Pierson, Azevedo e a sociedade multirracial de classes na Bahia1
Ricardo Sangiovanni2
1.
Jornais, portais e blogs de notícias brasileiros reportaram no último mês de setembro a
publicação de um relatório da Organização das Nações Unidas3 sobre a situação atual das práticas
sociais e das políticas públicas de combate ao racismo no Brasil. A maioria destacou em seus
títulos, como principal conclusão do documento, este excerto:
O Brasil não pode mais ser considerado uma democracia racial, mas, conforme
expressado pela sociedade civil e por alguns órgãos estatais, o país é caracterizado
pelo racismo institucional, no qual hierarquias raciais são culturalmente aceitas como
naturais. (FRANCE, SAHLI, 2014, p. 4, tradução e grifos meus)
Cá comigo duvido quetenha sido essa, de fato, a informação mais nova ou relevante daquele
relatório. Mas não me proponho aqui a questionar a interpretação dos jornalistas, tampouco a
discutirem pormenores o documento: queroapenas sugerir que, per se, o alarde dos meios de
comunicação ante à afirmação de que o país não pode mais ser considerado uma democracia
racial 4 é indicativoda pertinência que conserva, no imaginário de uma parte significativa da
sociedade brasileira5, a ideia de que o racismo no país, quando existe, existe apenas enquanto
expressão da desigualdade de classe6.
Passou despercebida, contudo, à leitura dos profissionais que redigiram e publicaram
notassobre o informe da ONU na imprensa, a argumentaçãoacerca do porquê da concepção do
Brasil como uma democracia racial, apresentado pelas autoras do documento no exíguo
1
Palavras-chave: raça/racismo, Bahia, intelectuais, Thales de Azevedo, Donald Pierson, Unesco.
Estudante de Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em
Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da
Bahia (Brasil). E-mail: [email protected]
3
O Report of the Working Group of Experts on People of African Descent on its mission to Brazil, foi produto de
entrevistas com representantes governamentais de cinco grandes cidades brasileiras, feitas ao longo de uma visita de
dez dias ao Brasil em dezembro de 2013 por duas especialistas em direitos humanos.
4
A noção de democracia racial gravita em torno da ideia de que o Brasil seria "uma sociedade sem barreiras legais
que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a cargos oficiais e a posições de riqueza ou prestígio"
(Guimarães, 2001, p. 148).
5
Sobre esse assunto, recordo ainda Guimarães: "De fato, os brasileiros se imaginam numa democracia racial. Essa é
uma fonte de orgulho nacional, e serve, no nosso confronto e comparação com outras nações, como prova inconteste
de nosso status de povo civilizado." (2009, p. 39)
6
De classe ou, mais recentemente, de qualquer outra natureza - jamais pura e simplesmente racismo. Recentemente,
torcedores do Grêmio, clube de futebol do Rio Grande do Sul, insultaram um jogador do Santos, clube de São Paulo,
chamando-o de macaco e imitando o som e os trejeitos desse animal. Questionada, uma das torcedoras agressoras
justificou-se afirmando que os insultos não eram racistas, mas sim expressões ditas "no calor do jogo" evidentemente subsumindo o racismo à atmosfera de conflitualidade esportiva.
2
tópico"Contexto Histórico", ao qual foram dedicados dois parágrafos de um total de 24 páginas:
O Brasil [após a proclamação da República] foi considerado uma “democracia racial”,
e o racismo e a discriminação raciais [considerados] ausentes da sociedade brasileira,
ainda que remanescessem no inconsciente coletivo. O legado do tráfico de escravos, da
escravidão e do colonialismo sustentaram a ideia de que pessoas negras, se permitidas
dentro do sistema dominante, destruiriam [o racismo e a discriminação] de dentro.
