LUZEIRO
(Três cantos peregrinos)
José Inácio Vieira de Melo
MEMÓRIA
Gosto de subir no telhado da casa
e olhar para dentro do quintal,
é lá que estão o menino e a arte.
A incompreensão vestiu o menino.
Ele se exibiu para o azul do dia
e para os olhos daquelas línguas.
O infante, dentro da sua solidão,
encontrou a estrada e caminhou
e enveredou por tantos descaminhos.
Quantas vezes dormiu ao relento?
Quantas vezes tombou e caiu?
Quantas vezes seguiu por miragens?
Ah essas cicatrizes, esses calos
pelo corpo e pela alma do menino,
ah, esse deserto de ilusão.
Mas assim como existe a sede,
existe a imensidão do mar,
e as coisas vão à balança.
E o que é viver cada dia
senão beber da água
e entender os merecimentos?
Ouço vozes – muitas vozes –
dentro de mim mesmo,
todas dizem que é preciso prosseguir.
Considerações sobre o poema Memória
O tempo e a memória fazem nossa história. A história de cada um, do homem, da vida, de
cada célula da vida. A infância é o tema perene da memória e do tempo, das marcas, dos
pequenos grandes traços que figuram na compleição do adulto. Lá está a matriz: do gosto,
do gozo, da tristeza, da alegria, do que mora em cada mim, do que aciona o vai e vem do
pêndulo do tempo. No atar das pontas, a poesia, a arte, resgata a vivência do menino na
reflexão do adulto, reforça no presente a ousadia do viver intenso do infante que prossegue,
pensante, poético, no tempo, no tranco, reafirmando a vida – tecido de memória e tempo.
Antonia Herrera
ROMARIA
Oh que caminho tão longe
Cheio de pedra e areia
Domínio popular
Oh que estrada mais comprida
Oh que légua tão tirana
H. Teixeira e Luiz Gonzaga
Dentro de mim, nas lonjuras,
bem dentro do meu juízo,
um romeiro caminhando
em busca do que preciso.
Oh que caminho tão longo
cheio de pedra e de areia,
tenho que firmar o passo
e romper essas cadeias.
Pergunto, em meu desatino,
aonde ir? Que lugar?
Por que a sina de cigarra
esparramando o cantar?
Certo, sou aquele que parte
numa eterna romaria,
faça sol ou faça chuva,
seja de noite ou de dia.
O caminho que percorro
não é o da Rosa dos Ventos,
pois ele surge do nada,
de acordo com meu momento.
Oh que estrada mais comprida,
tanto azul, tanta poeira,
em que plaga do Universo
estará o meu Juazeiro?
Cada qual tem seu destino:
Pedro Vaqueiro tangia
gado pelo mundo afora;
seu Fortunato fazia
forno pra queimar tijolo;
Manezim Tetê, meu tio,
caçava tatu e onça
com o luzeiro dos pavios.
Lá me vou com minha cruz:
são poucos beiços de açude
e tantas léguas tiranas.
Maior e vária é esta sede
que vale cada passada
desta minha romaria.
Peregrino de mim mesmo
no meio da travessia.
Romaria é um poema que se insere na linha de cordel, sem dúvida, um cordel "culto", com
contribuições formais fora da expectativa do gênero – o qual funciona com fórmulas fixas
de modo geral. Nítida, a fusão modalidade oral/escrita da língua, com belos momentos. É
uma romaria, digamos, existencial, assertiva, demarcadora da própria dicção do poeta, com
um pé lá, um pé cá – o que proporciona sabor às redondilhas.
Maria da Conceição Paranhos
RURAL
Para Ivaldo Vieira de Melo
No teu cavalo peito nu cabelo ao vento
Alceu Valença
Eu vou pra roça, ajudar o dia a amanhecer,
chamar os bezerros pelos nomes de suas mães
e ver a vacaria apojar
e sentir a chuva de leite em meus olhos.
Eu vou pra roça, lá Manoel é Mané
e a única máscara são os calos de suas mãos:
– mãos encardidas de leite.
Eu vou pra roça, começar o dia com um sorriso.
Meu cavalo e eu – Centauro do Sertão –
sairemos campo afora
apascentando a boiada, o milharal, o açude.
E os cajus haverão de destravar as fronteiras
e ouvirei o canto das patativas se estender até Assaré
e me entenderei com as beldroegas
e compreenderei a labuta das formigas.
Das quedas, trarei a lição do levantar
e seguirei pela vida ao lado de meu irmão.
Eu vou pra roça, lá o documento é a palavra.
.
Eu quero esse poema Rural, que fala das coisas distantes do litoral; que traz o verde das
matas e dos cabralinos canaviais, distante do azul-piscina dos oceanos. Esse poema abstrato
e visceral, para encher de clorofila o concreto das cidades, a roçar a terra e a língua de
Camões, de Pessoa, de Bandeira. Com ou sem pá, lavra a tua felicidade e sê, com os teus,
um igual, fruto da mesma frondosa árvore. Rural é esse aboio que nos chama, que nos leva
à Terra Prometida, pois onde corre o leite, corre o mel e o maná.Vai, poeta-boiadeiro, que o
dia já vem...
Goulart Gomes
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LUZEIRO - Jornal de Poesia