DIREITOS FUNDAMENTAIS E TÉCNICA CONSTITUCIONAL Reflexões sobre o positivismo científico de Pontes de Miranda GEORGE SARMENTO1 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O positivismo de Pontes de Miranda. 3. Entre o despotismo e a civilidade. 4. Finalidade e conteúdo dos direitos fundamentais. 5. Epílogo. RESUMO: O artigo tem o objetivo de investigar a contribuição de Pontes de Miranda para a teoria dos direitos fundamentais. É uma análise do seu projeto constitucional, baseado na estabilidade das constituições, no fortalecimento dos direitos fundamentais e no equilíbrio entre liberdade, igualdade e democracia. Também enfatiza o papel da técnica jurídica na produção de mecanismos de defesa das constituições no Estado Democrático de Direito. Palavras Chaves: Ciência Constitucional. Positivismo. Neoconstitucionalismo. Fundamentação dos Direitos humanos. Abstract: 1. INTRODUÇÃO Yo soy yo y mi circunstancia y si no la salvo a ella no me salvo yo. Ortega y Gasset Em suas Meditaciones del Quijote, o filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) afirma que o homem está irremediavelmente imerso em sua realidade circundante. A vida é o eu no mundo. Tudo o que fazemos, pensamos ou queremos está determinado pelas circunstâncias que nos cercam. Os atos humanos não são ditados exclusivamente pelo subjetivismo, pelo querer individual, mas 1 Doutor em Direito Público (UFPE), Professor Adjunto de Direitos Humanos Fundamentais na Faculdade de Direito de Alagoas/UFAL; Professor convidado da Universidade de Montpellier 1; Coordenador do Mestrado em Direito FDA/UFAL ; Promotor de Justiça. 1 também pela ambiência em que se desenvolvem. A circunstância é o meio em torno do qual a vida se expande em sua forma mais ampla. O constitucionalismo é produto de duas circunstâncias históricas: a queda do absolutismo no século XVIII e o fim da 2ª Guerra Mundial. Com a Revolução Francesa, o constitucionalismo se desenvolveu como uma ideologia que buscava estruturar o Estado em torno de uma carta política que assegurasse as liberdades, a separação dos poderes e a representação popular. A maioria das Constituições européias adotava o modelo estruturalista, baseado na prevalência das normas de forma: instituíam órgãos, funções, poderes constituídos e a respectiva repartição de competências. O Pós-Guerra provocou uma mudança de paradigma que se convencionou chamar neoconstitucionalismo. As feridas deixadas pelo nazismo e pelo fascismo estavam longe de cicatrizar. As democracias ocidentais temiam a volta do arbítrio, do autoritarismo, da intolerância e do genocídio. O grande desafio não era mais a estruturação do Estado de Direito, mas a estabilidade constitucional e a proteção dos direitos fundamentais. Hoje o movimento tem como grandes temas o caráter normativo dos princípios, a ampliação da jurisdição constitucional, a introdução de novas categorias hermenêuticas e a força vinculante dos direitos fundamentais. Pontes de Miranda foi o precursor dessas idéias no Brasil. Ele via na técnica jurídica uma importante metodologia para desenvolver mecanismos de defesa da Constituição. Já na década de 40, propunha soluções como a supraestalidade dos direitos fundamentais, a rigidez constitucional, a ampliação do cerne imodificável, o controle de constitucionalidade, a planificação das ações governamentais e a criação de remédios jurídico-processuais específicos. Sustentava a tese de que só o equilíbrio entre liberdade, igualdade e democracia faria o Estado atingir o seu maior objetivo: o bem-estar social. Este artigo procura estudar a importância do pensamento de Pontes de Miranda para a teoria dos direitos fundamentais, sobretudo nos domínios da técnica jurídica. Tem como ponto de partida algumas reflexões sobre as idéias do jurista alagoano, especificamente o papel da ciência positiva do direito para a evolução civilizatória, a valorização do homem e a felicidade coletiva. Busca também analisar a forma pela qual ele soube conciliar a teoria do fato jurídico com os novos desafios do direito constitucional. Por fim, é uma singela forma de homenagear o professor Marcos Bernardes de Mello, de quem sou eterno aluno e admirador. É um sincero agradecimento ao mestre que o foi o responsável por incutir em tantas gerações o prazer de mergulhar no inesgotável universo ponteano. 2. O POSITIVISMO DE PONTES DE MIRANDA Pontes de Miranda nasceu em 1892 na cidade de Maceió. Aos 30 anos de idade, publica a obra em que esboça os principais fundamentos de sua 2 construção teórica: Sistema de Ciência Positiva do Direito (1922). É também nela que ele se aproxima do positivismo de Auguste Comte (1798-1857). O filósofo francês impôs-se a missão de cumprir duas tarefas gigantescas: a reorganização da sociedade e a regeneração da ciência. Para Comte, a sociedade estava mergulhada numa profunda anarquia moral e política que corroia suas bases e ameaçava a sua sobrevivência. A única forma de escapar dessa crise era a construção de um novo sistema social baseado no progresso, prosperidade e avanço científico. Em suas palavras, a reorganização da sociedade significava o “estado social definitivo da espécie humana, o mais conveniente à sua natureza, no qual todos os meios de prosperidade devem receber seu mais completo desenvolvimento e sua aplicação mais direta2”. Ao tratar da segunda tarefa, Auguste Comte sustentava que a Sociologia (antes denominada Física Social3) completaria a hierarquia das demais ciências. Para ele, as ciências sociais deveriam ser estudadas com o mesmo rigor metodológico que outras ciências positivas, como a Matemática, Química, Biologia etc. A missão do cientista consistiria na revelação de leis naturais invariáveis que explicassem os fenômenos sociais. Este posicionamento ficou bem claro nos Opuscules sur la philosophie sociale: Entendo por Física Social a ciência que tem por objeto próprio o estudo dos fenômenos sociais, considerados com o mesmo espírito que os fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, isto é, como submetidos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta é o objetivo especial de suas pesquisas. Comte afirmava que, ao longo dos séculos, muitas áreas do conhecimento humano transformaram-se em ciências positivas. Era chegada a vez da Sociologia. Essa revolução permitiria que outras ciências sociais – Filosofia, Moral e Política – se despregassem de toda e qualquer influência teológica ou metafísica para também atingirem a positividade. As proposições de Auguste Comte influenciaram profundamente a construção da ciência positiva do direito arquitetada por Pontes de Miranda. Muitos aspectos da obra ponteana contribuem para provar essa assertiva. Além do Sistema de Ciência Positiva do Direito, duas obras são fundamentais para 2 Opuscules sur la philosophie sociale (apresentados como apêndice do volume 4 do Sistema de Política Positiva). Extratos recolhidos por Evaristo de Morais Filho, in Auguste Comte – Sociologia. Ática: São Paulo, s/d, p. 53. 