam como devida uma
conduta determinada, concreta. (...). Que a validade da norma inferior é
fundamentada pela validade da norma superior significa que a norma
inferior corresponde à superior.
Portanto, o ponto mais importante para se descobrir o escalão de uma
norma, é perguntar pela sua norma imediatamente superior, que lhe traz fundamento
de validade. Discussão interessante, por exemplo, diz respeito à própria CLT e às
8
Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, p. 331-332.
22
normas coletivas de trabalho, ambas em face da Constituição Federal.
E na
eventualidade de uma nova Constituição Federal, como já ocorreu no país? E mais:
e se revogarmos a CLT, as normas coletivas de trabalho continuam existindo? No
caso de uma Constituição nova, quais normas seriam imediatamente afetadas? A
questão será resolvida mais adiante, quando da comparação das citadas normas
num mesmo ordenamento jurídico.
f) A unidade lógica da ordem jurídica (conflito de normas)
Como pode um sistema único formado por uma pluralidade de normas
diversas, apontas em variados escalões, com conteúdos variados? Conforme já
narrado, nosso ordenamento se compõe num sistema único, escalonado de normas
jurídicas hierarquicamente apontadas.
No entanto, apesar da unidade lógica
existente, não podem ocorrer conflitos de normas.
Isto acontece quanto duas
normas tendem a se excluir mutuamente, o que, como se verá, não é permitido em
nosso ordenamento.
É preciso parar neste ponto um momento: por várias vezes dissemos
anteriormente que a validade é dividida e consubstanciada, segundo o princípio
dinâmico, em duas frentes diferentes, que regem a aplicação da norma jurídica no
mundo fático. Sempre se pergunta, antes de qualquer outra indagação, se a norma
posta no mundo jurídico existe, se ela é válida.
Kelsen costuma interpretar a
vigência / validade como a existência da norma jurídica, ao contrário de alguns
outros juristas, que separam tais conceitos. Vamos considerar, pois, as razões de
Kelsen, a fim de facilitar didaticamente os princípios que tornam uma norma
23
aplicável no mundo real. Uma norma somente pode existir se sua criação obedeceu
validamente aos ritos e determinações de outra norma imediatamente superior. Não
quer dizer que não existam outras normas inferiores que lhe conferem alguns
procedimentos e parâmetros, mas interessa sim, é verificar quem confere validade à
norma, quem proporciona sua existência. É uma pergunta simples: qual norma que,
se revogada ou substituída, afetaria a existência de outra norma? Daí, pode-se
verificar, sem maiores problemas, a validade formal da norma e sua proposição
imediatamente superior, dentro de um sistema jurídico. Após observada tal validade
formal, podemos verificar a correspondência de conteúdos, ainda no mesmo plano.
Os conteúdos das normas também não podem se contradizer, ou seja, uma
determinação não pode excluir a possibilidade lógica da outra.
9
Kelsen assim
ensina:
Para valer, uma norma precisa ser estabelecida. Se ela não é estabelecida,
não vale; e somente se ela é estabelecida, é que vale; se ela não vale, o
estabelecido não é norma. Pois a validade de uma norma é – como já
observado – sua específica existência. Não a existência de um fato do ser,
mas a existência, i.e., a existência de um sentido (ou do conteúdo do
sentido), do sentido de um fato, do real ato de estabelecimento.
Conforme pode ser percebido, Kelsen nos coloca em um contexto onde
existe uma validade ampla e geral, que pode ser dividida entre uma validade que
alcança a existência da norma e outra validade que se assemelha à sua
correspondência material (põe o conteúdo à prova).
Por exemplo, uma constituição que confere existência a uma norma, já
que criada pelas formas e preceitos nela contidos, pode não ser aplicável ao mundo
real por falta de correspondência material, vez que a norma inferior pode estabelecer
9
Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, p. 215-216.
24
conteúdo de forma excludente daquele posto imediatamente acima. São duas faces
da validade colocadas à prova: a primeira a existência formal da norma e a segunda
a existência material (comparação de conteúdos).
Portanto, apesar das inúmeras leis e atos jurídicos que formam nosso
ordenamento e da eventual contradição que possa existir, este perfaz uma unidade
lógica da ordem jurídica, se constituindo em uma pluralidade de normas que
integram uma unidade, na qual as proposições jurídicas não se podem auto-excluir.
É uma pirâmide escalonada formada por normas, das quais, as hierarquicamente
superiores, validam e tornam possível a existência de outras normas, de caráter
inferior.
Pois, surge nova questão: como que um sistema que se constitui em uma
unidade pode aceitar a existência de normas que se contradizem? Não é uma
unidade, apesar da pluralidade?
A resposta é que, apesar de ser uma unidade, o sistema coexiste com
ferramentas que o isentam de contradição, que não permitem a validade de uma
norma colocada imediatamente abaixo de outra norma, que não seja compatível com
o restante do sistema.
Portanto, em um primeiro momento, pode-se até se
questionar sobre a existência de contradição em um sistema, mas, objetivamente,
esta é incompatível com nosso ordenamento jurídico, vez que mantida a unidade
lógica e material, através da interpretação normativa.
25
10
Kelsen ensina que “o que é nulo não pode ser anulado (destruído) pela
via do Direito. Anular uma norma não pode significar anular um acto de que a norma
é o sentido. Algo que de facto não aconteceu não pode ser transformado em nãoacontecido.”
As possíveis contradições podem ser localizadas em duas formas: via
comparação em graus de hierarquia diferentes e aquelas colocadas em um mesmo
patamar – lado a lado, o que deve ser imediatamente corrigido em um sistema, para
se evitar a quebra da harmonia existente.
Então não pode uma norma inferior negar outra norma superior?