(idem, ibidem, 2014, tradução minha)
Não pretendoque um relatório como esse devesse discutir com grande detalhamento as
circunstâncias históricas que concorrem para explicar por que o Brasil “foi considerado" uma
democracia racial. Sinalizo apenas que, ao apresentar tal "contexto histórico" de modo tão
excessivamente sumário, o documentoacaba corroborando, à guisa de explicação última do
racismo brasileiro, certo tipo de ligação direta entre o presentepretensamente modernoe um
remotíssimo passado colonial pré-aboliçãoda escravidão - escamoteando, de contrabando, os
jogos de forças e interesses, nacionais e internacionais, envolvendo campos sociais diversos, que
concorreram,ao longo do tempo, para fomentar a noção de que, no Brasil, a mentalidade racista e
a discriminação racial, quando não inexistem, subsumem-se à discriminação de classe - tendendo
ambas, portanto, a erradicar-se com o tempo, como que naturalmente, na medida em que
amadurecesse a sociedade de classesno Brasil.
2.
Nesse sentido, recuando um pouco na história dessa crença difusa, pode-se dizer que um
importante papel nos jogos de forças a que me refiro foi jogado justamente pelas Nações Unidas,
nos anos 1950, através do ProjetoUnesco sobre relações raciais no Brasil, que financiou
pesquisas de campo de cientistas sociais brasileiros e estrangeiroscom a finalidadede montar um
painel científico dos vários matizes em que se davamessas relações. A motivação na raiz daquela
iniciativa era apresentar uma via alternativa a cenários de desabrido conflito inter-racial pelo
mundo, como o Jim Crow no sul dos Estados Unidos e o apartheid na África do Sul. Pode-se
dizer que já era hegemônico internacionalmente o imaginário de que, no Brasil, as relações entre
brancos e negros eram harmônicas e, portanto, potencialmente exemplares - e era justamente essa
noção e suas nuances que a Unesco pretendia confirmar, científica e empiricamente, em campo 7.
7
Coordenador do projeto Unesco no Brasil, Alfred Métraux, afirmava em 1952 que "comme l'enquête de l'Unesco l'a
amplement démontré, le Brésil reste un pays exemplaire, destiné de ce fait à jouer un rôle important dans la
construction d'un monde qui connaîtra enfin le respect mutuel entre toutes les races". (1952, p. 6)
Uma dessas pesquisas foi a que resultou no volume As elites de Cor: um estudo de ascensão
social, de Thales de Azevedo, de 1953, primeira publicação fruto daquele projeto, sob a curadoria
da Unesco. No livro, o cientista social baiano apresenta uma etnografia da cidade de Salvador de
1951, em que analisa a realidade social baiana pelo prisma das relações raciais, a partir de
entrevistas e observação de campo em contextos nos quais pessoas "de cor" (i.e. negras ou
mestiças de variadas tonalidades de coloração da pele) ascendiam, ou tentavam ascender, na
ditasociedade de classes baiana de então.Da etnografia de Azevedodepreendem-se, por um lado,
tanto a existência de possibilidades de ascensão social a pessoas "de cor" - o que positivava os
auspícios da Unesco - , quanto, por outro, a existênciade barreiras e preconceitos
sistematicamente enfrentados por essaspessoas em relação às de pele mais clara, em boa parte dos
casos ancorados em motivações que, aparentemente, não encontravam explicação última na
inferioridade de classe - o que, nas entrelinhas, contrariava a noção de que a Bahia e o Brasil
fossem "exemplares" ou tendessem a uma democracia racial ou estatuto que o valha.
Chama atenção, portanto,naquele trabalho, o fato de as evidências etnográficas aparecerem
mormente enquadradas em um horizonte epistemológico que parece engessar a análise de
Azevedo - de maneira que grande parte das situações concretas apresentadas,nas quais a cor da
pele ou outros traços fenotípicos aparecem como mote da discriminação relatada, não chegam a
ser sequer interpeladas pelo autor quanto à eventual possibilidade de configurarem expressões de
um preconceito racial estruturante - quero dizer: de racismo - , portanto, entraves à concretização
da livre ascensão social independentemente da raça ou da cor; ao contrário: essas situações
terminam por sertratadas comoface aparente de umadiscriminação cuja raiz última é outra e, em
larga medida, oculta aos próprios atores envolvidos: a desigualdade de classe. A tese central do
livro, portanto, guardasemelhançacom a que o recente relatório da ONU refuta: a de que, uma vez
que a população negra se integrasse ao "sistema dominante" e ascendesse nele, por seus próprios
esforços, o preconceito racial desapareceria.
