DIREITOS FUNDAMENTAIS E TÉCNICA CONSTITUCIONAL
Reflexões sobre o positivismo científico de Pontes de Miranda
GEORGE SARMENTO1
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O positivismo de Pontes de
Miranda. 3. Entre o despotismo e a civilidade. 4. Finalidade
e conteúdo dos direitos fundamentais. 5. Epílogo.
RESUMO: O artigo tem o objetivo de investigar a contribuição de Pontes
de Miranda para a teoria dos direitos fundamentais. É uma análise do seu
projeto constitucional, baseado na estabilidade das constituições, no
fortalecimento dos direitos fundamentais e no equilíbrio entre liberdade,
igualdade e democracia. Também enfatiza o papel da técnica jurídica na
produção de mecanismos de defesa das constituições no Estado
Democrático de Direito.
Palavras
Chaves:
Ciência
Constitucional.
Positivismo.
Neoconstitucionalismo. Fundamentação dos Direitos humanos.
Abstract:
1. INTRODUÇÃO
Yo soy yo y mi circunstancia y si no la salvo a ella no me salvo yo.
Ortega y Gasset
Em suas Meditaciones del Quijote, o filósofo espanhol Ortega y
Gasset (1883-1955) afirma que o homem está irremediavelmente imerso em sua
realidade circundante. A vida é o eu no mundo. Tudo o que fazemos, pensamos ou
queremos está determinado pelas circunstâncias que nos cercam. Os atos humanos
não são ditados exclusivamente pelo subjetivismo, pelo querer individual, mas
1
Doutor em Direito Público (UFPE), Professor Adjunto de Direitos Humanos Fundamentais na Faculdade
de Direito de Alagoas/UFAL; Professor convidado da Universidade de Montpellier 1; Coordenador do
Mestrado em Direito FDA/UFAL ; Promotor de Justiça.
1
também pela ambiência em que se desenvolvem. A circunstância é o meio em
torno do qual a vida se expande em sua forma mais ampla.
O constitucionalismo é produto de duas circunstâncias históricas: a
queda do absolutismo no século XVIII e o fim da 2ª Guerra Mundial. Com a
Revolução Francesa, o constitucionalismo se desenvolveu como uma ideologia
que buscava estruturar o Estado em torno de uma carta política que assegurasse as
liberdades, a separação dos poderes e a representação popular. A maioria das
Constituições européias adotava o modelo estruturalista, baseado na prevalência
das normas de forma: instituíam órgãos, funções, poderes constituídos e a
respectiva repartição de competências.
O Pós-Guerra provocou uma mudança de paradigma que se
convencionou chamar neoconstitucionalismo. As feridas deixadas pelo nazismo e
pelo fascismo estavam longe de cicatrizar. As democracias ocidentais temiam a
volta do arbítrio, do autoritarismo, da intolerância e do genocídio. O grande
desafio não era mais a estruturação do Estado de Direito, mas a estabilidade
constitucional e a proteção dos direitos fundamentais. Hoje o movimento tem
como grandes temas o caráter normativo dos princípios, a ampliação da jurisdição
constitucional, a introdução de novas categorias hermenêuticas e a força
vinculante dos direitos fundamentais.
Pontes de Miranda foi o precursor dessas idéias no Brasil. Ele via na
técnica jurídica uma importante metodologia para desenvolver mecanismos de
defesa da Constituição. Já na década de 40, propunha soluções como a supraestalidade dos direitos fundamentais, a rigidez constitucional, a ampliação do
cerne imodificável, o controle de constitucionalidade, a planificação das ações
governamentais e a criação de remédios jurídico-processuais específicos.
Sustentava a tese de que só o equilíbrio entre liberdade, igualdade e democracia
faria o Estado atingir o seu maior objetivo: o bem-estar social.
Este artigo procura estudar a importância do pensamento de Pontes
de Miranda para a teoria dos direitos fundamentais, sobretudo nos domínios da
técnica jurídica. Tem como ponto de partida algumas reflexões sobre as idéias do
jurista alagoano, especificamente o papel da ciência positiva do direito para a
evolução civilizatória, a valorização do homem e a felicidade coletiva. Busca
também analisar a forma pela qual ele soube conciliar a teoria do fato jurídico com
os novos desafios do direito constitucional.
Por fim, é uma singela forma de homenagear o professor Marcos
Bernardes de Mello, de quem sou eterno aluno e admirador. É um sincero
agradecimento ao mestre que o foi o responsável por incutir em tantas gerações o
prazer de mergulhar no inesgotável universo ponteano.
2. O POSITIVISMO DE PONTES DE MIRANDA
Pontes de Miranda nasceu em 1892 na cidade de Maceió. Aos 30
anos de idade, publica a obra em que esboça os principais fundamentos de sua
2
construção teórica: Sistema de Ciência Positiva do Direito (1922). É também nela
que ele se aproxima do positivismo de Auguste Comte (1798-1857).
O filósofo francês impôs-se a missão de cumprir duas tarefas
gigantescas: a reorganização da sociedade e a regeneração da ciência.
Para Comte, a sociedade estava mergulhada numa profunda
anarquia moral e política que corroia suas bases e ameaçava a sua sobrevivência.
A única forma de escapar dessa crise era a construção de um novo sistema social
baseado no progresso, prosperidade e avanço científico. Em suas palavras, a
reorganização da sociedade significava o “estado social definitivo da espécie
humana, o mais conveniente à sua natureza, no qual todos os meios de
prosperidade devem receber seu mais completo desenvolvimento e sua aplicação
mais direta2”.
Ao tratar da segunda tarefa, Auguste Comte sustentava que a
Sociologia (antes denominada Física Social3) completaria a hierarquia das demais
ciências. Para ele, as ciências sociais deveriam ser estudadas com o mesmo rigor
metodológico que outras ciências positivas, como a Matemática, Química,
Biologia etc. A missão do cientista consistiria na revelação de leis naturais
invariáveis que explicassem os fenômenos sociais. Este posicionamento ficou bem
claro nos Opuscules sur la philosophie sociale:
Entendo por Física Social a ciência que tem por objeto próprio o
estudo dos fenômenos sociais, considerados com o mesmo espírito
que os fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, isto
é, como submetidos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta é o
objetivo especial de suas pesquisas.
Comte afirmava que, ao longo dos séculos, muitas áreas do
conhecimento humano transformaram-se em ciências positivas. Era chegada a vez
da Sociologia. Essa revolução permitiria que outras ciências sociais – Filosofia,
Moral e Política – se despregassem de toda e qualquer influência teológica ou
metafísica para também atingirem a positividade.
As proposições de Auguste Comte influenciaram profundamente a
construção da ciência positiva do direito arquitetada por Pontes de Miranda.