Resposta: não! Uma norma inferior que contradiz a sua norma superior sequer é
válida. Vejamos: um conflito de normas dentro de um determinado ordenamento
jurídico existe quando uma ordem jurídica determina certa conduta, e outra norma
determina uma conduta diversa, inconciliável com a primeira.
Por exemplo, quando uma norma diz que é proibido fumar (norma
superior), enquanto outra norma diz que é permitido fumar (norma inferior), existe
um conflito de normas, uma contradição lógica em sentido amplo – e apenas uma
das afirmações pode ser verdadeira.
Nesse sentido, de início, podemos dizer que as normas apontadas em
escalões diferentes nunca poderão se contradizer – uma vez que, se existente uma
norma superior e outra inferior, esta terá fundamento de validade naquela – a não
poderá contrariá-la. O mesmo acontece acima: a norma que permite fumar sequer
10
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 363.
26
é existente, e não produz efeitos no mundo jurídico, pois a sua proposição
imediatamente superior não permite tal resultado, tal como ensina 11Kelsen:
Entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior, quer
dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra,
não pode existir qualquer conflito, pois a norma do escalão inferior tem o
seu fundamento de validade na norma de escalão superior. Se uma norma
de escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como
estando de harmonia com uma norma de escalão superior.
Logo, concluímos que o referido conflito de normas não pode existir, vez
que o próprio sistema não permite.
E quanto às normas de mesmo escalão?
Quando as proposições conflitantes encontram-se escalonadas no mesmo grau de
hierarquia, na construção escalonada de uma ordem jurídica, estas continuam com a
obrigação de harmonia com o restante do ordenamento. Isto porque não se pode
conferir uma validade quando existe o fator de exclusão mútua. No caso anterior, a
norma inferior pode até ter sido criada corretamente, mas o seu conteúdo não
corresponde àquele ditado pela norma imediatamente superior, não produz uma
harmonia suficiente dentro de um sistema jurídico único.
Mas e se a norma “é proibido fumar” está no mesmo grau de hierarquia da
norma “é permitido fumar”?
Isto, logicamente, em um
12
mesmo tempo, espaço,
sujeito e material. Então a resposta é novamente a seguinte: uma das normas não
é válida em nosso sistema, vez que em desarmonia.
Para normas de escalão
diferentes, usamos o método hierárquico para resolver a questão. Estando ambas
11
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 289.
Norberto Bobbio, op. cit., p. 87-88 – “As duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade. Distinguem-se
quatro âmbitos de validade de uma norma: temporal, espacial, pessoal e material. Não constituem antinomia
duas normas que não coincidem com respeito a: a) validade temporal: ‘é proibido fumar das cinco às sete’ não é
compatível com: ‘é permitido fumar das sete às nove’. b) validade espacial: ‘é proibido fumar na sala de cinema’
não é compatível com:”é permitido fumar na sala de espera’; c) validade pessoal: ‘é proibido, aos menores de
18 anos, fumar’ não é incompatível com: ‘é permitido aos adultos fumar’; d) validade material: ‘é proibido fumar
charutos’ não é incompatível com ‘é permitido fumar cigarros’.”
12
27
as normas em um mesmo escalão, resta-nos apenas dois critérios:
o da
especialidade e o cronológico, considerando que ambas as normas correspondem
em existência formal e material à norma imediatamente superior.
Em se tratando de normas apontadas em um mesmo escalão, a ocasião
de cada criação é que dita a norma que deverá prevalecer em face daquela que
contradiz. Tal fato denomina-se está contido no princípio denominado lex posterior
derogat priori. Ou seja, a norma criada posteriormente àquela já existente deverá
prevalecer, uma vez que esta reflete uma colocação mais atual do sentido querido
pelo órgão legiferante. Nesse 13sentido:
Se se trata de normas gerais que foram estabelecidas por um e mesmo
órgão mas em diferentes ocasiões, a validade da norma estabelecida em
último lugar sobreleva à da norma fixada em primeiro lugar e que a
contradiz, segundo o princípio lex posterior derogat priori. (...). Este
princípio também encontra aplicação quando as normas que estão em
conflito são estabelecidas por dois órgãos diferentes, quando, por exemplo,
a Constituição atribui ao monarca e ao parlamento poder (competência)
para regular o mesmo objecto através de normas gerais, (...).
Tal determinação está no §1o do artigo 2o do Decreto Lei n. 4.657, de 04
de setembro de 1942 – a Lei de Introdução ao Código Civil – que determina que “a
lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja
incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.”
No entanto, quando as duas normas forem criadas ao mesmo tempo,
conforme já relatado, a mais específica deve prevalecer, com base no princípio da
especificidade. Logo, novamente não haverá contradição.
13
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 286.
28
Portanto, nunca um sistema poderá conter normas que se contradizem,
havendo soluções e ferramentas que podem solucionar a questão de conflitos
normativos, de forma a manter uma harmonia necessária à segurança jurídica dos
sujeitos afetados pelas proposições postas em validade.
29
3.0) O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO NA ESFERA TRABALHISTA
a) Introdução ao tópico 3.0
Para facilitarmos a questão, vamos nos limitar a estudar apenas a três
normas mais importantes na esfera trabalhista do Direito Brasileiro: a Constituição
Federal, a CLT e o grupo das normas coletivas de trabalho.
Desde já podemos dizer que a CLT e as normas coletivas de trabalho
podem ser apontadas em um mesmo escalão , em nosso ordenamento, e as
conseqüências lógicas desta linha de pensamento são a possibilidade imediata de
flexibilização do direito laboral, tema de muita discussão atualmente. Ou seja, a
capacidade que a norma coletiva de trabalho tem distribuir direitos e deveres
distintos ou até contraditórios à própria CLT, nos limites da Carta Magna, o que é
veementemente criticado pelos juristas mais conservadores.