3 O vocábulo sociologia foi empregado pela primeira vez por Auguste Comte em 1889. Ele aparece no volume IV do Curso de Filosofia Positiva com a seguinte redação: “Acredito que devo arriscar, desde agora, esse termo novo, sociologia, exatamente equivalente à minha expressão, já introduzida, de física social, a fim de poder designar por um nome único esta parte complementar da filosofia natural que se relaciona com o estudo positivo do conjunto de leis fundamentais apropriadas aos fenômenos sociais”. 3 compreender a visão científica do jurista alagoano: Introdução à Política Científica (1924) e Introdução à Sociologia Geral (1924). Pontes de Miranda também era partidário da reorganização da sociedade através da ciência - considerada a única forma de libertar a humanidade do atraso, do imobilismo e da corrupção em que se via mergulhada. Em suas palavras, “a ciência tirada dos fatos, a ciência positiva implica a mais profunda revolução, a completa reorganização das sociedades contemporâneas, fundadas todas, em graus diferentes, no empirismo e na escolástica4 (destacamos)”. Em artigo publicado na obra coletiva intitulada À Margem da História da República, lançada em comemoração ao centenário da proclamação da independência do Brasil, Pontes de Miranda defendeu essa tese com veemência, fazendo uso da mesma metodologia proposta pela Escola Positivista. O texto denuncia a degenerescência da Velha República, repleta de vícios que condenavam o país ao atraso. Em seguida aponta a origem dos males, para, então, apresentar soluções científicas para o problema. As denúncias eram feitas com grande contundência: Não há nenhum país em que sejam tão irresponsáveis e irresponsabilizados os dirigentes, os funcionários e os próprios particulares. Nada se apura; só há um limite para os desmandos e as dilapidações dos dinheiros públicos, dos incapazes, das instituições: o apetite dos funcionários, governantes e gestores. A melhor indústria é a do Tesouro; cada governo traz o seu programa e os programas, a despeito da vigilância de alguns Presidentes, logo se tornam função dos interesses de certos capitalistas. É tão bem organizado o assalto anual ao erário público que há um consorcium para as concorrências e só este pode consegui-las. O lucro é tão grande que dá para ser dividido por mais de vinte membros do grupo. E o país endividado, pobre, desmoralizado, cambaleia por aí afora, megalomaníaco no seu gigantismo doentio de colosso esquálido e corroído5. Argumentava que a crise decorria da venalidade dos funcionários públicos, da fragilidade dos partidos políticos, do inadequado transplante de leis estrangeiras, da instituição do latifúndio, da exploração da mão-de-obra e do apriorismo nas ações governamentais. Seguindo os passos de Auguste Comte e Herbert Spencer (1820-1903), sustentava que só a ciência positiva poderia direcionar a civilização para uma era de progresso e civilidade. Fiel ao ideal positivista, propunha estratégias para a regeneração do Estado, através de um vasto programa de medidas supostamente baseadas em indicativos científicos6. 4 MIRANDA, Pontes de. Introdução à Política Científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 218. MIRANDA, Pontes de. Preliminares para a Revisão Constitucional, in À Margem da História da República. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1924, pp. 163-164. 6 MIRANDA, Pontes de. Preliminares para a Revisão Constitucional, in À Margem da História da República. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1924, pp. 190-200. 5 4 Pontes de Miranda também acreditava que os fatos sociais estão sujeitos a leis imutáveis. Caberia ao cientista estudar a matéria social para revelar as leis de estrutura e apontar o sentido da evolução civilizatória7. Sustentava que “os fatos sociais são estudados como objeto de ciência autônoma, mas com tão desejado rigor, aprendido nas outras disciplinas, que as suas leis são conferíveis e verificadas com as das outras, e os seus resultados, depois de comprovados dentro do domínio sociológico, podem ser submetidos à crítica geral no concerto das demais ciências8”. Para ele, dois grandes princípios evolutivos permeavam tanto a sociologia como a ciência do direito: o princípio da integração e dilatação dos círculos sociais e o princípio da progressiva diminuição do quantum despótico, que serão analisados mais adiante. Também concebeu leis sociológicas: lei da evolução das organizações sociais, lei da evolução da justiça, lei da evolução cíclica da regra jurídica, lei do esforço convertido, lei do crescente predomínio do espírito livre etc. Seguindo os passos de Comte9, Pontes de Miranda sustentava que a mentalidade humana evoluiu no curso de três fases cíclicas: (a) intuicionismo, (b) dedutivismo e (c) indutivismo. Na primeira fase imperava o empirismo, a tradição, o primitivismo, a supertição. Embora mais racionalista, a segunda fase foi marcada pelo apriorismo e pela escolática medieval, com forte influência religiosa. Finalmente a humanidade teria atingido a terceira fase em que prevalecia a investigação positiva e científica. A partir de então caberia à ciência apontar os caminhos da evolução social. A humanidade chegaria a um estágio em que até mesmo as regras jurídicas seriam reveladas por cientistas. Dessa forma, o direito abandonaria o empirismo e o apriorismo dos corpos legislativos e assumiria uma postura absolutamente positiva. A idéia era assegurar aos juristas todas as condições para revelar o direito sem a intervenção de aparelhos despóticos como o governo, o parlamento ou a igreja. Essa seria a lógica da lei da crescente liberdade de revelar o direito, cuja proposição é a seguinte: Se a humanidade não descontinuar a sua carreira evolutiva, terá, necessariamente, de recorrer ao critério exclusivamente científico, livre, para a elaboração da regra jurídica. Fabricará a lei, como faz os soros, – nos laboratórios: e sem precisar de qualquer aprovação oficial, que constitui supérfluo despótico, que não dá nem tira nenhuma força à verdade das invenções e dos descobrimentos10”. 7 MIRANDA, Pontes de. Introdução à Política Científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 4. MIRANDA, Pontes de. Introdução à Sociologia Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. XIII. 9 Auguste Comte já sustentava que a evolução intelectual estava sujeita à lei sociológica dos três estágios: teológico (fetichismo, politeísmo, monoteísmo), metafísico e positivo. Embora possam coexistir na dimensão tempo-espaço, os dois primeiros estágios são provisórios, enquanto que o terceiro é definitivo. 10 MIRANDA, Pontes de. Introdução à Sociologia Geral. Rio de Janeiro: Forense, p. 176. 