AO VAGAR DAS HORAS
Fátima Quintas
Quando a luz se apagava e o silêncio se fazia notar na penumbra da
praça da vila; quando os pássaros arribavam em respeito ao prenúncio da noite;
quando homens e mulheres retiravam as cadeiras da calçada após a prosa
espontânea de final de dia; quando o ônibus diminuía a sua marcha, quase
parando; quando a atmosfera recebia a aragem da serra do Agreste; quando os
postigos das janelas cerravam a claridade última; quando o vizinho agradecia o
boa-noite do amigo; quando os carros já se faziam ausentes na rua habitada;
quando o corpo parecia reclamar o descanso do dia; quando a cozinha limpa e
asseada aguardava o amanhã: — Maria Vitorina se entregava aos volteios da
noite insone.
Nunca sabia o que fazer naquela hora tão solitária. Da janela avistava os
passos se findando, a noite em plena invasão; ela jamais conseguira a paciência
do aguardo dos minutos, o futuro. Lia a página de um livro, atirava-o sobre o
tampo liso e envernizado da mesa, lá repousando em estado inerte as folhas
escritas por algum autor desconhecido — sequer concentrava-se na leitura dos
parágrafos iniciais. Andava pelo corredor. O pensamento evocava visagens
outras, delírios.
Se os anos de um querer a mais roubassem do tempo as horas que lhe
foram subtraídas; se a pele ressequida se transmudasse na juventude inalterada,
sem avanços nem recuos, estática; se o encontro com Emerenciano durasse até
hoje; se aquele amor de juras eternas não se dissolvesse com a morte precoce; se
os filhos a visitassem assiduamente, pelos menos um dia sim, um dia não; se a
irmã não se incomodasse de aceitá-la como ela era; se os ruídos de antigas
emoções acalmassem o sofrimento anterior; se o cão a acompanhasse nos
corredores da casa, a roçar em sua pernas, a deixar o pelo no vestido de algodão
fino, a ameigá-la com o latido choroso, a pular para o seu colo, passivo, atento;
se o padeiro não retardasse a entrega da encomenda, dois pães pelo café da
manhã e apenas dois ao cear, nenhum outro em lanches levianos; se os dedos
bailassem sobre o teclado do piano os Noturnos de Chopin ou as sinfonias de
Beethoven; se a ressurreição a tomasse de repente; se a casa fosse a mesma, com
os mesmos ruídos dos filhos brincando, fuxicando, brigando, tagarelando; se a
vida retomasse o seu princípio: — Maria Vitorina não temeria as horas
vagarosas.
Mas os minutos se arrastavam. E já foram tão rápidos, céleres,
enganadores na implacável cronologia! Tudo mudara. Ela se agoniava a cada
pegada percorrida, ia, vinha, perdia-se na intensa solidão. A casa pequena, o
vão de passagem estreito, havia sombras permanentes nas paredes. Alguns
retratos, sim; outros, fantasias que habitavam o porão das lembranças. A noite a
amedrontava, Maria Vitorina conhecia os retábulos de um sentir já dorido.
Desde quando se acomodava àquela situação? Na pacata vila, ninguém a
conhecia; moradora de poucos anos, para lá se instalara, fugindo dos excessos
da capital, cidade grande, cheia de ilusões e de bofetadas na cara — já não lhe
pertencia o espaço urbano; ainda bem que a pequena horta no fundo do quintal
servia-lhe de lazer, gostava de plantar e de semear os frutos da colheita. Uma
vida sem cor, anônima, avara em reciprocidade de sentimentos.
Logo o relógio tocaria dez horas e ela começaria a rezar; logo iria ler a
bíblia para acalmar os nervos à flor da pele; logo deitaria o feijão na panela, com
alguma água para amolecer os grãos, velho hábito que nunca largou, apetecialhe cultuar tradições, nunca lhe fizeram mal as crendices de outrora; logo
riscaria o dia no calendário, matando-o friamente, menos uma jornada a
cumprir, o ritual se celebrava com caneta à mão, a fulminar o X irreversível;
logo o guarda noturno apitaria e ela se sentaria no banco da cozinha com o
retrato de Emerenciano; logo choraria lágrimas ocultas como fazia ao longo da
madrugada: — Maria Vitorina tinha consciência do vagar das horas da noite
insone.
Fátima Quintas é presidente da Academia Pernambucana de Letras. E-mail:
[email protected]
Texto publicado no livro “Realejos e Cristais”, editora Bagaço, 2010
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