Muitos aspectos da obra ponteana contribuem para provar essa assertiva. Além do
Sistema de Ciência Positiva do Direito, duas obras são fundamentais para
2
Opuscules sur la philosophie sociale (apresentados como apêndice do volume 4 do Sistema de Política
Positiva). Extratos recolhidos por Evaristo de Morais Filho, in Auguste Comte – Sociologia. Ática: São
Paulo, s/d, p. 53.
3
O vocábulo sociologia foi empregado pela primeira vez por Auguste Comte em 1889. Ele aparece no
volume IV do Curso de Filosofia Positiva com a seguinte redação: “Acredito que devo arriscar, desde agora,
esse termo novo, sociologia, exatamente equivalente à minha expressão, já introduzida, de física social, a
fim de poder designar por um nome único esta parte complementar da filosofia natural que se relaciona
com o estudo positivo do conjunto de leis fundamentais apropriadas aos fenômenos sociais”.
3
compreender a visão científica do jurista alagoano: Introdução à Política
Científica (1924) e Introdução à Sociologia Geral (1924).
Pontes de Miranda também era partidário da reorganização da
sociedade através da ciência - considerada a única forma de libertar a humanidade
do atraso, do imobilismo e da corrupção em que se via mergulhada. Em suas
palavras, “a ciência tirada dos fatos, a ciência positiva implica a mais profunda
revolução, a completa reorganização das sociedades contemporâneas, fundadas
todas, em graus diferentes, no empirismo e na escolástica4 (destacamos)”.
Em artigo publicado na obra coletiva intitulada À Margem da
História da República, lançada em comemoração ao centenário da proclamação da
independência do Brasil, Pontes de Miranda defendeu essa tese com veemência,
fazendo uso da mesma metodologia proposta pela Escola Positivista. O texto
denuncia a degenerescência da Velha República, repleta de vícios que
condenavam o país ao atraso. Em seguida aponta a origem dos males, para, então,
apresentar soluções científicas para o problema. As denúncias eram feitas com
grande contundência:
Não há nenhum país em que sejam tão irresponsáveis e irresponsabilizados
os dirigentes, os funcionários e os próprios particulares. Nada se apura; só
há um limite para os desmandos e as dilapidações dos dinheiros públicos,
dos incapazes, das instituições: o apetite dos funcionários, governantes e
gestores. A melhor indústria é a do Tesouro; cada governo traz o seu
programa e os programas, a despeito da vigilância de alguns Presidentes,
logo se tornam função dos interesses de certos capitalistas. É tão bem
organizado o assalto anual ao erário público que há um consorcium para as
concorrências e só este pode consegui-las. O lucro é tão grande que dá para
ser dividido por mais de vinte membros do grupo. E o país endividado,
pobre, desmoralizado, cambaleia por aí afora, megalomaníaco no seu
gigantismo doentio de colosso esquálido e corroído5.
Argumentava que a crise decorria da venalidade dos funcionários
públicos, da fragilidade dos partidos políticos, do inadequado transplante de leis
estrangeiras, da instituição do latifúndio, da exploração da mão-de-obra e do
apriorismo nas ações governamentais. Seguindo os passos de Auguste Comte e
Herbert Spencer (1820-1903), sustentava que só a ciência positiva poderia
direcionar a civilização para uma era de progresso e civilidade. Fiel ao ideal
positivista, propunha estratégias para a regeneração do Estado, através de um
vasto programa de medidas supostamente baseadas em indicativos científicos6.
4
MIRANDA, Pontes de. Introdução à Política Científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 218.
MIRANDA, Pontes de. Preliminares para a Revisão Constitucional, in À Margem da História da
República. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1924, pp. 163-164.
6
MIRANDA, Pontes de. Preliminares para a Revisão Constitucional, in À Margem da História da
República. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1924, pp. 190-200.
5
4
Pontes de Miranda também acreditava que os fatos sociais estão
sujeitos a leis imutáveis. Caberia ao cientista estudar a matéria social para revelar
as leis de estrutura e apontar o sentido da evolução civilizatória7. Sustentava que
“os fatos sociais são estudados como objeto de ciência autônoma, mas com tão
desejado rigor, aprendido nas outras disciplinas, que as suas leis são conferíveis e
verificadas com as das outras, e os seus resultados, depois de comprovados dentro
do domínio sociológico, podem ser submetidos à crítica geral no concerto das
demais ciências8”.
Para ele, dois grandes princípios evolutivos permeavam tanto a
sociologia como a ciência do direito: o princípio da integração e dilatação dos
círculos sociais e o princípio da progressiva diminuição do quantum despótico,
que serão analisados mais adiante. Também concebeu leis sociológicas: lei da
evolução das organizações sociais, lei da evolução da justiça, lei da evolução
cíclica da regra jurídica, lei do esforço convertido, lei do crescente predomínio do
espírito livre etc.
Seguindo os passos de Comte9, Pontes de Miranda sustentava que a
mentalidade humana evoluiu no curso de três fases cíclicas: (a) intuicionismo, (b)
dedutivismo e (c) indutivismo. Na primeira fase imperava o empirismo, a tradição,
o primitivismo, a supertição. Embora mais racionalista, a segunda fase foi marcada
pelo apriorismo e pela escolática medieval, com forte influência religiosa.
Finalmente a humanidade teria atingido a terceira fase em que prevalecia a
investigação positiva e científica. A partir de então caberia à ciência apontar os
caminhos da evolução social.
A humanidade chegaria a um estágio em que até mesmo as regras
jurídicas seriam reveladas por cientistas. Dessa forma, o direito abandonaria o
empirismo e o apriorismo dos corpos legislativos e assumiria uma postura
absolutamente positiva. A idéia era assegurar aos juristas todas as condições para
revelar o direito sem a intervenção de aparelhos despóticos como o governo, o
parlamento ou a igreja. Essa seria a lógica da lei da crescente liberdade de revelar
o direito, cuja proposição é a seguinte:
Se a humanidade não descontinuar a sua carreira evolutiva, terá,
necessariamente, de recorrer ao critério exclusivamente científico,
livre, para a elaboração da regra jurídica. Fabricará a lei, como faz os
soros, – nos laboratórios: e sem precisar de qualquer aprovação
oficial, que constitui supérfluo despótico, que não dá nem tira
nenhuma força à verdade das invenções e dos descobrimentos10”.
7
MIRANDA, Pontes de. Introdução à Política Científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 4.
MIRANDA, Pontes de. Introdução à Sociologia Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. XIII.
9
Auguste Comte já sustentava que a evolução intelectual estava sujeita à lei sociológica dos três estágios:
teológico (fetichismo, politeísmo, monoteísmo), metafísico e positivo. Embora possam coexistir na
dimensão tempo-espaço, os dois primeiros estágios são provisórios, enquanto que o terceiro é definitivo.
10
MIRANDA, Pontes de. Introdução à Sociologia Geral. Rio de Janeiro: Forense, p. 176.