8 5 Não se trata aqui de rejeição aos sistemas democráticos em que representantes do povo são eleitos para editar as leis que vão ditar as condutas dos destinatários. Mas no reconhecimento de que os parlamentares não detêm conhecimentos necessários para a revelação de leis positivas. É a crença de que a neutralidade da ciência seria um fator decisivo para a diminuição do despotismo político que se esconde em práticas como o clientelismo, o populismo e o tráfico de influência, ainda tão comuns em nosso país. A democratização do direito residiria na segurança que a verdade científica traria para as normas jurídicas. E não nas deliberações parlamentares, quase sempre marcadas por fortes pressões econômicas e interesses circunstanciais. Além disso, os governos não eram fundados na representação, mas no compromisso com a felicidade geral. E esse fim só poderia ser alcançado pela observância dos indicativos científicos. Significa dizer que as normas jurídicas só seriam verdadeiramente positivas se dotadas de cientificidade. Todas as que fossem concebidas à luz do empirismo ou do apriorismo seriam apenas formalmente jurídicas, mas não positivas. Ao formular a lei da crescente liberdade de revelar o direito, Pontes de Miranda não foi original. Apenas transpôs para a política legislativa a proposição de Auguste Comte. No apêndice do Sistema de Política Positiva (volume IV), o sociólogo francês já defendia a grande influência espiritual que os cientistas deveriam exercer sobre a sociedade, pois reuniam em si mesmos dois grandes requisitos ao exercício do “governo moral”: capacidade e autoridade teórica. Roger-Gérard Schwartzenberg observa tal postura fez Comte mergulhar nos excessos da sociocracia (crença segundo a qual os governos só poderiam ser exercidos pelos sábios, os únicos com capacidade de encontrar soluções científicas para os problemas que afligiam a humanidade) e, posteriormente, nas extravagâncias da sociolatria com o nascimento da Igreja Positivista da Humanidade11. Pontes de Miranda também era partidário da regeneração da ciência. E lutou para que – a exemplo da Sociologia – o Direito também se transformasse em ciência positiva, inclusive utilizando-se de métodos próprios das ciências exatas e naturais. Isto porque os fatos jurídicos seriam descritíveis, observáveis, classificáveis e sujeitos a leis imutáveis. Em sua Introdução à Política Científica, sustentava que “a ciência positiva do direito é a sistematização dos conhecimentos positivos das relações sociais, como função do desenvolvimento geral das investigações científicas em todos os ramos do saber12”. É exatamente nesse ponto que o positivismo ponteano difere da Teoria Pura do Direito proposta por Hans Kelsen (1881-1973). 11 12 SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. Sociologia Política. São Paulo: DIFEL, 1979, p. 18. MIRANDA, Pontes de. Introdução à Política Científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 15. 6 O positivismo de Kelsen é jurídico-normativista. Reduz a ciência do direito ao dever-ser, visto sempre sob uma perspectiva prescritiva na qual a norma jurídica é a fonte absoluta de investigação. Assim, a teoria pura do direito tem como objeto as estruturas formais lógicas das normas jurídicas, sem qualquer preocupação com o seu conteúdo. A missão purificadora dessa corrente doutrinária estaria na libertação da ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Tais elementos eram próprios de ciências conexas como a Sociologia, a Psicologia, a Ética e a Ciência Política. A aplicação desse princípio metodológico fundamental teria o objetivo de evitar o que o mestre austríaco chamava de sincretismo metodológico, responsável pelo obscurecimento da ciência jurídica13. Já o Sistema de Direito Positivo concebido por Pontes de Miranda não se restringia ao normativismo. Ao contrário, ele acreditava que todos os ramos do saber eram úteis para a ciência do direito O jurista não poderia desprezar os indicativos de outras ciências na formulação do direito positivo. Nesse sentido, era taxativo: No direito, se queremos estudá-lo cientificamente como ramo positivo do conhecimento, quase todas as ciências são convocadas pelos cientistas. A extrema complexidade dos fenômenos implica a diversidade do saber. As matemáticas, a geometria, a física, a química, a biologia, a geologia, a zoologia e a botânica, a climatologia, a antropologia e a etnografia, a economia política e tantas outras constituem mananciais em que o sábio da ciência jurídica bebe o que lhe é mister. Nas portas das escolas de direito devia estar escrito: aqui não entrará quem não for sociólogo. O sociólogo supõe o matemático, o físico, o biólogo. É a flor da cultura14(destacamos). Pontes de Miranda, portanto, não comungava da idéia de reduzir a ciência do direito à norma jurídica, expurgando-se do campo de investigação todos os elementos que fossem próprios de outras ciências. Ele sustentava que a ciência positiva do direito também deveria fazer uso de indicativos e métodos provenientes de outros campos do saber. Sua maior aspiração estava na concepção de um sistema em que o direito se transformasse em ciência positiva. Em suas obras sociológicas, filosóficas e políticas utilizou amplamente conceitos provenientes das matemáticas, ciências exatas e biológicas, além de aplicar o método histórico-comparativo – tão caro a Comte. Entretanto, o Sistema também comporta uma dimensão normativa: a teoria do fato jurídico – magnificamente exposta por Pontes de Miranda em seu 13 14 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Armênio Amado Editora, pp. 17-18. MIRANDA, Pontes de. Introdução à Política Científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 16. 7 Tratado de Direito Privado. Segundo tal concepção, que não é objeto do presente ensaio, existe uma relação de causalidade entre regra jurídica e suporte fático com o nascimento do fato jurídico e das relações jurídicas. Dessa forma, só se pode falar de fato jurídico após a juridicização do suporte fático pela incidência normativa. Daí a afirmação de que “fato jurídico é o que fica do suporte fático suficiente, quando a regra jurídica incide e porque incide 15”. É correto dizer que se trata de teoria lógico-jurídica, que rivaliza com o positivismo jurídico de Hans Kelsen. Nela, qualquer discussão referente a valores, finalidade ou conteúdo da norma é estranha ao terreno jurídico. Assim, “o que fica para trás da incidência é político, objeto de ciência, ou da filosofia16”. Mas também é acertado afirmar que nada impede que o debate sobre a natureza hipotética das normas jurídicas seja travada no campo ciência ou da técnica do direito. Isso porque o espectro de investigação da ciência positiva do direito é muito mais vasto que o da teoria jurídica. Um dos maiores equívocos na interpretação da obra de Pontes de Miranda é afirmar que a teoria positiva do direito é meramente normativista. Não é difícil constatar que sua grande meta era a edificação de um sistema de ciência positiva em que o fenômeno