Júlio Carrilho: entre Poesia
e Arquitectura
Antonia Genchi
literatura africana contemporânea de expressão portuguesa tem vindo a ganhar cada vez mais leitores, não só
portugueses mas também estrangeiros, embora, na Itália, ainda sejam
poucas as publicações de antologias
de artistas africanos e as traduções
de obras de poesia e prosa de angolanos e moçambicanos.
Para uma literatura tão jovem
como a moçambicana, em pro c e s s o
de construção, é difícil elaborar uma
história da literatura moçambicana
e delinear as suas principais características desde as suas origens até
aos nossos dias. No entanto, é interessante ver como J úlio Carrilho,
poeta, ministro das obras públicas
no período pós-independência,
a rquitecto e professor da Faculdade
de Arquitectura de Maputo, tenta
reconstruir o percurso da literatura
do seu país, desde a idade colonial
até hoje, numa conversa com uma
jovem leitora italiana, num café da
Estação Termini, em Roma.
Dono de uma modéstia extraordinária, revelada desde as suas
primeiras palavras - “não sou bom
na h istória da l iteratura, mas v ou
tentar”, começa a delinear as dife-
A
rentes gerações de artistas, que se
f o rmaram n os a nos d a G uerra d e
Independência, terminada como em
todas as colónias africanas em 1975.
Segundo Carrilho, é p ossivel identificar q uatro g erações, na maioria
poetas, moçambicanos e portugueses, que a partir dos anos cinquenta
começaram a difundir os princípios
da luta armada e a recuperar a
moçambicanidade, reprimida, durante
séculos, pelo plano de assimilação,
ao qual as populações africanas
foram submetidas durante o colonialismo português.
É este o caso de José Craveirinha,
um dos poetas preferidos de
Carrilho, ou de Noémia de Sousa,
da primeira geração de intelectuais
que, com a s suas obras, impulsionaram a difusão dos ideais e dos
v a l o res nacionais e contribuiram
para a organização da resistência e
da guerra, à qual, a partir da década
de sessenta, aderiram muitos jovens
artistas. Estes formaram uma
segunda geração de «líricos militantes», assim designados por Carrilho,
devido ao activismo na luta armada
e ao claro valor político e social da
poesia que elaboravam. No final da
década de setenta, surgiu um
José Cabral, Macomia, Julho 1999.
70
t e rc e i ro grupo de poetas, no qual
se insere o próprio Carrilho. Os
artistas desta nova geração, apesar
de entrarem na luta em 1973, ao fim
do percurso da independência,
influenciados por Craveirinha,
Noémia de Sousa, Rui Knopfli e
pelos poetas militantes da segunda
geração, continuavam a escre v e r
uma poesia com um forte impacto
social e criativa na linguagem, em
que chegaram a cunhar palavras
novas, através de vários jogos
linguísticos.
Creativo é o título da última obra
de poesia publicada por Júlio
Carrilho, N ó n u m a r. Palava esta q ue
não existe em português, sendo, de
facto, inventada pelo poeta, unindo
três palavras: nó, nu e mar, que se
repetem frequentemente na obra.
Por outro lado, o título do
primeiro livro, Dentro de mim outra
i l h a, publicado seis a nos antes da
obra supracitada, tem um objectivo
programático, pois exprime o significado que Carrilho dá à poesia. Ela,
como o poeta a definiu na nossa
conversa, é uma maneira diferente,
mais instintiva e profunda, de observar a realidade e tentar resolver as
tantas dúvidas e contradições, que
todos os dias se encontram no
contexto onde se vive. Escrever é
uma necessidade para o autor,
p o rque l he permite pensar, aprofundar e fixar as coisas que o
rodeiam todos os dias.
À minha pergunta, de como é
possível juntar duas profissões tão
diferentes, a de arquitecto - científica, racional, t écnica e criativa -,
com a de p oeta - i nstintiva e rica
de imaginação -, o arquitecto-poeta
respondeu, sorrindo, que “ a outra
ilha dentro de mim”, ou seja a
poesia, não é tão diferente do
Carrilho arquitecto e referiu que
existe uma relação complementar
entre a poesia e a arquitectura. São
duas formas diferentes de contactar
com a realidade: a profissão de
LATITUDES
n° 25 - décembre 2005
a rquitecto faz-lhe estudar cientific amente o seu país, analisando a realidade racional e objectivamente; a
poesia, pelo contrário, dá-lhe a
oportunidade de chegar à p ro f u n d idade e de conhecer a outra “ ilha”
de Moçambique, ou seja, os aspectos mais íntimos da alma da sua
terra, que a ciência não pode
d e m o n s t r a r, mas que pertencem à
realidade, da qual a poesia não se
pode desligar, senão seria só
folclore.
A alma de poeta influencia a do
arquitecto Carrilho, que não se limita
a observar e a estudar a obra do
homem, mas, como acontece no livro
Ibo a Casa e o Tempo (estudo sobre a
requalificação e a restauração das
casas do bairro de cimento da vila de
Ibo) tenta inserí-la no seu contexto
histórico-cultural e no ambiente natural e social onde nasceu.
