reprodução
É preciso
debater
humanidade
Não por acaso, João Heitor Silva
Macedo ressalta o caráter simbólico da construção dessa nova história simbolizada pelo Dia Nacional da Consciência Negra.
– Se começa a contar a história
de um homem revolucionário, que
lutava por liberdade e que serviu
de inspiração para outros revolucionários que vieram ao longo da
nossa história tentando construir
um Brasil diferente, melhor, mais
igualitário, contra a violência e
sem imposições arbitrárias – argumenta o militante.
O professor acredita que as lutas passaram a ter outro significado após o 20 de novembro. Talvez,
por isso, também vislumbre a data
como uma oportunidade para que
a sociedade faça um estudo de
consciência e, acima de tudo, para
que se discuta humanidade.
Realmente, basta olhar para os
dados da Safernet Brasil para perceber a necessidade urgente de
reavaliar nosso conceito sobre humanidade. Há nove anos atuando
no Brasil, a ONG recebeu nesse
período 469.942 denúncias anônimas de racismo, envolvendo 68.940
páginas escritas em sete idiomas
diferentes. Conforme o estudo,
somente no ano passado, mais de
86,5 mil casos de ódio a negros e
outras etnias foram relatados.
De acordo com a Secretaria de
Políticas Públicas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir), secretaria do governo federal com status
de ministério, o número de denúncias praticamente dobrou em
três anos. Em 2011, a ouvidoria do
órgão recebeu 219 queixas. No ano
seguinte, o número aumentou para
413 e, em 2014, chegou a 425.
A boa notícia é que os registros
de casos de injúria racial e racismo
parecem ter crescido na mesma
proporção em que a população se
tornou mais conscientizada e encorajada a denunciar, a exemplo
do que fez, recentemente, Tais
Araújo. No final de outubro, a
atriz foi alvo de ataques racistas
na internet e o caso foi parar na
Polícia Federal.
Para João Heitor, casos como
esses são a prova de que o racismo
não acontece só de vez em quando, ou porque uma pessoa está se
vitimizando.
– Acho lindo quando acontece com uma pessoa famosa, porque daí não é o João Heitor, da
Vila Oliveira, quem está falando.
Quando isso aparece na grande
mídia é como se a cortina tivesse
caído e pego todo mundo pelado
lá atrás. Não admito que, em 2015,
meus alunos ou meus sobrinhos
ainda sofram com isso – afirma.
MIX
As marcas da discriminação
Apesar do impacto que o racismo, seja ele virtual ou não, causa
em suas vítimas, há quem tente
relativizar o assunto. Além de não
enxergar a legitimidade da causa,
essas pessoas acabam colocando
em xeque os prejuízos desses atos.
Mas somente quem sente na pele
consegue expressar as marcas dessa opressão cotidiana.
Em maio passado, Vilnes Gonçalves Flores Junior, mais conhecido com Nei D’Ogum, saía de uma
reunião na Secretaria Municipal de
Cultura, onde acertava os últimos
detalhes do Festival Municipal de
Artes Negras (Fesman), do qual é
um dos organizadores, quando experimentou, novamente, o significado real da palavra racismo.
Antes de pegar o ônibus rumo à
UFSM – onde atua como colaborador da Pró-Reitoria de Extensão,
num projeto chamado Negritude,
e está prestes a se formam em Artes Cênicas – resolveu espantar o
frio tomando uma xícara de café
com leite. Logo após deixar o estabelecimento, na área central, foi
surpreendido por quatro viaturas
policiais. Da suspeita da dona do
local, assaltado três vezes em cinco meses, às ordens de “para, não
se mexe, abre a mochila. Cadê a
arma?” não demorou mais do que
poucos minutos. Mas os traumas
causados pela opressão, mesmo
em uma pessoa conhecida pelas
décadas de atuação na promoção
da cultura negra, continuam.
Sob a proteção dos santos que
colorem seu terreiro, onde pratica sua religião de matriz africana
e também recebeu a reportagem,
Nei se mostrou visivelmente emocionado ao lembrar do fato.
– Dói muito, leva às lagrimas.
Dentro do ônibus, eu chorava es-
Negar a existência do racismo no Brasil é
contribuir para a perpetuação do mito da democracia racial. E não há mais como pensar o
racismo somente como ofensas e injúrias. Conforme Maria Rita Py Dutra, ele é uma ideologia
que percebe determinados grupos, em virtude
de suas características biológicas ou culturais,
como inferiores e menores. Nesse bojo, cabe
ainda a absurda ideia de que existem lugares
para negros, para indígenas e para brancos.