jurídico fosse analisado sob diversos prismas com o máximo de cientificidade. Daí falar-se em dimensão axiológica, antropológica, sociológica e normativa do direito. Isso também explica por que Pontes de Miranda utilizou outros métodos no tratamento do direito constitucional. É nesse campo que ele busca conciliar o normativismo da teoria do fato jurídico com a politicidade. Um exemplo ajudará a compreensão desse argumento. Ao contrário de muitos constitucionalistas brasileiros - que se calaram diante do Regime Militar de 1964, preferindo interpretar a Constituição à luz da investigação lógico-normativa, sem qualquer preocupação com o conteúdo da norma constitucional – Pontes de Miranda foi taxativo em afirmar que o Brasil estava sob o jugo de um golpe de estado, desprovido de qualquer legitimidade. Com rara coragem cívica e lealdade aos princípios defendidos ao longo da vida, observava que “na Constituição de 1967, que foi feita pelo Congresso Nacional poluído de cassações arbitrárias e pelas pressões nunca vistas no Brasil, não se alude sequer, a Assembléia Constituinte, nem a „representantes do povo‟17”. E continua, mais adiante: “Mas o que se passou de 9 de abril de 1964 a 14 de março de 1967 foi pior do que acontecera em 1930 e 1937: mutilou-se o Congresso Nacional e implantou-se ditadura de ligações inconfessáveis e oligárquicas, chegando-se ao ponto de termos uma Constituição sem Assembléia Constituinte, autêntica, nem feita de acordo com os princípios18 (destacamos).” 15 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo 1. São Paulo: Bookseller, 1999, p. 126. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo 1. São Paulo: Bookseller, 1999, p. 126. 17 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo, RT, 1970, p. 442. 18 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo, RT, 1970, p. 448. 16 8 Pontes de Miranda nunca escondeu sua opção pelo Estado Democrático de Direito, baseado na supra-estalidade dos direitos fundamentais, na democratização do poder estatal, no controle de constitucionalidade e no respeito ao princípio da legalidade. A politicidade não decorria de ativismo político. Tampouco tinha natureza panfletária. Era produto de convicções científicas que incluía o primado da liberdade, igualdade e democracia na construção constitucional. Quando Estado negava esses princípios, instala-se o despotismo em suas formas mais perversas (ditaduras, tiranias, terror) com a conseqüente violação dos direitos humanos. Nesses momentos difíceis da vida institucional do país, caberia ao jurista denunciar o arbítrio. E também fazer uso de indicativos científicos para apontar os caminhos da normalidade democrática. Foi assim que se posicionou em relação ao Golpe de 1964: É de reconhecer-se que, com os golpes de 1964 e 1968, se tornou difícil a volta à democracia e à liberdade; mas a despeito das dificuldades, a volta é necessária, quer para que se evitem ditaduras da direita ou da esquerda, quer para que se consiga o desenvolvimento científico, econômico e técnico do Brasil19. No tratamento dos direitos fundamentais, Pontes de Miranda também não fica refém do normativismo. Os Comentários à Constituição de 1967 evidenciam a politicidade como método de construção da teoria constitucional20. Também fica evidente sua preocupação com a finalidade e o conteúdo do direito. A exclusiva utilização dos postulados normativistas daria uma visão parcial do direito constitucional, desfalcando-o da forte carga política de que é detentor. Lourival Vilanova a divide a obra de Pontes de Miranda em duas fases: a primeira, entre (1922 a 1937) fundada em bases naturalistas e direcionada para a filosofia positivista; a segunda, consolidada em 1954 com a publicação do Tratado de Direito Privado, com perfil mais dogmático baseava-se na separação entre o fáctico e o jurídico e na purificação da ciência do direito (com a supressão de elementos estranhos ao normativismo, como a política, psicologia, sociologia etc.)21. Discordamos do ilustre filósofo pernambucano quando ele aponta hiato e descontinuidade entre as fases. Na verdade, o sociologismo positivo e o dogmatismo normativo são partes de sua grandiosa aspiração de sistematizar a 19 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo, RT, 1970, p. 452. A forte influência que a política exerce sobre o Direito Constitucional é um dado que tem chamado a atenção dos doutrinadores clássicos. Luiz Sánches Agesta vê o Direito Constitucional como ordem política (Cf. Curso de Derecho Constitucional Comparado. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1988, p.38). Jorge Xifra Heras também o considera direito político por natureza (Curso de Derecho Constitucional, tomo 1. Barcelona: Bosch Casa Editoria, 1957, p. 96). Para Maurice Hauriou, o Direito Constitucional tem como fim estabelecer o equilíbrio entre ordem, poder e liberdade – eis o problema político (Principios de Derecho Público y Constitucional. Madrid: Instituto Editorial Réus, 1927, p. 8). 21 VILANOVA, Lourival, A Teoria do Direito em Pontes de Miranda, in Escritos Jurídicos e Filosóficos, v. 1. São Paulo: IBET, 2003, p. 412. 20 9 ciência positiva do direito sob a influência da Escola Sociológica Francesa, inaugurada por Auguste Comte e desenvolvida por Le Play (1806-1882), Durkheim (1858-1917), entre outros. Pontes de Miranda jamais adotou postura revisionista. Sempre deixou claro que a sistematização da ciência positiva do direito era tarefa gigantesca que deveria ser construída por etapas. Orgulhava-se de ter se mantido fiel aos ideais da juventude, defendendo as mesmas idéias expostas em suas primeiras obras, mas sempre avançando em direção à cientificidade. No prefácio da 7ª edição da História e Prática do Habeas Corpus (1972), mostra toda fidelidade às suas convicções científicas, com a seguinte profissão de fé: Há cinqüenta e seis anos publiquei esta obra; e o que me alegra, profundamente, é que, durante toda a vida, até hoje, continuo com as mesmas convicções, e nunca as traí. Vi, lá fora, os erros dos que ferem a liberdade, fraudam a democracia e não compreendem que se tem de avançar no sentido de diminuir a desigualdade humana22. Em síntese, a Ciência Positiva do Direito comporta não apenas investigações lógico-normativas, mas também psicosociais, sociológicas e biológicas. A preocupação com a finalidade do Estado e com os mecanismos técnicos para fortalecer e assegurar a perenidade das Constituições democráticas são as grandes vigas que sustentam a formulação teórica desenvolvida por Pontes de Miranda. 