Convém observar que o enquadramento teórico-epistemológico predominante naquele
trabalho de Thales de Azevedo é de cariz estrutural-funcionalista, tomado de empréstimo às teses
propugnadas por Donald Pierson, cientista social da Universidade de Chicago (EUA) que estivera
na Bahia 16 anos antes - entre 1935 e 37 - e, via de regra, constatara a existência de uma
"sociedade multirracial de classes" - quer dizer, uma sociedade de classes (em oposição ao
modelo de castas) em que a mobilidade social vertical se dava primordialmentepor meio da livre
competição;uma sociedade, portanto, onde preconceitos e desigualdade por conta da cor e de
outros traços fenotípicos eram, quando nada, emanações de uma desigualdade de classes - essa
sim estruturante - que bem poderia ser tomada por natural, dado tratar-se de uma sociedade de
classes que só recentemente (em 1888) abolira um longevo regime escravista. Novamente, uma
tesebem semelhante à que encontramos agora refutada no relatório recente dasNações Unidas.
3.
Não pretendosugerir que tenham sido Donald Pierson, Thales de Azevedo ou mesmo a
Unesco, através de seu projetosobre as relações raciais no Brasil nos anos 1950, os fulcros
últimos de uma suposta a inculcação, no senso comum brasileiro,do entendimento - a meu ver,
registre-se,equivocado - de que o preconceito racialaqui se explique apenas enquanto decorrência
menor, colateral, do preconceito de classe, inexistindo quando não articulado a este. Até porque,
se Pierson seguiu sustentando as teses de seu livro,Brancos e Pretos na Bahia: um estudo de
contacto racial (publicado em inglês em 1942), décadas depois de sua publicação, ante as muitas
críticas que recebeu8, pode-sefacilmente notar que seu olhar é, naquele trabalho,circunscritível
não apenas a um determinado horizonte epistemológico - o do estrutural-funcionalismo
predominante nas teses da Escola de Chicago - como a um claro propósito comparativo, que tinha
como parâmetro de racismo a realidade do sul dos Estados Unidos, ante a qual a Bahia lhe
pareceu um contraexemplo alvissareiro; Thales de Azevedo, por sua vez,avançaria em relação às
teses defendidas em As Elites... em futuros trabalhos9, reconhecendo até certo ponto a existência
do preconceito racial per se; e quanto ao projeto da Unesco no Brasil, este desaguaria em
múltiplos e por vezes divergentes resultados, sendo hoje mais aceita 10 a tese de que aquele
conjunto de trabalhos, ao invés de reafirmar, em marcos científicos, a harmonia racial brasileira,
como inicialmente propunha, contribuiu de maneira fundamental para despertar, no campo
científico, a denúnciada existência de forte preconceito racial e doracismo no Brasil.
Meu propósito aqui é bem outro: no bojo de minha pesquisa de doutorado, em que auspicio
produzir uma análise histórico-sociológica da trajetória profissional de Thales de Azevedo,
interessa-meobservar e discutir, através de uma leitura comparativa dos supracitados trabalhos de
Pierson e de Azevedo, o modo como se materializou a relação de influência unilateralentreum
8
Ver Pierson, 1971, "Introdução à 2 edição".
Exemplos disso são alguns dos ensaios reunidos no volume Democracia Racial, de 1975.
10
Ver Maio, 2000.
9
ponto de vista teórico eminentemente norte-americanono trabalho de um intelectual
brasileiro,escrevendo sobre seu próprio contexto social. Nesse sentido, procurei colher exemplos
numa releiturados textos desses dois autores, para refletir sobre o que me parece ter sido um
movimento de subsunção da realidade empírica verificada por Thales de Azevedo às teses
defendidas por Donald Pierson - movimento este que resultou, a meu ver, em limitaçõesao
trabalho do autor baiano.
