16º CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL
WILLIANA PEREIRA SALDANHA
CRIANÇAS DIALOGAM COM O TEXTO LITERÁRIO
Comunicação oral apresentada no
16ºCOLE, vinculada ao seminário 02- X
Seminário sobre “Biblioteca” no Centro
de Convenções da UNICAMP.
CAMPINAS
2007
CRIANÇAS DIALOGAM COM O TEXTO LITERÁRIO
Wiliana PEREIRA SALDANHA1
Resumo: Neste trabalho relatamos uma experiência dialógica de leitura, realizada
em uma 3ª série do Ensino Fundamental de uma escola de Sumaré, com um texto
literário. As crianças traziam da série anterior uma concepção monológica de leitura.
Para reverter o processo, adotamos os pressupostos dialógicos de Bakhtin (2006), a
concepção social do conhecimento de Vygotsky (1988) e de Smolka (1993) e as
concepções de leitura de Márcia Abreu (2006) e abrimos um espaço na biblioteca da
escola para que as crianças, ao ler, dialogassem com o outro (colega e professor). A
negociação e a tensão, resultante dos processos de leitura, permitiram que
relacionassem o texto às suas experiências e construíssem significações singulares.
Palavras-chaves: biblioteca, leitura, dialogia.
Seminário do 16º COLE vinculado: 02 – X Seminário sobre “Biblioteca”
Neste trabalho relatamos uma experiência dialógica de leitura, realizada em
uma 3ª série do Ensino Fundamental da Escola Municipal “José de Anchieta”, no
ano de 2006, em Sumaré, com o texto literário A CASA de Vinícius de Moraes
(1991,p.19). As crianças traziam da série anterior uma concepção monológica de
leitura,concebiam-na como única, dotada de um sentido único. Nesse contexto
perguntávamos: O que aconteceria se as crianças relessem o texto compartilhando
a leitura? Que leituras e que significações resultariam desses processos
interacionais mediados pelo pesquisador?Que papel teria o outro (mediador) colega
ou professor nesse processo?
Para responder essas indagações adotamos os pressupostos teóricos de L.S
Vygotsky e Mikhail Bakhtin e suas teorias do desenvolvimento e da linguagem
respectivamente.Para Vygotsky (1988), o processo de formação de pensamento é
despertado e acentuado pela vida social e pela constante interação que a criança
estabelece com os adultos e com as outras crianças, nesse processo a mediação
pelos signos e pelo outro tem um papel fundamental. Bakhtin(2006, p.117), nos
propõe que a linguagem como prática social é uma produção dialógica, que se faz
na interação de pelo menos dois sujeitos e afirma:
Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada
tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se
dirige para alguém.Ela constitui justamente o produto de interação do
locutor e do ouvinte.
1
Pedagoga e Bacharel em História pela PUC-Campinas/SP, atua como Coordenadora do Projeto
Incentivo à Leitura na Biblioteca Infantil da Escola Municipal “José de Anchieta”.
2
Pela visão teórica assumida, a interação social tem um papel fundamental
para a concepção de construção social do sujeito e de compreensão do papel
mediador da linguagem, sendo aquela o alicerce de seu desenvolvimento e de seu
processo de significação,inserção essa necessária do indivíduo enquanto
participante de um processo histórico e cultural que o produz e é,
dialeticamente,também por ele produzido.Conforme enfatiza Smolka (1993, p.08) :
Num processo de desenvolvimento que tem caráter mais de
revolução que evolução, o sujeito se faz como ser diferenciado do
outro, mas formado na relação como o outro; singular mas
constituído socialmente e, por isso mesmo, numa composição
individual, mas não homogênea.
Buscamos, ainda, a concepção de leitura e literatura de Márcia Abreu (2006),
que defende a idéia de que não devemos ler e julgar um conjunto de textos
empregando um único sentido e critério, mas compreendê-los dentro do sistema de
valores em que foram criados.
Para nos tornarmos coerentes com as concepções teóricas assumidas acima,
adotamos frente às atividades de ensino uma abordagem dialógica, permitindo que
as crianças compartilhassem a leitura, abrindo na escola um espaço para a troca de
experiências e para a partilha da palavra. Para isso, inauguramos um espaço na
biblioteca para que as crianças, ao ler, dialogassem com o outro (colega e
professor).