3. ENTRE O DESPOTISMO E A CIVILIDADE Para construir o seu sistema de ciência positiva do direito, Pontes de Miranda utilizou largamente categorias pertencentes à Sociologia e à Psicologia Social, sobretudo o processo de socialização. A socialização se desenvolve em três etapas consecutivas: aquisição da cultura, integração da cultura à personalidade e adaptação ao ambiente social. A primeira etapa é o processo de aquisição de conhecimentos, modelos, valores, símbolos e também maneiras de fazer, pensar e sentir próprias dos círculos sociais em que determinada pessoa está integrada. Eles são apreendidos no curso da vida pela repetição, imitação, oferta de recompensas, imposição de castigos etc. Em seguida os padrões de cultura integram-se ao organismo e à psique da pessoa determinando sua conduta na sociedade. A conseqüência disso é a adaptação ao ambiente social, ou seja, a estandardização e a uniformização de condutas23. 22 23 MIRANDA, Pontes. História e Prática do Habeas Corpus. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. ROCHER, Guy. Introduction à la sociologie générale. L’Action sociale. Paris : HMH, 1968. 10 A adaptação de uma pessoa ao ambiente social está diretamente ligada à idéia de pertença. Significa que o indivíduo interiorizou suficientemente os códigos, modelos, valores e símbolos de seu meio e os integrou à sua estrutura psíquica para ser aceito como membro de determinada coletividade. Pontes de Miranda sustenta que adaptação social se processa na estrutura psíquica do indivíduo, através da atuação de inúmeros processos como a Religião, Moral, Arte, Política, Economia, Ciência etc. O Direito também é considerado um processo de adaptação social, inclusive corretivo de defeitos de adaptação social. A força coercitiva e a incidência obrigatória de suas normas são fortes instrumentos de pacificação social. O sociologismo positivo de Pontes de Miranda tem como ponto de partida dois princípios básicos: (a) o princípio da progressiva diminuição do quantum despótico e (b) o princípio da crescente dilatação dos círculos sociais. Ambos indutivos, experimentais e correlativos. Nota-se aí a influência do naturalismo de Herbert Spencer. O autor dos Principles of Sociology tomou como base a Biologia para sustentar que a evolução dos corpos segue uma linha inexorável: parte dos estágios primitivos, em que preponderam a simplicidade das estruturas, para estágios cada vez mais avançados em que se verifica a crescente heterogeneidade das partes. Da mesma forma que os organismos biológicos, Spencer considerava a humanidade um ser vivo sujeito à lei geral da evolução. Em sua origem, a organização social era simples, homogênea, indiferenciada. Pouco a pouco as estruturas tornaram-se mais complexas e heterogêneas num processo sucessivo e descontínuo - (horda, clã, tribo, família, país, nações unidas, humanidade etc.). Como veremos em seguida, Pontes de Miranda também adotou a postura evolucionista, tão comum aos intelectuais de sua época. Para ele a violência era um grande entrave à adaptação social. A Ciência Positiva do Direito tinha a missão de reduzir o coeficiente despótico e acelerar o fluxo civilizatório rumo ao progresso material e espiritual da humanidade. E isso só seria possível com a integração e expansão dos círculos sociais. A. Princípio da progressiva diminuição do quantum despótico Da mesma forma que um organismo vivo, a conservação social pressupõe dispêndio de energia. Partindo desse ponto de vista, Pontes de Miranda sustenta que a evolução civilizatória pressupõe a substituição da energia violenta (quantum despótico) em energia adaptativa (civilidade). O despotismo está profundamente enraizado na civilização humana. O maior objetivo da ciência positiva do direito é a extirpação (ou a redução significativa) de todas as formas de violência que perturbam a convivência social. O processo evolutivo, que é contínuo e inexorável, exige índices cada vez maiores de civilidade, qual seja, a transformação da energia violenta – o quantum despótico – em energia social adaptativa e integradora cujo efeito direto é a 11 crescente pacificação social. Daí porque o quantum despótico diminui na razão inversa da adaptação. Essa é a fórmula: “mais adaptação menos quantum despótico24”. O quantum despótico de determinado Estado pode ser quantificado através de dados estatísticos. Manifesta-se pela intensificação de energias violentas (arbítrio político, desigualdades sociais, desemprego, violações dos direitos fundamentais etc.). O papel da ciência positiva do direito consiste em apontar meios, caminhos e ações que permitam a crescente adaptação social e conduzam à civilidade. E isso só é possível com a concepção de políticas públicas eficazes, que conduzam à justiça social e à efetivação dos direitos sociais. A civilidade seria um estado em que a adaptação social seria plena, desprovida de violência física, moral ou espiritual. O despotismo seria transformado em energia civil, capaz de estabilizar as relações intersubjetivas e expurgar todas as formas arbítrio, empirismo ou apriorismo. A valorização do homem é a forma mais eficaz de aumento da energia adaptativa. Sempre que os povos avançam em direção à dignidade humana, a convivência pacifica-se, a adaptação social expande-se. Mas se ocorrer o contrário, isto é, se o Estado absorver elementos despóticos que redundem no agravamento das desigualdades sociais, na supressão dos direitos fundamentais, no autoritarismo ou na negação da democracia, o quantum despótico aumentará, trazendo consigo retrocesso político, violência civil e anomia. B. Princípio da crescente dilatação dos círculos sociais. Os círculos sociais são estruturas em que são estabelecidas condições de coexistência sob a forma de direito. A evolução consiste no crescimento dos círculos sociais através da força adaptativa e da ampliação da civilidade. Pontes de Miranda defende a tese de que os círculos sociais tendem a se expandir pela absorção pacífica de outras estruturas menores. A civilidade só é possível se o crescimento tiver como mola propulsora forças adaptativas e integradoras. O crescimento decorrente do uso da violência é sempre precário e desagregador. Pontes de Miranda acreditava que a evolução dos povos estaria na crescente integração dos círculos sociais, mediante a substituição do arbítrio pela energia adaptativa. Esse movimento começaria nas organizações mais simples até alcançar todo o Planeta, dando início a uma era de progresso e paz para toda a humanidade. Daí o seu entusiasmo pelo direito internacional público como instrumento de aproximação e integração de Estados na busca de objetivos comuns. O jurista alagoano certamente veria com bons olhos os avanços da União 24 MIRANDA, Pontes de. Introdução à Política Científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 107. 12 Européia, do Mercosul, dos tribunais internacionais e, sobretudo, a projeção dos tratados de direitos humanos sobre as nações de todos os continentes. 