A comparação entre esses dois autores não é aleatória. Em As Elites..., Thales de Azevedo
reconhece, em diversas passagens, sua filiação teórica (de resto, legítima) às teses de Pierson.
Isso, porém, somado a 1) o fato de que Azevedo explicitaria, anos depois da publicação daquele
livro, certa ingerênciade Alfred Métraux 11 , coordenador do projeto Unesco, na redação do
trabalho, no sentido de conferir-lhe um cariz menos histórico (feição que Thales dera a seu livro
anterior, Povoamento da Cidade do Salvador), e mais empírico (verve declarada dos auspícios da
Unesco, epresente em Pierson); e a 2) o fato de a função de coordenação das pesquisas do projeto
da Unesco na Bahia só ter sido oferecida a Thales de Azevedo após a recusa de Donald Pierson,
em razão de compromissos previamente assumidos por este 12 ; leva-me à hipótese de que a
Unesco tinha no trabalho de Pierson uma espécie de modelo, a ser evidentemente submetido a
confirmação numa nova empreitada de campo - hipótese que, secomprovada, põe em cena uma
condicionante fundamental na busca por entender melhor as circunstâncias e o jogo de
compensações e constrangimentos enfrentados por Azevedo na produção daquele que seria talvez
seu trabalho de maior projeção no campo intelectual, brasileiro e internacional. Em suma, seria
como se, em alguma medida, Azevedo estivesse "fazendo um papel" que, ele bem sabia, "era para
ser" de Pierson.
4.
Listo a seguir exemplos, extraídos da leitura comparativa de Pierson e Azevedo, por meio
dos quais busco dar sustentação aessa hipótese. Primeiro, exporei uma comparação entre as teses
gerais apresentadas por um e outro autor; em seguida, um cotejo entre dois tipos de situações
concretasabordadas por ambos.
A tese central de Pierson, conforme afirmei anteriormente, pode-se resumir neste excerto:
o que encontramos na Bahia é uma sociedade multi-racial de classes. Não existe casta
baseada em raça, existem apenas classes. Estas classes são ainda consideravelmente
11
O episódio é relatado por Thales de Azevedo no prefácio de Ensaios de Antropologia Social (1959, pp. 9-10)
O episódio é relatado por Thales de Azevedo no Anuário Antropológico de 1982 (p.275)
12
identificadas com a côr, é verdade; mas apesar disto, são classes e não castas. A
tendência mais característica da ordem social brasileira tem sido a redução gradual,
mas contínua, de tôdas as distinções culturais e raciais, e para a fusão biológica e
cultural do africano e do europeu em uma raça e cultura comuns. (1971, p. 358)
Ou seja: embora reconheça a existência de manifestações de preconceito racial, Pierson não
trata tal discriminação como algo estruturante, dotado de seu peso próprio nos processos de
reprodução social, mas sempre enquanto uma sorte de subproduto da desigualdade em relação
aostatus e à origem social - ou seja, à classe.
Thales de Azevedo, por sua vez, no capítulo que intitulado"Uma sociedade multi-racial de
classes", muito embora reporte depoimentos de informantes que salientam, por exemplo, que "a
pigmentação cria obstáculos" (1955, p.76) à ascensão social de negros, reafirma Pierson:
Sem embargo de todas essas dificuldades [quenegros e mestiços enfrentavam, por
conta da cor e de traços fenotípicos, para ascender socialmente], as pessôas de côr,
sobretudo as mais claras e de traços mais europóides, podem adquirir um status tão
elevado quanto os brancos. (...) elas podem casar-se com brancos segundo sua posição
social, podem alcançar proeminência nas profissões liberais, na intelectualidade,
podem ser admitidas em organizações existentes pra exprimir prestígio e status, o que
confirma a tese já comprovada por Pierson de que 'o que encontramos na Bahia é uma
sociedade multi-racial de classes'. (idem, pp. 76-77)
Para além da coincidência evidente entre os modos de pensar dos dois autores, há também
em comum uma tese subjacente,que nem sempre aparece claramente, mas cuja observância me
parece fundamental para tentar entendera superposição, propostapor Pierson e ratificada por
Thales, entre o gradiente de cor da pele (da mais escura à mais clara) e a escala de status social
(do mais pobre/menos educado/de origem escrava ao mais rico/mais educado/de origem
senhorial): a convicção de que da mestiçagem - ou seja, da mistura genética entre brancos,
negros, indígenase mestiços ao longo do tempo - resultaria numa redução da população
fenotipicamente negra, que tendia a se reduzira um mínimo em função de um
pretendidoembranquecimento progressivo, tanto da população quanto da cultura predominantes.