2. Construindo a leitura na biblioteca: o encontro e a tensão das vozes
O registro da experiência dialógica de leitura do texto A CASA, a seguir, foi
realizado através de gravação de vídeo, por uma câmera inicialmente colocada no
tripé de filmagem e posteriormente nas mãos da professora-pesquisadora
mediadora, numa tentativa de melhorar a qualidade da gravação e o desempenho
da ouvinte/interlocutora dentro do processo. A presença habitual da câmera de
vídeo como instrumento de registro e principalmente, como recurso didático nas
atividades da biblioteca, não se configurou como fator inibidor no processo diálogo,
ao contrário as atitudes das crianças sugerem que elas estavam atentas às
orientações iniciais da professora e procuravam falar alto e em seqüência para a
gravação sair de boa qualidade.
Esta forma de registro permitiu captar o constante dinamismo do grupo de
crianças, mas também se apresentou como um problema à professora-pesquisadora
no momento da transcrição dos diálogos, que duraram aproximadamente quinze
minutos, e na seleção e organização dos dados. Principalmente, como captar na
forma de transcrição, a elaboração conjunta (dinâmica) da e na atividade, as
interferências, pausas e silêncios de uma criança sobre a outra.
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O texto
A CASA
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque na casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na rua dos Bobos
Número zero
4
P = Nós vamos trabalhar com a poesia A CASA. Vocês já aprenderam o ano passado, do
livro: (indicando as partes do livro) / a capa, todo mundo está recordando, a capa, o rosto, o
sumário, que é onde vocês vão seguir, onde está localizado a poesia, que nós vamos ouvir,
primeiro A CASA. Vamos cantar junto com o CD do Toquinho e do Vinícius. /.../ Quero que
vocês falem um pouco alto para poder a gravação pegar.2
A = (incomp.)
P = Então , todo mundo entendeu, o que vão fazer? Vai ler. Já leu. Já cantou. Vai vê como vê
essa casa do Vinícius. / Conforme vocês forem falando: um fala, outro fala, por vez a gente
consegue. Porque essa “casa”? O que tem essa “casa”? Ela não tem teto / ela não tinha
nada. Então, eu quero que vocês vão comentando. Tá, bom! // (orientação professora para
stop gravação)
A1 = Aí , teve um dia que / eu aprendi que ela era feita só de cano, não tinha parede, nem
teto, feita só de cano, era cano ligado nela.
P = Eu quero quem está / achando outra coisa, vai falando (A2 = acena que vai falar) e a
professora indaga: O que você achou que é?
A2 = Eu? É.
P = Isso!
A2 = silêncio
A3 = Achei que era / de cimento.
P = Mas o que é cimento?
A3 = / É uma coisa que vai grudando (incomp.)
A2 = É / O cimento é os pontinhos.
P = Ah! Você está analisando a casa que está na // no ali/ desenho, que está na ilustração do
poema/
P = Mas vocês não acham que “a casa” que o Vinícius está falando não é a do ilustrador ? A
casa / que o Vinícius está falando não é essa casa/ do ilustrador. Que casa é essa, aí ?
A1 = Não é essa aí! (enfático). Não tem parede!
P = Não é essa! Então qual é ?
A4 = É um tipo de uma casa representada, de imaginação. Eles que imaginaram a casa.
P = Então, espera aí! Fala de novo! Você está achando que é uma casa?
A4 = Que eles imaginaram uma casa, que não tinha teto, nem parede. Aí eles formaram a
música.
P = Eles, você está se referindo ao Vinícius e ao Toquinho? Vai explicando aí/ então essa
casa. Mas como ele imaginou que essa casa não tinha parede? Mas o que é essa casa que
não tinha parede?//
A4 = Aí, eu não sei!
P = Aí, você não sabe!/ Quem imaginou, que casa é essa?
A = Essa casa (incomp. )
P = Essa casa ? / Que casa é essa?
A5 = Essa casa não existe!
P = Essa casa não existe! Explica para mim. Por que essa casa não existe?
A5 = Porque ela não tinha parede// não tinha nada!
P = É uma casa que não existe, tá! Qual é a outra idéia, que alguém, viu aí ?