Qualquer tema que seja especificado pela Consolidação das Leis do
Trabalho, que não alcance a matéria processual e as normas cogentes (de ordem
pública), como será mais adiante estudado, tal como jornada de trabalho, salários,
30
adicionais, férias, entre outros, podem ser objeto de discussão entre as classes
patronais e trabalhadora, o que torna o direito laboral mais dinâmico, adequando-se
rapidamente às relações atuais de trabalho, ao mercado e às exigências modernas.
As críticas a tal abertura podem ser facilmente levadas ao chão, pelas
simples disposições acima expostas e pelo próprio sentido teleológico das normas
coletivas. Teoricamente, não é para existir abusos por parte da classe patronal, uma
vez que os órgãos representativos dos trabalhadores estão em mesmo grau de
poder com os empregadores, e negociam direitos já postos anteriormente de alguma
forma (CLT) e limitados constitucionalmente.
b) A hierarquia das normas trabalhistas
Como pode ser facilmente observado, nossa Constituição Federal é uma
norma superior que contém inúmeras normas de ordem trabalhista, principalmente
em seu artigo 7o, que institui várias limitações de conteúdo às normas laborais
postas em um plano inferior aos ditames constitucionais. Tal norma, pois, por estar
em grau de hierarquia absolutamente superior a quaisquer outras normas jurídicas
expostas em nosso sistema, tem o condão de atribuir validade, tanto no aspecto da
existência formal (validade lógica), como no aspecto de conteúdo – uma validade
material.
O referido artigo, por exemplo, implanta uma limitação baseada segundo
o conteúdo. Não se pode contrariar as proposições expostas constitucionalmente,
em sua matéria. Uma norma inferior não pode estatuir a supressão do descanso
31
semanal remunerado, vez que se ocorrido, existiria uma exclusão lógica dos
conteúdos de uma norma superior com os de uma imediatamente inferior. Isso é o
princípio dinâmico, que confere subsistência à validade, tanto na forma de criação
da norma, quanto no conteúdo respectivo.
A Constituição Federal vigente à época do nascimento da CLT é quem
confere validade lógica à sua existência, e, uma vez recepcionada pela Constituição
de 1988, continua válida por corresponder em conteúdo com sua norma
imediatamente superior. A CLT passou a ter vigência em novembro de 1943, sob o
governo de Getúlio Vargas, e, desde àquela época, sobreviveu até o presente
momento, vez que nenhuma outra norma com o mesmo objeto, que a substituísse,
foi criada ou passou a existir no mundo jurídico.
Nesse mesmo sentido, o
14
inciso XXVI do artigo 7o e o
15
inciso VI do
artigo 8o, ambos da Constituição Federal, prevêem o reconhecimento das
convenções e acordos coletivos de trabalho e a obrigatoriedade da participação
sindical nas negociações coletivas.
Portanto, eis aí o fundamente lógico de
validade, em sentido de existência, das normas coletivas trabalhistas. Por outro
lado, assim como a Consolidação das Leis do Trabalho, as normas coletivas
também são limitadas pelo princípio dinâmico, no que diz respeito à negativa de
conteúdo jurídico daquilo que já foi regido pela Constituição Federal.
No livro acerca da Teoria Geral das Normas de Kelsen,
14
o
16
quando da
CF/88 - Art. 7 – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social: I – (...); XXVI – reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; (...).
15
CF/88 – Art. 8o - É livre a associação profissional ou sindical, observando o seguinte: I – (...); VI – é
obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho; (...).
16
Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, p. 329/333.
32
discussão da norma inferior e superior, há uma passagem muito interessante, que
ajuda em muito a esclarecer os argumentos acima narrados:
Que a validade de uma norma fundamenta a validade de uma outra norma,
de um modo ou de outro, constitui revelação entre uma norma superior e
uma norma inferior. Uma norma está em relação com uma outra norma; a
superior em relação com uma inferior, se a validade desta é fundamentada
pela validade daquela. A validade da norma inferior é fundamentada pela
validade da norma superior pela circunstância de que a norma inferior foi
produzida como prescreve a norma superior, pois a norma superior, em
relação com a inferior, tem o carácter de Constituição, pois que a natureza
da Constituição existe na regulação da produção de normas. Então, a lei, a
qual regula o processo, em que o órgão aplicador do Direito, especialmente
os tribunais, produzem normas individuais, é a “Constituição” na relação
com o processo desses órgãos, como a “Constituição” no sentido específico
mais restrito da palavra, isto é, na relação com o processo legislativo de
produção de leis, e a Constituição no sentido lógico-transcedental na
relação com a historicamente primeira Constituição, com a Constituição no
sentido jurídico-positivo.
E mais adiante, no mesmo livro, continua dissertando da seguinte forma:
Se o órgão autorizado apenas está determinado no geral da norma
autorizante, quer dizer: se o órgão autorizado é determinado pelo conceito
de um certo órgão, a validade da norma inferior fundamenta-se na validade
da norma superior, ou seja, a norma inferior corresponde à norma superior
se o indivíduo que estatuiu a norma inferior é exatamente aquele
determinado no conceito que está contido na norma autorizante. Quer
dizer: se a idéia concreta desse indivíduo pode ser subsumida sob aquele
conceito.
Portanto, como já vimos, a CLT somente foi recepcionada pela
Constituição Federal vez que o seu órgão criador correspondeu àquele definido pela
norma superior à época de sua criação, e, da mesma forma, tendo em vista a
relação dinâmica de validade existencial, seu conteúdo continuou limitado às
proposições da atual Constituição Federal, lei imediatamente superior.