8
5
Não se trata aqui de rejeição aos sistemas democráticos em que
representantes do povo são eleitos para editar as leis que vão ditar as condutas dos
destinatários. Mas no reconhecimento de que os parlamentares não detêm
conhecimentos necessários para a revelação de leis positivas. É a crença de que a
neutralidade da ciência seria um fator decisivo para a diminuição do despotismo
político que se esconde em práticas como o clientelismo, o populismo e o tráfico
de influência, ainda tão comuns em nosso país.
A democratização do direito residiria na segurança que a verdade
científica traria para as normas jurídicas. E não nas deliberações parlamentares,
quase sempre marcadas por fortes pressões econômicas e interesses circunstanciais.
Além disso, os governos não eram fundados na representação, mas no
compromisso com a felicidade geral. E esse fim só poderia ser alcançado pela
observância dos indicativos científicos. Significa dizer que as normas jurídicas só
seriam verdadeiramente positivas se dotadas de cientificidade. Todas as que
fossem concebidas à luz do empirismo ou do apriorismo seriam apenas
formalmente jurídicas, mas não positivas.
Ao formular a lei da crescente liberdade de revelar o direito, Pontes
de Miranda não foi original. Apenas transpôs para a política legislativa a
proposição de Auguste Comte. No apêndice do Sistema de Política Positiva
(volume IV), o sociólogo francês já defendia a grande influência espiritual que os
cientistas deveriam exercer sobre a sociedade, pois reuniam em si mesmos dois
grandes requisitos ao exercício do “governo moral”: capacidade e autoridade
teórica. Roger-Gérard Schwartzenberg observa tal postura fez Comte mergulhar
nos excessos da sociocracia (crença segundo a qual os governos só poderiam ser
exercidos pelos sábios, os únicos com capacidade de encontrar soluções científicas
para os problemas que afligiam a humanidade) e, posteriormente, nas
extravagâncias da sociolatria com o nascimento da Igreja Positivista da
Humanidade11.
Pontes de Miranda também era partidário da regeneração da ciência.
E lutou para que – a exemplo da Sociologia – o Direito também se transformasse
em ciência positiva, inclusive utilizando-se de métodos próprios das ciências
exatas e naturais. Isto porque os fatos jurídicos seriam descritíveis, observáveis,
classificáveis e sujeitos a leis imutáveis. Em sua Introdução à Política Científica,
sustentava que “a ciência positiva do direito é a sistematização dos conhecimentos
positivos das relações sociais, como função do desenvolvimento geral das
investigações científicas em todos os ramos do saber12”.
É exatamente nesse ponto que o positivismo ponteano difere da
Teoria Pura do Direito proposta por Hans Kelsen (1881-1973).
11
12
SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. Sociologia Política. São Paulo: DIFEL, 1979, p. 18.
MIRANDA, Pontes de. Introdução à Política Científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 15.
6
O positivismo de Kelsen é jurídico-normativista. Reduz a ciência do
direito ao dever-ser, visto sempre sob uma perspectiva prescritiva na qual a norma
jurídica é a fonte absoluta de investigação. Assim, a teoria pura do direito tem
como objeto as estruturas formais lógicas das normas jurídicas, sem qualquer
preocupação com o seu conteúdo. A missão purificadora dessa corrente
doutrinária estaria na libertação da ciência jurídica de todos os elementos que lhe
são estranhos. Tais elementos eram próprios de ciências conexas como a
Sociologia, a Psicologia, a Ética e a Ciência Política. A aplicação desse princípio
metodológico fundamental teria o objetivo de evitar o que o mestre austríaco
chamava de sincretismo metodológico, responsável pelo obscurecimento da
ciência jurídica13.
Já o Sistema de Direito Positivo concebido por Pontes de Miranda
não se restringia ao normativismo. Ao contrário, ele acreditava que todos os ramos
do saber eram úteis para a ciência do direito O jurista não poderia desprezar os
indicativos de outras ciências na formulação do direito positivo. Nesse sentido, era
taxativo:
No direito, se queremos estudá-lo cientificamente como ramo
positivo do conhecimento, quase todas as ciências são convocadas
pelos cientistas. A extrema complexidade dos fenômenos implica a
diversidade do saber. As matemáticas, a geometria, a física, a
química, a biologia, a geologia, a zoologia e a botânica, a
climatologia, a antropologia e a etnografia, a economia política e
tantas outras constituem mananciais em que o sábio da ciência
jurídica bebe o que lhe é mister. Nas portas das escolas de direito
devia estar escrito: aqui não entrará quem não for sociólogo. O
sociólogo supõe o matemático, o físico, o biólogo. É a flor da
cultura14(destacamos).
Pontes de Miranda, portanto, não comungava da idéia de reduzir a
ciência do direito à norma jurídica, expurgando-se do campo de investigação todos
os elementos que fossem próprios de outras ciências. Ele sustentava que a ciência
positiva do direito também deveria fazer uso de indicativos e métodos
provenientes de outros campos do saber. Sua maior aspiração estava na concepção
de um sistema em que o direito se transformasse em ciência positiva. Em suas
obras sociológicas, filosóficas e políticas utilizou amplamente conceitos
provenientes das matemáticas, ciências exatas e biológicas, além de aplicar o
método histórico-comparativo – tão caro a Comte.
Entretanto, o Sistema também comporta uma dimensão normativa: a
teoria do fato jurídico – magnificamente exposta por Pontes de Miranda em seu
13
14
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Armênio Amado Editora, pp. 17-18.
MIRANDA, Pontes de. Introdução à Política Científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 16.
7
Tratado de Direito Privado. Segundo tal concepção, que não é objeto do presente
ensaio, existe uma relação de causalidade entre regra jurídica e suporte fático com
o nascimento do fato jurídico e das relações jurídicas. Dessa forma, só se pode
falar de fato jurídico após a juridicização do suporte fático pela incidência
normativa. Daí a afirmação de que “fato jurídico é o que fica do suporte fático
suficiente, quando a regra jurídica incide e porque incide 15”. É correto dizer que se
trata de teoria lógico-jurídica, que rivaliza com o positivismo jurídico de Hans
Kelsen. Nela, qualquer discussão referente a valores, finalidade ou conteúdo da
norma é estranha ao terreno jurídico. Assim, “o que fica para trás da incidência é
político, objeto de ciência, ou da filosofia16”. Mas também é acertado afirmar que
nada impede que o debate sobre a natureza hipotética das normas jurídicas seja
travada no campo ciência ou da técnica do direito. Isso porque o espectro de
investigação da ciência positiva do direito é muito mais vasto que o da teoria
jurídica.