4. FINALIDADE E CONTEÚDO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Pontes de Miranda sustenta que a finalidade do direito consiste na realização da maior soma possível de utilidade para o corpo coletivo. Ou seja, na felicidade, normal, média possível da humanidade. A organização econômica e a estrutura jurídica devem se articular para proporcionar o máximo de bem-estar para todos25. A idéia de felicidade geral permeia toda obra de Pontes de Miranda. Isso mostra a importância do utilitarismo de Jeremy Benthan na análise da finalidade do direito. Em Bentham, a visão individualista do homem como sujeito de direitos individuais é substituída pelo coeficiente de felicidade geral, isto é pela satisfação dos desejos, prazeres e aspirações da coletividade. Neste contexto, o utilitarismo se ergue como princípio maximizador do bem-estar geral (welfare). O bom governo caracteriza-se pelo índice crescente de felicidade geral que proporciona aos governados. O fundamento do poder político consiste no bemestar da maioria da população, verdadeiro requisito de legitimação do governo. A preocupação do utilitarismo era com o conjunto, o todo, a comunidade. Sozinho, o homem não tinha qualquer valor extrínseco. Ao utilitarismo só interessava o saldo de satisfação e felicidade presentes na sociedade, através da verificação empírica de determinados índices de prazer coletivo. Sua principal premissa era a felicidade da maioria: um bem-estar social ilimitado, cada vez maior. Nesse particular, Pontes de Miranda buscou conciliar o utilitarismo de Benthan, Pareto e Edgeworth com a prevalência das liberdades públicas na ordem constitucional. Em 1944, lança Democracia, Liberdade e Igualdade, tornando-se um dos precursores do neoconstitucionalismo no Brasil. Nesta obra sustenta a tese de que a finalidade da sociedade progressiva no século XX consistia em três pontos: assegurar as liberdades individuais, manter a democracia, promover a igualdade com a concretização dos direitos sociais26. Apresenta a distinção entre Ciência, Técnica e Política Constitucional. A Ciência Constitucional tem a missão de apresentar indicativos seguros para que o Estado atinja o seu fim maior: a felicidade geral. Cabe à Técnica Constitucional identificar os mecanismos, os processos, os métodos e os expedientes para se chegar aos fins pretendidos. Já a Política Constitucional 25 MIRANDA, Pontes. Sistema de Ciência Positiva do Direito, tomo 1. Campinas: Bookseller, 2000, pp. 268-269. 26 MIRANDA, Pontes. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2002, p. 730. 13 pressupõe decisão legislativa e administrativa para atingir os objetivos 27 . As deliberações políticas serão mais acertadas se observarem os indicativos da ciência e os caminhos propostos pela técnica. Em suas palavras, “política científica é o método da ciência a serviço dos fins humanos, da felicidade pública”28. A conjunção da ciência, técnica e política é uma estratégia eficaz para reduzir o quantum despótico e atingir as finalidades do Estado. Esse ponto, afirma, “é excepcionalmente importante na história: adotar fins, assegurá-los, planificar para realizá-los, já é, por si só, esvaziar de violência, de quanto despótico, a organização político-social29” Para Pontes de Miranda, os catálogos de direitos fundamentais são as partes mais importantes das constituições contemporâneas30. Acredita que o seu fortalecimento na ordem jurídica internacional é um grande passo para o progresso da humanidade rumo à civilidade e à crescente adaptação social. Daí a necessidade de criar mecanismos para assegurá-los e garanti-los na ordem constitucional. A proteção dos direitos fundamentais na ordem constitucional está condicionada aos seguintes expedientes técnicos: a técnica de defesa da Constituição, técnica da supra-estalidade dos direitos fundamentais e da técnica de conteúdo das normas constitucionais. É o que veremos a seguir. A. Técnica de defesa da Constituição Em primeiro lugar está a criação de mecanismos destinados a proteger, estabilizar e assegurar a perenidade das Constituições democráticas: (a) técnica da Constituição mais dura, que é a distinção entre textos constitucionais e legislação ordinária; (b) rigidez constitucional, isto é, a adoção de complexos mecanismos procedimentais para a apreciação das emendas constitucionais (quorum diferenciado, votação em dois turnos em ambas as Casas do Congresso Nacional 31 ); (c) ampliação do cerne imodificável, com a criação de um núcleo duro – as chamadas cláusulas pétreas –, insuscetível de abolição pelo poder constituinte derivado32; (d) constitucionalização dos direitos fundamentais supra27 Para Pontes de Miranda, “Política Legislativa Constitucional é o programa tirado do conjunto de conhecimentos científicos e técnicos com os quais se podem resolver os problemas da feitura e execução das Constituições” ( Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2002, p. 79). 28 MIRANDA, Pontes de. Preliminares para a Revisão Constitucional, in À Margem da História da República. Rio de Janeiro: Anuário Brasil, 1924, p. 163. 29 MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2002, pp. 149 e 179. MIRANDA, Pontes. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2002, p 732. 30 MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2002, p. 49. 31 Cf. Constituição Federal, art. 60, §§ 1º e 2º . 32 Cf. Constituição Federal, art. 60, § 4º, I, II, III e IV. 14 estatais contidos em tratados internacionais; (e) aplicabilidade imediata - as normas que asseguram direitos fundamentais são bastantes em si, portanto aptas a incidir a partir da promulgação do texto constitucional 33 ; (f) garantias fundamentais, compostas por um conjunto de remédios jurídicos processuais destinados a efetivar os direitos fundamentais; (g) planificação das ações governamentais, com políticas públicas destinadas à promoção do bem-estar social; (h) controle de constitucionalidade das leis34. B. Técnica da supra-estalidade dos direitos fundamentais Segundo Pontes de Miranda, a supra-estalidade é a principal característica dos direitos fundamentais. O fundamento de existência de tais direitos não deve ser procurado no direito interno. Salvo quando o legislador constituinte decide fundamentalizar determinados direitos antes que sejam proclamados em tratados internacionais. A incidência dos direitos fundamentais não depende de reconhecimento constitucional, já que pertencem à ordem jurídica exterior e acima do Estado. Em relação a eles, o Estado atua como definidor de exceções e clarificador de conteúdo pela mediação do legislador constituinte ou ordinário. Além disso, os direitos fundamentais supra-estatais são paradigmas de validade das normas de direito interno, inclusive das normas constitucionais. Por estarem contidos em ordem jurídica superior, impõem limites tanto ao poder estatal quanto ao poder constituinte, que são obrigados a incorporálos à Constituição, cercando-os das garantias necessárias à sua efetividade. Nesse sentido, nenhuma das regras do sistema jurídico nacional pode ser interpretada ou executada em contradição com a Constituição e com as Declarações de Direito. A técnica da supra-estatalidade tem sido um dos principais instrumentos de estabilidade das Constituições. Através dela, os Estados integrantes das Nações Unidas são obrigados a adotar um conjunto de direitos fundamentais reconhecidos como válidos pela ordem jurídica internacional. Daí Pontes de Miranda afirmar que são direitos declarados e executórios. Declarados porque a Constituição não os cria, apenas os introduz no ordenamento jurídico; executórios porque, ao fazê-lo, o Estado cumpre o compromisso assumido no momento da subscrição e ratificação dos tratados internacionais sobre direitos humanos. C. Técnica do conteúdo essencial dos direitos fundamentais (democracia, liberdade, igualdade e solidariedade) 33 Cf. Constituição Federal, art. 5º, § 1º. MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2002, pp. 149 e 179. 