2 Atente-se para a legenda: P= professora – Pesquisadora; A= Aluno não identificado; A1,A2 =
Alunos identificados; AA= Todos os alunos ao mesmo tempo; / = pausa breve; // = pausa mais longa;
(incomp.) = incompreensível; /.../ = Transcrição parcial; [ ] = Sobreposições de vozes localizadas.
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A1 = Se você for ver mesmo, essa casa/ , você não vai ver essa casa, porque ela não tem
parede , não tem nada.
P = Tá, mas essa casa, deve ser uma casa? Mas que casa que não existe, que não tem
parede?
A4 = Uma casa imaginária!
P = Tudo bem ! Uma casa imaginária. Mas e aí?
A = Eu acho que essa casa (incomp.)
P = Espera um pouco, aí! Quero alguém / que leve esse raciocínio da casa.
A6 = Acho que essa casa é a barriga da mãe.
P = Ah! Então, espera aí! Vamos repetir, então essa casa/ vai? Se é a barriga da mãe. Onde
é a parede?
A6 = Não sei!
P = Vai. Se é a barriga da mãe // Onde que é ?
A1 = A parede é o corpo inteiro. A parede/ é aquela bolsa, que está lá dentro/ que não tem
chão, porque é redonda/ então não tem chão.
P = Tá! Todo mundo entendeu o que A1 e ela A6 explicou? // Se você olhar para essa “casa “
do Vinícius, sendo //
AA = A barriga da mãe
P = A barriga da mãe, não tem chão// porque o bebê/ porque o bebê está lá dentro não é A1?
A1 = Ela é redonda, não tem chão.
P = Ele acha que ela é redonda e não tem chão // mas todo mundo já aprendeu // isso algum
dia? Onde vocês ouviram isso que o Vinícius, está falando de uma casa // que é a barriga da
mãe?//
A1 = Num monte de coisa de escola.
P = Onde ? Num monte de coisa de escola, aparece isso. Tá,. E agora então, pensa aí: se a
barriga da mãe, “ a casa” do Vinícius. Como é que fica?
A7 = Eu sei que a casa. Eu sei dessa casa, porque já morei lá dentro.
P = Ah ! Você já sabe dessa casa porque você já morou lá dentro. Então explique essa casa
que você já morou lá dentro?
A7 = É a barriga da minha mãe!
P = Tenta ler na poesia, onde você identifica essa casa / que você já morou.
A7 = ( fica em silêncio )
P = Todo mundo está identificando essa casa que ela diz que já morou?
A1 = Só que aí (incomp.) quando ele nasceu, já morou nessa casa de verdade.
P = Então, quando a gente cresce, mora na casa de verdade. O que mais a gente pode falar
dessa casa de verdade? Que todo mundo morou?
A5 = Essa casa é um terreno vazio.
P = Essa casa é um terreno vazio, também! Como você sabe que essa casa é um terreno
vazio?
A5 = Porque não tem nada.
P = O que significa o número zero?
A6 = Número zero, porque não tem casa (incomp.). Não é casa porque é a barriga da mãe
P = Ah // Como que é?
A8 = Essa casa não existe!
P = Essa casa não existe? Ué? Tá mundo falando que essa casa existe, porque é a barriga
da mãe!
A8 = Então, daí/ o que o autor falou ele inventou
P = Olha que legal, que ele está falando, que o autor inventou uma casa.
6
A8 = (incomp) Ele inventou essa casa para fazer a música.
P = Muito bem, todo mundo entendeu isso agora?
AA = Entendemos!
P = Agora que vocês, já entenderam isso igual ao Vinícius, igual ele ( A8 ) falou, que casa
você colocaria nesse lugar? Qual casa seria igual a do Vinícius? Que casa seria essa? Vai!
A5 = Ele inventou a casa e desenhou e fez uma música com ela.
P = Mas pelo que estão falando, não é uma casa mesmo de chão de parede de tijolo. Todo
mundo está comentando que já ouviu essa interpretação. A casa é a casa da gravidez da
mamãe, que o Vinícius inventou. O número zero é a barriga? Quem falou que é o umbigo?
A8 = Eu. O umbigo é o número zero.
P = Você acha que o umbigo é o número zero?