Um dos maiores equívocos na interpretação da obra de Pontes de
Miranda é afirmar que a teoria positiva do direito é meramente normativista. Não é
difícil constatar que sua grande meta era a edificação de um sistema de ciência
positiva em que o fenômeno jurídico fosse analisado sob diversos prismas com o
máximo de cientificidade. Daí falar-se em dimensão axiológica, antropológica,
sociológica e normativa do direito.
Isso também explica por que Pontes de Miranda utilizou outros
métodos no tratamento do direito constitucional. É nesse campo que ele busca
conciliar o normativismo da teoria do fato jurídico com a politicidade.
Um exemplo ajudará a compreensão desse argumento.
Ao contrário de muitos constitucionalistas brasileiros - que se
calaram diante do Regime Militar de 1964, preferindo interpretar a Constituição à
luz da investigação lógico-normativa, sem qualquer preocupação com o conteúdo
da norma constitucional – Pontes de Miranda foi taxativo em afirmar que o Brasil
estava sob o jugo de um golpe de estado, desprovido de qualquer legitimidade.
Com rara coragem cívica e lealdade aos princípios defendidos ao longo da vida,
observava que “na Constituição de 1967, que foi feita pelo Congresso Nacional
poluído de cassações arbitrárias e pelas pressões nunca vistas no Brasil, não se
alude sequer, a Assembléia Constituinte, nem a „representantes do povo‟17”. E
continua, mais adiante: “Mas o que se passou de 9 de abril de 1964 a 14 de março
de 1967 foi pior do que acontecera em 1930 e 1937: mutilou-se o Congresso
Nacional e implantou-se ditadura de ligações inconfessáveis e oligárquicas,
chegando-se ao ponto de termos uma Constituição sem Assembléia Constituinte,
autêntica, nem feita de acordo com os princípios18 (destacamos).”
15
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo 1. São Paulo: Bookseller, 1999, p. 126.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo 1. São Paulo: Bookseller, 1999, p. 126.
17
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo, RT, 1970, p. 442.
18
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo, RT, 1970, p. 448.
16
8
Pontes de Miranda nunca escondeu sua opção pelo Estado
Democrático de Direito, baseado na supra-estalidade dos direitos fundamentais, na
democratização do poder estatal, no controle de constitucionalidade e no respeito
ao princípio da legalidade. A politicidade não decorria de ativismo político.
Tampouco tinha natureza panfletária. Era produto de convicções científicas que
incluía o primado da liberdade, igualdade e democracia na construção
constitucional. Quando Estado negava esses princípios, instala-se o despotismo em
suas formas mais perversas (ditaduras, tiranias, terror) com a conseqüente violação
dos direitos humanos. Nesses momentos difíceis da vida institucional do país,
caberia ao jurista denunciar o arbítrio. E também fazer uso de indicativos
científicos para apontar os caminhos da normalidade democrática. Foi assim que
se posicionou em relação ao Golpe de 1964:
É de reconhecer-se que, com os golpes de 1964 e 1968, se tornou
difícil a volta à democracia e à liberdade; mas a despeito das
dificuldades, a volta é necessária, quer para que se evitem ditaduras
da direita ou da esquerda, quer para que se consiga o
desenvolvimento científico, econômico e técnico do Brasil19.
No tratamento dos direitos fundamentais, Pontes de Miranda
também não fica refém do normativismo. Os Comentários à Constituição de 1967
evidenciam a politicidade como método de construção da teoria constitucional20.
Também fica evidente sua preocupação com a finalidade e o conteúdo do direito.
A exclusiva utilização dos postulados normativistas daria uma visão parcial do
direito constitucional, desfalcando-o da forte carga política de que é detentor.
Lourival Vilanova a divide a obra de Pontes de Miranda em duas
fases: a primeira, entre (1922 a 1937) fundada em bases naturalistas e direcionada
para a filosofia positivista; a segunda, consolidada em 1954 com a publicação do
Tratado de Direito Privado, com perfil mais dogmático baseava-se na separação
entre o fáctico e o jurídico e na purificação da ciência do direito (com a supressão
de elementos estranhos ao normativismo, como a política, psicologia, sociologia
etc.)21. Discordamos do ilustre filósofo pernambucano quando ele aponta hiato e
descontinuidade entre as fases. Na verdade, o sociologismo positivo e o
dogmatismo normativo são partes de sua grandiosa aspiração de sistematizar a
19
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo, RT, 1970, p. 452.
A forte influência que a política exerce sobre o Direito Constitucional é um dado que tem chamado a
atenção dos doutrinadores clássicos. Luiz Sánches Agesta vê o Direito Constitucional como ordem política
(Cf. Curso de Derecho Constitucional Comparado. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1988,
p.38). Jorge Xifra Heras também o considera direito político por natureza (Curso de Derecho
Constitucional, tomo 1. Barcelona: Bosch Casa Editoria, 1957, p. 96). Para Maurice Hauriou, o Direito
Constitucional tem como fim estabelecer o equilíbrio entre ordem, poder e liberdade – eis o problema
político (Principios de Derecho Público y Constitucional. Madrid: Instituto Editorial Réus, 1927, p. 8).
21
VILANOVA, Lourival, A Teoria do Direito em Pontes de Miranda, in Escritos Jurídicos e Filosóficos,
v. 1. São Paulo: IBET, 2003, p. 412.
20
9
ciência positiva do direito sob a influência da Escola Sociológica Francesa,
inaugurada por Auguste Comte e desenvolvida por Le Play (1806-1882),
Durkheim (1858-1917), entre outros.
Pontes de Miranda jamais adotou postura revisionista. Sempre
deixou claro que a sistematização da ciência positiva do direito era tarefa
gigantesca que deveria ser construída por etapas. Orgulhava-se de ter se mantido
fiel aos ideais da juventude, defendendo as mesmas idéias expostas em suas
primeiras obras, mas sempre avançando em direção à cientificidade. No prefácio
da 7ª edição da História e Prática do Habeas Corpus (1972), mostra toda
fidelidade às suas convicções científicas, com a seguinte profissão de fé:
Há cinqüenta e seis anos publiquei esta obra; e o que me alegra,
profundamente, é que, durante toda a vida, até hoje, continuo com as
mesmas convicções, e nunca as traí. Vi, lá fora, os erros dos que
ferem a liberdade, fraudam a democracia e não compreendem que se
tem de avançar no sentido de diminuir a desigualdade humana22.
Em síntese, a Ciência Positiva do Direito comporta não apenas
investigações lógico-normativas, mas também psicosociais, sociológicas e
biológicas. A preocupação com a finalidade do Estado e com os mecanismos
técnicos para fortalecer e assegurar a perenidade das Constituições democráticas
são as grandes vigas que sustentam a formulação teórica desenvolvida por Pontes
de Miranda.
3. ENTRE O DESPOTISMO E A CIVILIDADE
Para construir o seu sistema de ciência positiva do direito, Pontes de
Miranda utilizou largamente categorias pertencentes à Sociologia e à Psicologia
Social, sobretudo o processo de socialização.