O professor João Heitor Silva Macedo explica que a abolição da escravatura ocorreu
em 14 de maio de 1888. Nesse dia, os negros
foram soltos sem qualquer política pública
que desse a eles o mínimo de condições de
sobrevivência na sociedade.
– Ou seja, todos são iguais perante a lei, mas
nem todos partem da mesma igualdade – comenta o militante.
Para o cientista político e professor do curso
de Gestão Pública da Unipampa Guilherme
Howes é um absurdo acreditar que, em algum
momento, o país viveu uma democracia racial.
Ele explica que nos anos que seguiram a libertação dos escravos, o abismo entre brancos e
negros só fez acentuar-se. Pessoas de pele es-
condido. Tua identidade é posta
em xeque, tua autoestima baixa
e você se sente perseguido. Isso
nos faz questionar a sensibilidade
dos nossos iguais, os não negros.
– conta Ney, enquanto lembra da
professora Vera Valmerate, quem
o iniciou nas leituras que não permitem que derrubem.
O extermínio negro
Quando Nei expõe sua sensação
de insegurança em razão de sua
cor da pele, ele tem motivos a para
tal. De acordo com o Mapa da Violência 2015, os principais mortos
por armas de fogo no país têm algo
em comum: a cor da pele. Enquanto o número de pessoas brancas
mortas por arma de fogo caiu 23%,
entre 2003 e 2012, a quantidade de
vítimas negras cresceu 14,1%. O
O racismo
para além
das ofensas
cura, descendentes de escravos, ex-escravos,
mesmo que possuíssem dinheiro para adquirir
propriedades, eram impedidos arbitrariamente
de escriturá-las. Também não podiam registrar
formalmente empresas nas casas notariais. Até,
pelo menos, os anos 1920, jovens e crianças negras não podiam frequentar os bancos escolares, salvo raríssimas exceções.
– Existiu portanto um apartheid formal e
perverso silenciado pela historiografia, negado
pela política e afirmado pela cultura brasileira
que perdura até os dias de hoje e dá sinais de
recrudescer a cada dia quando fingimos acreditar que haja uma democracia racial – avalia.
E se engana quem pensa que, 127 anos após
a abolição da escravatura, essa disparidade não
estudo coordenado pelo sociólogo
Julio Jacobo, mostra ainda que somente em 2012, morreram 2,5 mais
negros do que brancos.
O mais estarrecedor é pensar
nas 320 mil pessoas negras mortas a tiros de 2002 a 2012. É como
se uma cidade de porte médio,
como Santa Maria, fosse coberta
de corpos crivados a bala. Um dos
motivos para essa disparidade, segundo o estudo, deve-se a fatores
econômicos. Enquanto as ações de
segurança pública priorizam áreas
mais abastadas, onde há também
a atuação de segurança privada, as
periferias, preferencialmente ocupadas por negros e pessoas de baixa renda, contam com o mínimo
de proteção do Estado.
mais existe. Howes diz que o racismo não é um
fantasma do passado, mas, sim, um elemento
vivo e ativo. Ele tem raízes profundas e históricas em nossa cultura escravocrata e monárquica, que naturalizou privilégios e que até hoje vê
com bons olhos o popular “jeitinho,” sem conseguir perceber o quanto é absurdo moralmente não valorizar o trabalho dos outros.
– Somos o único país do mundo que ainda
constrói o quartinho da empregada, que é uma
reminiscência clara à senzala dos séculos 17, 18,
19. É a senzala moderna. O elevador de serviço,
que não serve exatamente para os que estão em
serviço, mas para os que são serviçais, que por
mais que estejam de folga, não têm acesso aos
elevadores dos patrões. Ele é a porta dos fundos das cozinhas das “casas grandes” – diz.
O cientista político afirma ainda que estes
são exemplos claros de que não superamos
nossa cultura escravagista e racista.
– São práticas perversas que ensinam a
exclusão na prática. Uma criança que como
com sua mãe (doméstica), depois dos patrões aprende o que é segregação e racismo
sem que nenhuma palavra tenha sido desferida a ela diretamente – conclui.
Santa Maria, sábado e domingo, 14 e 15 de novembro de 2015 – 5
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