ESCALAPB
2%
5%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
95%
98%
PB
100%
ESCALACOR
Produto: CADERNO_2 - BR - 7 - 09/03/08
2%
5%
10%
15%
20%
30%
40%
D7-BR/SP -
50%
60%
70%
COR
80%
85%
90%
95%
98%
100%
Cyan Magenta Amarelo Preto
%HermesFileInfo:D-7:20080309:
DOMINGO, 9 DE MARÇO DE 2008
O ESTADO DE S. PAULO
CULTURA
CULTURA D7
D7
Literatura Entrevista:
EDUARDO NICOLAU/AE
“Memórias
compõem
meu chão
literário”
claro, com o desenrolar foi mudando. Gostei de passar por essaprovação do limitedeespaço.
Quantovocêusoudahistóriacontadaporseu avô?
Apenas alguns fiapos. Ele me
contou sobre um homem solitário que passou a vida esperando
a chegada de uma mulher. Essa
paciência foi o que mais me impressionou. O que é irônico,
pois, se desperta impaciência, a
paixão, ao mesmo tempo, obriga a ser paciente, à espera. É
umlivro sobre a perda. Porisso,
eu não podia ser enfático com a
linguagem. O tom é de uma oralidade sem rebuscamento.
Por que Arminto tem tanto desapegomaterial?
Milton Hatoum retoma mitos de seu
passado em Órfãos do Eldorado
Ubiratan Brasil
“A primeira vez que ouvi a história, ela foi contada pelo meu
avô...”, começa Milton Hatoum, antes de fazer uma rápida pausa para bebericar um café. Ele conversa com o Estado
durante a ensolarada tarde de
terça-feira passada, no ajardinado bar do Centro Brasileiro
Britânico, no bairro de Pinheiros, onde também mora. No
próximo ano, Hatoum completa dez anos vivendo em São
Paulo, mas suas raízes continuam fincadas na Manaus onde nasceu, em 1952. Bastar espiar sua obra, notadamente o
quarto e mais recente livro, Órfãos do Eldorado, cujo lançamento acontece a partir das
18h30 de quarta-feira, também
ali perto, na Livraria da Vila.
A partir do relato de um velho com fama de louco, o livro
traz a história de um amor impossível cujo pano de fundo é a
mitológica região amazônica.
É, de uma certa forma, uma
narrativa verdadeira, como
conta Hatoum, retomando a
conversa, depois de saborear
o café. “Meu avô escutou a narrativa de um homem, em uma
de suas viagens ao interior do
Amazonas. Guardei apenas
pedaços da conversa, mas o
que me impressionou é a insistência de um homem em esperar pela mulher amada.”
Órfãos do Eldorado conta a
trajetória de Arminto Cordovil que, no início do século passado, vive dividido entre o
amor por uma moça misteriosa, Dinaura, e as pretensões
dinásticas do pai, Amando, armador enriquecido com o ciclo da borracha. Os Cordovil
representam uma rica família
de Vila Bela, cidade inspirada
em Parintins, onde Amando é
idolatrado pelas atitudes beneméritas – a face do pai conhecida por Arminto, no entanto, é
a de um homem frio, embrutecido, ativo participante de maracutaias e extorsões para garantir sua fortuna.
A história evoca também um
mitoamazônico,odaCidadeEncantada. “Os nativos acreditam
que, no fundo de um rio, existe
uma cidade maravilhosa, onde
as pessoas vivem em completa
harmonia”, conta o escritor, enquanto prepara um cigarro.
“As pessoas são seduzidas e levadas para aquele mundo e só
conseguem voltar com a intermediação de um pajé.” O livro
começa com a apresentação
dessa e de outras lendas, revelando uma estratégia engenhosa de Hatoum – se, no início, as
pessoas sonham com tal lugar
perfeito, as páginas finais revelam que a busca é infrutífera.