A socialização se desenvolve em três etapas consecutivas: aquisição
da cultura, integração da cultura à personalidade e adaptação ao ambiente social.
A primeira etapa é o processo de aquisição de conhecimentos,
modelos, valores, símbolos e também maneiras de fazer, pensar e sentir próprias
dos círculos sociais em que determinada pessoa está integrada. Eles são
apreendidos no curso da vida pela repetição, imitação, oferta de recompensas,
imposição de castigos etc. Em seguida os padrões de cultura integram-se ao
organismo e à psique da pessoa determinando sua conduta na sociedade. A
conseqüência disso é a adaptação ao ambiente social, ou seja, a estandardização e
a uniformização de condutas23.
22
23
MIRANDA, Pontes. História e Prática do Habeas Corpus. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.
ROCHER, Guy. Introduction à la sociologie générale. L’Action sociale. Paris : HMH, 1968.
10
A adaptação de uma pessoa ao ambiente social está diretamente
ligada à idéia de pertença. Significa que o indivíduo interiorizou suficientemente
os códigos, modelos, valores e símbolos de seu meio e os integrou à sua estrutura
psíquica para ser aceito como membro de determinada coletividade.
Pontes de Miranda sustenta que adaptação social se processa na
estrutura psíquica do indivíduo, através da atuação de inúmeros processos como a
Religião, Moral, Arte, Política, Economia, Ciência etc.
O Direito também é considerado um processo de adaptação social,
inclusive corretivo de defeitos de adaptação social. A força coercitiva e a
incidência obrigatória de suas normas são fortes instrumentos de pacificação social.
O sociologismo positivo de Pontes de Miranda tem como ponto de
partida dois princípios básicos: (a) o princípio da progressiva diminuição do
quantum despótico e (b) o princípio da crescente dilatação dos círculos sociais.
Ambos indutivos, experimentais e correlativos.
Nota-se aí a influência do naturalismo de Herbert Spencer. O autor
dos Principles of Sociology tomou como base a Biologia para sustentar que a
evolução dos corpos segue uma linha inexorável: parte dos estágios primitivos, em
que preponderam a simplicidade das estruturas, para estágios cada vez mais
avançados em que se verifica a crescente heterogeneidade das partes. Da mesma
forma que os organismos biológicos, Spencer considerava a humanidade um ser
vivo sujeito à lei geral da evolução. Em sua origem, a organização social era
simples, homogênea, indiferenciada. Pouco a pouco as estruturas tornaram-se mais
complexas e heterogêneas num processo sucessivo e descontínuo - (horda, clã,
tribo, família, país, nações unidas, humanidade etc.).
Como veremos em seguida, Pontes de Miranda também adotou a
postura evolucionista, tão comum aos intelectuais de sua época. Para ele a
violência era um grande entrave à adaptação social. A Ciência Positiva do Direito
tinha a missão de reduzir o coeficiente despótico e acelerar o fluxo civilizatório
rumo ao progresso material e espiritual da humanidade. E isso só seria possível
com a integração e expansão dos círculos sociais.
A. Princípio da progressiva diminuição do quantum despótico
Da mesma forma que um organismo vivo, a conservação social
pressupõe dispêndio de energia. Partindo desse ponto de vista, Pontes de Miranda
sustenta que a evolução civilizatória pressupõe a substituição da energia violenta
(quantum despótico) em energia adaptativa (civilidade).
O despotismo está profundamente enraizado na civilização humana.
O maior objetivo da ciência positiva do direito é a extirpação (ou a redução
significativa) de todas as formas de violência que perturbam a convivência social.
O processo evolutivo, que é contínuo e inexorável, exige índices cada vez maiores
de civilidade, qual seja, a transformação da energia violenta – o quantum
despótico – em energia social adaptativa e integradora cujo efeito direto é a
11
crescente pacificação social. Daí porque o quantum despótico diminui na razão
inversa da adaptação. Essa é a fórmula: “mais adaptação menos quantum
despótico24”.
O quantum despótico de determinado Estado pode ser quantificado
através de dados estatísticos. Manifesta-se pela intensificação de energias
violentas (arbítrio político, desigualdades sociais, desemprego, violações dos
direitos fundamentais etc.). O papel da ciência positiva do direito consiste em
apontar meios, caminhos e ações que permitam a crescente adaptação social e
conduzam à civilidade. E isso só é possível com a concepção de políticas públicas
eficazes, que conduzam à justiça social e à efetivação dos direitos sociais.
A civilidade seria um estado em que a adaptação social seria plena,
desprovida de violência física, moral ou espiritual. O despotismo seria
transformado em energia civil, capaz de estabilizar as relações intersubjetivas e
expurgar todas as formas arbítrio, empirismo ou apriorismo.
A valorização do homem é a forma mais eficaz de aumento da
energia adaptativa. Sempre que os povos avançam em direção à dignidade humana,
a convivência pacifica-se, a adaptação social expande-se. Mas se ocorrer o
contrário, isto é, se o Estado absorver elementos despóticos que redundem no
agravamento das desigualdades sociais, na supressão dos direitos fundamentais, no
autoritarismo ou na negação da democracia, o quantum despótico aumentará,
trazendo consigo retrocesso político, violência civil e anomia.
B. Princípio da crescente dilatação dos círculos sociais.
Os círculos sociais são estruturas em que são estabelecidas
condições de coexistência sob a forma de direito. A evolução consiste no
crescimento dos círculos sociais através da força adaptativa e da ampliação da
civilidade.
Pontes de Miranda defende a tese de que os círculos sociais tendem
a se expandir pela absorção pacífica de outras estruturas menores. A civilidade só
é possível se o crescimento tiver como mola propulsora forças adaptativas e
integradoras. O crescimento decorrente do uso da violência é sempre precário e
desagregador.
Pontes de Miranda acreditava que a evolução dos povos estaria na
crescente integração dos círculos sociais, mediante a substituição do arbítrio pela
energia adaptativa. Esse movimento começaria nas organizações mais simples até
alcançar todo o Planeta, dando início a uma era de progresso e paz para toda a
humanidade.
Daí o seu entusiasmo pelo direito internacional público como
instrumento de aproximação e integração de Estados na busca de objetivos
comuns. O jurista alagoano certamente veria com bons olhos os avanços da União
24
MIRANDA, Pontes de. Introdução à Política Científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 107.
12
Européia, do Mercosul, dos tribunais internacionais e, sobretudo, a projeção dos
tratados de direitos humanos sobre as nações de todos os continentes.
4. FINALIDADE E CONTEÚDO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Pontes de Miranda sustenta que a finalidade do direito consiste na
realização da maior soma possível de utilidade para o corpo coletivo. Ou seja, na
felicidade, normal, média possível da humanidade. A organização econômica e a
estrutura jurídica devem se articular para proporcionar o máximo de bem-estar
para todos25.