Ibo a Casa e o Te m p o, portanto,
não é só uma viagem às ruínas da
ilha, não é um tradicional t ratado
de a rquitectura que traz o e stado
das edificações e as eventuais
p ropostas para a sua revalorização,
mas é, principalmente, uma viagem
aos costumes, às tradições, à história e à cultura dos habitantes de Ibo.
O objectivo do a rquitecto-poeta é
observar e a nalisar a realidade da
ilha, não só pelo gosto individual
da procura (nem pela utilidade
colectiva, que se ganharia, recuperando o património arquitectónico)
mas também, como diz o autor, por
uma “ a rquitectura de re c o n s t r ução” de ideais, que se desenvolveram em Moçambique, a partir do
p e rcurso de independência. Estudar
e recuperar as casas da parte formal
(como demonstra o autor no seu
l i v ro: partem do e squema da casa
popular s w a h i l i e, depois, transformam-se e modernizam-se com o
pro g resso tecnológico trazido pelos
colonos portugueses), significa
perc o r rer um traço da história e da
identidade da ilha, à qual chegaram
e se cruzaram povos e culturas diferentes. Deste modo, o centro urbano
de Ibo re p resenta muito bem e s s a
miscigenação secular de saberes e
sabores diversos oriundos de vários
continentes e de ambientes longínquos, como a Ásia, a Europa e as
Américas.
n° 25 - décembre 2005
LATITUDES
O percurso no centro histórico
de Ibo é o ponto de partida de uma
viagem mais ampla: na história da
ilha, lembrando o passado doloroso
da escravidão, que deixou um rasto
indelével até no plano urbanístico;
no património natural de Ibo, t ão
precioso, quer por ser uma reserva
ecológica, quer pela sua função de
subsistência (é o caso do mar, fonte
básica de comida, numa terra pobre ,
ou dos frutos de maçanica q u e
salvam os iboenses da fome,
quando a pesca é escassa) e,
depois, na cultura local, onde a
natureza tem um papel fundamental, sendo protagonista de tantas
tradições. O emblema do valor
cultural da natureza para os iboenses é a relação especial que eles
estabeleceram, ao longo de s éculos, com as árvores do tecido
urbano, às quais deram nomes, que
as i dentificaram e personificaram
segundo o lugar, s egundo a s suas
características e as suas funções,
chegando a um curioso pro c e s s o
de arborização da vila. Um outro
exemplo da importância das árvores na cultura local é também o
divertido episódio do litígio duma
velha com o novo administrador da
zona, que proibiu que se colhessem mangas verdes, para que elas
completassem o seu processo biológico de amadurecimento, ignorando
a tradição alimentar de alguns
grupos étnicos d a vila, os quais têm
á r v o res dedicados à particular
p rodução de frutos verdes para
alguns pratos típicos e, por isso,
desencadeando a ira da anciã.
Episódio que re p resenta bem a
necessitade de conhecer a s t radições de um lugar, para administrálo adequadamente e sem confli c t o s .
Fascinantes são também a s descrições das florestas de mangal, sendo
o material usado na construção
tradicional da casa senhorial pelos
velhos pedre i ros da ilha, cujas
entrevistas, referidas na obra, dãonos um quadro detalhado das peculiaridades culturais da terra, do
antigo saber dos iboenses, da vida
em Ibo e das dificuldades sócioeconómicas dos habitantes.
Justamente as entrevistas, os
contos, os ditos populares, as
anedotas contadas pelo arquitecto-
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
• Júlio Carrilho, D e n t ro de Mim
Outra Ilha, AEMO, Maputo, 1995.
• Júlio Carrilho, N ó n u m a r, Ndjira,
Maputo, 2001.
• Júlio CarrilhoIbo, a Casa e o
Te m p o, Edições Fapf, Maputo,
2005.
poeta tornam a leitura da obra agradável e fluente também para quem
não tem competência no sector. A
observação das casas, da natureza,
as entrevistas aos ilhéus não são só
instrumentos de pesquisa para
colher informações s obre o material e as técnicas de construção
tradicional, mas também uma
maneira de aproximar-se aos iboenses e conhecer os vários a spectos
da realidade de I bo, c olher a s ua
essência, para que, como diz o
a u t o r, os homens não alterem as
suas características, matando-lhe a
alma.
As breves divagações sobre a
história da ilha, sobre a tradição
popular, as descrições da paisagem
e os tantos encontros com seus
habitantes tornam Ibo a Casa e o
Te m p o mais parecido a um diário
de viagem do que a um tratado de
a rquitectura. De facto, o arquitectopoeta r e f e re, no livro, a s i mpre ssões, os novos s aberes, apre e n d idos pela experiência e pelos
e n c o n t ros feitos, tornando a leitura
da obra fluente e , algumas vezes,
divertida. O uso de ditos populare s
e a d esignação popular local das
árvores ou do material de construção, além dos termos c ientíficos,
contribuem para desvencilhar a
obra do tecnicismo dos tratados
c i e n t í ficos, tornando-a uma intere ssante e original leitura sobre a vida
em Ibo. Ao mesmo tempo, os
p rovérbios e os nomes populare s
das plantas e do material de
construção contribuem para pre s e rvar o património l inguístico indígeno e para afirmar a própria identidade nacional até hoje em
p rocesso de construção em
Moçambique l
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