Tendo a interpretar essa ideia como uma espécie de sobrevivência das teses do racismo científico
e do evolucionismo cultural.Em Pierson, esse argumento aparece mais claramente aqui:
A tendência geral é para que a porção predominantemente de origem européia absorva
os mestiços mais claros, enquanto por sua vez os mestiços absorvem os prêtos. Quer
dizer que a população brasileira está adquirindo aparência mais européia, menos
negróide - tendência mencionada por alguns intelectuais brasileiros como "arianização
progressiva". (1971, p. 184).
Pierson não chega a defender que, com o tempo, os negros desapareceriam completamente,
como muitos baianos então acreditavam; mas concorda com a tese de que os traços do fenótipo
branco tendiam a predominar, com o tempo, numa população baiana homogeneamente mestiça daí talvez a tendência por ele apontada de relativa coincidência entre cor da pele e a posição
social: os mais pobres tendiam a ser os de pele mais escura, afinal, ainda não haviam entrado no
caldeamento étnico que lhes conferiria, progressivamente, maiores possibilidadesde ascensão
social, instrumentalizada por traços fenotípicos mais europeizados.
Thales de Azevedo parece partilhar da mesma tese:
o grupo mais escuro, de fenótipo preto, vem sendo absorvido gradualmente no
caldeamento étnico; os brancos aumentam em ritmo um pouco mais rápido, enquanto
cresce o número de mestiços, registrados nas estatísticas como pardos, para afinal
virem a submergir, pela mistura, no grupo de ascendência predominantemente
européia. (1955, p.51)
Após citar o próprio Pierson, Azevedo conclui o pensamento referindo um intelectual
contemporâneo seu, J. Valadares, a quem reafirma: "Todos notam que marchamos para uma
população totalmente mestiça, mas com aparência de branca" (idem, p.51).
É também característica comum aos trabalhos de Pierson e de Azevedo a preocupação
comparativa em relação ao contexto internacional, sobretudo do racismo norte-americano.
Entretanto, o que em Pierson soa como uma opção analítica questionável, embora razoavelmente
explicável por conta da origem acadêmica da pesquisa e da própria origem social do autor13, em
Azevedo por vezes aparenta ser uma exageração heurística do exemplo baiano no enfrentamento
do "problema das relações inter-raciais" - o que me parece um indicativo da intrusão, em seu
trabalho, de um viés aparentementepropagandístico direcionado à comunidade acadêmica e
política internacional; e, consequentemente, na imposição de limites ao potencial do trabalho no
sentido de perscrutar e problematizar o status quo da sociedade baiana. Além de verificável na
adesão pouco ou nada crítica às teses de Pierson (não só nos trechos aqui sinalizados, como ao
13
Exemplos dessa preocupação comparativa abundam no livro. Um exemplo: "que tal descoberta [de que um branco
tinha uma avô negra] não produziu nem produziria em nenhum caso semelhante, alteração no status do indivíduo em
questão, nem modificaria a estima de que gozasse, indica o caráter verdadeiro da 'situação racial' brasileira, em
oposição à dos Estados Unidos, por exemplo, onde semelhante revelação criaria um escândalo". (1971, pp. 187-188)
longo de toda a monografia), esse caráter parece-me explícito no Addendum à Introdução escrito
por Azevedo para a edição em português de As Elites..., onde o autor exorta a sociedade baiana e
aos intelectuais que a estudam a "conhecer bem" as relações inter-raciais na Bahia
para que possam colaborar para que a nossa terra possa sempre ser apontada como uma
daquelas raras, em todo o mundo hodierno, em que pessôas de origens étnicas
diferentes convivem de modo bastante satisfatório sem embargo da diversidade e até
do contraste entre seus tipos físicos. (1955, p. 21)
5.