A4 = Lá não pode entrar, porque lá/ a gente já está lá dentro e não entrar lá, não tem porta !
P = Você acha que isso é o número zero. Ta legal ! Então, todo mundo entendeu mais ou
menos isso? E agora qual outra casa entraria aí? Qual outra casa que você/ ? Ah ?
A5 = O número zero é o neném.
P = Ah/ o número zero é o neném. Quem sabe?!
A6 = Porque o neném não tem um aninho.
P = Então ele não tem? Pode repetir
A6 = Ele não tem um aninho.
P = Então , ele não tem um aninho e para vocês é o número zero/ E agora e a outra casa,
que vocês acharam que é? Alguém pensou numa casa?
A = Um terreno baldio.
P = Um terreno baldio/ um terreno baldio é uma casa? Que outras casas existem?
AA= (Incomp.)
A4 = As casas inventadas
P= As casas imaginárias
A4 = As casas inventadas
P = Você acha que a imaginária entra aí, / que mais entra aí
A6 = As casas de desenho
P = Como as casas de desenho, entram aí?
A6 = Desenhar a casa?
P = Alguém teve uma idéia de uma casa que não tem teto, que não tem parede, e não é essa
“casa do Vinícius”.
A1 = Essa casa / se você for ver bem, se não tiver chão, cai no solo.
A5 = Essa casa que não foi construída.
P = A sua casa/ tá // Quem mais tem uma idéia igual à do Vinícius? Quero ver alguém
inventar sua casa: como o colega A8 ensinou, que / o colega deu uma idéia: Olha o autor
criou essa casa. Como você criaria uma casa igual à do Vinícius?
A1 = Acho que é uma casa invisível. Quem entraria nela?
P = Quem entra nela? Todo mundo compreendeu “a casa” do Vinícius? Ninguém conseguiu
imaginar uma casa dele. Se você escrever uma poesia, que fosse a sua casa, que não fosse
“a casa do Vinícius”, ninguém conseguiu imaginar essa casa? Que teria essas características
da “casa do Vinícius”? Ninguém conseguiu imaginar? / Não?
A4 = Uma casa de vento
P = Uma casa de vento/ meio complicada não parece, não tem nada / Tudo bem! Vamos
encerrar. Valeu!
A4 = [ Não aparece, não tem nada]
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3. Análise: A negociação e a construção de sentido na leitura
No início da experiência dialógica de leitura, o papel de A1 foi fundamental
para os colegas, pois ao fornecer um “indício” (feita de cano) levou-os a realizarem a
atividade. Embora sua afirmação :Eu aprendi que ela era feita só de cano, fosse
uma conexão direta com o concreto(casa entendida como construção) não fosse
adequada (ligada à imaginação), ela foi suficiente como ”pista” na elaboração da
significação do texto pelas crianças. Como é o caso da afirmação de A3 =Achei que
era cimento, que fez com que A2 reelaborasse a leitura de A3, dando início ao
processo de negociação , A2 responde : É / o cimento é os pontinhos,
transformando o sentido inicial, casa lugar onde se mora, na casa desenho,
ilustração apresentada no texto.
A mediação do outro, professora e colega, ao impor /convencer o novo
sentido: P= não é essa casa /do ilustrador; fez com A1 disputando este sentido,
gritasse enfático: Não é essa aí! Não tem parede! , essa tentativa de contesta-lo
sugere o ritmo dinâmico da negociação. É muito significativa nesse trecho, a
alternância de ocupação do espaço de interlocutores entre as crianças, pois essa
será uma constante no processo de significação, momentos de disputa,de prestar
atenção, de ouvir, e de incorporação da fala do outro.