Dessa
mesma forma, apesar de conter regras procedimentais na própria CLT acerca da
criação das normas coletivas de trabalho, quem realmente descreve o órgão
autorizado a criar as normas coletivas trabalhistas é a Constituição Federal, o que
33
implica necessariamente e imediatamente na visão de em dois escalões
hierarquicamente postos em nosso ordenamento, um formado pela Constituição
Federal de 1988, e outro, logo abaixo, formado tanto pela Consolidação das Leis do
Trabalho como pelas Normas Coletivas de Trabalho, ambas existentes pela própria
existência da Carta Magna e limitadas em conteúdo por aquilo já fixado na norma
superior.
Talvez a proposta acima seja repudiada de forma veemente pelos juristas
como um todo, pois, desde os princípios, aprendemos uma linha de hierarquização
completamente diferente daquela ora exposta, na qual se apontava a Constituição
Federal em grau máximo, a CLT logo abaixo e, por último, as normas coletivas de
trabalho. Nesse sentido, o próprio jurista Pedro Paulo Teixeira Manaus, em seu
17
estudo acerca da matéria, diz o seguinte:
Isso quer dizer que as normas jurídicas vinculam-se entre si por um
fundamento único, de tal modo que, para configurarem um sistema
harmônico, as normas legais devem harmonizar-se, seguindo uma escala
de importância, de tal maneira que as normas inferiores devem submeter-se
aos mandamentos das normas superiores, sob pena de, não o fazendo,
tornarem-se inválidas, como já dissemos. Há, portanto, entre as várias
fontes, uma hierarquia, que garante a coerência do sistema jurídico.
No campo do direito do trabalho, as normas legais são de aplicação
obrigatória, fundadas nos princípios e normas constitucionais,
estabelecendo um patamar mínimo de garantia aos trabalhadores.
Reserva-se às demais fontes formais espaço para disposições que
melhorem as condições de trabalho, ou adaptem situações práticas às
determinações da lei, sendo-lhes vedado dispor de forma desfavorável aos
trabalhadores,
comparativamente ao que estabelece a fonte
hierarquicamente superior.
Tanto assim é, que a sentença normativa proferida pela Justiça do Trabalho,
por força do art. 114, §2o, da Constituição Federal, pode estabelecer normas
e condições de trabalho, desde que respeitadas as disposições
convencionais
e legais mínimas
de proteção
ao
trabalho,
exemplificativamente.
(...).
17
Pedro Paulo Teixeira Manaus, Negociação Coletiva e Contrato Individual de Trabalho, p. 73-74.
34
Desse modo, a lei não pode dispor de forma menos benéfica do que
determina a norma constitucional, do mesmo modo que a sentença
normativa e a norma coletiva não podem dispor de forma menos favorável
do que dispõe a lei. O regulamento de empresa não pode dispor de forma
menos benéfica do que estabelece o acordo coletivo de trabalho. Por fim, o
contrato individual de trabalho não pode ser menos favorável do que o
mínimo estabelecido na norma coletiva.
Do exposto, pode-se observar alguns equívocos graves em termos de
conceito. O primeiro, quanto à importância das normas. Não é correto dizer que
uma norma, por ser apenas inferior à outra, em uma escala, é menos importante.
Muito pelo contrário – imagine-se o caso de uma norma superior que depende de
regulação por norma inferior, como acontece em vários artigos da Constituição.
Será que a norma reguladora seria mais ou menos importante que a norma que lhe
dá validade? Logicamente que não. Portanto, não importa o grau de hierarquia
para sua verificação de sua importância, aliás, sequer devemos levar em
consideração a importância da norma, mas sim sua validade.
Não existe uma
escala de importância, como disse o ilustre jurista, mas tão somente uma escala
hierárquica, na qual a norma inferior tem sua validade fundamentada na norma
imediatamente superior.
Em segundo lugar, temos que a forma de hierarquização das normas
trabalhistas está completamente equivocada, pois leva em consideração o princípio
estático de sistematização das normas jurídicas, o que, conforme já explanado
anteriormente, é teoricamente impossível.
O próprio autor
18
diz ser possível a
revogação da lei posta pela norma coletiva, mas que tal fato “apresenta como limite
o estabelecimento contratual de condições mais favoráveis ao reclamante”, o que é
logicamente impossível, pois se a norma é inferior, esta nunca poderia excluir o
18
Pedro Paulo Teixeira Manaus, op. cit., p. 77.
35
conteúdo daquela que lhe traz validade, como ocorre no caso.
Portanto, ao contrário do que ensina o ilustre juiz do Tribunal Regional do
Trabalho da 2a Região, a norma coletiva possui a mesma hierarquia da lei posta (no
caso a CLT), até porque, além das duas espécies de normas estarem validadas pela
própria Constituição Federal, como ressalvado em seu próprio texto, acima
colacionado, “a sentença normativa proferida pela Justiça do Trabalho, por força do
art. 114, §2o, da Constituição Federal, pode estabelecer normas e condições de
trabalho, desde que respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de
proteção ao trabalho”.
Portanto, sendo a “força” que traz validade à sentença
normativa o próprio artigo constitucional, nada mais correto que dizer que a sua
norma imediatamente superior é a Carta Magna.
c) Vigência no tempo
Muitos devem perguntar como pode ocorrer a vigência de duas leis em
conflito, num mesmo escalão hierárquico, sem que uma delas perca sua validade –
ou até como uma lei que entre em vigor e depois se perde no tempo, devido à sua
especificidade de viver por um período já programado, voltando a antiga norma à
ativa. A questão, no entanto, nos parece bem mais simples, e não recai na hipótese
de repristinação, o que é vedado em nosso ordenamento. Novamente a resposta se
encontra com a nossa Lei de Introdução ao Código Civil, já citada anteriormente, em
seu 19artigo 2o, que permite a suspensão da eficácia de uma norma quando outra, de
caráter temporário, cujo conteúdo entre em conflito, esteja em vigor. Assim ensina a
19
o
Lei de Introdução ao Código Civil - “Art. 2 . Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que
outra a modifique ou revogue.”