A idéia de felicidade geral permeia toda obra de Pontes de Miranda.
Isso mostra a importância do utilitarismo de Jeremy Benthan na análise da
finalidade do direito. Em Bentham, a visão individualista do homem como sujeito
de direitos individuais é substituída pelo coeficiente de felicidade geral, isto é pela
satisfação dos desejos, prazeres e aspirações da coletividade. Neste contexto, o
utilitarismo se ergue como princípio maximizador do bem-estar geral (welfare). O
bom governo caracteriza-se pelo índice crescente de felicidade geral que
proporciona aos governados. O fundamento do poder político consiste no bemestar da maioria da população, verdadeiro requisito de legitimação do governo.
A preocupação do utilitarismo era com o conjunto, o todo, a
comunidade. Sozinho, o homem não tinha qualquer valor extrínseco. Ao
utilitarismo só interessava o saldo de satisfação e felicidade presentes na sociedade,
através da verificação empírica de determinados índices de prazer coletivo. Sua
principal premissa era a felicidade da maioria: um bem-estar social ilimitado, cada
vez maior.
Nesse particular, Pontes de Miranda buscou conciliar o utilitarismo
de Benthan, Pareto e Edgeworth com a prevalência das liberdades públicas na
ordem constitucional.
Em 1944, lança Democracia, Liberdade e Igualdade, tornando-se
um dos precursores do neoconstitucionalismo no Brasil. Nesta obra sustenta a tese
de que a finalidade da sociedade progressiva no século XX consistia em três
pontos: assegurar as liberdades individuais, manter a democracia, promover a
igualdade com a concretização dos direitos sociais26.
Apresenta a distinção entre Ciência, Técnica e Política
Constitucional. A Ciência Constitucional tem a missão de apresentar indicativos
seguros para que o Estado atinja o seu fim maior: a felicidade geral. Cabe à
Técnica Constitucional identificar os mecanismos, os processos, os métodos e os
expedientes para se chegar aos fins pretendidos. Já a Política Constitucional
25
MIRANDA, Pontes. Sistema de Ciência Positiva do Direito, tomo 1. Campinas: Bookseller, 2000, pp.
268-269.
26
MIRANDA, Pontes. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller,
2002, p. 730.
13
pressupõe decisão legislativa e administrativa para atingir os objetivos 27 . As
deliberações políticas serão mais acertadas se observarem os indicativos da ciência
e os caminhos propostos pela técnica. Em suas palavras, “política científica é o
método da ciência a serviço dos fins humanos, da felicidade pública”28.
A conjunção da ciência, técnica e política é uma estratégia eficaz
para reduzir o quantum despótico e atingir as finalidades do Estado. Esse ponto,
afirma, “é excepcionalmente importante na história: adotar fins, assegurá-los,
planificar para realizá-los, já é, por si só, esvaziar de violência, de quanto
despótico, a organização político-social29”
Para Pontes de Miranda, os catálogos de direitos fundamentais são as
partes mais importantes das constituições contemporâneas30. Acredita que o seu
fortalecimento na ordem jurídica internacional é um grande passo para o progresso
da humanidade rumo à civilidade e à crescente adaptação social. Daí a necessidade
de criar mecanismos para assegurá-los e garanti-los na ordem constitucional.
A proteção dos direitos fundamentais na ordem constitucional está
condicionada aos seguintes expedientes técnicos: a técnica de defesa da
Constituição, técnica da supra-estalidade dos direitos fundamentais e da técnica
de conteúdo das normas constitucionais.
É o que veremos a seguir.
A. Técnica de defesa da Constituição
Em primeiro lugar está a criação de mecanismos destinados a
proteger, estabilizar e assegurar a perenidade das Constituições democráticas: (a)
técnica da Constituição mais dura, que é a distinção entre textos constitucionais e
legislação ordinária; (b) rigidez constitucional, isto é, a adoção de complexos
mecanismos procedimentais para a apreciação das emendas constitucionais
(quorum diferenciado, votação em dois turnos em ambas as Casas do Congresso
Nacional 31 ); (c) ampliação do cerne imodificável, com a criação de um núcleo
duro – as chamadas cláusulas pétreas –, insuscetível de abolição pelo poder
constituinte derivado32; (d) constitucionalização dos direitos fundamentais supra27
Para Pontes de Miranda, “Política Legislativa Constitucional é o programa tirado do conjunto de
conhecimentos científicos e técnicos com os quais se podem resolver os problemas da feitura e execução
das Constituições” ( Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2002,
p. 79).
28
MIRANDA, Pontes de. Preliminares para a Revisão Constitucional, in À Margem da História da
República. Rio de Janeiro: Anuário Brasil, 1924, p. 163.
29
MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller,
2002, pp. 149 e 179. MIRANDA, Pontes. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos.
Campinas: Bookseller, 2002, p 732.
30
MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller,
2002, p. 49.
31
Cf. Constituição Federal, art. 60, §§ 1º e 2º .
32
Cf. Constituição Federal, art. 60, § 4º, I, II, III e IV.
14
estatais contidos em tratados internacionais; (e) aplicabilidade imediata - as
normas que asseguram direitos fundamentais são bastantes em si, portanto aptas a
incidir a partir da promulgação do texto constitucional 33 ; (f) garantias
fundamentais, compostas por um conjunto de remédios jurídicos processuais
destinados a efetivar os direitos fundamentais; (g) planificação das ações
governamentais, com políticas públicas destinadas à promoção do bem-estar social;
(h) controle de constitucionalidade das leis34.
B. Técnica da supra-estalidade dos direitos fundamentais
Segundo Pontes de Miranda, a supra-estalidade é a principal
característica dos direitos fundamentais. O fundamento de existência de tais
direitos não deve ser procurado no direito interno. Salvo quando o legislador
constituinte decide fundamentalizar determinados direitos antes que sejam
proclamados em tratados internacionais.
A incidência dos direitos fundamentais não depende de
reconhecimento constitucional, já que pertencem à ordem jurídica exterior e acima
do Estado. Em relação a eles, o Estado atua como definidor de exceções e
clarificador de conteúdo pela mediação do legislador constituinte ou ordinário.
Além disso, os direitos fundamentais supra-estatais são
paradigmas de validade das normas de direito interno, inclusive das normas
constitucionais. Por estarem contidos em ordem jurídica superior, impõem limites
tanto ao poder estatal quanto ao poder constituinte, que são obrigados a incorporálos à Constituição, cercando-os das garantias necessárias à sua efetividade. Nesse
sentido, nenhuma das regras do sistema jurídico nacional pode ser interpretada ou
executada em contradição com a Constituição e com as Declarações de Direito.