A desestabilização provocada pelo conflito de vozes da professora
mediadora: Não é essa! Então qual é? e da colega A4= É um tipo de casa
representada de imaginação.Eles que imaginaram a casa; transformaram o sentido
inicial (sentido concreto) para um novo: a casa sugerida pelo autor. A
intertextualidade contida na afirmação da mediadora, P= Eles, você está se referindo
ao Vinícius e ao Toquinho, coloca A4 e as demais crianças na condição de ouvintes
interlocutores, levando-os a refletir sobre o quê e o como narrado e para quem. É
relevante destacar quer a alternância dos papéis discursivos, em diversos momentos
do exercício dialógico, como nos trechos a seguir, as levaram a refletir sobre os
caminhos percorridos pelo autor na construção do texto e da história do outro
(autor): A8 = Então, daí/ o que o autor falou ele inventou; P = Olha que legal, que ele
está falando, que o autor inventou uma casa; A8= ( incomp.) Ele inventou essa casa
para fazer a musica; P = Muito bem, todo mundo entendeu isso agora?; AA =
Entendemos! e A5 numa tentativa de construção de hipótese final, afirma: Ele
inventou a casa e desenhou e fez uma música com ela.
Nesse sentido a afirmação de A6= Acho que essa é a barriga da mãe, nos
aponta que ela aceitou como adequada à fala de A4 e reelaborasse o sentido para a
casa da infância (a barriga da mãe). A partir desse momento o exercício dialógico,
estabelecido entre as crianças e a mediadora entra num constante processo de
repetição da fala do outro, e de incorporação e apropriação desse sentido, as
crianças passam a realizar hipóteses para a compreensão do inusitado para elas,
uma casa sem teto, sem parede.
Observamos ainda, como no caso dessas afirmações: A1= A parede é o
corpo inteiro.A parede/ é aquela bolsa, que está lá dentro/ que não tem chão, porque
é redonda; A7= Eu sei dessa casa, porque já morei lá dentro; A8= O umbigo é o
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número zero; A5= o número zero é o neném e A6= Porque o neném não tem um
aninho, que através da tensão dialógica as crianças buscaram caminhos para a
construção do(s) sentido(s) da leitura, apoiados em suas experiências,assumindo
uma atitude responsiva em relação ao discurso do outro e reflexiva sobre si e sobre
o mundo. A significação barriga da mãe apontou-nos uma concepção monológica de
leitura, construída na série anterior, marca do trabalho educativo de sala de aula
com atividades de leitura e interpretação. Isso mostra a difusão da idéia de que
como disciplina escolar à “Grande literatura” (Abreu, 2006 p.58) deve ser lida num
sentido único e por todos. A afirmação de L após a mediação da professora, nos
aponta para essa direção: P= Onde vocês ouviram isso que o Vinícius, está falando
de uma casa // que é a barriga da mãe?//, a qual A1 responde: Num monte de coisa
de escola. A negociação constante da mediadora levou- as a percorrerem novos
caminhos na construção de hipóteses para a busca da significação do texto, isto é ,
a imagem de uma casa sugerida pela fantasia A= um terreno baldio; A4= uma casa
de vento. O afastamento do conhecimento instituído foi possível pela adoção de uma
perspectiva dialógica, mediada pela professora- pesquisadora, isso permitiu que elas
percorressem novos caminhos na leitura (imagem sugerida pela fantasia). As
crianças foram ouvidas, tiveram direito à voz e puderam construir sentidos numa
leitura dialógica partindo de sua própria história e da história do outro (autor do texto
e do outro colega).
A mediação do outro, professora-pesquisadora ou colega foi fundamental para
que novos sentidos fossem instaurados durante a leitura conjunta, sugerem no
movimento dialógico das crianças diferentes caminhos para a compreensão do texto
(A Casa): a conexão direta com o concreto (casa entendida como construção, como
lugar onde se mora) é o caso das afirmações: A1 = Aí, teve um dia que / eu aprendi
que ela era feita só de cano, não tinha parede, nem teto, feita só de cano, era cano
ligado nela ou ainda quando expressam: A3 = Achei que era de cimento.P = Mas o
que é cimento?,e o estabelecimento de uma relação direta com a ilustração
apresentada no texto (a casa seria o desenho apresentado cujos detalhes sugerem
tijolos, cimento; A2 = É/ o cimento é os pontinhos.P = Ah! Você está analisando a
casa que está na // no ali/ desenho, que está na ilustração do poema/ P = Mas vocês
não acham que “a casa”que o Vinícius está falando não é a do ilustrador ? A casa /
que o Vinícius está falando não é essa casa/ do ilustrador. Que casa é essa, aí ?A1 =
Não é essa aí! ( enfático ). Não tem parede!