36
20
ilustre jurista Maria Helena Diniz,. acerca da matéria:
Em suma a norma poderá ter, portanto: a) vigência temporária, pelo simples
fato de já ter fixado o tempo de sua duração, contendo um limite para a sua
eficácia; e b) vigência permanente, ou seja, para o futuro sem prazo
determinado, durando até que seja modificada ou revogada por outra da
mesma hierarquia ou de hierarquia superior.
Logo, como se pode facilmente concluir, das normas já citadas, a
Constituição Federal e a CLT possuem vigência permanente, enquanto as normas
coletivas de trabalho, tanto pelas suas características próprias de um contrato – em
sentido amplo, como pela sua essência, são de vigência temporária, tendo sido
colocadas no mundo jurídico com um termo certo, no qual a norma permanente
sempre volta a ter eficácia, caso nenhuma outra lhe tire essa circunstância.
Também não se fala em hipótese do §3o do mesmo artigo acima citado –
casos de repristinação – pois sendo as normas coletivas de caráter temporário, não
há que se falar em restauração da vigência da lei revogada, já que não existe lei
revogada nos casos de conflito de normas coletivas com as normas Consolidadas,
tendo em vista que a norma permanente apenas perde provisoriamente sua
validade, naquilo que contraria em conteúdo a norma coletiva.
d) conseqüências práticas da hierarquização acima exposta
Como conseqüência prática do apontamento da CLT no mesmo grau de
hierarquia das normas coletivas de trabalho, podemos citar a própria flexibilização da
legislação laboral, antes engessada pela Consolidação, que foi produzida há
20
Maria Helena Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, p. 62/63.
37
tempos, e que até a presente data, sua atualização e adequação ao mercado e às
novas relações trabalhistas são praticamente nulas.
Tudo o que dispõe nossa Constituição Federal deve seu utilizado como
parâmetros para o conteúdo das normas inferiores, vez que a norma no escalão
abaixo não pode contradizer a norma contida imediatamente acima. Logo, o leque é
enorme, e abre discussão para normatização de pontos antes intocáveis pela
negociação coletiva, que pertenciam exclusivamente à Consolidação das Leis
Trabalhistas, como, por exemplo, os períodos de descanso intrajornada e
interjornada, concessão de férias, duração, normas de segurança e medicina do
trabalho, normas relativas ao trabalho feminino, e assim por diante.
Todos os casos e matérias, com exceção daquelas processuais e dos
direitos indisponíveis, ditados pela CLT, são passíveis de serem inseridas nas
normas coletivas de trabalho, vez que sua limitação corresponde apenas à
Constituição Federal, que representa a norma imediatamente superior.
e) Limitações das normas coletivas de trabalho
A primeira limitação, conforme já exposto anteriormente, diz respeito ao
próprio conteúdo.
As matérias contidas nas normas coletivas de trabalho não
podem contradizer àquilo disposto na Carta Magna, que são os limites mínimos de
proteção ao trabalhador.
A questão sobre a limitação, pois, parece simples e não necessita de
38
maiores indagações ou teorias para solução das questões práticas, como faz a
maioria dos juristas sobre o assunto.
21
Sérgio Pinto Martins, Juiz Titular de São
Paulo, muito pertinente em seu livro sobre a matéria, diz o seguinte:
Os principais limites à flexibilização são dois: (a) normas de ordem pública,
que não podem ser modificadas pelas partes, sendo um mínimo assegurado
ao trabalhador. É o caso da observância da norma mínima contida na
Constituição ou nas leis. Não seria possível, por exemplo, estabelecer aviso
prévio inferior a 30 dias (art. 7o, XXI), quando a disposição seria inválida.
Nada impede, portanto, que a norma estipule direitos superiores aos
indicados, como aviso prévio de 45 dias; (b) quando for contrariada a
política econômica do governo. A norma coletiva encontra, portanto, limite
na proibição do Estado. Ë expresso o art. 623 da CLT de que será nula
disposição de convenção ou acordo coletivo que, direta ou indiretamente,
contrarie proibição ou norma disciplinadora de política econômico-financeira
do governo ou concernente à política salarial vigente, não produzindo
quaisquer efeitos.
No item “a” acima, os limites de negociação coletiva, via instituição
sindical, estão amparados pela hierarquia das normas trabalhistas, ou seja, na
própria Constituição Federal, bem como nas normas de ordem pública, conforme já
colocado anteriormente. No entanto, com o devido respeito, o item “b” não pode ser
considerado, pois extrapola os limites da própria legislação específica ao caso.
Duas normas de um mesmo escalão, com mesmo grau de abstração e nascimento
temporal, não podem se limitar uma à outra, sendo certo que eventuais limites à
negociação se limitam à própria lei de constituição, conforme já exposto.
Seguindo-se em diante, pois, temos outro ponto no qual não há
permissão para se legiferar, em se tratando de normas coletivas de trabalho, que
são as questões processuais. A própria
22
Constituição Federal diz ser competente
para legislar acerca de matéria processual, apenas a União Federal, através de seus
21
Sérgio Pinto Martins, Flexibilização das Condições de Trabalho, p. 105-113.
CF/88 – “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual,
eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho. II – (...)”
22
39
órgãos. Portanto, os Sindicatos de classe nunca poderão negociar qualquer matéria
relativa ao procedimento processual das reclamações trabalhistas. Estas, por sua
vez, estão devidamente reguladas junto à CLT e ao próprio Código de Processo
Civil, utilizado de forma subsidiária na Justiça Especializado do Trabalho.
