Por Maria Cristina Costa Pereira
12º Ano, Psicologia - Texto de Apoio
FREUD E A PSICANÁLISE
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Ignoro quantos de vós conhecem a psicanálise por já terem lido ou, simplesmente,
por dela terem ouvido falar. (...)
Vou, no entanto, supor que sabem que a psicanálise é um processo de tratamento
médico para pessoas que sofrem de doenças nervosas. Dito isto, posso também demonstrar, a
partir de um exemplo, que as coisas aqui não só não se passam como nas outras áreas da
medicina, como se passam mesmo ao contrário. Geralmente, quando submetemos um doente
a uma nova técnica médica, esforçamo-nos por diminuir, aos seus olhos, os possíveis
inconvenientes e por garantir, dentro das possibilidades, o sucesso do tratamento. Penso que é
uma actuação correcta, uma vez que este procedimento aumenta efectivamente as
probabilidades de êxito. Pelo contrário, devemos proceder de outra forma quando submetemos
um doente nevrótico ao tratamento psicanalítico. Pomo-lo ao corrente das dificuldades deste
método, da sua duração, dos esforços e dos sacrifícios que ele exige; e, quanto ao resultado,
dizemos-lhe que nada podemos prometer pois tudo vai depender do seu comportamento, da
sua inteligência, da sua obediência e da sua paciência. (...)
Há sempre pessoas que se sentem atraídas pelos novos conhecimentos, malgrado os
inconvenientes a que atrás fiz referência. Se alguns de vós pertencem a esta categoria e
querem (...) cá voltar uma próxima vez, são bem-vindos. Mas têm todo o direito de conhecer as
dificuldades da psicanálise (...).
A primeira é inerente ao próprio ensino da psicanálise. No curso de medicina vocês
estão habituados a ver. Vêem a preparação anatómica, o precipitado que se forma a partir de
uma reacção química, a contracção de um músculo por efeito da excitação dos respectivos
nervos. Mais tarde observam o doente, os sintomas da sua afecção (...) e, em muitos casos
podem observar o próprio germe causador da doença. Na cirurgia, assistem às intervenções
com que se pretende ajudar o doente e devem mesmo tentar executá-las. Até na psiquiatria, a
actuação do doente a partir das suas mudanças fisionómicas, da sua forma de falar e de se
comportar, trazem-vos uma mão cheia de observações que vos permitem uma profunda e
durável impressão. (...)
Infelizmente, tudo é diferente na psicanálise. O tratamento psicanalítico não é senão
uma troca de palavras entre o analisado e o médico. O doente fala, conta os acontecimentos
da sua vida passada e as suas impressões sobre o presente, queixa-se, confessa os seus
desejos e emoções. O médico aplica-se a dirigir o percurso das ideias do paciente, acorda as
suas lembranças, orienta a sua atenção em determinadas direcções, fornece-lhe explicações e
observa as reacções de compreensão ou de incompreensão que assim provoca no seu doente.
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Texto extraído da obra Introduction à la Psychanalise, constituída por uma série de lições proferidas por
Freud, em 1916.
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Por Maria Cristina Costa Pereira
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Todo o ambiente de incultura que rodeia os nossos pacientes, que não acredita senão no que
vê e apalpa, (...) está permanentemente a contestar a eficácia do “simples discurso” enquanto
processo de tratamento. Esta é, no entanto, uma crítica ilógica e pouco judiciosa. Não sabe
essa gente que muitas vezes os doentes “se imaginam” a experienciar uma porção de
sintomas? Primitivamente, as palavras eram mágicas e mesmo nos nossos dias a palavra
mantém ainda grande parte do seu poder de outrora. Pela palavra pode um homem tornar feliz
o seu semelhante ou levá-lo ao desespero; é com ajuda das palavras que o mestre transmite o
seu saber aos alunos, que o orador arrasta auditórios e determina os seus julgamentos e
decisões.