A chave está na epígrafe,
com o poema A Cidade, do grego Konstantinos Kaváfis. Em
um determinado trecho, é dito:
“Nãoencontrarás novas terras,
nem outros mares/ A cidade irá
contigo.” A partir daí, e fazendo a união com os mitos amazônicos, Hatoum traça a história
de uma família e, por extensão,
de uma época em que os homens encarnaram os sonhos
de um Eldorado amazônico.
Como faz parte da coleção
Mitos (série lançada pela editora escocesa Canongate, em que
grandes autores de diversos
países oferecem sua versão do
mito preferido), o livro já teve
os direitos de publicação vendidos para mais de 15 países, entre eles Inglaterra, China e Rússia. Hatoum precisou,no entanto, seguir as regras da coleção e
escrever um texto com o tamanho de uma novela, ou seja, não
tão extenso como um romance, mas também não tão curto
como um conto. Sobre esse trabalho, que lhe foi exaustivo inicialmente, mas recompensador ao final, Hatoum concedeu a seguinte entrevista.
Eraumahistóriaquevocêvinhaacalentandohátempo, não?
Sim, estava na fervura. Adaptei o que vinha escrevendo à
estrutura da coleção. Eu tentava escrever um romance, mas,
com o projeto aceito, percebi
que tinha de ser uma novela.
Mesmo assim, não me contive
e escrevi mais que devia. Assim, demorei mais para reescrever que para fazer a primeira versão. Tive de evitar digressões, descrições, caracterizações e concentrar o foco
na história. Também estabelecer a correspondência entre o
mundo natural, do mito, e a vida humana. Minha idéia era
evocar alguns mitos logo na
abertura e depois rebatê-los
na vida dos personagens, tornando os mitos em ficção.
Mas, não se doma o consciente, que é desgovernado, e surgiram outros personagens.
Cresceu tanto que, na primeira versão, havia o dobro de páginas. Fiz, então, o percurso
inverso: comecei a cortar,
exercício penoso, de auto-mu-
É um tipo de vingança contra o
pai. Um tanto infantil, reconheço. Mas perceba como o sobrenome da família é revelador:
Cordovil une tanto a vilania como um lado cordato, o ‘coeur’,
coração. Eu me inspirei em
um militar de Parintins que caçava índios, homem temível
que provocou matanças. E a
situação não mudou: ainda hoje há grileiros que comandam
latifúndios na Amazônia.
Onomeentãorevelamuitodopersonagem?
Sim, muito. Sempre é possível
descobrir algo do personagem
a partir de seu nome, como eu
tambémdescobridetalhesdo livroapartirdotítulo,quemesurgiu antes de terminar o texto.
Inicialmente, pensei em Cegos
do Paraíso, que é o nome de um
barco e me agradava, mas Órfãos do Eldorado é mais revelador, pois Eldorado é o nome do
cargueiro, da ilha e do mito. E
órfãos que são quase todos.
Você procurou escrever um texto
pensandono exterior?
AMAZÔNIA – “Lá, isoladas e cercadas pela floresta, as pessoas alimentam o mito de um mundo melhor”
tilação. A idéia veio a partir de
uma história que meu avô me
contou e também dos poemas
do grego Konstantinos Kaváfis e do Manuel Bandeira (Pasárgada), sobre esse sonho utópico de um mundo melhor. O
poema do Kaváfis me deu o mote para estruturar o livro, pois
a primeira parte do poema é
um eu lírico que acredita nesse sonho da existência de um
lugar melhor e, na segunda, o
outro eu lírico responde, dizendo que “a cidade irá atrás de
ti”. Essa simetria rigorosa é
que deu mais trabalho.
não para a cidade; a moça que
tem uma relação com o pai, o silêncio e o sumiço dela. São estratégias que fazem parte do gênero. O húngaro Georg Lukács,
aliás,acreditavasetratardeuma
forma superior de literatura.
Opoemajáeraumainspiraçãoinevitável?
Vocêcitaum escritor quevisitaVila
Bela.É MariodeAndrade?
Sim, Kaváfis é um exemplo de
que a boa literatura é sucinta,
não precisa de muitas páginas.