Os prazos recursais, os procedimentos probatórios e tudo o mais contido
na CLT jamais poderá ser objeto de deliberação em negociação coletiva, que, caso
contrário, não será sequer válida, pois, apesar de formalmente correta sua criação, o
conteúdo não corresponde àquele determinado na CLT, e de forma negativa pela
Constituição, que veda a inserção de tal matéria em discussão nas negociações
coletivas.
Voltando um pouco ao ponto relativo aos direitos indisponíveis, ensina a
ilustre jurista
23
Maria Helena Diniz, em seu Dicionário Jurídico, que direito
indisponível é “aquele que é insuscetível de ser objeto de atos de disposição por
parte de seu titular”.
24
Orlando Gomes foi mais além nas restrições ao “direito de
contratar”, em seu livro sobre contratos:
Em larga generalização, pode-se dizer que as limitações à liberdade de
contratar inspiram-se em razões de utilidade social. Certos interêsses são
considerados infensos às bases da ordem social ou se chocam com os
princípios cuja observância por todos se tem como indispensável à
normalidade dessa ordem. Diz-se, então, que ferem as leis de ordem
pública e os bons costumes.
Nesse contexto, pois, podemos citar os direitos dos menores, os direitos
trabalhistas como o seguro desemprego, a previdência social e aposentadoria, entre
outros, nos quais o Estado tenha participação direta ou indireta, e haja um interesse
23
Maria Helena Diniz, Dicionários Jurídico, Volume 2, p. 166.
40
público, no sentido de manter a ordem social e sua normalidade.
As normas protegidas da negociação coletiva, por serem de ordem
pública, são encontradas na própria CLT, como no caso daquelas proposições que
cumprem o papel de proteger o trabalhador em sua mínima dignidade humana, que
é o motor do labor em qualquer parte do mundo. Não há trabalho sem que haja
gente trabalhando, e gente só trabalha com vida. Porém, por outro lado, temos o
valor do dinheiro, que ultrapassa a barreira da importância do ser humano para o
próprio trabalho, visando apenas um valor pecuniário, esquecendo-se da visão mais
humanística do labor como um todo. Esta já é uma visão econômica e é neste
momento que entra a discussão do que é ou não é protegido pelo princípio das
normas de ordem pública.
O primeiro direito fundamental do homem é a vida, e esta é um direito de
ordem pública, que nunca poderá ser negociado por ordem coletiva. O respeito à
vida é um mínimo legal que se exige em um local de trabalho. A sua proteção
sempre será limitada àquilo que a CLT reza, podendo a norma coletiva, pois,
somente priorizar tal proteção, e não deteriorá-la. Da vida, pode-se extrair o direito à
saúde do trabalhador e o direito deste viver através de uma justa remuneração ao
seu labor, comprando os bens colocados ao consumo, na medida do possível e do
mínimo moral.
Por exemplo, nunca uma norma coletiva poderia determinar o trabalho em
condições completamente insalubres, sem as devidas proteções, pois uma norma
nesse sentido, apesar de hierarquicamente na mesma posição da CLT e produzida
24
Orlando Gomes, Contratos, p. 28.
41
em momento posterior, não poderia de forma alguma alterar o mínimo legal de
proteção à saúde do trabalhador, à sua vida.
Nesse mesmo sentido, nunca se
poderia negociar um trabalho com remuneração em espécie, sem o pagamento do
valor em pecúnia, no mínimo determinado pela CLT, pois estaria se limitando o
direito do trabalhador ao consumo, à opção que este tem de tocar a sua vida,
comprando os bens que bem entender, necessários ao seu viver, à sua vida. Estas
são, pois, normas cogentes, que não podem ser modificadas por outras normas de
mesmo escalão.
Abaixo, quando da discussão e exposição de alguns julgados, poderá ser
facilmente notado que, por exemplo, o intervalo de jornada pode ser considerado
como norma cogente, dependendo, logicamente, da interpretação judicial acerca da
matéria. Tal entendimento veda a negociação coletiva diminuindo o tempo entre um
ato de trabalho e outro, sob a argumentação de que tal norma afetaria à saúde do
trabalhador, que é tutelada pelo princípio de proteção à vida.
42
4.0) CASOS INTERESSANTES E JURISPRUDENCIAIS
Diz o artigo 71 da Consolidação das Leis do Trabalho o seguinte:
Art. 71. Em qualquer trabalho contínuo, cuja duração exceda a 6 (seis)
horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou
alimentação, o qual será, no mínimo, de 1 (uma) hora e, salvo acordo ou
convenção coletiva em contrário, não poderá exceder de 2 (duas) horas.
o
§1 – (...);
o
§2 – (...);
§3o – O limite mínimo de 1 (uma) hora para repouso ou refeição poderá ser
reduzido por ato do Ministro do Trabalho e Emprego quando, ouvida a
Secretaria de Segurança e Saúde no Trabalho, se verificar que o
estabelecimento atende integralmente às exigências concernentes à
organização dos refeitórios e quando os respectivos empregados não
estiverem sob regime de trabalho prorrogado a horas suplementares.
Por outro lado, diz a decisão abaixo, acerca da mesma questão –
intervalo intrajornada:
25
EMENTA - INTERVALO. REDUÇÃO POR NORMA COLETIVA. O
intervalo para refeição e descanso é, sem dúvida, norma que visa a proteger
a saúde do trabalhador e, portanto, só poderá ser reduzido – ainda que por
norma coletiva – se obedecidos os mesmos requisitos legais fixados para a
mesma redução por ato do Ministério do Trabalho, quais sejam: que o
estabelecimento onde o trabalhador preste serviços atenda integralmente às
exigências concernentes à organização dos refeitórios; e que o trabalhador
não esteja sob o regime de trabalho prorrogado a horas suplementares
(parág. 3o., do art. 71, da CLT).