34 15 A terceira técnica refere-se ao conteúdo axiológico das normas constitucionais. Com base nessa perspectiva, Pontes de Miranda aponta duas espécies normativas35: normas constitucionais de forma e normas constitucionais de fundo. Aquelas disciplinam a estrutura da ordem estatal. Tratam, por exemplo, da organização dos poderes36 e da atuação popular na ordem estatal – dos direitos políticos37. Estas estão vinculadas diretamente ao conteúdo, à essência das normas constitucionais. Os direitos fundamentais se enquadram nessa categoria e são emanações da liberdade, da igualdade e da solidariedade. Até o final da 2ª Guerra Mundial, a estruturação do Estado e a repartição de competências predominavam nas Constituições européias. Pontes de Miranda percebeu que o excesso de normas de forma era um mal que precisava ser combatido. Passou a sustentar que a evolução jurídico-social passaria pela ampliação das regras de fundo e do cerne inalterável 38 . Os governos deveriam planificar suas ações para atingir o máximo de liberdade e igualdade. Além disso, era preciso atribuir impositividade às normas constitucionais (força de incidência). Esse conjunto de medidas asseguraria a estabilidade da constitucional e garantiria a concretização dos direitos fundamentais39. O jurista alagoano era partidário da incorporação de valores e opções políticas à Constituição. Em 1944 já sustentava que os direitos fundamentais eram produtos da liberdade40 e da igualdade41. Também ressaltava a importância dos 35 MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2002, p. 49. 36 Constituição Federal, art. 44 e ss. 37 Constituição Federal, art. 14. 38 “O cerne pode crescer ou diminuir. A evolução é descrita pelo crescimento, com a inclusão de regras adequadas, isto é, das regras que trazem solução pelo menos duradoura do que se pode prever seja a vida da Constituição”( Cf. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2002, p. 181). 39 As soluções técnicas propostas por Pontes de Miranda para a estabilidade constitucional e para a concretização dos direitos fundamentais são praticamente as mesmas sustentadas pelo constitucionalismo contemporâneo. Segundo Ana Paula Barcelos, o neoconstitucionalismo assenta-se sobre princípios como a normatividade da Constituição, a rigidez constitucional, a centralidade da Constituição nos sistemas jurídicos, a incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais, etc. Luiz Roberto Barroso acrescenta premissas como a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional Paulo Bonavides (Cf. BARCELLOS, Ana Paula. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Mimeo; BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito – O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547) . 40 Pontes de Miranda chegou a propor uma tipologia dos direitos de liberdade, que incluía a liberdade de emitir ou não pensamento, liberdade de ciência e pesquisa, liberdade de ensino, liberdade de religião e cultos, liberdade de arte, liberdade de associação, liberdade de coalizão, liberdade de reunião, liberdade de locomoção, inviolabilidade de domicílio etc ( Cf. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2002, p. 427). 41 Para Mirkinne-Guetzévititch, o direito constitucional se restringia à técnica da liberdade. Pontes de Miranda acrescentou-lhe a dimensão da igualdade por entender que os direitos sociais (chamados por ele de direitos socialísticos) também eram dotados de fundamentalidade. Em 1944, o jurista alagoano já pugnava pela constitucionalização do direito à subsistência, direito ao trabalho, direito à educação e direito à assistência. Os direitos sociais só foram introduzidos na Carta Política 44 anos após essas proposições. 16 direitos decorrentes da democracia – os direitos políticos –, essenciais à estrutura e legitimidade do Estado de Direito. Ao defender essa tese, reconhece que a Constituição é, ao mesmo tempo, um sistema de valores e um sistema lógico-jurídico de direitos subjetivos. Reconhece também a insuficiência do normativismo para o tratamento do fenômeno constitucional. Esse ponto de vista era comungado por muitos doutrinadores alemães de sua época, a exemplo de Rudof Smend e Günter Dürig. Smend não nega a função subjetiva dos direitos fundamentais. Mas também sustenta que eles desempenham duas funções primordiais: política e jurídica. No plano político, exteriorizam a vontade de integração material, isto é, do desejo de coesão da comunidade e da realização de objetivos comuns. O sistema jurídico só é válido quando reflete o sistema de valores e, através dele, se legitima. No plano jurídico, os direitos humanos são fundamento de validade da ordem legal constituída42. Günter Dürig, também segue essa linha de raciocínio. Mas vai mais além. Tomando por base o artigo 1.2. da Lei Fundamental alemã, afirma que a dignidade humana é o valor constitucional supremo. Em sua opinião, o artigo traduz uma decisão axiomática eterna, referente ao conteúdo valorativo dos direitos fundamentais. Dessa forma, o conteúdo do direito geral de liberdade e de igualdade está delimitado pela pretensão de respeito à dignidade que corresponde a todas e a cada uma das pessoas humanas43. Essa mesma tese é defendida por Euzébio Fernandes. O filósofo espanhol sustenta que o fundamento ético dos direitos humanos antecede o jurídico (ao direito positivo). Pertence à dimensão axiológica. Para ele, a dignidade da pessoa humana é o metavalor, a partir do qual derivam outros valores que vão fundamentar os distintos direitos humanos 44 . Esses valores, segundo Pontes de Miranda, são a liberdade, igualdade e democracia. Defendemos em outros escritos que a dimensão da solidariedade também é uma emanação do princípio da dignidade da pessoa humana. A tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos impõe novos desafios ao neoconstitucionalismo. Percebe-se a crescente supra-estatalização e constitucionalização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, dos direitos dos consumidores, das crianças, adolescentes, idosos e portadores de 42 “Independentemente de qualquer consideração sobre a validade normativa, os direitos fundamentais são representantes de um sistema de valores concretos, de um sistema cultural que resume o sentido da vida estatal contida na Constituição. Do ponto de vista político, isto significa uma vontade de integração material; do ponto de vista jurídico, a legitimação da ordem positiva, estatal e jurídica. A ordem positiva só é válida quando representa o sistema de valores e precisamente por ele se converte em legítimo” ( SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1985, p. 232). 