A técnica da supra-estatalidade tem sido um dos principais
instrumentos de estabilidade das Constituições. Através dela, os Estados
integrantes das Nações Unidas são obrigados a adotar um conjunto de direitos
fundamentais reconhecidos como válidos pela ordem jurídica internacional. Daí
Pontes de Miranda afirmar que são direitos declarados e executórios. Declarados
porque a Constituição não os cria, apenas os introduz no ordenamento jurídico;
executórios porque, ao fazê-lo, o Estado cumpre o compromisso assumido no
momento da subscrição e ratificação dos tratados internacionais sobre direitos
humanos.
C. Técnica do conteúdo essencial dos direitos fundamentais (democracia,
liberdade, igualdade e solidariedade)
33
Cf. Constituição Federal, art. 5º, § 1º.
MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller,
2002, pp. 149 e 179.
34
15
A terceira técnica refere-se ao conteúdo axiológico das normas
constitucionais. Com base nessa perspectiva, Pontes de Miranda aponta duas
espécies normativas35: normas constitucionais de forma e normas constitucionais
de fundo. Aquelas disciplinam a estrutura da ordem estatal. Tratam, por exemplo,
da organização dos poderes36 e da atuação popular na ordem estatal – dos direitos
políticos37. Estas estão vinculadas diretamente ao conteúdo, à essência das normas
constitucionais. Os direitos fundamentais se enquadram nessa categoria e são
emanações da liberdade, da igualdade e da solidariedade.
Até o final da 2ª Guerra Mundial, a estruturação do Estado e a
repartição de competências predominavam nas Constituições européias. Pontes de
Miranda percebeu que o excesso de normas de forma era um mal que precisava ser
combatido. Passou a sustentar que a evolução jurídico-social passaria pela
ampliação das regras de fundo e do cerne inalterável 38 . Os governos deveriam
planificar suas ações para atingir o máximo de liberdade e igualdade. Além disso,
era preciso atribuir impositividade às normas constitucionais (força de incidência).
Esse conjunto de medidas asseguraria a estabilidade da constitucional e garantiria
a concretização dos direitos fundamentais39.
O jurista alagoano era partidário da incorporação de valores e opções
políticas à Constituição. Em 1944 já sustentava que os direitos fundamentais eram
produtos da liberdade40 e da igualdade41. Também ressaltava a importância dos
35
MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller,
2002, p. 49.
36
Constituição Federal, art. 44 e ss.
37
Constituição Federal, art. 14.
38
“O cerne pode crescer ou diminuir. A evolução é descrita pelo crescimento, com a inclusão de regras
adequadas, isto é, das regras que trazem solução pelo menos duradoura do que se pode prever seja a vida da
Constituição”( Cf. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2002,
p. 181).
39
As soluções técnicas propostas por Pontes de Miranda para a estabilidade constitucional e para a
concretização dos direitos fundamentais são praticamente as mesmas sustentadas pelo constitucionalismo
contemporâneo. Segundo Ana Paula Barcelos, o neoconstitucionalismo assenta-se sobre princípios como a
normatividade da Constituição, a rigidez constitucional, a centralidade da Constituição nos sistemas
jurídicos, a incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais, etc. Luiz
Roberto Barroso acrescenta premissas como a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento
de uma nova dogmática da interpretação constitucional Paulo Bonavides (Cf. BARCELLOS, Ana Paula.
Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Mimeo; BARROSO,
Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito – O triunfo tardio do Direito
Constitucional no Brasil (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547) .
40
Pontes de Miranda chegou a propor uma tipologia dos direitos de liberdade, que incluía a liberdade de
emitir ou não pensamento, liberdade de ciência e pesquisa, liberdade de ensino, liberdade de religião e
cultos, liberdade de arte, liberdade de associação, liberdade de coalizão, liberdade de reunião, liberdade de
locomoção, inviolabilidade de domicílio etc ( Cf. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos.
Campinas: Bookseller, 2002, p. 427).
41
Para Mirkinne-Guetzévititch, o direito constitucional se restringia à técnica da liberdade. Pontes de
Miranda acrescentou-lhe a dimensão da igualdade por entender que os direitos sociais (chamados por ele de
direitos socialísticos) também eram dotados de fundamentalidade. Em 1944, o jurista alagoano já pugnava
pela constitucionalização do direito à subsistência, direito ao trabalho, direito à educação e direito à
assistência. Os direitos sociais só foram introduzidos na Carta Política 44 anos após essas proposições.
16
direitos decorrentes da democracia – os direitos políticos –, essenciais à estrutura
e legitimidade do Estado de Direito.
Ao defender essa tese, reconhece que a Constituição é, ao mesmo
tempo, um sistema de valores e um sistema lógico-jurídico de direitos subjetivos.
Reconhece também a insuficiência do normativismo para o tratamento do
fenômeno constitucional. Esse ponto de vista era comungado por muitos
doutrinadores alemães de sua época, a exemplo de Rudof Smend e Günter Dürig.
Smend não nega a função subjetiva dos direitos fundamentais. Mas
também sustenta que eles desempenham duas funções primordiais: política e
jurídica. No plano político, exteriorizam a vontade de integração material, isto é,
do desejo de coesão da comunidade e da realização de objetivos comuns. O
sistema jurídico só é válido quando reflete o sistema de valores e, através dele, se
legitima. No plano jurídico, os direitos humanos são fundamento de validade da
ordem legal constituída42.
Günter Dürig, também segue essa linha de raciocínio. Mas vai mais
além. Tomando por base o artigo 1.2. da Lei Fundamental alemã, afirma que a
dignidade humana é o valor constitucional supremo. Em sua opinião, o artigo
traduz uma decisão axiomática eterna, referente ao conteúdo valorativo dos
direitos fundamentais. Dessa forma, o conteúdo do direito geral de liberdade e de
igualdade está delimitado pela pretensão de respeito à dignidade que corresponde
a todas e a cada uma das pessoas humanas43.
Essa mesma tese é defendida por Euzébio Fernandes. O filósofo
espanhol sustenta que o fundamento ético dos direitos humanos antecede o
jurídico (ao direito positivo). Pertence à dimensão axiológica. Para ele, a
dignidade da pessoa humana é o metavalor, a partir do qual derivam outros valores
que vão fundamentar os distintos direitos humanos 44 . Esses valores, segundo
Pontes de Miranda, são a liberdade, igualdade e democracia.
Defendemos em outros escritos que a dimensão da solidariedade
também é uma emanação do princípio da dignidade da pessoa humana. A tutela de
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos impõe novos desafios ao
neoconstitucionalismo. Percebe-se
a crescente supra-estatalização e
constitucionalização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, dos
direitos dos consumidores, das crianças, adolescentes, idosos e portadores de
42
“Independentemente de qualquer consideração sobre a validade normativa, os direitos fundamentais são
representantes de um sistema de valores concretos, de um sistema cultural que resume o sentido da vida
estatal contida na Constituição. Do ponto de vista político, isto significa uma vontade de integração
material; do ponto de vista jurídico, a legitimação da ordem positiva, estatal e jurídica. A ordem positiva só
é válida quando representa o sistema de valores e precisamente por ele se converte em legítimo” ( SMEND,
Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1985, p.