25
a
Tribunal Regional do Trabalho da 15 região - Decisão 031965/2001-SPAJ do processo 01325-2000-084-1500-0 RO – Juiz Relator Jorge Luiz Souto Maior.
43
Como se pode perceber, existe uma norma posta – mais especificamente
o artigo 71 da CLT - que prevê a obrigatoriedade do intervalo intrajornada para os
trabalhadores, de no mínimo uma hora, enquanto a decisão acima colacionada faz
referência à redução do mesmo intervalo, via negociação coletiva.
As duas
proposições são logicamente excludentes – “faça intervalo de no mínimo uma hora”
e “faça intervalo de até trinta minutos”, por exemplo, são típicas normas relatadas no
caso acima, que se excluem mutuamente, por não poderem ambas ter validade no
mesmo período de tempo.
Mais interessante ainda são os julgados abaixo.
O primeiro trata o
intervalo intrajornada como norma de ordem pública, que se sobrepõe aos
interesses das partes e fixa-se como um direito fundamental do obreiro, que visa
proteger sua saúde, sua vida, impondo-se, pois, a autorização do Ministério do
Trabalho para que seja válida tal negociação.
26
NORMA COLETIVA (EM GERAL) Convenção ou acordo coletivo REDUÇÃO DO INTERVALO INTRAJORNADA - Por tratar-se de direito
fundamental do trabalhador, os limites mínimo e máximo, para a duração
do intervalo entre dois turnos, são estabelecidos por normas de ordem
pública, cogentes, restringindo a manifestação volitiva das partes envolvidas
no contrato de trabalho, não podendo ser derrogadas sequer pela via
simplista noticiada no caso presente, porquanto visam a proteção de todos
os trabalhadores, sobrepondo-se ao interesse particularíssimo de
determinados empregados de uma única empresa, isoladamente. Legítimo
o direito de as entidades sindicais representantes dos trabalhadores
promoverem negociações coletivas sobre condições de trabalho em geral,
inclusive, salarial, por autorização constitucional até, mas não podem
ultrapassar os limites da lei, malferindo direito fundamental conquistado por
luta secular, em nome da flexibilização das normas trabalhistas,
interpretando o inciso XXVI, do artigo 7º, da Constituição Federal, com a
amplitude que sua clara redação não enseja. A redução do intervalo para
repouso ou alimentação é até de competência exclusiva do Ministro do
Trabalho, com observância das exigências elencadas no parágrafo 3º, do
artigo 71, da C.L.T., vetando, inclusive, a adoção concomitante do regime
de prorrogação da jornada de trabalho.
44
Já este próximo acórdão é completamente contrário ao anterior, pois
considera invalida a norma que determina o monopólio da autorização para se
diminuir o intervalo como do Ministério do Trabalho, atribuindo tal competência
também às entidades sindicais, reconhecendo os fundamentos de validade dos
acordos e negociações coletivas de trabalho.
27
Lícita a redução do intervalo para refeições por força de convenção ou
acordo coletivo. O Ministério do Trabalho não detém o monopólio para essa
autorização. Negar poderes às entidades sindicais para convencionarem
pausa inferior a uma hora equivaleria a negar vigência à norma
constitucional que reconhece a validade dos acordos e convenções e
acordos coletivos (art. 7º, XXVI) e lhes confere autonomia para flexibilizar as
regras de duração, redução e compensação da jornada de trabalho (incisos
XIII e XIV do mesmo artigo).
A questão, pois, da eqüidade no escalão hierárquico entre a CLT e as
normas coletivas, vem sendo enfrentada até em nossos Tribunais do Trabalho, que
começam a reconhecer as afirmações realizadas no presente trabalho, de equidade
no grau hierárquico entre as citadas normas. Por exemplo, numa norma coletiva que
tratou de reduzir, em um período de tempo, o horário de descanso intrajornada,
retirando a validade da própria CLT, que regia a matéria de forma contrária à
negociação coletiva realizada.
Outro caso interessante pode ser revelado pelas decisões abaixo,
extraídas do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas, na 15a Região:
28
EMENTA – (...). HORAS "IN ITINERE". PREFIXAÇÃO EM NORMA
COLETIVA. VALIDADE. A Constituição Federal, além de reconhecer
expressamente as convenções e acordos coletivos de trabalho em seu
26
a
Tribunal Regional do Trabalho da 2 Região/SP – Processo n. 43207200290202004 RO – Acórdão da 4ªT
20030576045 - Rel. Carlos Orlando Gomes - DOE 07/11/2003
27
a
Tribunal Regional do Trabalho da 2 Região/SP – Processo n. 01279200202202005 RO - Acórdão da 1ªT
20030584307 - Rel. Wilson Fernandes - DOE 11/11/2003
28
a
Tribunal Regional do Trabalho da 15 Região - Decisão 031965/2001-SPAJ do processo n. 001335/2002-SPAJ
do Processo 00878-1997-029-15-00-7 RO – Juiz Relator Carlos Alberto Moreira Xavier.
45
artigo 7º, inciso XXVI, também prestigia a negociação coletiva como forma
preferencial de prevenir e solucionar conflitos, como se pode verificar do
disposto no parágrafo 2º do seu artigo 114. Verifica-se, deste modo, que a
atual Carta Magna privilegiou a negociação coletiva, incentivando o
entendimento direto das categorias, independente da intervenção do
Estado. Por isso, a jurisprudência atual, tanto do C. TST quanto deste
Regional, tem entendido válida a prefixação do tempo "in itinere" em norma
coletiva. (...).
Como se pode notar, novamente há uma citação da fonte da norma
coletiva de trabalho, onde se demonstra o início da mudança ideológica da
hierarquia das leis trabalhistas, devido ao expresso reconhecimento das convenções
e acordos coletivos laborais, diretamente pela Carta Magna, o que lhe confere um
vínculo de validade, trazendo-lhe existência no mundo jurídico.