As palavras provocam as emoções e constituem, para os homens, o meio
privilegiado de se influenciarem reciprocamente. Não vamos, então, menosprezar o valor da
aplicação da palavra à psicoterapia (...).
(...) A conversação que constitui o tratamento psicanalítico não supõe ouvintes e
observadores estranhos; ela não se presta à demonstração. (...) As informações de que o
analista precisa só lhe serão transmitidas pelo doente se este tiver pelo médico uma especial e
particular afinidade de sentimentos; ele calar-se-á, se se aperceber da presença de uma outra
testemunha indiferente.
É que tais informações referem-se ao mais íntimo da vida psíquica do paciente, a tudo
o que ele deve, enquanto ser social autónomo, resguardar dos outros e, enfim, enquanto
pessoa consciente da sua unidade, a tudo o que ele não quer confessar a si próprio.
Nenhum de vós pode, pois, assistir como auditor/observador a um tratamento
psicanalítico.
Apenas pode ouvir falar dele e, rigorosamente, apenas pode conhecer a
psicanálise por ouvir dizer . Este facto, o de não se poderem obter informações a não ser em
segunda mão, por assim dizer, cria-vos condições estranhas para a formulação de um
julgamento. Tudo vai depender, em grande parte, do grau de confiança que vos inspira quem
vos informa.
(...) Estão, agora, no vosso pleno direito de me questionar: se não há critérios
objectivos para avaliar da veracidade da psicanálise, nem qualquer possibilidade de fazer dela
objecto de demonstração, como poderemos estudá-la e ter a certeza da verdade das suas
afirmações? Tal aprendizagem não é, de facto, fácil e são muito poucos os que estudaram a
psicanálise de forma sistemática.
No entanto, existem várias vias de acesso à sua
aprendizagem. Para começar, aprende-se psicanálise no nosso próprio contexto pelo estudo
da nossa própria personalidade.
Não é exactamente o que se costuma chamar auto-
observação, mas, em rigor, este estudo de que falamos pode ser-lhe aparentado. Existe, de
facto, toda uma série de fenómenos psíquicos muito frequentes e conhecidos pelo que
podemos, a partir de algumas indicações técnicas, fazermo-nos a nós próprios objecto de
análise. Ao fazê-lo, adquiriremos a tão procurada convicção da realidade dos processos
descritos pela psicanálise, bem como da justeza das suas concepções. Convém, no entanto,
dizer que não se devem esperar progressos indefinidos seguindo apenas esta via.
Avançaremos muito mais se nos deixarmos analisar por um psicanalista competente,
experimentando no nosso próprio eu os efeitos da psicanálise e aproveitando a ocasião para
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nos assenhorearmos das suas técnicas em toda a sua subtileza.
Acresce dizer que este
excelente processo só pode ser utilizado por uma pessoa, não se aplicando nunca a grupos.
(...) A psicanálise procura dar à psiquiatria a base psicológica que lhe falta; ela espera
descobrir o terreno comum que tornará inteligível o reencontro da perturbação somática e da
perturbação psíquica. Para atingir tal objectivo, ela deve manter-se distanciada de qualquer
pressuposição de ordem anatómica, química ou fisiológica e trabalhar somente com o apoio de
noções puramente psicológicas; é precisamente este facto, segundo creio, que a faz parecer
tão estranha numa primeira abordagem. (...)
(...) Por entre as premissas da psicanálise, há duas que chocam toda a gente e que
lhe trazem a desaprovação universal: uma delas choca com um preconceito intelectual, a outra
com um preconceito estético-moral. Não devemos desdenhar de tais preconceitos: eles são
algo de poderoso, sobrevivências de fases de desenvolvimento úteis, ou seja, necessárias, da
humanidade. Eles são mantidos por forças afectivas pelo que a luta contra eles é difícil.