Essas teses centrais aparecem distribuídas ao longo das respectivas análises dos contextos
empiricamente verificados. Procurei observar, então, como cada um adequa essas premissas
interpretativas aos casos concretos que relata. Listo a seguir exemplos acerca detrês contextos
sobre os quais ambos se debruçaram, quais sejam: os casamentos inter-raciais, as ocupações/
profissões liberais e os clubes sociais.
A tese de Pierson para os casamentos na Bahia era de que estes ocorriam geralmente dentro
das classes sociais, sendo raras as uniões "inter-classes", de modo que "côr parece ser claramente
um dos critérios de classe" (1971, p. 205). A porosidade dessa regra geral aparece, em Pierson,
nos casos excepcionaisem que negros, através da distinção alcançada via mecanismos individuais
de ascensão social (a educação o principal deles), conseguiam escapar da identificação pela cor e
ser aceitos em círculos sociais elitizados. "Quando a côr preta deixa de identificar o indivíduo
como membro da classe 'inferior', a oposição tende a diminuir. Quase não existe oposição ao
casamento com mestiços claros, mesmo na classe 'alta', especialmente se não apresentam nos
traços fisionômicos, ou na côr, sinais muito evidentes de origem africana" (idem, p. 206).
Novamente,subjacente ao argumento de que não existe uma barreira de raça ou cor intransponível
(como havia nos Estados Unidos), é possível notar a expectativa da miscigenaçãocomo uma
espécie de silencioso catalisador da ascensão de não-brancos na sociedade de classes.
Azevedo, ao longo do capítulo que dedica ao assunto, apresenta exemplos em que a
resistência ao casamento aumenta quanto mais escura for a pele da pessoa em questão,
independentemente da classe: "O casamento de homem claro com mulher escura, sobretudo
quando esta é muito mais pigmentada, sofre oposição forte em todas as camadas." (1955, p. 87)
Identifica também sobrevivências do racismo científico entre os brancos, que "justificam a sua
oposição ao casamento com prêtos, além das ideologias relativas à inferioridade mental e moral
do negro, com a repulsa 'instintiva' por certas características orgânicas dos africanos e seus
descendentes", como, segundo aquela mentalidade, o odor (idem, p. 87). E relata ao final desse
capítulo um dado bizarro,fugindo um pouco ao tema dos casamentos, sobre transfusões de
sangue, em que "muitas vezes os pacientes brancos ou suas famílias preferiam doadores também
brancos, mostrando-se constrangidos quando o doador era um mulato ou preto." (idem, p. 90)
São apenas alguns exemplos - entre muitos ao longo do livro - que me sugerem que,a partir
de suas próprias evidências etnográficas, Azevedo, ao que parece, tinha elementos para
questionar o alcance teórico das teses de Pierson. Contudo, na reflexão que conclui o capítulo,
tende a reafirmar a argumentação do norte-americano: "Funcionando a côr e os traços somáticos,
em grande parte, como símbolos de status, a resistência aos inter-casamentos traduz ao mesmo
tempo preconceito de classe e de raça, ou melhor, de côr"(idem, ibidem) - ainda que a tensão em
relação a esse argumento reapareça apenas algumas linhas abaixo, na afirmação de que "Nesse
terreno [casamentos inter-raciais] o comportamento se caracteriza por mais distanciamento e
intolerância dos brancos, mesmo dos que são apenas 'socialmente brancos'" (idem, ibidem).
No âmbito profissional - que Pierson discute sob o rótulo de ocupações, e Azevedo sob o de
profissões liberais - o movimento é semelhante ao encontrado no terreno dos casamentos, porém
com menor tensão. Piersonreafirma a existência de uma
ordem social de livre competição, na qual os indivíduos pleiteavam posição baseada
principalmente em realizações pessoais e favoráveis condições de família. (...)