Nesse mesmo sentido, e como último caso, pode ser observado no
julgado abaixo, no qual há novamente uma expressa menção à fonte das normas
coletivas de trabalho e suas limitações, qual seja, a própria Constituição Federal.
29
EMENTA - TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO. ACORDO
COLETIVO AMPLIANDO JORNADA. FOLGAS VANTAJOSAS AO
TRABALHADOR. VALIDADE. Muito embora o Legislador Constituinte tenha
inserido na Constituição Federal o reconhecimento das Convenções e
Acordos Coletivos celebrados (inciso XXVI, artigo 7º), autorizando a
flexibilização, não se pode olvidar que autonomia conferida aos sindicatos
tem limites na própria lei, não conservando soberania a ponto de vulnerar
direitos mínimos assegurados constitucionalmente. Assim, se a categoria
profissional abrir mão da jornada reduzida, deve a norma coletiva prever um
benefício em compensação para sua validade, o que ocorreu no presente
caso em que foram concedidas folgas semanais superiores às previstas em
lei. Trabalho extraordinário que não se reconhece pela validade da norma
coletiva. Recurso conhecido e não provido neste aspecto.
O julgado é claro ao reconhecer que a fonte das normas coletivas do
trabalho é a Carta Magna, bem como esta representa seu limite, e não a CLT, com
vem sendo ensinado há tempo nas diversas faculdades. Diz claramente que os
Tribunal Regional do Trabalho da 15a Região (Campinas/SP) - Decisão 031965/2001-SPAJ do Processo
Decisão 009146/2002-SPAJ do Processo 02191-1998-097-15-00-5 ROS – Juiz Relator Lorival Ferreira dos
Santos.
29
46
sindicatos têm como limite os direitos mínimos assegurados constitucionalmente, o
que vai ao encontro da tese lançada na presente.
47
5.0) CONCLUSÃO
O presente trabalho, que traz uma hierarquização mais adequada à
realidade das normas trabalhistas e à própria e atual utilização das normas coletivas,
vem acompanhado de uma visão mais adaptada à realidade social, no qual o Estado
vem perdendo suas forças como que daquele poder que tudo deve prover, num
sistema
excessivamente
intervencionista
nas
relações
sociais
existentes,
principalmente no aspecto empregado e empregador.
Logicamente, não se pretende uma negação ou supressão às normas
estatais, e nem é sobre isso que se trata o presente estudo, mas sim, e apenas isso,
uma flexibilização do direito laboral através da correta limitação das negociações
coletivas de trabalho, o que pode trazer incentivos à produção de empregos e ao
desenvolvimento econômico-social, se corretamente utilizada.
Primeiro, como já dito anteriormente, sendo a Constituição Federal a
norma imediatamente superior à própria CLT e outras normas coletivas quaisquer, e
estando estas últimas no mesmo escalão, resta-nos o próprio conteúdo da Carta
Magna como direitos mínimos aos trabalhadores, sendo certo que, por ter vigência
48
por prazo indeterminado, a CLT já exterioriza diversos direitos conquistados,
inerentes à esfera jurídica laboral.
Nesse sentido, tendo em vista o próprio conceito de um acordo ou
convenção coletiva, teoricamente, os trabalhadores nunca podem ter seus direitos
suprimidos, pois, se de um lado se retira algum benefício, de outro, o sindicato da
categoria o traz de volta, já que tais normas representam, no fundo, um contrato
bilateral, entre duas partes, mas que obriga toda uma categoria de empregados e
empregadores.
E mais, os direitos mínimos a serem negociados estão em nossa Carta
Magna, que não permite as extrapolações não pretendidas pelo próprio Estado, que
tem por fim manter a tranqüilidade e o desenvolvimento sócio-econômico, bem como
a harmonia em nosso sistema jurídico-normativo, impedindo, assim, que as partes
acordem direitos senão aqueles permitidos – nos limites das normas constitucionais
e normas de ordem pública. As condições de trabalho não podem, seja no aspecto
social, ou no legal, ser totalmente flexibilizadas, sob pena de trazer uma insegurança
ao trabalhador, que ficaria completamente desprotegido. E é para tanto que existem
as entidades sindicais, que tornam a negociação coletiva a melhor forma, e a mais
democrática, de se ajustar as normas às atuais situações fáticas, de mercado e de
necessidade, abrangendo situações peculiares de cada classe trabalhadora e
empresas respectivas.
49
6.0) BIBLIOGRAFIA
BOBBIO, Norbeto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Maria Celeste
C. J. Santos. 10a Ed. Brasília : Ed. Universidade de Brasília, 1999.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998.
FERRAS JR., Tercio Sampaio / e outros / A Norma Jurídica.
Freitas Bastos, 1980.
Rio de Janeiro:
GOMES, Orlando/ Contratos. 2a Ed. Rio de Janeiro : Editora Forense, 1966.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de Dr. João Baptista Machado.
6a Ed. Coimbra : Editora Armênio Amado, 1984.
KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Tradução de José Florentino Duarte.
Porto Alegre : Fabris, 1986.
MARTINS, Sérgio Pinto. Flexibilização das Condições de Trabalho. 2a Ed. São
Paulo : Editora Atlas S.A., 2002.
MORATO, João Marcos Castilho Morato. Globalismo e Flexibilização Trabalhista.
Belo Horizonte : Editora Inédita, 2003.
BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Compilação de Armando Casimiro
Costa, Irany Ferrari, Melchíades Rodrigues Martins. - 30a Ed. – São Paulo: LTr,
2003.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de
outubro de 1988 / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a Colaboração de
Antonio Luiz de Toledo Pinto e Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt. – 22a Ed.
atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva., 1999.
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