E tem a força do mito na obra
dele. Assim, fiz as junções da
história individual com a do
Amazonas e trouxe para nosso
momento político: as negociatas, o empresário que quer
crescer mas depende da política, da extorsão e dos favores.
Nos livros que estudei sobre o
gênero,percebi que a novelapede a exploração do absurdo, do
inesperado. E tudo isso contraria o curso normal da vida. Assim, para Arminto tudo é inesperado: a morte do pai, cuja
maldade só existe para ele e
Sim, pensei nele. Mario visitou a região em 1927. Sua viagem à Amazônia foi fundamental na escritura de Macunaíma. Também tomei emprestado algumas coisas sobre o que
ele fala de Manaus, Belém.
Olivrotrata do mito do inalcançável?
Sim, de uma esperança sempre adiada. É um pouco a expectativa do nosso Brasil. O desencanto é um dos sinais da
maturidade. Isso tem a ver
com o romance: a busca por
um desejo que não se realiza.
Os mitos amazonenses ainda te
acompanham?
Sim, estão presentes. Na infância, eu ouvia histórias sobre a
cidade encantada, Atlântida.
As pessoas vivem muito isoladas, diante da natureza e mais
nada. O que elas esperam, portanto, está no sonho, no mito
que alimenta um desejo por um
mundo melhor. Dinaura é um
personagem que tem alma inconstante. Os colonizadores tinham verdadeira repulsa por
essa indiferença ao dogma missionário, à religião. Acreditavam que a alma selvagem era
muito inconstante. Da minha
parte, considero ótima tal inconstância. A ausência de coisasprevisíveisalimentaapersonagem. E essa volubilidade é tipicamente brasileira. Nós temos uma alma indígena.
Éuma históriamelancólica,não?
É inevitável por ser a busca do
desejoquenãosecompleta.Dificilmente seria de outra forma –
senão,seriaoutrolivro.Masnão
acho de todo amargo – existem
algumas saídas, mas a ambigüidade final é deixada para o leitor, que não sabe se de fato essa
mulher está ali na casa de Armintoouseéfrutodeumaloucura dele, um delírio. Mudei o final
noúltimomomento,poispretendia manter um parágrafo em
queoouvintedeclaraverArminto com a mulher nos braços.
Entãovocênãoacreditavaqueseria
umaalucinação?
Mas quando tirei aquele parágrafo, passei a acreditar mais
nisso. Fez um grande bem para
a história. É um livro muito pensado,arquitetado.Haviaumasimetria calculada de início que,
Eunãopodiadisfarçarqueestavaescrevendosobreoutromundo. Os escritores não mentem –
esse trabalho é reservado aos
políticos. O autor passa a vida
tentando dizer uma verdade
profundaatravésdeuma invenção literária. Não procurei evitartermosamazônicos.Não poderia deixar de usar termos como ‘dibubuia’ ao invés de ‘flutuar’, que vem da minha infância e faz parte do meu vocabulário. O exótico só soa estranho para alguns. Quando li Neve, de Orhan Pamuk, eu conseguia sentir o frio do gelo.
Manausaindaéumafonteinesgotáveldeinspiração?
Sim, é fonte primordial de tudo que escrevi. Ainda vou contar sobre minha passagem pelo exterior e minha vivência
em São Paulo – ao lado de Manaus, trata-se da cidade brasileira com a qual mantenho relações muito fortes e na qual
criei fortes relações. Amigos
de Manaus pedem para nunca
abandonar minha identidade.