Entretanto, a parte mais escura da população teve de lutar com as sérias desvantagens
de terem começado "de baixo", como escravos da classe branca dominante, sem
instrução e outros recursos para ascenderem, e de exibirem sempre, em virtude da côr e
de outros característicos físicos, as marcas indeléveis desta ascendência africana,
símbolos indestrutíveis de status inferior. (1971, p.226)
Pierson não se surpreende, portanto, com a distribuição hierarquizada dos postos de trabalho,
em que os negros se concentravam "nos empregos de baixo status e pequeno salário", afinal, "o
período de tempo desde a escravidão ainda era relativamente curto". (idem, ibidem)
Azevedo refereum quadro semelhante ao proposto por Pierson: as relações interpessoais
entre pessoas de diferentes fenótipos são brandas, e "mesmo nas mais prestigiosas dessas
profissões, pessoas de todos os tipos podem fazer carreira e conseguir clientela, particularmente
os médicos e os advogados" (1955, p. 156).Entretanto, a seguir, reproduz estatísticas das
associações profissionais de quatro categorias "prestigiosas", em que os advogados são apenas
30% mestiços e 1,1% pretos; os engenheiros civis, respectivamente, 26,8%e 0,3%; os médicos,
16,9%e 2%; e os farmacêuticos, 14,4%e 3,6%. Quero com isso sinalizar que o fato de as pessoas
"de cor" serem sempre minoria - e dentre elas as de pele mais escura (pretas)uma parcela
inexpressiva - tendem a ser providencialmente enquadrados na tese de Pierson - que pressupunha,
como elemento de integração social, não apenas a ascensão social por via material e/ou de status,
mas a miscigenação,que figuracomo elemento justificador da marginalização das pessoas de pele
mais escura, minoria numa sociedade que, supostamente, embranquecia.
Passa também sem maior questionamento o depoimento de um informante - "um estudante
de medicina muito preto"(idem, pp. 157-158) - que diz que "os [médicos] pretos em geral não se
dedicam à cirurgia: alguns tentam essa especialidade, mas acabam na cínica geral. A odontologia
também não é uma bôa carreira para êles: qual é a moça branca, enfeitadina, que quer abrir a sua
boca para um preto?" (idem, ibidem). Ademais, episódios de franca discriminação por causa da
cor - como casos de professores que humilhavam jovens estudantes negras "pouco estudiosas",
"dizendo que havia muita gente precisando de cosinheiras [sic] ou de lavadeiras, e no entanto as
pretas estavam querendo ser doutoras" (idem, p. 158) - são situados num impreciso passado, "há
alguns decênios" - subterfúgio14aliás recorrente ao longo do livro.
Nos clubes sociais ao tempo do trabalho de Pierson, "os prêtos ainda não foram admitidos,
embora vários mulatos, inclusive certo número de 'branqueados' e mesmo alguns escuros, fôssem
membros regulares, desfrutando de tôda a consideração" (1971, p. 234).
Ao tempo da etnografia de Azevedo, a estratificação social dos clubes parecia guardar uma
vinculação direta com o gradiente de cor da pele: os clubes "mais finos", com "predominância de
associados do alto comércio e da indústria e das profissões liberais, só aceita[va]m pessôas
'socialmente brancas', isto é de fenótipo europóide ou classificadas como brancas graças à
combinação de leves traços de mestiçagem com posição mais ou menos elevada" (1955, p.171),
ficando os "muito pretos" ou excluídos nestes, ou associados a clubes que reuniam pessoas "de
cor" e profissionais de funções de menor valorização social. Tendo a concluir, por esse exemplo,
que a posição de classe não poderia sertratada comodeterminante último das desigualdades e
preconceitos de cor ou raça, conforme a tese de Pierson; mas que, ao contrário, ao aparecer
combinada à "posição social mais ou menos elevada", a marca fenotípica/racial tinha validade
14
Será o caso de tentar descobrir, ao longo desta pesquisa, se, nesse ou em algum outro caso, o "passado" referido
imprecisamente por Azevedo chega a coincidir com o momento em que Pierson pesquisara na Bahia.