Como pode se perceber o mediador (neste caso a professora-pesquisadora)
trabalha no sentido de desestabilizar uma leitura que vincule o texto a uma
experiência imediata da criança, ou seja, de buscar a significação sem uma possível
mediação da sensibilidade e da imaginação. Essa atitude do mediador foi
importantíssima para que as crianças percebessem a pluralidade da leitura literária e
esforçassem para realizar saltos, instaurando e construindo hipótese que pudessem
levá-las à compreensão do inusitado (uma casa sem teto, sem parede, sem nada). O
afastamento paulatino de um conhecimento já instituído e a tentativa de se buscar o
inusitado: a significação em uma imagem sugerida pela fantasia ( casa como um
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lugar qualquer não habitual ,um terreno baldio, uma casa de vento); a casa sugerida
pelo autor : um outro lugar de origem, do início, da infância ( a barriga da mãe).
O deslocamento de uma leitura literal para a pluralidade de sentidos deu-se
exatamente no conflito das vozes: entre o sentido posto por um e contestado e, logo
em seguida, aceito pelo outro. Esse exercício dialógico estabelecido entre elas e
propiciou o alargamento do universo significativo do tema, propôs novos rumos para
a leitura do texto, levou-as a refletirem sobre si e sobre o mundo de maneira crítica,
transformadora por meio da linguagem e daquilo que ela pode sugerir.
Toda essa discussão torna-se importante porque não apenas a leitura deve
ser crítica, mas deve ser crítica e histórica toda a relação da criança com a
linguagem que não pode ser reduzida a um código, mas, ao contrário, deve ser o
lugar por onde circulam as tristezas, as alegrias , a história de cada um.
Nosso objetivo não era apenas tornar o texto mais claro ou mais informativo,
mas exercitar as condições dialógicas da linguagem, porque partíamos do princípio
de que a criança, antes locutora, ao colocar-se na condição de interlocutora,
exerceria um outro lugar no discurso. Assim, ao interagir em diferentes posições
discursivas, ora como narradora-locutora, ora como ouvinte-interlocutora, seria
levada a refletir sobre o quê, o como, o onde e o para quem narrou. O contexto do
dialógico, muitas vezes, requer a retomada, a reconstrução, a mudança do discurso,
porque o interlocutor exige do narrador constantes mudanças de posições, exige
uma atitude responsiva em relação ao discurso do outro.
Os diferentes contextos da enunciação e as alternâncias de papéis quando da
exposição do texto, de locutor a interlocutor e de interlocutor a locutor, foram
estratégias que influenciaram o desempenho das crianças na experiência dialógica
de leitura.
4. Conclusão
Ao discutirmos a atividade de leitura com abordagem dialógica no espaço da
biblioteca, pretendemos mostrar que o cruzar das vozes, os confrontos e as tensões
resultantes desse processo mediado, permitiram que as crianças construíssem
sentidos singulares e inusitados. Ao inaugurarmos esse espaço oferecemos à elas a
oportunidade de constituírem-se como leitoras singulares: críticas de sua realidade,
da palavra do outro e atentas a sua história. Adotamos atividades de leitura com
estratégias baseadas no diálogo, na escuta, na valorização da experiência do leitor e
na partilha de sentidos. Projeto de leitura esse que pressupõe a troca de
experiência, a partilha da palavra e que o aluno-leitor deva estrategicamente atuar
em diferentes posições discursivas: alçando do texto para a sua própria experiência.
Sinalizando que é possível abrir caminhos mais dinâmicos e prazerosos para e
dentro da leitura na escola.
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Bibliografia
ABREU, Márcia.Cultura letrada: literatura e leitura. 1.ed. São Paulo: UNESP,2006.
BAKHTIN, Mikhail. M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud e Y. F.
Vieira.12.ed. São Paulo. Hucitec,2006.
MORAES, Vinícius A Arca de Noé: Poemas infantis.15. reimp. São Paulo:
Companhia das letrinhas,1991
SMOLKA, Ana Luísa; Góes, Maria Cecília R de (Orgs.) A linguagem e o outro no
espaço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. 9. ed. Campinas, São
Paulo: Papirus,1993.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. M.Cole at al ( Orgs). José C Neto
at al ( trads ). 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
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