232).
43
CRUZ, Luis M. La Constitución como orden de valores – problemas jurídicos y políticos – un
estudio sobre los orígenes del neoconstitucionalismo. Granada: 2005, pp. 25/26.
44
FERNÁNDEZ, Eusébio. El problema del fundamento de los derechos humanos, in Anuário de
Derechos Humanos, v. 1. Madri: Instituto de Derechos Humanos da Universidad Complutense de Madrid,
1981, p. 108.
17
necessidades especiais. Muitos tratados internacionais têm sido celebrados para
combater a corrupção, a lavagem de dinheiro, a sonegação fiscal, o tráfico de
pessoas e de entorpecentes. Tudo isso faz com que o direito geral de solidariedade
– calcado na defesa de grupos sociais vulneráveis, na proteção do patrimônio
público, ecológico e cultural –, seja também considerado uma manifestação da
dignidade humana.
Entendemos que o conteúdo essencial das normas de direito
fundamental obedece o seguinte esquema:
DIGNIDADE HUMANA
DEMOCRACIA
LIBERDADE
IGUALDADE
SOLIDARIEDADE
Forma
Fundo
Fundo
Fundo
A primeira manifestação da dignidade da pessoa humana são as
liberdades públicas – poderes de autodeterminação do indivíduo que impõem
limites à atuação estatal. Quer dizer, direitos fundamentais que protegem o
indivíduo do arbítrio do Estado. Quase todos estão agrupados no art. 5º da
Constituição Federal: liberdade de expressão; liberdade de consciência; proteção à
honra, intimidade, vida privada e imagem; inviolabilidade de domicílio,
inviolabilidade de correspondência e das comunicações; liberdade de locomoção;
liberdade de trabalho; direito de reunião, liberdade de associação, entre outros.
A segunda está representada pelos direitos sociais – poderes de
exigir prestações estatais que assegurem a igualdade de pontos de partida,
mediante a criação e execução de políticas públicas, ações afirmativas, ações
governamentais e edição de normas jurídicas que promovam o bem-estar. Eles
estão definidos no art. 6º da Constituição Federal: direito à educação, à saúde, ao
trabalho, moradia, segurança alimentar e à previdência social.
A terceira expressa a existência de um direito geral de solidariedade,
que toca diretamente populações, grupos ou categoria de pessoas, exigindo
atuação pro populo do Ministério Público, das associações não-governamentais e
da sociedade civil em geral. A solidariedade implica a aliança com o “nós” sem o
18
rompimento do “eu”. Significa responsabilidade individual com os destinos do
grupo social a que pertencemos. É a mais profunda manifestação do sentimento de
pertença. Em um belo ensaio sobre o amor, Artur da Távola ensina que “o „nós‟ é
a dimensão coletiva do social sem a qual não podemos viver”. E continua: “o „nós‟
nos coloca no mundo de nossos irmãos com os quais temos de repartir o pão e
conviver. Ele nos leva à ecologia, à preservação da vida, à luta pelo progresso
como obra de todos e para todos45”. É exatamente no compromisso com o “nós”,
com o coletivo, que se funda a solidariedade, impondo a todos (Estado e
particulares) deveres jurídicos.
A concretização dos direitos fundamentais também exige uma forma:
a democracia. A efetividade está condicionada a uma ambiência democrática em
que o Estado de Direito assegure a prevalência do princípio da legalidade, a
independência dos três poderes, a eficiência do controle de constitucionalidade e a
normalidade das instituições republicanas. Além disso, a efetividade está
diretamente relacionada com a constitucionalização das garantias processuais
(como o devido processo legal, a ampla defesa, a presunção de inocência, o direito
a não auto-incriminação, o duplo grau de jurisdição etc.) e dos remédios jurídicos
processuais (como o habeas corpus, mandado de segurança, ação popular, habeas
data, mandado de injunção, ação civil pública etc.).
Em síntese, o projeto constitucional de Pontes de Miranda tem como
estratégia o fortalecimento das Constituições, a cristalização dos direitos
fundamentais na ordem jurídica estatal e o equilíbrio entre democracia, liberdade,
solidariedade na configuração da ordem estatal.
5. EPÍLOGO
O grande legado de Pontes de Miranda foi a construção de um
projeto de Estado Democrático de Direito pós-positivista, baseado na estabilidade
das Constituições e no fortalecimento dos direitos fundamentais. Um projeto que
implica a conjunção da ciência, técnica e política constitucional para a realização
de fins precisos: a felicidade pública e o bem-estar social.
As idéias desenvolvidas por ele há mais de 50 anos mostram
um jurista irrequieto, extremamente preocupado com os destinos dos países
democráticos. Sabia que o Pós-Guerra faria surgir um novo constitucionalismo
fundado no fortalecimento das liberdades públicas e na positivação dos direitos
sociais.
Fiel ao positivismo sociológico, acreditava que a ciência
poderia oferecer indicativos seguros para o aprimoramento das instituições
públicas, colocando o Estado a serviço da civilidade e da adaptação social. Mas
caberia à técnica jurídica conceber expedientes eficazes para assegurar a
45
TÁVOLA, Artur da Távola. Do Amor – Ensaio de Enigma. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico: Bluhm,
2001, p. 8.
19
perenidade constitucional. Propunha a adoção da rigidez, do cerne imodificável,
de remédios jurídico-processuais adequados e, sobretudo, a ampliação das normas
de fundo que reforçassem os direitos derivados da liberdade e igualdade –
considerados por ele os caminhos mais seguros para a evolução civilizatória.
O constitucionalismo de Pontes de Miranda é produto das
circunstâncias de uma época marcada por profundas mudanças de paradigma. Um
período que exigia respostas rápidas para a crise do Estado de Direito. Como
jurista, ele participou desse movimento de reconstrução da ordem estatal com
propostas extremamente avançadas tanto no campo da política constitucional
como no da teoria dos direitos fundamentais.
Hoje o Brasil se vê diante de novos desafios como a
constitucionalização dos direitos, a consolidação de novas categorias de
interpretação constitucional e a elevação dos princípios à condição de espécie
normativa. Mas não podemos esquecer que os caminhos foram abertos em
circunstâncias difíceis em que as tiranias e ditaduras insistiam em negar os mais
elementares direitos humanos. É por isso que o nome de Pontes de Miranda deve
ser lembrado como um dos mais importantes artífices do constitucionalismo
contemporâneo.
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O POSITIVISMO DE PONTES DE MIRANDA