Assim, eis a primeira destas desagradáveis premissas: os processos psíquicos são,
em si mesmos, inconscientes e, quanto aos conscientes, eles não são senão actos isolados,
fracções da vida psíquica global. Lembremo-nos, a este propósito, de que estamos habituados
a identificar o psíquico com o consciente, que consideramos precisamente a consciência como
uma característica, como uma definição do psíquico e que a psicologia é vista como o estudo
dos conteúdos da consciência. (...) E, no entanto, a psicanálise não pode deixar de levantar
objecções a respeito da identificação entre o psiquismo e a consciência. A sua definição do
psiquismo considera-o composto de instâncias que pertencem aos domínios do sentimento, do
pensamento e da vontade; e ela tem que afirmar que há um pensamento inconsciente e uma
vontade inconsciente. E é precisamente esta definição, esta afirmação que lhe vai retirar a
simpatia dos adeptos de uma ciência fria, arrastando-a para a suspeição de não ser mais do
que um saber esotérico e fantasioso construído nas trevas e pescando em águas turvas. (...)
Discutir a questão de saber se se deve fazer coincidir o psíquico com o consciente ou se deve
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entender aquele para além dos limites deste, pode parecer uma vã logomaquia mas posso
assegurar-vos que a admissão de processos psíquicos inconscientes inaugura na ciência uma
nova e decisiva orientação.
(...) A segunda proposição que a psicanálise proclama como uma das suas
descobertas contém a afirmação de que os impulsos sexuais, quer no sentido restrito, quer no
sentido lato da palavra, desempenham, enquanto causas determinantes das doenças nervosas,
um papel extraordinariamente importante e que ainda não foi, até hoje, suficientemente
valorizado. Mas ela vai mais longe: afirma que estas mesmas emoções sexuais têm um papel
que não pode ser negligenciado nas criações do espírito humano nos domínios da cultura, da
arte e da vida social.
Segundo a minha experiência, a aversão suscitada por este resultado da pesquisa
psicanalítica, constitui o principal factor de resistência com que ela se tem confrontado. (...)
De facto a sociedade não gosta que lhe seja lembrada essa parte escabrosa das
fundações sobre as quais repousa; não tem o menor interesse em que seja reconhecida a força
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Disputa de palavras, discussão sobre palavras.
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dos instintos sexuais, nem em que seja revelado a cada um de nós a importância da vida
sexual; pelo contrário, ela adoptou um método educativo tendente a desviar as atenções deste
domínio. E é por isto que ela não suporta os resultados da psicanálise de que nos temos
ocupado; difama-a, prazenteiramente, considerando-a repelente do ponto de vista estético,
condenável do ponto de vista moral e perigosa sob todos os pontos de vista. Mas não é com
críticas deste género que se podem suprimir resultados objectivos do trabalho científico. A
oposição, se quiser fazer-se ouvir, deve exercer-se no domínio intelectual.
Faz parte da
natureza humana considerar como injusto o que incomoda e, assim sendo, torna-se fácil
encontrar argumentos para justificar tal aversão.
É assim que a sociedade transforma o
desagradável em injusto, combatendo as verdades da psicanálise com a ajuda de razões
tiradas do sentimento (não com argumentos lógicos) e mantendo as suas objecções sobre a
forma de preconceitos, cega a todas as tentativas de refutação. (...)
Estas são algumas das dificuldades com que vos deparareis se desejardes ocuparvos da psicanálise. É, talvez, um pouco demais para começar, mas, se tal perspectiva não vos
assusta, poderemos continuar.
Sigmund Freud, Introduction à la Psychanalyse, pgs. 5 a 14,
Petite Biblioteque Payot.
TAREFA
Analisa o texto de Freud que te foi facultado e avalia a sua posição sobre os
seguintes tópicos:
Ô Distinção entre a Psicanálise e os outros processos de tratamento;
Ô Dificuldades apresentadas pela Psicanálise;
Ô Razões da polémica gerada à volta da Psicanálise;
Ô Diferentes acepções do termo Psicanálise.
Notas sobre a execução do trabalho:
- deve ser executado sob a forma de um texto estruturado numa linguagem correcta,
coerente e cientificamente adequada, não podendo exceder uma folha A/4;
- deve ser entregue até ao final de Novembro
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