independente - seria, pois, o caso de buscar verificar se não era ela mesma estruturante, e
nãoapenas um subproduto indesejado de uma ainda imperfeita integração na sociedade de
classes. Azevedo, no entanto, ocupa-se em "confirma[r] a observação piersoniana de que através
das profissões liberais muitas pessoas alcançam classificação social", do que em questionar em
profundidade a polifonia de sua própria etnografia - que o leva,honestamente, a registrar que
"esse [clubes sociais] é um setôr das relações sociais em que há certo conflito, muito embora a
tensão resultante seja dissimulada por mecanismos de acomodação de parte a parte" (idem, p.
173). Da parte de alguns negros bem posicionados socialmente, um desses mecanismos consistia
emsimplesmente evitar participar desses clubes, pois já estavam calejados do preconceito.
6.
Fica portanto evidente, na leitura comparativa entre Pierson e Azevedo, que o autor baiano,
embora reúna evidências etnográficas cuja polifonia inspiraria hipóteses analíticas diferentes das
do autor norte-americano, não avança para além daquelas teses. Discutir as possíveis razões e
sobretudo as consequências da limitação aqui identificada seráobjeto de investigação ao longo de
minha pesquisa de doutorado. Avento a seguir, brevemente, à guisa de conclusão, algumas
hipóteses (complementares, e não excludentes entre si) de trabalho nesse sentido.
A discussão mais evidente reside em torno do viés epistemológico de As Elites.... Suponho
que, ao optar por uma tradição marcadamente estrutural-funcionalista - ao contrário de outros
pesquisadores do mesmo projeto Unesco, como Florestan Fernandes e Oracy Nogueira, mais
influenciados por reflexões de corte mais marxista - , Thales de Azevedo, na esteira das
conclusões de Donald Pierson, não atribui um caráter sistemático à conflitualidade entre as
classes sociais na Bahia: por isso, talvez, não tenha enxergado, no conjunto de episódios de
preconceito racial que etnografou, rastros de relações estruturais de conflito, dominação e
exclusãoentre as classes. Assim, a primeira opção desses autores parece ser a de explicar a
realidade a partir de uma teoria da ação parsoniana, bem mais do que enxergar nela a luta de
classes marxista. Rigorosamente, isso acaba resultando na sugestão dúbia de que a Bahia era
moderna no regime de classes (em oposição ao de castas), e ao mesmo tempo tradicional, por
conservar uma exemplar tendência à cordialidade, perdida por civilizações mais desenvolvidas.
Mas proponho ir além dos limites de uma sociologia do pensamento, ou de uma história das
ideias: será preciso investigar a fundo as relações sociais em jogo, no marco da sociologia dos
intelectuais inspirada por Bourdieu, a fim deentender os significados de As Elites... nas diversas
redes de relações sociais das quais participava Azevedo - para isso, será preciso mapearos
constrangimentos ecompensações resultantes do tráfico de diferentes matizes de capital social,
provenientes de campos de disputa diversos - como o acadêmico (nacional e internacionalmente),
o político, o das relações internacionais, o da comunidade religiosa e - não menos importante - os
campos de origem social e as redes de amizade e prestígio nas quais o autor baiano se inseria.
Nesse último aspecto, ocorre-me abordar As Elites... enquanto objetificação do trânsito de
Thales de Azevedo por todas essas redes; ou seja: tratar, possivelmente num marco influenciado
por uma antropologia simétrica contemporânea, aquele livro enquanto objeto que articula
significados diversos, como a possibilidade de inserção numa esfera maior de prestígio
acadêmico,a inserção numa determinada tradição de pesquisa científica em dimensão
internacional, a demonstração da filiação teórica e/ou mesmo dos vínculos de respeito e amizade
que Azevedo mantinha com prestigiados intelectuais.
Bibliografia consultada
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Pierson, Azevedo e a sociedade multirracial de classes na Bahia