43 CRUZ, Luis M. La Constitución como orden de valores – problemas jurídicos y políticos – un estudio sobre los orígenes del neoconstitucionalismo. Granada: 2005, pp. 25/26. 44 FERNÁNDEZ, Eusébio. El problema del fundamento de los derechos humanos, in Anuário de Derechos Humanos, v. 1. Madri: Instituto de Derechos Humanos da Universidad Complutense de Madrid, 1981, p. 108. 17 necessidades especiais. Muitos tratados internacionais têm sido celebrados para combater a corrupção, a lavagem de dinheiro, a sonegação fiscal, o tráfico de pessoas e de entorpecentes. Tudo isso faz com que o direito geral de solidariedade – calcado na defesa de grupos sociais vulneráveis, na proteção do patrimônio público, ecológico e cultural –, seja também considerado uma manifestação da dignidade humana. Entendemos que o conteúdo essencial das normas de direito fundamental obedece o seguinte esquema: DIGNIDADE HUMANA DEMOCRACIA LIBERDADE IGUALDADE SOLIDARIEDADE Forma Fundo Fundo Fundo A primeira manifestação da dignidade da pessoa humana são as liberdades públicas – poderes de autodeterminação do indivíduo que impõem limites à atuação estatal. Quer dizer, direitos fundamentais que protegem o indivíduo do arbítrio do Estado. Quase todos estão agrupados no art. 5º da Constituição Federal: liberdade de expressão; liberdade de consciência; proteção à honra, intimidade, vida privada e imagem; inviolabilidade de domicílio, inviolabilidade de correspondência e das comunicações; liberdade de locomoção; liberdade de trabalho; direito de reunião, liberdade de associação, entre outros. A segunda está representada pelos direitos sociais – poderes de exigir prestações estatais que assegurem a igualdade de pontos de partida, mediante a criação e execução de políticas públicas, ações afirmativas, ações governamentais e edição de normas jurídicas que promovam o bem-estar. Eles estão definidos no art. 6º da Constituição Federal: direito à educação, à saúde, ao trabalho, moradia, segurança alimentar e à previdência social. A terceira expressa a existência de um direito geral de solidariedade, que toca diretamente populações, grupos ou categoria de pessoas, exigindo atuação pro populo do Ministério Público, das associações não-governamentais e da sociedade civil em geral. A solidariedade implica a aliança com o “nós” sem o 18 rompimento do “eu”. Significa responsabilidade individual com os destinos do grupo social a que pertencemos. É a mais profunda manifestação do sentimento de pertença. Em um belo ensaio sobre o amor, Artur da Távola ensina que “o „nós‟ é a dimensão coletiva do social sem a qual não podemos viver”. E continua: “o „nós‟ nos coloca no mundo de nossos irmãos com os quais temos de repartir o pão e conviver. Ele nos leva à ecologia, à preservação da vida, à luta pelo progresso como obra de todos e para todos45”. É exatamente no compromisso com o “nós”, com o coletivo, que se funda a solidariedade, impondo a todos (Estado e particulares) deveres jurídicos. A concretização dos direitos fundamentais também exige uma forma: a democracia. A efetividade está condicionada a uma ambiência democrática em que o Estado de Direito assegure a prevalência do princípio da legalidade, a independência dos três poderes, a eficiência do controle de constitucionalidade e a normalidade das instituições republicanas. Além disso, a efetividade está diretamente relacionada com a constitucionalização das garantias processuais (como o devido processo legal, a ampla defesa, a presunção de inocência, o direito a não auto-incriminação, o duplo grau de jurisdição etc.) e dos remédios jurídicos processuais (como o habeas corpus, mandado de segurança, ação popular, habeas data, mandado de injunção, ação civil pública etc.). Em síntese, o projeto constitucional de Pontes de Miranda tem como estratégia o fortalecimento das Constituições, a cristalização dos direitos fundamentais na ordem jurídica estatal e o equilíbrio entre democracia, liberdade, solidariedade na configuração da ordem estatal. 5. EPÍLOGO O grande legado de Pontes de Miranda foi a construção de um projeto de Estado Democrático de Direito pós-positivista, baseado na estabilidade das Constituições e no fortalecimento dos direitos fundamentais. Um projeto que implica a conjunção da ciência, técnica e política constitucional para a realização de fins precisos: a felicidade pública e o bem-estar social. As idéias desenvolvidas por ele há mais de 50 anos mostram um jurista irrequieto, extremamente preocupado com os destinos dos países democráticos. Sabia que o Pós-Guerra faria surgir um novo constitucionalismo fundado no fortalecimento das liberdades públicas e na positivação dos direitos sociais. Fiel ao positivismo sociológico, acreditava que a ciência poderia oferecer indicativos seguros para o aprimoramento das instituições públicas, colocando o Estado a serviço da civilidade e da adaptação social. Mas caberia à técnica jurídica conceber expedientes eficazes para assegurar a 45 TÁVOLA, Artur da Távola. Do Amor – Ensaio de Enigma. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico: Bluhm, 2001, p. 8. 19 perenidade constitucional. Propunha a adoção da rigidez, do cerne imodificável, de remédios jurídico-processuais adequados e, sobretudo, a ampliação das normas de fundo que reforçassem os direitos derivados da liberdade e igualdade – considerados por ele os caminhos mais seguros para a evolução civilizatória. O constitucionalismo de Pontes de Miranda é produto das circunstâncias de uma época marcada por profundas mudanças de paradigma. Um período que exigia respostas rápidas para a crise do Estado de Direito. Como jurista, ele participou desse movimento de reconstrução da ordem estatal com propostas extremamente avançadas tanto no campo da política constitucional como no da teoria dos direitos fundamentais. Hoje o Brasil se vê diante de novos desafios como a constitucionalização dos direitos, a consolidação de novas categorias de interpretação constitucional e a elevação dos princípios à condição de espécie normativa. Mas não podemos esquecer que os caminhos foram abertos em circunstâncias difíceis em que as tiranias e ditaduras insistiam em negar os mais elementares direitos humanos. É por isso que o nome de Pontes de Miranda deve ser lembrado como um dos mais importantes artífices do constitucionalismo contemporâneo. 20