Respondo que identidades são
plurais, só os malucos têm
uma única religião, um único
caminho a seguir – talvez o
George W. Bush seja um deles
(risos). Mas não há uma única
vez que não fico emocionado
quando volto a Manaus. É muito forte. Não escondo minhas
emoções. Nostalgia não é
uma doença, mas apenas um
sentimento humano. As memórias compõem meu chão
literário. Eis a herança mais
forte das minhas origens. ●
Narrativa que desafia a morte e valoriza a cultura arcaica
Em seu novo livro, o escritor amazonense faz da escrita um ofício litúrgico para exorcizar o desencanto contemporâneo
Antonio Gonçalves Filho
A Amazônia é um celeiro de mitos, a começar pelo prefixo grego do nome da região, que identifica uma raça de mulheres
guerreiras com um dos seios
amputados. Por lá também é
preservado outro mito, nascido
naAmazônia espanhola,odeEldorado, lugar de origem de um
misterioso homem todo coberto de ouro. A cidade pode ser
lendária,masfoirealoqueaconteceu aos nativos, despojados
de seus mitos pelo conquistador europeu. Apenas como
exemplo desse genocídio cultural, basta dizer que o jesuíta espanhol Cristóvão de Acuña, ao
difundir a lenda das amazonas
entre seus pares religiosos, carregounas tintase inventou uma
raça de mulheres ferozes e ín-
dios com os pés para trás, auxiliado na tarefa por historiadorescaucasianosquejamaiscolocaram os próprios pés na selva.
O escritor amazonense MiltonHatoum ouviu histórias melhores das populações ribeirinhas, mas foi o mito da “cidade
encantada” que o levou de volta à terra inspiradora de Cinzas do Norte, após anos respirando o ar profano de São Paulo. Escrito semintenção de integrar a coleção Mitos, do editor
Jamie Byng, da Canongate –
mas a ela incorporado –, o novo
livrodo autor, Órfãos do Eldorado, já a partir do título revela o
trágico sentimento de abandono do homem contemporâneo,
que busca na literatura um sucedâneo para a mitologia.
O romance, como já observou Mircea Eliade, não tem
acesso aotempo primordial dos
mitos,masseusautores, aocontrário, têm plena liberdade para circular por mundos imaginários como o da tapuia de Órfãos do Eldorado. Ignorada pelo
maridoe cansadadetantosofrimento, ela surge logo no segundo parágrafo em busca de um
lugar tranqüilo para renascer
(ousematar): a cidade encantada e submersa à beira do Amazonas. Entra na água, nada em
direção à ilha das Ciganas e desaparece para sempre. Essa
também pode ser a história de
Dinaura, objeto de desejo, madrasta ou meia-irmã do principal personagem, Arminto Cordovil, amamentado por outra
tapuiacom suco leitoso do tronco do amapá. Arminto é vítima
de uma (des)ordem familiar
perturbadora, tão ancestral e
Órfãos do Eldorado
Milton Hatoum
Companhia das Letras
112 págs., R$ 29
bíblica como a de Lavoura Arcaica, coma diferença que averdadeira mãeestá ausente. Morreu para o bebê nascer. Entregue à cunhantã de confiança do
pai, não tarda em trocar a mamadeira pelo seio da moça.
A morte é uma companheira
inseparável em Órfãos do Eldorado. Um pai ambicioso morre
com a expectativa de se dar
bem na vida, uma amante desapareceebempodeestarnacidade encantada ou em Manaus. E
o narrador? Bem, ele procura
umasaídadotempoquesóaliteratura lhe garante, confiando
na tradução de uma tapuia, que
mitificou uma história de suicídio. Sair de um tempo profano
para o tempo mítico exige um
sacrifício dos diabos, ainda
mais quando a sobrevivência literáriadoespaçomitológicode-
pende de uma prosa narrativa
resistente ao mito criado pela
própria literatura. A exemplo
do Raduan Nassar de Lavoura
Arcaica, Hatoum identifica a literatura como um ofício litúrgico de salvação. Persiste nos
dois um certo desencanto pelo
desprezo jônico – seria lícito
acrescentar racionalista – que
o mundo moderno tem pelo mito. Falando de Hatoum, uma
vez que Nassar abandonou a literatura, é provável que os prazeres do personagem Estiliano,
escritoramantedevinhos epoetas gregos, revelem mais sobre
o autor do que talvez desejasse.
Um pouco à maneira do que diz
o professor inglês ao Zorba de
Kazantzakis,elecrê queaescrita pode não explicar a morte,
mas é o “único alento” para corações desesperados. ●
Download

[br - 7] caderno_2/caderno2/páginas 09/03